elisabeth roudinesco - por que a psicanálise

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Prólogo 

Este livro nasceu de uma constatação: perguntei a mim mesma por que, após cem anos de existência e deresultados clínicos incontestáveis, a psicanálise era tão violentamente atacada hoje em dia pelos que pretendem substituíla por tratamentos químicos, julgados mais e!ica"es porque atingiriam as chamadascausas cerebrais das dilaceraç#es da alma$

%onge de contestar a utilidade dessas subst&ncias e de despre"ar o con!orto que elas tra"em, pretendi mostrarque elas não podem curar o homem de seus so!rimentos psíquicos, sejam estes normais ou patológicos$ 'morte, as paix#es, a sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o outro moldam a subjetividadede cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá p(r termo a isso, !eli"mente$ '

 psicanálise atesta um avanço da civili"ação sobre a barbárie$ Ela restaura a id)ia de que o homem ) livre porsua !ala e de que seu destino não se restringe a seu ser biológico$ *or isso, no !uturo, ela deverá conservar

integralmente o seu lugar, ao lado das outras ciências, para lutar contra as pretens#es obscurantistas quealmejam redu"ir o pensamento a um neur(nio ou con!undir o desejo com uma secreção química$

CAPÍTULOS

*+-E+' *'+.E

A sociedade depressiva/$ ' derrota do sujeito

0$ 1s medicamentos do espírito

2$ ' alma não ) uma coisa3$ 1 homem comportamental

4E5678' *'+.E

A grande querela do inconsciente/$ 1 c)rebro de 9ranenstein

0$ ' ;carta do equinócio<2$ 9reud está morto na 'm)rica

3$ 6m cienti!icismo !rancês

.E+=E+' *'+.E

O futuro da psicanálise/$ ' ciência e a psicanálise

0$ 1 homem trágico2$ 1 universal, a di!erença, a exclusão3$ =rítica das instituiç#es psicanalíticas

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PRI!IRA PART!

A Sociedade "epressiva

A derrota do su#eito

1 so!rimento psíquico mani!estase atualmente sob a !orma da depressão$ 'tingido no corpo e na alma poressa estranha síndrome em que se misturam a triste"a e a apatia, a busca da identidade e o culto de si mesmo,o homem deprimido não acredita mais na validade de nenhuma terapia$ 7o entanto, antes de rejeitar todos ostratamentos, ele busca desesperadamente vencer o va"io de seu desejo$ *or isso, passa da psicanálise para a

 psico!armacologia e da psicoterapia para a homeopatia, sem se dar tempo de re!letir sobre a origem de suain!elicidade$ 'liás, ele já não tem tempo para nada, > medida que se alongam o tempo de vida e o do la"er, otempo do desemprego e o tempo do t)dio$ 1 indivíduo depressivo so!re ainda mais com as liberdadesconquistadas por já não saber como utili"álas$

?uanto mais a sociedade apregoa a emancipação, sublinhando a igualdade de todos perante a lei, mais elaacentua as di!erenças$ 7o cerne desse dispositivo, cada um reivindica sua singularidade, recusandose a se

identi!icar com as imagens da universalidade, julgadas caducas$ 'ssim, a era da individualidade substituiu ada subjetividade:$%& dando a si mesmo a ilusão de uma liberdade irrestrita, de uma independência sem desejoe de uma historicidade sem história, o homem de hoje trans!ormouse no contrário de um sujeito$ %onge deconstruir seu ser a partir da consciência das determinaç#es inconscientes que o perpassam > sua revelia,longe de ser uma individualidade biológica, $'& longe de pretenderse um sujeito livre, desvinculado de suasraí"es e de sua coletividade, ele se toma por senhor de um destino cuja signi!icação redu" a umareivindicação normativa$ *or isso, ligase a redes, a grupos, a coletivos e a comunidades, sem conseguira!irmar sua verdadeira di!erença$

@ justamente a existência do sujeito que determina não somente as prescriç#es psico!armacológicas atuais,$(&mas tamb)m os comportamentos ligados ao so!rimento psíquico$ =ada paciente ) tratado como um ser

an(nimo, pertencente a uma totalidade org&nica$ merso numa massa em que todos são criados > imagem deum clone, ele vê serlhe receitada a mesma gama de medicamentos, seja qual !or o seu sintoma$ 'o mesmotempo, no entanto, busca outra saída para seu in!ortAnio$ 8e um lado, entregase > medicina cientí!ica, e deoutro, aspira a uma terapia que julga mais apropriada para o reconhecimento de sua identidade$ 'ssim,

 perdese no labirinto das medicinas paralelas$

@ por isso que assistimos, nas sociedades ocidentais, a um crescimento inacreditável do mundinho doscurandeiros, dos !eiticeiros, dos videntes e dos magneti"adores$ 9rente ao cienti!icismo erigido em religião ediante das ciências cognitivas, que valori"am o homemmáquina em detrimento do homem desejante, vemos!lorescer, em contrapartida, toda sorte de práticas, ora surgidas da pr)história do !reudismo, ora de umaconcepção ocultista do corpo e da mente: magnetismo, so!rologia, naturopatia, iridologia, auriculoterapia,

energ)tica transpessoal, sugestologia, mediunidade etc$ 'o contrário do que se poderia supor, essas práticassedu"em mais a classe m)dia !uncionários, pro!issionais liberais e executivos B do que os meios populares,ainda apegados, apesar da precariedade da vida social, a uma concepção republicana da medicina cientí!ica$

Essas práticas têm como denominador comum o o!erecimento de uma crença e portanto, de uma ilusão decura B a pessoas mais abastadas, mais desestabili"adas pela crise econ(mica, e que ora se sentem vítimas deuma tecnologia m)dica demasiadamente distanciada de seu so!rimento, ora vítimas da impotência real damedicina para curar certos distArbios !uncionais$ 'ssim ) que  L’Expres?  publicou uma pesquisa que revelaque 25% dos !ranceses passaram a buscar na reencarnação e na crença em vidas anteriores uma solução paraseus problemas existenciais$

$%& Essa trans!ormação !oi saudada, #á se vão de" anos, por 'lain +enaut, em  L’Ere de l’zndividu, *aris,5allimard, /CDC$ $'&  7o sentido como esse termo ) empregado por 5eorges =anguilhem, em  LaConnaissance de la vie, *aris, rin, /CFG$ 3 Emprego aqui o termo ;di!erença< no sentido que lhe ) dado porHacques 8errida$ er a terceira parte deste livro, capítulo 2$ $(& ' psico!armacologia ) uma disciplina que se

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dedica ao estudo das subst&ncias químicas no psiquismo humano$

?uanto > história da ciência cognitiva e das neurociências, ver a segunda parte deste livro, capítulo /$

I Numa obra instigante, Les Charlatans de la sant, !aris, !a"ot, #$$, o psi&uiatra 'ean()arie *bgrall deuo nome de +paramedicina a todas as medicinas paralelas &ue pretendem substituir a chamada medicina

cient-.ica, propondo uma vis/o +holista da doen0a, ou, em outras palavras, levando em conta suadimens/o ps-&uica1J

' sociedade democrática moderna quer banir de seu hori"onte a realidade do in!ortAnio, da morte e daviolência, ao mesmo tempo procurando integrar num sistema Anico as di!erenças e as resistências$ Em nomeda globali"ação e do sucesso econ(mico, ela tem tentado abolir a id)ia de con!lito social$ 8o mesmo modo,tende a criminali"ar as revoluç#es e a retirar o heroísmo da guerra, a !im de substituir a política pela )tica e o

 julgamento histórico pela sanção judicial$ 'ssim, ela passou da era do con!ronto para a era da evitação, e doculto da glória para a revalori"ação dos covardes$ Koje em dia, não ) chocante pre!erir ichL > +esistênciaou trans!ormar os heróis em traidores, como se !e" recentemente a propósito de Hean -oulin ou de %ucie e

+aLmond 'ubrac$ 7unca se celebrou tanto o dever da memória, nunca houve tanta preocupação com a4hoah $)&  e o extermínio dos judeus e, no entanto, nunca a revisão da história !oi tão longe$8aí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio intangível: todo indivíduo tem odireito<e, portanto, o dever de não mais mani!estar seu so!rimento, de não mais se entusiasmar com o menorideal que não seja o do paci!ismo ou o da moral humanitária$ Em conseqMência disso, o ódio ao outro tornouse subreptício, perverso e ainda mais temível, por assumir a máscara da dedicação > vítima$ 4e o ódio pelooutro ), inicial mente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária daalteridade$ 1 outro passa então a ser sempre uma vítima, e ) por isso que se gera a intoler&ncia, pela vontadede instaurar no outro a coerência soberana de um eu narcísico, cujo ideal seria destruílo antes mesmo queele pudesse existir$

$)& .ermo hebraico que designa o genocídio perpetrado pelos na"istas contra os judeus na 4egunda 5uerra-undial$ I7$.$J

*osto que a neurobiologia parece a!irmar que todos os distArbios psíquicos estão ligados a uma anomalia do!uncionamento das c)lulas nervosas, e já que existe o medicamento adequado, por que haveríamos de nos

 preocuparN 'gora já não se trata de entrar em luta com o mundo, mas de evitar o litígio, aplicando umaestrat)gia de normali"ação$ 7ão surpreende, portanto, que a in!elicidade que !ingimos exorci"ar retorne demaneira !ulminante no campo das relaç#es sociais e a!etivas: recurso ao irracional, culto das pequenasdi!erenças, valori"ação do va"io e da estupide" etc$ ' violência da calmaria,< >s ve"es, ) mais terrível do que

a travessia das tempestades$

9orma atenuada da antiga melancolia, a depressão domina a subjetividade contempor&nea, tal como a histeriado !im do s)culo OO imperava em iena atrav)s de 'nna 1$, a !amosa paciente de Hoseph Preuer, ou em*aris com 'ugustine, a c)lebre louca de =harcot na 4alpêtriQre$ Rs v)speras do terceiro milênio, a depressãotornouse a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo que se multiplicam ostratamentos para o!erecer a cada consumidor uma solução honrosa$ @ claro que a histeria não desapareceu,

 por)m ela ) cada ve" mais vivida e tratada como uma depressão$ 1ra, essa substituição de um paradigma poroutro não ) inocente$

er a esse respeito o brilhante artigo de 9rançoise K)ritier, ;%es matrices de lSintol)rance et de la violence<, e la violence ii, *aris, 1dile Hacob, /CCC, p$20l3G$ er iviane 9orrester,  La 3iolence du calme, *aris,4euil, /CDT$

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 IChamamos de paradigma o contexto do pensamento, o con4unto das representa0es ou o modelo espec-.ico&ue s/o pr6prios de uma poca e a partir dos &uais se constr6i a re.lex/o1 7oda revolu0/o cient-.ica traduz(

 se numa mudan0a de paradigma1 N/o obstante, no campo &ue nos interessa, na medicina, na psi&uiatria ena psican8lise, o advento de um novo paradigma n/o exclui os da gera0/o anterior9 ele o abarca, dando(lheuma nova signi.ica0/o1J

' substituição ) acompanhada, com e!eito, por uma valori"ação dos processos psicológicos de normali"ação,em detrimento das di!erentes !ormas de exploração do inconsciente$ .ratado como uma depressão, o con!litoneurótico contempor&neo parece já não decorrer de nenhuma causalidade psíquica oriunda do inconsciente$

 7o entanto, o inconsciente ressurge atrav)s do corpo, opondo uma !orte resistência >s disciplinas e >s práticas que visam a repelilo$ 8aí o relativo !racasso das terapias que proli!eram$ *or mais que estas sedebrucem com compaixão sobre a cabeceira do sujeito depressivo, não conseguem curálo nem apreender asverdadeiras causas de seu tormento$ 4ó !a"em melhorar seu estado, deixandoo esperar por dias melhores:;1s deprimidos so!rem por todos os lados<, escreve o reumatologista -arcel 9rancis Uahn, ;isso ) sabido$-as o que não se sabe tão bem ) que tamb)m vemos síndromes de conversão tão espetaculares quanto asobservadas por =harcot e 9reud$ ' histeria sempre p(s em primeiro plano o aparelho locomotor$ 9icamosimpressionados ao ver como se pode esquecêla$ E tamb)m o quanto o !ato de evocála desperta, no pessoal

m)dico e não m)dico, inquietação, recusa ou mesmo agressividade em relação ao paciente, assim como por parte daquele ou daquela que recebe esse diagnóstico$<

4abemos que a invenção !reudiana de uma nova imagem da psique pressup(s a existência de um sujeitocapa" de internali"ar as proibiç#es$ merso no inconsciente e dílacerado por uma consciência pesada, essesujeito, entregue a suas puls#es pela morte de 8eus, está sempre em guerra consigo mesmo$ 8aí decorre aconcepção !reudiana da neurose, centrada na discórdia, na angAstia, na culpa Uuhn,  La :tructure desrvolutions scienti.l&ues I=hicago, /CV0J, *aris, 9lammarion, /CFT$

I3er )arcel ;rancis <ahn, +e notre mal, personne ne s’en rit, in *utrement1 =edrpe et les neurones, n##>, outubro de #$$, p1 #>#J

1ra, ) essa id)ia da subjetividade, tão característica do advento das sociedades democráticas, elas próprias baseadas no con!ronto permanente entre o mesmo e o outro, que tende a se apagar da organi"ação mentalcontempor&nea, em prol da noção psicológica de personalidade depressiva$

4aída da neurastenia, noção abandonada por 9reud, e da psicastenia descrita por Hanet, a depressão não ) umaneurose nem uma psicose nem uma melancolia, mas uma entidade nova, que remete a um ;estado< pensado

em termos de ;!adiga<, ;d)!icit< ou ;en!raquecimento da personalidade<$ 1 crescente sucesso dessadesignação deixa bem claro que as sociedades democráticas do !im do s)culo OO deixaram de privilegiar ocon!lito como nAcleo normativo da !ormação subjetiva$ Em outras palavras, a concepção !reudiana de umsujeito do inconsciente, consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte e pela proibição,!oi substituída pela concepção mais psicológica de um indivíduo depressivo, que !oge de seu inconsciente eestá preocupado em retirar de si a essência de todo con!lito$ $*+&

$*+& -arcel 5auchet assinalou esse !en(meno e se !elicita pelo !ato de ele permitir anunciar o !im daonipotência do modelo !reudiano$ er ;Essai de psLchologie contemporaine$ /: 6n nouvel &ge de a

 personnalit)<, Le bat, nW /TT, maioagosto de /CCD$ 1 !ilóso!o canadense =harles .aLlor tamb)m analisa

esse !en(meno, em Les :ources do moi1 La .ormation de l’,dentit moderne I/CDCJ, *aris, 4euil, /CCD$

Emancipado das proibiç#es pela igualdade de direitos e pelo nivelamento de condiç#es, o deprimido deste!im de s)culo ) herdeiro de uma dependência viciada do mundo$ =ondenado ao esgotamento pela !alta de

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uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga ou na religiosidade, no higienismo ou no culto de umcorpo per!eito o ideal de uma !elicidade impossível: ;*or essa ra"ão<, constata 'lain Ehrenberg, ;o drogado) hoje a !igura simbólica empregada para de!inir as  .ei0es do antisujeito$ 'ntigamente, era o louco queocupava esse lugar$ 4e a depressão ) a história de um sujeito inencontrável, a drogadição ) a nostalgia de umsujeito perdido$< $*(&

Em ve" de combater esse !echamento, que leva > abolição da subjetividade, a sociedade liberal depressiva

compra"se em desenvolver sua lógica$ @ assim que, atualmente, os consumidores de tabaco, álcool e psicotrópicos são assemelhados a toxic(manos, considerados perigosos para eles mesmos e para acoletividade$ 1ra, dentre esses novos ;doentes<, os tabagistas e os alcoólatras são tratados como deprimidosa quem se receitam psicotrópicos$ -as, que medicamentos do espírito será preciso inventar, no !uturo, paratratar da dependência dos que se houverem ;curado< de seu alcoolismo, seu tabagismo ou algum outro vícioIo sexo, a comida, o esporte etc$J, substituindo um abuso por outroN

$*(& 'lain Ehrenberg, La ;atigue d’@tre soi, *aris, 1dile Hacob, CCD, pHF$ 1bservese tamb)m que o 8r$%oXenstein, especialista em toxicomania e diretor do =entro -onre=hristo do hospital %a)nnec, levantou ahipótese de uma ligação estrutural entre o esporte de alto nível, a depressão e o vício em drogas Adopin,g9

;*or que ) tão di!ícil, para os desportistas, interromper o esporteN *orque ele desempenha o papel de umcurativo antidepressivo e ansiolítico$ ' pessoa tem uma porçáo de coisas a !a"er: treinar, comer, tomarvitaminas I$$$J$ ?uando isso ) suprimido, o desportista torna a se ver diante daquilo que há de mais doloroso:voltar a pensar$< ALibration, /0 de outubro de /CCD$J

Os medicamentos do espírito

 ' partir de /CGT, as subst&ncias químicas B ou psicotrópicos modi!icaram a paisagem da loucura$Esva"iaram os manic(mios e substituíram a camisade!orça e os tratamentos de choque pela redoma

medicamentosa$/ Embora não curem nenhuma doença mental ou nervosa, elas revolucionaram asrepresentaç#es do psiquismo, !abricando um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação desuas paix#es, envergonhado por não ser con!orme ao ideal que lhe ) proposto$

+eceitados tanto por clínicos gerais quanto pelos especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm oe!eito de normali"ar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do so!rimento psíquico, semlhes buscar a signi!icação$ 1s psicotrópicos são classi!icados em três grupos: os psicol)pticos, os

 psicoanal)pticos e os psicodisl)pticos$ 7o primeiro grupo encontramse os medicamentos hipnóticos, quetratam os distArbios do sono, bem como os ansiolíticos e os tranqMili"antes, que eliminam os sinais deangAstia, ansiedade, !obia e de diversas outras neuroses e, por !im, os neurol)pticos Iou antipsicóticosJ, quesão medicamentos especí!icos para a psicose e todas as !ormas de delírios cr(nicos ou agudos$ 7o segundo

grupo reAnemse os estimulantes e os antidepressivos, e no terceiro, os medicamentos alucinógenos, osestupe!acientes e os reguladores do humor$

' princípio, a psico!armacologia deu ao homem uma recuperação da liberdade$ *ostos em circulação em/CG0 por dois psiquiatras !ranceses, Hean 8elaL e *ierre 8enier, os neurol)pticos devolveram a !ala aolouco$ *ermitiram sua reintegração na cidade$ 5raças a eles, os tratamentos bárbaros e ine!ica"es !oramabandonados$ ?uanto aos ansiolíticos e aos antidepressivos, trouxeram aos neuróticos e aos deprimidos umatranqMilidade maior$

 7o entanto, > !orça de acreditar no poder de suas poç#es, a psico!armacologia acabou perdendo parte de seu

 prestígio, a despeito de sua impressionante e!icácia$ 7a verdade, ela encerrou o sujeito numa nova alienaçãoao pretender curálo da própria essência da condição humana$ *or isso, atrav)s de suas ilus#es, alimentou umnovo irracionalismo$ , que, quanto mais se promete o ;!im< do so!rimento psíquico atrav)s da ingestão de

 pílulas, que nunca !a"em mais do que suspender sintomas ou trans!ormar uma personalidade, mais o sujeito,decepcionado, voltase em seguida para tratamentos corporais ou mágicos$

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 7ão surpreende, portanto, que os excessos da !armacologia tenham sido denunciados justamente por aquelesque a haviam enaltecido, e que hoje reivindicam que os rem)dios da mente sejam administrados de maneiramais racional e em coordenação com outras !ormas de tratamento: psicoterapia e psicanálise$Essa já era a opinião de Hean 8elaL, principal representante !rancês da psiquiatria biológica, que a!irmou, em/CGV: ;=onv)m lembrar que, em psiquiatria, os medicamentos nunca são mais do que um momento dotratamento de uma doença mental, e que o tratamento básico continua a ser a psicoterapia$<

?uanto ao inventor desses medicamentos, Kenri %aborit, sempre declarou que a psico!armacologia não era,como tal, a solução para todos os problemas: ;*or que !icamos contentes por dispor de psicotrópicosN *orquea sociedade em que vivemos ) insuportável$ 's pessoas não conseguem mais dormir, !icam angustiadas enecessitam ser tranqMili"adas, mais nas megalópoles do que noutros lugares$ Rs ve"es me censuram porhaver inventado a camisade!orça química$ -as, sem dAvida, esqueceramse da )poca eni que, quando

 plantonista na marinha, eu entrava no pavilhão dos agitados com um revólver e dois en!ermeiros parrudos, porque os doentes morriam dentro das camisasde!orça, transpirando e berrando $---&- ' humanidade, aolongo de sua evolução, !oi obrigada a passar pelas drogas$ 4em os psicotrópicos, talve" tivesse havido umarevolução na consciência humana, di"endo: Y7ão podemos mais suportar issoZS -as !oi possível continuar asuportálo, graças aos psicotrópicos$ 7um !uturo distante, a !armacologia talve" tenha menos interesse, a nãoser, provavelmente, na traumatologia, e ) a/) concebível que desapareça$<

Koje em dia, entretanto, a psico!armacologia tornouse, a despeito dela mesma, o estandarte de uma esp)ciede imperialismo$ 8e !ato, ela permite que todos os m)dicos B em especial os clínicos gerais abordem damesma maneira todo tipo de a!ecç#es, sem que jamais se saiba de que tratamento elas dependem$ 'ssim,

 psicoses, neuroses, !obias, melancolias e depress#es são tratadas pela psico!armacologia como um punhadode estados ansiosos, decorrentes de lutos, crises de p&nico passageiras, ou de um nervosismo extremo, devidoa um ambiente di!ícil: ;1 medicamento psicotrópico só se trans!ormou no que )<, escreveu @douard[ari!ian, ;por ter aparecido num momento oportuno$ .ornouse então o símbolo da ciência triun!ante Baquela que explica o irracional e cura o incurável I$$$J$1 psicotrópico simboli"ou a vitória do pragmatismo edo materialismo sobre as enevoadas elucubraç#es psicológicas e !ilosó!icas que tentavam de!inir o homem$<

1 poder da ideologia medicamentosa ) tamanho que, quando ela alega restituir ao homem os atributos de suavirilidade, chega a cheirar a loucura$ 'ssim, o sujeito que se julga impotente toma iagra3 para p(r !im a suaangAstia sem jamais saber de que causalidade psíquica decorre seu sintoma, ao passo que, por outro lado, ohomem cujo membro ) realmente de!iciente tamb)m toma o mesmo medicamento, para melhorar seudesempenho, mas sem jamais apreender de que causa org&nica decorre sua impotência$ 1 mesmo se aplica >utili"ação dos ansiolíticos e dos antidepressivos$ 6ma dada pessoa ;normal<, atingida por uma s)rie dein!ortAnios B perda de uma pessoa próxima, abandono, desemprego, acidente B, vê serlhe receitado, emcaso de angAstia ou de uma situação de luto, o mesmo medicamento receitado a outra que não tem nenhumdrama para en!rentar, mas apresenta distArbios idênticos em virtude de sua estrutura psíquica melancólica oudepressiva: ;?uantos m)dicos<, escreveu @douard [ari!ian, ;receitam tratamentos antidepressivos a pessoasque estão simplesmente tristes e desiludidas, e cuja ansiedade levou a uma di!iculdade de dormirZ<

' histeria de outrora tradu"ia uma contestação da ordem burguesa que passava pelo corpo das mulheres$ 'essa revolta impotente, mas !ortemente signi!icativa por seus conteAdos sexuais, 9reud atribuiu um valoremancipatório do qual todas as mulheres se bene!iciaram$ =em anos depois desse gesto inaugural, assistimosa uma regressão$ 7os países democráticos, tudo se passa como se já não !osse possível haver nenhumarebelião, como se a própria id)ia de subversão social ou intelectual se houvesse tornado ilusória, como se ocon!ormismo e o higienismo próprios da nova barbárie do biopoderV tivessem ganho a partida$ 8aí a triste"ada alma e a impotência do sexo, daí o paradigma da depressão$

8e" anos depois da comemoração mundial do bicentenário da +evolução 9rancesa, o ideal revolucionáriotende a ser suprimido dos discursos e das representaç#es$ *oderia ele continuar a exercer o mesmo !ascínio

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depois da queda do muro de Perlim e do !racasso do sistema comunistaN

A= psi&uiatra .ranc@s Bdouard ari.ian denunciou os excessos da psico.armacologia em Le !rix du bien(@tre1 !s"chotrope et socit@, !aris, =dile 'acob, #$$D1 3er tambm es paradis piem ia t@te A#$$F, !aris,=dile 'acob, #$$, col1 +=pus, p>G1F

AComercializado em #$$ como a +p-lula da .elicidade, primeiro nos Estados Hnidos e, depois, no resto domundo, o 3iagra um vasodilatador n/o a.todis-aco e sem nenhum e.eito sobre o dese4o sexual1 *ge apenas sobre as dis.un0es ercteis ligadas a causas orgInicas precisas1F

A)ichel ;oucault deu o nome de biopoder a uma pol-tica &ue pretende governar o corpo e a menre em nomede uma biologia erigida em sistema totalizante, e &ue assume o lugar da religi/o1 3er )ichel ;oucault, +B

 preciso de.ender a sociedade, in Jesumo dos cursos do CollKge de ;rance A#$>(#$2F, Jio de 'aneiro, 'orge ahar, #$$>1F

AN/o se diz com .re&@ncia su.iciente &ue os antidepressivos t@m, muitas vezes, o e.eito secund8rio dereduzir o apetite sexual1 Em alguns homens, eles provocam .enMmenos de impot@ncia1F

4e a emergência do paradigma da depressão realmente signi!ica que a reivindicação de uma norma prevaleceu sobre a valori"ação do con!lito, isso tamb)m quer di"er que a psicanálise perdeu sua !orça desubversão$ 8epois de haver contribuído amplamente, ao longo de todo o s)culo OO, não apenas para aemancipação das mulheres e das minorias oprimidas, mas para a invenção de novas !ormas de liberdade, ela!oi desalojada, tal como a histeria, da posição central que ocupava tanto nos saberes de orientação terapêuticae clínica Ipsiquiatria, psicoterapia, psicologia clínicaJ quanto nas grandes disciplinas em que supostamenteinvestia Ipsicologia, psicopatologiaJ$

1 paradoxo dessa nova situação ) que a psicanálise passou a ser con!undida com o conjunto das práticassobre as quais, no passado, exerceu sua supremacia$ .estemunho disso ) a utili"ação generali"ada do termo;psi< para designar, con!undindo todas as tendências, tanto a ciência da mente quanto as práticas terapêuticasque estão ligadas a ela$

' palavra ;psicanálise< !e" sua aparição em /DCV, num texto de 4igmund 9reud redigido em !rancês$ 6mano antes, com seu amigo Hose! Preuer, ele havia publicado seus !amosos Estudos sobre a histeria, livro emque se relatava o caso de uma moça judia e vienense que so!ria de uma estranha doença de origem psíquica,

na qual eram postas em cena !antasias sexuais atrav)s de contorç#es do corpo$ ' paciente chamavase Perta*appenheim, e seu m)dico, Preuer, que vinha cuidando dela pelo chamado m)todo ;catártico<, deulhe onome de 'nna 1$ ' história dessa paciente viria a se tornar lendária, pois ) a 'nna 1$, isto ), a uma mulher, enão a um cientista, que se atribui a invenção do m)todo psicanalítico: um tratamento baseado na !ala, umtratamento em que o !ato de se verbali"ar o so!rimento, de encontrar palavras para expressálo, permite, senão curálo, ao menos tomar consciência de sua origem e, portanto, assumilo$

=onsultando os arquivos, os historiadores modernos demonstraram que o !amoso caso de 'nna 1$,apresentado por 9reud e Preuer como o protótipo da cura catártica, não levou, na realidade$ > cura da

 paciente$ Em todo caso, 9reud e Preuer decidiram publicar a história dessa mulher e exp(la como um caso

 princeps, para melhor reivindicar, em oposição ao psicólogo !rancês *ierre Hanet, a prioridade da descobertado m)todo catártico$C ?uanto a Perta *appenheim, se não !oi curada de seus sintomas, certamente setrans!ormou numa outra mulher1 -ilitante !eminista, devota e rígida, consagrou sua vida aos ór!ãos e >svítimas do antisemitismo, sem jamais evocar o tratamento psíquico que recebeu na juventude e que !e" delaum mito$

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Kagiogra!icamente celebrada pelos herdeiros de 9reud, 'nna 1$ voltou a se trans!ormar em Pertha, na penada historiogra!ia cientí!ica$ E, retomando postumamente sua verdadeira identidade, reencontrou seuverdadeiro destino B o de uma mulher trágica do !im do s)culo OO, que deu sentido > sua vida engajandose numa grande causa$ -as nem por isso Pertha deixou de ser o personagem lendário cuja rebeldia Preuer e9reud saudaram$

Enquanto o corpo das mulheres tornouse depressivo e a antiga bele"a convulsiva da histeria, tão admirada

 pelos surrealistas, deu lugar a uma nosogra!iaSW insigni!icante, a psicanálise !oi atingida pelo mesmo sintomae já não parece adaptarse > sociedade depressiva, que pre!ere a ela a psicologia clínica$ Ela tende a setrans!ormar numa disciplina de notáveis, numa psicanálise para psicanalistas$ Em /CCD, jeanPertrand*ontalis !e" essa constatação com amargura: ;8entro em breve, a psicanálise só interessará a uma !aixa cadave" mais restrita da população$ *orventura não haverá senão psicanalistas no divã dos psicanalistasN<

3er Ernest 'ones, * vida e a obra de :igmund ;reud, G vois1, Jio de 'aneiro, mago, #$O Penri ;1 Ellenberger, Pistoire de la dcouverte de l’inconscient ANova QorRSLondres, #$>O 3illeurbanne, #$>F, !aris, ;a"ard, #$$, e )decines de l’Ime1 Essais d’histoire de la .olie et des gurisons ps"chi&ues, !aris, ;a"ard, #$$5O *lbrecht Pirschmller, 'ose. Treuer ATerna, #$>F, !aris, !H;, #$$#1

' nosologia ) a disciplina que estuda as características distintivas das doenças, com vistas a umaclassi!icação$ ' nosogra!ia ) a disciplina ligada > classi!icação e > descriçáo das doenças$

?uanto mais as instituiç#es psicanalíticas implodem, mais a psicanálise está presente nas di!erentes es!erasda sociedade e mais serve de re!erência histórica para a psicologia clínica que, no entanto, veio substituíla$ 'língua da psicanálise trans!ormouse num idioma comum, !alado tanto pelas massas quanto pelas elites e,

 pelo menos, por todos os praticantes do continente ;psi<$ Koje em dia, ningu)m mais desconhece ovocabulário !reudiano: !antasia, supereu, desejo, libido, sexualidade etc$

*or toda parte, a psicanálise reina soberana, mas em toda parte ) colocada em concorrência com a!armacologia, a ponto, aliás, de ela mesma ser utili"ada como uma pílula$ ?uanto a esse aspecto, Hacques8errida teve ra"ão de sublinhar, num texto recente, que a psicanálise ) atualmente assimilada a um ;rem)dioultrapassado, relegado ao !undo das !armácias<: ;4empre pode servir, num caso de urgência ou de !alta, mas

 já se !e" coisa melhor depois disso$<

4abemos, no entanto, que o medicamento em si não se op#e ao tratamento pela !ala$ ' 9rança ) hoje o paísda Europa em que ) mais elevado o consumo de psicotrópicos Icom exceção dos neurol)pticosJ, e em que,

simultaneamente, a psicanálise se implantou melhor, tanto pela via m)dica e assistencial Ipsiquiatria, psicoterapiaJ quanto pela via cultural Iliteratura, !iloso!iaJ$ *ortanto, se hoje a psicanálise ) posta emconcorrência com a psico!armacologia, ) tamb)m porque os próprios pacientes, submetidos > barbárie da

 biopolítica, passaram a exigir que seus sintomas psíquicos tenham uma causalidade org&nica$ -uitas ve"es,aliás, sentem se in!eriori"ados quando o m)dico tenta apontarlhes uma outra via de abordagem$

Cent ans aprKs, 'ean(Luc onnet, *ndr Ureen, 'ean Laplanche, 'ean(Claude Lavie, 'o"ce )cougall, )ichel de )’Hzan, 'ean(Tertrand !ontalis, 'ean(!aul 3alabrega, aniel Vidliicher, entrevistas com !atric ;ror, !aris, Uallimard, #$$, p15251 :obre a &uest/o das institui0es psicanal-ticas, ver a terceira partedeste livro, cap-tulo 1

Em conseqMência disso, entre os psicotrópicos, os antidepressivos são os mais receitados, sem que se possaa!irmar que os estados depressivos vêm aumentando$ 1corre apenas que a medicina de hoje tamb)mresponde ao paradigma da depressão$ *or conseguinte, cuida de quase todos os so!rimentos psíquicos como

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se se tratasse de estados simultaneamente ansiosos e depressivos$S3 sso ) atestado por diversos estudos publicados em /CCF no  Tuiletin de l*cadmie Nationale de )decine ;'tualmente receitados, em suamaioria, por clínicos gerais<, escreve *ierre Huillet, ;os antidepressivos parecem aplicarse aos distArbios dohumor de vários níveis, quase sempre de maneira adequada, mas com uma corrente tríplice: por um lado,apesar dos indiscutíveis progressos diagnósticos, especialmente os obtidos por nossos colegas clínicos, elessão prescritos em aproximadamente metade dos estados depressivos recenseados no nível da populaçãogeral\ por outro lado, assistimos a uma ampliação da de!inição da depressão e a sua medicali"ação I$$$J$*odemos presumir que a atual evolução sociocultural contribua para tornar mais numerosas as pessoas

comuns, em geral chamadas de neuróricas normais, que tiveram redu"ido o seu limiar de toler&ncia aosinelutáveis so!rimentos habituais, >s di!iculdades e >s provaç#es da vida$<

I *ssim &ue, nos Estados Hnidos, inventou(se uma nova epidemia para designar a histeria9 a s-ndrome de .adiga crMnica1 Ligada W idia de personalidade mXltipla Aver cap-tulo GF, essa s-ndrome tratada commedicamentos, e os1 mdicos a.irmam &ue sua causa um v-rus ainda desconhecido1 3er Elaine :holYater,

 P"stories9 P"steri cal Epidemics and )odern Culture, Nova QorR, Columbia Hniversit" !ress, #$$>1# = consumo de tran&ilizantes e hipn6ticos na ;ran0a atinge >% da popula0/o, e o de antidepressivos,em constante aumento, 22%1 Nos Estados Hnidos, os estimulantes ps-&uicos t@m a mesma .un0/o dosantidepressivos na ;ran0a1 = consumo de neurolpticos Areservado Ws psicosesF est8vel em &uase todos os

 pa-ses, mas deve aumentar ligeiramente no ano 2, com o aparecimento de novas molculas de melhordesempenho1 3er )arcel Legrain e 7hrKse Lecomte, +La consommation des ps"chotropes en ;rance etdans &uel&ues pa"s europens, TulSe4(4n de l’,cadmze Nationale de )decine, ##, D, p1l >G(>, sess8ode #> de 4unho de #$$>1 3er tambm !hilippe !ignarre, !uissance des ps"chotropes, pouvoir des patzents,

 !aris, !H;, #$$$1J

.odos os estudos sociológicos mostram igualmente que a sociedade depressiva tende a romper a essência davida humana$ Entre o medo da desordem e a valori"ação de uma competitividade baseada unicamente nosucesso material, muitos são os sujeitos que pre!erem entregarse voluntariamente a subst&ncias químicas a!alar de seus so!rimentos íntimos$ 1 poder dos rem)dios do espírito, portanto, ) o sintoma de uma

modernidade que tende a abolir no homem não apenas o desejo de liberdade, mas tamb)m a própria id)ia deen!rentar a prova dele, 1 silêncio passa então a ser pre!erível > linguagem, !onte de angAstia e vergonha$4e o limiar de toler&ncia dos pacientes baixou e se seu desejo de liberdade diminuiu, o mesmo acontece comos m)dicos que receitam ansiolíticos e antidepressivos$ 6ma pesquisa recente, publicada pelo jornal  Le

 )onde,#D mostra que inAmeros clínicos !ranceses, sobretudo os que cuidam de emergências, não estão emmelhores condiç#es do que seus pacientes$ nquietos, insatis!eitos, atormentados pelos laboratórios eimpotentes para curar, ou, pelo menos, para escutar uma dor psíquica que os transcende cotidianamente,

 parecem não ter outra solução senão atender > demanda maciça de psicotrópicos$ ?uem se atreveria a culpálosN

 A alma não é uma coisa

  7essa situação, não nos surpreende que a psicanálise seja permanentemente violentada por um discursotecnicista que não pára de invocar sua pretensa ;ine!icácia experimental<$ -as, que ;ine!icácia< ) essaN8evemos nós con!iar em Hacques =hirac quando este declara:

;1bservei os e!eitos da psicanálise e não !iquei convencido a priori a ponto de me perguntar se tudo isso, narealidade, não depende muito mais da química que da psicologia<N 1u caberá con!iarmos em 5eorges *erecquando descreve sua experiência positiva da análise, ou em 9rançoise 5iroudN Esta a!irma: ;' análise )

árdua e !a" so!rer$ -as, quando se está desmoronando sob o peso das palavras recalcadas, das condutasobrigatórias, das aparências a serem salvas, quando a imagem que se tem de si mesmo tornase insuportável,o rem)dio ) esse$ *elo menos, eu o experimentei e guardo por Hacques %acan uma gratidão in!inita I$$$J$ 7ãomais sentir vergonha de si mesmo ) a reali"ação da liberdade I$$$J$ sso ) o que uma psicanálise bem

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condu"ida ensina aos que lhe pedem socorro$

' partir de /CG0, reali"ouse um grande nAmero de pesquisas nos Estados 6nidos para avaliar a e!icácia dostratamentos psicanalíticos e das psicoterapias$ ' maior di!iculdade residiu na escolha dos par&metros$*rimeiro, era preciso testar a di!erença entre a inexistência e a existência de tratamento, a !im de podercomparar o e!eito da passagem do tempo Iou da evolução espont&neaJ com a e!icácia de um tratamento$ Emseguida, era necessário !a"er intervir o princípio da aliança terapêutica Isugestão, trans!erência etc$J, a !im de

compreender por que alguns terapeutas, qualquer que !osse sua competência, entendiamse per!eitamentecom alguns pacientes e nem um pouco com outros$ *or Altimo, era indispensável levar em conta asubjetividade das pessoas interrogadas$ 8aí a id)ia de p(r em dAvida a autenticidade de seus depoimentos edescon!iar da in!luência do terapeuta$

Em todos os casos ilustrativos, os pacientes nunca se di"iam curados de seus sintomas, por)m trans.ormadosIDT] dos casosJ por sua experiência do tratamento$ Em outras palavras, quando esta era ben)!ica, elessentiam um bemestar ou uma melhora em suas relaç#es com os outros tanto no campo social e pro!issionalquanto em mat)ria amorosa, a!etiva e sexual$ Em suma, todas essas pesquisas demonstraram a e!icáciaextraordinária do conjunto das psicoterapias$ Entretanto, nenhuma delas permitiu provar estatisticamente a

superioridade ou a in!erioridade da psicanálise em relação aos demais tratamentos$

1 grande de!eito dessas avaliaç#es ) que elas sempre se assentam num princípio experimental poucoadaptado > situação do tratamento$ 1ra !ornecem a prova de que basta que um ser em so!rimento consulteum terapeuta por algum tempo para que sua situação melhore, ora dão a entender que o sujeito interrogado

 pode ser in!luenciado por seu terapeuta e, portanto, ser vítima de um e!eito placebo$ *ortanto, ) justamente por rejeitar a própria id)ia de que a experimentação seja possível por interm)dio desses interrogatórios que achamada avaliação ;experimental< dos resultados terapêuticos quase não tem valor na psicanálise: elasempre redu" a alma a uma coisa$

=onsultado sobre esse assunto em /C23 pelo psicólogo 4aul +osen"Xeig, que lhe enviou resultadosexperimentais que provavam a validade da teoria do recalcamento, 9reud mostrouse honesto e prudente$

 7ão rejeitou a id)ia da experimentação, mas lembrou que os resultados obtidos eram, ao mesmo tempo,sup)r!luos e redundantes diante da abund&ncia das experiências clínicas já bem estabelecidas pela psicanálisee conhecidas atrav)s das numerosas publicaç#es de casos$

' um outro psicólogo norteamericano que lhe prop(s ;medir< a libido e dar seu nome Ium  .reudF > unidadede medida, ele tamb)m respondeu: ;7ão entendo de !ísica o su!iciente para !ormular um juí"o con!iávelnessa mat)ria$ -as, se o senhor me permite pedirlhe um !avor, não dê meu nome > sua unidade$ Espero

 poder morrer, um dia, com uma libido que não tenha sido medida$

?uanto > maneira como !oram condu"idas as pesquisas, estas devem ser criticadas$ 4e muitas !oram !eitascom seriedade, em especial nos Estados 6nidos, elas tamb)m !oram objeto de mAltiplas controv)rsias$1utras a!iguramse !rancamente ridículas hoje em dia$ =om e!eito, constatase que, muitas ve"es, as

 perguntas !ormuladas determinavam as respostas, como mostram os chamados protocolos ;experimentais<,que consistem, por exemplo, em testar a existência do complexo de @dipo perguntando a crianças de 2 a Canos se elas são ou não hostis para com o genitor do sexo oposto$ 't) porque ) evidente que, nessascondiç#es, a quase totalidade das crianças responde que acha seus pais ;muito bon"inhos<$

' psicanálise parece ser ainda mais atacada hoje em dia por haver conquistado o mundo atrav)s dasingularidade de uma experiência subjetiva que coloca o inconsciente, a morte e a sexualidade no cerne daalma humana$ 7a 9rança, já são incontáveis os dossiês inspirados no discurso das neurociências, docognitivismo ou da gen)tica que não têm outro objetivo senão abrir guerra contra o pensamento !reudiano$

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Entretanto, ao ler os detalhes das intervenç#es reunidas sob essas rubricas, percebese que elas di"em algointeiramente di!erente$ Em geral, os dossiês dão a palavra a especialistas de toda sorte Ipsicólogos,

 psicanalistas com !ormação psiquiátrica, psicoterapeutas, neurologistas, neurobiologistas, intelectuais etc$J eo diálogo se instaura, >s ve"es, sem dAvida, de maneira bastante simplista Ia !avor ou contra 9reud e a

 psicanáliseJ, mas tamb)m, com bastante !reqMência, numa perspectiva crítica e respeitando as di!erentesdisciplinas$ 7a maioria das ve"es, os cientistas dão mostras de prudência$ 4alvo alguns irredutíveis, osinvestigadores interrogados nunca desejam ;queimar< coisa alguma$

-as, por que a psicanálise suscita tanto opróbrioN ?ue aconteceu para que, ao mesmo tempo, ela esteja tão presente nos debates sobre o !uturo do homem e seja tão pouco atraente aos olhos dos que a consideramenvelhecida, ultrapassada e ine!ica"NS

' signi!icação desse descr)dito deve ser buscada na recente trans!ormação dos modelos de pensamentodesenvolvidos pela psiquiatria din&mica e nos quais repousa, há dois s)culos, a apreensão do status daloucura e da doença psíquica nas sociedades ocidentais$ =hamase psiquiatria din&mica< o conjunto dascorrentes e escolas que associam uma descrição das doenças da alma IloucuraJ, dos nervos IneuroseJ e dohumor ImelancoliaJ a um tratamento psíquico de nature"a din&mica, isto ), que !aça intervir uma relação

trans!erencial entre o m)dico e o doente$

1riunda da medicina, a psiquiatria din&mica privilegia a psicogênese Icausalidade psíquicaJ em relação >organogênese Icausalidade org&nicaJ, mas sem excluir esta Altima, e se apóia em quatro grandes modelos deexplicação da psique humana: um modelo nosográ!ico nascido da psiquiatria, que permite ao mesmo tempouma classi!icação universal das doenças e uma de!inição da clínica em termos da norma e da patologia\ ummodelo psicoterapêutico herdado dos antigos curandeiros, que presume uma e!icácia terapêutica ligada a um

 poder de sugestão\ um modelo !ilosó!ico ou !enomenológico que permite captar a signi!icação do distArbio psíquico ou mental a partir da vivência existencial Iconsciente e inconscienteJ do sujeito\ e um modelocultural que prop#e descobrir na diversidade das mentalidades, das sociedades e das religi#es uma explicação

antropológica do homem baseada no contexto social ou na di!erença$

Em geral, as escolas e as correntes têm privilegiado um ou dois modelos de interpretação do psiquismo,con!orme os países ou as de modelo de re!erencia: ;*ragmáticas e mensuráveis, aos poucos elas vão tirandode moda a velha psicanálise, atualmente quase abandonada$<

' revolução pineliana consistiu em ver o iouco não mais como um insensato cujo discurso seria desprovidode sentido, mas como um alienado, ou, em outras palavras, um sujeito estranho a si mesmo: não umanimalS3 enjaulado e despojado de sua humanidade porque estivesse privado de qualquer ra"ão, mas um

homem reconhecido como tal$

8erivado do alienismo, o modelo nosográ!ico organi"a o psiquismo humano a partir de grandes estruturassigni!icativas Ipsicoses, neuroses, pervers#es, !obia, histeria etc$J que de!inem o princípio de uma norma e deuma patologia e delimitam as !ronteiras entre a ra"ão e a desra"ão$ Esse modelo está ligado ao da

 psicoterapia, cuja origem remonta a 9ran" 'nton -esmer$ Komem do luminismo, este queria arrancar dareligião a parte obscura da alma humana apoiandose na !alsa teoria do magnetismo animal, que viria a serabandonada por seus sucessores$ Ele cuidava de hist)ricas e de possessas sem a ajuda da magia, unicamente

 pela !orça de um poder de sugestão$

*or seu lado, >s v)speras da +evolução, *inel inventou o tratamento moral ao mesmo tempo que ^illiam.ue, o quacre inglês$ +e!ormou a clínica mostrando que sempre subsiste no alienado um resto de ra"ão que

 permite a relação terapêutica$

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4e o saber psicanalítico organi"ouse, largamente, associando uma classi!icação racional das doençasmentais a um tratamento moral, as escolas de psicoterapia, ao contrário, apregoaram ora uma t)cnicarelacional, da qual a nosogra!ia era excluída, ora uma etnopsicologiaS0 que recondu" o paciente, e o homemem geral, a suas raí"es, seu gueto, sua comunidade ou sua origem$S

 7ascido com *hilippe *inel, o modelo nosológico desenvolveuse ao longo do s)culo xix reivindicando o!amoso mito da abolição das correntes, inventado durante a +estauração pelo !ilho do pai !undador e por seu

 principal aluno, @tienne Esquirol$ ?ue vem a ser issoN 4ob o regime do .error, pouco depois de suanomeação para o hospital de Picêtre I// de setembro de /FC2J, *inel recebeu a visita de =outhon, membrodo =omitê de 4aAde *Ablica, que estava procurando suspeitos entre os loucos$ .odos tremiam diante dessedevoto de +obespierre que havia abandonado sua cadeira de paralítico para se !a"er carregar nos braços deoutros homens$ *inel levouo at) a !rente das celas, onde a visão dos agitados lhe causou um medo intenso$+ecebido com insultos, voltouse para o alienista e perguntou: ;=idadão, tu tamb)m )s louco, para quererlibertar tamanhos animaisN< 1 m)dico respondeu que os insanos !icavam ainda mais intratáveis por serem

 privados de ar e de liberdade$ =outhon concordou em que se eliminassem as correntes, mas advertiu *inelcontra sua presunção$ E então o !ilantropo iniciou sua obra: tirou os grilh#es dos loucos e, com isso, deuorigem ao alienismo e, mais tarde, > psiquiatria$

4eparada das outras !ormas de desra"ão Ivadiagem, mendic&ncia, desvioJ, a loucura, segundo *inel, tornouse uma doença$ ' partir daí, o louco p(de ser tratado com a ajuda de uma nosogra!ia adequada e umtratamento apropriado$ =riouse para ele o manic(mio e, mais tarde, o hospital psiquiátrico B a !im dea!astálo do hospital geral, símbolo do encarceramento nas monarquias da Europa$ Em seguida, Esquirol deuaos ensinamentos de *inel um conteAdo dogmático que, em /D2D, desembocou na o!iciali"ação do sistemaasilar$

Entre o mesmerismo e a revolução pineliana, a primeira psiquiatria din&mica associava um modelonosográ!ico IpsiquiatriaJ a um modelo psicoterápico Imagnetismo, sugestãoJ que separava a loucura asilar

Idoenças da alma, psicosesJ da loucura comum Idoenças dos nervos, nevrosesJ$ 6m s)culo depois, Hean-artin =harcot, seu Altimo grande representante, anexou a neurose Iessa semiloucuraJ ao modelonosográ!ico, !a"endo dela uma doença !uncional$ 1 manic(mio, no entanto, continuaria dominante, com seucortejo de mis)rias, gritos e crueldades$ 'tingindo uma grande so!isticação, a psiquiatria do !im do s)culoOO desinteressouse do sujeito e o abandonou a tratamentos bárbaros, nos quais a !ala não tinha nenhumlugar$ 'ssim pre!erindo a classi!icação das doenças > escuta do so!rimento, ela mergulhou numa esp)cie deniilismo terapêutico$

Kerdeira de =harcot, a segunda psiquiatria din&mica alçou v(o reivindicando em alto e bom tom o gestoinaugural de *inel$ 4em renunciar ao modelo nosográ!ico, reinventou um modelo psicoterapêutico, dando a

 palavra ao homem doente, como !i"eram KippolLte Pernheim em 7ancL e, mais tarde, Eugen Pleuler em[urique$ 8epois, ela encontrou sua !orma consumada nas escolas modernas de psicologia I9reud e HanetJ$ 'ocontrário desse movimento, assistimos hoje ao desmembramento dos quatro grandes modelos e aorompimento do equilíbrio que permitia organi"ar sua diversidade$

8iante do impulso da psico!armacologia, a psiquiatria abandonou o modelo nosográ!ico em prol de umaclassi!icação dos comportamentos$ Em conseqMência disso, redu"iu a psicoterapia a uma t)cnica desupressão dos sintomas$ 8aí a valori"ação empírica e ateórica dos tratamentos de emergência$ 1medicamento sempre atende, seja qual !or a duração da receita, a uma situação de crise, a um estadosintomático$ ?uer se trate de angAstia, agitação, melancolia ou simples ansiedade, ) preciso, inicialmente,tratar o traço visível da doença, depois suprimilo e, por !im, evitar a investigação de sua causa de maneira aorientar o paciente para uma posição cada ve" menos con!lituosa e, portando, cada ve" mais depressiva$ Emlugar das paix#es, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e emlugar da história, o !im da história, 1 moderno pro!issional de saAde B psicólogo, psiquiatra, en!ermeiro ou

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m)dico B já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, porque, na sociedade liberaldepressiva, seu tempo ) contado$

O homem comportamental

nscrita no movimento de uma globali"ação econ(mica que trans!orma os homens em objetos, a sociedadedepressiva não quer mais ouvir !alar de culpa nem de sentido íntimo, nem de consciência nem de desejo nemde inconsciente$ ?uanto mais ela se encerra na lógica narcísica, mais !oge da id)ia de subjetividade$ 4ó se

interessa pelo indivíduo, portanto, para contabili"ar seus sucessos, e só se interessa pelo sujeito so!redor paraencarálo como uma vítima$ E, se procura incessantemente codi!icar o d)!icit, medir a de!iciência ouquanti!icar o trauma, ) para nunca mais ter que se interrogar sobre a origem deles$ 'ssim, o homem doenteda sociedade depressiva ) literalmente ;possuído< por um sistema biopolítico que rege seu pensamento >maneira de um grande !eiticeiro$ 7ão apenas ele não ) responsável por coisa alguma em sua vida, comotamb)m já não tem o direito de imaginar que sua morte possa ser um ato decorrente de sua consciência ou deseu inconsciente$ +ecentemente, por exemplo, na ausência da mais ín!ima prova e a despeito de vivos

 protestos de inAmeros psiquiatras, um pesquisador norteamericano teve a pretensão de a!irmar que a causaexclusiva do suicídio residiria não numa decisão subjetiva, numa passagem ao ato ou no contexto histórico,mas numa produção anormal de serotonina$ =om isso se eliminaria, em nome de uma pura lógica químico

 biológica, o caráter trágico de um ato intrinsecamente humano, de =leópatra a =atão de _tica, de 4ócrates a

-ishima, de erther a Emma PovarL$ 4eriam igualmente aniquilados, em virtude de uma simples mol)cula,todos os trabalhos sociológicos, históricos, !ilosó!icos, literários e psicanalíticos, de @mile 8urheim a-aurice *inguet, que deram uma signi!icação )tica e não química > longa trag)dia da morte voluntária$

@ pela adoção de princípios idênticos que alguns geneticistas pretendem explicar a origem da maioria doscomportamentos humanos$ 8esde /CCT, eles vêm tentando evidenciar o que denominam de mecanismos;gen)ticos< da homossexualidade, da violência social, do alcoolismo ou da esqui"o!renia$Em /CC/, 4imon %eaL pretendeu ter descoberto no hipotálamo o segredo da homossexualidade$ 8ois anosdepois, !oi a ve" de 8ean Kamer, outro estudioso norteamericano, que a!irmou tamb)m haver isolado ocromossomo da homossexualidade a partir da observação de uns quarenta irmãos gêmeos$ ?uanto a Kan

Prunner, geneticista holandês, não hesitou, em /CC2, em estabelecer uma relação entre o comportamentoanormal dos membros de uma mesma !amília acusados de estupro ou de piromania B e a mutação de umgene que estaria encarregado de programar uma en"ima do c)rebro Ia monoamina oxidase 'J$

= artigo de 'ohn )ann .oi publicado na revista Nature )edicine em 4aneiro de #$$1 3er Le ;,aro de ## de .evereiro de #$$, onde tambm se podem ler os protestos dc Bdouard ari.ian1 * serotomna uma substIncia aminada, produzida pelo tecido intestinal e cerebral, &ue desempenha um papel deneurotransmissor1 *lguns antidepressivos (os J:, ou inibidores da reabsor0/o da serotoninaF aumentam suaatividade1 LFa- a idia de &ue a depress/o se deveria apenas a uma &ueda da atividade da seroronina12 :obre essa &uest/o, ver Blisabeth Joudinesco e )ichel !lon, icion8rio de psican8lise, Jio de 'aneiro,

 'orge ahar, #$$, verbete +:uic-dio1 E, a prop6sito das imagens antigas e modernas da suicidologia, ver )aurice !inguet, La )ort volontaire ali 'apon, !aris, Uallimard, #$1

*ublicados na revista :cience, esses trabalhos !oram divulgados na imprensa internacional, muito embora!ossem violentamente taxados de ;reducionismo neurogen)tico< por outros estudiosos$ .estemunho disso !oia corajosa intervenção de 4teven +ose, um eminente neurobiologista brit&nico: ;Essas id)ias, hoje em dia,ganham import&ncia em certos países, como os Estados 6nidos ou a 5rãPretanha, porque os governosdeles, pro!undamente direitistas, procuram desesperadamente encontrar soluç#es individuais para problemassociais $---&- 8epois do artigo de 8ean Kamer sobre os genes ga", inAmeras críticas !oram publicadas e, at) omomento, seus dados não puderam ser reprodu"idos nem por ele nem por outras pessoas $---&- 8e maneira

geral, ) interessante observar que algumas revistas cientí!icas publicam sobre o homem pesquisas tão ruinsque elas mesmas haveriam de rejeitálas se dissessem respeito aos animais $---&- .odas essas pesquisas sãouma conseqMência da perda catastró!ica que tem a!etado o mundo ocidental nestes Altimos anos$ *erda daesperança de encontrar soluç#es sociais para problemas sociais$ 8esaparecimento das democracias socialistas

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e da crença de alguns em que existia uma sociedade melhor no %este europeu $---&- +ecentemente, a título de pilh)ria, escrevi na revista Nature que, com esse tipo de pesquisa, logo se iria a!irmar que a guerra da Pósnia!oi conseqMência de um problema de serotonina no c)rebro do 8r$ Uarad"ic, e que poderia ser detidamediante uma prescrição maciça de *ro"ac$< $'&

1 recurso sistemático ao círculo vicioso da causalidade externa B genes, neur(nios, horm(nios etc$ tevecomo conseqMência o deslocamento da psiquiatria din&mica e sua substituição por um sistema

comportamental em que subsistem apenas dois modelos explicativos: a organicidade, por um lado, portadorade uma universalidade simplista, e por outro, a di!erença, portadora de um culturalismo empírico$ 8aí resultauma clivagem reducionista entre o mundo da ra"ão e o universo das mentalidades, entre as a!ecç#es do corpoe as do espírito, entre o universal e o particular$

$'& Entrevista com 4teven +ose, Libration, 0/ de março de /CCG$

, essa clivagem que se encontra na origem da atual valori"ação da explicação )tnica Iou identitáriaJ $+& quevem instalarse no lugar da re!erência ao psiquismo$ $(&  8esvinculado dos outros grandes modelos da

 psiquiatria din&mica, o modelo culturalista, na verdade, parece p(r em prática uma humani"ação doso!rimento, embora, na realidade, leve o paciente a acreditar que seu malestar não prov)m dele ou de suasrelaç#es com os outros, mas de espíritos mal)!icos, dos astros, das pessoas que lhe deitam mauolhado ou,numa palavra, da ;cultura< e da chamada pertença )tnica: um ;alhures< que ) sempre substituído por umoutro alhures$ ' explicação atrav)s do cultural, portanto, associase > causalidade org&nica e remete o sujeitoao universo da possessão$

 7o !im da vida, 9reud tinha consciência de que, um dia, os avanços da !armacologia imporiam limites >t)cnica do tratamento pela !ala: “O futuro”, escreveu ele, “talvez nos ensine a agir diretamente, com aajuda de algumas substncias !uímicas, sobre as !uantidades de energia e sua distribui"ão no aparelho

 psí!uico# $averemos n%s de descobrir, talvez, outras possibilidades terap&uticas insuspeitadas' 

$+& 4obre a crítica a tal posição, ver terceira parte deste livro, capítulo 2$

$(& ?uanto a essa questão, ver 9ethi Penslama, ;?uSestce quSune clinique de SexilN<, cahzers ntersignes,nG /3, /CCC$

*or ora, no entanto, dispomos somente da t)cnica psicanalítica$ E ) por isso que, a despeito de todas as suas

limitaç#es, conv)m não despre"ála$

4e 9reud não estava enganado, estava longe de imaginar que o saber psiquiátrico seria aniquilado pela psico!armacologia$ 8o mesmo modo, não imaginava que a generali"ação da prática psicanalítica na maioriados países ocidentais seria contempor&nea dessa aniquilação progressiva e do emprego de subst&nciasquímicas no tratamento das doenças da alma$

@ que não apenas o pharmaRon não se op#e > psique, como um e outro estão historicamente ligados, comosublinhou muito bem 5ladLs 4Xain: ;1 momento em que a panóplia completa dos neurol)pticos e dos

antidepressivos se in!iltrar maciçamente na prática psiquiátrica, trans!ormandoa, será tamb)m o momentoem que a orientação psicanalítica e a opção institucional tornarseão dominantes nela$<FEm princípio, deveria terse mantido um equilíbrio entre o tratamento por psicotrópicos e a psicanálise, entrea evolução das ciências do c)rebro e o aper!eiçoamento dos modelos signi!icativos de explicação do

 psiquismo$ -as não !oi o que aconteceu$ ' partir dos anos oitenta, todos os tratamentos psíquicos racionais,

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inspirados na psicanálise, !oram violentamente atacados em nome do avanço espetacular da psico!armacologia, a tal ponto que os próprios psiquiatras, como já a!irmei, sentemse hoje inquietos ecriticam duramente seus aspectos nocivos e perversos$ =om e!eito, eles temem ver sua disciplina desaparecerem prol de uma prática híbrida que, por um lado, reservaria a hospitali"ação para a loucura cr(nica, pensadaem termos de doença org&nica e ligada > medicina, e por outro, encaminharia aos psicólogos clínicos os

 pacientes que não !ossem su!icientemente loucos para depender de um saber psiquiátrico inteiramentedominado pelos psicotrópicos e pelas neurociências$

*ara avaliar o impacto dessa mutação mundial, basta estudar a evolução do !amoso  )anual diagn6stico eestat-stico dos distXrbios mentais As)F, cuja primeira versão A:) #F !oi elaborada pela 'merican*sLchiatric 'ssociation I'*'J em /CG0$ 7essa ocasião, o  )anual levava em conta as conquistas da

 psicanálise e da psiquiatria din&mica$ 8e!endia a id)ia de que os distArbios psíquicos e mentais decorriamessencialmente da história inconsciente do sujeito, de seu lugar na !amília e de sua relação com o meiosocial$ Em outras palavras, mesclava uma abordagem tríplice: o cultural Iou socialJ, o existencial e o

 patológico, correlacionado com uma norma$ *or essa perspectiva, a noção de causalidade org&nica não eradespre"ada, e a psico!armacologia, então em plena expansão, era utili"ada em associação com o tratamento

 pela !ala ou com outras terapias din&micas$

.odavia, com o desenvolvimento de uma abordagem liberal dos tratamentos, que submete a clínica a umcrit)rio de rentabilidade, as teses !reudianas !oram julgadas ;ine!ica"es< no plano terapêutico: o tratamento,di"iase, era longo demais e dispendioso demais$ E isso, sem levar em conta que seus resultados não erammensuráveis: quando se interrogava um sujeito que houvesse passado pelo divã, não costumava esteresponder que, embora tivesse sido ;trans!ormado< por sua experiência, nem por isso podia di"erse;curado<ND er 4tuart Uir e Kerh Uutchins, *smez(vous le 'F3)? Le iriomphe de la ps"chzatrie anlrScai.le I7ova`or, /CC0J, / e *lessis+obinson, 4Lnth)laho, / JCD$

.ratase de uma nuance considerável, e que di" respeito > própria de!inição do status da cura em psicanálise$=om e!eito, como já recordei, no campo do psiquismo não existe cura no sentido como esta ) constatada nocampo das doenças somáticas, sejam elas gen)ticas ou org&nicas$ 7a medicina cientí!ica, a e!icácia apóiaseno modelo sinaisdiagnósticotratamento$ =onstatamse os sintomas I!ebreJ, dáse um nome > doença I!ebreti!óideJ e se administra um tratamento Imedicamento antibióticoJ$ 1 doente !ica então ;curado< domecanismo biológico da doença$C Em outras palavras, ao contrário das medicinas tradicionais, para as quaisa alma e o corpo !ormam uma totalidade incluída numa cosmogonia, a medicina cientí!ica repousa numaseparação entre esses dois campos$

 7o que concerne ao psiquismo, os sintomas não remetem a uma Anica doença e esta não ) exatamente uma

doença Ino sentido somáticoJ, mas um estado$ *or isso, a cura não ) outra coisa senão uma trans!ormaçãoexistencial do sujeito$ 8epois de /CG0, o  )anual .oi revisado pela '*' em diversas ocasi#es, sempre nosentido de um abandono radical da síntese e!etuada pela psiquiatria din&mica$ =alcado no esquema sinaldiagnósticotratamento, ele acabou eliminando de suas classi!icaç#es a própria subjetividade$ Kouve quatrorevis#es: em /CVD A:)ZF, em /CDT A:)ZF, em /CDF A:)(JF e em /CC3 A:)7vF1 1 resultadodessa operação progressiva de limpe"a, dita ;ateórica<, !oi um desastre$ 9undamentalmente, ela visou ademonstrar que o distArbio da alma e do psiquismo devia ser redu"ido ao equivalente > pane de um motor$8aí a eliminação de toda a terminologia elaborada pela psiquiatria e pela psicanálise$ 1s conceitos Ipsicose,neurose, perversãoJ !oram substituídos pela noção !rouxa de ;distArbio< Adisorder distArbio, desordemJ, eas entidades clínicas !oram abandonadas em !avor de uma caracteri"ação sintomática desses !amososdistArbios$ 'ssim, a histeria !oi redu"ida a um distArbio dissociativo ou ;conversivo<, passível de ser tratadocomo um distArbio depressivo, e a esqui"o!renia !oi assimilada a uma perturbação do curso do pensamentoetc$

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*or outro lado, na tentativa de evitar qualquer polêmica, as di!erentes vers#es do :) acabaram por abolir a própria id)ia de doença$ ' expressão ;distArbio mental< serviu para contornar o problema delicado dain!eriori"ação do paciente, que, se !osse tratado como doente, imporia o risco de exigir ;indeni"aç#es< do

 praticante do :) e at) de mover processos judiciais contra ele$ 8entro dessa mesma perspectiva, o adjetivo;alcoólatra< !oi substituído por ;dependente de álcool<, al)m de se haver pre!erido renunciar > id)ia de;esqui"o!renia< em bene!ício de uma perí!rase: .afetado por dist/r0ios que re1ete1 a u1a pertur0a23ode tipo esqui4ofr5nico6$

gualmente preocupados em preservar as di!erenças culturais, os autores do  :) debateram a questão desaber se as condutas políticas, religiosas ou sexuais chamadas ;desviantes< deveriam ou não ser assimiladasa distArbios do comportamento$ =oncluíram pela negativa, mas a!irmaram tamb)m que o crit)rio de;agnóstico< só teria valor se o paciente pertencesse a um grupo )tnico di!erente do do examinador$STR medida que se !oram sucedendo as di!erentes revis#es, os promotores do  :) !oram caindo um poucomais no ridículo$ Entre /CF2 e /CFG, chegaram at) a se esquecer dos princípios !undamentais da ciência$io @douard [ari!ian descreveu muito bem essa deriva em es paradis111 op$ cit-

4ubstituíram ;homossexualidade< por ;homossexualidade egodist(nica<, expressão designativa daqueles que

são mergulhados na depressão por suas puls#es$ .ratouse, na verdade, como assinalou %aXrence Kartmann,de eliminar uma entidade nosográ!ica para substituíla pela descrição de um estado depressivo ou ansioso passível de ser tratado pela psico!armacologia ou pelo comportamentalismo: ;'cho pre!erível<, disse ele,;não utili"ar a palavra YhomossexualS, que pode prejudicar a pessoa$ ' palavra depress/o não cria problemas,nem tampouco neurose de angXstia I$$$J$ 6tili"o as categorias mais vagas e mais gen)ricas, desde que sejamcompatíveis com minha preocupação com a verdade$ 's companhias de seguros estão convenientementein!ormadas de que os rótulos diagnósticos que lhes são comunicados são suavi"ados para não prejudicar o

 paciente$<

Em /CFG, uma comissão de psiquiatras negros exigiu a inclusão do racismo entre os distArbios mentais$

*rincipal redator do )anual, +obert 4pit"er rejeitou essa sugestão justi!icadamente, mas deu ao racismo umade!inição absurda: ;7o &mbito do :) , deveríamos citar o racismo como bom exemplo de um estadocorrespondente a um !uncionamento psicológico não ótimo, que, em certas circunst&ncias, !ragili"a a pessoae condu" ao aparecimento de sintomas$<

1s princípios enunciados no  )anual !oram tomados como !onte autori"ada de um extremo a outro do planeta a partir do momento em que !oram adotados pela 'ssociação -undial de *siquiatria IX*'J,S2!undada por Kenri EL em /CGT, e, mais tarde, pela 1rgani"ação -undial de 4aAde I1-4J$ =om e!eito, nad)cima revisão de sua classi!icação das doenças I=-l1J, no capítulo 9, a 1-4 de!iniu os distArbiosmentais e os distArbios do comportamento segundo os mesmos crit)rios do  :)31 *or Altimo, depois de

/CC3, na nova revisão do :) Iou :) 3(JF, os mesmos princípios B denominados ero(to(three Iou T2J B !oram acrescentados ao estudo dos comportamentos considerados dissociativos, traumáticos e depressivosdo bebê e das crianças pequenas$

1 desmembramento dos quatro grandes modelos, que haviam permitido > psiquiatria din&mica associar umateoria do sujeito a uma nosologia e a uma antropologia, teve o e!eito, portanto, de separar a psicanálise da

 psiquiatria, de remeter esta Altima ao campo de uma medicina bio!isiológica que exclui a subjetividade e,mais tarde, de !avorecer uma extraordinária exploração das reivindicaç#es de identidade e das escolas de

 psicoterapia, primeiro nos Estados 6nidos e, depois, em todos os países da Europa$

 7ascidas ao mesmo tempo que a psicanálise, essas escolas de psicoterapia têm como ponto comum contornartrês conceitos !reudianos, a saber, os de inconsciente, sexualidade e trans!erência$ Elas op#em aoinconsciente !reudiano um subconsciente cerebral, biológico ou automático\ > sexualidade, no sentido!reudiano Icon!lito psíquicoJ, ora pre!erem uma teoria culturalista da di!erença entre os sexos ou gêneros, ora

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uma teoria dos instintos$ *or Altimo, op#em > trans!erência como motor do tratamento clínico uma relaçãoterapêutica derivada da sugestão$

'ssim, quase todas essas escolas prop#em ao sujeito, saturado de medicamentos, de causalidades externas,de astrologia e de :), uma relação terapêutica mais humanista e mais adaptada > sua demanda$ E, semdAvida, a progressão das psicoterapias, em tal contexto, ) inelutável ou at) necessária$ 8ito de outra maneira,se o s)culo OO !oi realmente o s)culo da psiquiatria, e se o s)culo OO !oi o da psicanálise, podemos

 perguntarnos se o próximo não será o s)culo das psicoterapias$

Entretanto, devese que constatar que somente a psicanálise !oi capa", desde suas origens, de reali"ar asíntese dos quatro grandes modelos da psiquiatria din&mica que são necessários a uma apreensão racional daloucura e da doença psíquica$ =om e!eito, ela tomou emprestado da psiquiatria o modelo nosográ!ico, da

 psicoterapia o modelo de tratamento psíquico, da !iloso!ia uma teoria do sujeito, e da antropologia umaconcepção de cultura !undamentada na id)ia de uma universalidade do gênero humano que respeita asdi!erenças$

' menos que venha a se desonrar, portanto, ela não pode, como tal contribuir para a id)ia, hoje dominante, deuma redução da organi"ação psíquica a comportamentos$ 4e o termo ;sujeito< tem algum sentido, asubjetividade não ) mensurável nem quanti!icável: ela ) a prova, ao mesmo tempo visível e invisível,consciente e inconsciente, pela qual se a!irma a essência da experiência humana$

S!7U8"A PART!

A 7rande 9uerela do Inconsciente

 O cérebro de ran)enstein

 7uma c)lebre con!erência, ;1 c)rebro e o pensamento<, pro!erida em de"embro de /CDT, 5eorges=anguilhem rea!irmou sua hostilidade de /CGV contra a psicologia, acusandoa de se apoiar na biologia e na!isiologia para a!irmar que o pensamento não seria mais do que o e!eito de uma secreção do c)rebro$ 7essacon!erência, a psicologia não !oi apenas designada como ;uma !iloso!ia sem rigor<, uma ;)tica semexigência< e uma ;medicina sem controle<, mas assimilada a uma verdadeira barbárie$

4em pronunciar a palavra ;cognitivismo<, que apareceria em /CD/, =anguilhem atacou com !erocidade a

crença que impulsiona o ideal cognitivo: a pretensão de querer criar uma ;ciência do espírito< baseada nacorrelação entre os estados mentais e os estados cerebrais$ ' re!erência aos trabalhos de 'lan .uring, 7orbert ^iener e 7oam =homsL !oi clara, e =anguilhem criticou dura5eorges =anguilhem, ;%e cerveau etla pens)e< I/CDTJ, in Ueorges Uanguilhem1 !hilosophe, historien de5 sczences, *aris, 'lbin -ichel, /CC0,

 p$l /22$

 IUeorges Canguilhem, +[u’est(&ue la ps"chologie? A#$5DF, in Etudes d’histoire de la philosophie des

 sciences, !aris, 3rin, #$D1 * respeito desse texto, ver Blisabeth Joudinesco, +:ituation d’un texte9 &u’estcc&ue la ps"chologie?, in Ueorges Uanguilhem, op1 cir1, p#G5(1F

mente o imperialismo das doutrinas que, desde a !renologia, contribuíram, quaisquer que !ossem suasdi!erenças, para o avanço dessa ciência do espírito: ;Em suma<, declarou, ;antes da !renologia, julgavase8escartes um pensador, um autor responsável por seu sistema !ilosó!ico$ 4egundo a !renologia, 8escartes era

 portador de um c)rebro que pensava sob o nome de +en) 8escartes $---&- Em suma, a partir da imagem do

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cr&nio de 8escartes, o estudioso !renologista concluiu que a totalidade de 8escartes, biogra!ia e !iloso!ia,estava num c)rebro que convinha chamar de  seu crebro, o crebro de escartes, uma vez &ue o crebrocontm a .aculdade de perceber as a0es &ue est/o nele, mas, em &ual ele, a!inalN Eisnos no cerne daambigMidade$ ?uem ou o que di" eu?

 7ão satis!eito em !ustigar todos os que queriam redu"ir a sede do pensamento a um conjunto de imagenscerebrais, =anguilhem sublinhou o ridículo que havia em a!irmar, como !a"iam os teóricos da chamada

inteligência ;arti!icial<, que havia uma analogia entre o c)rebro e o computador, e que ela autori"ava a !a"erda produção do pensamento o equivalente de um !luxo saído da robótica: ;' já surrada metá!ora do c)rebrocomputador ) justi!icada na medida em que se entendam por pensamento as operaç#es de lógica, o cálculo, oraciocínio $---&- -as, quer se trate de máquinas analógicas ou de lógica, uma coisa ) o cálculo ou o tratamentode dados de acordo com instruç#es, e outra ) a invenção de um teorema$ =alcular a trajetória de um !oguetedepende do computador$ 9ormular a lei da atração universal ) uma reali"ação que não depende dele$ 7ão háinvenção sem a consciência de um va"io lógico, sem tensão rumo a um possível, sem o risco de se enganar$<

E =anguilhem acrescentou: ., voluntariamente que não tratarei de uma questão que, pela lógica, deverialevar a nos interrogarmos sobre a possibilidade de um dia vermos, na vitrine de uma livraria, a *utobiogra.ia

de um computador, na !alta de sua *utocr-tica15  7o !undo, =anguilhem só !e" remeter aqueles a quemcriticava > c)lebre !rase de =laude Pernard: ;6ma mão habilidosa sem a cabeça que a dirige ) uminstrumento cego\ a cabeça, sem a mão que reali"a, ) impotente$<

4e não podemos assimilar o c)rebro a uma máquina, e se não podemos explicar o pensamento sem !a"erre!erência a uma subjetividade consciente, ) tamb)m impossível, no di"er de =anguilhem, redu"ir o!uncionamento mental a uma atividade química$ , uma evidência di"er que sem a atividade cerebral nãohaveria pensamento, mas ) uma inverdade a!irmar que o c)rebro produ" pensamento unicamente em !unçãode sua atividade química: ;*or conseguinte, malgrado a existência e os e!eitos !ortuitos de alguns mediadoresquímicos, malgrado as perspectivas descortinadas por algumas descobertas da neuroendocrinologia, ainda

não parece haver chegado o momento de anunciarmos, > maneira de =abanis, que o c)rebro secretará pensamento como o !ígado secreta bile$<

4em se preocupar com as brigas entre behavioristas e cognitivistas, entre neurobiologistas e !isicalistas,=anguilhem combateu em bloco, nessa con!erência, não as ciências e seus avanços, não os trabalhosmodernos sobre os neur(nios, os genes ou a atividade cerebral, mas uma abordagem ecl)tica na qual semisturavam o comportamentalismo, o experimentalismo, a ciência da cognição, a inteligência arti!icial etc$Em suma, a seu ver, essa psicologia que pretendia extrair seus modelos da ciência não passava de uminstrumento de poder, uma biotecnologia do comportamento humano, que despojava o homem de suasubjetividade e procurava roubarlhe a liberdade de pensar$

*ara combater essa psicologia, =anguilhem apoiouse em 9reud$ -ostrou que o pioneiro vienense !ora oAnico cientista de sua )poca a teori"ar a hipótese da existência do psiquismo a partir da noção de aparelho

 psíquico$ 'ssim, entre /DCG, ano em que redigiu seu !ro4eto para uma psicologia cienti.ica, e /C/G, data emque elaborou sua metapsicologia, 9reud registrou o !racasso dos projetos de sua )poca que tinham levado a!a"er com que os processos psíquicos decorressem da organi"ação das c)lulas nervosas$ *or isso, mais doque nunca, distanciouse da id)ia de uma semelhança entre uma organi"ação tópica do inconsciente e umaanatomia do c)rebro$

4e citei longamente essa con!erência de 5eorges =anguilhem, !oi porque ela me parece ilustrar de maneiraexemplar a grande querela que há um s)culo divide os partidários da possível constituição de uma ciência damente, na qual o mental seria calcado no neural, e os adeptos de uma autonomia dos processos psíquicos$

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 7o centro dessa disputa, o inconsciente !reudiano ) objeto de uma controv)rsia particular, na medida em quesua de!inição escapa >s categorias próprias dos dois campos$ 7ão só esse inconsciente não ) assimilável a umsistema neural, como tamb)m não ) integrável numa concepção cognitiva ou experimental da psicologia$ E,no entanto, não !a" parte do campo do oculto ou do irracional$ Em outras palavras, em relação >s outrasde!iniç#es do inconsciente, ele emerge primeiramente de maneira negativa: não ) hereditário nem cerebral,nem automático, nem neural, nem cognitivo, nem meta!ísico, nem metapsíquico, nem simbólico etc$ -as,então, qual ) a sua nature"a, e por que, repetidamente, ) objeto de polêmicas acerbasN

Essa con!erência !oi exemplar por outra ra"ão$ 8e !ato, ela mostrou que, quase sempre, são os estudiososmais positivistas e mais apegados aos princípios da ciência pura e exata que elaboram as teorias maisextravagantes e mais irracionais sobre o c)rebro e o psiquismo, a partir do momento em que pretendemaplicar seus resultados > totalidade dos processos humanos$ ' busca da racionali"ação integral, que, no!undo, visa a dominar a !abricação do homem, não passa de uma nova versão do mito de *rometeu$

 7a era moderna, !oi -arL 4helleL quem lhe deu a mais bela expressão, num !amoso romance publicado em/D/F: ;ranRenstein ou o !rometeu moderno1  7o livro, ela conta a história de um jovem cientista, ictor9ranenstein, que resolve !abricar um ser humano sem alma, montando pedaços de cadáveres apanhados emcemit)rios ou c&maras mortuárias$ 6ma ve" criado, entretanto, o monstro se humani"a e so!re por serdesprovido da centelha divina, a Anica que seria capa" de lhe permitir viver$ *or isso, pede a seu criador que

 produ"a para ele uma mulher > sua imagem$ 'o cabo de dramas terríveis, o monstro desaparece no desertogelado do 'rtico, depois de matar o cientista$ =omo -arL 4helleL não dera nome > criatura, os leitores ecríticos sucessivos con!undiramna com o próprio cientista$ E !oi assim que 9ranenstein, essa coisainominável e trágica, encarnou um grande pesadelo da ra"ão ocidental$

$83o :á nen:u1a dóvida de que; nessa data; 7eorges Canguil:e1 :avia lido cuidadosa1ente o<oucault da $ist%ria da loucura e de *igiar e punir# "epois da 1orte do filósofo; aliás; ele su0lin:aria aque ponto este procurava do lado dos poderes a e=plica23o para algu1as práticas atrav>s das quais aspessoas se esfor2ava1 por o0ter o aval da ci5ncia- ?er ic:el <oucault;  $ist%ria da loucura na idadecl+ssica, S3o Paulo; Perspectiva@ *igiar e punir, Petrópolis; ?o4es; *)@ 7eorges Canguil:e1; .Sur

l$istoire de lafolie en tant quB>v>ne1ent6; -e .ébat, n +*; *)D-&

9oi entre /DFT e /DDT, e sob a in!luência do evolucionismo darXiniano, que se a!irmou o projeto de estendero discurso da ciência ao conjunto dos !en(menos humanos$ 8aí a generali"ação de todos os vocábulosterminados em ismo, que supostamente con!erem legitimidade cientí!ica tanto aos saberes racionais quanto adoutrinas duvidosas, inspiradas na ciência$

=omo teologia leiga, o cienti!icismo acompanha incessantemente o discurso da ciência e a evolução dasciências na pretensão de resolver todos os problemas humanos por uma crença na determinação absoluta da

capacidade que tem * =iência de resolvêlos$ Em outras palavras, o cienti!icismo ) uma religião tanto quantoas que essa crença pretende combater$ Ela ) uma ilusão da ciência, no sentido como 9reud de!ine a religiãocomo uma ilusão$< Penmais do que a religião, entretanto, a ilusão cienti!icista pretende preencher commitologias ou delírios todas as incerte"as necessárias ao desdobramento de uma investigação cientí!ica$ 4e odiscurso cienti!icista ) capa" de se apropriar do c)rebro de 9ranenstein a ponto de !a"er dele o emblema deuma racionalidade moderna, não ) de surpreender que alguns dos melhores especialistas atuais da biologiacerebral possam cair na mesma armadilha e, por conseguinte, acabem denunciando a psicanálise como umadoutrina mitológica, literária ou xamanística$

=omo levar a s)rio, por exemplo, as declaraç#es de Kenri Uorn, um neurobiologista !rancês, quando a!irmaque a psicanálise não passaria de um ;xamanismo a que !alta uma teoria<N/0 =omo nos darmos porsatis!eitos com as declaraç#es de Hean*ierre =hangeux, pro!essor do =ollQge de 9rance, quando pretenderedu"ir toda !orma de pensamento a uma ;máquina cerebral< e se declara, contrariando os próprios m)dicos,!avorável > generali"ação absoluta de uma psiquiatria biológica, pautada no primado da !armacologia e livre

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do ;imperialismo do discurso psicanalítico< ou das ;mitologias !reudianas<, pro!essadas por um ;certo meiodos ca!)s da +ive 5auche<N

=omo compreender, por outro lado, as declaraç#es do !ilóso!o !rancês -arcel 5auchet, quando pretende usaro inconsciente cerebral e o modelo do computador para substituir o inconsciente !reudiano, que já não dariamais ;ibope< num mundo em que ;o a!eto< estaria em vias de desaparecerN =omo aceitar, por !im, as

 previs#es do cientista político norte americano 9rancis 9uuLama, quando se rego"ija com o

;desaparecimento< da psicanálise, da história e do conjunto das teorias ;construídas<, em prol do advento deuma sociedade baseada na ciência natural e que teria abolido o próprio homemN ;7esse estágio<, escreve ele,;teremos acabado de!initivamente com a história humana, porque teremos abolido os seres humanos comotais$ =omeçará então uma nova história, para al)m do humano$<

Evidentemente, esses excessos são denunciados por outros cientistas que não hesitam em derrubar as ilus#escienti!icistas de seus colegas$ 'ssim, 5erald Edelman, neurobiologista norteamericano e *rêmio 7obel demedicina, a!irma que o inconsciente, no sentido !reudiano, continua a ser uma noção indispensável para acompreensão cientí!ica da vida mental do homem$ 7um livro intitulado  Tiologia da consci@ncia, ele mostra,al)m disso, que a hostilidade para com o modelo !reudiano decorre menos da discussão cientí!ica que da

resistência dos próprios cientistas a seu próprio inconsciente: ;-eu !alecido amigo Hacques -onod umgrande biólogo molecular B e eu<, escreveu, ;tínhamos, com !reqMência, discuss#es animadas a propósito de9reud$ Ele a!irmava peremptoriamente que 9reud era anticientí!ico e que, provavelmente, tinha sido umcharlatão$ *or meu lado, eu de!endia a id)ia de que, mesmo não sendo cientí!ico no nosso sentido da palavra,9reud !ora um grande pioneiro intelectual, em particular no que concerne > sua visão do inconsciente e do

 papel deste no comportamento$ -onod, que vinha de uma austera !amília protestante, respondia a issodi"endo: Y4ou inteiramente c(nscio de minhas motivaç#es e inteiramente responsável por meus atos$ .odoseles são conscientes$S Exasperado, um dia eu lhe retruquei: YHacques, vamos di"er, muito simplesmente, quetudo o que 9reud disse se aplica a mim e que nada se aplica a você$S YExatamente, meu caro amigoS,respondeu ele$<

=omo Edelman, o neurobiologista !rancês 'jam *rochiant" sublinha, por seu turno, e contrariamente ajean*ierre =hangeux, que não existe nenhuma contradição entre a ciência do c)rebro, a gen)tica e a doutrina

 psicanalítica: ;4e os genes de!inem nossa pertença > esp)cie e nossa pertença !ísica, eles não são os Anicos adeterminar nossa personalidade de seres pensantes$ 1 c)rebro não ) um computador cuja codi!icação sejaditada pelo aparelho gen)tico$<

-uito apegado > ciência mais evoluída de sua )poca, 9reud queria !a"er da psicologia urna ciência natural$9oi por isso que, num manuscrito inacabado, !ebrilmente redigido em #$5,’ ele !ormulou um certo nAmerode correlaç#es entre as estruturas cerebrais e o aparelho psíquico, tentando representar os processos psíquicos

como um punhado de estados quantitativamente determinados por partículas materiais, ou ;neur(nios<$ Eleas categori"ou em três sistemas distintos: percepção Ineur(nios IpJ, memória Ineur(nios Y/SJ e consciênciaIneur(nios oJ$ ?uanto > energia transmitida IquantidadeJ, ela era regida, no di"er de 9reud, por dois

 princípios B um de in)rcia e um de const&ncia B e provinha quer do mundo externo, veiculada pelos órgãosdos sentidos, quer do mundo interno Iisto ), do corpoJ$ ' ambição de 9reud, nessa )poca, era redu"ir a essemodelo neuro!isiológico a totalidade do !uncionamento psíquico normal ou patológico: o desejo, os estadosalucinatórios, as !unç#es do eu, o mecanismo do sonho etc$

Essa necessidade de ;neurologi"ar< o aparelho psíquico equivalia, na verdade, como sublinhou Kenri EEl/enberger,S a obedecer a uma representação cienti!icista da !isiologia e a !abricar, mais uma ve", uma;mitologia cerebral<$ !reud se conscienti"ou disso e renunciou a tal projeto para construir uma teoria

 puramente psíquica do inconsciente$ 7o entanto, ainda que tenha a!irmado, em /C/G, que ;todas as tentativasde adivinhar uma locali"ação dos processos psíquicos e todos os es!orços de pensar nas representaç#es comoembutidas nas c)lulas nervosas !racassaram radicalmente<, ele nunca abandonou a id)ia de que, um dia, essa

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locali"ação pudesse ser demonstrada: ;'s de!iciências de nossa descrição do psiquismo<, escreveu em /C0T,;decerto desapareceriam se já estiv)ssemos em condição de substituir os termos psicológicos por termos da!isiologia ou da química$<

8esde sua publicação póstuma, em /CGT, o !ro4eto tem sido comentado muitas ve"es e já !e" correr muitatinta$ *ara os !reudianos clássicos, esse manuscrito representa apenas uma etapa na construção de umaverdadeira teoria do inconsciente, libertada de qualquer substrato cerebral$ E, se 9reud rejeitou o texto, a

 ponto de nunca mais pedilo de volta a seu amigo ^ilhelm 9liess, isso decerto signi!ica que, mesmoabandonandoa, ele sempre !oi atormentado pela tentação de uma ;naturali"ação< da ciência do psiquismo$*or isso, o !ro4eto !icou como uma esp)cie de !antasma invisível, atravessando sem cessar todos os escritos!reudianos$

*ara os adversários da psicanálise, a publicação desse manuscrito !oi um golpe de sorte$ Ela os autori"ou aa!irmar que 9reud abandonara de!initivamente o campo da ciência verdadeira Idita ;natural<J para escolher ocaminho do que eles chamavam de ;não ciência<, isto ), do irracional, da literatura, da mitologia, do ;nãore!utável<$ 'ssim, já não havia necessidade de discutir sua concepção do inconsciente, uma ve" que a

 psicanálise já não dependia de nenhuma avaliação cientí!ica possível$ 7a realidade, a hostilidade >s teses

!reudianas havia começado bem antes que se tornasse conhecido o conteAdo do !ro4eto1

' historiogra!ia cientí!ica mostrou que, a rigor, !reud não !oi nem o inventor da palavra ;inconsciente< nem o primeiro a descobrir sua existência$008esde a 'ntigMidade as pessoas já se interrogavam sobre a id)ia deuma atividade psíquica empenhada em algo di!erente da consciência$ Entretanto, !oi 8escartes o primeiro a!ormular o princípio de um dualismo entre o corpo e a alma$ sso o levou a !a"er do cogito o lugar da ra"ão,em contraste com o universo da desra"ão$ 1 pensamento inconsciente !oi então domesticado, quer para seranexado > ra"ão, quer para ser rechaçado para a loucura$

' primeira psiquiatria din&mica apoiavase na id)ia de que a consciência era ameaçada por !orçasdesconhecidas, perigosas e destrutivas, locali"adas num inconsciente meta!ísico Iou subliminarJ que podiaser atingido pelo espiritismo, isto ), atrav)s da !ala de um m)dium capa" de se comunicar com os mortos,!a"endo as mesas girarem$

9oi por esse prisma, explorado pelas terapias baseadas no magnetismo, que o inconsciente passou então a servisto não como uma !orça oculta, proveniente do al)m, mas como uma dissociação da consciência$ 9oi entãodescrito em termos de subconsciência, supraconsciência ou automatismo Imental ou psicológicoJ, atingívelatrav)s da hipnose I=harcotJ ou da sugestão IKippolLte PernheimJ, isto ), do sono ou da relação dein!luência$ 'dotado no !im do s)culo OO pela maioria das escolas de psicologia, assim como pelos

 psicoterapeutas, esse inconsciente explicava racionalmente todos os !en(menos de dupla consciência,sonambulismo e personalidades mAltiplas$ 9oi assim que houve um empenho em observar, descrever outratar os distArbios da identidade que se tradu"iam na coexistência, num mesmo sujeito, de diversas

 personalidades separadas entre si, e que podiam !a"êlo viver vidas mAltiplas$

 7a mesma )poca, as di!erentes teorias da hereditariedade, tomadas de empr)stimo do darXinismo e doevolucionismo, deram origem a uma concepção do inconsciente adaptada aos princípios da psicologia dos

 povos$ Esse inconsciente hereditário, coletivo e individual, era tido como moldado por traços ou estigmasque determinavam, num sujeito, sua pertença a uma raça, uma etnia, um arqu)tipo, ou ainda a uma patologia

 pensada em termos de degeneração$ Essa concepção ) encontrada em numerosos campos do saber do !im do

s)culo OO, tanto nas teorias sexológicas de +ichard von Ura!!tEbing, que tratam as pervers#es sexuaiscomo taras, quanto nas teses de =esare %ombroso sobre o criminoso nato, ou ainda nas de 5ustave %e Pon,que assimilam as multid#es a massas hist)ricas e nocivas, ou as de 5eorges acher de %apouge, queapregoam a necessidade da eugenia$

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1 surgimento dessa teoria de um inconsciente hereditário !oi per!eitamente descrito por -ichel 9oucault em * vontade de saber12 =ontempor&nea do !im da crença no privil)gio social, ela cultivou o ideal burguês da;raça boa< e se apoiou no antisemitismo, no nãoigualitarismo e no ódio >s massas e aos marginais para

 propor uma nova representação das relaç#es entre o corpo social, o corpo individual e o ;mental<,concebidos como entidades org&nicas e descritos em termos de norma e patologia$

Essa concepção levou a duas ideologias antag(nicas$ 6ma tomou a degeneração ao p) da letra e anunciou a

 perda da humanidade, mergulhada em seus instintos$ 8esembocou na eugenia e no genocídio$ =ontra o malradical, o rem)dio tem que ser ainda mais radical: seleção, por um lado, para preservar a raça boa, eextermínio, por outro, para !a"er desaparecer a ruim$ ' segunda via !oi a do higienismo$ Ela acreditava nacura do homem pelo homem e, sendo assim, prop(s lutar contra as taras atrav)s da pro!ilaxia, da psicologia eda pedagogia$ Em síntese, colocou as ciências humanas a serviço da reeducação das almas e dos corpos$1pondose > id)ia de queda e decadência, desenvolveu a da redenção do ser humano pela ciência, peloconhecimento, pela autoanálise e pela introspecção$

' esse inconsciente hereditário corresponde um inconsciente cerebral, proveniente da !isiologia do re!lexo$ 'id)ia veio da descrição proposta pelos neuro!isiologistas para a atividade espinhal e tamb)m c)rebro

espinhal, que indu" no homem mudanças cerebrais, independentemente da consciência e da vontade$ Essaconcepção do inconsciente, organi"ada em torno da !unção maior da memória, achase amplamente presenteno !ro4eto, assim como nos trabalhos de .h)odule +ibot e de Pergson$ Ela se apóia na id)ia de que o c)rebro

 pode servir de suporte a uma desquali!icação da !unção clássica da consciência$

'trav)s de 4chelling, 7iet"sche e 4chopenhauer, tamb)m a !iloso!ia alemã empenhouse, durante todo os)culo OO, em !orjar sua própria concepção do inconsciente$ En!ati"ando o aspecto noturno da alma, !e"

 brotar a id)ia moderna de que a consciência ) como que determinada por um outro lugar da psique: sua !ace pro!unda e tenebrosa$ 9oi a partir dessa concepção !ilosó!ica do inconsciente, !ortemente tingida deromantismo, que se desenrolaram todos os trabalhos da !isiologia e da psicologia experimental em que 9reud

iria inspirarse: de Kerbart a undt, passando por Kelmholt" e 9echner$

9reud reali"ou a síntese dessas di!erentes concepç#es do inconsciente, mas, ao !a"êlo, inventou uma novaconcepção$ =om ele, o inconsciente já não ) um automatismo, nem um subconsciente, nem uma mitologiacerebral articulada a um modelo neuro!isiológico: ) um lugar desligado da consciência, povoado por imagense paix#es e perpassado por discord&ncias$ 8e !ato, o inconsciente !reudiano ) um inconsciente psíquico,din&mico e a!etivo, organi"ado em diversas inst&ncias Io eu, o isso e o supereuJ$

'l)m dessa de!inição, a grande inovação !reudiana consistiu num rompimento com a id)ia de que o homem

seria um perp)tuo alienado$ 7esse sentido, 9reud separouse tanto do alienismo pineliano quanto dosherdeiros de -esmer$ @ que, se o sujeito !reudiano já não ) assimilável ao animal insensato tão temido por=outhon, ele tampouco ) o homem estranho a si mesmo, de!inido por *inel, cuja alma deveria ser cuidada

 pela aplicação de um tratamento moral$

1 sujeito !reudiano ) um sujeito livre, dotado de ra"ão, mas cuja ra"ão vacila no interior de si mesma$ @ desua !ala e seus atos, e não de sua consciência alienada, que pode surgir o hori"onte de sua própria cura$ Essesujeito não ) nem o aut(mato dos psicólogos nem o indivíduo c)rebroespinhal dos !isiologistas, nemtampouco o son&mbulo dos hipnoti"adores nem o animal )tnico dos teóricos da raça e da hereditariedade$ @um ser !alante, capa" de analisar a signi!icação de seus sonhos, em ve" de encarálos como o vestígio de uma

memória gen)tica$0F 4em dAvida, ele recebe seus limites de uma determinação !isiológica, química ou biológica, mas tamb)m de um inconsciente concebido em termos de universalidade e singularidade$

9reud soube dotar o inconsciente de uma capacidade de rememoração e recalcamento no momento mesmo

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em que a neuro!isiologia lançava as bases de um materialismo do corpo, concreti"ando a morte dasrepresentaç#es da alma centradas na imagem de 8eus$ %evada por essa id)ia do inconsciente, a psicanálise

 p(de trans!ormarse, no s)culo OO, no emblema de todas as !ormas contempor&neas de explicação dasubjetividade$ 8aí seu impacto sobre as outras ciências, daí seu diálogo permanente com a religião e a!iloso!ia$

9oi justamente por ter colocado a subjetividade no cerne de seu dispositivo que 9reud veio a conceituar umadeterminação IinconscienteJ que obriga o sujeito a não mais se ver como senhor do mundo, mas como uma

consciência de si externa > espiral das causalidades mec&nicas$

 7esse sentido, a teoria !reudiana ) realmente herdeira do romantismo e de uma !iloso!ia da liberdade crítica, proveniente de Uant e do luminismo$ *ois ela ) a AnicaB e nisso tamb)m se op#e a todas as que provêm da!isiologia Iinconsciente cerebralJ, da biologia Iinconsciente hereditárioJ e da psicologia IautomatismomentalJ B a instaurar o primado de um sujeito habitado pela consci@ncia de seu pr6prio inconsciente, ouainda pela consci@ncia de seu pr6prio desapossamento1 Em outras palavras, o sujeito !reudiano só ) possível

 por pensar na existência de seu inconsciente: no que )  pr6prio de seu inconsciente$ 8o mesmo modo, só )livre porque concorda em aceitar o desa!io dessa liberdade restritiva e porque reconstrói sua signi!icação$'ssim, a psicanálise !oi a Anica doutrina psicológica do !im do s)culo xix a associar uma !iloso!ia da

liberdade a uma teoria do psiquismo$ Ela !oi, de certo modo, um avanço da civili"ação contra a barbárie$'liás, !oi por isso que alcançou tamanho sucesso durante um s)culo nos países marcados pela culturaocidental: na Europa, nos Estados 6nidos e na 'm)rica %atina$ ' despeito dos ataques dos quais tem sidoobjeto e malgrado a esclerose de suas instituiç#es, ela deveria ainda hoje, nessas condiç#es, ser capa" de daruma resposta humanista > selvageria surda e mortí!era de uma sociedade depressiva que tende a redu"ir ohomem a uma máquina desprovida de pensamento e de a!eto$

 A “carta do e!uin%cio”

1 inconsciente !reudiano repousa num paradoxo: o sujeito ) livre, mas perdeu o domínio de sua interioridadee já não ) ;senhor em sua própria casa<, segundo a !órmula consagradaJ 9reud separa o sujeito das di!erentes

alienaç#es a que o ligam as outras concepç#es da psicologia$ 8o mesmo modo, constrói uma teoria dasexualidade muito di!erente de todas as que !oram !ormuladas pelos cientistas do !im do s)culo OO$0' novidade, podemos descobrila ao ler a c)lebre ;carta do equinócio<, redigida em 0/ de setembro de /DCF,na qual 9reud explica as ra"#es por que renunciou > chamada teoria da ;sedução<:;7ão acredito mais em minha neurotica I$$$J Eisme obrigado a !icar sossegado, permanecer namediocridade, !a"er economia, ser atormentado por preocupaç#es$ I$$$J +ebeca, tire o vestido, você não )mais a noiva$<

' palavra sedu0/o remete, primeiramente, > id)ia de uma cena sexual em que um sujeito, geralmente umadulto, usa de seu poder real ou imaginário para abusar de outro sujeito, redu"ido a uma posição passiva:

uma criança ou uma mulher, na maioria das ve"es$ 'ssim, ela ) carregada do peso de um ato baseado naviolência moral e !ísica exercida sobre terceiros: carrasco e vítima, senhor e escravo, dominador e dominado$

9oi justamente da hipótese de uma alienação traumática decorrente de uma coação que 9reud partiu, aoelaborar, entre /DCG e /DCF, a !amosa teoria de que a neurose teria por origem um abuso sexual real$ Ela seapóia tanto numa realidade social quanto numa evidência clínica$ 7as !amílias, e >s ve"es at) na rua, ascrianças !reqMentemente são vítimas de ultrajes por parte dos adultos$ ' lembrança dessas brutalidades ) tãodolorosa que todos pre!erem esquecêlas, não vêlas ou recalcálas$

'o escutar hist)ricas do !im do s)culo que lhe con!iavam essas histórias, 9reud contentouse com o discurso

delas e construiu sua primeira hipótese: a do recalcamento e da causalidade sexual da histeria$ 'chou que, por terem sido realmente sedu"idas, as hist)ricas eram a!etadas por distArbios neuróticos$ E, de repente, p(sse a descon!iar dos pais em geral, de Hacob 9reud em particular, e at) de si mesmo: não teria ele sentidodesejos culpados em relação > sua !ilha -athildeN

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9oi no contato com ^ilhelm 9liess que 9reud abandonou progressivamente sua teoria da sedução$ Ele sabiaque nem todos os pais eram estupradores, mas, ao mesmo tempo, admitia que do equinócio<, que 9reudanunciou esse abandono\ as hist)ricas não estavam mentindo ao se di"erem vítimas de uma iniciativa desedução$ =omo explicar essas duas verdades contraditóriasN 9reud empenhouse nisso, distanciandose dasevidências$ *ercebeu duas coisas: primeiro, que, com bastante !reqMência, as mulheres inventavam, semmentira nem simulação, os atentados em causa, e segundo que, mesmo quando o !ato havia realmenteacontecido, ele não explicava a eclosão da neurose$

9reud então substituiu a teoria da sedução pela da !antasia e, num mesmo movimento, resolveu o enigma dascausas sexuais: elas eram !antasísticas, mesmo quando existia um trauma real, uma ve" que o real da !antasianão ) da mesma nature"a da realidade material$1 abandono da id)ia de trauma como causalidade Anica aliouse > adoção de um inconsciente psíquico$ =om e!eito, a teoria !reudiana da sexualidade pressup#e aexistência primária de uma atividade sexual pulsional e !antasística$ Ela repousa na id)ia de que o sujeito ),ao mesmo tempo, livre por sua sexualidade e coagido por ela$ E, acima de tudo, ela rejeita o projeto ilusóriode que seja possível nos livrarmos disso como se se tratasse de um erro ou do e!eito de um trauma$

-unido dessa teoria, 9reud sempre se mostrou !ero" para com os que, como =arl 5ustav Hung, abandonavam

a teoria sexual em prol da ;torrente de lama negra do ocultismo<: ;7ão espero um sucesso imediato<,escreveu ele a Ernest Hones, ;mas uma batalha incessante$ ?ualquer um que prometa > humanidade livráladas provaç#es do sexo será acolhido como herói e hão de deixálo !alar seja qual !or a asneira que ele diga$<

'ssim, !a"endo da sexualidade e do inconsciente a base da experiência subjetiva da liberdade, !reud rompeutanto com a religião do testemunho ou da con!issão quanto com o ideal cienti!icista da sexologia: nem caça>s bruxas, nem classi!icação imperiosa, nem !ascínio por um erotismo qualquer de ba"ar, próprio docienti!icismo ou do puritanismo religioso$ *ara ele, não se tratava de julgar o sexo nem de tornálotransparente ou espetacular, mas de deixar que ele se exprimisse da maneira mais normal e mais verdadeira$

 7ada mais estranho > concepção !reudiana do que a id)ia de que a sexualidade seria naturalmente malsã$

'ssim, 9reud !oi o inventor de uma ciência da subjetividade que caminhou de mãos dadas com a instauração,nas sociedades ocidentais, das id)ias de vida privada e de sujeito do direito$

Em mat)ria de sexualidade, o escIndalo !reudiano consistiu, portanto, em inverter a ordem da normatividadee tomar a negatividade do homem como sua nature"a positiva: ;1 esc&ndalo<, escreveu -ichel 9oucault,;não reside em o amor ser de nature"a ou de origem sexual, o que !ora dito antes de 9reud, mas em que,atrav)s da psicanálise, o amor, as relaç#es sociais e as !ormas de integração interhumanas aparecem como oelemento negativo da sexualidade na medida em que ela ) a positividade natural do homem$<F1 abandono !reudiano da teoria da sedução tamb)m !a" lembrar que o trabalho do cientista vienense !oicontempor&neo do conjunto das leis que contribuíram, progressivamente, para a debilitação do poder do pai

na sociedade ocidental: leis sobre a decadência paterna, sobre os maustratos, sobre os corretivos !ísicos etc$DEm outras palavras, 9reud só poderia inventar sua teoria num mundo marcado pelo abandono dasmodalidades tradicionais de organi"ação !amiliar$ Enquanto o pai era legalmente investido de um poderilimitado, que lhe permitia exercer um poder tir&nico sobre o corpo das mulheres e dos !ilhos, de um ladoreprimindo o adult)rio e, de outro, a masturbação, não era possível nenhuma teori"ação da sexualidade emtermos de !antasia, de reminiscências ou de con!lito$C *or essa ra"ão, em toda parte do mundo a psicanáliseveio a se tornar um !en(meno urbano, a!etando sujeitos imersos no anonimato, solitários ou desligados deseus vínculos tradicionais, e voltados para um nAcleo !amiliar restrito$

 7o que concerne > teoria da sedução, três tendências desenharamse nos !reudianos e nos anti!reudianos$' primeira, dos ortodoxos do !reudismo, desinteressouse das seduç#es reais em prol de umasupervalori"ação da !antasia$ Ela levou a que eles nunca mais se ocupassem, na análise, dos abusos reaisso!ridos pelos pacientes em sua in!&ncia ou em sua vida atual$ ' segunda, representada, por um lado, pelosadeptos da sexologia libertária, e por outro, pelos puritanos, tende a negar a existência da !antasia e a redu"ir

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qualquer !orma de distArbio psíquico a um trauma realmente vivido$ *ara os libertários, a prática real do sexo) um imperativo: ) necessária > expansão da saAde psíquica$ =onseqMentemente, o abuso ) uma pedagogia dogo"o$ *ara os puritanos, ao contrário, toda a sexualidade redu"se a um ato abusivo$

$ic:el <oucault ta10>1 considera que a psicanálise foi o instru1ento de u1a nova gest3o dasrela2Ees incestuosas na fa1Flia 0urguesa- ?er .Os anor1ais6; in  /esumo do0 cursos do 1oll2ge derance, Rio de Ganeiro; Gorge Ha:ar; *))- io So0re a fa1Flia co1o 1odelo universal; ver a terceira

parte deste livro; capFtulo *-&

?uanto > terceira tendência, a Anica con!orme ao pensamento psicanalítico e ao simples bom senso, consisteem aceitar, ao mesmo tempo, a existência da !antasia e a do trauma ligado ao abuso sexual$ 7o plano clínico,um psicanalista deve ser capa", portanto, de discernir essas duas ordens de realidade, !reqMentementesuperpostas, e de compreender que as violências psíquicas ou as torturas morais podem ser sentidas como tãoatro"es qua*i Y abusos sexuais$< 8ito de outra maneira, a negação da ordem da !and tra" o risco de provocaruma !erida tão mutilante num sujeito quanto a negação de um abuso real$

amos mais longe$ 4e continuarmos tributários da teoria da sedução, correremos o risco de considerar queum trauma ) responsável, em si mesmo, por uma destruição de!initiva para quem o so!re$ 7esse sentido, oculto das vítimas ) equivalente ao determinismo biológico que dá a entender que as crianças maltratadas porseu meio, ou violentadas em circunst&ncias extremas Iguerra, terrorismo etc$J, serão !orçosamentedelinqMentes, ou se queixarão eternamente de uma !erida impossível de cicatri"ar$ 1ra, !oi contra esse

 preconceito tena" que 9reud se ergueu ao renunciar > sua teoria$ 7ada jamais ) decidido de antemão: ain!elicidade não está inscrita nos genes nem nos neur(nios$ =ada sujeito tem uma história singular, e esta o!a" reagir di!erentemente de outro em situaç#es idênticas$ *or conseguinte, um trauma real não ) em si maismortí!ero do que um grave so!rimento psíquico$

(Observe3se !ue os )leinianos, sem negar a e4ist&ncia de abusos reais, tenderam a considerar !ue assedu"5es imagin+rias de tipo s+dico podiam ser muito mais graves do !ue os traumas reais# 6uanto a

 7andor erenczi e seus herdeiros, eles tornaram a valorizar, opondo3se aos ortodo4os da fantasia e semnegar a ordem fantasística, a idéia da importncia do trauma vivido#8

9oi justamente por associar uma teoria não genital da sexualidade a uma concepção não cerebral noinconsciente, e por distinguir o trauma da !antasia, para pensálos em sua di!erença, que a psicanálise !oiconsiderada um pansexualismo durante toda a primeira metade do s)culo OO$ 4eus adversários temiam seuimpacto no corpo social e a acusavam de introdu"ir a desordem moral nas !amílias$

4e, nos países latinos, ela era tratada como ciência bárbara, nascida da decadência ;teut(nica<, e se, nos países nórdicos, era tida como o sinal de uma degeneração ;latina<, nos países puritanos, sobretudo no=anadá e nos Estados 6nidos, ela !oi designada como uma doutrina sat&nica$ Em outras palavras, o ódioantisexual suscitado pela psicanálise !oi, ao mesmo tempo, o sintoma de seu crescente sucesso e o sinal daemancipação sexual e psíquica de que ela era a promessa$ ' essa acusação de pansexualismo algunsacrescentaram a de pansimbolismo: na verdade, censuraram 9reud por haver resgatado uma concepçãoespiritualista do inconsciente, pautada numa arte divinatória B a deci!ração dos símbolos e dos sonhos Bmuito distante da racionalidade cientí!ica$

reud est+ morto na América

-al encerrada a 4egunda 5uerra -undial, quando passava por um verdadeiro triun!o nos Estados 6nidos,uma renovação na 9rança e ganhava pleno impulso na 'm)rica %atina, a psicanálise continuou a ser atacada$

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' tese do pansexualismo caiu em desuso > medida que se deram a trans!ormação das !amílias e aemancipação das mulheres$ -as, com o sucesso dos psicotrópicos e os progressos alcançados pela medicina,tornouse possível questionar o status do inconsciente !reudiano$

Em conseqMência disso, a!irmouse uma nova mitologia cerebral que tendia a demonstrar que a psicanálisenão era uma ciência, mas um processo de introspecção literária, ou uma variação da antiga deci!ração dossonhos$ Essa mitologia assumiu o nome de inconsciente cognitivo$S *ara seus adeptos, tratavase de

restabelecer a id)ia de uma possível adequação entre o c)rebro e o pensamento, !undamentada na analogiaentre o !uncionamento cerebral e o computador$

4urgida nos Estados 6nidos por volta de /CGT, a ;ci)ncia< cogniriva atribuiuse prontamente a tare!a dedescrever as disposiç#es e capacidades da mente humana IcogniçãoJ, tais como a linguagem, a percepção, oraciocínio, a coordenação motora e o planejamento$ Paseandose numa concepção da mente segundo a qual omental e o neural seriam duas !aces de um mesmo !en(meno, essa ;ciência< apoiouse tamb)m eni váriasdisciplinas que estavam em plena expansão: a neurobiologia ou estudo dos mediadores químicos, queexplicava o comportamento humano at) o nível mais !undamental do organismo humano, isto ), o gene\ aneuro!isiologia, que se interessava pela signi!icação !uncional das propriedades do c)rebro\ a inteligência

arti!icial, que estudava o raciocínio considerando o computador como modelo do !uncionamento cerebral\ e aneuropsicologia, ou descrição dos !en(menos patológicos ligados ao !uncionamento da cognição$.odas essas disciplinas visavam e continuam visando at) hoje a dar conta, dc maneira universal, do!uncionamento da atividade mental do homem a partir de urna caracteri"ação do sistema nervoso comosistema !ísicoBquímico$

 1 objetivo primordial dessa psicologia cognitiva !oi comimbater primemramente o behaviorismo, massobretudo a psicanálise, considerada um verdadeiro !lagelo: ;Kavia tamb)m a embriague" com a

 psicanálise<, escreveu KoXard 5ardner$ ;Embora as intuiç#es de 9reud intrigassem muitos pesquisadores,

eles eram de opinião que uma disciplina cientí!ica não podia !undamentarse em entrevistas clínicas ehistórias pessoais, construídas retrospectívamente\ al)m disso, surpreendiamse com o !ato de que umadisciplina pretensamente cientí!ica não desse margem alguma > re!utação$ Era di!ícil situar processos damente humana, num campo cientí!ico de estudo, entre, de um lado, o credo puro e simples do esta blishment

 behaviorista, e de outro, a desen!reada propensão dos !reudianos a conjecturar$<

$O0servese que Gean Piaget $*)D*)J&; pioneiro da psicologia cognitiva; interessousee=clusiva1ente pelo caráter universal do desenvolvi1ento 1ental e da evolu23o das aptidEesintelectuais-&

$O 0e:avioris1o > u1a corrente da psicologia que se difundiu nos !stados Unidos at> *)(J e queta10>1 constituiu u1a grave 0arreira K psicanálise naquele paFs; antes de desnioroi=ar- Apótase naid>ia de que o co1porta1ento :u1ano o0edece ao princFpio do estF1uloresposta $LR&- Tratase;portanto; de u1a varia23o do co1portarnentalis1o; e10ora a c:a1ada psicologia cognitivaprcssupon:a; al>1 disso; u1a 1odelaini da atividade Interna- uitas ve4es; classificase o:e:avioris1o na psicologia cognitiva- "á u1a certa confus3o essa apreens3o das diferentes correntes-&

8e !ato, há uma di!erença importante entre a psicologia cognitiva, que se pretende cientí!ica em sua intençãode !a"er com que dependa do c)rebro não apenas a produção do pensamento, mas a organi"ação psíquica

consciente e inconsciente, e as disciplinas cientí!icas Iou neurociênciasJ em que ela se apóia$ a 'lan.uring, o inventor genial da máquina que leva seu nome, que devemos a id)ia de que o que a mente !a" podeser executado da mesma maneira por uma máquina Io computadorJ$ 1ra, como vimos, um bom nAmero deneurobiologistas rejeita essa hipótese aberrante, a qual, no entanto, ) a própria essência da nova mitologiacerebral própria dos cognitivistas: ;6m dia<, escreveu 5erald Edelman, ;os praticantes em maior evidência

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na psicologia cognitiva e os mais arrogantes neurobiologistas empíricos compreenderão, !inalmente, que!oram vítimas, sem saber, de uma !raude intelectual$<

'qui estão alguns exemplos, dentre centenas de outros, das chamadas análises ;cientí!icas< propostas pelosadeptos do cognitivismo:

 7uma comunicação de /CCV, que retomava parcialmente as teses de seu livro, o antropólogo norteamericano%aXrence +irsch!eld tentou resolver um suposto enigma: saber em virtude de que processos cognitivos ascrianças norteamericanas da ;raça< branca internali"am, hoje em dia, a chamada regra da ;gota de sangue<,muito embora a noção de raça tenha sido banida desde /CGTD de todas as ciências naturais, humanas esociais$ 6niversal mente compartilhada, essa regra correlaciona a id)ia imaginária de raça com amani!estação de uma pura di!erença biológica: a cor da pele$ 'ssim, ela perpetua a crença em que a ;raça<seria um estigma inscrito no corpo sob a !orma de uma variação cut&nea$ *or conseguinte, o sangue negro

 presente numa criança branca nascida de um casamento misto tornálaia portadora, automaticamente, dotraço invisível de uma negritude que, em seguida, ela poderia transmitir > sua descendência, gerando !ilhosde ;raça< negra$

Kirsch!eld distinguiu duas interpretaç#es da !amosa regra$ ' primeira ) ;categoria/< e se apóia numaconcepção racial, e portanto, racista, do gênero humano\ a segunda ) ;biológica< e repousa na id)ia cientí!icade que a esp)cie humana comp#ese não de raças, mas de grupos humanos !isicamente di!erentes entre si Iosnegros, os brancos, os asiáticos etc$J$

-unido dessa interpretação e de uma bateria de testes, +irsch!eld dividiu então seus interlocutores Ibrancos enorteamericanosJ em três grupos: crianças de F anos, crianças de // anos e adultos$ 'presentou a cada grupoduas imagens, uma das quais mostrava casais ;uniraciais<, enquanto a outra exibia casais ;inter raciais<,ora compostos de um negro e uma branca, ora de um branco e uma negra$ nterrogados sobre a descendênciadesses casais, os interlocutores responderam, qualquer que !osse sua idade, que os !ilhos nascidos dos casaisuniraciais pertenceriam !orçosa mente > mesma ;raça< dos pais e teriam os mesmos traços !ísicos de um edo outro$

nversamente, o questionário sobre os casais interraciais !orneceu respostas divergentes$ ncapa"es de se pronunciar sobre as semelhanças !ísicas, as crianças de > anos a!irmaram, contudo, em sua maioria, que o!ruto de um casal misto pertenceria, !orçosa mente, > mesma ;raça< da mãe$ 'o contrário, as crianças de //anos esperaram que esse mesmo rebento se assemelhasse !isicamente ao genitor negro Ipai ou mãeJ, por)msem pertencer a uma raça precisa$ ?uanto aos adultos, eles acharam que todo !ilho nascido de um casal inter

racial seria de raça negra, mesmo que se parecesse com seu genitor branco$

' partir dessa experiência Kirsch!eld concluiu que a adoção da versão ;categorial< IracistaJ da regra da gotade sangue decorre de um processo sui generis, que se imp#e por si só > medida que a criança cresce e setrans!orma num adulto$ Em outras palavras, em ve" de se perguntar por que as crianças de > anos sempre

 privilegiam o poder materno, em detrimento da aparência !ísica, e por que, ao contrário, as crianças de //anos privilegiam o equilíbrio entre os dois pólos Imaterno e paternoJ, em detrimento da pertença racial, e,!inalmente, em ve" de se es!orçar por compreender porque os adultos brancos norteamericanos assimilamuma di!erença !isica a uma raça, Kirsch!eld contentase em a!irmar, com a ajuda de uma bateria de testes quenão provam nada, que a percepção da raça seria um elemento natural da cognição humana$ *or conseguinte,

a atitude racista seria uma estrutura imutável e universal, da qual decorreriam as escolhas políticas e culturaisdos indivíduos$

 7ão ) de surpreender, portanto, que o c)lebre romance de 9annL Kurst,C  magens da vida, no qual se

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inspirou essa experiência, seja mais pertinente do que o jargão a!etado de Kirsch!eld para interpretar asigni!icação pro!unda do grande mito norteamericano da gota de sangue$ %onge de todas as pretensasexperimentaç#es sobre o sentimento inato ou adquirido da raça, o livro narra a vida trágica de uma mulher

 branca, inconscientemente submetida > angAstia da poluição biológica, e que opta pela esterili"ação comosolução para sua !antasia identitária para não ter que en!rentar o risco de transmitir > sua descendência osestigmas invisíveis da ;raça< odiada$

?uanto > questão de por que uma crença perdura depois de ter sido invalidada pela ciência, hão de me permitir que eu não me detenha nisso$

4e %aXrence Kirsch!eld aplica a ciência cognitiva ao campo da antropologia, KoXard 5ardner, o demolidornorteamericano da psicanálise, recorre > mesma doutrina para inventar uma pretensa ;ciência daexcepcionalidade<$ 7um de seus estudos, publicado em /CCF, W ele tenciona explicar a gênese do talento emquatro grandes ;personalidades<, -o"art, 9reud, 5andhi e irginia ^ool!, construindo uma tipologia docomportamento e do caráter que diríamos haver saído diretamente de uma mistura de astrologia com

 psicologia das massas$ 'ssim, -o"art seria o protótipo do -estre, pois teria sabido, graças a suas !aculdadesmentais, adquirir o ;domínio per!eito dos gêneros de sua )poca<\ 9reud seria o<=onstrutor-odelo< Iou

=-J, pois terseia bene!iciado, atrav)s do amor de seus pais, de ;c(modas condiç#es de trabalho<\ e 5andhiseria o típico =arismático, pois teria sabido in!luenciar os que resistiam ao paci!ismo e convertêlos a suasid)ias$ *or Altimo, irginia ool! seria a melhor encarnação do ntrospectivo, pois, tendo so!rido sevícias nain!&ncia, teria sabido voltar os olhos para dentro de si mesma a !im de compreender o gênero humano$'ssim, com nAmeros comprobatórios e multiplicando toda sorte de esquemas, grá!icos e medidas, 5ardnerconstrói, com a máxima seriedade do mundo, sua psicologia dos per!is típicos a partir da qual imaginaexplicar os destinos excepcionais contrastandoos com os destinos comuns$ 1 que equivale a di"er que a;ciência< de que se trata não tem nenhuma relação com o procedimento cientí!ico$*or seu turno, =hristopher 9rith, um pesquisador inglês e pro!essor de neuropsicologia, prop#e explicar agênese da esqui"o!renia< mostrando que esta seria ;uma alteração dos processos implicados na iniciação daação<: uma motricidade !alha, ligada de algum modo a uma de!iciência no controle central IcerebralJ dacomunicação Acentral monitorings"stemF1 =onhecida desde a noite dos tempos, mas descrita em /C// porPleuler, essa !orma de loucura caracteri"ase pela incoerência do pensamento, da a!etividade e da ação IouclivagemF, > qual se somam a atividade delirante e o ensimesmamento$ .odos esses sintomas reAnemsenuma  s-ndrome de in.lu@ncia, que leva o paciente a acreditar que seus pensamentos e seus atos sãodominados por !orças demoníacas, externas a ele mesmo$

4egundo 9rith, a esqui"o!renia nãó passaria, ao contrário, de uma !alta de ;mentali"ação<, indu"ida por processos !ísicoquímicos de!icientes e não relacionada a uma organi"ação delirante, mas, ainda assim,signi!icativa da realidade psíquica$ 1s adeptos dessas teses, que !lorescem nos laboratórios da pesquisa

cientí!ica contempor&nea, parecem ignorar a !amosa história do louco que sai do manic(mio puxando um!unil amarrado num barbante$ 'o vigia simpático que lhe pergunta como vai seu cachorro, ele responde:;1ra, não ) um cachorro, ) um !unilZ< 'lguns metros adiante, uma ve" ultrapassados os limites do hospital,ele se vira para o objeto e o interpela: ;7ós o tapeamos direitinho, não !oi, -ir"aN<

.ouas essas teorias têm como denominador comum o !ato de !avorecerem uma visão reacionária e niilista dogênero humano$ E realmente inAtil combater o racismo, uma ve" que se trata de uma predisposição inata,inscrita nos neur(nios$ @ inAtil investigar a signi!icação da história singular de um sujeito genial, talentosoou comum B, se ela decorre da necessidade$ , inAtil, en!im, nos preocuparmos com a signi!icação dodiscurso dos doentes mentais, se o sujeito a!etado pela loucura ) apenas um de!iciente cognitivo: para tratá

lo, não bastaria situar seus sintomas na categoria mais apropriada do  :)e, em seguida, administrarlhe osneurol)pticos correspondentesN ?uando muito, podemos tentar, com a ajuda de diversas injunç#es,convencêlo a parar de raciocinar mal$

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Embora não haja uma ligação direta entre o desenvolvimento das ciências cognitivas e o desmantelamentodos quatro grandes modelos da psiquiatria din&mica pelo :), !oi em nome dos mesmos pressupostos quese e!etuou, tanto de um lado quanto do outro e durante o mesmo período, a grande operação de limpe"a quevisou a erradicar da clínica e da re!lexão universitária e m)dica o conjunto das teorias da subjetividade$ Eentre elas, a mais visada, evidentemente, !oi a psicanálise, na medida em que a concepção !reudiana doinconsciente era !undamentalmente incompatível com a nova mitologia cerebral$

 7esse aspecto, existe uma di!erença considerável entre a situação norteamericana da psicanálise e a situação!rancesa$ 4e a psicanálise p(de ser salva do na"ismo graças > emigração maciça dos !reudianos europeus para o continente americano entre /C2T e /C3T, isso se deu ao preço de uma trans!ormação radical de seusideais, sua prática e sua teoria$ 8esde o começo do s)culo, ela !oi acolhida como uma teologia da expansãoindividual: um corpo são numa alma sã$ -uito pragmáticos, os terapeutas norteamericanos apoderaramsecom ardor das id)ias !reudianas$ -as logo procuraram medir a energia sexual,  provar a e!icácia dostratamentos, multiplicando as estatísticas, e !a"er pesquisas para saber se os conceitos eram empiricamenteaplicáveis aos problemas concretos dos indivíduos$

 7essas condiç#es, a psicanálise tornouse, do outro lado do 'tl&ntico, consideradas todas as tendências, o

instrumento de uma adaptação do homem a uma utopia da !elicidade$ mp(sse muito menos por seu sistemade pensamento ou pelos questionamentos !ilosó!icos de que era portadora do que por sua capacidade deo!erecer uma solução imediata para a moral sexual da sociedade liberal e puritana$ 5raças a ela, o homemculpado deixou de !icar condenado ao in!erno de suas paix#es, tornandose passível de se libertar delas\graças > psicanálise, ele não mais seria coagido por uma sexualidade diabólica, mas poderia desvincularsedela$ 1ra, como já sublinhei, nada ) mais alheio ao pensamento !reudiano do que o ideal higienista que

 pressup#e que a sexualidade ) malsã e que o indivíduo normal deve con!essála para apagar de sua mente ovestígio de um pecado original$

9rit" ^ittels, discípulo vienense de 9reud que se naturali"ou norteamericano, dedicou a esse tema, em suas

 )em6rias, um capítulo de grande lucide": ;1 solo em que a psicanálise brotou e se desenvolveu !oidestruído por um s)culo$ 4eu !uturo depende inteiramente da 'm)rica, o que signi!ica que ou não haverá

 psicanálise no !uturo, ou ela terá que prosperar na 'm)rica $---&- ?ue me seja permitido, portanto, expressaralguns temores a respeito desse !uturo$ 1 magní!ico espírito cientí!ico da 'm)rica tem se dedicado, at) aqui,>s dimens#es, > mensuração e > pesagem, aos nAmeros e >s estatísticas $---&- 1s norteamericanos podemcompreender conceber/0 como tais os mais altos edi!ícios, os mais longos aquedutos, as !endas mais

 pro!undas $---&- 8esejam ter os quadros mais caros nos maiores museus ou nos palácios dos homens maisricos$ 4ão menos quali!icados para abordar cienti!icamente o mundo irracional da alma, seja porque orejeitam como não sendo cientí!ico, seja porque o aceitam sob a !orma de doutrinas pseudocientí!icastipicamente norteamericanas, como a Christian :cience ou o buchmanismo,S2 ou, mais para o oeste, comoas doutrinas evang)licas que brotam dos lábios de sacerdotisas de mantos bran8epois de servir de cimento,durante cerca de trinta anos, para a elaboração da nosologia psiquiátrica, a psicanálise !oi !inalmenterejeitada: porventura os psicotrópicos e os outros modelos explicativos do psiquismo, baseados no  :) 3ou em novas mitologias cerebrais, não tra"iam soluç#es terapêuticas mais rápidas para as !amosas;desordens< que encerravam o sujeito numa sintomatologia comportamentalN 9oi assim que, como observoumuito bem o historiador 7athan Kale, os partidários do anti!reudismo norte americano dos anos de /CFTCTrecorreram, em oposição > psicanálise, aos mesmos meios que os entusiásticos !reudianos do início dos)culo$S .amb)m eles propuseram avaliaç#es, provas e levantamentos da e!icácia: em suma, todo um arsenalexperimentalista, inadequado para dar conta da realidade da prática e da teoria psicanalíticas$

=onsciente desses desvios, 9reud expressou sua hostilidade, em diversas ocasi#es, sob a !orma de um antiamericanismo bastante primário: ;Esses primitivos<, declarou em /C0D, ;têm pouco interesse numa ciênciaque não pode ser diretamente convertida numa prática$ 1 que há de pior no modo de agir norteamericano )sua chamada largue"a de hori"ontes, graças > qual eles chegam a ponto de se sentirem magn&nimos esuperiores a nós, europeus de visão estreita I$$$J$ =ertamente, o norteamericano e a psicanálise são coisas que

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combinam tão pouco que !a"em lembrar a comparação de 5rabbe: ) como se um corvo vestisse uma camisa branca$<

' atitude mais representativa da cru"ada cienti!icista de hoje ) a de 'dol! 5rMnbaum$ -)dico de renome,!ilóso!o e, posteriormente, pro!essor de psiquiatria, especiali"ouse no anti!reudismo por volta de /CFT$ Emseu livro de /CD3, =s .undamentos da psicana’lise, que teve enorme repercussão al)m'tl&ntico, retomou oargumento clássico dos adeptos da mitologia cerebral criticando 9reud por haver abandonado seu  !ro4eto e

renunciado a !a"er da psicanálise uma ciência natural$ *ara corroborar sua argumentação, 5rMnbaum atacouas teses de três !ilóso!os que, segundo ele, não haviam entendido nada do processo !reudiano: Uarl *opper,*aul +icoeur e HMrgen Kabermas$S 7o primeiro censurou a a!irmação de que a psicanálise seria ;irre!utável<em termos da ciência, jamais podendo ser submetida a testes de re!utabilidade como as outras ciênciasnaturais$ 7o segundo criticou uma atitude err(nea em relação a 9reud$ ?uerendo !a"er da psicanálise umaciência, +icoeur não teria compreendido que ela sempre continuaria a ser uma ;hermenêutica das

 pro!unde"as< associada a um m)todo de autore!lexão$ *or Altimo, 5rMnbaum acusou o terceiro de havertrans!ormado a psicanálise numa hermenêutica desvinculada de qualquer esteio experimental$

A*dol. UrDnbaum, Les ;ondements de la ps"chanal"se ALos *ngeles, #$F, !aris, !H;, #$$D1 = autor

 publicou, posreriormente a esse livro, uma +exposi0/o na &ual respondeu Ws cr-ticas &ue lhe .oramdirigidas1 Essa exposi0/o .oi publicada em .ranc@s antes do livro de #$, sob o t-tulo de La ;s"chanal"se Wl’preuve, !aris, Bd1 e l’Eclat, #$$G1F

Em suma, 5rMnbaum voltouse !uriosamente contra um discurso !ilosó!ico I*opper, +icoeur e KabermasJque tivera a preocupação ora de criticar as ambivalências do cienti!icismo !reudiano, ora de valori"ar ummodelo que excluía o sujeito do campo da ciência$ =omo já sublinhei, 9reud sempre teve a tentação, emborarenunciasse a ela a partir de /DCV, de !a"er da psicanálise uma ciência natural em virtude da qual oinconsciente seria um puro produto do !uncionamento cerebral$ 1 !ato de haver abandonado esse projeto,embora continuasse a sonhar com ele, não signi!ica, evidentemente, que se recusasse a !a"er da psicanálise

uma disciplina cientí!ica$ E !oi justamente por essa ra"ão, aliás, que 9reud adotou perante as mitologiascerebrais uma atitude crítica muito mais cientí!ica que a dos cientistas$S

1pondose a esse discurso !ilosó!ico, portanto, 5rMnbaum alegou que o sonho !reudiano devia ser tomado ao p) da letra$ -as, disse ele em essência, já que 9reud se atrevera a abandonar a verdadeira ciência antesmesmo de construir seu sistema de pensamento, a totalidade de sua conceituação deveria ser abandonada emra"ão de sua não cienti!icidade$ 4eguiuse então uma demolição em regra de todas as hipóteses da

 psicanálise: seu m)todo clínico não passaria de uma !raude apoiada num e!eito placebo\ sua construçãometapsicológica deixaria transparecer um vasto programa de totalitarismo interpretativo baseado naatribuição de uma signi!icação arbitrária a atos ou pensamentos\ por !im, suas brigas entre escolas não seriam

outra coisa senão a expressão de !anatismos de igrejinhas desprovidos de validade intelectual\ 5rMnbaum,aliás, atacou tanto a 9reud quanto a seus sucessores I^innicott ou UohutJ, acusados, tal como seu mestre, deserem pseudocientistas$

 7a verdade, esse m)dico explorou tendenciosamente as pesquisas de avaliação da psicanálise reali"adas nosEstados 6nidos a partir de #$521 .ais pesquisas, como vimos,0T não permitem decidir se a psicanálise )superior >s outras psicoterapias$ -as !ornecem a prova de que os tratamentos psíquicos, seja qual !or atendência considerada, são de grande e!icácia IDT] de casos de ;sucesso<J$ *or conseguinte, elas são a provade que o anti!reudismo !anático de 5rMnbaum não tem nenhum caráter cientí!ico$

Em mat)ria de validação experimental, 5rIinbaum contentou se em redu"ir a nada um dos grandes casos de9reud: o do Komem dos +atos, cujo nome verdadeiro era Ernst %an"er$ 8urante o tratamento, 9reud haviarelacionado o medo dos ratos com uma lembrança in!antil contada por %an"er$ Este teria sido castigado pelo

 pai por se haver masturbado$ =omentando essa passagem, 5rMnbaum p(s 9reud sob a suspeita de haver

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tomado ao p) da letra o dito do paciente e acreditado nesse episódio in!antil, que talve" nunca houvesseexistido$ Em seguida, recriminou 9reud por estabelecer uma relação de causa e e!eito entre o medo dos ratose a neurose obsessiva$ Em suma, acusouo de inventar um sistema de interpretação que não correspondia anenhuma realidade$

*oderíamos, naturalmente, opor a 5rMnbaum um outro argumento, extraído de outra análise !reudiana, a doKomem dos %obos, cujo nome verdadeiro era 4erguei =onstantinovitch *aneje!!$

 7o decorrer dessa análise, 9reud reconstruiu uma cena primária, apoiandose num sonho de seu paciente$'os /D meses de idade, 4erguei teria visto os pais, ajoelhados em lençóis de cama brancos, entregarse portrês ve"es ao coito a tergo1 nterrogado muitos anos depois, *aneje!! declarou que essa cena certamentenunca havia acontecido, uma ve" que, na +Assia, os !ilhos não dormiam no quarto dos pais$ -as acrescentou

 prontamente que a cena primária reconstruída por 9reud revestirase, para ele, de imenso valor de verdade$*or !im, sublinhou que a psicanálise !ora o primeiro e Anico tratamento, após muitas passagens por clínicas,a aliviálo de suas angAstias e dar sentido > sua vida$ 4e esse exemplo mostra que 9reud, na ocasião, p(deconstruir uma cena imaginária para permitir que seu paciente tivesse acesso > signi!icação de sua história,um outro exemplo atesta que lhe sucedeu imaginar uma cena que havia realmente existido$

*or volta de /C0G, logo no início de sua análise, -arie Pona parte contou a 9reud um sonho em que se viaem seu berço assistindo a cenas de coito$ R guisa de interpretação, 9reud a!irmou em tom peremptório queela havia não apenas ouvido essas cenas, como a maioria das crianças que dormem no quarto dos pais, masque as vira em plena iuz do dia1 .endo um caráter muito di!erente do de 4erguei *aneje!!, -arie Ponaparterejeitou essa a!irmação e protestou que nunca tivera mãe$ 9reud se manteve !irme e objetou com a presençada babá$ *reocupada com provas experimentais, a princesa resolveu então interrogar o meio irmão de seu

 pai, que cuidava dos cavalos na casa de sua in!&ncia$ 8e tanto evocar diante dele a elevada import&nciacientí!ica da psicanálise, ela o !e" con!essar sua antiga ligação com a babá$ E o velho contoulhe como, no

 passado, !i"era amor em pleno dia diante do berço de -arie$$$ Ela realmente assistira, portanto, a cenas de

!elação, coito e cunilíngua$

Esses relatos clínicos indicam com clare"a a separação que 9reud !a"ia entre saber e verdade$ =omo4ócrates, ele atuali"ou a id)ia de que ) no diálogo que o sujeito descobre o que está recalcado: a cena

 primária, tal como situada na origem de sua vida e da di!erença sexual$ *ouco importa, portanto, que essacena seja inventada ou não, uma ve" que ela enuncia a verdade de uma estrutura original que coloca ohomem !rente a seu destino e > trag)dia de seu desejo$ amos mais longe: essa cena extrai sua !orçasigni!icante do !ato de ser construída$ 1ra, ) precisamente essa disjunção, apesar de veri!icável nos relatos deanálise e nos depoimentos dos pacientes, que ) inadmissível para os adeptos do cienti!icismo, que sempre!a"em o intelecto coincidir com a coisa, e o conhecimento com a verdade$ *elas mesmas ra"#es, aliás, eles

concebem o comportamento humano como um  pattern e o c)rebro como produtor do cogito1

'o !a"êlo, cometem um erro cientí!ico$ =om e!eito, tomam a experimentação como prova Anica de umaverdade subjetiva, sem jamais perceber a di!erença entre as ciências da nature"a e as ciências do homem$

@ evidente que os biólogos ou os m)dicos não têm que !a"er intervir em seu trabalho a opinião do gene, doátomo ou da mol)cula$ 1ra, os adeptos do cienti!icismo e das mitologias cerebrais agem como se a !isiologia

do c)rebro pudesse ser interrogada > maneira de um sujeito passível de di"er a verdade sobre uma vivênciaexistencial$ *ara compreender a que impasse condu" esse procedimento, basta citar o testemunho de =orinneKamon, psiquiatra e psicanalista !rancesa: ;6ma paciente veio me ver num estado depressivo muito antigo$9ora tratada por uma porção de clínicos gerais$ 9i" uma entrevista com ela e deilhe um antidepressivo$4eriam necessários cinco a de" dias para que esses medicamentos surtissem e!eito$ *ois bem, no dia seguinte,

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seu marido me tele!onou para di"er que ela estava muito melhor$ Kavia recebido uma escuta que jamaistivera antes$ *(de deixar um pouco de sua depressão e se !a"er perguntas sobre si mesma que nunca se havia!ormulado$<

1 integrismo de 5rMnbaum levou > liquidação de qualquer !orma de argumentação que não se!undamentasse na constatação de um !ato$ E !oi por essa ra"ão que, no !im de seu livro, esse autor entregouse a uma especulação duvidosa sobre a questão da sedução$ *ara apreender a signi!icação dela, conv)m

entendermos bem o que está em jogo na problemática !reudiana da sexualidade$ imos que a condição desurgimento de uma teoria !reudiana da liberdade subjetiva repousou tanto no abandono das diversasmitologias cerebrais elaboradas no !im do s)culo OO quanto na renAncia a uma explicação puramentetraumática da causalidade psíquica$ 8aí o acontecimento de /DCF e a !amosa ;carta do equinócio<: oabandono !reudiano da teoria da sedução$ 1ra, no momento em que, nos Estados 6nidos, o desviocienti!icista dos anos oitenta levou a que se es!acelasse o modelo !reudiano do inconsciente, uma outraloucura, esta puritana, atacou uma outra grande concepção do sistema !reudiano: a teoria da !antasia$

Em /CDT, Uurt Eissler, responsável pelos 4igmund 9reud 'rchives I49'J, e 'nna 9reud resolveram con!iar a

 publicação integral das cartas de 9reud a 9liess a um acadêmico norteamericano, devida mente !ormado noceleiro da nternational *sLchoanalLtical 'ssociation I*'J$ He!!reL -oussaie!! -asson tomouconhecimento dos arquivos interpretandoos de maneira selvagem, a partir da id)ia de que eles esconderiamuma verdade oculta, um segredo vergonhoso$ 9oi assim que a!irmou, sem a menor prova, que 9reud haviarenunciado por covardia > teoria da sedução$ 7ão se atrevendo a revelar ao mundo as atrocidades cometidas

 por todos os adultos contra todas as crianças, 9reud teria inventado a noção de !antasia para mascarar arealidade traumática do abuso sexual que estaria na origem das neuroses$ *or conseguinte, seriasimplesmente um !alsário$

Em /CD3, -asson publicou um livro sobre esse assunto, = real escamoteado, que !oi um dos maiores best(

 sellers psicanalíticos norteamericanos da segunda metade do s)culo$ 1pondose aos ortodoxos da teoria da!antasia, o livro veio rati!icar as teses da historiogra!ia revisionista$0V .ratavase, com e!eito, de mostrar quea mentira !reudiana teria pervertido a 'm)rica, tornandose aliada de um poder baseado na opressão:coloni"ação das mulheres pelos homens, das crianças pelos adultos, do impulso natural pelo conceito etc$Embora tenha sido !ortemente criticada pela maioria dos movimentos !eministas, a tese da seduçãotraumática reapareceu como a Anica solução para o enigma de uma sexualidade retrans!ormada em algo

 brutal e odioso$ =omo -asson, a c)lebre advogada =atharina -acUinnon adotou a id)ia da mentira!reudiana$ Especiali"ouse em processos por ass)dio sexual sempre procurando impor o princípio de quetodas as mulheres, na in!&ncia ou na vida adulta, teriam sido vítimas de algum abuso por parte dos homens$=hegou at) a propor a utili"ação de diversos procedimentos B interrogatórios inquisitoriais, persuasão,hipnose, psico!armacologia etc$ B para descobrir, no inconsciente dos sujeitos, os vestígios da seduçãorecalcada$ 8aí a a!irmação de que a sexualidade seria, em si mesma e sempre, um ultraje imposto ao corpodas mulheres$ Em /CC0, Hudith Kerman publicou um livro que revisava a história da histeria no sentido deuma revalori"ação do trauma$ 7um primeiro momento, segundo a autora, a histeria teria surgido no discursode =harcot como um eco ao republicanismo !rancês$ Em seguida, terseia emancipado, em /C0T, com odesmoronamento do culto da guerra e a mani!estação do paci!ismo, vindo en!im a se revelar, no &mbito domovimento !eminista, como pura violência sexual traumática$

1 abandono da teoria da !antasia em prol de um retorno > da sedução caminhou de mãos dadas com arevalori"ação de um inconsciente pensado em termos de dissociação e automatismo mental$ *or conseguinte,a síndrome da ;personalidade mAltipla< teve uma ampliação considerável nos Estados 6nidos > medida queo  :) e adotava uma nomenclatura da qual desaparecera a nosologia !reudobleuleriana$ 8e!inidocomo um distArbio da identidade, o !en(meno da personalidade mAltipla desenvolveuse no s)culo OO antesde desaparecer, por volta de /C/T, no momento em que, sob a in!luência da segunda psiquiatria din&mica eda concepção !reudiana da neurose, as mulheres, que eram majoritariamente a!etadas por ela, !oram

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encaradas como sujeitos completos, e não mais como visionárias, vítimas de abuso sexual e entravadas poruma consciência desarticulada$ 7otavelmente descrita por Kenri E Ellenberger, essa síndrome deu margem ainAmeros relatos literários$ 7o plano clínico, tradu"iuse pela coexistência, num mesmo sujeito, de uma oumais personalidades separadas umas das outras, e cada uma das quais podia assumir alternadamente ocontrole das demais$

Em /CF0, essa noção !igurava como uma curiosidade de outra )poca$ 'penas uma de"ena de casos !ora

recenseada depois de /C0T$ *ois bem, a partir de /CDV, estimouse em V$TTT o nAmero de pacientes a!etadas por essa síndrome$ Em /CC0, considerouse que uma em cada vinte pessoas so!ria desse mesmo distArbio, atal ponto que, em todas as cidades norteamericanas, clínicas se especiali"aram no tratamento da novaepidemia$

Esse crescimento absurdo ) uma boa prova da regressão da nosologia indu"ida pelas diversas revis#es do :)1 9oi justamente por não mais se enquadrarem numa classi!icação signi!icativa que as pacientes a!etadas por distArbios hist)ricos ou psicoses passaram a receber um diagnóstico de personalidade mAltipla$ Essasíndrome remete, na verdade, a um modelo de sociedade em que a mulher ) assimilada a uma vítimasexualmente maltratada, >s voltas com o desespero identitário$

8epois do caso -asson, a corrente revisionista norteamericana entregouse a um despedaçamento dadoutrina !reudiana e do próprio 9reud, retrans!ormado num cientista diabólico que carregava a culpa de sehaver entregue a relaç#es abusivas dentro da própria !amília$ Há em /CD/, *eter 4Xales a!irmava,naturalmente sem a menor prova, que 9reud teria mantido relaç#es sexuais com sua cunhada, -innaPernaLs$ .êlaia at) engravidado, depois obrigandoa a !a"er um aborto$

4urgida por volta de /CFD, a historiogra!ia revisionista !oi muito criativa num primeiro momento$ 1shistoriadores que recorriam a ela, pretendendose herdeiros do grande historiador Kenri 9$ Ellenberger,

 produ"iram trabalhos notáveis: !oi o caso, em particular, de 9ran 4ulloXaL, autor de um livro monumentalsobre as origens biológicas do pensamento !reudiano$2W Esses historiadores questionavam, justi!icadamente,os c&nones da história o!icial, herdados de Ernest Hones e sobretudo de Uurt Eissler, principal organi"ador,depois da 4egunda 5uerra -undial, dos 4igmund 9reud 'rchives Is9'J, depositados na %ibrarL o! =ongressI%ocJ de ^ashington$ .odavia, após alguns anos de encarniçado combate contra a ortodoxia !reudiana, acorrente revisionista tornouse tão anti!reudiana que renunciou aos estudos cientí!icos para se atirar com!anatismo ao debate das id)ias$

 7o contexto dos anos noventa, as hipóteses de alguns revisionistas !oram um verdadeiro achado para osadeptos do cienti!icismo, muito embora eles não as compartilhassem$ =om e!eito, elas corroboravam a id)ia

de que um trauma, isto ), um traço vis-vele, portanto, supostamente registrado na memória, podia explicar asdesordens subjetivas$ 8aí a possibilidade de junção entre uma prática clínica que aspirava a explorar oc)rebro humano, para nele descobrir a origem de uma patologia, e uma psicologia coercitiva ora!undamentada na hipnose, ora na psico!armacologia, que permitia substituir a psicanálise por uma tecnologiada con!issão ou por uma avaliação sintomatológica de tipo comportamental$

8ois relatos de caso, dentre milhares de outros, atestam a amplitude adquirida pela busca maníaca do abusosexual e da personalidade mAltipla no momento em que, com a queda do comunismo e na !alta de qualquer

 poder antag(nico, a sociedade norteamericana parecia entregarse de corpo e alma > empreitada tríplice docienti!icismo, do liberalismo e da diaboli"ação do sexo$

1 primeiro deles ) o de uma estudante de /C anos que tinha relaç#es con!lituosas com o pai e cuja vidatrans!ormouse num calvário no !im do ano de /CDC$ 'presentando sintomas de depressão e bulimia,detestando bananas, queijo derretido e maionese, ela resolveu, com a concord&ncia dos pais, !a"er um

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tratamento num centro m)dico parapessoas abastadas$ 'tendida por uma psicóloga encarregada das relaç#escom a !amília e por um psiquiatra, !oi imediatamente incluída na categoria das ;vítimas de abuso sexual<$Esse diagnóstico !oi !eito pelo psiquiatra a partir da hipótese de que, em DT] dos casos, a bulimia seriasintoma de um abuso sexual ocorrido durante a in!&ncia ou a adolescência$

1ra, essa hipótese ) inteiramente !alsa$ .odos os trabalhos sobre a bulimia demonstram que, corno umsintoma entre outros, ela pode, de acordo com sua gravidade, ser de origem psíquica, hormonal ou gen)tica$

'l)m disso, aparece em mAltiplas situaç#es: em pacientes deprimidos hist)ricos, perversos, hipocondríacos,esqui"o!rênicos etc$, e em nenhum desses casos pressup#e, como tal, a existência de um abuso sexual$20'pós algum tempo de tratamento, a moça evocou vagas lembranças de toques praticados por seu pai, semmaiores detalhes$ 1bcecado com a identi!icação de uma prova tangível do abuso sexual, o psiquiatraresolveu então administrar > sua paciente um soro da verdade Isódio amitalJ para !a"er emergirem aslembranças recalcadas$ 4ob o e!eito da droga, a moça contou cenas extravagantes: em sua in!&ncia, o pai aviolentava, obrigavaa a lhe !a"er !elaç#es e a agir da mesma !orma com o cachorro da !amília$ 'rrebatados

 por seu delírio interpretativo, os dois terapeutas a!irmaram então que essas lembranças reencontradasexplicavam a aversão da paciente por queijo derretido, bananas e maionese$ ' recusa desses tr@s alimentos,di"iam eles, era o sintoma patente do abuso sexual$

*ressionada pelos terapeutas, a moça con!essou a ;verdade< > sua mãe$ Esta obteve o divórcio e a guarda dos!ilhos, enquanto o pai, acabrunhado com essas ;revelaç#es< e com a boataria que !a"ia dele um pedó!ilo,

 perdeu seu emprego$ ' história terminou nos tribunais$ 1 pai moveu um processo contra os terapeutas, e seusadvogados, pagos a peso de ouro, convocaram peritos especiali"ados na caça aos manipuladores de !alsaslembranças, conhecidos por haverem destruído a vida de uma boa de"ena de milhares de !amílias norteamericanas$ 8e perícia em contraperícia, o jAri convenceuse, por de" votos contra dois, de que esse homemnunca mantivera relaç#es sexuais com a !ilha$ Esta, no entanto, apoiada pela mãe, con!irmou suasdeclaraç#es$ ?uanto ao tribunal, condenou o psiquiatra e a psicóloga a uma multa pesada por ;negligênciagrave<, praticada ;sem intenção de prejudicar<$

:em inten0/o de pre4udicar1 vemos aí como aprendi"es de !eiticeiro, carregados de diplomas e acossados pelaloucura da experimentação e do abuso sexual, julgaramse autori"ados a penetrar invasivamente noinconsciente de outrem$ 1 resultado dessa história desastrosa, onde se embaralhou ao extremo a di!erençaestabelecida por 9reud entre trauma e !antasia, !oi que nem a paciente nem seu círculo jamais poderão sabera verdade de sua história$ *or isso, ela continuará a ser vítima de um sistema que se baseia, ele mesmo, numdelírio vitimológico e na banali"ação de uma ideologia cienti!icista$

' segunda história, que remonta > mesma )poca, ) a de uma mulher em quem, com a ajuda do  :),diagnosticouse um distArbio de personalidade mAltipla$ ?uando !oi sexualmente agredida por um homem e

levou o caso aos tribunais, o promotor sustentou que a mulher tinha 0/ personalidades, nenhuma das quaishavia consentido em manter relaç#es sexuais$ 1s juristas e os psiquiatras puseramse então a discutir se asdi!erentes personalidades dessa mulher seriam capa"es de depor sob juramento e se cada uma delas tinha ounão suas próprias aventuras sexuais$ Em /CCT, o homem !oi julgado culpado, pois três das personalidades davítima depuseram contra ele$ 'pós uma contraperícia, entretanto, reali"ouse um novo julgamento$ 'lguns

 psiquiatras a!irmaram, na verdade, que a mulher tinha 3V personalidades, e não 0/$ 'ssim, era preciso saberse essas novas personalidades tamb)m prestariam depoimento no processo$

=asos como esses tornaramse !reqMentes no continente americano$ Eles mostram com clare"a a que!anatismo pode levar a id)ia de que todo ato sexual ) em si um pecado, um estupro, um trauma, e de que todoinconsciente ) uma inst&ncia dissociada, sem dar margem alguma > subjetividade$

'pesar desses desvios, nunca se deve esquecer que !oi tamb)m essa 'm)rica, tão detestada por 9reud, quedeu > psicanálise seus mais belos dias de glória, depois de salvála do na"ismo$ 9oi nos Estados 6nidos, al)m

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disso, que se publicaram os melhores trabalhos sobre a história do !reudismo e sobre o próprio 9reud, comoatestam as obras de *eter 5aL, =ari 4chorse, 7athan +ale, `ose! KaLim erushalmi e muitos outros ao ladodeles$ 7unca nenhum país apaixonouse tanto pela invenção vienense, e nunca se viram mais adeptos dotratamento psíquico$ 4em dAvida, por outro lado, essa paixão não ) estranha > ira anti!reudiana que assim semani!esta no alvorecer do novo s)culo$

*ara encerrar este capítulo, voltemos a 'dol! 5rMnbaum, principal representante norteamericano do

anti!reudismo de inspiração cienti!icista$ Em seu livro, ele acaba tratando com imparcialidade os adeptos dasexologia libertária, !avoráveis aos pedó!ilos, e os puritanos, que redu"em o ato sexual a um abuso$ 7ão paradestacar a estranha proximidade teórica de suas respectivas atitudes, mas para opor a eles a id)ia de quesomente a experimentação, com cálculos e amostragens, permitiria di"er se os sujeitos que são vítimas deabuso na in!&ncia saemse ou não pior, na idade adulta, do que outros que não viveram esse drama$

5rMnbaum nunca se pergunta qual ) a nature"a do malestar dos sujeitos que são vítimas de abusos, cotejadocom o dos que não o são e que, con!orme o caso, podem apresentar sintomas bem mais perturbadores que osresultantes das sevícias sexuais$ Evidentemente, esses tipos de abordagens, nos quais se procura tirar amedida de um estado psíquico em ve" de compreender sua signi!icação especí!ica, não têm nenhum valor

cientí!ico, uma ve" que não levam em conta a realidade do estado do sujeito$

*or)m há algo mais grave: ao adotar uma atitude tida como ;objetiva<, !icase condenado a observar damesma maneira, e sem distinção, os crimes Ipedo!ilia, estuproJ, as transgress#es Iincesto entre adultosJ e assimples neuroses$ ' objetividade cienti!icista, portanto, não passa do anteparo atrás do qual se esconde ogo"o pela abolição de qualquer relação do homem com a %ei e, portanto, com a *roibição$ *orventura umdia será preciso, para satis!a"er essa divagação, encerrar numa gaiola de laboratório um grupo de crianças

 pequenas, acompanhadas por pedó!ilos, e em outra, um segundo grupo, cercado de educadores acima dequalquer suspeitaN 4erá preciso, em seguida, esperar alguns anos para observar as di!erenças e medir osdesvios a !im de concluir, após muitas hesitaç#es, pela existência ou inexistência de traumasN

U1 cientificis1o franc5s

 7a 9rança, a hostilidade cienti!icista contra a psicanálise nunca assumiu a aparência de um con!lito tãoencarniçado$ 8urante a primeira metade do s)culo, os ataques polari"aramse, essencial mente, em torno do;pansexualismo< !reudiano, sempre assimilado a uma decadência ;teut(nica<$ 1s inimigos da nova doutringostavam de chamála de ;ciência boche< e julgavamna incapa de tradu"ir a sutile"a do espírito latino oucartesiano$ 8iante dess situação, alguns pioneiros tentaram ;a!rancesar< a psicanálise$ 9o esse, notadamente,o caso de @douard *ichon, o Anico a dar cert coerência a esse projeto ilusório$ 1pondose ao chauvinismo, osurrealistas B encabeçados por 'ndr) Preton B reivindicaram su ligação com uma concepção rom&ntica do

inconsciente$

Em todo caso, a resistência > psicanálise na 9rança não assumii a !orma exclusiva do cienti!icismo, e essatendência permanecei minoritária a despeito de todos os es!orços dos representantes d psicologia, que não

 perderam uma só oportunidade de denuncia o caráter ;não experimental< do tratamento !reudiano$ ?uantodoutrina, ela nunca !oi recebida na 9rança como uma ideologia d !elicidade, mas como o instrumento críticode todas as tentativ de normali"ação da subjetividade$

8epois da 4egunda 5uerra -undial, a temática do pansexualismo e do !rancesismo caiu em desuso$ 1sdebates que opunham partidários e adversários da psicanálise tomaram ent/o rumo ideológico, político ou

!ilosó!ico$ iolentamente atacada pelo partido comunista entre /C3D e /CGV, a psicanálise tamb)m se tornoualvo da greja católica$ 8epois, a partir dos anos de #$D5(>, as hostilidades cessaram$ 'poiandose nare!lexão de %ouis 'lthusser, os comunistas !ranceses reviram sua posição$ ?uanto > greja católica, !oiobrigada a uma solução conciliatória em virtude da di!usão da prática da análise entre os padres$ *or outrolado, em parte graças ao ensino de Hacques %acan, as principais brigas desenrolaramse no terreno de uma

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 psiquiatria dominada pela clínica psicanalítica e num contexto em que os !ilóso!os e os antropólogos, de4artre a -erleau*ontL e, depois, de %)vi4trauss a 8errida, tomaram a conceituação !reudiana como objetode re!lexão$

*(de assim iniciarse um novo recorte das ciências humanas, que teve como principal desa!io elucidar anoção !reudiana de inconsciente$ *ara os !ilóso!os da existência, a interrogação re!eria se > compatibilidadeentre a determinação inconsciente e a liberdade subjetiva, ao passo que, para os estruturalistas, a questão era

saber se o inconsciente pulsional de 9reud podia ou não ser desvinculado da biologia para entrar no quadrode uma teoria geral dos sistemas simbólicos$

8urante esse período, o Anico livro !rancês comparável ao de 5rMnbaum B e que teve um sucessoconsiderável B !oi publicado por *ierre 8ebraL+it"en:  * escol8stica .reuclia na1G *siquiatra in!antil em)dico hospitalar, 8ebraL+it"en adotou contra a psicanálise uma postura tão !anática quanto a de seuhomólogo norteamericano$ Em nome da ciência, criticou 9reud por haver abandonado o  !ro4eto e asciências da nature"a para se trans!ormar no artí!ice de uma nova hermenêutica, quali!icada de ;escolástica<$=hamando a histeria de doença ;neuronal< e de ;esgar pro!undo<, e a!irmando que a esqui"o!renia redu"ia

se a uma anomalia gen)tica, ele op(s ao inconsciente !reudiano o  pattern dos culturalistas, e > teoria da!antasia a do trauma$ *or !im, a!irmou que os sonhos não têm nenhuma outra signi!icação senão a inventada pelo terapeuta para tapear o paciente$

 7ão satis!eito em chamar 9reud de charlatão, 8ebraL+it"en investiu contra -elanie Ulein Iquali!icada de;louca<J e +en) 4pit"$ E, para explicar as carências a!etivas das crianças abandonadas nos or!anatos, nãohesitou em invocar causas gen)ticas$ %igado > extrema direita !rancesa, e sobretudo > 7ova 8ireita, 8ebraL+it"en en!eitou com uma ;moral< seu discurso cienti!icista: !ustigou, na verdade, tanto o divórcio e o abortoquanto a religião judaico cristã, hostil, a seu ver, > eclosão da verdadeira ciência materialista$ 8aí areivindicação de um ateísmo !urioso, baseado no culto do paganismo$

4e os argumentos de 8ebraL+it"en eram iguais aos dos adeptos do homem cerebral, eles não se assentavamnos mesmos !undamentos políticos$ E, por outro lado, nas mani!estaç#es anti!reudianas mais tardias B as deHean*ierre =hangeux, -arcel 5auchet ou dos cognitivistas !ranceses B, nunca se encontra umes!acelamento tão radical da obra de 9reud$ 7a maioria das ve"es, as críticas voltamse contra a concepção

 psicanalítica do inconsciente$ -as, na !rança, tudo se passa como se !reud, o homem, !osse como queinatacável$

1s partidários do cienti!icismo e da redução do psiquismo ao neurológico, entretanto, têm em comum de

5rMnbaum a =hangeux, passando por 8ebraL+it"en B uma rejeição absoluta da religião$ Esse ateísmo emnada se assemelha, como obviamente conv)m notar, ao de !reud ou dos herdeiros do luminismo$ .ampoucose inspira nos ideais do +enascimento$ =onsiste, antes, numa esp)cie de religião da ciência, que condu" a um!ranco obscurantismo, > !orça de negar aquilo que, no homem, decorre do psíquico, do espiritual, ou doimaginário e da !antasia$ 8aí a cegueira para os desvios irracionais nascidos do discurso cientí!ico$ Encontrase uma boa ilustração dessa atitude no diálogo que op(s =hangeux a +icoeur em /CCD$

8urante a discussão, =hangeux criticou os adeptos protestantes do criacionismo$ 8epois de substituírem ateoria darXiniana pelo relato bíblico do 5ênesis, eles haviam conseguido, durante os anos oitenta, !a"er comque o ensino da teoria da evolução !osse proibido em diversas universidades dos Estados 6nidos$ 1ra, em

sua argumentação, =hangeux op(s a religião > ciência de maneira incrivelmente simplista$ ' seu ver, a primeira seria sempre suspeita de desvios reacionários, e a segunda, sempre investida de um puro ideal de progresso$ 4em se deixar perturbar, +icoeur observoulhe então que o paradoxo, nessa história, era que oscriacionistas haviam recebido o apoio de numerosos cientistas, enquanto teólogos renomados haviamassumido a de!esa do evolucionismo$

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' di!erença entre a situação !rancesa da psicanálise e a norte americana não se explica pelas mentalidadesnem pelos parricularismos, mas pela geopsicandlise,5 isto ), pela din&mica dos modos de implantação do!reudismo que ) própria de cada região do mundo$ ?uanto a esse aspecto, conv)m lembrar que a 9rança ) oAnico país do mundo em que, durante um s)culo, reuniramse as condiç#es necessárias a uma integração

 bemsucedida da psicanálise em todos os setores da vida cultural, tanto pela via psiquiátrica quanto pela viaintelectual$ 7esse campo, portanto, existe uma a0/o .rancesa1 Ela não se prende a nenhuma superioridadenacional, mas a uma experiência particular$

%igada a um grande acontecimento da história humana, essa exce0/o ) teoricamente universali"ável$ E !oi por essa ra"ão, aliás, que p(de servir de modelo de institucionali"ação dos princípios democráticos eminAmeros países$ 4ua origem remonta > +evolução de /FDC, que dotou de legitimidade cientí!ica e jurídica oolhar da ra"ão sobre a loucura, e tamb)m ao caso 8reL!us, que possibilitou o nascimento de uma consci@nciade si da classe intelectual$

4em a +evolução de /FDC, não haveria na 9rança saber psiquiátrico capa" de integrar o caráter universal dadescoberta !reudiana, e, sem o caso 8reL!us, não se teria encontrado uma vanguarda intelectual capa" desustentar uma representação subversiva da id)ia !reudiana de inconsciente$

' esse respeito, podemos indagar se Kannah 'rendt teve ra"ão, em /CV2, ao valori"ar o modelo norteamericano da +evolução contra o modelo !rancês, sublinhando que o primeiro se apoiara numa )tica daliberdade, enquanto o segundo privilegiara a prima"ia da igualdade$ 'inda que o igualitarismo !rancês tenharealmente desembocado no .error, renunciando provisorjamente > instauração da liberdade em bene!ício da!elicidade coletiva do povo, constatase, hoje em dia, que o !amoso modelo norteamericano da prima"ia daliberdade ) seriamente prejudicado tanto pelo puritanismo e pelo liberalismo quanto pelo cienti!icismo ou

 pelo comunjtarjsmo$ 'o contrário, parece que o modelo !rancês, liberto do igualitarismo, ) mais portador deum ideal de liberdade$

@ justamente essa exceção !rancesa que, ao mesmo tempo, incomoda os partidários da abolição do idealrevolucionário e os adeptos do homem comportamental$ .anto uns quanto outros deploram o !amoso ;atraso<!rancês, esperando que, um dia, a ciência do c)rebro consiga en!im derrotar os pretensos arcaísmos dadoutrina !reudiana, mesmo com o risco de ressuscitar as antigas concepç#es do inconsciente Icerebral,hereditário ou automáticoJ$ 7essa deploração expressase a esperança secreta de que a antiga imagem dointelectual B sábio socrático, poeta visionário ou !ilóso!o engajado B possa um dia ser substituída pela doespecialista ou do perito, encarregado de circunscrever a insipide" in!inita de um mundo redu"ido aoobservável$

@ bem possível, aliás, que essa exceção esteja em vias de desaparecer, no exato momento em que ouniversalismo !reudiano do qual ela ) portadora des!a"se nos particularismos de escola$ E sem dAvida será

 preciso, para reavivála, que se reconstitua uma nova Europa do luminismo$

T!RC!IRA PART!

 O <uturo da PSICA8LIS!

A ci5ncia e a psicanálise

1s cientistas sempre consideraram a psicanálise uma hermenêutica$ %onge de construir um modelo docomportamento humano, a doutrina !reudiana seria, a acreditarmos neles, apenas um sistema de interpretação

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liter8ria dos a!etos e dos desejos$ =onviria, portanto, quer excluíla do campo da ciência, junto com as outrasdisciplinas que não dependem da experimentação, quer repensar a organi"ação de todos esses camposIantropologia, sociologia, história, lingMísrica etc$J em !unção de uma ;ciência cognitiva<, a Anica capa" de!a"êlos entrar na categoria de ;ciência verdadeira<$

Esse procedimento cienti!icista pressup#e que existiria uma separação radical entre as chamadas ciências;exatas< e as chamadas ciências ;humanas<$ 's primeiras se baseariam na rejeição do irracional e na

 produção de provas materiais e resultados tangíveis, ao passo que as Altimas, ao contrário, teriam como

 ponto comum não poderem re!utar as hipóteses que prop#em nem materiali"ar os resultados que interpretamcomo provas da validade de um raciocínio$

Essa concepção da ciência leva a aberraç#es$ *rova disso, se necessário, no campo que nos interessa, ) ahistória da comemoração do centenário da psicanálise que se seguiu ao caso -asson$

Em de"embro de /CCG, no momento em que se organi"ava na %ibrarL o! =ongress I%ocJ de ashington umagrande exposição sobre 9reud, prevista desde longa data, uma petição assinada por 30 pesquisadoresindependentes, em sua maioria norteamericanos, !oi endereçada a Hames Pillington, diretor da %1=, a-ichael +oth, curador da exposição, e a Hames Kutson, responsável pelo departamento de manuscritos$ 1ssignatários, dentre os quais !iguravam excelentes autores I*hLllis 5rossurt, Ele -Mhlleitner, Hohannes

+eichmaLr, 7athan +ale etc$J, criticavam o caráter demasiadamente ;institucional< do !uturo catálogo e pleireavam que seus próprios trabalhos !i"essem parte dele$

1ra, para respaldar esse processo coletivo e justi!icado, dois dos organi"adores da petição, cujo !anatismo jáconhecemos B *eter 4Xales e 'dol! 5rMnbaum B, desencadearam uma virulenta campanha na imprensacontra 9reud, acusandoo de haver abusado sexualmente de sua cunhada e de ser culpado de charlatanismo$'ssustados com essa caça >s bruxas, os organi"adores da exposição pre!eriram adiála, muito emborainAmeros jornalistas e intelectuais norteamericanos mani!estassem na imprensa sua hostilidade a essastomadas de posição extremistas$ =onv)m di"er que várias exposiç#es já tinham sido canceladas por ra"#essemelhantes$ 6ma delas, dedicada > vida dos escravos nas antigas !a"endas, !ora julgada ;chocante< pelos!uncionários negros da %1=, preocupados em apagar os vestígios de um passado tido como ;humilhante<$ '

exposição !oi modi!icada e trans!erida par a Piblioteca -artin %uther Uing$ 6ma outra exposição, sobre o Enola Ua", organi"ada pela 4mithsonian nstitution, levantara um concerto de protestos, porque veteranos daaeronáutica haviamna considerado demasiadamente !avorável >s vítimas de Kiroshima$ Ela teve que serreconcebida em torno da id)ia de que a bomba tinha sido um mal necessário$

9oi nesse contexto e por iniciativa de *hilippe 5arnier, psiquiatra e psicanalista !rancês, que se organi"ou, a partir da 9rança, uma outra petição, criticando simultaneamente os ;aiatolás< inquisidores e os organi"adoresda exposição da %1=, incapa"es de impor sua autoridade$ 'ssinada por /DT intelectuais ou praticantes detodos os países, todas as tendências e todas as nacionalidades, essa segunda petição obteve um sucessoexpressivo$0 Ela en!ati"ou a loucura puritana, comunitarista e persecutória que ameaçava tomar conta dosEstados 6nidos, incitando os grupos de pressão a exercerem uma censura sobre as grandes instituiç#es

culturais$

' o!ensiva anti!reudiana de 5rMnbaum e 4Xales teve como resultado marginali"ar os outros signatários e!avorecer o academicismo$ naugurada em outubro de /CCD, a exposição da %1= apresentou, na verdade, um9reud cujas teorias já não tinham nenhuma import&ncia em relação > ciência ou > verdade: ;*ouco meimporta que as id)ias de 9reud sejam verdadeiras ou !alsas<, declarou -ichael +oth$ ;1 importante ) queelas impregnaram toda a nossa cultura e a maneira de compreendermos o mundo atrav)s dos !ilmes, da arte,das histórias em quadrinhos ou da televisão$

 7este !inal do s)culo OO, e em nome de uma clivagem arbitrária instaurada entre ciência e cultura,comemorouse o centenário da psicanálise, portanto, exibindo em ^ashington um 9reud sem cheiro nem

sabor, e limitado aos trabalhos de historiadores majoritariamente angló!onos ICT]J$ Em suma, !abricouseum 9reud per!eitamente correto e con!orme aos c&nones da sociedade depressiva$

 7a mesma )poca, !oram violentamente questionadas as pretensas ;imposturas< veiculadas pelo discurso dasciências humanas$

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Em /CCV, 'lan 4oa, um !ísico norteamericano desejoso de se desvincular do jargão de uma corrente teóricachamada de ;pósmoderna<, redigiu integralmente um texto que questionava, em nome de uma crítica dameta!ísica ocidental, as verdades cientí!icas mais aceitas$ 8epois de conseguir publicar seu artigo na revista:ocial 7ext, ligada a essa corrente, ele revelou > imprensa e aos interessados que se tratara de uma piadadestinada a desmascarar o relativismoG dessas chamadas ciências humanas, que se atreviam a utili"ar aconceituação das ciêncías rigorosas sem nada entender delas$ 1 episódio !oi um esc&ndalo$ 'licerçado nessetriun!o, 4oal publicou na 9rança um livro coredigido por Hean Pricmont, um !ísico belga, no qual chamoude impostores diversos autores !ranceses, dentre eles Hacques %acan, 5illes 8eleu"e, 9)lix 5uattari, -ichel

4erres e outros mais$

 9# /oth (org#8, reud, conflito e cultura, /io de :aneiro, :orge ;ahar, no prelo#

O relativismo é uma atitude crítica !ue consiste em !uestionar sistematicamente todas as verdades aceitas,inclusive os fatos mais irrefut+veis, a fim de lhes opor a idéia de !ue toda verdade seria construída em

 fun"ão de uma cultura dominante# <r%4ima do revisionismo, essa corrente se =nspira, levando3as aoabsurdo, em teses críticas e desconstrutivas, oriundas da filosofia, da antropologia e da psican+lise#

 Alan 7o)al e :ean >ricmont, =mposturas intelectuais, /io de :aneiro, /ecord, ?@@@#

1 interessante nesse livro ) que, ao opor ao relativismo um pretenso discurso cientí!ico racional, os doiscientistas !abricaram um jargão tão incompreensível quanto o que estavam !ustigando$ Executado emquator"e páginas, logo no primeiro capítulo do livro, %acan !oi acusado, mais ainda que os outros

 pensadores, principalmente de !alar de teorias que não conhecia, de importar noç#es cientí!icas!raudulentamente, de exibir uma erudição super!icial e de se compra"er com a manipulação de !rasesdesprovidas de sentido$

*ois bem, para corroborar sua demonstração, 4oal e Pricmont apoiaramse num texto de %acan que )

!rancamente problemático$ .ratase da !amosa con!erência pro!erida em outubro de /CVV, durante o grandesimpósio organi"ado por +ichard -acseL, Eugenio 8onato e +en) 5irard no =entro de Kumanidades da6niversídade Hohns Kopins, e na presença de %ucien 5oldmann, Hacques 8errida, ."vetan .odorov, Hean*ierre ernant etc$ 8iante dessa !esta estruturalista, em que se reuniram pela primeira ve" os melhoresacadêmicos !ranceses e norteamericanos, %acan, angustiado por ter de en!rentar um novo pAblico, havia;composto< um texto de sua lavra$ 4em !alar inglês, en!iara na cabeça a id)ia de redigir Ie sobretudo de

 pro!erirJ sua con!erência na língua de 4haespeare$ *ara ajudálo, deramlhe como assistente um jovem!ilóso!o, 'nthonL ^ilden, que não demoraria a soltar um grito de dor bem no meio do simpósio: ele estavaencarregado de ;tradu"ir< o discurso de um orador ansioso que !alava alternadamente em !rancês e em;inglês<$$$

Em /CFT, essa estranha con!erência !oi reprodu"ida Iem inglêsJ nas atas do =olóquio de Paltimore, sob a!orma de uma pará!rase daquilo que o orador havia enunciado em duas línguas$ .ra"ia um título absurdo:;1! structure as an inmixing o! an otherness prerequisite to anL subject Xhatever< I;8a estrutura comoimisção de uma alteridade que ) pr)requisito de qualquer sujeito<J$F 7ingu)m conhece a versão !rancesaoriginal dessa con!erência e, hoje em dia, nenhum pesquisador s)rio se re!ere a ela$ 7o entanto, ela cont)malgumas belas re!lex#es sobre o tempo, a morte e o espetáculo de Paltimore ao amanhecer$$$

' discussão que se segue ) notável: os interlocutores de %acan criticamno sem piedade, não por suacon!erência, mas por sua obra e, em especial, pela maneira como ele utili"a a lógica e a matemática$ DEm seu livro, 4oal e Pricmont dão a essa con!erência o valor de um exemplo$ =onsiderando o texto

 publicado como expressivo do m)todo Ie portanto, da ;impostura< lacanianaJ, eles o IreJtradu"em do inglês

 para o !rancês para citálo longamente, em seis trechos, > ra"ão de quator"e linhas em cada citação$ Emseguida, declaram que %acan desenvolveu nesse texto ;publicamente, pela primeira ve", suas teses sobre atopologia<$ Erro grosseiro: demasiadamente ocupados em denunciar a impostura, os dois autores nãosouberam escolher nem situar em seu contexto uma obra que não sabem ler nem criticar$

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 7ão apenas %acan interessouse pela topologia desde /CGT, como !oi em /CVG, em sua con!erência sobre ;'ciência e a verdade<, e não em Paltimore, que ele mudou de orientação, expondo pela primeira ve", demaneira in)dita, id)ias que podemos quali!icar de topológicas !ormais Ilógica e matemáticaJ, as ciênciasnaturais I!ísica, biologiaJ e as ciências humanas Isociologia, antropologia, história, psicologia, lingMística e

 psicanáliseJ$

 nteiramente desconhecedores da obra lacaniana, eles a.irmam, erroneamente, &ue a vers/o .rancesa do

texto n/o existe9 evidente &ue n/o conhecem as verses datilogra.adas1 Em sua bibliogra.ia, ali8s,mencionam incorretamente o t-tulo em ingl@s1

 Nessas condi0es, incapazes de avaliar o recurso lacaniano W topologia e W matem8tica, :oRal e Tricmont passam ao largo dos reais impasses e da verdadeira genialidade de Lacan, atribuindo erros a textos .alsose, em seguida, relendo .ragmentos de textos verdadeiros W luz de uma pretensa impostura1 Concluem da-&ue o impostor seria o pro.eta de um +misticismo leigo, ou, melhor ainda, o .undador de uma novareligi/o1 Lendo tal livro, onde a manipula0/o e a ignorIncia dos textos autorizam a .abrica0/o deimposturas imagin8rias, l-cito perguntarmos &uem s/o os verdadeiros impostores1

' esses discursos cienti!icistas, que alimentam os piores excessos de uma normati"ação policialesca do pensamento, ) preciso opor uma imagem completamente di!erente da ciência: não  * =iência, concebidacomo uma abstração dogmática, que ocupa o lugar de 8eus ou de uma teologia repressiva, mas as ciências,organi"adas de maneira rigorosa, ancoradas numa história e concebidas de acordo com os modos de

 produção do saber$ Embora a ciência se de!ina, desde 5alileu, como o conhecimento das leis que regem os processos naturais, posteriormente ela deu origem a mAltiplas abordagens, que têm como ponto comumretirar a análise da realidade humana da antiga dominação das ciências ditas divinas, baseadas na +evelação$8aí a existência, a partir do !im do s)culo O, de uma pluralidade de campos, que !a"em intervirdi!erentes tipos de conhecimento que podemos agrupar em três ramos: as ciências

'ssim como as ciências !ormais repousam na pura especulação, as ciências da nature"a são dotadas de umcomponente !ormal e de um componente experimental$ 's primeiras descobrem seu objeto ao construílo,enquanto as Altimas re!eremse a um objeto externo que corresponde a dados empíricos$ ?uanto >s ciênciashumanas, elas se distinguem das outras duas por se aterem a compreender os comportamentos individuais ecoletivos a partir de três categorias !undamentais: a subjetividade, o simbólico e a signi!icação$ Entretanto,como mostrei a propósito do debate sobre o c)rebro e o pensamento, as ciências humanas oscilam entre duasatitudes$ 6ma tende a eliminar toda !orma de subjetividade, de signi!icação ou de simbólico, e a tomar comoAnico modelo da realidade humana os processos !ísicoquímicos, biológicos ou cognitivos\ a outra, aocontrário, reivindica essa três categorias, pensandoas como estruturas universais$ *or um lado, uma

abordagem do homem como máquina, e por outro, um estudo da complexidade humana que leva emconsideração o corpo biológico e o comportamento subjetivo, quer em termos de intencionalidade ou devivência Ia !enomenologiaJ, quer por interm)dio de uma teoria interpretativa dos processos simbólicosIpsicanálise, antropologiaJ, na qual são postulados mecanismos inconscientes que !uncionam > revelia dossujeitos$

  comum, hoje em dia, falar3se de ci&ncias sociais para designar as ci&ncias humanas e, desse modo,distinguir as ci&ncias do homem, !ue incluem a dimensão da subjetividade, da!uelas !ue a e4cluem#Bambém podemos classificar as ci&ncias em dois ramosC ci&ncias da natureza e ci&ncias da cultura# *er a

esse respeito 9a4 Deber, Essais sur la théorie de la science (FBuibingen, ?@0?8, <aris, <lon, ?@G0#

Essa distinção entre as ciências da nature"a e as ciências do homem não signi!ica que entre os dois conjuntoshaja uma impermeabilidade absoluta$ 'ssim, as ciências naturais !reqMentemente cuidam de quest#es

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individuais, assim como as ciências humanas podem recorrer aos componentes !ormais e experimentais presentes nos outros dois ramos da ciência$

*or outro lado, como vimos a propósito das mitologias cerebrais, nenhuma ciência está protegida dos desviosque caracteri"am o processo irracional$ 7um livro recente, 5illes 5aston 5ranger evidencia muito bem astrês modalidades do irracional que são próprias da história das ciências$

' primeira aparece quando um cientista tem de se con!rontar com o obstáculo constituído por um conjuntode doutrinas que regem o pensamento de uma )poca e que se tornaram dogmáticas, coercitivas ou est)reis$*ara ele, nesse momento, trata se de inovar e contestar um modelo dominante, convocando temas insólitosou submetendo ao olhar da ciência objetos que são esclarecidos de outra maneira$ *or exemplo, oinconsciente, a loucura, a desra"ão, o !eminino, o sagrado, em suma, tudo o que 5eorges Patailie chama de oheterogêneo ou a parte maldita$ 1 recurso ao irracional permite então ressuscitar uma imagem da ra"ão e

 partir novamente para a conquista de uma outra racionalidade$

' segunda modalidade aparece quando um pensamento se !ixa num dogma ou num racionalismo muito

restritivo$ Então ) preciso avançar contra ele mesmo no intuito de atingir resultados mais convincentes$%onge de rejeitar o racional, ela prolonga o ato criador que lhe deu origem, insu!lando nele um vigor novo$

' terceira concerne > adoção, por parte dos cientistas ou criadores, de um modo de pensar deliberadamenteestranho > racionalidade$ 'ssistimos então a uma adesão a ciências !alsas e a atitudes de rejeição sistemáticado saber dominante$ 8aí a valori"ação da magia e do religioso, associada a uma crença no al)m ou no poderde um ego não controlado$

Essas três modalidades do irracional perpassam todas as ciências e, portanto, estão presentes na história da

 psicanálise$ =ontudo, 9reud sempre se manteve dentro dos limites das duas primeiras$ 1 primeiro momentocaracteri"ouse pelo abandono da teoria da sedução$ Entre /DDF e /CTT, 9reud construiu uma nova doutrinada sexualidade$ Em sua relação com 9liess, deparou então com um irracional biol6gico e adotou as teoriasmais extravagantes de sua )poca antes de impor os enquadres de uma outra racionalidade$ 7um segundotempo, de /C0T a #$G5, uma ve" instalada sua doutrina, ele introdu"iu a dAvida no cerne da racionalidade da

 psicanálise a !im de combater o positivismo que a ameaçava por dentro$ Essa segunda modalidade doirracional apareceu, primeiramente, na hipótese da pulsão de morte, que trans!ormou por completo seusistema de pensamento, e depois sob a !orma de um debate em torno da telepatia$ 9reud passou então por umirracional especulativo, que depois o condu"iria a outras inovaç#es$

' noção de pulsão de morte permitiu, no plano clínico, explicar como um sujeito se coloca,inconscientemente e de maneira repetitiva, em situaç#es dolorosas, extremas ou traumati"antes, quereatuali"am para ele experiências vividas anteriormente$ -as, do ponto de vista antropológico, serviutamb)m para de!inir a essência do malestar da civili"ação, que se con!ronta permanentemente com os

 princípios de sua própria destruição$ 1 crime, a barbárie e o genocídio são aros que !a"em parte da própriahumanidade, daquilo que ) característico do homem$ *or estarem inscritos no cerne do gênero humano, não

 podem ser eliminados do !uncionamento singular de cada sujeito nem da coletividade social, nem mesmo emnome de uma pretensa animalidade externa ao homem$ ' !amosa ;besta imunda< de Pertolt Precht não

 prov)m da animalidade, mas do próprio homem que ) habitado unicamente pela !orça da pulsão de morte, amais cega, a mais compulsiva, a mais intrusiva$

Em outras palavras, Eichmann em Herusal)m não !oi um monstro desprovido de humanidade, mas um sujeitocuja normalidade con!inava com a loucura$ 8aí o horror que sentimos ao ouvir di"er que ele condenou osistema na"ista ao mesmo tempo que reivindicava seu juramento de !idelidade a esse mesmo sistema, o qual!e" dele o instrumento consciente e servil de um crime abominável$S Examinando as imagens do processo,

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vemos per!eitamente que, se existe a banalidade do mal, como a!irma Kannah 'rendt, ela ) a expressão nãode um comportamento comum, mas de uma loucura assassina, cuja característica seria o excesso denormalidade$ 7ada ) mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo$ =omo

 bem sabemos, ) nas !amílias aparentemente mais normais, com e!eito, que muitas ve"es surgem oscomportamentos mais loucos, mais criminosos e mais desviantes$

*er o filme de /onH >rauman e EHal 7ival, -e 7pécialiste#

 $annah Arendt, Erchmann em :érusalem# Im relato sobre a banalidade do mal (?@GJ8, 7ão <aulo,1ompanhia das -etras, ?@@@#

4ob esse aspecto, a conceituação !reudiana permite apreender, muito melhor do que !a" 'rendt, a lógica deum Eichmann$SG 'ssim como não ) qualquer um que enlouquece, não ) qualquer um que se torna umexterminador, como sublinha muito bem =laude %an"mann: ;Eichmann certamente não era um pequeno!uncionário$ 4eu"eloantijudaico não tinhalimites$ Elesabiaper!eitamente que estava cometendo um crimeincomensurável$ 4empre se pode di"er que o mal ) banal, que não há nada de mais banal do que trens para

transportar vítimas$ -as os organi"adores e os executores do crime estavam conscientes do caráterextraordinário daquilo que estavam perpetrando$<

' loucura de Eichmann existe > imagem do pensamento na"ista, que utili"a a ciência como um delírio dandolhe ao mesmo tempo a aparência da mais completa normalidade$ 7o universo na"ista, tudo parece coerente,correto, lógico, apropriado, ordeiro e racional$ Em nome da ciência mais elaborada e com a ajuda de umatecnologia das mais modernas, instaurouse a serviço de um genocídio a mais impressionante inversão danorma que se possa imaginar, já que essa própria inversão tornouse a imagem da norma$ 7ão importa queesta estivesse desligada de qualquer re!erência a uma ordem simbólica, pois o essencial, num universo assim,) que a abolição da ra"ão tenhase trans!ormado na norma$ Essa lógica explica os ;tormentos< de Eichmann

e de seus mestres no extermínio: eles estavam muito mais preocupados, em /C33, em racionali"ar o processode aniquilação dos judeus do que em ganhar a guerra contra os 'liados$

 *er :ac!ues -acan, “Kant com 7ade” (?@GJ8, in Escritos, op# clt#, p#LLG3MOJ#

9oi exatamente a essa pulsão de destruição, acentuada pelo domínio t)cnico das !orças da nature"a, que9reud se re!eriu em /C0C, ao encerrar seu livro = mal(estar na cultura com esta !rase premonitória: ;1shomens de hoje levaram tão longe o domínio das !orças da nature"a que, com a ajuda delas, tornouselhes

!ácil exterminar uns aos outros, at) o Altimo$ Eles o sabem muito bem, e ) isso que explica boa parte de suaatual agitação, de sua in!elicidade e de sua angAstia$<

 7a história da psicanálise e de suas origens, classi!icase a telepatia na categoria dos !en(menos provenientesdo ocultismo, isto ), do movimento neoespiritualista que reunia taumaturgos, !ilóso!os, magos e místicos,surgido no !im do s)culo OO numa reação contra o positivismo dos saberes lecionados nas universidadesdos países ocidentais$ .ratavase de uma tentativa que almejava reunir num sincretismo popular, propagado

 por seitas di!erentes, temas comuns >s religi#es ocidentais e orientais$ 1 objetivo do movimento era areabilitação dos chamados saberes ocultos ou recalcados tanto pela assim chamada ciência o!icial quanto

 pelas religi#es instituídas como grejas$

1ra, se a psicanálise realmente se !ormou numa ruptura com os saberes o!iciais, ela extraiu sua !orça não deuma revalori"ação desses saberes ocultos e recalcados, mas do conhecimento racional de !en(menos outroramarginali"ados: por exemplo, o sonho$ *or essa ra"ão, ) compreensível que 9reud não se haja apaixonado

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 pela telepatia $*)&$ Ela constitui uma esp)cie de resíduo que escapa > ciência, e a seu respeito 9reud dialogouora com 9erenc"i, ora com Hones$

(?@8  7extos de ;reud sobre a telepatia e o ocultismo9 +!sican8lise e telepatia, E:T, \3O +:onhos eocultismo, Novas con.er@ncias introdut6rias sobre psican8lise, E:T, xxii, op1 cit1

1pondose ao primeiro, que acreditava !erreamente na existência de uma transmissão de pensamento, elemudou de id)ia sem cessar, acabando por interpretar o !en(meno com os utensílios conceituais da psicanálise: chamouo de ;trans!erência de pensamento< e pretendeu explicálo racionalmente$ 8iante deHones, que lhe exigia renunciar a seu pendor para o ocultismo a !im de salvar a doutrina da acusação decharlatanismo, ele a!irmou sua recusa a ver a psicanálise encerrada numa abordagem demasiadamente

 positivista$

.odas essas oscilaç#es mostram que 9reud aderiu apenas >s duas primeiras modalidades do irracional$ @ queexiste em sua doutrina um pacto original que liga a psicanálise > !iloso!ia do luminismo e, portanto, a umade!inição de um sujeito !undamentado na ra"ão$ -uito di!erente dessa abordagem, a terceira modalidade do

irracional aparece na história da psicanálise, durante a própria vida de 9reud, a partir do momento em queesta retorna a práticas que negam ao mesmo tempo o poder do pacto !undador e a desconstrução desse pacto$Esse !en(meno ) patente, hoje em dia, em algumas escolas de psicoterapia que renunciaram > própria id)iade uma explicação racional do psiquismo$

' nos atermos ao que !oi dito at) aqui, a psicanálise parece ser realmente uma ciência do homem$ E, se 9reudteve a tentação permanente de integrála nas ciências da nature"a, ele nunca deu esse passo, acabando porelaborar um modelo mais especulativo, passível de dar conta de uma conceituação não diretamente ligada >experiência clínica$ ' esse modelo ele deu o nome de metapsicologia, numa re!erência > meta!ísica, ramo da!iloso!ia que trata das coisas especulativas, do ser ou da imortalidade da alma$ 7essa metapsicologia ele

introdu"iu, entre outras coisas, o inconsciente, as puls#es, o recalcamento, o narcisismo, o eu e o isso$

9oi atrav)s dela que a nova doutrina do inconsciente rompeu com a psicologia clássica$ 'ssim, em ve" decriticar 9reud, ora por haver renunciado > ciência, ora por não ter entendido nada da !iloso!ia, não seria mais

 pertinente compreender a maneira como ele tradu"iu a meta!ísica numa metapsicologia e como inventou umsistema interpretativo que permitia desconstruir0o os mitos !undadores da religião monoteísta e da sociedadeocidentalN ;*oderíamos atribuirnos a tare!a<, escreveu ele, ;de decompor, colocandonos nesse ponto devista, os mitos relativos ao paraíso e ao pecado original, ao mal e ao bem, > imortalidade etc$, e de tradu"ir ameta!ísica em metapsicologia$< 6m programa e tanto$

O conceito de desconstru"o foi introduzido por :ac!ues .errida# *er a terceira parte deste livro, capítuloN#

 O homem tr+gico

*or sua ambição metapsicológica, a psicanálise adquire seu status especí!ico$ @ ele que lhe permite opor ohomem tr8gico, verdadeiro cadinho da consciência moderna, ao homem comportamental reles criaturacienti!icista inventada pelos adeptos do c)rebromáquina$ 'o monstro sem nome, !abricado por um cientistamega/omaníaco a psicanálise op#e o destino de ictor 9ranenstein, isto ), a trajetória de um sujeito

 perpassado por seus sonhos e utopias, mas limitado em suas paix#es mortí!eras pela sanção da lei$

8esse homem trágico encontramos a estrutura em @dipo e Kamlet$ 'ssim como o tirano de 4ó!ocles so!reseu destino como um !lagelo que o torna di.erente de si mesmo, o príncipe de 4haespeare o internali"acomo uma imagem repetitiva do mesmo1 .rag)dia do desvelamento, de um lado, drama do recalcamento, do

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outro: ;Kerói antigo<, escreveu Hean 4tarobinsi, ;@dipo simboli"a o universal do inconsciente dis!arçadocomo destino\ herói moderno, Kamlet remete ao nascimento de uma subjetividade culpada, contempor&neade uma )poca em que se des!a" a imagem tradicional do cosmo$<

Hean 4tarobinsi, ;Kamier er 9reud<, in Ernest Hones,  Pamlet et =edzpe I%ondres, /C3DJ, *aris, 5allimard,/CVF$

4e 9reud houvesse continuado tributário de um modelo neuro!isiológico, nunca teria conseguido atuali"ar os

grandes mitos da literatura para construir uma teoria dos comportamentos humanos$ Em outras palavras, sema reinterpretação !reudiana das narrativas !undadoras, @dipo seria apenas um personagem de !icção, e nãoum modelo universal do !uncionamento psíquico: não haveria complexo de @dipo nem organi"ação edzianada !amília ocidental$ 8o mesmo modo, se 9reud não houvesse inventado a pulsão de morte, por certo!icaríamos privados de uma representação trágica dos desa!ios históricos que a consciência moderna tem deen!rentar$ ?uanto > psicologia, ela se haveria perdido no culto hedonista do poder identitário para promoverum sujeito liso e sem rebarbas, inteiramente encerrado num modelo !ísicoquímico$

6m dos grandes argumentos opostos ao sistema !reudiano, em especial por Uarl *opper e seus herdeiros, ) ocaráter não !alseável, não veri!icável ou irre!utável que ele tem$ ncapa" de questionar seus próprios

!undamentos, a psicanálise não atenderia aos crit)rios que permitiriam !a"êla ingressar no mundo dasciências$ Essa análise ) sedutora, mas reducionista$ 7a verdade, baseiase na hipótese de que existe umaoposição irredutível entre a ci@ncia, de um lado, e aspseudoci@ncias, de outro$ 1ra, essa divisão não dá contanem dos laços que unem a ciência ao cienti!icismo, nem dos desvios do irracional, nem do status dos saberesracionais cujos m)todos aparentamse com os da ciência, nem da inclusão da subjetividade no campo dasciências do homem$

 Karl <opper, 1onjectures et refrtatzons, op# cit# A psican+lise é incluída por <opper na mesma categoriada teoria mar4ista da hist%ria e da psicologia individual de Alfred Adler#

Em outras palavras, para compreender o que pode ser a racionalidade em psicanálise, ) preciso nosa!astarmos dessa hipótese e mostrarmos que o crit)rio de cienti!icidade de uma teoria depende tanto de suaaptidão para inventar novos modelos explicativos quanto de sua capacidade permanente de reinterpretar osmodelos antigos em !unção de uma experiência adquirida$

9reud não parou de re!ormular seus próprios conceitos$ 7ão apenas modi!icou sua teoria da sexualidade em!unção de sua experiência clínica B com as mulheres, em particular B, como tamb)m trans!ormou de pontaa ponta sua doutrina, passando da primeira tópica Iconsciente, inconsciente, pr)conscienteJ para a segundaIeu, isso, supereuJ e, posteriormente, !orjando a id)ia da pulsão de morte$

'l)m disso, como sistema de pensamento, a psicanálise deu origem a correntes teóricas distintas umas dasoutras, e que !oram a expressão de consideráveis re!ormulaç#es$ 4e o !reudismo inclui o conjunto dascorrentes2 que recorrem, simultaneamente, a um m)todo clínico centrado no tratamento pela !ala Ia

 psicanáliseJ e a uma teoria que pressup#e uma re!erência comum > sexualidade, ao inconsciente e >trans!erência, as divergências entre as tendências são de import&ncia capital$ Elas assinalam a que ponto ahistória da psicanálise con!undese com a das sucessivas interpretaç#es que se !i"eram da doutrina originalconstruída por 9reud$ E ) justamente por ter dado origem a todos esses componentes que o !reudismo

 produ"iu, ao mesmo tempo, um dogmatismo e as condiç#es de uma crítica desse dogmatismo, umahístoriogra!ia o!icial, apoiada na ideali"ação de suas próprias origens Iidolatria do mestre !undadorJ, e uma

historiogra!ia !ormal, capa" de revisar esse dogma$

 .icion+rio de psican+lise, op- cit-; fi4e1os o recensea1ento de seis grandes escolasM annafreudis1o;Nleinis1o; ego psHchologH psicologia do ego; Independentes; selfpsHchologH psicologia do seli e

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lacanis1o-

*or Altimo, como todas as inovaç#es cientí!icas, ele suscitou resistências, con!litos, ódios e atitudesrevisionistas, 1 anti!reudjsmo mais virulento B de 5rMnbaum a 4Xales B ) tamb)m um produto do!reudismo$ 1 !reudismo clássico B aquele que !oi elaborado em iena por 9reud B repousa, portanto, noduplo modelo de dipo e Kamlet: a trag)dia inconsciente do incesto e do crime se repete no drama daconsciência culpada$ 7o cerne dessa con!iguração, 9reud atribuiu ao patriarcado um lugar !undamental$ -as

sabia que ele estava em declínio$ *or isso, sua teoria da !amília edipiana repousa, como mostrou em /C/0 em7otem e tabu, na id)ia da possível revalori"ação simbólica de uma paternidade irremediavelmente decaída$Em 9reud, o pai, como o ^otan de ^agner, ) uma !igura abolida, !racassada, esmagada pelo poderiocrescente da emancipação !eminina$

8i!erentemente de Pacho!en ou de ^eininger, 9reud nunca recai no anti!eminismo$ %onge de opor o passadoao presente, ou o ;bom patriarcado< aos perigos vindouros de uma chamada !emini"ação ;matriarcal< docorpo social, ele !a" da derrota da tirania paterna uma condição necessária do advento das sociedadesdemocráticas$ E, para ilustrar sua tese, toma emprestado de 8arXin o mito da horda selvagem$ Eis oessencial dele: numa era primitiva, os homens viviam no seio de pequenas hordas, cada qual submetida ao

 poder despótico de um macho que se apropriava das mulheres$ 6m dia, os !ilhos da tribo, rebelandosecontra o pai, puseram !im ao imp)rio da horda selvagem$ 7um ato de violência coletiva, mataram o pai ecomeram seu cadáver$ Entretanto, depois do assassinato, sentiram remorsos, renegaram sua perversidade e,em seguida, inventaram uma nova ordem social, instaurando simultaneamenre a exogamia, a proibição doincesto e o totemismo$ 9oi esse o modelo comum a todas as religi#es, sobretudo ao monoteísmo$

1 complexo de @dipo não ) outra coisa, no di"er de 9reud, senão a expressão de dois desejos recalcadosIdesejo de incesto e desejo de matar o paiJ contidos nos dois tabus característicos do totemismo: a proibiçãodo incesto e a proibição de matar o paitotem$ *or conseguinte, ele ) universal, uma ve" que exprime as duasgrandes proibiç#es !undadoras de todas as sociedades humanas$

8ito de outra maneira, 9reud introdu" duas temáticas na antropologia: a lei moral e a culpa$ Em lugar daorigem, um ato real: o assassinato necessário\ em lugar do horror do incesto, um ato simbólico: ainternali"ação da proibição$ .oda sociedade, portanto, !undamentase num regicídio, mas só se emancipa daanarquia mortí!era quando o assassinato ) acompanhado de uma sanção e de uma reconciliação com aimagem do pai$

'ssim, 7otem e tabu pode ser lido como um iivro mais político do que antropológico$ Ele prop#e, com e!eito,uma teoria do poder democrático centrada em três exigências: ato !undador, instituição da lei e renAncia ao

despotismo$ Esse modelo edipiano clássico !oi contestado, durante o período do entreguerras, por -elanieUlein e a escola inglesa$ R concepção de uma !amília patriarcal, na qual o pai era despojado das marcas desua tirania, sucedeuse a visão leiniana de uma organi"ação !amiliar da qual o pai era como que descartado$Em /C03, Uarl 'braham revisou a teoria !reudiana das !ases e introdu"iu a id)ia de que o sujeito eramoldado por sua relação imaginária com os objetos$ 'briuse assim o caminho para uma inversão radical da

 perspectiva !reudiana$ Em ve" de pensar a evolução do sujeito em !unção da passagem por estágios biológicos, procurouse, antes, mostrar como se organi"ava a atividade !antasística precoce de acordo com ostipos de relaç#es objetais$

*er a esse respeito Eug2ne Enri!uez, .a horda ao Estado (<aris, ?@MJ8, /io de :aneiro, :orge ;ahar,

?@@P#

Em /C23, -elanie Ulein recentrou toda a clínica !reudiana nos próprios objetos, vividos como bons ou maus,!rustrantes ou satis!atórios, persecutórios ou valori"adores etc$ =om esse gesto, !e" a psicanálise das crianças

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sair do campo da educação e retirou a do adulto do campo da neurose$ Em ve" de analisar as crianças porinterm)dio de um dos pais, como !i"era 9reud, e em ve" de se recusar a aceitálos em tratamento antes dosquatro anos de idade, como preconi"ava 'nna 9reud, -elanie Ulein aboliu todas as barreiras que proibiam oacesso direto ao inconsciente in!antil$ *or isso, concebeu o enquadre necessário > expressão verbal e nãoverbal da atividade psíquica das crianças: brinquedos, animais, bolas, bolas de gude, lápis, massa de modelar,móveis de pequenas dimens#es etc$

4e 9reud !oi o primeiro a descobrir no adulto a criança recalcada, -elanie Ulein !oi a primeira a revelar nacriança o que 48 estava recalcado: o bebê$ 1 estudo da relação arcaica com a mãe permitiu, então, apreendermelhor a origem das psicoses, que em geral decorrem de uma !usão destrutiva com o corpo materno, vividocomo um objeto persecutório$ 'o modelo edipiano clássico, portanto, os ldeinianos opuseram um modelo

 pr)edipiano, que remete ao universo angustiante de uma grande simbiose com a mãe: um mundo selvagem,inacessível > lei, entregue não mais ao despotismo paterno, mas > crueldade do caos materno$

'ssim, > imagem do homem trágico !reudiano, >s voltas com o con!lito neurótico e com a necessidade deuma reconciliação com a consciência culpada, sucedeuse a visão do homem trágico leiniano: um sujeito nolimite da loucura e devorado internamente por suas próprias !antasias antes mesmo de poder entrar em

con!lito com o mundo$

' batalha teórica e clínica que op(s os !reudianos clássicos aos leinianos, a partir de /C23, aparentase coma querela entre 'ntigos e -odernos$ 9orjado por 9reud, o modelo edipiano tinha como pano de !undo asociedade vienense do !im do s)culo, atormentada por sua própria agonia, por sua sensualidadeenvergonhada e pelo culto da intemporalidade$G 7ão apenas o pai estava perdendo sua autoridade > medidaque a monarquia dos Kabsburgo desmoronava sob o peso de sua arrog&ncia, como tamb)m o corpo dasmulheres parecia ameaçado pela irrupção de um poderoso desejo de go"o$ E essa inclinação impunha ogrande risco de abolir a ordem antiga, acusada de imobilismo, e !avorecer a instituição do Estado moderno,onde o lugar do pai, símbolo de unidade, desapareceria progressivamente$

5erada pelo declínio dessa !unção paterna, a psicanálise tentou, com 9reud, revalori"ar simbolicamente o paidecaído atrav)s de uma nova teoria da !amília, centrada na !igura de @dipo$ %onge de ser saudosista, ela

 permitia que o sujeito, voltado para sua intimidade, se emancipasse da antiga hierarquia e tivesse acesso >liberdade$

?uanto > re!ormulação ieiniana, teve como cenário, ao contrário, a sociedade inglesa do período entreguerras, cujos ideais re!letiu$ 7esse mundo democrático, onde a emancipação das mulheres estava maisavançada do que em iena, a re!lexão sobre o lugar onipresente da mãe na educação dos !ilhos pareceu mais

importante do que a tentativa vienense de restaurar uma hipot)tica !unção paterna, ainda que !osse ao preçode uma simboli"ação$

4ob esse aspecto, o modelo deiniano !oi mais ;moderno< que o de 9reud e mais voltado para os problemassuscitados pela evolução da sociedade ocidental da segunda metade do s)culo OO$ *or isso teve um impulsoconsiderável no movimento psicanalítico, a ponto de se tornar a grande re!erência da *' tanto na EuropaIcom exceção da 9rançaJ quanto nos países latinoamericanos$ 7a esteira do leinismo, a escola inglesaampliou ainda mais sua in!luência no mundo inteiro, em virtude da qualidade clínica das obras de seus

 principais representantes, sobretudo a de 8onald oods innicott$

4e o leinismo !e" a totalidade da teoria psicanalítica pender para o lado da criança que estaria >s voltas como poderio materno, as teses da sel.ps"cholog", que se desenvolveram essencialmente nos Estados 6nidos,tamb)m empreenderam uma revisão do !reudismo clássico$ @ a Kein" Uohut, psicanalista norteamericanode origem vienense, que devemos a elaboração mais requintada dessas teses, cujos vestígios encontramos em

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diversos outros componentes do !reudismo$ -embro da *', mas revoltado com o conservadorismo dosnotáveis da psicanálise que encerrava o tratamento num ritual cristali"ado, Uohut procurou dar um novovigor ao !reudismo norteamericano, atolado no pragmatismo e no dogma$

Kerdeiro, ao mesmo tempo, da tendência vienense e da re!ormulação deiniana, ele inventou uma terceira viaque consistia em pensar os distArbios da subjetividade em !unção dos problemas relacionais ligados >evolução da sociedade$ Em sua opinião, de !ato, o eu Iou sel.F tinhase trans!ormado no objeto de todos os

investimentos narcísicos, num mundo em que o desmoronamento dos grandes valores patriarcais levava >ideali"ação de uma !igura da individualidade imersa na contemplação de sua imagem$ 8aí a id)ia de que omito de 7arciso era mais apropriado que o de @dipo para explicar o novo malestar da civili"ação$

Uohut constatou que a de!iciência arcaica do sujeito era imputável a uma !alta de a!eição materna que oincapacitava para manter uma relação com o outro$ 4entindose va"io, ele mascarava sua mutilação sob a!achada de um eu de !ancariaV Ium si mesmo ou  sel.]1 4egundo Uohut, o sujeito reconstrói um ;eugrandioso<, estruturado por uma imagoF parental ideali"ada$ 7essa perspectiva, Kamlet trans!ormase numherói narcísico cujo sel. en!raquecido não resiste >s trag)dias de uma sociedade que perdeu todos os seusre!erenciais$

Essa passagem de @dipo a 7arciso deixa claro como a psicanálise dos anos sessenta tentou resolver os problemas de uma subjetividade entregue ao individualismo e >s subst&ncias químicas$ +edu"ido a se mirarna in!elicidade in!inita de sua imagem, o homem trágico dessa psicanálise do sel. !oi a expressão máxima deuma preocupação consigo mesmo que não demoraria a soçobrar no nada de uma sociedade convertida ao

 paradigma da depressão$

8epois de assimilar a revisão leiniana, Hacques %acan tamb)m prop(s uma revisão do modelo edipianoclássico$ Há em /C2D, num c)lebre artigo dedicado aos complexos !amiliares,D ele pintou um quadro sombrio

do universo da !amília ocidental, perpassada, a seu ver, por todas as torpe"as sociais, todas as violênciassubjetivas e todos os con!ormismos$ ' temática do sagrado e o niilismo anti burguês que moviam sua plumanão o impediram de !icar c)tico diante da +evolução de 1utubro$ 'ssim, ele julgou ne!astas as tentativascomunistas de abolição da !amília$ *rovenientes da utopia, elas tra"iam o risco, a seu ver, de condu"ir a umautoritarismo mais grave do que o imposto pela legitimidade !amiliar$

Dinnicott falou, a prop%sito disso, num “falso self, em “.istor"ão do eu em fun"ão do verdadeiro e do falso self (?@GP8, in O ambiente e os processos de matura"ão, <orto Alegre, Artes 9édicas, ?@MJ# Qaterminologia psicanalítica, o eu é uma instncia psí!uica decorrente do inconsciente, ao passo !ue o simesmo (ou self8 é uma representa"ão imagin+ria de si por si mesmo# Em termos fenomenol%gicos, trata3

se de uma instncia da personalidade constituída posteriormente ao eu#

 A imago é urna representa"ão inconsciente !ue permite ao sujeito construir para si uma imagem de suasrela"5es com seus pais#

Rs v)speras da guerra, portanto, ele de!endeu os valores de um conservadorismo esclarecido, inspirado em.ocqueville$ -as apoiouse tamb)m nas teses de 5eorges Pataille e -arcel -auss, ao mesmo tempo queapregoava o culto de um !reudismo subversivo, o Anico capa" de servir de instrumento a uma re!lexão sobreo vínculo social, o imaginário, o sagrado e o sujeito$ 4ob esse aspecto, %acan !oi mais !reudiano do que os

deinianos e os partidários da psicanálise do  sel. =om e!eito, inspirouse na tese edipiana clássica pararevalori"ar a !unção paterna$ Em seguida, !oi ao ler *s estruturas elementares de parentesco,$ de =laude%)vi4trauss, que ele descobriu o instrumento teórico que lhe permitiu pensar essa !unção de maneiraestrutural$ 'poiandose nos princípios da lingMística saussuriana, !e" da linguagem a condição doinconsciente, renunciando > id)ia !reudiana do substrato biológico, herdado do darXinismo$ *or essa

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 perspectiva, elaborou de!initivamente sua nova tópica Isimbólico, imaginário, realJ e sua teoria da nomeação$'ssim, o pai desapossado, humilhado e des!eito que atormentara a consciência ocidental do !im do s)culoressurgiu, com %acan, como investido de um poder de linguagem$ 8e certo modo, ele !oi reconstruído noconceito de 7omedo*ai e limitado a um poder de nomeação, > medida que se decompunha na realidadesocial das novas !ormas de organi"ação !amiliar$

 Qome3do<aiC Esse termo, com o !ual -acan definiu o significante da fun"+o paterna, apareceu pela

 primeira vez como conceito em ?@G, no 7emin+rio, livro J#

%acan !oi, sem sombra de dAvida, o maior teórico do !reudismo da segunda metade do s)culo OO$ 4uaconcepção do homem trágico derivou diretamente da que prevalecia na escola de 9ran!urt$ 8e UojQve, em

 primeiro lugar, e depois de 'dorno e Korheimer,< ele tomou emprestada a temática da crítica do luminismoe da negatividade da história$ *or isso, trouxe para a psicanálise o sopro da tradição !ilosó!ica alemã$ 'trav)sdessa retomada, produ"iuse em solo !rancês um ato de subversão com que 9reud jamais teria sonhado, eleque havia edi!icado sua teoria sobre um modelo biológico recusandose a levar em conta o discurso!ilosó!ico$

'o reinterpretar o modelo edipiano > lu" da antropologia estrutural, %acan !e" da paternidade, comodissemos, uma construção simbólica$ =omo tal, e não em virtude de qualquer essência natural, ela era, emsua opinião, tão universal quanto a !amília$ ?uanto a esse ponto, %acan aproximouse de %)vi4trauss, queescrevera em /CGV: ;' vida !amiliar apresentase praticamente em toda parte nas sociedades humanas,mesmo naquelas em que os costumes sexuais e educativos são muito distantes dos nossos$ 8epois dehaverem a!irmado durante aproximadamente cinqMenta anos que a !amília, tal como conhecida pelassociedades modernas, só podia ser um !en(meno recente, resultado de uma longa e lenta evolução, osantropólogos inclinamse agora para a convicção oposta, ou seja, a de que a !amília, repousando na uniãomais ou menos duradoura e socialmente aprovada entre um homem e uma mulher e seus !ilhos, ) um!en(meno universal, presente em todos os tipos de sociedades$<

' elaboração dos di!erentes modelos de organi"ação do psiquismo mostra claramente que a concepção psicanalítica da !amília e da identidade sexual evoluiu em !unção das trans!ormaç#es da sociedade ocidental$8epois de tentar dar conta de uma triangulação clássica, na qual o pai, já decadente, ainda assim ocupava umlugar preponderante, o modelo !reudiano !oi revisado por -elanie Ulein, que con!eriu > posição materna umlugar determinante$ ?uanto > óptica lacaniana, ela pereni"ou esse reino, atribuindo > mulher um poderin!inito$ 'trav)s de seu go"o, ela seria, segundo %acan, ;sem limites<, e atrav)s da maternidade, exerce sobrea criança e sobre o pai um poder considerável$

' teoria lacaniana remetia, assim, a um ideal segundo o qual a mulher, havendo atingido um grau in!inito deliberdade, pode decidir por si mesma, graças aos anticoncepcionais, sobre a opção de procriar, com ou sem oconsentimento dos homens$ 8aí o poder incontrolável que lhe permite retirar do pai o direito de se apropriardo processo de !iliação$

=omentando, em /CGF, o caso de uma mulher norteamericana que havia recorrido > inseminação arti!icial post mortem, graças ao esperma congelado de seu marido, %acan previu, aliás, que a onipotência maternacorria realmente o risco de vir um dia a ser erigida em !etiche: ;8eixolhes a preocupação de extrapolar: a

 partir do momento em que enveredarmos por esse caminho, !aremos nas mulheres, dentro de centenas deanos, crianças que serão !ilhos diretos dos homens de talento que vivem atualmente, e que, daqui at) lá, terão

sido preciosamente conservados em vidrinhos$ 7essa ocasião, cortaram alguma coisa do pai, e da maneiramais radical: inclusive a palavra$ ' questão agora ) saber como, por que caminho, de que maneira, seinscreverá no psiquismo da criança a palavra do ancestral, do qual a mãe será o Anico representante e o Anicoveículo$ =omo irá ela !a"er !alar o ancestral enlatadoN<

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-odelo universal, a !amília ) uma entidade indestrutível como reali"ação concreta das estruturas de parentesco, isto ), da aliança e da !iliação$ 9onte de normalidade, ela tamb)m está como sabemos graças > psicanálise B na origem de todas as !ormas de patologias psíquicas: psicoses, pervers#es, neuroses etc$'ssim, não há ra"ão para nos inquietarmos com seu !uturo, como !a"em periodicamente os moralistas e osrepresentantes das diversas religi#es que temem que ela seja destruída pela generali"ação do divórcio$ 'sdiversas modalidades de união livre e de !amília recomposta, aliás, mostram que esse modelo se perpetua sob!ormas sempre renovadas$ ?uanto a seu poder de atração, ele ) medido pelo !ato de que quem ) excluídodele pela impossibilidade de contrair matrim(nio Ios homossexuaisJ quer, doravante, ser incluído no modelo

a !im de poder adotar crianças$

 :ac!ues -acan, O 7emindrio, livro N, A rela"ão de objeto (?@0G3?@0L8, /io de :aneiro, :orge ;ahar, ?@@0#

=on!rontada com esse desejo de !ilhos por parte dos casais homossexuais, a psicanálise de hoje tem bastantedi!iculdade de dar respostas coerentes$ ' bem da verdade, enquanto a homossexualidade era considerada umadegeneração, a questão de sua integração na norma não !oi seriamente considerada$ =ontudo, a partir domomento em que 9reud se recusou a classi!icála entre as taras !a"endo dela uma predisposição sexualderivada da bissexualidade, !oi aberto o caminho para todas as interrogaç#es que surgem hoje em dia$

1s herdeiros de 9reud, no entanto, sobretudo Ernest Hones e 'nna 9reud, tenderam a considerála uma patologia sexual passível de ser ;curada< por uma análise bem condu"ida$ 8aí a vã tentativa de trans!ormaros homossexuais em heterossexuais, que teve como saldo um !racasso contundente$ ' despeito dessaexperiência, obedecendo a uma decisão de /C0/, a direção da *' sempre se recusou a aceitar o!icialmente

 praticantes homossexuais nas !ileiras das sociedades que a comp#em$ Em !unção disso, atrasouse emrelação > evolução dos costumes e das leis, assim como em relação >s outras associaç#es psicanalíticasIsobretudo lacanianasJ que há muito tempo rejeitam qualquer !orma de discriminação$

4e a homossexualidade já não ) encarada como uma perversão sexual, em parte graças > psicanálise, há todasas ra"#es para achar que outros ;anormais< não tardarão a encarnar o ideal transgressivo do homem tr8gico’5

tomando o lugar dos que tiverem sido incluídos na norma: os celibatários sem !ilhos Ihomossexuais ouheterossexuaisJ, os "oó!ilos, os homossexuais ;a!eminados<, os libertinos, as prostitutas ou prostitutos, ostravestis, os transexuais etc$

 7obre esse assunto, ver 9ichel oucault, “Os anormais”, in /esumo dos cursos###, op# cir# E .idier Eribon, /efie4ions sur la !uestion gaH, <aris, aHard, ?@@@#

*ara al)m da reivindicação legítima dos homossexuais de terem acesso > paternidade ou > maternidadeatrav)s da adoção, cabe nos perguntar, portanto, quem serão os =harlus e os 1scar ^ilde de amanhã$

O universal, a diferen"a, a e4clusão

4e os modelos elaborados pela psicanálise evoluem em !unção da sociedade em que se mani!estam, tamb)mse mostram de!asados em relação a ela$ 7a maioria dos países em que a psicanálise se implantou, e adespeito do progresso ligado aos movimentos de emancipação, as mulheres, por exemplo, ainda são vítimasde desigualdade, in!eriori"adas e pouco representadas nas altas es!eras do poder político, particularmente na9rança$ 'l)m disso, o direito > contracepção e ao aborto ) !reqMentemente menospre"ado pelosrepresentantes do integrismo moral e religioso$ Entretanto, nos países onde a psicanálise não se implantou, asituação ) pior, uma ve" que as mulheres Icomo, de resto, os homossexuaisJ nem sequer são consideradas

sujeitos plenos$

Há tive oportunidade de mostrar que as condiç#es invariantes necessáriasS > implantação das id)ias !reudianase de um movimento psicanalítico são, por um lado, a constituição de um saber psiquiátrico, isto ), de umolhar para a loucura que seja capa" de conceituar a id)ia de doença mental em detrimento de qualquer id)ia

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de possessão de origem divina, e, por outro, a existência de um estado de direito passível de garantir a livretransmissão do saber$

1ra, como mostrou o surgimento do paradigma da histeria no !im do s)culo OO, essa conceituação passou por uma nova apreensão do corpo das mulheres$ Em outras palavras, para que a psicanálise existisse e paraque a racionalidade destronasse a id)ia de possessão, !oi necessário que as mulheres se tornassem o vetor deuma contestação das !ormas de dominação que entravavam sua subjetividade$ 4empre houve o !eminino naorigem da psicanálise, e tudo aconteceu como se a emergência desse !eminino !osse necessária para a

reali"ação de uma trans!ormação da subjetividade universal$

Em geral, ) a ausência de um desses elementos Iconstituição de um saber psiquiátrico ou estado de direitoJ,ou de ambos ao mesmo tempo, e não as ;mentalidades<, que explica a não implantação ou odesaparecimento do !reudismo tanto nos países de ditadura totalitária Ina"ismofcomunismoJ como nasregi#es do mundo marcadas pelo islamismo e por uma organi"ação comunitária ainda tribal$

 7esse aspecto, conv)m sublinhar que as ditaduras militares não impediram a expansão da psicanálise na'm)rica %atina Isobretudo no Prasil e na 'rgentinaJ$ sso se prende > nature"a delas, que !oi di!erente da dosdois sistemas totalitários que a destruíram na Europa$ 1s regimes de tipo ;caudilhista< não !oram;exterminadores<$ 7ão eliminaram o !reudismo como ;ciência judaica<, como aconteceu com o na"ismoentre /C22 e /C33, nem como ;ciência burguesa<, como aconteceu como comunismo entre /C3G e /CDC$ 1s

regimes militares perseguiram adversários e massacraram populaç#es civis, mas não procuraram destruirnenhuma ciência como tal$

'ssim, podemos enunciar a hipótese de que, para !a"er a psicanálise desaparecer inteiramente de uma regiãodo mundo, ou para impedila de se implantar nos lugares onde ela não existe, ) preciso eliminála, como seextermina uma raça, um povo, uma classe ou um !lagelo, ou então perpetuar modalidades de interpretação do

 psiquismo anteriores ao surgimento da medicina cientí!ica I!eitiçaria, medicinas tradicionais, in!luênciareligiosa etc$J$ 7o primeiro caso, a erradicação ) destrutiva, porque ) em nome de uma di!erença que se aboleuma outra di!erença, ao passo que, no segundo, ) simplesmente regressiva, porque ) invocando a relatividadedas culturas que se pretende redu"ir o gênero humano a uma soma de particularismos$ Erigida > condição de

!etiche, a di!erença tornase então !onte de exclusão$ E ) justamente esse !en(meno de !etichi"ação dasdi!erenças que tende a condu"ir ao desaparecimento da psicanálise nos países onde se haviam reunido, cemanos atrás, todas as condiç#es de uma implantação per!eitamente bemsucedida, em especial os Estados6nidos$

' constatação da existência de uma identidade sexual Igênero ou genderF desvinculada da realidade org&nicaou !isicoquímica não impede que a anatomia, a !isiologia e o !uncionamento hormonal dos homens emulheres sejam distintos$ ' di!erença biológica existe e deve ser levada em conta, mas nem toda ela o )$ Essadi!erença tamb)m não impede que cada sujeito seja sempre di.erente Iou outroF na relação que mant)m comum outro ou com sua própria identidade$ @ que todo ser humano parte mascarado para sua relação com seu

semelhante, de ve" que ) perpassado pelo desejo de se !a"er amar ou reconhecer$ Existe, pois, uma in!inidadede di!erenças que, consideradas em conjunto, são constitutivas do universal do gênero humano$

@ por isso que, numa sociedade igualitárta, a lei tem que ser a mesma para todos os sujeitos, seja qual !or acultura, a religião ou a identidade a que cada um, por outro lado, deseja vincularse$ ?uanto > proibição, isto)$ > internali"ação subjetiva de uma lei simbólica Icomo a proibição do incesto, por exemploJ, ela )absolutamente necessária ao !uncionamento de todas as sociedades humanas$

Em outras palavras, ) tão err(neo valori"ar o universalismo em nome da recusa da di!erença quanto rejeitar o

universalismo em nome da valori"ação arbitrária de uma Anica di!erença: a anatomia, por exemplo, mastamb)m o gênero, a cor da pele, a idade, a identidade etc$ ' re!erência a princípios abstratos Ios conceitos, alei, o simbólico, as estruturas, os invariantes etc$J ) tão necessária > humanidade inteira quanto aconsideração da realidade concreta das vidas concretas: a sexualidade, a vida privada, a situação social, amis)ria econ(mica, a doença, a solidão, a loucura, o so!rimento psíquico etc$

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1ra, aquilo a que estamos assistindo, com a !etichi"ação atual de todas as dz.rren0as  B  :) iv,inconscientes dissociados, personalidades mAltiplas, polari"ação a respeito do trauma sexual, política sexual

 baseada em categorias simplistas, sujeito psíquico redu"ido a um neur(nio ou > dependência de um vício etc$ B, ) uma o!ensiva que visa a substituir o duplo ideal do universal e do di!erente por uma di!erenciação emcadeia na qual todos se trans!ormam em vítima expiatória de um erro sempre imputável a um outro1(R8

(R8 Qoma confer&ncia proferida em mar"o de ?@@@, Alain in)iel)raut resumiu essa situa"ão numa

 f%rmula cativanteC “7ofro, logo acuso#”

nventada nos Estados 6nidos há trinta e cinco anos, essa !etichi"ação da di!erença levou a uma política dediscrimina0/o positiva Aa..irmatzve actionF, que consiste em dar legalmente um tratamento pre!erencial a!avor dos grupos humanos que são vítimas de injustiças: os negros, os hisp&nicos, as mulheres, oshomossexuais e outros$ Ela se assenta na id)ia de que, para reparar uma desigualdade, conv)m valori"ar umadi!erença em relação a outra di!erença$ 1ra, a aplicação desse princípio, que vimos em ação a propósito docaso da exposição sobre 9reud na %ibrarL o! =ongress, ) cada ve" mais contestada hoje em dia, uma ve" quenão !avoreceu a igualdade$ E ) !ácil compreender por quê: uma discriminação nunca pode ser  positiva, poissempre pressup#e a existência de uma outra vítima que serve de bode expiatório por sua própria di!erença$3

 7as sociedades europ)ias, onde o multiculturalismo não tem a mesma import&ncia que nos Estados 6nidos,na 'ustrália ou no =anadá, ) essencialmente com as lutas das mulheres que a reivindicação de igualdadecorre o risco de se trans!ormar num culto da di!erença, na reivindicação de uma discrimina0/o positiva, e por!im, num verdadeiro processo de exclusão em cadeia$

R exclusão do homem do exercício da paternidade corresponde, por outro para o psíquico$ ' perguntadecisiva ): conseguiremos I$$$J reconlado, a exigência da presença masculina nas tare!as dom)sticas ou ciliaros homens com os sacri!ícios que continuarão a ser necessários na prestação de cuidados aos bebês$ E, domesmo modo, > exclusão e recompensálos por elesN

1 autor mostra como o racismo se alimenta das ambivalências entre um pensamento rígido de inclusão e um pensamento igualmente rígido da di!erença do outro como di!erente corresponde uma intensa vontade dereinventar categorias, tipologias ou patterns que permitam distinguir os ;bons< e os ;maus< sujeitos, em!unção de uma nova ;psicologia dos povos<, das etnias e dos gêneros$

' redução do pensamento a um mecanismo cerebral !avorece, evidentemente, a proli!eração desses modos de!etichi"ação: o cienti!icismo condu" ao etnicismo do mesmíssimo modo que o universalismo rígido leva aocomunitarismo$ @ que nada ) mais destrutivo para o sujeito do que ser redu"ido a seu sistema !ísicoquímico, e nada ) mais humilhante para esse mesmo sujeito do que ver seu so!rimento íntimo rebaixado >

!alsa di!erença de uma origem ;)tnica<$

4e a serotonina viesse a ser considerada a causa Anica do suicídio, se o ato sexual passasse a ser assimilado aum estupro, se o migrante dos arrabaldes passasse a não ser encarado senão como a soma de seus;amuletos<, e se, por !im, a imagem do homem tr8gico !osse redu"ida ao exercício mec&nico das !unç#esvitais, ao mesmo tempo que * -ulher, tornada onipotente, se identi!icasse mais com sua di!erença do quecom um sujeito completo, nossas sociedades estariam >s v)speras de mergulhar numa nova barbárie, tãotemível quanto a que 9reud denunciou em /C0F ao se conscienti"ar de que a civili"ação ocidental não estavaem condiç#es de impor > humanidade a limitação de suas puls#es destrutivas: ;' princípio, podíamos

 pensar<, escreveu ele, ;que o essencial era a conquista da nature"a no intuito de adquirir recursos vitais, e

que os perigos que ameaçavam a civili"ação seriam eliminados por uma distribuição apropriada dos bensassim conquistados entre os homens$

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=rítica das instituiç#es psicanalíticas

 nventada por judeus do luminismo herdeiros da Kasalah, a psicanálise pretendeu, desde sua origem,tornarse um grande movimento de libertação$ 'os olhos de seus !undadores, reunidos na 4ociedade*sicológica das ?uartas9eiras, a exploração do inconsciente deveria permitir que a humanidade aplacasseseus so!rimentos$ =omo revolução do sentido íntimo, a psicanálise tinha como vocação primária, por  .im,modi!icar o homem mostrando que ;1 eu ) outro<$ 'ssim ) que, desde muito cedo, ela pretendeu dotarse de

uma instituição capa" de tradu"ir numa política sua concepção do mundo$

Esta remetia, por outro lado, > sociedade em que viviam os primeiros !reudianos: um imp)rio em declínio,mas cujas minorias eram protegidas por uma autoridade imperial que as reunia a despeito de suas di!erenças,impedindo que elas desintegrassem umas >s outras$ 9oi nesse modelo que 9reud e 9erenc"i se apoiaram, em/C/T, para !undar a nternational *sLchoanalLtical 'ssociation I*'J$ 9reud recusouse a assumir sua direção

 para encarnar nela !igura socrática de um mestre sem mando$

mpulsionada por -ax Eitingon, inicialmente, e depois por Ernest Hones, a *' trans!ormouse, no entreguerras, numa organi"ação centrali"ada dotada de regras que almejavam normati"ar a análise e a!astar da

!ormação os analistas ;selvagens<, transgressivos ou julgados carismáticos demais para praticarconvenientemente a psicanálise$ 9oram igualmente proibidos os chamados costumes ;incestuosos<: proibição de que os praticantes analisassem membros de sua própria !amília ou mantivessem relaç#es sexuaiscom seus pacientes$

Essa pro!issionali"ação do o!ício de psicanalista, necessária > expansão mundial do !reudismo, caminhou pari passu com a supressão da !igura do mestre$ 7ão apenas o movimento psicanalítico renunciou a que essaimagem !osse encarnada por um pensador !ora do comum, como rejeitou tamb)m qualquer possibilidade deque um che!e de escola pudesse assemelharse a 9reud$ 1 pai !undador tinha que continuar Anico einimitável$ 4e esse longo processo de normati"ação !oi ben)!ico > psicanálise, teve tamb)m o e!eito detrans!ormar a *' numa máquina de !abricar notáveis$ 'o espírito internacionalista que regeu sua criação

sucedeuse a globali"ação que permite que a *' de hoje exporte para cada país, ;com a chave na mão<, seusmodelos de !ormação, > maneira como as sociedades comerciais instalam em terra estrangeira seus produtose suas !ábricas$

 -as, > !orça de cultivar mais a norma do que a originalidade, e de cultivar a globali"ação em detrimento dointernacionalismo, a psicanálise dos notáveis desertou do terreno do debate político e intelectual$ 7ão soubeaceitar o desa!io da ciência nem as mudanças da sociedade$ Hulgandose intocável, não mais se preocupou adespeito da coragem individual de inAmeros de seus praticantes an(nimos B com a realidade social, com amis)ria, o desemprego, os abusos sexuais e as novas reivindicaç#es provenientes das trans!ormaç#es da!amília patriarcaZ: sobretudo as dos homossexuais, a quem, como sublinhei, ela continua a recusar o direito

de se tornarem psicanalistas$ Em suma, ela se desinteressoti do mundo real para se voltar para suas !antasiasde onipotência$ *or isso, abandonou os jovens clínicos que havia !ormado e que acabaram não maisacreditando no valor das instituiç#es !reudianas$ @ por isso que eles as criticam vivamente e tentam concebernovas instituiç#es, mais adaptadas ao mundo moderno$

Essa capacidade crítica ) exercida mais ou menos em todas as partes do mundo$ -as ) certo que os paíseslatinoamericanos Io Prasil e a 'rgentina, em especialJ estão hoje na vanguarda do renascimento do!reudismo, em virtude, em primeiro lugar, da !orça particular dos departamentos de psicologia instalados nasuniversidades, lugares onde se privilegia o ensino da psicanálise em detrimento das outras disciplinas$=omo em toda parte, a comunidade psicanalítica !rancesa atravessa uma situação di!ícil ligada > crise geraldas sociedades ocidentais: crise econ(mica, crise dos valores democráticos$ crise social, !alta de esperança e

de ilus#es$ 1 desemprego, a queda da renda, a precariedade dos empregos e do trabalho, a vigorosa ascensãodas psicoterapias corporais e dos tratamentos !armacológicos, mais rápidos e menos dispendiosos, levaram auma perda da con!iança no m)todo !reudiano > medida que !oram sendo es!aceladas as grandes instituiç#esde vocação universal$ Em suma, o tecido social e político em que, a partir do !im da 4egunda 5uerra-undial, o !reudismo havia conseguido implantarse na 9rança tornouse menos receptivo > prática clínica

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da psicanálise$

*or conseguinte, as grandes instituiç#es republicanas escola ou órgãos de saAde mental Ihospitais psiquiátricos, centros m)di copsicológico etc$J B passaram a !icar submetidas a imperativos econ(micos pouco compatíveis com a longa duração que caracteri"a a análise !reudiana, ao mesmo tempo que suadesintegração progressiva vai dando lugar a situaç#es incontroláveis de violência e delinqMência$

'pesar de tudo, no entanto, a comunidade psicanalítica !rancesa continua sólida$ ' 9rança conta, de !ato,com cinco mil psicanalistas, distribuídos em mais de vinte associaç#es, ou seja, um índice de DV psicanalistas por cada milhão de habitantes: o mais alto do mundo, > !rente da 'rgentina e da 4uíça$ 1itocentos anovecentos deles, aproximadamente Iincluindo os alunosJ, !a"em parte das duas sociedades !iliadas > *': a4ociedade *sicanalítica de *aris Is**J, de um lado, e a 'ssociação *sicanalítica da 9rança I'*9J, de outro$1s demais psicanalistas, em sua maioria, pertencem a grupos ou associaç#es provenientes da antiga Escola9reudiana de *aris IE9*J, !undada por Hacques %acan em /CV3 e dissolvida durante a vida dele, em /CDT$

1s historiadores do movimento adquiriram o hábito de classi!icar os grupos e os indivíduos em !unção dageração a que eles pertencem$ =onservam duas !ormas de numeração: uma, de orientação internacional, di"respeito aos membros da diáspora !reudiana espalhados pelo mundo, e a outra, de orientação nacional,

 permite inscrever a !iliação trans!erencial de cada praticante Iquem analisou quemJ a partir de um grupo pioneiro Ique, em alguns países, pode ser redu"ido a uma Anica pessoaJ$

 7a 9rança, três geraç#es se sucederam$ ' primeira comp(sse dos que !undaram a 4** em /C0V$ .rês delesdesempenharam nessa sociedade um papel preponderante: -arie Ponaparte, +en) %a!orgue e +udolph%oeXenstein$ Em virtude de sua ami"ade com 9reud, de sua !ama e de sua atividade permanente comotradutora e militante dedicada > causa !reudiana, -arie Ponaparte !oi a principal organi"adora domovimento$ 8iante dela, %a!orgue e %oeXenstein tornaramse os dois didatas principais da 4**$ 9oram elesque, durante o entreguerras, !ormaram a segunda geração !rancesa, em especial aqueles que viriam a ser oslíderes do movimento depois de /C3G: 8aniel %agache, Hacques %acan, 9rançoise 8olto, 4acha 7acht e-aurice Pouvet$

Em seguida veio a terceira geração, nascida entre /C0T e /C2T e !ormada pela segunda$ Ela teve queen!rentar duas cis#es, a primeira em /CG2, em torno da questão da análise leiga, e a segunda de" anos depoisI/CV2J, quando %acan não !oi aceito como didata nas !ileiras da *' em virtude de sua recusa a se submeter>s regras vigentes a respeito da duração das sess#es e da !ormação dos analistas$2 %acan recusavase, de !ato,a se curvar ao imperativo da sessão de GG minutos, e propunha interrompêla por pontuaç#es signi!icativasque dessem um sentido > !ala do paciente$ 'l)m disso, criticava a id)ia da dissolução da trans!erência comomomento terminal da análise$ ' seu ver, a análise era mantida por uma relação trans!erencial que nunca seacabava$ *or Altimo, rejeitou o princípio de uma separação radical entre a chamada análise didática e achamada análise terapêutica Iou pessoalJ: por conseguinte, o candidato deveria !icar livre para escolher seuanalista, sem ser obrigado a recorrer > lista dos titulares autori"ados$ *or outro lado, B e essa !oi, sem

dAvida, a ra"ão pro!unda desse rompimento B, %acan restabeleceu, atrav)s de seu ensino e seu estilo, aimagem !reudiana do mestre socrático numa )poca em que ela era julgada ne!asta pela *', mais preocupadaem !ormar bons pro!issionais da psicanálise do que em reavivar as ambiç#es elitistas que havia no seio domovimento$

(1hama3se an+lise leiga a an+lise praticada por não médicos#8

' segunda cisão, de longe a mais grave, !oi um drama, primeiro para o próprio %acan, que nunca havia pensado em abandonar a legitimidade !reudiana, e depois para toda a terceira geração !rancesa$ 4eusmembros mais brilhantes tinham sido analisados por ele e, de repente, viramse em campos opostos: uns

agrupados na '*9, !iliada > *' em /CVG, outros reunidos na E9* e de!initivamente rejeitados das inst&nciaslegítimas do !reudismo, muito embora se considerassem muito mais !reudianos que seus homólogos da *',trans!ormados em rivais$

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'o contrário de seus colegas norteamericanos ou ingleses, os psicanalistas !ranceses da terceira geração que pertenciam > *' nunca !ormaram uma escola homogênea$ 's grandes correntes do !reudismo internacional,aliás, não se implantaram na 9rança: nem a ego ps"cholog", nem o deinismo, nem o anna!reudismo, nem a

 sel.ps"cholog", nem as teorias pósleinianas de ^il!red +uprecht Pion$ 9oi o lacanismo, portanto, esomente ele, que dividiu em dois pólos, há mais de trinta anos, o campo psicanalítico !rancês: os nãolacanianos I>s ve"es chamados de ;!reudianos ortodoxos<J, de um lado, e os lacanianos, do outro,entendendose que todos têm 9reud como re!erencial$

Essa bipolari"ação do !reudismo !rancês !oi acentuada pela presença de 9rançoise 8olto nas !ileiras da E9*$8otada de um espantoso talento clínico, ela !oi, na 9rança, a !undadora da psicanálise de crianças: uma!igura equivalente > de -elanie Ulein na escola inglesa, embora suas teses sejam mais próximas das posiç#esde 'nna 9reud$ 1ra, em /CV2, durante a segunda cisão, 8olto tamb)m não !oi aceita nas !ileiras da *'$ 'sra"#es invocadas para justi!icar essa recusa !oram o inverso das que tinham sido !ormuladas contra %acan:8olto !oi criticada não por suas sess#es curtas Ias dela eram regulamentaresJ, mas por uma prática da análisedidática demasiadamente carismática e, segundo se di"ia, incompatível com os padr#es da !ormação clássica$

 7a verdade, 8olto herdou a hostilidade que a direção da *' sempre havia mani!estado a respeito de seuanalista, +en) %a!orgue, cuja t)cnica e prática eram consideradas desviantes, isto ), excessivamente

 próximas das de um 9erenc"i ou um +an$

Em conseqMência disso, a partir de /CV3, as duas principais !iguras !rancesas da psicanálise, 9rançoise 8oltoe Hacques %acan, passaram a dispensar seu ensino !ora da *'$ 1s con!litos que dividiram a terceira geraçãotiveram repercuss#es consideráveis nas duas geraç#es seguintes, nascidas entre /C2G e /CGT$ 8urante quin"eanos, de !ato, elas tiveram que suportar as querelas e as !eridas narcísicas de seus brilhantes pares maisvelhos$ 'dmiravamnos por sua obra e por sua competência como didatas, mas tamb)m os viam dilacerarseconstantemente em torno de um mestre onipresente: Hacques %acan$ =ondenado por sua prática, ignorado porsua doutrina e diaboli"ado pelas duas sociedades da *', este começou a ser idolatrado em sua própriaescola$

=omo conseqMência, em cada um dos campos, as duas novas geraç#es B a quarta e a quinta B herdaramuma história con!lituosa, legada tanto pelos companheiros de estrada de %acan, que com !reqMência imitavamo estilo do mestre, como pelos adversários dele, que o detestavam e caricaturavam seu personagem$Enquanto as duas sociedades da *' denunciavam os lacanianos como não !reudianos, os lacanianosencaravam seus colegas da *' como burocratas que haviam traído a psicanálise em prol de uma psicologiaadaptativa a serviço do capitalismo triun!ante$ Em suma, os primeiros viam estes Altimos como aprendi"es de!eiticeiro, adeptos das chamadas sess#es ;de cinco minutos< e incapa"es de empregar um enquadre

 psicanalítico s)rio, ao passo que estes encaravam os primeiros como ortodoxos desintelectuali"ados a serviçode uma psicanálise dita ;americana<$

Essa compartimentali"ação eclodiu no !im da d)cada de /CFT, quando +en) -ajor, um didata da 4** aberto> cultura e > clínica lacanianas, e 4erge %eclaire, lacaniano !iel, mas dedicado a um vasto projeto de;+epAblica 9reudiana<, uniram seus es!orços para que os clínicos das novas geraç#es pudessem !inalmente!reqMentarse !ora de suas respectivas associaç#es$ 9oi a )poca da ;=on!rontação<, que permitiu aos

 praticantes de todas as !acetas criticarem suas instituiç#es e trocarem id)ias, especialmente quanto > maneirade exercer a psicanálise$ @ que, se as duas sociedades da *' eram perpassadas por con!litos a propósito da!ormação dos analistas, a E9* vinha atravessando uma grave crise, provocada pelo !racasso da experiênciado passe$

nventado por %acan em /CVF e posto em prática em /CVC, esse processo de ;passagem< consistia em queum analisando Iou ;passante<J, desejoso de se tornar psicanalista didata, expusesse a outros colegas Iou;passadores<J os elementos de sua história e de sua análise que o haviam condu"ido a desejar ser analista$ 1s

 passadores, por sua ve", expunham diante de um jAri de didatas as motivaç#es do passante, e o jAri tomava a

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decisão de eleger ou rejeitar o candidato$ 1 processo almejava substituir o sistema clássico de !ormação dos psicanalistas por uma verdadeira interrogação sobre o status do didata$

9oi nesse contexto que %acan pro!eriu um dito que !e" correr muita tinta: ;1 psicanalista só se autori"a por simesmo$< =om essa !rase, ele indicava que a passagem ao ser(analista depende de uma experiência subjetivaligada > trans!erência$ 8aí surgir, tanto para o candidato quanto para o didata, uma situação de perda, decastração ou at) de melancolia$

' id)ia de estudar o !uncionamento real dessa !amosa passagem iniciática era notável$ Entretanto, o processodo passe não surtiu o e!eito esperado$ %evou a E9* ao !racasso e, mais tarde, > dissolução, depois de haver

 provocado, em /CVC, uma terceira cisão: a saída de diversos clínicos, dentre eles 9rançois *errier e *iera'ulagnier$ +eunidos num ;?uarto 5rupo<, eles !undaram a 1rgani"ação *sicanalítica de %íngua 9rancesaI1*%9J$

's duas Altimas geraç#es psicanalíticas !rancesas !oram então levadas a pensar em seu !uturo institucionalem novos termos$ 8e maneira geral, os jovens lacanianos sentiamse mais livres em relação aos mestres que

os haviam !ormado do que os membros de ambos os grupos da *'$ Em virtude da dissolução da E9* e da!ragmentação do lacanismo em di!erentes correntes Ipóslacanianos e neolacanianosJ, essa nova geraçãomultiplicou as associaç#es$ %ivre de qualquer relação de submissão aos mestres da terceira geração, hoje ela

 já !e" o luto da instituição ideal ao renunciar > Escola outrora desejada por %acan$

*or outro lado, os analistas das Altimas geraç#es da 4** e da '*9 carregam mais o peso das querelas e dasdecepç#es dos antigos$ 4ão mais submissos aos didatas que os !ormaram e que continuam a ser os líderes desuas associaç#es, muito apegados a suas prerrogativas e seus privil)gios$ *or isso, são mais propensos >revolta quando eclode um con!lito$ 8aí a violência institucional, !reqMentemente mascarada, que perpassa asduas sociedades da *'$

9echada em si mesma há trinta anos e cultivando sua ;di!erença< e seu estetismo, a '*9 não quis abrir suas!ileiras aos numerosos ;alunos< que seguem seus ensinamentos, e que quase já não têm esperança, aoscinqMenta anos de idade, de progredir na hierarquia$

' decepção deles tradu"se num certo escárnio em relação a qualquer poder institucional$ Espalhados porduas de"enas de associaç#es, os antigos lacanianos passaram a se dividir quanto > prática e > !ormação dosanalistas, o que não os impede de manterem relaç#es cordiais entre si$ 4e a maioria dos grupos conservou o

 procedimento do passe, eles o trans!ormaram num ritual sem grande peso$ 7o que concerne > duração das

sess#es, quase todos adotaram a id)ia da pontuação, mas mantendo o princípio da liberdade de escolha doanalista pelo analisando$ .odavia, nenhum deles redu"iu o tempo da sessão a cinco minutos, ou mesmo a umminuto, como !i"era %acan em seus Altimos cinco anos de vida$ Essa prática só ) imitada, hoje em dia, porum nAmero restrito de praticantes, que podem ser contados nos dedos$

*ersiste, entretanto, uma grande di!erença entre a prática clínica dos !reudianos lacanianos e a dos !reudianosque são membros da *' ou aparentados com ela$ 7os primeiros, a duração da sessão não ) !ixa, enquanto,

 para os Altimos, a !ixide" continua a ser obrigatória e !a" parte do enquadre da análise: quarenta e cinco acinqMenta minutos$ 'l)m disso, nas duas componentes !rancesas da *', as hierarquias e os currículosobedecem aos padr#es internacionais$

@ !orçoso constatar que existem, em todos os grupos psicanalíticos !ranceses, bons e maus praticantes$ =ome!eito e esse ) um !en(meno novo hoje em dia B já nenhuma sociedade det)m o monopólio da boa clínica$.odas !oram en!raquecidas pelas cis#es, pelos con!litos e pela esclerose institucional, e todas perderam

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 prestígio a tal ponto que inAmeros terapeutas já não procuram aderir a elas, ou, ao contrário, não hesitam emser membros de duas Iou trêsJ instituiç#es ao mesmo tempo$

' reorgani"ação do campo psicanalítico tradu"iuse, entre /CCV e /CCC, num processo duplo: multiplicaçãodas cis#es, de um lado, e !ederalismo, de outro$ 'ssim, a 'ssociação -undial de *sicanálise I'-*J, criada

 por Hacques'lain -iller, implodiu e deu origem a uma diversidade de movimentos aut(nomos$ 'sinstituiç#es centrali"adoras passaram a ser muito menos dignas de cr)dito do que as unidades pequenas, mais

vivas, mais criativas e sempre prontas a se !ederar, para melhor trocar entre si a experiência clínica e ossaberes$ .estemunho disso !oi a criação em Parcelona, em outubro de /CCD, de um -ovimento de=onvergência I=onvergenciaJ que agrupa !ederativamente 5 associaç#es lacanianas$ 7uma perspectiva maisampla, a iniciativa de criação dos Estados 5erais da *sicanálise por +en) -ajor, em junho de /CCF, ) umaclara indicação de que o !reudismo do ano 0TTT deverá orientarse para um novo modo de entendimento odas redes associativas atendendo >s novas demandas da sociedade civil$ 4em dAvida, assistiremos tamb)m,nos anos vindouros, a um s)rio questionamento do imperialismo classi!icatório do  :) e das ciênciascognitivas, cuja ine!icácia vem começando a ser avaliada enquanto elas estão no auge$

' 9rança não teve de en!rentar a onda de anti!reudismo que tem varrido os Estados 6nidos$ 7em 9reud nem

a psicanálise são atacados com tanta virulência na Europa$ Entretanto, a despeito de sua incontestávelutilidade, as escolas psicanalíticas ainda so!rem de um verdadeiro descr)dito em ra"ão de sua propensão aodogmatismo$

?uanto aos pacientes da d)cada de /CCT, eles não se parecem com os de antigamente$ 8e maneira geral, sãocon!ormes > imagem da sociedade depressiva em que vivem$ mpregnados do niilismo contempor&neo,apresentam distArbios narcísicos ou depressivos e so!rem de solidão e de sintomas de perda de identidade$-uitas ve"es, não tendo energia para se submeterem a tratamentos longos nem o desejo de !a"êlo, têmdi!iculdade de !reqMentar o consultório dos psicanalistas regularmente$

9altam com !acilidade >s sess#es e, >s ve"es, não suportam mais de uma ou duas por semana$ 7a !alta derecursos !inanceiros, tendem a suspender o tratamento assim que constatam uma melhora em seu estado,mesmo que seja para retomálo quando os sintomas reaparecem$ Essa resistência a entrar no dispositivotrans!erencial signi!ica que, se a economia de mercado trata os sujeitos como mercadorias, os pacientestamb)m tendem, por sua ve", a utili"ar a psicanálise como um medicamento, e o analista, como umreceptáculo de seus so!rimentos$

1 modelo do tratamentopadrão B transmitido de geração em geração atrav)s da imagem mítica da poltronae do divã B está agora reservado aos privilegiados$ ' maioria dos jovens terapeutas já não exerce a

 psicanálise em horário integral e tende a substituir o dispositivo clássico por uma ;situação analítica< !ace a!ace, que tem a aparência de uma psicoterapia$ ?uanto a esse aspecto, vale notar que os lacanianos aceitammais !acilmente essas trans!ormaç#es, investidos como são pelos desa!ios doutrinais da psicanálise, enquantoseus colegas da 4** e da '*9 pre!erem dar o nome de ;psicoterapia analítica< a essa nova situação, paramelhor distinguila do modelo do tratamentopadrão, julgado intocável$

4e os pacientes mudaram, os psicanalistas das novas geraç#es tamb)m não se parecem com os mais velhos$' esse respeito, há menos di!erença do que antigamente entre os lacanianos e os outros !reudianos$ .odos!i"eram os mesmos estudos de psicologia e muitos exercem outra atividade que não a de psicanalistas: emgeral, são psicólogos clínicos$ 4eja qual !or o grupo a que pertencem, têm poucos pacientes particulares e

trabalham principalmente em instituiç#es onde utili"am outras t)cnicas: psicodrama, psicoterapia !amiliar ede grupo$ .odos exercem !unç#es nos serviços de saAde: assistência a toxic(manos, prostitutas, delinqMentes,doentes de '84, cuidados paliativos etc$

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1 acesso > pro!issão atrav)s da medicina, da psiquiatria, da !iloso!ia ou dos estudos literários está em !rancaregressão em proi, como eu disse, da psicologia$ ?uanto > cultura histórica e teórica do psicanalista m)dio dehoje, ela ) di!erente da das geraç#es anteriores$ -ais modestos que os mais velhos, os jovens praticantesdesejam, muitas ve"es, adquirir um saber que seus estudos universitários não lhes proporcionaram$ *or isso )que muitos deles são encontrados nos colóquios onde se abordam os grandes problemas atuais: a droga, aemigração, a violência, as novas !ormas de vida em comum e de sexualidade, a morte, a velhice etc$

'pesar de todas as di!iculdades com que se vê con!rontada, essa geração aspira a uma renovação do!reudismo$ -ais próximos que os mais velhos da mis)ria social, com a qual se deparam em campo, os jovenssão tamb)m mais pragmáticos, mais diretos, mais humanistas, mais sensíveis a todas as !ormas de exclusão emais exigentes em suas escolhas )ticas$ 1rientados por seus estudos para a psicologia clínica, eles !i"eram oluto de uma )poca passada em que a !igura do mestre ainda encarnava os ideais de um !reudismo subversivoe elitista$ *or isso, desligaramse das paix#es con!lituosas que marcaram o período anterior$ -enos teóricos emais clínicos, mani!estam uma abertura maior para todas as !ormas de psicoterapia, muito embora adotem a

 psicanálise como modelo de re!erência, mas sem se submeterem > autoridade de uma escola que, como jásabem, nunca poderá substituir a perda do ideal do mestre$ 8aí o risco de um ecletismo que pode condu"ir, senão tomarmos cuidado, a uma pasteuri"ação do rigor teórico e, mais ainda, a um esquecimento douniversalismo !reudiano$

Essa dupla ruptura com o ideal do mestre, de um lado, e com um modelo Anico de instituição, de outro B parece irreversível$ Ela ) a imagem da !ragmentação do campo psicanalítico, que pode desembocar numarecomposição positiva da clínica e da teoria !reudianas e numa consideração das novas di!erenças quecaracteri"am a subjetividade moderna: exílio, depressão, autovitjmi"ação, discriminação do outro,ensimesmamento comunitarista, crise de identidade, aniquilação do pensamento etc$

 7esse sentido, ) compreensível que os dois principais conceitos elaborados por Hacques 8errida a di.t’rancee a desconstru0/o B se tornem tão operantes, para muitos dos praticantes, no malestar atual da psicanálise e

da sociedade$ 1 primeiro lhes permite pensar a id)ia de di!erença sem ceder ao di!erencialismo, e o segundo permite renunciar > imagem imperiosa da mestria, mas sem por isso apagar o ideal plat(nico do mestre$'pesar de !alho, esse ideal continua a ser o Anico a erguer um obstáculo contra a devastação do niilismocontempor&neo$ *ortanto, ) um verdadeiro desastre que a psicanálise deverá poder remediar no !uturo,tecendo, graças ao !ervor das novas geraç#es, novos laços com a !iloso!ia, a psiquiatria e as psicoterapias$-as, para isso, tamb)m será preciso que ela consiga dar um sentido aos con!litos que não deixarão de surgirno próprio cerne da sociedade depressiva$

' imagem bu!a do homem comportamental bem poderá, então, vir a desaparecer, qual uma miragem aosabor das areias do deserto$

 'ac&ues errida escreve di.eren0a ^di.t’ranceZ com a ^em vez da gra.ia .rancesa di..i’renceZ, para indicar&ue a di.eren0a n8o uma divis/o entre dois estados ou dois g@neros, &ue n/o uma presen0a nem umaaus@ncia, mas um movimento &ue est8 inscrito no Hm e ao &ual ele imprime um desvio, uma divis/o, umadesigualdade, um deslocamento1