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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM/SP

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE

CONSUMO

Katia Martins Valente

NARRATIVAS DE VIDA DE EMPREENDEDORAS, COMUNICAÇÃO E

CONSUMO:

análise de palestras inspiracionais do evento Day1 Endeavor

São Paulo

2018

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Katia Martins Valente

NARRATIVAS DE VIDA DE EMPREENDEDORAS, COMUNICAÇÃO E

CONSUMO:

análise de palestras inspiracionais do evento Day1 Endeavor

Tese apresentada à ESPM como requisito

parcial para obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Práticas de Consumo.

Orientador: Prof. Dr. Vander Casaqui.

São Paulo

2018

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Ficha catalográfica elaborada pelo autor por meio do Sistema de Geração Automático da Biblioteca ESPM.

Autorizo a reprodução total ou parcial da minha tese/dissertação Narrativas de vida de empreendedoras, comunicação e consumo: análise de palestras inspiracionais do evento Day1 Endeavor, para fins de estudo e

pesquisa, desde que seja sempre citada a fonte.

Valente, Katia Martins

Narrativas de vida de empreendedoras, comunicação e consumo: análise de palestras inspiracionais do evento Day1 Endeavor / Katia Martins Valente. - São Paulo, 2018.

266 f. : il., color.

Tese (doutorado) – Escola Superior de Propaganda e Marketing, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo, São Paulo, 2018.

Orientador: Vander Casaqui

1. comunicação e consumo. 2. cultura empreendedora. 3. narrativa. 4. gênero. 5. inspiração. I. Casaqui, Vander. II. Escola Superior de Propaganda e Marketing. III. Título.

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Katia Martins Valente

NARRATIVAS DE VIDA DE EMPREENDEDORAS, COMUNICAÇÃO E

CONSUMO:

análise de palestras inspiracionais do evento Day1 Endeavor

Tese apresentada à ESPM como requisito

parcial para obtenção do título de Doutor

em Comunicação e Práticas de Consumo.

Aprovado em de março de 2018.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Presidente: Prof. Dr. Vander Casaqui (PPGCOM-ESPM)

___________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Rosana de Lima Soares (PPGCOM-ECA/USP)

___________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Laura Loguercio Cánepa (PPGCOM-UAM)

___________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Denise Cogo (PPGCOM-ESPM)

___________________________________________________

Membro: Prof.ª Dr.ª Tania Márcia Cezar Hoff (PPGCOM-ESPM)

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Desde 2014, foram muitas horas para leitura de livros, participação em grupos de

discussão, produção de artigos, aulas, viagens para congressos, finais de semana de

dedicação integral à pesquisa e, para completar tudo isto, uma cirurgia de coração que veio

para dificultar estes momentos de estudo e reflexão. Foram, sem dúvida, horas de privações e

falta de contato com a família e os amigos. Contudo, foram enfrentados com coragem, muita

paciência, persistência e amor da sua parte para entender esta etapa. Sei que que neste

doutorado tive e tenho a sua ajuda incondicional, você participou das principais etapas deste

processo e sempre me apoiou em todos os momentos. Então, dedico esta tese para você

Ricardo, que foi e sempre será uma das relações de afeto e carinho que mais me fez e faz bem

nesta vida, um amor que tem me acompanhado por mais de 40 anos e tem feito desta jornada

a essência daquilo que acreditamos, como o amor, a tolerância e o respeito.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família, em especial ao meu esposo Ricardo, que é meu

companheiro de toda uma vida, e aos meus filhos, Marina e Caio, que tiveram paciência de

entender a minha constante ausência durante esses quatro anos. Minha família soube

compreender esse meu momento de vida em que por várias situações e encontros de família

não pude estar presente em função deste desafio maior.

Agradeço ao meu pai Itajahy Feitosa Martins (in memoriam), indivíduo incrível e com

grande sensibilidade humana, que me ensinou o gosto pelo conhecimento e pela criatividade

em seu papel exemplar de pai e artista plástico. Acima de tudo, ele me ensinou a importância

do respeito ao próximo.

À minha mãe, Luiza Spanghero Martins, que sempre representou a figura da mulher

forte, guerreira e dedicada, sendo um exemplo de mulher e mãe, que soube cuidar da criação

dos filhos e da condução do lar.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Vander Casaqui, pela compreensão, paciência e apoio na

realização da presente tese, compartilhando seu conhecimento e experiências para juntos

trilharmos esta jornada. Sem sua ajuda não teria chegado até aqui.

À ESPM, por ter possibilitado e financiado essa pesquisa.

Aos amigos, em especial a Dorama de Miranda Carvalho, que me incentivou na leitura

de livros, indicações de artigos e correções de textos. Seus conselhos, sem dúvida, foram

fundamentais e ajudaram a desvendar alguns conceitos a serem percorridos durante a

pesquisa.

À minha amiga do mestrado, Alice Regina Lanza Brandão Gazel, que muito ajudou na

escolha de autores e correções de artigos durante o curso todo.

A Hadriel G. S. Theodoro pelas dicas e aprendizados sobre as questões de gênero.

À Prof.ª Dr.ª Rosana Soares de Lima e à Prof.ª Dr.ª Denise Cogo, pelas dicas e

sugestões apresentadas na qualificação, que ajudaram a nortear as mudanças apresentadas no

texto final.

Aos amigos da turma D14 (Fred, Susan, Gisele, Dayse e Dora), que enfrentaram

comigo vários desafios para chegarmos até esta etapa final.

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A todos os professores, do PPGCOM e à equipe de apoio da secretaria, Rossana

Soares e Jocileide Marques, que contribuíram com dicas e conselhos de como participar dos

eventos, encontros e créditos de atividades a serem cumpridos.

Ao amigo Francisco Silva Mitraud, por sempre ter se colocado à disposição para

encaminhar artigos, dicas e livros das disciplinas.

Aos amigos conquistados durante o curso, Tânia Zahar Minê, Adriana Lima de

Oliveira, Priscila Tuna Quintal, entre vários outros colegas do PPGCOM, que enfrentam o

desafio de concluir suas dissertações e teses.

Por fim, e, não menos importante, aos meus amigos e familiares presentes em toda

uma jornada de vida, e a Deus, por ter me dado forças para continuar, chegar até aqui, jamais

desistir, ser determinada e dedicada a este projeto de vida. Acredito que sem estes valores

seria impossível concretizar o desafio que é desenvolver uma pesquisa de doutorado.

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“O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo

narrativo, em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da

experiência temporal” (RICOUER, 1994, p. 15).

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RESUMO

O empreendedorismo vem ganhando cada vez mais destaque em nossa sociedade e cultura,

remodelando o entendimento sobre as práticas laborais e pessoais. Nessa conjuntura, voltamos

nossa atenção à figura da mulher empreendedora. No intuito de melhor compreender as

particularidades e especificidades envolvendo a questão, tomamos como objeto empírico da

pesquisa as narrativas autobiográficas de transformação de vida presentes nas palestras de

mulheres empreendedoras no evento Day1, realizado pela organização Endeavor. A estrutura

do Day1 Endeavor é composta por palestras com duração média de 20 minutos, em um palco

com plateia, em que o/a palestrante narra as transformações de vida, sempre centradas nas

práticas da cultura empreendedora, sendo que o evento é filmado e, posteriormente, divulgado

em diferentes plataformas midiáticas. Tendo isso em vista, os objetivos da pesquisa são: 1)

Identificar quais as características do espaço biográfico (ARFUCH, 2010) estão relacionadas

às narrativas do Day1 Endeavor; 2) Analisar quais são as estratégias discursivas da Endeavor

Brasil, ao propagar as narrativas de empreendedoras como histórias de vida exemplares

(BUONNANO, 2011); 3) Compreender quais são as relações entre a noção de “batalhador

brasileiro” (SOUZA, 2010) e as narrativas das empreendedoras no Day1 Endeavor. O quadro

teórico se organiza em três eixos principais: a) estudos de gênero; b) trabalho e

empreendedorismo; c) narrativas de transformação e espaço biográfico. O corpus é composto

pelos vídeos das oito palestras realizadas por empreendedoras no evento Day1 Endeavor. A

metodologia de análise está baseada na Análise do Discurso de linha francesa (ADF),

associada à análise de percurso de vida de Giele e Elder Jr. (1998). De modo geral, os

resultados das análises apontam para o espraiamento da ideologia do neoliberalismo nas

práticas cotidianas das empreendedoras, tanto em nível pessoal quanto profissional; a ênfase

no discurso de autoajuda, visando à convocação em para empreender no sentido amplo; as

narrativas autobiográficas calcadas em um momento de transformação, destacando a

transição, sempre tida como positiva, ao campo do empreendedorismo; a midiatização de suas

narrativas, vista pelo ponto de vista do papel da Endeavor, visa propagar a ideologia da

cultura empreendedora, por meio dos exemplos e histórias de sucesso “inspiradores”.

Palavras-chave: comunicação e consumo; cultura empreendedora; narrativa; gênero e

inspiração.

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ABSTRACT

The entrepreneurship has been increasing its prominence in our society and culture, reshaping

the understanding about the practices and personal labors. At this juncture, we will turn our

attention to the figure of the entrepreneurial woman. In order to comprehend the

particularities and specifications involved, we take as the empirical object of the research the

autobiographical narratives of life transformation presented in the lectures of entrepreneurial

women in the event “Day1”, conducted by Endeavor organization. The structure of Day1

Endeavor is composed of lectures with an average duration of 20 minutes, in a stage with

audience, in which the speaker narrates the transformations of life, always centered on the

practices of the entrepreneurial culture, the event has been filmed and later on published in

different media platforms. In view of this, the aims of this research are: 1) To identify which

characteristics of the biographical space (ARFUCH, 2010) are related to the narratives of

Day1 Endeavor; 2) To analyze what are the discursive strategies of Endeavor Brazil, by

propagating narratives of entrepreneurs as exemplary life histories (BUONNANO, 2011); 3)

To comprehend which are the relationships between the notion of Brazilian hard worker

(SOUZA, 2010) and the narratives of entrepreneurs at Day1 Endeavor. The theoretical

framework is organized in three main axes: a) gender studies; b) work and entrepreneurship;

c) transformation narratives and biographical space. The corpus is composed by videos of the

eight lectures performed by entrepreneurs in the Day1 Endeavor event. The analysis

methodology is based on French Speech Discourse Analysis (ADF), associated with the life

course analysis of Giele and Elder Jr. (1998). In general, the results of the analyzes point to

the spreading of the ideology of neoliberalism in the daily practices of entrepreneurs, both on

a personal and professional level; The emphasis in the discourse of self-help, aiming at the

convocation in to undertake in the broad sense; The autobiographical narratives based on a

moment of transformation, highlighting a transition, always seen as positive, in the field of

entrepreneurship; the mediatization of their narratives, seen from the standpoint of Endeavor's

role, aims to spread the ideology of entrepreneurial culture, through “inspiring” examples and

success stories.

Keywords: communication and consumption; entrepreneurial culture; narrative; gender and

inspiration.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: O sonho grande .................................................................................................... p. 18

Figura 2: Selecionar e potencializar .................................................................................... p. 19

Figura 3: A palestra de Sônia Hess no Day1 .................................................................... p. 103

Figura 4: A apresentação de Luiza Helena Trajano no Day1 ........................................... p. 104

Figura 5: Palestra de Cristina Boner, da Global Web, em 2016 ....................................... p. 105

Figura 6: Divulgação do Day1 Endeavor no pós-evento .................................................. p. 107

Figura 7: E-mail marketing Day1 Endeavor (Caixa de entrada) ...................................... p. 109

Figura 8: E-mail marketing Day1 Endeavor (Conteúdo interno 1) .................................. p. 109

Figura 9: E-mail marketing Day1 Endeavor (Conteúdo interno 2) .................................. p. 110

Figura 10: A colona de Luis Alves ................................................................................... p. 133

Figura 11: Sofia Esteves em sua palestra no Day1 ........................................................... p. 138

Figura 12: “Um pouco de todo mundo” ............................................................................ p. 142

Figura 13: O “Day1” de Sofia ........................................................................................... p. 146

Figura 14: Zica e Leila no Day1: “Os sonhos que eu tenho não têm limite” .................... p. 151

Figura 15: Cobaia .............................................................................................................. p. 154

Figura 16: Cena extraída da palestra de Luiza Helena Trajano no Day1 Endeavor ......... p. 166

Figura 17: Presença dos tios e fundadores do Magazine Luiza na apresentação de Luiza

Helena ............................................................................................................................... p. 169

Figura 18: Cena da carta-credo que reforça a fala de Luiza ............................................. p. 181

Figura 19: Cena de continuidade que apresenta o texto carta-credo do Magazine Luiza

............................................................................................................................................ p. 182

Figura 20: “Loca Linda” ................................................................................................... p. 187

Figura 21: Um fracasso da Endeavor ................................................................................ p. 192

Figura 22: O momento “a-ha” ........................................................................................... p. 194

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Figura 23: A receita ........................................................................................................... p. 202

Figura 24: Um momento de virada ................................................................................... p. 206

Figura 25: As sandálias da “miséria” ................................................................................ p. 219

Figura 26: O grande encontro ........................................................................................... p. 222

Figura 27: A transformação: do discurso à imagem ......................................................... p. 223

Figura 28: Cena da palestra Day1 de Paola Carosella ...................................................... p. 225

Figura 29: Cena extraída do Power Point projetado no telão que fica no palco do Day1

............................................................................................................................................ p. 227

Figura 30: A acolhida ........................................................................................................ p. 235

Figura 31: O Julia .............................................................................................................. p. 237

Figura 32: Os sócios .......................................................................................................... p. 238

Figura 33: A plateia bate palmas ....................................................................................... p. 239

Figura 34: A grande dívida ............................................................................................... p. 241

Figura 35: O Day1 número 16.289 ................................................................................... p. 243

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. p. 15

CAPÍTULO 1. MULHER, TRABALHO E O EMPREENDEDORISMO .................. p. 24

1.1 REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E TRABALHO FEMININO .................................. p. 25

1.2 DADOS SOBRE O TRABALHO FEMININO NO BRASIL ...................................... p. 29

1.3 EMPREENDEDORISMO FEMININO ........................................................................ p. 38

1.4 AÇÕES DE EMPREENDEDORISMO DIRIGIDAS PARA MULHERES ................ p. 42

1.5 A ENDEAVOR E O DAY1 ........................................................................................... p. 45

CAPÍTULO 2. O TRABALHO E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO ....................... p. 49

2.1 QUESTÕES RELATIVAS AO TRABALHO ............................................................. p. 50

2.2 PROCESSOS COMUNICACIONAIS E O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO

.............................................................................................................................................. p. 57

2.3 A FIGURA DO EMPREENDEDOR: REPRESENTAÇÕES DE MUNDO ................ p. 62

2.4 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE CAMPO ..................................................... p. 65

2.5 O CONSUMO NAS NARRATIVAS PRESENTES NO DAY1 ENDEAVOR ........... p. 74

CAPÍTULO 3. NARRATIVA E REPRESENTAÇÕES DE MUNDO ........................ p. 78

3.1 O ESPAÇO BIOGRÁFICO .......................................................................................... p. 81

3.2 ELEMENTOS E CARACTERÍSTICAS DAS NARRATIVAS .................................. p. 85

3.3 NARRATIVAS, ESPETACULARIZAÇÃO E MEMÓRIA ........................................ p. 93

3.4 O SIGNIFICACO DO DAY1 PARA A NARRATIVIZAÇÃO DA VIDA .................. p. 98

3.4.1 Estratégias comunicacionais do evento Day1 Endeavor no processo de

narrativização da vida ........................................................................................... p. 100

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3.4.2 Formatos de divulgação do Day1 Endeavor ................................................ p. 106

CAPITULO 4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DAS

NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE TRANSFORMAÇÃO .......................... p. 114

4.1 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS ............................................................... p. 115

4.2 REFLEXÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA ......... p. 118

4.3 MÉTODO DE ANÁLISE DAS NARRATIVAS NAS TRAJETÓRIAS DE VIDA

............................................................................................................................................ p. 122

5. ANÁLISES .................................................................................................................. p. 125

5.1 ANÁLISE 1: SÔNIA HESS ....................................................................................... p. 125

5.1.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 126

5.1.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 127

5.1.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 136

5.2 ANÁLISE 2: SOFIA ESTEVES ................................................................................. p. 137

5.2.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 137

5.2.2 Análise do vídeo......................................................................................... p. 138

5.2.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 149

5.3 ANÁLISE 3: ZICA E LEILA ..................................................................................... p. 150

5.3.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 151

5.3.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 152

5.3.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 164

5.4 ANÁLISE 4: LUIZA HELENA TRAJANO .............................................................. p. 166

5.4.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 167

5.4.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 167

5.4.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 182

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5.5 ANÁLISE 5: LINDA ROTTENBERG ....................................................................... p. 183

5.5.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 184

5.5.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 185

5.5.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 196

5.6 ANÁLISE 6: JANETE VAZ E SANDRA COSTA .................................................... p. 197

5.6.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 198

5.6.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 198

5.6.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 207

5.7 ANÁLISE 7: ANÁLISE CRISTINA BONER ........................................................... p. 208

5.7.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 210

5.7.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 211

5.7.3 Síntese de análise ....................................................................................... p. 223

5.8 ANÁLISE 8: PAOLA FLORENCIA CAROSELLA ................................................. p. 224

5.8.1 Síntese do vídeo ......................................................................................... p. 225

5.8.2 Análise do vídeo ........................................................................................ p. 226

5.8.3 Síntese da análise ....................................................................................... p. 244

5.9 SÍNTESE GERAL DAS ANÁLISES ......................................................................... p. 245

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... p. 250

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. p. 258

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15

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, observamos a emergência de narrativas que focalizam a

trajetória de vida dos indivíduos, legitimando, além de determinados traços identitários,

aspectos de subjetividade e perfis morais. Elas estão pautadas no modo como as histórias de

vida são transformadas em discursos, que quase sempre se aglutinam nos principais fatos e/ou

realizações, reelaborando o passado para compor o presente. Para Ricoeur (1990, p. 14),

existe uma “narrativização da vida, vista como meio privilegiado de tomada de consciência do

próprio eu”.

Essas dinâmicas se articulam ao contexto sociocultural no qual nos inserimos,

governado pelo que Boltanski e Chiapello (2009) nomeiam de o “novo espírito do

capitalismo”, marcado pelo espraiamento do capitalismo global e pelo enraizamento de suas

ideologias. Estas condicionam o sujeito a agir de acordo as normas e valores do próprio

sistema econômico, levando à sua manutenção. No interior dessas mesmas normas e valores,

atuam processos de convocação – para que se integre à organização reticular do sistema – a

partir dos quais se ratifica um perfil moral de construção do sujeito, principalmente no que se

refere à autoria de vida. Com base na primazia do trabalho, o sujeito passa a ser considerado o

único responsável por seus sucessos e fracassos, tanto no âmbito profissional/público quanto

no particular.

As reflexões de Boltanski e Chiapello (2009) apontam sobretudo às práticas

discursivas, diferentes em cada momento histórico e contexto sociocultural, que imperam

sobre o trabalho, afim de que os discursos se enquadrem no espírito do tempo (MORIN,

2007). Os discursos aí abarcados conduzem a um apagamento dos pontos referenciais

concernentes à área laboral – aos quais o sujeito podia se apagar –, o que ocasiona parcial ou

totalmente a perda do controle sobre o próprio trabalho. Ao mesmo tempo, em um processo

de retroalimentação e impregnados por ideologias hegemônicas, esses discursos promulgam

um tipo de autorrealização (GIDDENS, 2002; MORIN, 2007) que passa necessariamente pelo

sucesso do fazer (trabalho). Mais do que nortear construções identitárias, do eu, guiam os

cursos de vida.

Infiltrando-se pela e na cultura, entendendo que ela “constitui um corpo completo de

normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam

os instintos, orientam as emoções” (MORIN, 2007, p. 15), tais modelos de fazer encontram

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16

nas narrativas uma forma concreta para se propagar. Em suas representações e produções de

sentido, as narrativas autobiográficas ganham destaque. Uma de suas formas mais expressivas

pode ser verificada nas narrativas autobiográficas de transformação de empreendedores, nas

quais há uma acentuada valoração das práticas deste agente social. Estes, por sua vez, passam

a ser tidos como “modelo de cultura” (MORIN, 2007) na contemporaneidade, e, por extensão,

um certo tipo de herói dos nossos dias que é valorizado por agir de modo “exemplar”

(BUONNANO, 2011), que salvaguarda os pilares do capitalismo – ou pelo menos de seu

novo espírito. Esse sujeito comum é alçado a um patamar heroico especialmente por

intermédio de narrativas de vida, impulsionadas fortemente por sua midiatização.

O empreendedor e o empreendedorismo de si advêm de uma construção de mundo que

recompõe o entendimento sobre as atividades laborais, afetando em cheio seus aspectos

valorativos. Prestigia-se uma maneira de conceber o trabalho, alicerçada na crença de um

autor/empreendedor que constrói, individualmente, seu labor e a própria trajetória de vida.

Assentado em um perfil moral de vida e de conduta que se centra em técnicas e

conhecimentos específicos para essa construção de si, o empreendedorismo e a figura mítica e

heroica do empreendedor se convertem em uma vertente hegemônica no que diz respeito ao

sistema capitalista nos dias atuais, refletindo-se no cotidiano.

Tendo isso em vista, a temática de nossa pesquisa se concentra nas narrativas

autobiográficas e de transformação de empreendedores. Efetuando uma delimitação, focamos

nas narrativas extraídas de palestras realizadas pela Endeavor, tida como uma das principais

organizações de fomento ao empreendedorismo no mundo. O evento em que elas ocorrem se

chama Day1 Endeavor, e seu formato muito se assemelha aos TED Talks1. Tendo em sua

disposição um palco, auditório e palestrante, costumam durar cerca de 20 minutos, expondo

empreendedores que narram as transformações de sua vida por meio de uma retórica centrada

no trabalho e, mais particularmente, no empreendedorismo e suas práticas.

O Day1 Endeavor enfatiza as narrativas autobiográficas de transformação de

empreendedores de sucesso, sempre se fundamentando nas trajetórias pessoais de suas

histórias de vida. A característica principal é a recorrência de um formato de evento e de uma

estrutura discursiva que visam destacar o “Day1”, ou seja, o dia decisivo de mudança e

transformação na vida desses empreendedores: o dia em que decidem empreender. Durante o

1 São eventos com que contam com a presença de palestrantes renomados, de vários lugares do mundo e que

apresentam diferentes temáticas socioeconômicas. Disponível em: <http://www.centoequatro.org/blog/voce-

sabe-o-que-e-o-ted>. Acesso em: jun. 2016.

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Day1, as narrativas autobiográficas são orquestradas e coordenadas pela Endeavor, que se

utiliza das “vozes” desses empreendedores para salientar as múltiplas contribuições que o

empreender a si e construir a própria vida podem acarretar, individual e/ou coletivamente. O

ato de empreender se transmuta em uma espécie de renascimento para quem se arrisca a

adentrar em seus domínios.

A partir desse panorama, iremos nos deter nas narrativas de mulheres empreendedoras

no evento Day1 Endeavor. Assim sendo, efetuamos um recorte epistemológico, teórico e

empírico que se volta às questões de gênero envolvidas no campo do empreendedorismo2,

problematizando também as desigualdades entre mulheres e homens que ainda persistem na

atualidade e que reverberam fortemente nas atividades laborais. Por um lado, abordamos as

assimetrias e hierarquias existentes entre mulheres e homens no mercado de trabalho; por

outro, investigamos o ideal empreendedor que paira sobre as mulheres, e como ele é

constituído no Day1 Endeavor. É válido propor aqui, então, uma contextualização mais

detalhada acerca de sua criadora, a Endeavor.

A Endeavor nasceu em 1997, nos Estados Unidos, onde está localizada sua sede. A

iniciativa de criá-la partiu de Linda Rottenberg e Peter Kellner. No Brasil, atua desde o ano

2000, tendo oito escritórios espalhados por diversas regiões do país (Belo Horizonte, Curitiba,

Florianópolis, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, São Paulo), e também atua no

México, na Colômbia, no Peru, no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Espanha, no

Marrocos, no Egito, na África do Sul, na Arábia Saudita, na Turquia, no Líbano, na Jordânia,

em Dubai, na Malásia e na Indonésia.

Com base na marca de mais de 100 empreendedores apoiados e no conhecimento de

uma rede que conta com mais de 300 mentores e especialistas, a organização Endeavor

produz conteúdos que buscam auxiliar empreendedores a transformar seus negócios em

negócios de alto impacto, de sucesso. Ela desenvolve cursos, livros, vídeos e conteúdos em

geral sobre empreendedorismo, sempre direcionados a processos de gestão empresarial de

mercado. Suas ações estão voltadas ao empreendedorismo porque também possui interesses

econômicos envolvidos, por mais que se apresente como uma organização sem fins lucrativos.

Isso significa que ela congrega em sua constituição do fazer a intenção de valorizar a prática

do sujeito que se torna empreendedor. Deste modo, a Endeavor busca divulgar as atividades

de trabalho relacionadas à cultura empreendedora, haja vista que elas fazem parte das

2 O conceito de campo, a partir da perspectiva defendida por Bourdieu (2009), será explicado de forma mais

detalhada no capítulo 2.

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dinâmicas de saber e de poder envolvidas nessa cultura. No site da organização, encontramos

o seguinte texto, que apresenta sua missão:

Multiplicamos empreendedores que transformam o Brasil. Empreendedores

inovadores que sonham grande, com empresas que transformam os setores em que atuam, geram novos empregos e aumentam a competitividade do

país. Empreendedores de alto impacto. A Endeavor existe para multiplicar o

número de empreendedores de alto crescimento e criar um ambiente de negócios para melhorar o Brasil. Por isso, selecionamos e apoiamos os

melhores empreendedores, compartilhamos suas histórias e aprendizados, e

promovemos estudos para entender e direcionar o ecossistema empreendedor no país.3

Hoje, a Endeavor é considerada a organização líder no apoio a empreendedores de alto

impacto ao redor do mundo. Na figura abaixo podemos verificar o que pode ser considerada

sua visão de atuação.

Figura 1: O sonho grande

Fonte: <www.endeavor.org.br>.

Os discursos apresentados no site brasileiro são muito semelhantes aos utilizados em

outros países onde exerce atividades, revelando uma estratégia comunicacional que gira em

torno do empreendedor e dos impactos, sempre a partir de um ponto de vista positivado, que

geram à sociedade. Evidencia-se uma construção discursiva que se centra na formulação e

ratificação de um campo (BOURDIEU, 2009), no qual agentes e agenciadores representam

determinados valores e interesses por meio de um agir específico. No gráfico a seguir,

podemos verificar o modus operandi da Endeavor, como suas ações são planejadas.

3 Disponível em: <www.endeavor.org.br>. Acesso em: dez. 2016.

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Figura 2: Selecionar e potencializar

Fonte: <www.endeavor. org.br>.

A retórica empregada em sua comunicação reforça um universo simbólico onde o

indivíduo se localiza de acordo com o papel social desempenhado. Para Berger e Luckmann

(2002, p. 135), o universo simbólico ordena a história, pois:

(...) localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro. Com relação ao passado, estabelece

uma memória que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na

coletividade. Em relação ao futuro estabelece um quadro de referência comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico

liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade

dotada de sentido, servindo para transcender a finitude da existência individual e conferindo um significado à morte individual. Todos os

membros de uma sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a

um universo que possui um sentido que existia antes deles terem nascido e

continuará a existir depois de morrerem.

Esse universo simbólico permite que o sujeito entenda os signos que circulam na

cultura e na sociedade em que vive; e é a partir deles que pode formular a materialização de

narrativas, incluindo as de vida. Esse processo é muito presente enquanto uma estratégia

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discursiva e midiática empregada pela Endeavor em suas ações, principalmente no evento

Day1 Endeavor. Nele, como já mencionamos, ocorre a valorização de narrativas de inspiração

e autobiográficas de transformação, marcadas pela construção de si a partir do fazer

empreendedor é que utiliza práticas da cultura empreendedora no sentido de ser o

empreendedor de si.

Para Casaqui (2016, p. 06), “empreender a si mesmo, nesse cenário, representa uma

forma de convocação biopolítica, em que o corpo e a mente devem ser passíveis da gestão

para um melhor desempenho, de forma contínua, sem linha de chegada”. Ou seja, no processo

de construção de si, o sujeito nunca está completo; ao contrário, vive em constante

questionamento sobre si e sua construção de vida. Isso se associa a um processo de

narrativização da vida, que intenta nos inspirar.

Essa “inspiração”, todavia, tornou-se um termo um tanto quanto banalizado, pois

“temos a impressão de que todo mundo pensa em si mesmo como uma possível narrativa

inspiracional, como uma trajetória de vida a ser replicada pelo outro” (CASAQUI, 2016, p. 1).

Nos discursos da organização Endeavor, encontramos uma ênfase nessa “inspiração”, como se

pode verificar na Figura 2. Destacamos a frase “inspirar e capacitar os atuais e futuros

empreendedores” como uma forma de persuadir as pessoas para que se engajem no campo do

empreendedorismo.

Estamos falando de narrativas espelhadas em certo modelo de projeto de vida, que está

fortemente centrado em uma sociedade empreendedora. Trata-se de um modo de atualizar os

sistemas que operam o capitalismo (DRUCKER, 2011). Assim, de acordo com Casaqui

(2016, p. 2), “a atitude empreendedora – as características psicológicas e morais atribuídas a

esse sujeito –, sobrepõe-se à sua habilitação técnica para realizar um empreendimento”,

porque as práticas empreendedoras passam a guiar todas as ações da vida cotidiana. É como

se não mais houvesse uma distinção entre vida e labor. O trabalho emerge como um projeto

maior de vida, pautado nas práticas desta cultura empreendedora.

Nesse sentido, a publicização (CASAQUI, 2011) dos ideais, valores, prescrições dos agentes identificados com o empreendedorismo parte de um

modelo comunicacional bem delimitado, cuja função principal é inspirar, ou

seja, transformar o outro, que compõe seu auditório social (BAKHTIN,

1997). Essa transformação desejada seria, em última instância, a promoção do engajamento no capitalismo contemporâneo em sua face mais sedutora

(...) (CASAQUI, 2016, p. 1).

Deste modo, encontramos no Day1 uma construção de evento que, ampla e profundamente

midiatizada, transpassa as relações entre discurso, mídia e sociedade. Isso nos leva a considerar que as

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mídias não podem ser apreendidas de forma dissociada da cultura, das práticas sociais e de

constituição identitária, pois se compõem como um processo que afeta as organizações e os sujeitos

em suas múltiplas relações cotidianas.

Sendo assim, podemos constatar que os discursos institucionais da Endeavor são

meticulosamente orquestrados. Nota-se, por exemplo, o uso de frases de impacto que

convocam o sujeito a participar desse campo enquanto empreendedor e/ou empreendedor de

si. Tais práticas discursivas são extraídas das crenças da gestão empresarial e de negócios –

portanto, de mercado –, que não necessariamente são as melhores formas de construção de

mundo ou a única opção de representação social do agir e do gerir a vida.

Levando tudo isso em consideração, o objeto de nossa pesquisa se estabelece nas

vozes de empreendedoras que participam do Day1 Endeavor, e, mais precisamente, nas

narrativas autobiográficas de transformação que são por elas formuladas – e também

midiatizadas – durante o evento. Elas serão extraídas dos vídeos das palestras divulgados no

site oficial da própria Endeavor e pelo seu canal no YouTube. A problemática, portanto,

encerra esses tópicos e procura compreender de que forma essas narrativas podem ser

entendidas como parte de uma estratégia de difusão da cultura empreendedora no presente,

com o intuito de constatar os significados e papéis a elas atribuídos na construção identitária e

no perfil moral de condução de vida.

O presente estudo articula, por conseguinte, questões relativas ao campo da

comunicação e do consumo implicadas na cultura empreendedora. Isso será discutido

teoricamente e analisado empiricamente, no contexto da sociedade midiatizada, para

pensarmos a respeito do trabalho e suas relações com o sujeito e seu imaginário de mundo.

Interessa-nos estudar a conjuntura comunicacional que se apresenta nas narrativas

autobiográficas de transformação presentes no evento Day1 Endeavor, bem como os

processos de produção, circulação e consumo aí englobados. A pesquisa leva em

consideração, assim, os discursos relacionados ao empreendedorismo e ao mundo do trabalho,

articulados à situação das mulheres empreendedoras neste âmbito. Vamos em direção a uma

melhor compreensão acerca da cultura empreendedora, em suas vinculações com a esfera

produtiva e seu espraiamento pela e na vida cotidiana.

Logo, o objetivo principal se caracteriza por estudar como se constituem as narrativas

autobiográficas de transformação que retratam as trajetórias de vida dessas mulheres

empreendedoras e as transformações ocorridas por intermédio de práticas empreendedoras.

Buscamos analisar de que forma a espetacularização e a exposição da atividade

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empreendedora, presentes no evento Day1 Endeavor, relacionam-se com o contexto do novo

espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) e de um culto da alta

performance (EHRENBERG, 2011). Como objetivos secundários, estabelecemos:

1. Identificar quais as características do espaço biográfico (ARFUCH, 2010) estão

relacionadas às narrativas do Day1 Endeavor;

2. Analisar quais são as estratégias discursivas do Day1 Endeavor que caracterizam

suas narrativas como histórias de vida exemplares (BUONNANO, 2011);

3. Compreender quais são as relações entre a noção de “batalhador brasileiro“

(SOUZA, 2010) e as narrativas das empreendedoras no Day1 Endeavor.

No que concerne à metodologia, pautamo-nos sobretudo na análise das narrativas, a

partir Análise do Discurso de linha francesa (ADF). A ADF se adequa a nossos objetivos uma

vez que se preocupa em compreender não somente o discurso em si, mas também seu

enunciador e relações socioculturais que o perpassa em suas interações comunicacionais. Ao

mesmo tempo, iremos nos valer da análise de percurso de vida, estudada por Giele e Elder Jr.

(1998), dado que ela nos auxilia a decifrar algumas etapas importantes das narrativas

autobiográficas de transformação e as trajetórias de vida que são discursivamente arquitetadas

pelos empreendedores.

Cabe destacar que a dimensão do consumo que perpassa todo o nosso trabalho está

relacionada tanto à noção de consumo simbólico, implicado na produção midiática, quanto

aos significados das práticas de consumo em projetos empreendedores, chegando às narrativas

autobiográficas de transformação e de perfil moral de vida, que identificam a experiência do

consumo em sua constituição. Nesse sentido, estas narrativas são profundamente permeadas

por tais práticas de consumo, de onde emergem seus sentidos e significações.

Sendo assim, nossa pesquisa se adequa aos estudos desenvolvidos no PPGCOM-

ESPM, uma vez que articula as interfaces entre comunicação e consumo. Os estudos e os

grupos de pesquisa do programa se dividem em duas linhas, Processos de recepção e

contextos socioculturais articulados ao consumo e Lógicas da produção e estratégias

midiáticas articuladas ao consumo. Enquadramo-nos nesta última, pois nossa preocupação se

vincula às reflexões e análises de estratégias de produção, desenvolvendo uma pesquisa que

encadeia trabalho, constituição do sujeito, representações de mundo da e na cultura

empreendedora, empreendedorismo, mulheres empreendedoras, comunicação e práticas de

consumo, temáticas que também são pesquisadas pelo orientador desta tese, Prof. Dr. Vander

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Casaqui. Esse estudo passa a ser, portanto, relevante tanto para o campo da comunicação e

quanto do consumo.

Quanto à estrutura de sua organização, realizamos no Capítulo 1, intitulado “Mulher,

trabalho e o empreendedorismo”, uma problematização teórica acerca das questões de gênero

e suas implicações tanto no mercado de trabalho quanto para o empreendedorismo. Em

seguida, no Capítulo 2 o trabalho e o espírito do capitalismo voltamo-nos às discussões

concernentes às transformações contemporâneas globais e suas influências na arquitetura

identitária. A base desse pensamento está fundamentada em uma melhor compreensão do

sistema capitalista e do que se pode nomear de seu “novo espírito” (BOLTANSKI;

CHIAPELLO, 2009. Já no Capítulo 3, com as narrativas e representações de mundo,

estabelecemos considerações acerca da narrativização da experiência humana e sua

importância para as relações sociais. Concentramos nossa atenção em um tipo particular de

narrativa: aquela que se baseia nos “espaços biográficos”. Consideramos, igualmente, como

essas narrativas autobiográficas de transformação passam, por meio de uma (re)significação e

presentificação da memória, a serem amplamente midiatizadas e, consequentemente,

espetacularizadas. Tal entendimento é essencial para a compreensão de como a narrativização

de vida é um ponto-chave ao Day1 Endeavor. No Capítulo 4, apresentamos detalhadamente os

procedimentos metodológicos empregados na pesquisa e os critérios de análise. No capítulo

seguinte, foram desenvolvidas as análises das palestras das mulheres empreendedoras no

Day1 Endeavor. Por último, estão elencadas as considerações finais da presente tese, com

uma síntese mais ampla das análises efetuadas.

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CAPÍTULO 1. MULHER, TRABALHO E O EMPREENDEDORISMO

Propomos neste primeiro capítulo uma discussão teórica sobre a participação e a

inserção mais efetiva da mulher no mercado de trabalho, atravessando problemáticas

associadas a diferenças estruturais de gênero, que afetam a ocupação de cargos, a

remuneração, o âmbito doméstico e até mesmo a reprodução. Voltamo-nos à problematização

de discursos que demarcam a construção desigual de identidades, subjetividades, papéis

sociais e atividades laborais. Nosso foco, portanto, é abordar as questões de gênero e suas

intersecções com o mercado de trabalho, verificando como as relações entre mulheres e

homens ainda não se encontram em um contexto de equidade.

Neste sentido, analisamos como o trabalho carrega significações socioculturais, que,

por sua vez, estão fundamentadas em uma concepção dicotômica dos gêneros. Alocadas em

uma posição subalternizada em tais relações binárias, o trabalho se torna mais um campo de

disputa às mulheres, embates que são de ordem política, social e econômica, influindo

inclusive em seu exercício de cidadania. As lutas por igualdade de direitos e condição de vida

estão aí implicadas: a esfera privada invade a esfera pública, e vice-versa. Assim sendo, não

podemos negar a relevância que as atividades laborais exercem na representação, na

valorização social e nas subjetividades da mulher.

Ao longo do capítulo, traremos alguns apontamentos quantitativos que nos auxiliam a

constatar as disparidades existentes entre os gêneros no mercado de trabalho. São estudos e

pesquisas que retratam os percalços das mulheres neste domínio de suas vidas, bem com as

relações com o nível de escolaridade, as áreas de atuação e a faixa etária. Desse modo,

também discorremos sobre as precariedades que acometem o que podemos nomear de

“trabalho feminino” e o desemprego, que atinge de maneira diferenciada a mulheres e

homens. Se por um lado se verifica uma evolução significativa da entrada e permanência da

mulher no mercado de trabalho (um processo histórico de lutas sociais), por outro podemos

notar que isso não significa plenamente uma transformação social mais profunda.

Por fim, tratamos das vinculações entre a mulher e o empreendedorismo. Tendo em

vista que trabalhar é gerir a vida em todas as ações do cotidiano (SCHWARTZ, 2011),

procuramos examinar de que forma ocorre a inserção da mulher nesta área da economia, e

quais são os desafios por elas encontrados em tal percurso. Como exemplo e base empírica

deste estudo, pautamo-nos em histórias de vida de mulheres empreendedoras midiatizadas

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pela Endeavor Brasil no evento Day1 Endeavor.

1.1 REFLEXÕES SOBRE GÊNERO E TRABALHO FEMININO

De acordo com matéria publicada na revista Exame4, as mulheres são maioria entre os

novos empreendedores, estando à frente da abertura de negócios no país. Já dados levantados

pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), a partir da

pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM)5, apontam que 52% dos novos

empreendedores – aqueles com menos de três anos e meio de atividade – são mulheres. A

força empreendedora feminina é maioria em quatro das cinco regiões brasileiras. Apenas no

Nordeste elas ainda não ultrapassaram os homens; mas a diferença, todavia, é irrisória: as

mulheres já representam 49% de participação entre os novos empresários nessa região. “A

cada ano, o perfil do empreendedor brasileiro se torna mais feminino e mais escolarizado”,

destaca Luiz Barreto, presidente do SEBRAE, pois “as mulheres estão investindo em

qualificação, buscam acesso às informações, não permitem amadorismo”.6

Cabe ressaltar que existem diversas publicações de mercado que se distanciam desta

vertente positiva de encontrar uma maior porcentagem de mulheres empreendedoras. Isso

porque há mulheres que optam por empreender em função da questão da maternidade, por

falta de qualificação educacional e/ou emprego formal. Procuramos salientar, portanto, que

nem sempre essas relações entre os gêneros no que tange o mercado de trabalho e as

atividades laborais são favoráveis às mulheres.

É principalmente por intermédio dos movimentos feministas que as categorias do sexo

e do gênero adquiriram (e ainda adquirem) uma visibilidade social para se pontuar e

problematizar a falta de equidade entre mulheres e homens, inclusive no que diz respeito ao

trabalho. Mesmo com inúmeros progressos, acarretados principalmente por intermédio desses

movimentos sociais, as relações entre os gêneros continuam díspares, seja no acesso aos

postos de trabalho, nas condições laborais e/ou nas diferenças salariais. Como explicita Lobo

(1991, p. 200), “as relações entre mulheres e homens são vividas e pensadas enquanto

4 Disponível em: <http://exame.abril.com.br/pme/noticias/mulheres-sao-maioria-entre-os-novos-

empreendedores>. Acesso em: outubro de 2016. 5 Reportagem da revista Exame. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/pme/noticias/mulheres-sao-maioria-

entre-os-novos-empreendedores>. Acesso em: outubro de 2016. 6 Empreendedorismo no Brasil Relatório Executivo 2014 GEM. Disponível em:

<http://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/Estudos%20e%20Pesquisas/gem%202014_relat%C3%B3r

io%20executivo.pdf>. Acesso em: dezembro de 2016.

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relações entre o que é definido como masculino e feminino - os gêneros”. Nesse sentido, a

divisão sexual do trabalho é um dos muitos aspectos implicados nas relações de gênero. Isso

nos leva a ponderar sobre questões identitárias, subjetivas e de desigualdade aí englobadas.

Para Hirata e Kergoat (2007, p. 599):

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social

decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator

prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação

prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva

e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com maior

valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.).

De fato, o enfoque sobre o gênero e o trabalho problematiza uma série de antinomias,

tais como o público vs. o privado; o social vs. o natural; e a família enquanto o constituinte

central do feminino (CASTRO, 2001). É neste sentido que podemos compreender o gênero

como uma categoria de análise histórica (SCOTT, 1995), o que permite verificar, por

exemplo, as formas pelas quais o feminino foi construído e retratado ao longo do tempo como

pertencente ao lar, à maternidade, à submissão ao homem.

Assim sendo, por mais que as categorias do feminino e do masculino possam aparentar

determinada constância ou fixidez, elas são, de fato, instáveis (THEODORO, 2016, p. 55). “O

que ocorre é que, por meio de sistemas de significado normativos, busca-se criar a ilusão de

que os gêneros possuem uma coerência, uma autossuficiência em si mesmos” (ibidem, p. 55).

Joan Scott (1995) aponta que os arquétipos de feminilidade e masculinidade não devem ser

apreendidos neste âmbito, já que eles divergem circunstancialmente. Já Judith Butler (2011),

uma das principais filósofas a abordar a temática, afirma que os gêneros são reiteradamente

performados nas dinâmicas das relações sociais.

Butler (2008) teoriza sobre o gênero a partir de uma perspectiva que busca destitui-lo

de seus atributos meramente biológicos, revelando que, por trás da noção de “biologia” ou de

“natureza”, reside a cultura, que acaba por delimitar a noção e o entendimento que cada

sociedade, em uma época determinada, possui sobre o corpo, o sexo, os gêneros e as

sexualidades. Butler historiciza tais categorias buscando não apenas problematizá-las, mas

também revelar sua completa arbitrariedade enquanto construtos sociais. Para tanto, ela se

vale do conceito de performatividade, o que significa dizer que o gênero é construído por uma

repetição de atos e signos, no âmbito cultural, compondo a própria concepção de mulher ou

homem, feminilidade ou masculinidade. Deste modo, suas reflexões são essenciais para

analisarmos de que forma tais noções são socioculturalmente cristalizadas e como elas podem

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ser desestabilizadas e modificadas ao longo do tempo.

No que se refere em particular ao trabalho, tais distinções são persistentes, assinalando

significativas desigualdades entre os gêneros. Isso implica uma divisão sexual do trabalho,

perpetrada social e historicamente, que se sustenta em um determinismo biológico cujo

objetivo é naturalizar tal cisão. A questão implicada nos leva a observar que as práticas

laborais são, portanto, impregnadas de significados generificantes e generificados (ou seja,

significados que carregam em si marcas diferenciais e binárias de gênero e que os replicam

ininterruptamente), diferenciando-se de acordo com cada sociedade e momento histórico

(CARLOTO, 2002).7 Às mulheres resta, em meio à própria formação do capitalismo, uma

posição de menor valor, sendo que elas não recebem a mesma valorização, e,

consequentemente, remuneração, atribuída ao trabalho masculino (idem).

Vale destacar que a intensificação da participação da mulher no mercado de trabalho

ocorre apenas a partir do século XX, sendo acentuada em sua segunda metade. Somente a

partir desta época é que começam a surgir, realmente, novas oportunidades para a efetiva

entrada e participação da mulher no mercado de trabalho. Para Castells (1999), as

transformações ocorridas em relação à atividade laboral da mulher são ancoradas,

basicamente, em quatro eixos. O primeiro deles se concentra na questão do crescimento da

economia informacional global, que espraiou e ampliou a entrada das mulheres na área da

educação formal. O segundo corresponde aos avanços mais recentes da tecnologia científica

no processo de reprodução humana e no controle da natalidade e/ou popularização de métodos

contraceptivos e controle sobre a gravidez. O terceiro eixo se fundamenta nas mudanças e

transformações tecnológicas e econômicas que permitiram o exercício das atividades laborais

de modo mais flexível. Por fim, o quarto eixo diz respeito à agilidade e à rapidez na

disseminação de ideias no contexto de uma cultura globalizada e das grandes transformações

nas relações entre sujeitos e as tecnologias da informação e da comunicação (TICs).

Apesar da relevância de tais mudanças, que continuam ocorrendo na

contemporaneidade, não podemos negligenciar o modo como a divisão sexual do trabalho

historicamente apresentou (e continua apresentando) formas conjunturais acionadas nas

práticas sociais, “ora conservando tradições que ordenam tarefas masculinas e tarefas

femininas (...), ora criando modalidades da divisão sexual das tarefas” (CARLOTO, 2002,

7 Os significados que entremeiam as práticas laborais podem ser considerados generificantes pois replicam padrões binários do gênero nesse campo, isto é, geram uma generificação de suas práticas: trabalhos

considerados femininos vs. trabalhos considerados masculinos. A partir de então, elas passam a ser

generificadas, o que significa dizer que cristalizam a carga simbólica dicotomizada entre feminino ou masculino.

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n.p.). Há, assim, uma subordinação da mulher condensada e reiterada na mentalidade e no

imaginário coletivo, independente da profissão que venha a desempenhar. É por isso que,

como defende Carloto (idem), mulheres e homens não podem assumir uma identidade laboral

inteiramente correlata, ainda que atuem no mesmo cargo. As diferenças são marcadas

justamente pelo gênero.

Neste sentido, “a divisão sexual do trabalho não cria a subordinação e a desigualdade

das mulheres no mercado de trabalho, mas recria uma subordinação que existe também nas

outras esferas do social” (BRITO; OLIVEIRA, 1998, p. 252 apud CARLOTO, 2002, n.p.).

Ela se inscreve, pois, em uma divisão sexual mais ampla, cultural e social. Esta mantém, por

exemplo, o âmbito doméstico e do privado como um locus primordial ao feminino, e a

inserção da mulher no mercado de trabalho não deixa de reproduzir tal representação.

Abramo (1998) destaca que essa imagem originária do feminino (enquanto pertencente

ao seio familiar, à maternidade, aos cuidados domésticos, etc.) continua embasando e se

reflexionando na identidade da mulher trabalhadora. A referida autora se vale da noção de

“imagens de gênero” para explicitar as “configurações das identidades masculina e feminina,

produzidas social e culturalmente, que determinam, em grande parte, as oportunidades e a

forma de inserção de mulheres e homens no mundo do trabalho” (CARLOTO, 2002, n.p.).

É necessário notar que essas imagens constituem o próprio sujeito, ou seja, elas o

antecedem e marcam todas as suas socializações ao longo da vida. Isso porque “a cultura

emerge como medular à formação não somente dos gêneros, mas também dos sexos. O olhar

que se lança à criança recém-nascida, ou mesmo antes de nascer, ainda no útero, é um olhar

que prescreve o gênero” (THEODORO, 2016, p. 51). Assim:

O que observamos é a onipotência de uma imagem social dos gêneros que prescreve os sexos dos corpos e as experiências que estabelecemos ao longo

de nossas vidas após sermos designados a um dos dois universos instituídos

na cultura: o feminino ou o masculino. Nesse sentido, a designação de sexo

de uma criança (...) é estabelecida a fim de impregná-la com uma identidade social estável (THEODORO, 2016, p. 51).

No caso das imagens (ou representações) do feminino, a divisão entre a esfera pública

e a privada ainda é um dos eixos centrais que perpassa a inserção das mulheres no mercado de

trabalho, assim como suas atividades laborais. Há, então, um acarretamento de modos

diferenciados e desiguais na relação gênero-trabalho. Em síntese:

A subordinação de gênero, a assimetria nas relações de trabalho masculinas

e femininas manifesta-se não apenas na divisão de tarefas, mas nos critérios que definem a qualificação das tarefas, nos salários, na disciplina do

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trabalho. A divisão sexual do trabalho não é tão somente uma consequência

da distribuição do trabalho por ramos ou setores de atividade, senão também

o princípio organizador da desigualdade no trabalho (CARLOTO, 2002, n.p.).

Mesmo havendo reordenamentos nestas dinâmicas, empreendidos sobretudo por meio

de constantes embates (sociais, econômicos, políticos e culturais) em busca de condições mais

justas, o acesso massivo das mulheres ao mercado de trabalho não garante uma igualdade de

posição em relação aos homens. Preciado (2008 apud THEODORO, 2016) sustenta que essa

diferenciação é intrínseca, e reforçada pelo capitalismo, pois parte do trabalho tido como

feminino não é contabilizado nem reconhecido como tal. Ou seja, as mulheres seguem

exercendo em grande medida os trabalhos domésticos e aqueles relacionados com as

atividades reprodutivas sem que haja uma compensação material: o trabalho que exercem no

lar, no âmbito privado, é tido como servil e/ou improdutivo (idem). Logo, acumula-se sobre

elas uma dupla carga de trabalho que não é compartilhada de igual modo pelos homens.

Como consequência de tal desqualificação do trabalho feminino, todas as habilidades

que a ele se associam passam a ser depreciadas em algum grau. Não é difícil constatarmos

como profissões tidas enquanto “femininas” (enfermagem, secretariado, docência – sobretudo

na educação básica, empregadas domésticas, babás, etc.) sofrem com uma desvalorização

estrutural, legitimada social, cultural e até mesmo institucionalmente. Os prejuízos de valor

provenientes pesam tanto sobre seu exercício quanto sobre a remuneração oferecida a todos os

profissionais empregados nesses setores. Em suma, podemos constatar uma hierarquia de

gênero que aloca o feminino e tudo que a ele se correlaciona em um patamar de menor valor

(THEODORO, 2016).

Sendo assim, os papéis sociais delimitados e calcados nos binarismos de gênero e nas

diferenças daí decorrentes engendram uma série de efeitos desfavoráveis às mulheres no

tocante à sua participação no mercado de trabalho. A noção de divisão sexual do trabalho se

torna primordial neste ponto para compreendermos os processos de constituição dessas

práticas sociais, a partir de uma base material. Isso porque as “relações sociais de sexo e

divisão sexual do trabalho são duas proposições indissociáveis que formam um sistema”

(CARLOTO, 2002, n.p.). A seguir estabelecemos uma contextualização quantitativa que

ilustra de forma bastante clara como essas diferenças e desigualdades são transpostas da

ordem simbólica à realidade social.

1.2 DADOS SOBRE O TRABALHO FEMININO NO BRASIL

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De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)8, apesar do

recente crescimento econômico e das políticas destinadas a reduzir as desigualdades, as

diferenças salariais relacionadas a gênero e etnia continuam sendo significativas nos países

latino-americanos. No Brasil, homens recebem salários em média 30% maiores que as

mulheres. Isso demonstra que ainda temos diferenças entre os gêneros no que concerne à

questão de empregos e salários praticados.

O masculino, então, é apresentado a partir das relações e valores, construções

socioculturais, que o dispõem como o hegemônico. Badinter (1993, p. 6) ressalta que “ser

homem é estar instalado, de saída, numa posição que implica poderes”. Ao mesmo tempo,

“ser homem ou mulher é antes de tudo uma hierarquia, um lugar na sociedade, um papel

cultural, e não um ser biologicamente oposto ao outro” (ibidem, p. 8). A diferença existente

entre os gêneros também contribui, em termos de linguagem, para se estabelecer a condições

estereotipadas de discurso. É fato que a masculinidade atua nos diferentes campos discursivos

como uma estrutura de poder, formadora dos pensamentos dos atores sociais nos contextos

em que interagem.

Entendendo que fatores como risco, disputa de prestígio e sucesso profissional

também são construções sociais, podemos verificar como os discursos, inclusive aqueles

midiatizados, podem contribuir à manutenção do feminino como uma figura provedora da

orientação familiar, criação e educação dos filhos e organização do lar. Persiste ainda, embora

de maneira modificada e transformada, a imagem da mulher representada pelas dimensões

íntima e privada. Sabemos que essas “vozes” da sociedade continuam a circular na dialética

entre o passado e o presente. De acordo com Lipovetsky (2000, p. 299):

As mulheres não têm medo de vencer: elas não se beneficiam das mesmas motivações sociais que os homens para elevar-se ao topo. Não é mais uma

inibição psicológica que mantém as mulheres à margem do poder, mas um

menor estímulo social para impor-se na cena pública, uma socialização que

valoriza mais o sucesso privado que o sucesso organizacional, mais o enriquecimento relacional que a dominação hierárquica.

Nessa direção, a construção social e de representação de mundo apresenta a mulher

como um sujeito destinado a se preocupar de forma mais enfática que os homens com a

questão relacional e com o bem-estar coletivo, tanto no trabalho como na família. Há um forte

reconhecimento de que a mulher é a orquestradora da harmonia e protagonista dos interesses

familiares. Isso faz com que a mulher precise constantemente lutar para ser valorizada em

8 Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-recebem-salarios-30-

maiores-que-as-mulheres-no-brasil/>. Acesso em: maio de 2016.

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suas práticas laborais, para que tenham legitimados seus conhecimentos e capacidades

profissionais como um todo. Em meio a tais embates, elas tensionam os estigmas relacionados

ao feminino bem como as próprias condições trabalhistas por elas enfrentadas.

Ao mesmo tempo, quando se menciona que “a “mulher brasileira” está ocupando

espaços importantes e valorizados no mercado de trabalho, o que se esquece de dizer é que

99% dessas mulheres são das classes média e alta” (SODRÉ, 1999, p. 22). Portanto, são

mulheres que têm uma condição educacional e econômica mais estável e melhor alicerçada.

Tendo acesso a uma educação formal de qualidade e ao ensino superior, elas podem obter

uma maior e melhor capacitação, o que possibilita o acesso a postos de trabalho mais elevados

– não significando um salário equitativo em relação aos homens.

As considerações de Sodré nos levam a refletir sobre as diferenças existentes entre

mulheres de classes econômicas distintas; por exemplo, aquelas que não têm acesso a uma

educação formal de qualidade acabam por ficar suscetíveis ao desemprego, ao subemprego, à

informalidade ou a condições precárias de trabalho. Muitas dessas mulheres ainda são

submetidas a trabalhos com uma carga horária mais extensa, vivenciam situações de

insegurança ou insalubridade em seus locais de trabalho, exercem atividade laboral informal,

sem registro e direitos, e muitas ainda sofrem com outros tipos de discriminação, como o

racismo (ABRAMO, 1998).

Bruschini (2007, p. 561-563), faz algumas considerações relevantes sobre a inserção e

precariedade do trabalho exercido pela mulher em nosso país. Em 2005, por exemplo,

tínhamos 33% da força de trabalho feminino, ou cerca de 12 milhões de mulheres, em

condições precárias de trabalho, seja como trabalhadoras domésticas (mais de 6,2 milhões),

seja realizando atividades não remuneradas (3,3 milhões) ou trabalhos na produção para o

consumo próprio ou do grupo familiar (2,7 milhões). Esses dados podem ser observados na

tabela a seguir:

Tabela 1: Algumas características da ocupação feminina em posições mais precárias no

Brasil

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Fonte: Bruschini (2007, p. 563).

O trabalho doméstico é o setor ocupacional feminino por excelência, no qual mais de

90% dos trabalhadores são mulheres. Ele se manteve como importante fonte laboral às

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mulheres, permanecendo praticamente estável e absorvendo 17% de sua força de trabalho.

Esse percentual tem diminuído, uma vez que em 1970, absorvia mais de 1/4 da mão-de-obra

feminina (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000). A ocupação de trabalhadora doméstica ainda

representa nos dias atuais uma oportunidade de colocação para mais de 6 milhões de mulheres

no mercado de trabalho brasileiro. Trata-se de uma atividade laboral considerada precária em

razão das longas jornadas de trabalho desenvolvidas pela maioria das trabalhadoras, do baixo

índice de registro na carteira de trabalho (apenas 25% delas) e dos parcos rendimentos

auferidos (96% ganham até dois salários mínimos mensais).9

O que a autora nos revela é o aumento do desemprego e da precariedade laboral.

Quanto menor o nível de escolaridade e posição socioeconômica dessa mulher, maior a

probabilidade de que ela seja forçada a se submeter a trabalhos informais ou fique refém do

desemprego (BRUSCHINI, 2007). Estamos falando de uma real precarização do trabalho,

pois existe uma desigualdade de direitos e cidadania que afeta diretamente as mulheres.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

aponta que o perfil das mulheres no mercado de trabalho vem se alterando. O IBGE preparou

a seguinte pergunta: “Qual o perfil educacional das mulheres no mercado de trabalho?”.

Resposta: enquanto 61,2% das trabalhadoras tinham 11 anos ou mais de estudo, ou seja, pelo

menos o ensino médio completo, para os homens este percentual era de 53,2%. Destaca-se

ainda que a parcela de mulheres no mercado de trabalho com curso de nível superior completo

era de 19,6%, percentual acima do constatado entre os homens, 14,2%..

Tabela 2: Participação da população ocupada feminina, por escolaridade, segundo as formas

de ocupação – 2009

9 Obviamente, existem outras formas de ocupação mais precárias, como o trabalho não remunerado e aquele

executado na produção para o consumo próprio ou da unidade familiar, e que são predominantemente

desenvolvidas no campo. Disponível em: <http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-

recebem-salarios-30-maiores-que-as-mulheres-no-brasil/>. Acesso em: maio de 2016.

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Fonte: <www.ibge.gov.br>.

Considerando as formas de inserção no mercado de trabalho, observou-se que a

categoria dos militares e funcionários públicos estatutários foi a que apresentou o maior

percentual de mulheres com 11 anos ou mais de estudo (92,2%) e com nível superior

completo (58,0%). As trabalhadoras domésticas foram as que apresentaram o menor

percentual de pessoas com 11 anos ou mais de estudo (18,4%). Na comparação por sexo,

verificou-se que em todas as categorias apontadas, à exceção da de trabalhadores domésticos,

o percentual de mulheres com 11 anos ou mais de estudo ou com curso superior completo era

maior que o dos homens. Assim, os dados constatam que a mulheres têm maior número de

anos de estudo em comparação aos homens, como podemos observar na tabela abaixo.

Tabela 3: Percentual de participação da população ocupada masculina, por escolaridade,

segundo as formas de ocupação – 2009*

Fonte: <www.ibge.gov.br>.

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Segunda pergunta realizada pelo IBGE: “A proporção de mulheres com carteira de

trabalho assinada é maior ou menor que a de homens?”. A análise considerou a posse de

carteira de trabalho assinada para mulheres e homens, segundo os grupamentos de atividade

nos quais estavam ocupados. Os resultados mostraram que, dentre as mulheres ocupadas no

grupamento que incluía a Indústria e no grupamento dos Outros serviços, o percentual com

carteira de trabalho assinada era inferior ao verificado entre os homens. Dentre as mulheres

ocupadas na Indústria, o percentual das que possuíam carteira assinada era de 53%, para os

homens esta estimativa era superior em cerca de 20 pontos percentuais. Dentre as mulheres

ocupadas nos Outros serviços, 42,9% tinham carteira assinada, dentre os homens, 51,6%. Na

Construção, grupamento com 93,8% do seu contingente formado por homens, 65,2% das

mulheres tinham carteira assinada, para os homens esta estimativa era de 32,3%. No

Comércio, nem metade das mulheres tinham carteira assinada (49,7%), o mesmo se

confirmou para os homens (44,6%). Nos Serviços prestados a empresas, 68,8% delas tinham

carteira assinada, entre os homens o percentual era 64,3%. No grupamento da Administração

Pública, enquanto 39,2% das mulheres tinham carteira assinada, dentre os homens esta

estimativa era de 27,5%. Ressalta-se que nos Serviços domésticos, grupamento onde as

mulheres representam mais de 90% do contingente, apenas 36,1% delas tinha carteira

assinada, ou seja, este foi o grupamento com o menor percentual de mulheres com posse de

carteira assinada.

Tabela 4: Proporção de pessoas ocupadas com carteira de trabalho assinada, segundo os

grupamentos de atividade – 2009*

Fonte: <www.ibge.gov.br>.

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A pesquisa revela que a mulher vem atuando em diferentes setores da economia, e, de

acordo com sua formação e escolarização, consegue a inserção em determinadas atividades

laborais consideradas como trabalhos de maior valoração social, como trabalhar na indústria,

no setor de serviços e na administração pública, ao invés do trabalho doméstico, naturalizado

como uma atividade pouco reconhecida.

Principalmente a falta de educação formal coloca a mulher numa condição de vida

vulnerável. Acresce-se isso o fato de que em nossa sociedade a mulher é considerada como

um ser cuja essência se fundamenta na organização e no equilíbrio entre vida profissional e

familiar, como forma de preservação da estrutura emocional e racional de si e da família, o

que significa atuar conjuntamente em três eixos de ação: o familiar, o afetivo e o laboral (sem

contar outras atividades pessoais do cotidiano).

Voltamos a uma perspectiva histórica. A identidade feminina esteve até a modernidade

retida no espaço privado e nas tarefas domésticas, sendo que ao “confinar as mulheres em seu

interior, a ideologia moderna se esforçou para promover o trabalho do lar, dignificar uma

ocupação considerada tradicionalmente inferior, glorificar o anjo doméstico” (LIPOVETSKY,

2000, p. 216). Lipovetsky (idem) sustenta que havia uma identidade marcada pela “aura” de

glorificação da mulher e de suas ações nos ofícios do lar. Desde então a sociedade ocidental

tem passado por grandes e profundas transformações, que favoreceram a mulher e seu

exercício de trabalho fora do lar. Mas, como discutimos anteriormente, elas não estiveram

isentas de embates, principalmente porque ocorre “a recusa de uma identidade constituída

exclusivamente pelas funções de mãe e de esposa, que caracteriza a condição feminina pós-

moderna” (LIPOVETSKY, 2000, p. 220).

Se observarmos as gerações mais jovens, podemos encontrar uma representação

feminina mais expressiva, que luta e tenta se adaptar às novas exigências e convocações do

presente, nas quais o perfil da mulher se apresenta por crenças e ações que valorizam a

independência financeira, a capacitação, a educação formal e a representação da atividade de

trabalho por novos formatos do fazer. São discursos construídos e inseridos no espírito do

tempo (MORIN, 2007), em que narrativas autobiográficas de transformação de trabalho e

vida são constituídas e incentivadas pelo contexto sociocultural. Em nosso estudo, esse

esforço é reiterado por uma sociedade na qual se valoriza e exalta atividades empreendedoras.

A mulher independente e responsável por sua autoria e construção de trabalho e vida se

converte em um ideal produzido e consumido coletivamente.

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Essa convocação e engajamento fazem parte do novo espírito do capitalismo

apresentado por Boltanski e Chiapello (2009). Valoriza-se a transformação e a mudança do

sujeito como forma de se adaptar aos valores dos discursos sobre trabalho e vida, atendendo

aos interesses e demandas do neoliberalismo e das classes hegemônicas. Refletir sobre o

cotidiano das mulheres, a partir de suas experiências de vida e trabalho, tem se mostrado um

tema importante ao discutirmos o trabalho feminino. Para Thompson (2002, p. 134):

Até pouco tempo, a história das mulheres foi ignorada (...), em parte porque

a vida delas, ligada ao lar ou ao trabalho desorganizado ou temporário, muito frequentemente transcorreu sem ser documentada (...) toda uma série de

estudos sobre as mulheres no trabalho – no campo, nas fábricas, no serviço

doméstico, na guerra, na fronteira – e também, ainda que com menos frequência, em casa e na família. O descaso total por esse campo faz com

que entrar nele cause a emoção de uma viagem de descoberta.

A mulher tem sido interpretada pelas diversas posições assumidas no percurso

histórico, reproduzindo diferentes aspectos ideológicos e tensionamentos entre poder e saber

de sua subjetividade, legitimação e inserção social. Todos esses fragmentos da vida presente

se depreendem da realidade visível de um determinado ser (LIPOVETSKY, 2000).

Neste sentido, se desde os anos 1970 temos observado o aumento substancial da

participação da mulher no mercado de trabalho brasileiro10. Porém, tal inserção massiva da

mão de obra feminina não significa melhores condições de emprego, nem uma igualdade

entre os gêneros. A taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro

continua aumentando, mas ainda está marcada por uma forte diferença em relação à taxa de

participação dos homens. Além disso, como já mencionado, a taxa de participação das

mulheres mais pobres e com menos escolaridade ainda é muito inferior à taxa de participação

das mulheres mais escolarizadas, o que indica a existência de diferenças importantes entre as

mulheres em estratos sociais e de renda distintos.

Também persistem importantes diferenças de remuneração no mercado de trabalho

brasileiro relacionadas ao sexo e à raça/etnia. Os rendimentos das mulheres são

sistematicamente inferiores aos dos homens, inclusive quando comparamos níveis similares

de escolaridade. Por hora trabalhada, as mulheres recebem, em média, 79% da remuneração

dos homens (ou seja, 21% a menos) e os trabalhadores negros de ambos os sexos recebem em

média a metade (50%) do que recebem o conjunto dos trabalhadores brancos de ambos os

sexos. A porcentagem de ocupações precárias, informais e de baixa qualidade sobre o total do

10 De acordo com pesquisa realizada pelo IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em: outubro de

2016.

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emprego no Brasil é muito significativa: 57%. Mas essas cifras também evidenciam

importantes diferenças de gênero e raça: enquanto a proporção de ocupações informais e

precárias sobre o total do emprego masculino é de 54%, para as mulheres essa cifra chega a

61% (BRUSCHINI, 2007).

Em síntese, o debate teórico e as pesquisas sobre o trabalho feminino que

apresentamos aqui destacam as desigualdades estruturais entre mulheres e homens que se

engendram socioculturalmente, principalmente com base na articulação entre o escopo

produtivo e o reprodutivo.

1.3 EMPREENDEDORISMO FEMININO

Retratar a importância que o trabalho exerce na vida de mulheres empreendedoras

configura um marco de posição social e perfil moral de valores e comportamentos do campo

(BOURDIEU, 2009). Nesse caso, o campo do empreendedorismo articula o fazer a atividades

de construção de si mesmo. Isso corresponde a uma elaboração social pautada no sistema

produtivo contemporâneo. Assim, o trabalho perpassa diversos âmbitos da vida, influenciando

inclusive nossa representação de mundo. A subjetivação e o perfil moral aí abarcados acabam

por definir comportamentos e formas do agir que são apresentados tanto pelo gênero feminino

quanto pelo masculino em suas representações sociais no mundo do trabalho (SCHWARTZ,

2011).

As mudanças ocorridas no papel e nas atividades exercidas pela mulher e sua relação

com o trabalho e o consumo tornam-se elementos relevantes na arquitetura de códigos

culturais da moral. Ao mesmo tempo, são esses códigos que classificam o feminino por meio

de regras e condutas estabelecidas na representação de identidades fixas. A apresentação de

alguns dados quantitativos também se mostra relevante, neste sentido, para abordarmos a

questão do empreendedorismo entre as mulheres.

De acordo com uma pesquisa realizada em 2014 pelo GEM (Global Entrepreneurship

Monitor)11, considerando os dados mais recentes da população brasileira entre 18 e 64 anos,

cerca de 130,7 milhões de pessoas12, estima-se que o número de empreendedores no Brasil é

de 45 milhões, divididos igualmente entre iniciais e estabelecidos.

11 GEM 2014 – Global Enterpreneurship Monitor. Empreendedorismo no Brasil – relatório Executivo.

Disponível em: <http://zip. net/bbtBXtCopiar>. Acesso em: novembro de 2016.

12 Projeções PNAD para 2014. Disponível em: <http://zip. net/bbtBXtCopiar>. Acesso em: novembro de 2016.

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Tabela 5: Taxa de empreendedorismo segundo estágio dos empreendimentos – Brasil, 2014

Fonte: GEM Brasil 2014.

Na metodologia da pesquisa, os empreendedores são classificados como iniciais

(nascentes e novos) e estabelecidos. Os empreendedores nascentes estão envolvidos na

estruturação de um negócio do qual são proprietários, mas que ainda não pagou salários, pró-

labores ou qualquer outra forma de remuneração aos proprietários por mais de três meses. Já

os empreendedores novos administram e são proprietários de um negócio que pagou salários,

gerou pró-labores ou qualquer outra forma de remuneração aos proprietários por mais de três

e menos de 42 meses. Os empreendedores nascentes e novos são considerados

empreendedores iniciais ou em estágio inicial. Os empreendedores estabelecidos administram

e são proprietários de um negócio tido como consolidado (que existe há mais de três anos e

meio).13

Os estratos podem ser subdivisões segundo o gênero, faixas etárias, níveis de renda,

etc. A distribuição percentual dos empreendedores ou dos empreendimentos indicam a

distribuição dos empreendedores segundo as suas características sociodemográficas ou dos

empreendimentos segundo a novidade do produto, idade da tecnologia, concorrência, etc. As

taxas específicas de empreendedorismo são relacionadas a diferentes estratos da população

em termos de empreendedorismo e, portanto, à influência destes na formação das taxas de

13 A amostra é representativa da população e seus resultados possuem 95% de confiança, com margem de erro de

1,4% para o país e 2,2% para as regiões. Os resultados quantitativos são representados de duas formas: taxas de empreendedorismo – indicam o percentual (%) da população total de 18 a 64 anos (taxa geral) que é considerada

empreendedora (em estágio nascente, novo ou estabelecido); ou o percentual (%) dos que são considerados

empreendedores em estratos da mesma população (taxas específicas). Em 2014 foram entrevistados 10.000

indivíduos adultos (de 18 a 64 anos), residentes nas cinco regiões do país (2000 entrevistados em cada uma das

regiões), a respeito de suas atitudes, atividades e aspirações individuais. De acordo com a pesquisa GEM de

2014.

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empreendedores iniciais ou estabelecidos. No que concerne ao gênero, homens e mulheres são

igualmente ativos em termos de atividade empreendedora inicial; e indivíduos na faixa etária

de 25 a 34 anos são mais ativos em termos de atividade empreendedora inicial.

Em relação à escolaridade e educação formal, indivíduos com escolaridade entre o

primeiro grau incompleto (nível 2) e o nível superior completo (níveis 3 e 4), são igualmente

ativos na atividade empreendedora inicial. Indivíduos com escolaridade inferior ao primeiro

grau incompleto (nível 1) são os menos ativos. Na questão de renda familiar, aqueles que

ganham acima de três salários mínimos são os que apresentam maior atividade de

empreendedorismo inicial. Já para as taxas de empreendedorismo estabelecido, pode se

destacar o seguinte: homens são mais ativos do que as mulheres em termos de atividade

empreendedora em estágio estabelecido; indivíduos na faixa etária de 45 a 54, com

escolaridade até o segundo grau incompleto (níveis 1 e 2) e renda familiar acima de seis

salários mínimos são os mais ativos em empreendimentos estabelecidos.

Dos 23 milhões de empreendedores em estágio estabelecido, 55% são homens e 45%

são mulheres; 24% têm de 18 a 34 anos, 58% têm de 35 a 54 anos, 17% tem de 55 a 64 anos;

42% têm escolaridade de ensino médio completo ou acima; 43% possuem renda familiar

maior que três salários mínimos; 63% são casados ou vivem em união estável; e 54% são

brancos. O estudo evidencia ainda que o grupo de empreendedores iniciais e o grupo dos

estabelecidos são semelhantes nas características de renda familiar, estado civil e raça. O

grupo de empreendedores iniciais é composto por mulheres e homens em quantidades

praticamente iguais, enquanto que no grupo de empreendedores estabelecidos a maioria é

masculina. Apesar de essa diferença ser de apenas 10%, podemos constatar que existem

desigualdades enfrentadas pelas mulheres na manutenção de seus empreendimentos.

No tocante aos processos comunicacionais e de midiatização que perpassam o

imaginário social sobre o empreendedorismo, não podemos amenizar seus efeitos sobre o

fazer empreendedor feminino. Isso porque eles buscam de certo modo diluir a existência e

desigualdades entre os gêneros, ou simplesmente desconsiderá-las. Estamos falando de

desigualdades e preconceitos, mas também de uma ideologia que estigmatiza o feminino,

cristalizando ao seu redor valores que o desqualificam em algum grau. Neste ponto, a

diferença entre mulheres e homens no grupo de empreendedores estabelecidos, pode ser,

discriminatoriamente, tomada como uma “mera questão de gênero”, calcada no âmbito

individual e não no coletivo. Ou seja, considerar a mulher menos capaz do que o homem em

fazer prosperar seus empreendimentos.

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Por outro lado, é interessante observarmos que as atividades empreendedoras

geralmente são retratadas como uma possibilidade de libertação às mulheres. O

empreendedorismo aparece ora como uma forma de trabalho emancipatória em relação aos

trabalhos domésticos e à dominação masculina, ora como um fator de flexibilização que

permite que a mulher concilie melhor o trabalho com a vida pessoal. Em ambos os casos, o

que há na realidade é uma falácia conceitual, pois não se pode pressupor que apenas as

dinâmicas de trabalho sejam responsáveis ou condicionantes das desigualdades que as

mulheres enfrentam cotidianamente. O problema se encontra, antes, nas distinções

socioculturalmente construídas entre o gênero feminino e o masculino (BUTLER, 2008).

No que diz respeito propriamente ao trabalho, a questão da diferença sexual emerge

novamente como um princípio organizador. Hirata e Kergoat (2007) argumentam que são dois

os princípios organizadores da divisão sexual do trabalho: o de separação e o hierárquico. O

primeiro pressupõe a existência de trabalhos de mulheres e trabalhos de homens; o segundo

valoriza o trabalho do homem em detrimento dos trabalhos realizados pelas mulheres.

Ademais, cabe salientar que o domínio do doméstico não deixa de exercer uma considerável

influência sobre o trabalho feminino, como relata Bruschini (2006, p. 351):

(...) as mulheres, muito mais do que os homens, dedicam parte significativa

de seu tempo ao trabalho para a reprodução social; entre elas, são as cônjuges e, principalmente, as mães as que dedicam número mais elevado de

horas semanais aos afazeres domésticos; e, entre as que tiveram filhos, são

as mães de filhos pequenos aquelas cujo tempo semanal de dedicação aos

afazeres domésticos é o mais elevado.

Assim sendo, a opção por empreender em um negócio próprio por parte das mulheres

não acaba com as desigualdades estruturais entre os gêneros, nem no mercado de trabalho

nem na esfera doméstica. Ou seja, por mais que o empreendedorismo possa garantir uma

independência financeira às mulheres empreendedoras, o fato de serem mulheres permanece o

principal elemento constituinte de suas subjetividades e identidades laborais.

Ao mesmo tempo, devemos considerar a existência de uma convocação para que o

trabalhador seja cada vez mais produtivo. Somos convocados a participar de uma “sociedade

de desempenho”, conforme assevera Han (2015), segundo o autor, “a sociedade do século

XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus

habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e

produção. São empresários de si mesmos” (FOUCAULT, 2008).

A sociedade de desempenho torna o sujeito um escravo de si, tendo que desempenhar

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sempre mais, ser produtivo e ter sucesso em todas as ações da vida. Para Han (2015, p.24)

emerge “o caráter de positividade da sociedade de desempenho”: temos que enxergar sempre

o lado bom de tudo, não existe tristeza, fraqueza e medo; existe, sim, “projeto, iniciativa e

motivação”. Assim, o sujeito é levado a se tornar um refém de seu trabalho, sendo, além

disso, convocado a ter pensamentos positivos, que se convertam na melhoria da sua

performance; ou seja, empreender a si mesmo sendo autor dos seus projetos pessoais.

Ao mesmo tempo, a atuação e representação da identidade do indivíduo está centrada,

como defende Freire Filho (2010), na noção do imperativo de felicidade, que, ao gerir o

cotidiano, influencia diretamente nas ações desses sujeitos. Para o referido autor, que

questiona esta felicidade espraiada e colocada com valor a ser seguido por todos:

O imperativo de ser feliz não apenas transcende hoje a exigência da dita lei

moral, como também que esta passa a ser subsumida ao mandato incontornável de que o sujeito deve ser feliz, acima de tudo. Vale dizer, uma

transformação fundamental ocorreu na economia simbólica da lei moral, que

passou então a ser regulada pelo imperativo do sujeito de atingir a condição de felicidade (FREIRE FILHO, 2010, p. 27).

Assim, o sujeito está submetido a este contexto em que a felicidade é extremamente

valorizada, em uma sociedade midiatizada e espetacularizada que (re)cria as representações

das identidades. Nesse processo, elas precisam ser reconhecidas por meio de felicidade e do

sucesso em todos os âmbitos da vida. Assim, à mulher, caberá uma cobrança duplicada (ou

mesmo triplicada) de tal desempenho, da obrigação de se gerir a vida e o cotidiano buscando

sempre alcançar tais valores.

Retornando à relação entre a felicidade e a mulher empreendedora, no sentido de

alicerçar os conceitos desta tese, a noção de empreendedor de si mesmo apresenta um

contexto social em que qualquer indivíduo pode empreender em todos os âmbitos de sua vida,

pública e privada. Esta noção ampla do que é ser empreendedor se concretiza quando é

transmitida efetivamente por um discurso a ser compartilhado socialmente. São narrativas que

reforçam que qualquer indivíduo pode ser empreendedor, bastando para isso ter força de

vontade.

1.4 AÇÕES DE EMPREENDEDORISMO DIRIGIDAS PARA MULHERES

Nos últimos anos, novas iniciativas específicas para as mulheres empreendedoras vêm

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surgindo. Podemos citar como exemplo a criação do portal “Rede Mulher Empreendedora”14,

que divulga diariamente informações, conteúdos, dicas, depoimentos, notícias e práticas sobre

empreendedorismo. A prioridade é a integração, o conhecimento e a troca de informações

entre mulheres empreendedoras. Trata-se de um suporte de serviços com uma base de

membros multiplataforma, que tem como objetivo unir e apoiar mulheres empreendedoras em

todo o país, buscando auxiliá-las no desenvolvimento de seus negócios. Desde 2011 a Rede

Mulher Empreendedora organiza, por exemplo, o evento “Virada empreendedora” com o

NATHEIA15, um espaço de coworking para desenvolver seu próprio negócio, contando com

apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV-GVcenn) e da Neolaw16.

Outra organização que se preocupa em divulgar e legitimar a figura da mulher

empreendedora e do empreendedorismo feminino é a Endeavor, uma das principais

organizações de fomento ao empreendedorismo do mundo. Com base nas histórias de mais de

100 empreendedores apoiados diretamente e no conhecimento de uma rede de mais de 300

mentores e especialistas, ela produz conteúdos que possuem o intento de ajudar

empreendedores a transformar seus negócios em “negócios de sucesso”. A Endeavor centra

suas ações no conhecimento das atividades de empreendedores em todo tipo de informação,

como pesquisas, palestras, depoimentos e eventos que tem por objetivo fomentar boas práticas

de empreendedorismo.

Na pesquisa Empreendedores Brasileiros: Perfis e Percepções, 2013, realizada pela

Endeavor Brasil com o auxílio do IBOPE, que procurou construir um panorama abrangente

do cenário do empreendedorismo no país, encontramos alguns dados que reforçam o interesse

da organização em difundir informações sobre essa forma do fazer.17 O foco da pesquisa

foram os empreendedores, tendo sido examinadas as percepções da população em geral sobre

o empreendedorismo. Ao contrário de estudos anteriores efetuados pela Endeavor, este se

diferencia por compreender os empreendedores brasileiros como sujeitos altamente

heterogêneos, com perfis, ambições e dificuldades distintas.

De modo geral, a referida pesquisa mostrou ser notável a forte aspiração por uma

carreira empreendedora: 76% dos brasileiros prefeririam ter um negócio próprio a serem

14 Disponível em: <www.redemulherempreendedora.com.br>. Acesso em: 16 junho de 2016. 15 Disponível em: <https://www.99jobs.com/natheia>. Acesso em: 16 de junho de 2016. 16 Escritório de advocacia localizado na cidade de São Paulo. Disponível em:

<http://www.neolaw.net.br/site/sobre-nos.html>. Acesso em: 16 de junho de 2016. 17Pesquisa citada nos estudos da Endeavor. “Entrepreneurship in the EU and beyond”. Disponível em:

<http://ec.europa.eu/public_opinion/flash/fl_354_en.pdf>. Acesso em: 16 de junho de 2016.

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empregados ou funcionários terceirizados. Essa proporção é a segunda maior taxa de intenção

empreendedora do mundo, ficando atrás somente da Turquia (EUROBAROMETER, 2012).18

Ademais, a atividade de empreender é considerada pelos entrevistados uma maneira de

alcançar uma maior autonomia e realização profissional e pessoal. Neste sentido, os

resultados da pesquisa apontam que aproximadamente 90% dos brasileiros acreditam que

empreendedores são geradores de empregos, praticamente todos os entrevistados concordam

que ter um negócio próprio é “assumir responsabilidades” e “colocar a mão na massa”.

Esses dados demonstram a preocupação, cada vez mais acentuada, de analisar e

entender a valorização que se cria ao redor da figura do empreendedor, assim como a maneira

naturalizada de enxergar o trabalho centrado em práticas empreendedoras. Este fato pode ser

considerado como uma forma de libertação de vida em comparação ao trabalho assalariado,

mas, na verdade, é uma forma ilusória de modificar o mundo em função de discursos criados

em um espírito do tempo (MORIN, 2007), no qual temas determinados surgem e são

modificados.

Essa valorização do empreendedorismo expresso na pesquisa demonstra uma maneira

de perpetuação do sistema capitalista e do novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI;

CHIAPELLO, 2009). Em um processo simbiótico, a cobrança de resultados e de sucesso que

esse sistema institui, força o sujeito a se moldar a ele, e, assim, ratificá-lo. Os discursos em

torno do trabalho empreendedor podem ser vistos, portanto, como uma construção social,

representando um perfil moral definido e estimulado pelos agentes que atuam nesse campo

(BOURDIEU, 2009). São discursos midiatizados, que em sua maioria se pautam em

pesquisas, depoimentos de vida e casos bem-sucedidos, na busca por legitimar que o

empreendedorismo é uma alternativa de vida promissora. Ocultam-se nessas dinâmicas

discursivas e midiáticas, todavia, os múltiplos interesses econômicos envolvidos no campo.

No caso da pesquisa supracitada, por exemplo, vale a ressalva de que foi desenvolvida

por agenciadores do próprio campo, que têm interesses intrínsecos à mercadorização de dados

e informações relacionados às ações e práticas empreendedoras. Ao mesmo tempo,

encontramos os tensionamentos e críticas necessários ao sistema capitalista e ao próprio

empreendedorismo, porque não podemos desconsiderar as estratégias de comunicação que são

utilizadas para valorizar a própria construção do eu em atividades autoempreendedoras. Eles

dizem respeito à aura de êxito e prosperidade que se cria sobre o empreender. São estratégias

18 Nome de pesquisa citada nos estudos da Endeavor. “Entrepreneurship in the EU and beyond”. Disponível em:

<http://ec.europa.eu/public_opinion/flash/fl_354_en.pdf>. Acesso em: junho de 2016

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comunicacionais que servem como uma proposta de engajamento na direção do

empreendedorismo, numa positivação que o aloca como a melhor forma de agir. Mas se o

empreendedorismo é uma atividade laboral tão promissora, por que muitos empreendedores

fracassam em seus negócios?

A noção de empreendedor é mais ampla no contexto social. Dentro de seus aspectos

de conduta, temos a questão de que qualquer um, em tese, pode ser empreendedor de si

(FOUCAULT, 2008), independentemente de ter ou não um negócio próprio. Deste modo, o

empreendedorismo passa a ser considerado um qualificador moral e de conduta, que abarca

disposições psicológicas, comportamentos e valores pessoais, muitas vezes conflitantes com

as práticas e o convívio social em que se criam identidades e representações de mundo.

1.5 A ENDEAVOR E O DAY1

Discutimos anteriormente que a partir do século XX as transformações

socioeconômicas e tecnológicas contribuíram para a entrada e participação efetiva da mulher

no mercado de trabalho. Nesse contexto, ocorreram profundas modificações no tocante aos

papéis sociais desempenhados pela mulher ocidental, pautados, sobretudo, por sua

legitimação existencial no espaço público. É inegável que as diferenças entre os gêneros não

são apagadas; ainda perduram preconceitos em relação à mulher no mercado de trabalho. O

período de afastamento do trabalho em função do nascimento de um filho, por exemplo, é

comumente considerado como uma redução ou perda de produtividade. Contudo, nessa

relação do trabalho feminino, muitas vezes as diferenças são ocultadas. Podemos apontar aqui

a precariedade das condições de trabalho em bases informais (sem regime de CLT19) e a

questão do desemprego, que impactam diretamente o exercício da mulher no mercado de

trabalho (ANTUNES, 2013).

Atuando em conjunto, esses fatores passaram a definir uma nova constituição e

referência de sociedade contemporânea, com cenários transformados. Neles, tanto os homens

quanto as mulheres são convocados a participar do mercado, o que estimula o engajamento na

ideologia capitalista vigente. Com a ascensão do neoliberalismo a partir da década de 1980,

observam-se grandes transformações na inserção social da mulher no mercado de trabalho,

19 CLT é a sigla da Consolidação das Leis do Trabalho. A CLT é uma norma legislativa de regulamentação das leis referentes ao Direito do Trabalho e do Direito Processual do Trabalho no Brasil. A CLT foi aprovada pelo

Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 e sancionada por Getúlio Vargas, o presidente do Brasil na época.

Disponível em: <https://www.significados.com.br/clt/>. Acesso em: 09 de outubro de 2016.

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sobretudo em função das mudanças ocorridas no modus operandi do capitalismo. A partir de

então se intenta passar a falsa impressão de que as mulheres têm total liberdade de expressão

e escolha em seu agir: basta ter persistência. Mas isso não condiz com a realidade, porque

existem tensionamentos em relação às condições de trabalho para as mulheres. Essa realidade

e articulações do presente são permeadas por questionamentos e conflitos relevantes em

relação às reflexões necessárias quanto ao perfil de trabalho e os comportamentos exigidos

como pré-requisitos para atuar nesse tipo de autoria e produção do sujeito e de si. Este é o

caso da Endeavor, uma agenciadora dos interesses e práticas de informação e formação de

empreendedorismo, organização considerada líder no apoio a empreendedores de alto impacto

ao redor do mundo e que está presente em cerca de 20 países, tendo oito escritórios no Brasil.

Desenvolvendo cursos, livros e vídeos sobre a missão e visão de empresas nos

processos de gestão empresarial, a Endeavor fomenta a produção de discursos (ou de uma

retórica) sobre o empreendedorismo. Dentre suas ações, temos o Day1 Endeavor, um evento

amplamente midiatizado, que se baseia em narrativas autobiográficas de transformação de

empreendedores. Ele começou a ser organizado no Brasil em 2006, e sua característica

principal é a recorrência de uma estrutura e formato de evento pautados no dia da

transformação na vida desses profissionais, ou seja, no “Day1”.

Durante o Day1, as narrativas autobiográficas de transformação são orquestradas e

coordenadas pela agenciadora deste campo de atuação, que é a própria Endeavor. Ela se

utiliza das “vozes” de empreendedores que versam sobre este momento particular em suas

vidas e seu percurso no mundo dos negócios desde então. As apresentações realizadas por

empreendedores no Day1 são filmadas e posteriormente divulgadas no site da Endeavor ou

em mídia social como YouTube. Ao mesmo tempo, existe um processo de produção,

distribuição e consumo das narrativas que estão presentes nestes vídeos, que se tornam

narrativas mercadorizadas, criando uma visibilidade e exposição aos protagonistas das falas

presentes nas imagens, no som e na retórica de transformação apresentado em cada um dos

vídeos.

Cabe relatar que em algumas narrativas presentes nos vídeos divulgados no Day1 a

transformação de vida ocorreu por necessidade de sobrevivência e falta de recursos

financeiros. Não por opção individual, mas, sim, pela precarização laboral caracterizada pela

falta de postos de trabalho, trabalho informal ou sem CLT e/ou salários ruins. Em função das

vulnerabilidades encontradas no mercado trabalho é que algumas dessas mulheres

empreendedoras decidiram por empreender.

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Neste caminho, o estudo sobre o discurso empreendedor desenvolvido por Salgado

(2016) aponta que a presença de diferentes denominações é atribuída à figura do

empreendedor. A autora aborda a questão das mompreneurs, um neologismo que pode ser

traduzido como “mães empreendedoras”. Ou seja, é a mãe que encontra no

empreendedorismo uma forma de exercer a atividade laboral em sua própria residência,

conciliando o trabalho do lar, o cuidado com os filhos e, ao mesmo tempo, exercendo uma

atividade que seja uma fonte de renda. Unem-se o âmbito doméstico ao do trabalho. Para a

autora:

Segundo a maioria dos discursos encontrados na mídia, o grande aspecto

diferenciador em relação ao empreendedor clássico está na valorização da

flexibilidade de horários como meta a ser atingida, mesmo que em detrimento de ganhos financeiros mais altos. Se, para o universo

empreendedor tradicional, o conceito de “flexibilização de horários”

representa, quase sempre, mais horas dedicadas ao trabalho, as mães

empreendedoras buscariam uma carga horária reduzida, de modo a ter mais tempo para os filhos. (SALGADO, 2016, p. 36).

Estando inseridas neste pensamento, muitas mulheres optam pela atividade

empreendedora pela ausência de formação e educação formal, por falta de oportunidades no

mercado de trabalho ou por necessidade financeira – muitas vezes como forma de

complementação da renda familiar. O mompreneurship possibilita (teoricamente) que cada

mulher que opte por empreender decida quanto tempo deve se dedicar às atividades

domésticas e às laborais, de acordo com seu próprio julgamento e prioridades. Salgado (2016,

p. 37) expõe que “no exterior, o segmento já desperta a atenção da mídia há alguns anos, com

blogs20, colunas em sites especializados21 e revistas22 dedicados ao tema”. Se formos

considerar a repercussão do assunto no Brasil, a TV Globo exibiu em 2012ª série Mãe S/A

(2012)23, que posteriormente se tornou pauta do programa Mundo S/A, exibido pelo canal de

televisão fechado GloboNews (2013)24. As três mulheres que participaram da série expuseram

suas experiências enquanto empreendedoras, assim como as dificuldades em manter seus

20 Disponível em: <http://mombizcoach.com/2013/03/12/top-50-mompreneur-blogs/#.Vciz8flViko>. Acesso em:

07/08/2015. 21 Disponível em: <http://www.entrepreneur.com/topic/mompreneurs>. Acesso em: 07/07/2015. 22 Disponível em: <http://themompreneur.com/magazine/>. Acesso em: 06/08/2015. 23 Disponível em: <https://www.YouTube.com/watch?v=4wBQ7inAWlU>. Acesso em: 12 de janeiro de 2017. Trata-se de uma série com três episódios que foram exibidos como matéria no programa Fantástico, telejornal

exibido aos domingos (com duração média de duas horas). A série de reportagens mostrou as dificuldades

encontradas por três mães que resolveram empreender em seu próprio negócio. Cada episódio apresenta quais

foram as dificuldades para empreender e poder conciliar a vida de mãe, esposa e o trabalho. A série contou com

a participação do consultor de carreiras Max Gehringer, cuja consultoria esteve focada nos desafios enfrentados

pelas mães empreendedoras para fazer crescer seus negócios. 24 Disponível em: <https://www.YouTube.com/watch?v=4wBQ7inAWlU>. Acesso em:12 de janeiro de 2017.

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negócios e conciliá-los com a vida doméstica e pessoal. Vale ressaltar que essas mulheres são

representativas da realidade enfrentada por inúmeras outras empreendedoras.

Observamos, então, como as práticas do empreendedorismo são exploradas por

diversos segmentos do mercado, como em matérias jornalistas, livros, cursos, eventos,

palestras e filmes, no sentido de atrair a atenção do indivíduo e apresentar o

empreendedorismo como um caminho de oportunidades para todos. Assim sendo, apesar dos

muitos obstáculos enfrentados, o empreendedorismo é midiaticamente proposto como uma

forma possível de não dependência do emprego formal, da conquista de flexibilidade do

horário de trabalho e/ou de conciliação com um projeto de vida pessoal próspero. Trata-se de

uma retórica que abrange não apenas as práticas laborais das mulheres, mas de toda a

sociedade de modo geral. O empreender passa a ser visto como algo mais que necessário, o

que na prática não é verdadeiro porque nem todos têm este perfil.

É neste sentido, também, que o empreendedor cria outra prática do fazer, sendo autor

de sua vida. Logo, as narrativas das mulheres empreendedoras que participam do Day1

Endeavor, orquestradas pela própria organização, têm como objetivo a produção da mesma

retórica de mercado supracitada. Evidenciam-se a exposição e a visibilidade de discursos que

se concentram em práticas e depoimentos referentes a ações e atividades empreendedoras –

sempre bem-sucedidas. Estamos diante de uma relação entre o empreendedorismo e a

constituição e apropriação de uma identidade feminina voltada a um modo específico de

prática laboral.

Assim, no próximo capítulo, pretendemos refletir sobre a retórica do capitalismo e

suas relações com a atividade empreendedora que está presente neste contexto, e mais

especificamente nessas narrativas de vida e trabalho que circulam e atravessam o novo

espírito do capitalismo, no qual trabalho e vida são transformados para atender ao ideário do

tempo presente (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Ao mesmo tempo, buscaremos entender

a forma como são exercidas as práticas deste novo espírito, as narrativas que se focam em

atividades empreendedoras e os discursos que se relacionam à forma como o campo do

empreendedorismo é constituído, e quais as intersecções acarretadas no que se refere às

mulheres empreendedoras.

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CAPÍTULO 2. O TRABALHO E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO

Neste capítulo temos o objetivo de discutir questões relacionadas às transformações de

mundo e à constituição de identidades que vêm ocorrendo no sistema capitalista na

contemporaneidade, particularmente no que diz respeito à atividade laboral e ao percurso de

vida construídos. Pretendemos refletir sobre como a retórica discursiva aí implicada afeta, de

alguma forma, a construção de identidades e subjetividades em nossas vivências cotidianas.

As ponderações giram em torno do imaginário e das representações de mundo que as

atravessam, legitimando diferentes maneiras de agir e de fazer no que se refere ao trabalho e

ao percurso de vida de cada indivíduo.

Como abordado previamente, há estratégias comunicacionais que buscam legitimar o

pensamento e os valores de que ser empreendedor é uma forma de transformação de si, que

leva a um aprimoramento do próprio sujeito. O trabalho se converte, neste sentido, em uma

ação que obtém sucesso apenas ao ser fundamentado por práticas de autorrealização (MORIN,

2007; EHRENBERG, 2010). Concomitantemente, as narrativas sobre empreendedorismo se

inserem em práticas de produção, circulação e consumo, que entremeiam toda a

autoconstrução de si em tal cultura empreendedora.

Nesta conjuntura o trabalho é comumente tido como sinônimo de “emprego”.

Entretanto, o trabalho deve ser compreendido de modo mais amplo, como uma atividade que

consolida o ser humano enquanto um ser social (SCHWARTZ, 2011). O trabalho congrega

em si uma série de fatores socioculturais, que acabam por moldá-lo. Assim, quando falamos

em empreender ou empreendedorismo, deparamo-nos com um tipo de enquadramento social e

de interpretação sobre o trabalho e, por consequência, sobre o empreendedor, visto como um

gestor tanto de seus negócios quanto de sua própria vida. Tal ideal de gestão pode ser

consolidado, como vimos, em processos comunicativos, materializando-se por meio de

narrativas e histórias de vida exemplares (BUONNANO, 2011). Estas, por sua vez,

correspondem a uma trajetória pessoal pautada em um perfil moral que alicerça todas as

atividades de negócios e ações do cotidiano (EHRENBERG, 2010).

Consideramos relevante, por conseguinte, apresentar alguns conceitos sobre a

importância do trabalho em nossas vidas, partindo de Weber (2004) e autores que dialogam

com seus pensamentos, antes de partirmos para as reflexões acerca do novo espírito do

capitalismo.

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2.1 QUESTÕES RELATIVAS AO TRABALHO

Tanto Marx (2003) como Weber (1997) procuraram compreender o sistema capitalista

e as transformações socioeconômicas suscitadas por ele. Os autores, porém, não seguiram os

mesmos percursos epistemológicos sobre a temática.

Marx (2003), por exemplo, considerava que o capitalismo surgiu em função de

atividades relacionadas a questões primordialmente produtivas e econômicas. Já Weber

(1997) entendia que no capitalismo existiam outros fatores associados às práticas sociais, que

envolvem a vida dos indivíduos e transformam sua forma de pensar. Ou seja, sua

compreensão de capitalismo o dispunha enquanto um sistema legitimado pela presença de

organizações que tinham como meta sistematizar a produção e o trabalho para conseguir o

maior lucro possível: imperam a racionalidade e a lucratividade.

Na obra “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, Weber (1997) apresenta

vários questionamentos para compreender o porquê de o capitalismo emergir na Europa e

somente no século XVI. Ao mesmo tempo, demonstra que nem toda nação adentrou de modo

igualitário nesse sistema; isto nos parece, de partida, um sistema desigual. Na época, os

estudos de Weber revelaram ser os protestantes a grande maioria dos gestores de empresas na

Europa, ficando claro que esta era uma importante característica a tal sistema capitalista: a

existência de valores originários do protestantismo (idem). Deste modo, a ideologia

protestante passa a impactar as lógicas de trabalho no capitalismo moderno.

Weber (1997) passou, então, a examinar de forma mais profunda as implicações e

efeitos que as orientações religiosas imprimiam à economia e ao mundo do trabalho. O autor

deu destaque à ética protestante calvinista, constatando que os protestantes se envolviam com

atividades e ramos mais técnicos, destinados a ações industriais e negócios comerciais,

alicerçados em habilidades individuais. Em sua definição sobre o “espírito do capitalismo”,

Weber (idem) discursa sobre as regras: nelas ele observa a manifestação de um certo espírito

moral ou ethos a ideia da profissão como dever e a necessidade de se dedicar ao trabalho

produtivo como um fim em si mesmo. Entretanto, inserido nos estudos e perspectivas de

Weber, Pierucci (2003, p. 81-82) argumenta que “ninguém nasce religioso”, pois “o homo

religiosus é produzido por profissionais da religião, por especialistas em religião, pelos

peritos do discurso místico, pelos experts da metafísica, pelos virtuosos de ouvido

musicalmente religioso”, sendo a religião algo produzido socialmente.

Isto nos leva às origens religiosas do capitalismo e ao conceito de vocação de

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Martinho Lutero. Verificando a tradução que Lutero fez da Bíblia e do termo “profissão” ou

“vocação” em alemão, beruf, ele considerou estar aí presente a ideia de uma missão dada por

Deus. Lutero teve um papel importante na origem do espírito do capitalismo ao considerar a

ascese (na filosofia grega, conjunto de práticas e disciplinas caracterizadas pela austeridade e

autocontrole do corpo e do espírito) e, que acompanham e fortalecem seus estudos teóricos

em busca da verdade que era exercido pelos monges em suas práticas cotidianas. Neste

sentido, Lutero considerava um valor religioso ao trabalho em que existia o senso de

disciplina e dever das pessoas que seguiam a religião, o fiel e o monge. Mas, em Lutero, o

tipo de profissão exercida pelo indivíduo ainda era concebido de forma tradicionalista. Não

era a intenção de Lutero dar sustentação ideológica ao capitalismo nascente, pois a influência

de seus estudos é concebida por Weber como uma consequência não premeditada por ele. Não

obstante, Weber tem a intenção de averiguar qual é a “afinidade eletiva” entre a moral

protestante e a conduta capitalista25como um modo de ser e representar o mundo daquela

época.

Para Weber existia um conceito de vocação associado ao trabalho, mas a palavra

“vocação” possui significados distintos. Originalmente, da forma como foi estudado por

Weber (2001), este conceito detinha um entendimento de chamado divino, ou seja, um

ordenamento e uma sugestão com o propósito de que o indivíduo executasse determinada

tarefa ou atividade, sendo considerado um “chamado” para uma atividade na terra. Ou seja,

nos estudos com abordagem weberiana, qualquer ação e/ou atividade social é centrada no

sentido da vocação, vista como um chamado divino, com viés religioso.

Weber acreditava que o homem e sua atividade laboral, no interior de um contexto

fortemente religioso, tinham uma influência direta da religião. Isso implicava devoção ao

trabalho enquanto meio de salvação do indivíduo e o entendimento do exercício de sua

atividade enquanto uma vocação divina. Para Pierucci (1998), existiu um questionamento da

vertente religiosa e seu poder no pensamento moderno, subtraindo a questão da religião para

ajudar a integração e o bem comum dos indivíduos. Centrado em estudos de Weber, Pierucci

contextualiza que:

A secularização, por sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural

contra a religião, tendo como manifestação empírica no mundo moderno o

declínio da religião como potência in temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a depressão do seu valor cultural e sua

demissão/liberação da função de integração social. Encavalando-se ambos os

25 Disponível em: <http://zip. net/bbtCL1>. Acesso em: jan. 2017.

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processos no processo de modernização, o efeito deste sobre a religião não

pode não ser senão negativo, já que consolida e faz avançar o

desencantamento do mundo através de uma crescente racionalização da dominação política que é, como adiante veremos ao tratar da sociologia do

direito de Weber, irresistivelmente laicizadora (PIERUCCI, 1998, p. 51).

Estas manifestações que apontavam o declínio da força da religião e do Estado

interferiram, na modernidade, na organização e na forma de agir, afetando as relações

interpessoais, a integração social e o pensamento no bem comum. Também não se pode

esquecer que o sentido da palavra “vocação”, na contemporaneidade, sofreu alterações: passa

a ser considerado sinônimo de “aptidão” ou “habilidade”, correspondendo a práticas que se

mesclam ao trabalho exercido e ao empreendedorismo. E a valorização dessa atividade

laboral, desde a Reforma Protestante, resultou em uma concepção positivada de trabalho, que

pode ser observada, por exemplo, na expressiva valorização do empreendedor: basta atentar

para como é normalmente alocado em posição de alto status social. De acordo com Silveira

Leite e Máximo e Melo (2008, p. 512), trata-se de uma realidade que tem, “como função

ideológica principal, ressignificar e, portanto, naturalizar a posição do empreendedor

enquanto um vencedor na disputa social”.

Neste sentido, podemos fazer uma analogia entre a lógica de convocação do trabalho

conceituada por Weber e a lógica de convocação do trabalho no tempo presente. Inseridas

neste contexto, temos imbricadas questões identitárias e de assujeitamento, de modo a

requerer uma participação centrada nas crenças renovadas do capitalismo, que prima por

atividades pautadas no empreendedor de si (FOUCAULT, 2018), nos negócios e na vida

pessoal.

Em tal contexto, as atividades relacionadas ao empreendedorismo podem ser

consideradas enquanto renovação, transformação e/ou uma maneira de reorganizar a vida em

bases mais flexíveis de exercício laboral – sem deixar, todavia, de reforçar os preceitos do

capitalismo. Dos discursos à práxis, atuam, assim, no sentido de justificar a perpetuação desse

sistema socioeconômico.

Assim, existe uma preocupação constante de renovação das narrativas de vida

inseridas em valores e práticas do sistema capitalista que tem o objetivo de defender seus

modus operandi. Para que isso aconteça é fundamental uma transformação no exercício da

atividade laboral, no sentido de que todos estejam engajados na forma de operar deste

sistema. Cada indivíduo precisa se moldar, portanto, às lógicas de produção e aos valores

construídos coletivamente, como forma de interação e inserção junto a determinado contexto

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social.

Com base nesta visão de mundo, a partir da produção, circulação e consumo de tais

narrativas autobiográficas de transformação, encontramos identidades e perfis morais que

estão arraigados na cultura empreendedora contemporânea. Os estudos de Boltanski e

Chiapello (2009) sobre o novo espírito do capitalismo sustentam que as relações de trabalho e

da vida cotidiana estão condicionadas ao engajamento ao sistema capitalista, perpetuando-o

como um modelo normativo que reverbera na própria concepção de trabalho.

Para Fígaro (2008, p. 14), “o trabalho é atividade humana que comporta uma herança

cultural e história das técnicas, da experiência das gerações passadas e da experiência pessoal,

o que permite ao homem uma transcendência criativa”. Já de acordo com Schwartz (2011),

“trabalhar é gerir”, e para gerir todas as ações do fazer (trabalho), temos de usar mente e

corpo, sendo que o papel do sujeito na sociedade é em grande parte delimitado por tais ações,

modos de fazer e produzir a si mesmo. Além disso, devemos considerar as experiências de

vida e os discursos que legitimam esse gerir. Em suma, “o trabalho é muito mais do que a

fonte de toda a riqueza, sendo também a condição basal e fundamental de toda a vida humana,

(...) o trabalho criou o próprio homem” (ANTUNES, 2004, p. 13).

No trabalho, estão intimamente relacionados produção, circulação e consumo. Daí

decorre sua importância nas formas de representação e significação social, que, como

relatamos, alteram-se no espaço e no tempo. Weber (2004), por exemplo, aponta como nos

primórdios do sistema capitalista o trabalho era dever, rotina, motivo de orgulho, visto como

um valor moral, religioso e forma de subsistência: havia um dever perante o contexto social

em se exercer uma atividade laboral.

No trabalho mercantil, as normas antecedentes estão mais próximas do trabalho como prescrições, procedimentos, constrangimentos, relações de

autoridade, de poder, mas também os saberes científicos, técnicos, as regras

jurídicas, as experiências capitalizadas, tudo o que antecipe a atividade

futura de trabalho, antes mesmo que a pessoa tenha começado a agir. As ‘renormalizações’ são as múltiplas gestões de variabilidades, de furos das

normas, de tessitura de redes humanas, de canais de transmissão que toda

situação de trabalho requeira, sem, no entanto, jamais antecipar o que elas serão, na medida em que essas renormalizações são portadas por seres e

grupos humanos sempre singulares, em situações de trabalho, elas mesmas,

também sempre singulares (SCHWARTZ, 2011, p. 34).

Na contemporaneidade, os acontecimentos que marcam a atividade laboral são

exercidos por normas legais, estipuladas e acordadas nas interações jurídicas e sociais. Assim,

os discursos centrados na transformação constante do sujeito se pauta em regras que definem

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e padronizam comportamentos e formas de pensar. Almeja-se suprimir os embates

fomentados pelas desigualdades, precariedades e explorações no campo do trabalho.

É fato que a desigualdade de oportunidades em relação aos postos de trabalho persiste,

assim como as diferenças exorbitantes de remuneração. Nessas articulações sociais em torno

do trabalho, até mesmo a questão da representação e da visibilidade está instaurada. Devemos

sempre relativizar o poder de fala e os conhecimentos de cada sujeito, pois na maioria das

vezes prevalecem os interesses das classes hegemônicas. Em conformidade com Schwartz

(2011), podemos considerar que cada sujeito encontra uma maneira singular de construção do

gerir e o fazer, como uma legitimação de si, de sua trajetória de vida. Ao mesmo tempo, cada

sujeito reconfigura as regras aí colocadas, o que significa que elas são reapropriadas nas

interações sociais de trabalho, acarretando transformações de tais modos de fazer e agir. Essas

normatizações em relação ao trabalho são processos em movimento: em cada época, do

campo para a cidade, da fábrica para o operário, da corporação para o funcionário, da cultura

empreendedora para o indivíduo.

Seguindo nesta direção podemos apreender as modificações pelas quais as práticas

laborais vêm passando, inclusive na esfera midiática. Casaqui (2012, p. 169) afirma que:

A sociedade midiatizada contemporânea, ao se valer da existência humana

como fonte para a construção de suas narrativas – seja na produção midiática

em sentido mais restrito, seja nas apropriações e novas enunciações dos sujeitos e na circulação social dos discursos de maneira ampla – ancora-se

nas imagens e significados do trabalho e da produção como repertório

compartilhado, como forma de estabelecer contato com a experiência de vida

das pessoas.

Ao se exercer uma dada atividade laboral, não importa em qual área de atuação, há um

compartilhamento de repertórios de vida, conhecimentos e habilidades técnicas, que se unem

às estratégias e processos comunicacionais. Para tanto valemo-nos de narrativas acerca do

trabalho como forma de inserção social e legitimação dessas ações por meio de processos

comunicacionais espraiados. Para Giddens (2002, p. 80), “o trabalho não está de nenhuma

maneira completamente separado da arena das escolhas plurais, e a escolha de trabalho e do

ambiente de trabalho constitui um elemento básico das orientações de estilo de vida na

extremamente complexa divisão moderna de trabalho”.

O trabalho pode ser compreendido por meio da produção, distribuição e consumo de

representações de vida, como o fazer que auxilia na constituição de identidades, escolhas e

estilos de vida que o sujeito desenvolve ao longo de sua trajetória pessoal. Isso não é diferente

quando falamos sobre o empreendedor. Em narrativas autobiográficas de transformação da

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vida, por exemplo, o trabalho se apresenta de acordo com representações e construções de

mundo definidas quase exclusivamente em relação ao trabalho. Para Antunes (2004, 2013), a

classe trabalhadora de hoje é complexa, fragmentada e heterogênea, havendo tensionamentos

intrínsecos entre ela e as organizações de mercado. Verificam-se nesse processo jogos de

interesse econômico e de poder, nos quais temos a articulação de narrativas alicerçadas em

práticas e valores da atual retórica de transformação do fazer e do agir, bem como, o trabalho

articula representação e constituição do sujeito em sua legitimação e ideário de vida. Assim,

entendemos que essas narrativas de transformação circulam pela ideologia que suporta os

acontecimentos e ações do cotidiano, pautando a vida espetacularizada, midiatizada e

direcionada ao trabalho.

As narrativas sobre o trabalho podem trazer consigo representações heroicas, que

primam por uma conduta baseada em persistência, dedicação e resiliência. Estamos falando

de homens e mulheres que se transformam em verdadeiros representantes da construção social

do tempo presente, como é o caso dos empreendedores. No entanto, o trabalho sempre

dependerá das relações socioculturais, onde reinam interesses hegemônicos, ditando modos de

agir específicos. São interesses imbricados, que ocultam embates no que se refere às formas

organizativas do trabalho, gerando uma falta de equidade. O empreendedorismo, por exemplo,

pode acobertar, muitas vezes, as diferenças sociais existentes no âmbito laboral.

Assim, as relações de trabalho se tornam cada vez mais precarizadas na

contemporaneidade (ANTUNES, 2013). A preeminência da autonomia cristalizada no ato de

empreender não revela todas as condições de trabalho encontradas em nossa sociedade e

cultura, tais como: perda de benefícios, direitos e estabilidade, apenas para citar algumas. Esse

ocultamento acaba transparecendo na vida narrativizada dos indivíduos, que revela uma

valorização em torno da cultura e da prática empreendedora. Ela omite, no entanto, múltiplas

dificuldades: a falta de postos de trabalho, o empobrecimento, a precarização da vida de

muitos trabalhadores.

As narrativas autobiográficas de transformação, como aqueles presentes no Day1

Endeavor, correspondem a esse modelo, cujos processos comunicacionais midiatizados

exaltam os valores do fazer e do agir pautados na construção de si. Estamos diante de um

contexto social que dá suporte a narrativas autobiográficas de transformação de vida centradas

no empreender a si. Na vida narrativizada, o sujeito enunciador acaba por integrar uma

estratégia de comunicação calcada no trabalho e na vida bem-sucedida. Isso está no centro das

práticas da cultura empreendedora, como observamos no evento Day1 Endeavor.

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Pierre Dardot e Christian Laval contribuem para pensarmos sobre o que está em jogo

no âmbito da sociedade neoliberal. Para os autores, o neoliberalismo não é somente um

sistema socioeconômico, mas, sim, um processo pautado em competição, que molda a vida e

a subjetividade dos indivíduos tanto pelas atividades do mercado como pelo poder do capital

(DARDOT; LAVAL, 2016).

Assim, ao fazermos uma analogia entre o indivíduo e o contexto neoliberal do

presente, podemos notar que ele centraliza suas ações de trabalho e de vida no sentido de ter

sempre um bom desempenho, que vai além dos negócios, implicando na adoção dessa lógica

nas práticas do cotidiano. Este sistema, com normas e capacidade de produzir resultado

socioeconômico, acaba por influenciar os indivíduos, as organizações corporativas e o

governo. Isso porque às vezes não se tem plena consciência do processo normativo que altera

nosso modo de pensar e de agir. Como explicam Dardot e Laval (2016, p. 16):

Esta norma está centrada numa racionalidade em que cada um deve ser visto

como uma empresa e agir dentro de uma competividade generalizada e

entrar numa luta econômica uns contra outros que acaba por ditar as relações sociais segundo uma visão de mercado, que exige que o indivíduo passe “a

comportar-se como uma empresa”.

O neoliberalismo, assim, possui consequências que recaem sobre as subjetividades e a

forma de agir dos indivíduos, podendo ser considerado uma nova forma de governo. Utiliza-

se de práticas e discursos que exaltam que cada agente social é responsável pela condução de

sua própria vida, exatamente como se estivesse administrando a si mesmo como um negócio

ou uma empresa. Transfere-se ao indivíduo toda a responsabilidade por agir (ou não) de

acordo com essas normas, discursos e interesses vigentes, podendo ser tido como “um novo

modo de governo dos homens” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16).

Contudo, o indivíduo inserido no neoliberalismo é instigado, constantemente, a ter o

melhor desempenho possível e ser empreendedor de si: molda-se para ganhar e vencer em

todas as práticas do cotidiano, buscando nunca ser um loser (perdedor). Ou seja, existe a

valorização do desempenho, havendo uma analogia entre os campos do esporte e do

trabalho1: o indivíduo tem de ultrapassar metas e resultados, fazer sempre mais e melhor. No

esporte, de acordo com a Ehrenberg (2010), existe uma forte competição, que acaba

repercutindo nas representações do trabalho. Neste âmbito, devemos competir e sempre

buscar a superação de si, tornando o desempenho uma forma naturalizada de construir

subjetividades. Ao mesmo tempo, torna-se senso comum que todos devem perseguir o melhor

desempenho e a superação de si, no trabalho e na vida. O contexto neoliberal renova, então,

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seus processos comunicacionais para se manter como dominante e hegemônico.

Por fim, devemos ter em mente que as relações que envolvem o capital são cercadas

por uma infinidade de interpretações, o que permite que o sujeito consuma materialidades e

simbolismos dispostos em um panorama reticular de sentidos, gostos e status. Toda essa

dinâmica passa constantemente por transformações, resistências e tensionamentos.

2.2 PROCESSOS COMUNICACIONAIS E O NOVO ESPÍRITO DO CAPITALISMO

O processo comunicacional e as estratégias presentes na construção social das vidas

narrativizadas presentes no evento Endeavor legitimam a identidade do empreendedor que ali

se encontra, baseando-se em uma conjunção entre as relações laborais e sua própria história

de vida. Nesse contexto, encontramos um processo que, segundo Fausto Neto (2006, p. 11),

“(...) é a instância das linguagens como formas pelas quais os processos de midiatização

realizam, dentre tantas coisas, as operações de inteligibilidade das realidades, (...) e também a

própria construção de realidades”.

As “linguagens”, na visão do referido autor, colocam “a midiatização em processo”,

em uma “prevalência da forma sobre o conteúdo semântico” (FAUSTO NETO, 2006, p. 9). Já

para Braga (2006), que segue a linha de estudo da tradição social-construtivista26, estamos

vivendo um momento e processo de interação e comunicação com foco na referência do texto

(escrito/oral), mas que transita a um contexto em que a referência se baseia na tecnologia

(imagens, sons e processos de tecnologia da informação). Trata-se de um processo

interacional, que se refere não só à hegemonia e à preferência por um modo de relacionar-se

(texto oral ou escrito, verbal ou não verbal, por exemplo), mas que também considera a

sociedade através desta relação com os meios (BRAGA, 2006). Para o autor, a midiatização

pode se relacionar a processos específicos que se desenvolvem de acordo com o tipo de mídia

a ser utilizado como forma de entretenimento, de espraiamento político, consumo de imagens,

sons e textos, que estão relacionados a um nível mais amplo, no sentido de a sociedade estar

midiatizada. Basta notar os inúmeros aparatos tecnológicos que promovem tal midiatização e

interferem em nossa forma de agir e pensar.

26 A vertente social-construtivista entende o conceito de midiatização como um processo de construção

comunicativa da realidade social e cultural. Trata-se de uma concepção mais aberta que a lógica da mídia, pois enfatiza a complexidade da mídia como instituição e tecnologia. Disponível em:

<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2477&secao=289>.

Acesso em: 20 de março 2017.

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O conceito de midiatização se relaciona intimamente com nosso objeto de estudo, pois

nele temos a presença de recursos imagéticos e tecnológicos que são utilizados na

apresentação das narrativas de vida de empreendedoras de sucesso. As próprias

corporalidades das empreendedoras na disposição de palco (lugar de fala de destaque) são

parte desse processo de narrativização de si que o Day1 suscita. Vale ressaltar que neste

processo de exposição e visibilidade midiatizadas o empreendedor de si pode ser considerado

como um indivíduo bem-sucedido e com desempenho laboral eficiente, explorados por um

intenso processo de exposição do eu que reforça práticas de mercado e o trabalho (com base

no neoliberalismo) de modo amplamente espetacularizado. Ao mesmo tempo, encontramos a

articulação do percurso de vida exposto na mídia, a partir da qual as subjetividades se

expressam e as interações entre o eu e o outro são estabelecidas.

Para Livingstone (2009), antes as pesquisas em comunicação exploravam sempre um

meio de comunicação específico e suas finalidades (vide títulos de livros como: “Televisão e

as Crianças” ou “Meios de Comunicação de Massa e Saúde Pública”). Na atualidade,

contudo, ocorre uma mudança, passando-se a explorar questões de mediação e midiatização.

Assim, fica claro que a figura sociocultural depreendida da exposição do empreendedor está

inserida neste processo de articulação da comunicação midiatizada (tecnológica), que explora

a palavra transformação e o exercício do fazer, a representar o novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), no qual as ações baseadas nos comportamentos e

crenças de transformação de si adquirem centralidade.

A vida narrativizada se apresenta como uma forma de transformar a si e conceber uma

disposição identitária que espraia e prestigia, ao mesmo tempo, uma ideologia

empreendedora. Neste sentido, a Endeavor pode ser considerada uma orquestradora de tal

processo, uma vez que se vale de estratégias comunicacionais e retóricas que ratificam o

empreendedorismo, e, por extensão, o sistema capitalista. Nessa conjuntura, adquire destaque

o papel substancial das narrativas na produção, circulação e consumo de uma cultura

empreendedora.

Intentamos tensionar, portanto, a mudança enquanto um eixo relevante a ser

considerado no novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), no qual as

relações sociais e a retórica sobre o trabalho são profundamente (re)configuradas. Também

levamos em conta a importância das narrativas autobiográficas de transformação como forma

de representação das subjetividades e construção de identidades, articuladas por processos

comunicacionais que permeiam os discursos e as práticas laborais.

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Na contemporaneidade o que muda é a existência de uma série de prescrições morais

associadas à noção de ser empreendedor, e de possuir um “espírito de empreendedor”, ou seja,

de ser responsável por empreender a si mesmo e ser efetivo na condução das atividades

laborais e da vida pessoal cotidiana. Na condução de sua vida, destaca-se a função substancial

das narrativas midiáticas na difusão de preceitos morais e de conduta, tanto para o

empreendedor quanto para todos nós. Trata-se de, por meio do empreendedorismo e do

autoempreendedorismo, inspirar o outro a seguir esse mesmo modelo de vida. Assim, essas

narrativas podem destacar uma visão de mundo intimamente condicionada à ideologia que

fundamenta o empreendedorismo – considerando ideologia com base em uma determinada

visão de mundo assentada na leitura de práticas sociais e seus múltiplos embates.27

Logo, a ideologia vigente no novo espírito do capitalismo impacta tanto as estruturas

sociais quanto o sujeito, principalmente no que diz respeito às atividades laborais que exerce.

As narrativas autobiográficas de transformação presentes no Day1 Endeavor, ao focarem no

trabalho e na transformação por meio do agir (quase sempre individual), sintetizam essa

essência do novo espírito do capitalismo. Vale mencionar que nesse agir pode ser observado

um culto à alta performance, promulgando de certa forma a necessidade de se ter excelência

em todas as atividades cotidianas (EHRENBERG, 2010). Isso corrobora o fato de que o

contexto sociocultural no qual o novo espírito do capitalismo emerge está impregnado de

valores meritocráticos, de transformação de si e de alto rendimento, características intrínsecas

à ideologia atual. Neste sentido, o sujeito é o único responsável por seu sucesso e por sua

felicidade – o que o leva a estar constantemente atento à atualização de seu conhecimento. De

acordo com a visão de Dardot e Laval (2016), a ideologia presente no neoliberalismo constrói

um novo indivíduo, que crê ser um empreendedor se si e autor de sua vida, ao mesmo tempo

em que ocorre a midiatização e exposição de um eu performático, bem-sucedido e

transformador que ratifica tal concepção.

Como uma agenciadora deste campo temos a organização Endeavor, que possui

27 Todo discurso possui uma (ou várias) ideologia, que relaciona as marcas deixadas no texto com as suas

condições de produção, inseridas em uma formação ideológica. Essa dimensão ideológica do discurso pode tanto

transformar quanto reproduzir as relações de poder. Para Marx, a dominação se dá pelas relações

de produção que se estabelecem, e as classes que estas relações criam numa sociedade. Por isso, a ideologia cria

uma “falsa consciência” sobre a realidade, com o objetivo de reforçar e perpetuar tal dominação. Já

para Gramsci, a ideologia não é enganosa ou negativa em si, mas constitui um ideário de determinado grupo

social; em outras palavras, pode-se dizer que Gramsci rejeita a concepção crítica e adere à concepção neutra de

ideologia. Para Althusser, que recupera a ótica marxista, a ideologia é materializada nas práticas das instituições, e o discurso, como prática social, seria então uma “ideologia materializada”. Por fim, para Paulo Freire, a

ideologia tem a ver com a ocultação da verdade dos fatos, com o uso da linguagem para encobrir a realidade.

Disponível em: <http://zip. net/bjtCP8>. Acesso em: 12 de dezembro de 2016.

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interesses próprios em fomentar a ideologia e as práticas sociais fundamentadas pela e na

cultura empreendedora. No caso do Day1, observamos que as empreendedoras que participam

do evento narram suas vidas a partir de dois momentos distintos, associados a tal

ideologia/cultura: um anterior ao turning point (o momento de virada e mudança do saber e do

agir), e outro posterior a ele, no qual a vida já está transformada em todos os seus aspectos –

transformação que ocorre, cabe ressaltar, por intermédio das práticas empreendedoras. Essas

vidas passam a ser definidas por construções, representações de vida e valores estruturados na

interação sujeito-empreendedorismo.

O empreendedor se converte, neste âmbito, no que intitula de “olimpiano”. Para Morin

(2007, p. 113), “conjugando a vida quotidiana e a vida olimpiana, os olimpianos se tornam

modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida. São heróis

modelos. Encarnam os mitos de autorrealização da vida privada”. São como um outro estrato

de pessoas, cuja influência sobre a cultura é extremamente expressiva. Suas vidas passam a

ser modelos de vida a serem seguidos. Sendo assim, o conceito de olimpiano pode ser

vinculado aos empreendedores uma vez que são constantemente alocados em um patamar de

celebrização. Suas narrativas de vida, por conseguinte, transfiguram-se em exemplos de ser e

fazer, enfatizando um lugar de fala tido como “especialista”, um paradigma de sucesso que os

separam dos demais indivíduos da sociedade.

É neste sentido que dispomos as mulheres empreendedoras nesse olimpo. Isso porque

elas são tidas, assim como o empreendedor de modo geral, como um ser mítico do tempo

presente; podem inclusive ser comparadas as heroínas de todos os dias (BUONANNO, 2011).

Para o autor, todo mundo pode ser considerado herói, mesmo que ninguém o seja. Assim, em

função da forma como se narra a vida, as habilidades adquiridas e o agir de diferentes

indivíduos, podemos interferir no imaginário social vigente, onde encontraremos indivíduos

reconhecidos como inovadores e transformadores. Concomitantemente, estes discursos se

tornam visíveis e valorados no plano midiático.

Torna-se patente que o “perfil empreendedor” é, então, reiteradamente valorado, seja

em seus conhecimentos, na moral e/ou enquanto agente de transformação e mudança social.

Na prática, o sujeito com tal perfil moral é reputado como aquele que tem formação, é

resiliente, corre riscos e desenvolve atividades de negócio próprio, sendo ator e empreendedor

de si (FOUCAULT, 2008) no trabalho e na conduta pessoal. Verifica-se, neste sentido, como

os discursos sobre o empreendedorismo (e o empreendedor) são uma construção

sociocultural, cuja validação se processa repetidamente no interior do sistema capitalista, ou

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do novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Obviamente, estamos

diante de uma concepção de mundo distorcida, porque nem todo sujeito pode empreender e

nem todo empreendedor é um empreendedor de sucesso.

Assim, a mídia é uma instância central no que concerne à produção, circulação e

consumo dessas narrativas. Sua midiatização aloca o empreender como sendo a melhor ou a

única forma possível de agir, compondo um ideário de vida, uma cartilha a ser seguida. O

empreendedor se converte naquele capaz de sanar problemas socioeconômicos e conduzir a

sociedade ao progresso. Entretanto, os discursos midiatizados sobre o empreendedorismo não

condizem plenamente com a realidade, pois apesar da difusão da máxima de que qualquer um

pode empreender, trata-se de uma atividade laboral que demanda conhecimentos e habilidades

especializados diante da concorrência do mercado, e que apresenta uma série de riscos,

incluindo a perda do capital investido no negócio. Ou seja, a retórica que valoriza que

qualquer indivíduo pode empreender a si não significa que o mesmo possa ser visto como

empreendedor com êxito nos negócios e bem-sucedido. Nesta valorização das atividades do

empreendedor, há, por conseguinte, uma ocultação das diferenças sociais, econômicas e/ou

educacionais que impactam o próprio fazer do e no empreendedorismo.

Ao nos voltarmos às narrativas autobiográficas de transformação, como verificadas no

Day1 Endeavor, temos a presença de processos comunicacionais que exaltam a forma de

trabalho de práticas empreendedoras. Ao mesmo tempo, constroem-se representações e

imaginários de mundo em torno da atividade empreendedora, por meio dessas mesmas

práticas discursivas. A retórica daí resultante pode ser considerada como “narrativas de

inspiração, a produzir seus consumidores simbólicos como sujeitos a serem inspirados,

mobilizados a agir em certo mimetismo em relação à narrativa exemplar”, elegendo “aquelas

que guardam relação com o ideário da sociedade empreendedora” (CASAQUI, 2015a, p. 1).

Estamos falando de um contexto que se espraia na cultura empreendedora, alicerçada

por narrativas inspiracionais (CASAQUI, 2015a), em que temos a presença de um modelo

comunicacional associado a temas que atravessam os pensamentos e as formas de ser e agir na

contemporaneidade. Isso tem implicações nos processos comunicacionais interpessoais, nos

quais tanto as histórias de vida estão articuladas quanto os regimes de convocação biopolítica

(PRADO, 2013). Os sujeitos, neste sistema, são convocados a participar e a estar engajados

em seus valores e práticas, calcados no neoliberalismo. Assim, podemos afirmar que as

empreendedoras que participam do Day1 Endeavor protagonizam “o empreendedor de si”,

transformando-se continuamente para ser um gestor eficaz de seu capital humano

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(CASAQUI, 2016).

2.3 A FIGURA DO EMPREENDEDOR: REPRESENTAÇÕES DE MUNDO

Na contemporaneidade, o sujeito empreendedor é considerado como aquele capaz de

salvar a sociedade de todas as deficiências e males socioeconômicos. Somos constantemente

instigados a fazer parte dessa cultura empreendedora, estimada de forma substancial pelo

sistema capitalista e ainda mais estimulada pelo neoliberalismo. Para Ehrenberg (2010, p. 13),

“o empreendedor foi erigido como modelo da vida heroica porque ele resume um estilo de

vida que põe no comando a tomada de riscos em uma sociedade que faz da concorrência

interindividual uma justa competição”. O empreendedor passa a ser tomado como um agente

imprescindível à sociedade, haja vista sua pretensa resiliência, idoneidade para a gerência dos

negócios (e de sua própria vida), domínio técnico e habilidades específicas de conhecimento.

A valorização de traços atribuídos ao empreendedor está correlacionada ao que

Ehrenberg (2010) nomeia de “culto à performance”. Além de possuir um perfil inovador e

transformador, o empreendedor deve ser capaz de melhorar sua performance de forma

contínua, superar limites, ultrapassar metas, enfim, reinventar-se a cada dia como uma versão

aprimorada de si mesmo. Como exemplo, podemos citar um caso que foi superexposto na

mídia e que exemplifica bem essa questão de constituição e representatividade de forma

midiática: Eike Batista.

Eike foi considerado a pessoa mais rica do Brasil em 2009, e chegou à sétima

colocação dos mais ricos do planeta, segundo a revista Forbes. Entretanto, após uma série de

problemas com suas empresas, que não conseguiram concluir projetos propostos, sua fortuna

foi reduzida a menos de dois bilhões de reais, em 2014. Tendo sido por muitos anos o

empresário mais rico do país, sua vida foi retratada midiaticamente como modelo de

sucesso.28

Por isso, a construção simbólica de “personagens midiáticas” (que nem sempre

apresentam de forma verídica a conduta do indivíduo retratado) se difunde por meio de

acontecimentos centrados em narrativas institucionalizadas, em textos e imagens que

reverberam na mídia. Deparamo-nos com construções midiatizadas de vida, que se utilizam

da suposta boa performance do indivíduo para celebrizar seus feitos. No caso de Eike, como

28 Disponível em: <http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/01/17/apos-venda-de-empresas-eike-fica-

com-r->. Acesso em: 13 de abril de 2017.

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abordado por Freire Filho e Castellano (2012), o empresário é revelado por um processo de

midiatização que o caracteriza como um empreendedor de sucesso. Há, portanto, uma

construção identitária projetada que distorce ou mesmo não corresponde à vida real (idem).

Desde 2016, por exemplo, o nome de Eike Batista vendo sendo associado a escândalos de

corrupção e fraudes financeiras. Isso descontrói (também midiaticamente) sua imagem de

empresário-modelo anteriormente tão explorada de maneira positiva e, de certo modo,

mítica.29

Tal lógica de culto à alta performance (EHRENBERG, 2011), como visto

anteriormente, possui uma semelhança ao campo do esporte profissional, estudado por Freire

Filho (2011). Podemos verificar, por exemplo, como é amplamente empregada nas

representações sobre o empreendedorismo nas organizações, onde a gestão de superação de

metas profissionais e a gestão de afetos é vista de maneira crítica. O referido autor questiona a

valorização da superexposição direcionada ao mérito e superar os limites em tudo que

praticamos. Nas palavras do autor:

Um discurso de honra ao mérito individual que, com seus entusiásticos aplausos aos vencedores, ofusca as díspares possibilidades de aquisição das

competências estimadas pelo mercado, erigido em árbitro supremo de nosso

valor pessoal (FREIRE FILHO, 2012, p. 49).

Freire Filho (2012) critica esta supervalorização do capital humano com intuito de

atender valores socioeconômicos impostos pelo contexto. Ao mesmo tempo, o discurso que

valoriza a alta performance enquadra o sujeito nos valores de seu tempo. Nesse sentido, de

acordo com Sennett (2006, p. 176), temos “um regime que não oferece aos seres humanos

motivos para ligarem uns para os outros (...)”. Nele, as relações se tornam efêmeras, de curto

prazo, prejudicando a vida em sociedade e nossos relacionamentos e afetos. Assim, quando o

autor estuda a questão da flexibilização do trabalho, apresenta os impactos sociais negativos

que esta nova forma de viver traz para a atividade laboral, bem como suas implicações na

constituição do perfil moral de cada indivíduo, que “pode ser obrigado a improvisar a

narrativa de sua própria vida, e mesmo a se virar sem um sentimento constante de si mesmo”

(SENNETT, 2006, p. 13). Isso porque as instituições (empresas) não possibilitam um

contexto de longo prazo, com relacionamentos duradouros e estabilidade no emprego, fazendo

29 Em outubro de 2013, a OGX, empresa comandada por Eike, deu um calote de US$ 45 milhões nos credores e entrou

em recuperação judicial, assim como outras empresas do grupo. Sua dívida já ultrapassa 12 bilhões de reais, segundo o

Tribunal de Justiça do Rio. Em 2015, a Justiça determinou o bloqueio e apreensão de bens do empresário, para garantir a indenização dos investidores da OGX. Eike Batista saiu da lista das maiores fortunas do mundo para entrar na lista dos

procurados pela Interpol. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/01/ainda-jovem-eike-

batista-comecou-construcao-de-fortuna-veja-historia.html>. Acesso em: 12 de março de 2017.

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com que o sujeito mude de uma empresa a outra, de um projeto a outro, e assim por diante.

Por outro lado, também nos deparamos com o império da meritocracia, que de certo

modo esteia o campo do empreendedorismo. Para Sennett (2006, p. 107), “no esquema da

meritocracia, o processo de avaliação do talento tem (...) um núcleo maciço, que diz respeito

ao talento entendido de forma específica, como aptidão potencial”. Assim sendo, o propósito

da supervalorização da alta performance individualizada torna-se um ditame do tempo

presente. Ademais, no âmbito da interface entre a comunicação e práticas de consumo, existe

um incitamento para que o sujeito produza narrativas de si, calcadas em um perfil moral e

ético. Nas palavras do autor, O caráter passa a ser tido como “(...) o valor ético que atribuímos

aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros, ou se preferirmos são os

traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos

valorizem” (SENNETT, 1999 p. 10). Logo, o sujeito busca ser reconhecido por suas ações,

que se inserem em um mercado de valorização e desvalorização cujo prêmio maior é o

sucesso.

Sennett (1999) também menciona que o capitalismo flexível, em que a máxima é “não

há longo prazo”, corrói os vínculos e sentidos de comunidade porque vivemos em uma

sociedade onde os relacionamentos muitas vezes se espelham na efemeridade e

superficialidade das relações laborais. O empreendedorismo auxiliaria nesse processo na

medida em que suas práticas podem ser compreendidas como uma quebra na rotina. É neste

sentido que as narrativas de vida expressam que as relações no âmbito de tal capitalismo

flexível corroem o caráter do ser humano (idem). O autor reflete, portanto, acerca do tipo de

sociedade que está se desenvolvendo; uma sociedade na qual os sujeitos pouco se veem

necessários uns aos outros, ou seja, um individualismo levado ao extremo.

Nesta conjuntura, aliado a um enfraquecimento do Estado e da sociedade civil (ou do

âmbito público, de um modo geral), o empreendedorismo se inscreve na tessitura do

neoliberalismo, como uma possibilidade de redenção ao próprio sujeito. O empreender é,

então, potencializado. De acordo com Casaqui (2015b, p. 10), “o empreendedor, em tese,

prioriza o lucro, o ganho individual e os interesses de sua organização”, ou seja, trata-se de

um sujeito que enfrenta desafios objetivando a obtenção de ganhos materiais e/ou simbólicos.

Não podemos deixar de problematizar, assim, que a construção do empreendedor é

normalmente calcada apenas em valores positivados – basta atentar para a forma como seu

agir se configura em um modelo de conduta a ser seguido por todos.

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Isto posto, há de se considerar a própria questão da constituição dessas representações,

que são definidas com base em paradigmas moldados por interesses sociais hegemônicos.

Existe a incidência de uma lógica de superação de metas, que é deslocada do campo do

esporte e utilizada na gestão de organizações estatais e privadas. Assim, a arte de empreender,

de assumir riscos e ser obstinado está ligada à convergência dos discursos esportivos,

empresarial e de consumo. O culto à alta performance torna-se, então, imperativo.

Estamos versando sobre representações de mundo e do trabalho de sujeitos que

possuem características e atitudes semelhantes no agir laboral e da vida cotidiana, assentadas

no empreendedorismo enquanto ideologia. As representações são, portanto, relevantes para os

estudos sobre narrativas autobiográficas de transformação, como as do Day1 Endeavor, uma

vez que se alicerçam em tais práticas e valores operantes na cultura empreendedora.

2.4 A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE CAMPO

Ao mesmo tempo, todas estas relações de atividades socioeconômicas dizem respeito à

delimitação do campo (BOURDIEU, 2009), que funciona por meio dos agentes e instituições

que o legitimam, reforçando os discursos fundamentais à sua arquitetura, ao mesmo tempo em

que os coloca em circulação em sociedade. Ou seja, ele está imbricado no espaço social em

que práticas e leis próprias operam o capital simbólico e seu poder referente (idem).

Entretanto, na teia social, cada campo opera e está delimitado de acordo com funções

técnicas, saberes e fazeres comuns, que têm o propósito de proteger valores, normas e

interesses como forma de preservação de seu capital simbólico perante os agentes que o

integram.

De acordo com Bourdieu (2009), temos a existência de vários campos, dentre eles, o

do empreendedorismo, que é constituído tanto pela figura quase mítica do empreendedor

(considerado agente deste campo) quanto por instituições agenciadoras, como é o caso da

organização Endeavor. Isso porque a Endeavor tem interesses na retórica pautada em ações de

inovação, pelo agente empreendedor e pela habilidade e conhecimento técnico necessários

para que se tenha um negócio de mercado tido como bem-sucedido. Assim, a lógica do campo

do empreendedorismo se assenta em difundir uma ideologia que impacta diretamente as

representações e as moralidades do empreendedor. Neste sentido, o discurso do

empreendedorismo pode ser interpretado como uma construção simbólica de mundo (idem),

edificada com base em contextos sociais e interesses específicos.

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Em função da interpretação do conceito de campo econômico estudada por Bourdieu

(1963), as crenças e normas que são constituídas em cada campo ultrapassam a lógica nele

existente e se torna uma macroproposição30. A noção de macroproposição é relativa, definida

em relação a uma sequência de proposições (locais ou globais) da qual é derivada (VAN

DIJK; KINTSCH, 1983, p. 190) e que atravessa a ideologia existente nos diferentes campos

de atuação socioeconômicos, que, por sua vez, articulam crenças e valores tensionados por

discursos praticados e que representam determinado campo.31 Assim, os discursos que são

praticados por cada campo materializam os valores e a forma de pensar e agir instituídos por

seus agentes. Eles abarcam a forma de pensar e agir deste agente transformador de si que

representa um perfil moral de agir do tempo presente, ao mesmo tempo em que demarca uma

forma de trabalho que pode inspirar a narrativa de ser e agir de outros pelos discursos de

transformação focados na autorrealização (FREIRE FILHO, 2011).

As narrativas de trabalho e de vida servem, então, para a difusão desta ideologia que

se espraia no contexto social vigente. Bourdieu conseguiu elaborar uma sociologia econômica

apta a substituir a ciência econômica, sobretudo no que tange o pressuposto do “ator”

econômico. De um lado, a sociologia econômica de Bourdieu inova ao levar em conta três

dimensões esquecidas pela ciência econômica. Em primeiro lugar, a dimensão política está

presente na reflexão a respeito dos agentes econômicos desiguais, das barreiras à entrada de

novas empresas no mercado e das relações de poder presentes no campo econômico (o

mercado como campo de lutas), bem como na análise do papel do Estado na construção da

oferta e da demanda, e de sua influência sobre as relações de poder existentes entre os agentes

econômicos. Essas lutas de poder e a intervenção do Estado constituem os principais fatores

de mudança no campo econômico.

Em seguida, as reflexões sobre as diferenças existentes entre sociedades tradicionais e

sociedade moderna – assim como a caracterização do universo econômico como universo de

crença, lentamente construído e legitimado por um conjunto de valores sociais – evidenciam a

30 Possui a função de transformar as proposições de um texto num conjunto de macroproposições que o

representem. GUALBERTO, 1999, p. 6). Disponível em: file:///C:/Users/lge/Downloads/2311-7051-1-

SM%20(1).pdf. Acesso em: mar. 2017. 31 “Así, las ideologías no son creencias personales de personas individuales; ellas no son necesariamente

`negativas' (hay ideologías racistas así como las hay antirracistas, comunista y anticomunistas); no son algún tipo

de `falsa conciencia' (lo que sea que eso signifique); no son necesariamente dominantes, pues también pueden

definir resistencia y oposición; no son iguales a discursos u otras prácticas sociales que las expresan, reproducen

o promulgan; y no son iguales como cualquier otra creencia o sistemas de creencias socialmente compartidos”

(VAN DIJK, 2005, p. 11).

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dimensão histórica. Finalmente, a dimensão social pode ser encontrada na análise das

condições sociais das disposições econômicas e na reflexão sobre a decisão econômica, vista

não como a de um agente isolado, mas como a de um agente coletivo, família ou empresa,

funcionando à maneira de um campo. Trata-se de uma análise genuinamente sociológica dos

fenômenos econômicos, uma vez que o sociólogo francês aplica seu quadro analítico,

articulado ao redor dos conceitos-chave de campo e habitus, à esfera econômica, o que lhe

permite revelar aspectos ignorados pela ciência econômica.

O referido autor leva em consideração não só as condições culturais, mas também

econômicas. Assim, “a conduta econômica supõe um conjunto de valores sociais que a

orienta”, em particular “a existência de um sistema determinado de atitudes diante do mundo

e do tempo” (BOURDIEU, 1963, p. 24-25).

Neste sentido, torna-se relevante enfatizar a teoria de campo de Bourdieu (2009) que

se apresenta como uma construção de relações objetivas entre agentes e instituições que

legitimam seus discursos. Isso diz respeito ao espaço social no qual hierarquias se estruturam

de um modo particular pelos agentes e instituições envolvidas. Estas, por sua vez,

representam uma esfera simbólica na qual as lutas desses agentes determinam, validam e

outorgam certas representações de mundo. A estruturação do campo é classificada, neste

sentido, entre o que é adequado e o que pertence ou não a um código de valores estabelecido,

bem como seus vínculos com outros campos. Ou seja, cada um deles possui suas próprias

regras, compondo-se impreterivelmente como um ambiente de conflitos: a luta é pelo

monopólio do capital (poder institucionalizado e prestígio, com visibilidade e notoriedade).

Como exemplo, evidencia-se o capital simbólico, substancial aos sistemas distintivos em

contextos socioculturais determinados.

A estrutura das relações objetivas entre os agentes é o que determina o que eles devem

ou não fazer, o que significa que somente entendemos o discurso e as proposições de um

agente quando conseguimos compreender a posição que ele ocupa nesse campo, “de onde

fala, de onde provém” (BOURDIEU, 2009, p. 190). Deste modo, o campo é considerado um

universo à parte, singular, que tem leis próprias de funcionamento e de operação. Trata-se de

uma teoria da prática, que se constitui com base em três conceitos principais.

O primeiro deles é o habitus, um composto de disposições cognitivas que realizam

percepções e práticas “como sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto

estruturas estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e

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das ideologias características de um grupo de agentes” (BOURDIEU, 2005, p. 191). Trata-se

de um complexo de ordenamentos que permite aos indivíduos agir dentro de uma conjuntura

social, onde há a manutenção de sua dinâmica organizacional. É a estrutura do campo que

pressupõe a existência de composições de conhecimento e operações do fazer que se

modificam de campo a campo.

O segundo conceito se refere ao espaço social ou às condições existenciais dos

indivíduos, com propriedades das relações ou diferenças intersubjetivas. Elas podem ser

apresentadas como as abordagens dos agentes sociais e das relações de poder que estabelecem

entre si. Já o terceiro é o capital simbólico. Para o Bourdieu (2003, p. 145):

O capital simbólico, outro nome da distinção, não é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a sua espécie, quando percebido por um agente

dotado de categorias de percepção resultantes da incorporação da estrutura

da sua distribuição, quer dizer, quando conhecido e reconhecido como algo de óbvio.

Ele corresponde, portanto, ao enraizamento da estrutura que é aceita pelos agentes,

tanto os que exercem quanto os que são submetidos às regras. Em outras palavras, temos as

formas de dominação em níveis físico, econômico, cultural e social, responsáveis pelas

estruturas de poder existentes em todo e qualquer campo. Mais especificamente no que

concerne ao capital simbólico, existe a presença do “poder simbólico, que é um poder de

construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato

do mundo (e, em particular, do mundo social)” (BOURDIEU, 2003, p. 9).32 Partindo desses

conceitos, podemos entender que o campo do empreendedorismo é estruturado pela presença

de narrativas autobiográficas de transformação como as apresentadas no evento Day1

Endeavor. Elas são fundamentadas às ações empreendedoras no neoliberalismo vigente, que

abarca a valorização das atividades de se (auto)empreender, ao mesmo tempo em que reforça

disposições ideológicas de poder compostas por instituições e agentes envolvidos em

interesses previamente instituídos. Assim, podemos interpretar que o agenciador do campo do

empreendedorismo está ancorado também no trabalho de promoção de tais valores. No caso

do objeto dessa pesquisa, verificamos como a organização Endeavor desenvolve uma série de

ações, como o evento Day1 Endeavor, para estimular as vozes e narrativas de

empreendedoras, reforçando em contrapartida o próprio campo que a sustenta.

32 Gnoseologia é o ramo da filosofia que se preocupa com a validade do conhecimento em função do sujeito

cognoscente, ou seja, daquele que conhece o objeto. Este (o objeto), por sua vez, é questionado pela ontologia,

que é o ramo da filosofia que se preocupa com o ser. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gnosiologia.

Acesso em: 12 de outubro de 2016.

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Sendo assim, entendemos que o campo do empreendedorismo é representado pelo

agente (sujeito do fazer), definido pela sociologia aplicada à pragmática como o sujeito que

justifica suas ações empreendedoras evidenciando seus interesses, conhecimentos e modos de

agir. Esse indivíduo é um agente social que materializa práticas pautadas em um perfil moral

sustentado no conhecimento, habilidades e saberes oriundos das ações e atividades do

empreendedorismo.

Ao mesmo tempo, estamos diante de uma sociedade neoliberalista, que prima pela

competitividade, perfil moral e alta performance em todas as atividades cotidianas, sendo que

os sucessos e/ou fracassos passam a ser responsabilidades unicamente do próprio sujeito

(EHRENBERG, 2010). Para Bauman (2008), o sujeito precisa se tornar uma “mercadoria

desejável”, justamente pelo fato de suas habilidades e conhecimentos serem aplicados em

empreendimentos e/ou projetos pessoais. Ele, então, tem de agir de forma a elevar seu “capital

humano” (FREIRE FILHO, 2011), que, por consequência, aumenta o valor simbólico de seus

empreendimentos ou da organização da qual faz parte.

Neste sentido, Freire Filho (2011) questiona, por meio de uma visão crítica, a

supervalorização do capital humano: o fato de o sujeito ter de ser o melhor e sempre superar

sua performance individual. Vale destacar que “capital humano” corresponde a um conceito

que institui que cada um necessita ser o gestor de sua própria vida como um modo de

empreender a si mesmo, englobando as emoções, os afetos e as relações interpessoais (idem).

Na busca ininterrupta da melhor performance, que é um imperativo social, o sujeito está em

constante construção de si, sem nunca alcançar um ponto de chegada o que torna difícil

conviver neste contexto.

Assim, encontramos nas narrativas do (e sobre o) empreendedorismo uma espécie de

valorização e convocação do sujeito, para que aja na direção da autorrealização. Freire Filho

(2011) condena tal valorização do empreendedorismo (e do empreendedor) pautada sobretudo

na primazia do “capital humano”. Para Casaqui (2010, p. 6), isso é uma evidência do processo

a partir do qual “o eu se narrativiza em função de objetivos, da busca pela eficácia na gestão

de si como marca, através das ferramentas disponíveis para a autoconstrução”.

Em síntese, há de se investir em um perfil moral que valoriza conhecimentos e

habilidades instrumentalizados: mais uma vez a responsabilização pela construção e condução

da vida pessoal e profissional recai exclusivamente sobre o próprio sujeito. Entretanto, em

uma perspectiva mais ampla, podemos considerar esses pseudoconhecimentos enquanto uma

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pedagogia associada ao mercado de autoajuda, centrado na psicologia positivista, que tem

interesses produtivos e econômicos aí envolvidos (ILLOUZ, 2011). Trata-se de um mercado

que estimula o sujeito a se engajar cada vez mais nessa cultura empreendedora, buscando

conselhos, cursos ou livros que possam dar condições de superar seus medos, inseguranças e

se tornar um sujeito adaptado da melhor maneira ao sistema. Sendo assim, nas palavras de

Ehrenberg (2010, p. 11), o sujeito se autoconstrói em uma relação de “autorrealização: cada

um deve aprender a se governar por si mesmo e a encontrar as orientações para sua existência

em si mesmo”. Esse modo de agir, de autoconstruir-se, está no âmago dos valores da cultura

empreendedora: nela, há uma valorização do autor e construtor de si.

Em função do novo espírito do capitalismo no qual o empreender está inserido, as

narrativas de vida se tornam uma forma de referência, bem como de atualização desta

ideologia e de seu modus operandi, que prega que a responsabilidade de organizar as ações

cotidianas, inclusive as de trabalho, é, sobretudo, individual: cada sujeito se torna o único

autor de si. No cerne desses embates, podemos constatar que as narrativas autobiográficas de

transformação das empreendedoras que participam do Day1 Endeavor atendem aos interesses

e representações de um perfil moral empreendedor, calcado em formas cristalizadas de ser e

agir.

Boltanski e Chiapello (2009) reforçam a ideia de que os sujeitos são moldados pelo

modus operandi do sistema capitalista, que foi transformado e renovado para permitir que

iniciativas de trabalho sejam exercidas na forma individual (na construção e autoria de si), por

redes de relacionamento, negócios e serviços que são mercantilizados. “O novo espírito do

capitalismo se apresenta como uma promessa de evolução do capitalismo, libertação

ideológica e de exercício de poder, menos focado no sentido marxista do termo, mas

garantindo, assim, a sujeição das pessoas à sua ordem” (ibidem, p. 426).

Por meio das narrativas autobiográficas, o sujeito segue os modelos de vida se

baseando no fazer, na transformação, em sua autorrealização (MORIN, 2007; EHRENBERG,

2010). Passa-se a impressão de que por meio dessas formas de agir o sujeito constrói seu

próprio caminho, sua trajetória pessoal e profissional. De modo geral, não há uma consciência

de que essa mudança faz com que as ações empreendedoras renovem as bases do sistema

capitalista em si.

Essa retórica se apresenta como um discurso do espírito do tempo (MORIN, 2009),

onde temos a presença de uma ideologia que busca convocar e engajar o sujeito a participar, a

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empreender e/ou empreender-se. Mais especificamente, estamos falando de uma ideologia

neoliberal, que dita regras e condutas para esse fazer. No caso do Day1 Endeavor, verificamos

como as narrativas ali orquestradas são dispostas e espraiadas em uma rede de produção,

circulação e consumos midiáticos que estabelece as relações entre trabalho, conhecimento e o

novo espírito do capitalismo. São discursos que exaltam produtividade e um perfil moral em

constante transformação, destacando-se a excelência em tudo que se faz, com relação à

família, aos cuidados com o corpo, à saúde, aos negócios, etc., integrando,

concomitantemente, os valores pautados pelo campo do empreendedorismo. Além da

valorização da alta performance, temos a presença de um perfil moral que abarca a questão da

gestão dos afetos e como eles também vão compondo as narrativas do e sobre o

empreendedor, exaltando a dramatização de sua trajetória de vida. Segundo Casaqui,

O espírito do capitalismo corresponde às lógicas de justificação que

oferecem legitimidade ao sistema e promovem o engajamento, na rearticulação de sua retórica a partir das formulações críticas de seus

opositores. Dessa forma, a mítica em torno do empreendedor é promovida

como a redenção ante as histórias mazelas do mundo do trabalho, ante as

dissonâncias com o espírito libertário juvenil que ganhou força no contexto da contracultura da década de 1960, ante a separação entre trabalho e lazer,

entre atividade laboral e felicidade (CASAQUI, 2014, p. 4).

Este novo espírito centraliza seus esforços na forma de operar do capitalismo, de onde

provêm as lógicas de produção e os interesses hegemônicos em perpetuá-lo. Não estamos

falando somente de uma retórica, mas, sim, de um processo que possa promover o

engajamento dos indivíduos, a justificar as práticas do sistema capitalista vigente. Existe,

pois, a necessidade de renovação das narrativas para que se reproduzam seus valores. Assim,

dois pontos nesta lógica do sistema são centrais em nosso estudo: a) a lógica de justificação

de crenças no sistema capitalista, e b) o engajamento, porque existe, na prática, a necessidade

do sistema perenizar sua retórica. Ao mesmo tempo, este sistema necessita do engajamento de

mais e mais sujeitos, que devem se moldar às novas práticas de trabalho e de vida que institui.

Ao analisar as representações de vida e trabalho presente nas narrativas

autobiográficas de transformação, problematizamos não apenas as práticas laborais, mas a

produção de sentidos na intersecção entre comunicação, consumo e trabalho. Como se pode

constatar, há um imbricamento desses conceitos nas práticas sociais do neoliberalismo. Nas

narrativas midiatizadas no Day1 Endeavor, podemos perceber como se processa a produção e

circulação de tais representações de valores sociais, que assumem de fato um caráter

hegemônico. Este enfatiza as relações com o trabalho e a vida cotidiana em um patamar de

maior valor, como se empreender fosse sempre o melhor modo de agir.

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O conhecimento adquirido passa, então, a abarcar as ações e práticas do eu, do ser em

seus pensamentos íntimos, de um “eu autêntico” (TAYLOR, 2011). Sua autenticidade se

manifestaria na forma de pensar e na maneira de ser e agir. Para Taylor (idem), a

autenticidade é justamente essa associação do ser consigo mesmo e com a voz do “eu

interior”. Há, portanto, uma noção de perfil e ideal moral, fundamentado no reconhecimento

do “ser autêntico”, além de autorrealizador (EHRENBERG, 2010).

Contudo, o sujeito se vale de valores e princípios morais que estão além da

representação de mundo: inscrevem-se na articulação de ideias e atividades que valorizam o

ser autor da própria vida e o empreender a si mesmo. Neste sentido, o indivíduo tenta

organizar as ações de sua vida cotidiana em função de crenças que circulam no

neoliberalismo, adequando-se de acordo com normas estabelecidas por este sistema. A

questão principal é o governo de si, pois esses valores são incorporados pelos sujeitos, que

passam a governar a si mesmos em função desse modelo social.

Observamos, então, como o campo do empreendedorismo institui uma forma

específica de pensar o trabalho, inserida em uma representação de mundo na qual a

transformação do sujeito é considerada um dever, uma prática de convocação social (PRADO,

2013). Assim, temos representações de mundo em que o sujeito questiona sua existência

anterior, o estágio inicial da vida, como sendo uma fase nem sempre boa ou até mesmo ruim e

com dificuldades para estar integrado ao contexto social que valoriza o indivíduo que se

molda ao sistema e suas regras. O empreendedor vai olhar para suas origens a partir desta

noção das transformações que ocorrem ao longo do percurso de vida e suas várias fases de

transformação – mas não se abandona o passado e as etapas de vida que cada empreendedor

teve. Assim, torna-se necessário se voltar às questões do passado para contextualizar o

presente, no qual a origem de cada indivíduo pode influenciar este percurso de narrativização

e transformação de vida e de si.

Sendo assim, encontramos neste âmbito narrativas de vida que se pautam em “receitas

terapêuticas” (ILLOUZ, 2011). As “receitas” e os “exemplos” se apresentam por mecanismos

de aconselhamento, com sugestões e “fórmulas” milagrosas de superação dos males que

afetam nossas vidas. Quaisquer comportamentos desviantes e a não inserção nos valores e

formas de ser no neoliberalismo são considerados como um defeito ou até mesmo uma

fraqueza pessoal. Somente após o sujeito agir de acordo com tais diretrizes e estar em linha

com os pensamentos e discursos que valorizam a superação é que ele pode fazer parte das

dinâmicas sociais do campo. Para Illouz (2007, p. 20):

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Uma cultura em que práticas e discursos emocionais e econômicos se

configuram mutuamente e produzem um amplo movimento em que o afeto

se converte em aspecto essencial do comportamento econômico e em que a vida emocional – notadamente da classe média – segue a lógica do

intercâmbio e das relações econômicas. Os repertórios do mercado se

entrelaçam com a linguagem da psicologia, e, combinados, proporcionam

novas técnicas e sentidos para engendrar novas formas de sociabilidade.

Ainda em conformidade com Illouz (2007), existe no contexto atual um “capitalismo

afetivo”, a partir do qual todos são incentivados construir a si mesmos em suas ações e a

serem empreendedores de si. O discurso de transformação de si relacionado à narrativa de

autoajuda se apresenta como uma forma possível de incorporação às práticas valorizadas pela

sociedade dentro do espírito do tempo e de seus paradigmas. Com base neles, os indivíduos

buscam empenhar-se para superar dificuldades e ser o melhor em tudo. Assim, prospera no

interior da comunicação destas estratégias a mercadorização de livros, palestras, vídeos e

depoimentos, como os praticados pelo evento Day1 Endeavor.

Estes discursos empreendedores de autoajuda exploram temáticas como: conselhos

sobre a criação de filhos; dicas de como manter um relacionamento amoroso; palestras que

enfatizam qual a melhor forma para ter sucesso no trabalho, etc. (FREIRE FILHO, 2011).

Estamos novamente diante de práticas e interesses do capitalismo em fazer com que bens e

serviços sejam mercadorizados visando o lucro, em detrimento do indivíduo e de seu bem-

estar. Esses conselhos geralmente visam ensinar a obter condições para superar pensamentos e

atitudes tidas como negativas, sempre com o intuito de garantir o sucesso. Assim, o sujeito

necessita superar a falta de empenho, pensamentos que o desmotivam e dificuldades

individuais para ter condições de construir uma vida nos moldes do que o contexto atual

valoriza como, por exemplo, ser empreendedor de si (FOUCAULT, 2008), ser empresário e

ter um negócio bem-sucedido.

Assim, a forma como se organizam as ações da própria vida é representada pela

construção do sujeito e pelos feitos importantes de sua trajetória de vida, que podem se

espelhar em discursos de autoajuda e no imperativo da felicidade (FREIRE FILHO, 2010).

Entretanto, não é difícil de notar como o campo do empreendedorismo institui uma forma

específica de conceber essas trajetórias de vida, alicerçadas sobretudo no trabalho e na

transformação do sujeito, considerados como práticas que respondem a uma convocação

biopolítica.

É por isso que se demanda do sujeito uma negação de sua existência anterior para se

constituir de acordo com as normas e visões do presente, de um espírito do capitalismo que

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aparenta cada vez mais ser assentado no empreender (e no empreender-se). Arquiteta-se um

ideário de vida marcado por estratégias comunicacionais que tentam engajar e conduzir à

participação desse contexto social de transformação, que não necessariamente corresponde às

realidades de vida de todos os sujeitos. Não se pode omitir, consequentemente, que existem

jogos de interesses e de poder aí implicados: até que ponto uma visão de mundo alicerçada em

um ideal de empreendedor de si não é uma imposição? Sem resposta a esse questionamento,

sabemos, entretanto, que a ideologia reflete e refrata valores construídos no seio social, por

meio de comportamentos e representações de mundo de diferentes agentes em permanente

transformação e atualização de seus valores.

2.5 O CONSUMO NAS NARRATIVAS PRESENTES NO DAY1 ENDEAVOR

No contexto de nosso estudo, as narrativas de vida das empreendedoras são formas de

representação de consumo simbólico processado midiaticamente. Não devemos ignorar,

assim, a existência de práticas de consumo que estão presentes nos discursos praticados pelas

empreendedoras, que assumem um papel central na conformação das sociedades na

contemporaneidade. De acordo com Casaqui:

O consumo, nesse contexto, é significado como processo redentor e a

mercadoria é um signo que representa certo desvio do status quo; porém, reitera a dinâmica capitalista de produção, circulação e consumo de bens –

que, em última instância, visam atender aos gostos e desejos individuais,

sendo colocados em forma de opção de escolha, em meio à gama de ofertas

no mercado (CASAQUI, 2013, p. 878-879).

Para Ferreira (2010, p. 25), há “uma lógica capitalista flexível, em que tudo se

transforma e se modifica por meio do consumo estético e material”. Já segundo Rocha, o

consumo tem de ser analisado:

(...) desde a sua condição estruturante, como dinâmica sensível e

formatadora de uma ampla cultura comunicacional. Consumir, neste caso é muito mais do que mero exercício de gostos, caprichos ou compras

irrefletidas, mas todo um conjunto de processos e fenômenos socioculturais

complexos, mutáveis, através dos quais realizam a apropriação e os diferentes usos de produtos e serviços (ROCHA, 2012, p. 120).

De acordo com Morin (2007, p. 25), “o objeto material e simbólico de nossas relações

é você mesmo sendo mais do que uma extensão da pessoa”, pois “ao consumirmos objetos

também consumimos o objeto homem”. Em relação ao empreendedor, esse consumo

simbólico se associa à noção de projeção e de identificação de vida, onde também está

abarcada a presença de afetos que atravessam as narrativas de vida, tornando-se formas de

consumo da retórica existente. Isso porque temos valores e um perfil moral que transitam

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neste contexto de representações sociais.

Já Douglas e Isherwood (2009, p. 108) consideram que “devemos supor que a função

essencial do consumo é sua capacidade de dar sentido”. Assim, podemos apreender as

narrativas autobiográficas como constituintes de tais dinâmicas de consumo produzidas no

palco do Day1. Elas são formuladas, colocadas em circulação, consumidas e, no consumo,

(re)significadas individual e coletivamente. O Day1 Endeavor, ao se (auto)narrativizar os

percursos de vida de mulheres empreendedoras e midiatizá-los publicamente, exemplifica

bem esse processo de consumo.

No palco do evento de Day1, temos a presença e a exposição de empreendedores que

são tidos como exemplos de sucesso e que contribuem para legitimar as falas da própria

Endeavor. Do ponto de vista de estrutura física do evento, o palco, onde os empreendedores

se posicionam, já representa em si um lugar de fala privilegiado e diferenciado em relação à

plateia (e a todos os “consumidores” de suas narrativas). A partir de sua visibilidade

midiática, acabam por refletir as atividades centradas no campo do empreendedorismo. São

diferentes construções de mundo, embasadas em narrativas autobiografias de transformação,

que traduzem o que foi vivido como um modelo de indivíduo de sucesso.

Neste processo existe uma visibilidade midiática que podem inspirar outras pessoas e,

“que acabam construindo um projeto de sociedade focado em práticas e atividades do

empreendedorismo, a partir de suas representações sociais” (CASAQUI, 2015a, p. 134). Elas

servem, pois, como exemplos inspiracionais. É neste sentido que podemos asseverar que os

discursos das mulheres empreendedoras no Day1 atuam como narrativas de inspiração.

Assim, não podemos esquecer de que, ao sermos expostos a qualquer tipo de narrativa, há um

consumo simbólico, pois “falar em consumo forçosamente implica, a partir de então, a

consideração das profícuas interfaces entre cena tecnomidiática, cultura das mídias e cultura

do consumo” (ROCHA, 2012, p. 12).

No Day1 Endeavor, por exemplo, verificamos como estes discursos são empregados

na construção de identidades e formas de subjetividade no que se refere ao trabalho e,

sobretudo, ao empreendedorismo. A partir de sua midiatização, os vídeos dessas mulheres

empreendedoras acabam por se inserir em um consumo simbólico de determinada concepção

e visão de mundo. Em tais discursos encontramos a interface entre comunicação e consumo

simbólico dos indivíduos e de suas visões de mundo.

Ao mesmo tempo, para Rocha (2012, p. 13), “consumir significa receber uma injeção

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das potências de sedução, que oferecem imagens, estilos de vida, ligadas a uma sociedade

excitada”. Essas imagens, que são apresentadas pelo Day1 Endeavor, tornam-se públicas,

interagem com imaginários de vida no que se refere ao empreendedorismo: são narrativas do

eu disseminadas midiaticamente. Há então uma retórica arquitetada pelo diálogo entre o eu e

o outro, socialmente alicerçada na exposição de narrativas na esfera pública, em função de um

ideário de vida e do perfil moral do gerir a autorrealização (GIDDENS, 2002; EHRENBERG,

2010). Na acepção de Morin (2007, p. 75-79):

É através dos espetáculos que seus conteúdos imaginários se manifestam.

Em outras palavras, é por meio do estético que se estabelece a relação de consumo imaginário. O mundo imaginário não é mais apenas consumido sob

forma de ritos, de cultos, de mitos religiosos, de festas sagradas nas quais os

espíritos se encarnam, mas também sob forma de espetáculos, de relações

estéticas.

Nesta dinâmica, o papel da Endeavor é orquestrar as vozes de alta performance de

cada empreendedor que se apresenta no Day1, também definindo, direta ou indiretamente, o

que deve ser dito ou não. A estratégia comunicacional da Endeavor é midiatizar a imagem

pública de empreendedores que materializem um modelo bem-sucedido de gestão – dos

negócios e de suas vidas. As normatizações (e seus efeitos) do modus operandi do sistema

capitalista são, assim, mantidas e replicadas. Elas acabam por reverberar nas próprias

narrativas de vida desses empreendedores, que são estrategicamente elaboradas nos processos

midiáticos que se tornam em espetáculos de representação social. No caso do Day1 Endeavor,

observamos como são acionadas na exaltação da imagem do sujeito empreendedor. Para

Harvey (2001, p. 260):

A imagem serve para estabelecer uma identidade no mercado, o que se aplica também aos mercados de trabalho. A aquisição de uma imagem (por

meio da compra de um sistema de signos como roupas de grife e o carro da

moda) se torna um elemento singularmente importante na autoapresentação

nos mercados de trabalho e, por extensão, passa a ser parte integrante da busca de identidade individual, auto realização e significado na vida.

Ao sermos expostos às vozes e narrativas de vida das empreendedoras que são

protagonistas do Day1 Endeavor, torna-se patente o consumo simbólico do perfil moral e do

agir do empreendedor, que se outorga por meio de uma valorização, reconhecimento e juízo

moral representados por essas mulheres empreendedoras. Entretanto, temos de considerar que

podem ou não servir como um exemplo “inspirador”, haja vista que estão suscetíveis a

diferentes processos de apropriação e formas de pensar o imaginário de mundo. Por meio das

narrativas dos empreendedores, pode-se ressignificar a comunicação e o consumo,

atravessados por disputas, interesses e dinâmicas de poder presente no modus operandi do

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capitalismo. Estamos falando de vidas narrativizadas que atuam e interferem na atividade de

outros sujeitos, que as podem tomar como referências concretas do fazer e do agir.

Neste sentido, podemos aferir que a narrativas autobiográficas de transformação de

vida e trabalho apresentadas no Day1 Endeavor servem de “modelos” e “referências” de

representação social. Essas mulheres empreendedoras são protagonistas de narrativas que

exploram o empreendedorismo e a predisposição de gerir a vida de acordo com certo

enquadramento moral. Nele, o gerir a vida em função do empreender é valorado

positivamente – sucesso, ganhos financeiros e visibilidade social são sua expressão material.

Há uma ênfase, portanto, na importância de se gerir a vida, como se cada sujeito fosse

transformado em uma mercadoria a ser consumida em suas estéticas midiáticas. No próximo

capítulo apresentamos as diferentes formas de apropriação das narrativas, de acordo com

valores da lógica do mercado, dos acontecimentos da memória e das relações pessoais.

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CAPÍTULO 3. NARRATIVA E REPRESENTAÇÕES DE MUNDO

Enquanto seres humanos, produtores de linguagem, temos uma real necessidade de

narrar nossos feitos e realizações, como uma forma de inserção e de reconhecimento social

(RICOEUR, 1994). Se tomarmos a palavra “biografia” (do grego βιογραφία, βíος – bíos, vida;

e γράφειν – gráphein, escrever), por exemplo, fica evidente o poder e a relevância

sociocultural desse processo de narrativização, cristalizando-se, como vemos no domínio

biográfico, até mesmo em forma de gênero textual. A autobiografia, por extensão, refere-se

não ao ato de narrar a trajetória de vida de alguém, mas, sim, à sua própria. E ao narrar a vida

(nossa ou de alguém), utilizamo-nos dos discursos, que, em sua natureza, carregam um forte

aspecto representacional. Ocorre, assim, tensionamentos de valores, individuais e coletivos,

que são compartilhados a partir dessa construção identitária inerente ao ato de narrar a vida

(idem).

Ao narrar, estamos contando os fatos de um determinado tempo e espaço. Para Paul

Ricoeur (1994, p. 85), “o tempo se torna narrativo na medida em que é narrado pelo ser

humano”, e o tempo “se torna tempo humano na medida em que é articulado de modo

narrativo, em que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da

existência temporal” (idem, grifo nosso). Tendo isso em mente, é inegável que vivemos em

um mundo pautado por uma infindável diversidade de narrativas, e na contemporaneidade,

haja vista os espraiados processos de midiatização, elas são ainda mais potencializadas.

Nesse sentido, temos de considerar as três partes básicas de um texto: a estrutura, os

símbolos e o tempo (RICOEUR, 1994). Todas elas se inserem em um contexto de ações

sucessivas, explicando e revelando o que o indivíduo faz e pensa ao longo de sua experiência

de vida. Nestas interações sociais, o sujeito é questionado a explicar o porquê de ter feito

determinada ação, como trabalhar, estudar ou tirar férias. Para Ricoeur (ibidem, p. 89) “quem,

o que, por que, como e contra quem” são algumas questões que o sujeito responde neste

processo de narrar a vida. Ao mesmo tempo, é necessário adaptar-se e transformar-se de

forma constante para atender a uma percepção social do agir, depreendida da própria

narrativização da vida. Isso porque as narrativas de vida integram uma rede comunicacional,

extremamente imprescindível às representações e identidades sociais. Assim, encontramos

estratégias de comunicação que se utilizam das narrativas autobiográficas de transformação

como forma de engajar e moldar o sujeito ao contexto em que se insere.

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É com base nesta partilha social de significados, expressa pela dimensão simbólica da

linguagem, que a teoria das representações sociais tem por objetivo “(...) descobrir como os

indivíduos e grupos constroem um mundo estável e previsível, a partir da diversidade”

(MOSCOVICI, 2003, p. 79). Sendo assim, o indivíduo interage a partir de diferentes formas

de pensar as ações com o mundo e, ao mesmo tempo, em função das relações entre pessoas

que são distintas. Assim, as representações sociais são “uma modalidade de conhecimento

particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre

indivíduos” (MOSCOVICI, 1976, p. 26).

Neste processo de exposição de narrativas existe a questão diacrônica do texto,

relativa à compreensão de um fato, em sua evolução no tempo. “O caráter irredutivelmente

diacrônico de qualquer história narrada” (RICOEUR, 1994, p. 90) nos permite dizer que todo

discurso conduz a múltiplas interpretações de sentido, que atravessam seus diversos

enunciados. Sendo que a diacronia pode ser entendida como a compreensão de um fato (ou de

um conjunto de fatos) em determinado percurso temporal, ela leva em consideração mudanças

históricas aí implicadas. Isso porque as narrativas ganham significação na experiência

temporal (idem).

Ricoeur (1994, p. 91) afirma que “compreender uma história é compreender ao mesmo

tempo a linguagem do fazer e a tradição cultural da qual procede a tipologia das intrigas”.

Portanto, ao narrar uma história de vida, o sujeito utiliza a linguagem, oral e/ou escrita, com o

gerir de atividades em suas vivências. Isso significa que a compreensão das narrativas de vida

tensiona as representações sociais.

Entretanto, encontramos na narrativa de vida “signos, regras, normas que estão

midiaticamente simbolizados” (RICOEUR, 1994, p. 91). Estamos expostos a interpretações

dialógicas dos sentidos apresentados, socioculturalmente definidos e midiaticamente

constituídos e difundidos. Nelas, as experiências individuais se entrecruzam com as coletivas.

Ao observarmos a narrativização da vida de um sujeito, torna-se pública a interpretação de

acontecimentos pessoais que atribui sentidos à sua trajetória de vida. Este contexto está

intimamente vinculado à memória (individual e social), esse processo se sucede por meio de

uma seleção, um recorte de eventos que irá refletir um perfil moral e um conjunto de valores.

Assim, toda narrativa biográfica ou autobiográfica é constituída por práticas

discursivas que apresentam o sujeito em uma relação entre revelar e ocultar, implicando uma

constituição identitária em processo de, ou seja, nunca totalmente acabada. Ela se produz

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justamente de acordo com este inacabamento constante do indivíduo, que Bourdieu (1997)

nomeia de “ilusão biográfica”: o sujeito acredita que sua fala é de sua autoria, mas na

verdade, todo indivíduo está em constante construção de sua identidade porque, ao narrar,

existe a linguagem e valores que falam antes. Para Bourdieu (2009, p. 190):

Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos

no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos

da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de

uma posição a outra.

O autor desperta nosso olhar para as normas que controlam, direta ou indiretamente, a

produção de discursos, que são propensos a instituir uma representação cristalizada da vida

(BOURDIEU, 2009). Há, no entanto, uma grande dificuldade de escapar de seus domínios,

porque:

Nossa própria existência não pode ser separada do modo pelo qual podemos

nos dar conta de nós mesmos. É contando nossas próprias histórias que damos, a nós mesmos, uma identidade. Reconhecemo-nos, a nós mesmos,

nas histórias que contamos sobre nós mesmos. E é pequena a diferença se

essas histórias são verdadeiras ou falsas, tanto a ficção como a história verificável nos provêm de uma identidade (RICOEUR, 1997, p. 426).

Assim, as ações praticadas ao longo do tempo revelam significados das ações dos

sujeitos, profundamente vinculados às formas de narrar a vida. É nesse “círculo entre a

narrativa e a temporalidade” (RICOEUR, 1994), que se processa sua subjetivação no mundo.

Por isso que “o sentido do tempo vivido é sempre o resultado de uma interpretação e nunca

um dado imediato. Buscar o sentido da vida humana é sempre interpretar, é sempre

hierarquizar os diferentes níveis da experiência, seja no campo da história como no campo da

ficção” (RICOEUR, 1995, p. 119).

As narrativas de vida que circulam em cada período histórico e contexto sociocultural

são provenientes desses movimentos de subjetivação (enquanto processo de tornar-se sujeito).

Para Alain Touraine (2006. p. 166), a subjetivação é “a construção, por parte do indivíduo ou

do grupo, de si mesmo como sujeito”. Essa seria uma das marcas da contemporaneidade, a

partir das quais orientamos nossas experiências. Já de acordo com Foucault (2004, p. 236),

existem “os processos de subjetivação e de objetivação, que fazem com que o sujeito possa se

tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento”. De forma geral, os processos de

subjetivação referem-se às relações que são definidas de si para consigo mesmo, e também à

relação que se tem com os objetos.

Mas é valido destacar que os modos de narrar sempre estarão perpassados por

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embates ideológicos relacionados à produção de sentidos, principalmente no que diz respeito

à hegemonia. Isso quer dizer que, ao longo da história, as narrativas de vida estiveram (e

ainda estão) articuladas ao âmbito econômico. Ao nos voltarmos aos dias atuais, por exemplo,

verificamos que o ato de narrar a trajetória de vida e suas transformações guarda relação

direta com o neoliberalismo e seu sistema normativo (DARDOT; LAVAL, 2016), de

racionalização, que se reflete nas ações de cada indivíduo. É a partir de sua hegemonia que

cada sujeito estabelece uma relação com os valores que pautam suas vivências e seu modo de

agir, bem como as narrativas daí provenientes.

Isto posto, é patente que as narrativas autobiográficas possuem um forte vínculo com o

trabalho, revelando construções identitárias que vão reafirmar ou contestar a hegemonia do

capital, o que leva a tensionamentos e disputas de poder nos mais distintos campos

(BOURDIEU, 1983). Se “narrar a própria história é atribuir significados e reconstruir

experiências, estabelecer relações de causas e consequências, em montagens de fatos e

acontecimentos que mais correspondem à autoficções” (CASAQUI, 2012, p. 178), no

cotidiano esse processo é intensificado pela comunicação, sobretudo a midiática. A mídia

também se converte em um domínio de lutas pela legitimação ou contestação dos valores e

normas englobados nos discursos que fundamentam cada campo, a partir dos quais as

narrativas autobiográficas são compostas.

3.1 O ESPAÇO BIOGRÁFICO

No convívio coletivo, compartilhamos, por meio da linguagem, principalmente dos

discursos, nossas visões de mundo e representações sociais, que, por sua vez, refletem crenças

e valores. Nesse processo, a narrativa autobiográfica de transformação é uma forma de

inserção social e de legitimação de certos interesses. Visando contribuir a uma maior reflexão

sobre tais relações, consideramos importante nos voltarmos ao conceito de “espaço

biográfico” estudado por Leonor Arfuch (2010). Esse espaço pode ser caracterizado como um

locus onde se encontram formas canônicas do discurso biográfico, tais como as biografias e

autobiografias, quanto formas de relatos expressivos da contemporaneidade, tais como blogs,

entrevistas e os reality shows (ARFUCH, 2010). Em relação a essa separação, Arfuch sustenta

que:

(...) se os gêneros canônicos são obrigados a respeitar certa verossimilhança da história contada – o que não supõe necessariamente veracidade –, outras

variantes do espaço biográfico podem produzir um efeito altamente

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desestabilizador, talvez como ‘desforra’ diante de um excesso de

referencialidade ‘testemunhal’ (ARFUCH, 2010, p. 127).

Trata-se exatamente de um processo no qual se vinculam histórias de vida, de onde

provêm identificações e identidades que são narradas pelo testemunho de indivíduos que

apresentam práticas apreendidas junto a sociedade. Nesse sentido, “a multiplicidade das

formas de narrativas que integram o espaço biográfico oferece um traço comum: elas contam,

de diferentes modos, uma história ou experiência de vida” (ARFUCH, 2010, p. 111).

Fundamentando-se nas teorizações de Paul Ricoeur, Arfuch (2010) propõe que a

narrativa se refere a relatos simbólicos da experiência de vida e sua temporalidade,

encadeando-se à estruturação da vida social. A narrativa pode ser articulada de diversas

maneiras, ou seja, nessa estruturação de vida, encontramos experiências que foram pautadas

pelo tempo, em discursos fundamentados no percurso cronológico. De fato, podem

corresponder a uma “ilusão” de acontecimentos, porque, mesmo em nossa memória

discursiva, não temos como relatar os fatos exatamente como aconteceram no passado

(ORLANDI, 2005). Assim, para relatar o ocorrido utilizamos os recursos da memória

discursiva.

A memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como

acontecimento a ser lido, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais

tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em

relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p. 52).

São os acontecimentos ocorridos no passado que, na forma de texto, atravessam os

acontecimentos do presente em novas circunstâncias, porque este fato, para ser relatado, exige

um esforço relacional do coletivo. Neste sentido, o interdiscurso possui aqui uma íntima

ligação com a memória. Para Orlandi (2005), a memória também faz parte do discurso, pois

ela possibilita suas condições de produção.

O fato é que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer.

É fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua reação com os sujeitos e com a ideologia. A observação do interdiscurso nos

permite, remeter o dizer da faixa a toda uma filiação de dizeres, a uma

memória, e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos (ORLANDI, 2005, p.

32).

Assim, a noção de espaço biográfico (ARFUCH, 2010) abarca os acontecimentos

retidos na prática discursiva, na memória e na esfera composta por biografias e autobiografias.

Em nosso estudo, prestamos especial atenção às narrativas do fazer (trabalho) e do gerir a

vida, que são fortemente impactadas pela cultura empreendedora. Como se pode verificar nas

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narrativas autobiográficas de transformação do evento Day1 Endeavor, podemos encontrar os

acontecimentos que expressam tal ideologia, a refletir seus interesses e poder que entremeiam

a cultura empreendedora inserida no novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI;

CHIAPELLO, 2009).

Neste âmbito, encontramos sujeitos cujo ideário de vida está centrado em ser

empreendedor de si em todos os aspectos de sua vida. De acordo com Casaqui (2014), temos

múltiplas “vozes” na sociedade, que preservam as bases e o modus operandi do capitalismo,

adaptando-se aos novos discursos do tempo presente no intuito de preservar a estrutura social

hegemônica. No entanto, apesar de este “ser empreendedor” representar um posicionamento

das práticas do neoliberalismo, não se pode generalizar, porque existe uma forte convocação

para que o indivíduo seja empreendedor em todos os aspectos da vida. No entanto, nem todas

as pessoas tem este desejo de ser empreendedor até porque os indivíduos não pensam e agem

da mesma maneira. Não necessariamente, os sujeitos vão se moldar à forte exaltação e

convocação ao empreendedorismo e, até mesmo, ter o perfil e habilidades para serem

empreendedores.

Como abordamos anteriormente, também não podemos negligenciar o fato de que, ao

narrar sua trajetória de vida, o sujeito se vale da memória do acontecimento, que, por sua vez,

estabelece uma ligação entre passado e presente. Nas ações vividas e na importância

concedida aos feitos realizados em cada etapa da vida, a construção narrativa acaba por editar

sua própria história no mundo. Sendo assim, a construção de qualquer narrativa atribui

significado e valor a determinados passadas da existência. Ao se tentar reconstruir os fatos do

passado a partir da perspectiva presente é possível ter uma visão estratégica em relação às

experiências vividas, reorganizando-as em função da produção de uma narrativa potente;

neste caso, a potência tem relação com conexões afetivas.

O espaço biográfico é um elemento indissociável da narrativização das trajetórias de

vida. No que se refere à organização Endeavor, notamos como ela, por meio de diversas ações

midiáticas, torna-se uma enunciadora (emissora de discursos) de tais narrativas, propagando-

as. No caso do Day1, com base na delimitação empírica que realizamos em nosso estudo,

podemos observar a presença de mulheres que se transformaram em empresárias e que, a

partir de então, (re)construíram certos perfis morais, alicerçados em valores do

empreendedorismo. Em suas narrativas autobiográficas de transformação, as próprias

empreendedoras não apenas revelam essas mudanças que o empreendedorismo acarreta em

suas vidas, mas também operam discursivamente no sentido de ratificar essa prática, sempre

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de modo a positivá-la. Para Arfuch (2010, p. 120):

É essa orientação ética, que não precisa de nenhuma explicitação normativa, que vai além de uma intencionalidade, que insiste, talvez com

maior ênfase, nas narrativas de nosso espaço biográfico, indissociável da

posição enunciativa particular, dessa sinalização espaço-temporal e afetiva que dá sentido ao acontecimento de uma história.

Dessa forma, estas empreendedoras se enquadram a uma linguagem definida pela

organização Endeavor. Elas fazem partem de um conjunto de narrativas do tempo presente,

que enfatizam práticas do campo do empreendedorismo como forma de inspirar quem assiste

às palestras e promover engajamento.

O contexto midiático do Day1 Endeavor confere, então, sentido e extrema relevância

às atividades e feitos pautados no gerir das ações na vida dessas mulheres e empreendedoras

vistas como bem-sucedidas em seu fazer.

Também devemos notar que são empreendedoras que, em suas narrativas, expõem

diferentes posições relativas a “ser mulher”: filha, mãe, avó, gestora, modelo de sucesso, etc.

Constata-se, assim, que a esfera privada e íntima é exposta, havendo um consumo desta

narrativização da vida midiatizada. Este contexto que se pauta em um processo que Sibilia

(2008) conceitua de “show do eu”: a intimidade é exposta publicamente em um cenário

midiático.

No Day1, existe a marca dessa exposição do sujeito na espetacularização de sua vida.

Sibilia (2008) afirma que a vida midiatizada faz com que o privado se torne público e

manifesto para todos, levando à exposição da intimidade. Os processos midiáticos englobados

no Day1 se valem de determinada narrativização da vida privada de empreendedores para, a

partir de sua institucionalidade, buscar legitimar socialmente, e, portanto, publicamente, a

cultura empreendedora e seu modus operandi.

Temos uma narrativização da vida centrada em expor, de forma pública, os principais

feitos do sujeito, sobretudo os laborais, para que suas ações sejam reconhecidas e legitimadas

junto à sociedade. Assim, com o espraiamento das TICs, podemos mencionar que os sujeitos

passam a ser cada vez mais estimulados a narrativizar e midiatizar sua existência social. “A

privatização dos espaços públicos é a outra face de uma crescente publicização do privado,

um solavanco capaz de tremer aquela diferenciação outrora fundamental” (SIBILIA, 2008, p.

23).

Se antes eram mais centrados em si, no privado e no particular, hoje os sujeitos são

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convocados a participar intensamente de sociabilidades públicas, mesmo no âmbito privado.

Esses processos de midiatização estão profundamente inseridos em nossas vidas como

estratégias de comunicação, que passam a integrar nossos consumos imaginários. Nesse

sentido, Morin (1997, p. 77) defende que:

É através dos espetáculos que seus conteúdos imaginários se manifestam.

Em outras palavras, é por meio do estético que se estabelece a relação de

consumo imaginário. O mundo imaginário não é mais apenas consumido sob forma de ritos, de cultos, de mitos religiosos, de festas sagradas nas quais os

espíritos se encarnam, mas também sob forma de espetáculos, de relações

estéticas.

Assim, torna-se importante ressaltar que as narrativas manifestadas publicamente

permitem o entendimento das relações sociais e dos valores inseridos no discurso do tempo

(MORIN, 2002), atravessados pela comunicação e práticas de consumo vinculadas à

midiatização do tempo presente.

3.2 ELEMENTOS E CARACTERÍSTICAS DAS NARRATIVAS

Na sociedade atual, a interação entre sujeitos é materializada por narrativas de vida,

que são midiatizadas com a intenção de legitimar identidades. Esta prática social nos é

apresentada de diversas formas. Em nosso estudo, ela se processa por meio de narrativas

autobiográficas de transformação de vida. Neste sentido, torna-se importante explicar alguns

conceitos-chave, como cultura terapêutica de autoajuda, narrativa terapêutica e narrativas

autobiográficas de transformação, que dialogam entre si, mas são distintos.

De fato, a cultura terapêutica da autoajuda é um aspecto informal e quase

rudimentar da nossa experiência social, mas é também um esquema cultural

profundamente internalizado, que organiza a percepção do eu e dos outros,

autobiografia e a interação interpessoal (ILLOUZ, 2011 p. 74).

Este processo faz com que a apresentação do indivíduo se dê entre o cruzamento da

cultura e de sua própria narrativização da vida, com o objetivo de dar sentido a seus feitos,

sendo uma maneira de atestar a importância das diferentes fases da sua vida. Neste sentido,

temos a referência de como o indivíduo enxerga seu eu e a relação com os outros, tendo que

se adaptar às normas vigentes. Assim, para Illouz (2011, p. 71):

A narrativa terapêutica postula a normalidade e autorrealização como a meta da narrativa do eu, mas como nunca se dá a essa meta um conteúdo positivo

claro, ela de fato produz uma ampla variedade de pessoas não

autorrealizadas, e por conseguinte doente.

Neste contexto, estamos falando do sujeito que acredita não estar plenamente realizado

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em uma sociedade competitiva e que sofre com a pressão existente por algum comportamento

a ser corrigido para que haja aceitação social. Assim, o sujeito nunca está completo, o que lhe

faz acreditar que deva aprimorar-se em permanência e adaptar-se ao sistema neoliberal. Os

indivíduos devem, portanto, agir a favor do bem-estar pessoal, da felicidade. Ao mesmo

tempo:

A narrativa terapêutica é particularmente adequada ao gênero da autobiografia e o transformou de maneira significativa. Com efeito, na

autobiografia terapêutica, a identidade é descoberta e expressa na

experiência do sofrimento e na compreensão dos sentimentos que se adquire ao contar a história [...] as autobiografias contemporâneas assumem um

caráter oposto: concernem à agonia psíquica, mesmo em meio à fama e à

fortuna (ILLOUZ, 2011 p. 78).

Neste contexto, as empreendedoras do Day1 apresentam as dificuldades e os

sofrimentos vivenciados em algum momento da vida, retidos na memória, que foram

superados para serem convertidos como experiência da vida bem-sucedida. Em suas falas,

temos um sujeito que reivindica ser reconhecido pelos sofrimentos vividos e que atesta os

feitos de uma representação da vida de sucesso, uma maneira de ser ressarcido pelas

instituições que foram responsáveis por eles.

Aqui, a cultura empreendedora (EHRENBERG, 2010), atua como um mecanismo que

irá possibilitar a transformação de si, responsabilizando o sujeito pelos seus atos e pelo seu

destino. Este processo de transformação de si pode ser visto como uma forma de aproximação

à trajetória de vida, à dimensão heroica da existência humana, sendo uma continuidade do

sistema normativo vigente (DARDOT; LAVAL, 2016).

Nesta construção de mundo, encontramos uma etapa anterior de vida, que é

questionada, devendo sofrer modificações para que se permita sua transformação e melhoria.

Existe, pois, um discurso hegemônico que contextualiza as práticas da cultura empreendedora,

sendo pensado em função de um determinado espírito do tempo, no qual ocorre a necessidade

de engajar o sujeito a agir em linha com o sistema vigente. Materializa-se, assim, a

narrativização da vida pautada na transformação de si para se adaptar as tais exigências.

No processo de representação de vida, o discurso de autoajuda, de acordo com Marín-

Díaz (2012, p. 51), baseia-se em dois elementos:

O uso de duas formas narrativas (a descrição de exercícios práticos e a

narração de contos ou fábulas); e o privilégio do saber vindo da experiência

de vida do autor — ainda que, em alguns casos, o destaque vá para a formação acadêmica como critério de validade desse saber.

Encontramos, assim, a legitimação da narrativa de vida centrada na própria

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experiência do sujeito em que o sucesso e o exercício do saber são adquiridos na convivência

social e não necessariamente pelo conhecimento científico. Nesta apresentação da vida a

utilização de uma linguagem emocional é uma forma para persuadir e chamar a atenção do

ouvinte.

Deste modo, o discurso de autoajuda se concentra em aconselhamentos que mantêm

relações aos valores e normas do contexto contemporâneo, influenciando na conduta dos

indivíduos. Estes discursos adquirem diversos formatos, como matérias jornalísticas, gêneros

literários, produtos audiovisuais, palestras, etc. Ao mesmo tempo, tem um propósito

intrínseco de trabalhar questões relacionadas ao bem-estar, ao autoconhecimento e à

felicidade como maneira de garantir ao indivíduo o equilíbrio de sua vida pessoal e,

principalmente, a ideia do sucesso aliado ao capital.

Temos ainda a presença das narrativas de transformação como um recurso para

aproximar uma trajetória de vida de uma dimensão heroica. Sendo assim, encontramos nas

falas das empreendedoras que participam do Day1 Endeavor formas distintas de narrar a vida,

mas que dialogam entre si. É observada nas narrativas de transformação de vida a utilização

de práticas discursivas pautadas na memória e na materialização de falas centradas em valores

das organizações corporativas, que são recorrentes e que compõem esta representação social.

No que se refere à transformação da vida, encontramos um contexto de ações exercidas pelo

sujeito.

Ações cujo fim é o conhecimento do sujeito por si mesmo. Enfim, exercícios

e técnicas orientados para definir e localizar o que compõe a interioridade, e a partir de tal conhecimento, tentar sua transformação. Ações do sujeito

sobre si para ter acesso ‘à verdade’ em que o preço que ele deve pagar por

tal verdade é o próprio modo de ser sujeito (FOUCAULT, 2002, p. 65-66).

Neste processo de autoconhecimento, o sujeito deve modificar-se de forma constante a

partir do imperativo da transformação, “que contribui nesse processo de individualização e

que foca toda ação no indivíduo, em suas ações e suas decisões” (MARÍN-DÍAZ, 2012, p.71).

Ou seja, na responsabilização do sujeito por suas escolhas. Neste cenário, a transformação é

protagonizada pelas empreendedoras do Day1 como forma de apresentar-se para os ouvintes

“esse imperativo de transformação comum aos discursos de autoajuda: você tem que mudar

sua vida!” (ibidem, p. 71).

Em síntese, tanto as narrativas terapêuticas de autoajuda quanto os discursos de

transformação fornecem conselhos e dicas de como agir para superar dificuldades. São

narrativas centradas em uma “autoajuda empreendedora” (CASAQUI, 2016), que incluem

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livros, depoimentos, palestras, enfim, um mercado de ideias que corresponde a materialidades

de consumo diversas.

A exposição do sofrimento se converte, neste âmbito, em um elemento paradoxal. Por

um lado, é algo a ser corrigido, uma fraqueza que não tem lugar na vida dos empreendedores

(de si). Por outro, trata de sensibilizar as pessoas e até promover empatia. Ambas as formas

acabam sendo midiatizadas em um cenário que valoriza a exposição do sofrimento como

forma de atestar uma trajetória de vida para que, em um segundo momento, destaque-se o

estágio de superação de tristezas em direção à felicidade e ao sucesso.

A vida, nestes termos, deve ser sempre alterada e melhorada. As “receitas” e os

“exemplos” se apresentam como conselhos, sugestões e “fórmulas” de superação desses

males, sempre com base no (auto)empreender. Quaisquer comportamentos desviantes e a não

inserção nos valores do neoliberalismo são comumente entendidos como um defeito, ou até

mesmo fraqueza. Assim, podemos entender, que a não adequação do sujeito aos princípios

gerais do sistema vigente passam a estar relacionados a certa patologização da vida. Para

Illouz (2007, p. 20):

Uma cultura em que práticas e discursos emocionais e econômicos se

configuram mutuamente e produzem um amplo movimento em que o afeto se converte em aspecto essencial do comportamento econômico e em que a

vida emocional – notadamente da classe média – segue a lógica do

intercâmbio e das relações econômicas. Os repertórios do mercado se

entrelaçam com a linguagem da psicologia, e, combinados, proporcionam novas técnicas e sentidos para engendrar novas formas de sociabilidade.

Neste sentido, o sujeito é estimulado a agir em concordância com as técnicas de si,

difundidas pela cultura do aconselhamento. Concomitantemente, há uma midiatização

referente aos padrões e comportamentos aceitos pelo contexto social vigente. Ainda em

conformidade com Illouz (2011), esses fenômenos se enquadram no espectro do capitalismo

afetivo, em que os afetos e as relações interpessoais são, no mesmo movimento, impregnados

pelas lógicas de mercado e lucro, desempenho e eficiência da racionalidade econômica. O que

de fato se assoma é uma “cultura em que os discursos e práticas afetivas e econômicas se

moldam uns aos outros” (ILLOUZ, 2007, p. 12).

Além da necessidade de sermos analistas de nós mesmos, passamos a ser incentivados,

por conseguinte, a nos construir em cada uma de nossas ações. As narrativas de transformação

relacionadas a elementos da autoajuda se apresentam como uma forma de incorporação das

práticas valorizadas pela sociedade contemporânea, que dita as regras centradas nesta

construção de si como superação de dificuldades individuais (ILLOUZ, 2011). Salienta-se o

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desempenho a ser melhorado e instituem-se processos comunicacionais devidamente

arquitetados, que materializam normas e interesses econômicos que guardam relação com o

neoliberalismo.

Segundo Illouz (2011), os contornos dados a essas práticas estão bastante associados à

concepção de autoajuda, que acaba por envolver certo tipo de pedagogia, cujo intuito é

corrigir a não conformidade ao sistema capitalista. Percebemos que é uma relação que está

além da parte afetiva, porque tais narrativas (de autoajuda) têm um significado perante a

sociedade, reproduzindo normas e princípios hegemônicos.

Freire Filho (2010, p. 1), em seu estudo sobre jornalismo de autoajuda, problematiza a

questão de a felicidade ser “uma sensação, um direito ou um dever distintamente incitado e

moldado por uma constelação de discursos que estipulam, em determinado tempo e espaço, as

condições e os benefícios de uma vida feliz”. Assim, o sujeito é levado a acreditar que todos

devem estar sempre felizes e agir conforme os valores e comportamentos prescritos nesses

discursos de autoajuda.

Na maioria das vezes, tais discursos fazem com que se acredite na existência de uma

felicidade plena, que normalmente se confunde com ser bem-sucedido, possuir bens, conduzir

uma vida tida como “exemplar”. É precisamente nessa exaltação da felicidade que o sujeito se

torna o único responsável por desenvolver sua conduta e ações. Assim, “na era da felicidade

compulsiva e compulsória, os estigmas da inoperância e do desajuste pairam sobre quaisquer

manifestações de desencanto e insatisfação, mesmo aquelas mais compreensíveis

socialmente” (FREIRE FILHO, 2010, p. 1).

Naturaliza-se, pois, o conceito de “felicidade”. No entanto, ele precisa ser relativizado

e criticado, por ser a felicidade um sentimento que não se apresenta de forma única nem ao

menos linear. Torna-se utópico acreditar que o indivíduo seja feliz em todas as fases de sua

vida.

Na narrativização da vida das empreendedoras do Day1 Endeavor, encontramos

diferentes formas de apresentar esse “ser feliz”: temos a existência de várias interpretações e

dinâmicas utilizadas com base na linguagem destas narrativas, uma vez que os discursos

econômicos e de felicidade se sobrepõem e moldam uns aos outros. Porém, por mais que se

intente, não é possível ocultar as etapas ruins, de sofrimentos e perdas, que são naturais à

nossa existência. De acordo com Rose (1996, p. 36-37):

Não se escreve uma história contínua do eu, mas análises que tentam dar

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conta da diversidade das linguagens de “pessoalidade” que têm se formado

(caráter, personalidade, identidade, reputação, honra, cidadão, indivíduo,

normal, lunático, paciente, cliente, marido, mãe, filha), bem como da variedade de normas, técnicas e relações de autoridade no interior das quais

essas linguagens têm circulado nas práticas legais, domésticas e industriais

para atuar sobre a conduta das pessoas.

Os sujeitos, então, atuam como articuladores de acontecimentos em constante

mutação. Na “genealogia das relações que os seres humanos têm estabelecido consigo

mesmos, isto é, as práticas nas quais eles se relacionam consigo mesmos como eus” (ROSE,

1996, p. 35), reside uma historicidade. Isso significa que elas não devem ser entendidas fora

da cultura da qual fazem parte. Em aditamento:

(...) “pressupostos concernentes aos seres humanos em práticas diversas

partilham uma certa semelhança de família - humanos considerados como eus dotados de autonomia, escolha e auto responsabilidade, equipados com

uma psicologia que aspira à autorrealização, efetiva ou potencialmente

levando suas vidas como uma espécie de empresa de si próprios (ROSE, 1996, p. 45).

Assim, o assujeitamento que daí se depreende está permeado por conflitos entre um eu

interior e privado e os valores e normas imperantes na coletividade que somos expostos a

sermos guiados pelo formato de empresas. Por outro lado, temos de considerar que as

narrativas de vida autobiográficas podem compor uma imagem cristalizada daquilo que

Buonnano (2011) intitula de “vidas exemplares”. Trata-se de um modo particular de agir, que

está relacionado com um projeto de vida que torna o sujeito o responsável pleno pela gestão

de si.

Observamos o cruzamento entre a vida privada e a vida laboral/profissional, sendo que

características pessoais e profissionais do sujeito se misturam. “Torna-se então difícil fazer a

distinção entre o tempo da vida privada e o tempo da vida profissional, entre jantares com

amigos e jantares de negócios, entre elos afetivos e relações úteis” (BOLTANSKI;

CHIAPELLO, 2009, p. 193), o que reforça uma maneira de agir a partir da produtividade.

Este sujeito passa a ser empreendedor ou gestor bem-sucedido da própria vida,

resultado da sua força interior de enfrentar diversidades, problemas e obstáculos que

apareçam.

Como vimos brevemente no capítulo anterior, as narrativas que aí se fomentam vão

possibilitar a representação dos heróis e heroínas dos dias atuais no que concerne à conduta

nas ações cotidianas. Em extensão, vencer os problemas e obstáculos cotidianos por meio de

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uma perseverança inabalável, muito permeada pela imagem do (auto)empreendedor,

circunscreve um modelo de vida exemplar.

A construção desse imaginário de mundo passa por representações também pautadas

na figura do “batalhador brasileiro”, que de certo modo contrasta com a do “trabalhador

brasileiro”. De acordo com Jessé Souza (2010), o “trabalhador brasileiro” é visto de forma

estereotipada e preconceituosa por grande parte da população. Ele é tido como aquele que se

dedica dia após dia para superar dificuldades, limitações de conhecimento e escassez de

dinheiro, mas que são reiteradamente excluídos e colocados à margem, sobretudo em âmbito

institucional.

Já na construção do perfil identitário do “batalhador brasileiro”, há narrativas atreladas

às “vidas exemplares”, nas quais se sobreleva a valorização do trabalho árduo,

independentemente da condição socioeconômica, como forma de marcar que qualquer um

pode vencer, ser um herói: basta ter força de vontade e querer. Trata-se de uma concepção de

mundo simbólica, perpassada por processos comunicacionais que, operando de acordo com

interesses do neoliberalismo, potencializam essa prática discursiva.

O referido autor também argumenta que os batalhadores são apreendidos como

protagonistas de sua condição de vida, que depende de sua maneira (produtiva) de agir

(SOUZA, 2010). Arquiteta-se, portanto, um modelo de autonomia e de autoempreendimento

de si que pode ser considerado libertário para o mundo. Isso porque estão envolvidos

interesses socioeconômicos, disputadas de poder e a valorização crescente do self made

man33, num enquadramento da forma de agir de acordo com normas do contexto social.

Nesta questão, o sujeito que se constrói por si só, mas existe um fator cultural

relevante. Leandro Karnal (et al., 2007) explica que há um entendimento de diferenciação

entre indivíduos, que aparece em função da “polaridade entre winners e losers (vencedores e

perdedores), baseada em um sentido de esforço pessoal. Quem perde, é porque é

incompetente, quem vence obtém vitória pelo esforço pessoal: essa é a crença básica do senso

comum norte-americano até hoje” (ibidem, p. 234). Este pensamento é transposto para várias

culturas como uma nova forma de discriminar e excluir, sendo mandatórios a valorização das

características e os perfis individuais – o indivíduo deve agir para ser vencedor em tudo o que

pratica. Existe, na sociedade, uma valoração em função dos resultados alcançados no trabalho,

33 Considerado como alguém que se fez por si próprio, com seu esforço, por suas qualidades. Disponível em:

https://en.wikipedia.org/wiki/Self-made man. Acesso em março de 2017.

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materializado pelo perfil moral de agir dos bem-sucedidos e daqueles que venceram pela

capacidade de se autossuperar em tudo. Na prática, torna-se uma maneira de ocultar os jogos

de interesses econômicos e os desiquilíbrios sociais, tais como: o preconceito racial e de

classes, a falta de educação para todos, entre tantas outras deficiências e assimetrias.

Sendo assim, as narrativas de vida relacionadas com a temática do “batalhador

brasileiro” tentam reforçar que esse sujeito pode ser visto como herói/heroína de nossos dias,

e, ao mesmo tempo, como vencedor pelo seu esforço individual (SOUZA, 2010). Podemos

dizer que a figura do “batalhador brasileiro” condensa uma série de discursos provenientes da

cultura empreendedora. São discursos que têm em sua essência a narratitivização da

experiência. O molde é o próprio empreendedor, tido como aquele que vai transformar e

salvar o mundo a partir de sua busca constante pelo sucesso e pela melhoria de sua

performance. Verifica-se a subsistência de estratégias discursivas para engajar o sujeito a ser

o empreendedor de si e autor da construção de sua vida.

Entretanto, o que geralmente se negligencia e que já destacamos previamente é que as

narrativas do “gerir a vida” envolvendo os “batalhadores” estão entremeadas por interesses

econômicos da sociedade contemporânea. É também a partir da figura do batalhador que se

estruturam as bases desse modo de agir, procurando-se convocar os indivíduos para ser um

(auto)empreendedor. Esse conceito de “batalhador brasileiro”, sobretudo por meio de

estratégias discursivas centradas em narrativas de vida, acaba por absorver as regras e normas

definidas por esse contexto socioeconômico.

Se observarmos o próprio site da organização Endeavor e os interesses ali colocados,

encontraremos a valorização e o investimento no conhecimento, na educação formal e na

capacitação pessoal, para que todos se tornem empreendedores e se preocupem com a

construção de seu capital humano. Nesses discursos, fica claro que o sujeito deve investir em

seu capital humano (FREIRE FILHO, 2011), com base no qual se avalia o indivíduo por meio

de métricas quantitativas e mensuração de resultados. É importante ressaltar, neste contexto, a

excelência em cada ação, pois há um processo de responsabilização do sujeito por seu sucesso

ou fracasso. É uma forma encontrada pelas normas do neoliberalismo para que o sujeito aja

no sentido de se transformar em uma empresa.

Assim, o sujeito é convocado a ter excelência no agir, devendo ser o único responsável

por adquirir novos conhecimentos e competências técnicas, preferencialmente alinhados às

crenças de transformação e à construção de si. Patenteia-se a existência de uma convocação a

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superar os limites da própria vida e das limitações individuais, o que se torna um

contrassenso, haja vista que existem muitos desequilíbrios e diferenças socioeconômicas e

educacionais em nossa sociedade. Em suma, o neoliberalismo assevera ser o sujeito o único

responsável pelo fracasso ou sucesso em sua vida.

3.3 NARRATIVAS, ESPETACULARIZAÇÃO E MEMÓRIA

No contexto contemporâneo, torna-se relevante observar que os sujeitos expõem de

maneira mais acentuada suas vidas privadas a partir da visibilidade das narrativas do eu e da

autenticidade (TAYLOR, 2011). Nesse processo, utilizam-se dos mais diversos processos

comunicacionais, patenteando normas e valores em suas vidas narrativizadas.

Sabemos, que sujeito em suas relações interpessoais cotidianas, relata acontecimentos

de sua trajetória de vida. É neste ponto que a memória também adquire grande importância,

porque ao contarmos qualquer história (mesmo fictícias) estamos mobilizando de maneira

simbólica fatos e acontecimentos passados. O campo da memória está imbricado em todo

processo comunicacional, correspondendo a um locus permeado pela produção, circulação e

práticas de consumo do relatado, pois envolve disputas de interesse e lutas por poder

(HALBWACHS, 1990).

A memória é repositório de fatos ocorridos, havendo uma relação com sentimentos e

emoções neles envolvidos. Ao contarmos um fato retido na memória, mobilizamos

acontecimentos e lembranças do passado, assim como determinadas interpretações. De acordo

com Moraes (2005, p. 92), a memória se constitui “como estratégia e negociação de sentidos”.

Sendo assim, toda articulação de narrativas autobiográficas é por si só um contexto de

conflitos e tensionamentos das relações que são negociadas entre múltiplos sujeitos. Segundo

Halbwachs (1995), a memória é considerada enquanto uma estratégia discursiva uma vez que

o passado é reconstrução dos acontecimentos vividos. Neste sentido, “se o que vemos hoje

tivesse que tomar lugar dentro do quadro de nossas lembranças antigas, inversamente essas

lembranças se adaptariam ao conjunto de nossas percepções atuais” (HALBWACHS, 1990, p.

16). Logo, as narrativas autobiográficas circulam por tempos e espaços que constituem uma

memória social, retida em pontos de vista sobre determinados acontecimentos.

E o discurso retido na memória revela um espaço íntimo, privado, de subjetividades e

identidades. A construção discursiva possibilita, através da memória, o resgate de lembranças

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conectadas às percepções do passado que nos conduzem às práticas do presente. Bosi (1995,

p. 46-47) afirma que:

A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo

tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as

percepções imediatas, como também empurra, desloca estas últimas,

ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e

invasora.

Particularmente no que diz respeito ao nosso estudo, consideramos a articulação da

memória nas narrativas autobiográficas das empreendedoras que protagonizam o Day1. No

evento, há a recorrência de um modelo de palestra pautado na narrativização de

acontecimentos passados – portanto, retidos na memória – como forma de revelar e atestar a

importância do empreendedorismo nas transformações que tiveram em suas vidas.

Averiguamos nessa conjuntura o imbricamento das narrativas de vida e as dinâmicas

da memória a partir da qual são compostas. Quando versamos sobre as narrativas

autobiográficas, os modos de narrar o eu estão intimamente associados à memória, bem como

às variantes socioculturais que nela também repousam. É comum encontrar, por exemplo,

empreendedoras narrativizando no Day1 Endeavor acontecimentos de quando eram crianças,

a relação com a família, sua criação e origens, sendo uma forma de atestar que a vida teve

sentido. Elas mobilizam, assim, ações e experiência de seu passado para destacar a

importância, por meio das narrativas, de empreender e de seu próprio papel enquanto

empreendedoras, bem como legitimar a própria vida, que adquirem um sentido em tudo que

foi vivenciado.

Assim, a experiência humana é revivida pela memória, que pauta a vida em sociedade

(HALBWACHS, 1995). A grande problemática que colocamos é o fato de que a memória

social se impregna da cultura empreendedora e toda sua ideologia, o que faz com que haja um

apagamento (ou esquecimento) de acontecimentos tidos como não relevantes à chegada a um

patamar considerado de “vencedor”. E muitas vezes, mesmo quando se narra as dificuldades

enfrentadas no percurso de vida, faz-se sempre sob uma perspectiva de que somente as ações

individuais foram necessárias para que se galgasse os degraus do sucesso. Neste processo, há

uma relação e dimensão de valorização do indivíduo e ocultamento do coletivo.

Judith Butler (2015) faz uma reflexão sobre a constituição dos sujeitos, a partir do

diálogo com pensadores como Adorno, Nietzsche, Foucault, Hegel, Laplanche e Lévinas,

expondo que não existe uma construção do sujeito somente a partir da perspectiva individual.

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A autora pondera acerca de questões do sujeito (seu “eu”), questões morais e a maneira como

seria possível o fornecimento de relatos de si mesmo por indivíduos não autossuficientes.

Neste sentido, o indivíduo é construído somente a partir da relação com o outro na

coletividade, na presença de outros interlocutores que se relacionam (idem).

Sendo assim, “nossa ‘incoerência’ define o modo como somos constituídos na

relacionalidade: implicados, obrigados, derivados, sustentados por um mundo social além de

nós e anterior a nós” (BUTLER, 2015, p. 87). A existência do eu só é possível porque ocorre

uma interação com o outro, porque existiu um passado e alguém que falou antes. Não

podemos deixar de considerar, entretanto, que a sociedade é construída por normas e regras

estabelecidas em uma historicidade, o que interfere no “devir sujeito” e na forma como nos

colocamos perante o mundo (idem). Nesta construção de vida, ocultamos a presença do outro

para legitimarmos este eu interior, presente em cada indivíduo, tido como o único responsável

pelos feitos e pelas crenças assumidas.

Assim, no Day1, temos a marca de uma narrativa de autoficção, estudada por Butler

(2015), pois a narrativa do eu é apresentada pelo indivíduo que acredita saber de tudo, sendo

capaz de compor a narrativa de si e os principais feitos e acontecimentos de sua vida. O narrar

a si passa por um processo de análise do que foi dito, ao mesmo tempo em que a presença do

outro, necessária para se reconstruir a gênese do eu, é apagada no sentido de sobressair a

marca deste eu, suas realizações e seus valores, que, por sua vez, pautam esta narrativização

da vida.

Ainda que se tenha o conhecimento que os fatos narrados não são apresentados com a

precisão de como realmente aconteceram, é válido salientar que quando se busca narrar a si há

a tendência de fazê-lo de forma positivada (HAN, 2015 ; BUTLER, 2015). Nisso se observa a

história do eu centrada na narrativização da vida de um empreendedor que se coloca na

posição de domínio do que fala, com a capacidade de analisar a si mesmo.

Dar visibilidade ao que se tem de expressivo quanto às realizações da vida se torna

importante para o indivíduo, uma estratégia para conferir sentido à vida e a tudo que foi

realizado. Para o historiador alemão Andreas Huyssen (2000), um dos fenômenos mais

importantes de nossos dias é a emergência da memória como uma das preocupações centrais

nas sociedades ocidentais, o que envolve relações políticas e culturais. “Esse fenômeno

caracteriza uma volta ao passado que contrasta totalmente com o privilégio dado ao futuro,

que tanto caracterizou as primeiras décadas da modernidade do século 20” (ibidem, p. 9).

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Existe todo um contexto histórico articulado no tempo presente extraído das ações e

conhecimento adquiridos no passado, que referenciam as nossas vidas, sendo transportados e

considerados para sinalizar as mudanças ocorridas na constituição do presente.

Ao mesmo tempo, os acontecimentos retidos na memória têm significados que

representam a relevância de cada fase da vida (WORCMAN, 2013). Ao interpretarmos as

relações de afetos e lembranças preservadas na memória, podemos entender e ter pistas em

relação ao sujeito e sua constituição de mundo.

De acordo com Jaguaribe (2007, p. 83) neste caminho, ocorre “imbricação da memória

individual e coletiva, o velho adquire uma pátina de arquetípico, encarnação individual do

coletivo”. Ao nos espelharmos em certas narrativas, resgatamos as origens de fatos do

passado, as lembranças que configuram a expressão do presente.

Assim, para compor o presente se utiliza de processos comunicacionais como fotos,

vídeos e narrativas das pessoas para contar o vivido, o acontecido, portanto, dependente do

relato de outras pessoas, da coletividade, para contar as ações ocorridas.

Neste processo todo, Nora (1984) sinaliza a necessidade de criação de “santuários de

memória” ou “lugares de memória”, principalmente face ao fenômeno da aceleração da

história, que faz com que o presente se torne cada vez mais rápido e volátil. Isso demonstra o

quanto nossa relação com a memória é complexa e muitas vezes paradoxal. Estes “santuários

de memória” podem ser considerados elementos que resguardam informações sobre

determinado momento histórico. No caso do Day1 Endeavor, podemos dizer que os vídeos do

evento buscam preservar, na midiatização de narrativas autobiográficas, acontecimentos

retidos na memória, que retratam a transformação de vida, suas diferentes etapas. Em função

de todas as tecnologias que intermediam os processos informacionais e comunicativos os

vídeos e as narrativas do Day1 podem ser acessados a qualquer momento e lugar. Ocorre uma

presentificação dos vídeos e de seus conteúdos que, junto ao contexto social, vão buscar

legitimar seu propósito de engajar os indivíduos nas práticas da cultura empreendedora. Não

podemos omitir que essas narrativas têm um papel de inspirar as pessoas a agir em acordo

com tais práticas. Têm, portanto, a intenção de convocar outros indivíduos e consolidar o

ideário de sociedade calcado neste tipo de cultura.

Os referidos vídeos comprovam, assim, o que foi dito em um determinado momento,

que materializa o lugar de fala das empreendedoras que participam do Day1 Endeavor.

Acreditamos que esta forma de comunicação pode ser considerada um “santuário de

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memória” porque retrata e preserva um determinado contexto social vivido, sendo o

repositório de imagens e textualidades, cujo objetivo é uma preservação de “narrativas

inspiracionais” destas empreendedoras (CASAQUI, 2015). Logo, a memória pode servir para

pensarmos sobre o próprio discurso que permeia as vidas narrativizadas no presente.

Assim, não conseguimos relatar a nossa infância e outras etapas da vida sem o relato

do outro. A construção deste “eu” autobiográfico se consolida e constitui na relação com o

outro e na “oscilação entre a memória posta sob suspeita já que a memória, por vezes, como

no caso da reconstituição da infância, é a memória dos outros” (ARFUCH, 2002, p. 105).

Neste sentido, encontramos, no tempo presente, a midiatização das crenças e práticas

da cultura empreendedora, que valoriza o perfil empreendedor deste contexto do

neoliberalismo.

No palco do Day1, materializam-se os atos significativos do decorrer da vida, que

marcam jogos de interesses socioeconômicos. Entretanto, o discurso já vivido por nós é

ressignificado e relatado de outra maneira. Ao contar uma história, a reconstrução dos fatos e

acontecimentos não será revelada da mesma maneira e com as mesmas palavras, ela será

retratada de forma diferente daquela que foi representada, o que abre espaço para a presença

de novas narrativas, que são moldadas para se adaptarem aos valores e condutas da sociedade

contemporânea.

Esta volta ao passado não se reduz à lembrança, mas está inserida na articulação

individual das identidades (CANDAU, 1998). Isso porque na interação entre indivíduos

somos atravessados pelas representações de vida distintas e de mundo moldadas para atender

à hegemonia do contexto sócio-histórico em que se vive.

Portanto, somos, também, moldados em função de identidades apresentadas pelo

outro. Não é somente a nossa identidade individual que vai predominar, mas, sim, a forma

como os interesses e valores são negociados nesta relação com o outro. Neste processo, não

existe somente uma forma de interpretação de mundo, mas a relação e necessidade de

negociar as diversas formas. Devemos compreender os distintos momentos históricos e a

relação entre sujeitos e memória, que se reflete em tais interações.

Ao mesmo tempo, temos a existência das “identidades coletivas” (POLLAK, 1989,

1992). Ou seja, nossa identidade não é única, mas fruto de diversas identidades (individuais e

coletivas) que se entrecruzam na trama sociocultural. Por sua vez, este processo é entremeado

pela memória, porque sempre existe algo já foi vivido e dito anteriormente sendo

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(re)apropriado, direta ou indiretamente, no presente. Como acentua Halbwachs (1990), a

memória (individual e coletiva) se pauta em um sistema simbólico, por meio do qual há o

compartilhamento de significados e o estabelecimento de identificações que são

desenvolvidas com a presença do eu, da memória e da relação com o outro.

Já de acordo com Moraes (2005), temos aqui uma aproximação intrínseca aos

processos comunicacionais que revelam os significados que circulam no passado e presente,

sendo assim, “o século 20 fez com que a comunicação e a informação se tornassem “lugares

privilegiados” na produção e veiculação de sentidos” (ibidem, p. 9). Somente pelos processos

comunicacionais contidos na memória social é que temos acesso às representações de mundo

e seus significados. Entretanto, “tal memória produz um discurso organizador e estruturador

do mundo, das relações sociais e simbólicas” (idem), que, com base nas comunicabilidades,

“se inscreve em um processo de circulação e consumo em que diferentes formas de mediação

se manifestam ou são utilizadas” (ibidem, p. 98). No caso de nosso objeto de estudo, as

narrativas contidas nos vídeos do Day1, que assume a transformação e o vivido, bem como, o

que representou estas passagens de vida nos acontecimentos retidos na memória. Assim, a

relevância da memória sobre as nossas vidas torna-se inquestionável, na medida em que a

mesma nos faz pensar e questionar as diversas maneiras de agir perante o atravessamento

entre passado e presente, ao mesmo tempo, ajuda-nos a refletir e pensar sobre um futuro

incerto.

3.4 O SIGNIFICACO DO DAY1 PARA A NARRATIVIZAÇÃO DA VIDA

No interior dos fluxos narrativos midiatizados, entendemos que as narrativas de

transformação de vida apresentadas pelo evento Day1 Endeavor podem ser consideradas

como de autoficção. Elas combinam dois estilos paradoxalmente contraditórios: a

autobiografia e a ficção. Ao mesmo tempo, organizam de modo a ter como eixo condutor um

reordenamento ficcional das etapas da vida, que passam a estar ligadas à cultura e às práticas

empreendedoras.

Neste sentido, o indivíduo que narra a si mesmo necessita ter autoridade reconhecida

pela sociedade – tais como professores, escritores e especialistas em determinados assuntos

com capacidade para mobilizar a escuta no outro –, bem como, envolver e persuadir as

pessoas que com eles interagem. Não depende somente de habilidades de linguagem, mas da

capacidade pessoal de se valer de sentimentos e afetividades para fazer com que o interlocutor

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seja de alguma maneira sensibilizado pela linguagem e comunicação utilizadas. Só é possível

a elaboração de um relato de si a partir da interpelação com outro e pelo outro, porque somos

construídos na confluência de diferentes visões de mundo.

Assim, torna-se impossível relatar a si mesmo, sendo quase uma autoficção, de acordo

com a teoria psicológica e no relato de si (do indivíduo), necessitamos do outro para construir

a nós mesmos (BUTLER, 2015). Assim, não existe narrativa transparente: ela se torna opaca

na medida em que é fruto de interação entre sujeitos. A construção de nossa própria narrativa

depende do outro, de alguém que seja testemunha de nossa origem.

Como já mencionado na introdução deste estudo, o evento Day1 Endeavor é

apresentado em um cenário em formato de palco, com palestrante, plateia e presença de

empreendedores que relatam suas vidas em autobiografias de transformação, com duração de

apresentação em torno de 20 minutos. Neste contexto, a narrativa de vida é construída com

base em elementos da linguagem e textos presentes no cenário do Day1, que também

integram seu palco. Aqui emerge uma autoficção que organiza todo o contexto do evento.

Podemos considerar que o palco também integra a narrativização da vida do eu protagonizado

pelos empreendedores participantes. Estas, por sua vez, têm a intenção de inspirar outras

pessoas a agirem de acordo com as práticas e representações de mundo apresentadas, ao

mesmo tempo, se engajarem nesta maneira de conduzir a própria vida. Podemos dizer que

existe todo um campo semântico articulado com o objetivo de engajar as pessoas a assistir aos

depoimentos dos empreendedores no Day1. Casaqui (2015, p. 9) identifica, nesse sentido, um

“campo semântico da inspiração incorporado a um projeto de sociedade” que articula um

discurso que não fica claro porque os indivíduos são incitados agir em função de uma

sociedade que instiga a agir em função de ter um bom desempenho.

Assim, externar as ações individuais de forma pública destaca a relevância das

autobiográficas na contemporaneidade. Elas legitimam a exposição da história de um eu que

se pauta na visão de mundo do empreendedor com um saber reconhecido e que atesta o que

foi vivido por meio da narrativização da vida em um palco. Trata-se de uma construção de

mundo preparada para que nos inspiraremos neste modelo e formato de vida e trabalho. Neste

caminho, os indivíduos podem se espelhar em tais práticas de vida e trabalho apresentadas por

empreendedores midiatizados pela organização Endeavor. É importante entender que existe

uma estratégia comunicacional por parte da Endeavor de engajar novos sujeitos a agir em

função dos valores que circulam pelas práticas da cultura empreendedora. Casaqui (2015, p.

9) menciona, que “a inspiração originada de um fator externo se apresenta: o outro que é bem-

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sucedido em um projeto é alçado ao status de modelo de cultura, legitimado pela visibilidade

promovida pelos vídeos”. Em nosso estudo, os vídeos correspondem à midiatização

audiovisual do evento Day1 Endeavor.

3.4.1 Estratégias comunicacionais do evento Day1 Endeavor no processo de

narrativização da vida

Acreditamos que a valorização e exposição midiática do Day1 Endeavor está em seu

formato, baseado em um processo de produção, circulação e consumo de mídias. Elas se

assentam nos seguintes pilares: a vida narrativizada por autobiografias de transformação

fortemente permeada pela cultura empreendedora; a habilidade de se comunicar bem perante

o público, com o objetivo de persuadir as pessoas a acreditarem nas falas que foram

proferidas. Não podemos ocultar a capacidade de persuasão que cada palestrante necessita ter,

no sentido de convencer e engajar as pessoas.

De forma geral, a linguagem utilizada pelo palestrante vai interferir no processo de

interação e interpretação por parte da plateia e ouvintes. As ideias apresentadas são

entrecruzadas por estratégias e jogos de interesses dos envolvidos, como é o caso da

valorização de práticas focadas em uma cultura empreendedora que convoca as pessoas a ser

empreendedores de si. Assim, encontramos no Day1 empreendedores com habilidade de se

apresentar em público, sabendo articular adequadamente a linguagem, a postura, a tonalidade

da voz, etc. Cada empreendedor que ali se apresenta tem a necessidade de legitimar sua fala

construída pelo próprio discurso, por argumentos de autoridade e frases que comprovam sua

autoridade e experiência para falar sobre determinado assunto. O empreendedor se apresenta

em um cenário construído de maneira estratégica para legitimar quem toma a palavra: o

empreendedor foi colocado naquele palco, em posição de destaque, por ter vivido a

experiência que relata.

Como já mencionado anteriormente, o Day1 se espelha no modelo de palestra

utilizado pelo TED Talks (Tecnologia, Entretenimento e Design). Neste sentido, os

empreendedores protagonistas do Day1 precisam dominar a boa comunicação da

narrativização da vida permeada de técnicas de como se apresentar em público. Nas palestras

do Day1 temos a presença de um padrão narrativo que utiliza uma linguagem para emocionar

e envolver a plateia; mas, na verdade, são estratégias comunicacionais devidamente

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orquestradas pela Endeavor, para fazer com que os ouvintes acreditem sem questionar que

algo de novo está sendo dito. É importante, portanto, tensionar o que está sendo apresentado

nos discursos de autoajuda por meio de depoimentos e aconselhamentos como sendo

inovadores e revolucionários, o que, na prática, é mais uma forma encontrada pelo sistema

neoliberal de exaltar as práticas empreendedoras.

Este processo de comunicação de/em grandes palestras foi estudado por Gallo (2014).

Basicamente, o autor identificou nove eixos que caracterizam o formato utilizado pelas

palestras TED e que servem de modelo para eventos como o Day1 Endeavor. Abaixo,

listamos estes eixos para, posteriormente, realizarmos uma síntese crítica.

1) Uso do emocional para apresentar uma grande paixão da vida, aquilo que realmente

inspira por meio de emoções negativas para gerar impacto positivo e gerar empatia.

2) Contar histórias, porque as mesmas aumentam a compreensão das pessoas ao que

está sendo dito e coloca o palestrante na posição de herói da história que foi

apresentada.

3) Relaxe e transforme a palestra em uma conversa, os melhores oradores gravam suas

palestras, treinam muito, se preocupam com a boa linguagem corporal e oral, postura

de palco e principalmente com falas e os ditos.

4) Ensine algo diferente e novo, nenhuma pessoa quer participar de uma palestra se

algo novo não for dito, já que este contexto estimula a audiência a prestar a atenção.

5) Crie impacto para que a palestra seja algo inesquecível, sendo importante criar um

momento, de tristeza e ou alegria, que seja marcante.

6) Use o humor, ser irreverente, ter um bom humor ao relatar um fato, ou até mesmo

tirar um sarro de si mesmo apresentando algum fato neste sentido.

7) Limite o tempo da apresentação no sentido que se consiga apresentar um

determinado problema, algumas soluções e os aprendizados apreendidos, ao mesmo

tempo, usar um resumo simplifica o já dito.

8) Utilize elementos visuais, uma imagem projetada, sons, luz e algum aroma ajudam

ao compor a apresentação.

9) Seja autêntico, o que se relaciona a ser verdadeiro, legítimo e genuíno. Este eixo

não sinaliza a veracidade dos acontecimentos e autenticidade na forma de agir e na

representação social do sujeito, pois ocorre tensionamentos destas representações

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identitárias centradas na busca de saberes que confere o aprimoramento e qualidade no

agir do capital humano (Freire Filho, 2010) legitimado em função deste fenômeno

cultural do empreendedorismo atrelado a inovação e mudanças constantes sobre os

comportamentos da vida.

A síntese crítica a Gallo (2014) requer um tensionamento entre as teorias estudadas e o

conteúdo instrumental do livro deste autor. Primeiramente, a estratégia de comunicação

emocional é um recurso utilizado para persuadir e não necessariamente consegue inspirar o

ouvinte. Neste sentido, o sujeito que narra é colocado na posição de destaque (herói do tempo

presente), na qual suas ações são apresentadas de forma positivada reforçando os interesses e

as condutas de outros agentes sociais semelhantes aos seus grupos de pertencimento. Observa-

se a recorrência de temas repetitivos e contraditórios, que apenas reforçam os padrões de

conduta e temas do sistema neoliberal. Deve-se considerar, ainda, o uso de narrativas

terapêuticas ou de sucesso e felicidade, que são estratégias motivacionais articuladas ao

objetivo de persuadir a plateia. Junto com isso, limitar o tempo é também uma maneira de

diminuir a dispersão e a falta de interesse dos ouvintes. O conteúdo apresentado nem sempre é

retido na mente das pessoas; por isso, a utilização do humor apresenta-se como estratégia para

despertar a atenção que ajuda a compor a apresentação. Por fim, ressaltamos a ideia de

autenticidade, relacionada ao sujeito verdadeiro, legítimo e genuíno, como própria de um

capitalismo neoliberal que implica a conversão do sujeito ao status de capital humano

(FREIRE FILHO, 2010) e como responsável pela gestão dos investimentos na aprendizagem

e transformação constante, pretensamente necessárias a uma vida bem-sucedida.

Em resumo, para ser um bom orador tem-se de pautar as apresentações em função do

público, ou seja, do tipo de ouvinte que está presente. Sabemos que estas explicações de Gallo

(2014) podem ser utilizadas de diversas formas, mas elas ajudam a entender como funcionam

as palestras do Day1, inseridas em um contexto que exalta as práticas da cultura

empreendedora. Ao mesmo tempo, não queremos deixar de lado a relevância da oratória na

apresentação dos empreendedores no Day1 Endeavor, pois ela serve como uma estratégia

comunicacional para convencer o indivíduo em função de certo valor hegemônico. É uma

estratégia comunicacional centrada no convencimento, para agir em função das ações

empreendedoras.

Este processo de midiatização ocorre em todos os Day1, pois, logo após cada evento, o

conteúdo destas palestras é publicado e consumido pelas pessoas, em formato de vídeo pelo

YouTube, site da Endeavor e o canal Day1 TV. São meios de comunicação utilizados para

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reverberar as narrativas desses empreendedores e da própria organização. Não vamos explorar

aqui a questão da transformação, pois já foi amplamente discutida na introdução e em

capítulos anteriores. Assim, vamos nos concentrar em um segundo ponto além da oratória, a

questão do cenário e sua construção arquitetônica que funciona como elemento de

comunicação da linguagem visual do Day1.

Iremos nos voltar então à origem do Day1 no Brasil, em agosto de 2011, para

analisarmos as linguagens visuais utilizadas como estratégia de comunicação. Apresentamos a

seguir dois exemplos. Eles são imagens que foram extraídas de palestras do Day1 a partir dos

vídeos disponibilizados no site da Endeavor. Assim, somente a título de apresentarmos como

é esta parte da construção arquitetônica do Day1 incluímos uma imagem do tipo de palco que

foi utilizado para posicionar a empreendedora.

Figura 3: A palestra de Sônia Hess no Day1

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=xrs_hCEOlAI>.

Podemos observar uma composição de palco que destaca a presença da

empreendedora. Sua estrutura a dispõe em uma posição central e mais elevada em relação à

plateia. O telão onde sua apresentação audiovisual é projetada também está centralizado e

acaba por realçar a silhueta de Sônia Hess, ex. CEO do grupo Dudalina. Também podemos

levar em consideração o painel grafitado do lado direito do palco. A representação de uma

escada pode conotar o caminho da ascensão, o percurso para o alcance do sucesso. Todos

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esses elementos ajudam a criar uma dinâmica que integra sua visibilidade midiática no palco

do Day1.

Em relação à construção de palco, constatamos alguns padrões que se mantêm: o

palco, o telão, a centralidade da empreendedora, a altura elevada em relação à plateia, a

iluminação que ressalta seu corpo e elementos figurativos que compõe o cenário. Também há

balões iluminados (um deles com o logo do Day1) que iluminam o palco e a palestrante. Eles

podem simbolizar, assim como a escada, uma instância superior, elevada, assim como os

empreendedores buscam ser legitimados na cultura empreendedora.

Figura 4: A apresentação de Luiza Helena Trajano no Day1

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=bew5KzrV-7w>.

Ainda podemos interpretar os balões como um comparativo ao sucesso alcançado pela

empreendedora. Na medida em que se elevam aos céus, os balões ultrapassam limites. Assim,

a metáfora que acionam é a da transformação de vida, de suas etapas, e os limites

transcendidos são aqueles de uma existência não pautada plenamente na cultura

empreendedora, mas em todas as ações da vida. Por outro lado, podem designar uma pretensa

liberdade, indo ao encontro do entendimento de senso comum que prega que ser

empreendedor (nos negócios e de si mesmo) é ter a autonomia para gerir todos âmbitos da

vida, basta querer.

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Fugindo de tal concepção metafórica, devemos nos lembrar de que a subida dos balões

nunca ocorre de modo certo ou linear. Isso nos leva a ter mente que, por mais que se almeje

um controle sobre a trajetória de vida, suas etapas continuam sujeitas ao acaso, aos

imprevistos, aos percalços: os balões não seguem o mesmo curso e muitos deles nem sequer

conseguem flutuar para muito longe.

De qualquer modo, apesar de algumas mudanças estéticas (como os balões),

verificamos que o cenário do Day1 continua a explorar a visibilidade da empreendedora que

realiza a palestra (Luiza Helena Trajano, CEO da rede varejista Magazine Luiza). Isso pode

transmitir a ideia de que, para estar em um palco com estas configurações, a empreendedora é

alguém importante, de sucesso. É essa conjuntura comunicacional que ajuda a compor a

espetacularização de suas narrativas.

Ao longo do tempo, os cenários do palco do Day1 Endeavor foram se transformando

e, de modo geral, notamos que eles se sofisticaram. Trata-se de uma estratégia que contribui à

espetacularização do evento e à sua midiatização. O objetivo parece claro: aumentar o alcance

e o impacto de suas palestras. Em 2016, por exemplo, o evento aconteceu na Sala São Paulo,

em um espaço bem mais amplo e requintado. Sede da Orquestra Sinfônica do Estado de São

Paulo e integrante do Centro Cultural Júlio Prestes, a Sala São Paulo é um ambiente onde

ocorrem apresentações sinfônicas e concertos, tendo 22 camarotes e capacidade para mais de

1.400 espectadores.34 A grandiosidade desse cenário (como podemos observar na Figura 5)

com certeza gera um efeito positivado tanto para a empreendedora que está palestrando

quanto para a Endeavor.

Figura 5: Palestra de Cristina Boner, da Global Web, em 2016

34 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Sala_S%C3%A3o_Paulo>. Acesso em: mai. 2017.

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Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=7xuuCU469dg>.

Outra mudança que se sucede é a cobrança de ingressos para assistir às palestras. Em

2011 a entrada era gratuita, mas em 2016 passa a ser comercializada quando a pessoa assiste

ao evento de forma presencial porque na forma on-line nada é cobrado.

A narrativização das trajetórias de vida de empreendedores centrada em uma estratégia

organizacional (por parte da Endeavor) e comunicacional contribui à geração de interesse e

engajamento em relação às ações com as quais trabalham, ou, mais abrangente, ao campo do

empreendedorismo. São fatores centrais no processo de reconhecimento do Day1 Endeavor e

à sua difundida midiatização, sobretudo nos domínios da Internet.

A seguir, apresentamos um release divulgado pela Endeavor após a realização do

primeiro Day1. Ele serve para exemplificar mais uma dessas estratégias comunicacionais

empregada pela referida organização até os dias atuais.

3.4.2 formatos de divulgação do Day1 Endeavor

Na imagem a seguir (Figura 6), expomos alguns exemplos de como é realizada a

divulgação do Day1, cujo objetivo é exemplificar as diferentes formas de promoção do

evento. Neste contexto, temos a presença de um processo comunicacional articulado pela

produção, distribuição e consumo dos discursos praticados pela Endeavor, com a clara

intenção de informar, gerar exposição e engajamento por parte das pessoas à forma de agir da

organização. Assim, buscando verificar como a Endeavor divulga o Day1, traremos alguns

exemplos do tipo de estratégia de comunicação utilizada pela mesma.

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Figura 6: Divulgação do Day1 Endeavor no pós-evento

Fonte: <https://endeavor.org.br/lancamento-do-programa-Day1/>.

De acordo com o site da organização Endeavor, as narrativas que despontam por meio

do Day1 servem para “inspirar”. Sendo assim, qualquer pessoa pode, em tese, se espelhar nas

ações e nos exemplos dos empreendedores que passam pelo palco do Day1 Endeavor.

Contudo, como já abordado anteriormente, por detrás dessa inspiração existe um

enquadramento às práticas da cultura empreendedora.

Assim, as trajetórias de vida midiatizadas pelo Day1 Endeavor podem ou não inspirar

a forma de agir. Sua intenção, todavia, continua sendo a mesma: engajar o sujeito a

empreender, nos negócios e em projetos pessoais de sua própria vida e, portanto, legitimar a

cultura e o campo do empreendedorismo.

No que diz respeito ao lançamento do Day1, em 16 de agosto de 2011, a Endeavor

utilizou vários meios de comunicação, tais como seu site, releases para jornalistas, e-mail

marketing e sites de rede social. Isso materializa uma relação de produção, circulação e

consumo das narrativas da própria organização e daquelas presentes no evento que realiza.

Trata-se de táticas de comunicação que buscam sensibilizar as pessoas, para que acessem os

conteúdos produzidos. É importante se destacar que no texto da figura 6, utilizado na

divulgação de releases para a imprensa e publicados pelo site da Endeavor temos escrita a

seguinte frase “o evento que deu no início ao projeto, contou as histórias de cinco

empreendedores de alto impacto”.

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Assim, podemos nos questionar: o qual é o significado da linguagem utilizada na frase

“empreendedor de alto impacto” para a organização Endeavor? De acordo com o site da

Endeavor Brasil,

Acreditamos que a força do exemplo é o caminhão para multiplicar

empreendedores que transformam o Brasil e por isso trazemos aprendizados

práticos e histórias de superação de grandes nomes do empreendedorismo para que se disseminem e ajudem empreendedores a transformarem seus

sonhos grandes e negócios de alto impacto (ENDEAVOR, 2017).35

De acordo com a resposta apresentada pelo site da organização, as frases de efeito são

acionadas com o intuito de gerar alguma pré-disposição a agir em linha com os valores da

organização. Trata-se de uma estratégia comunicacional em que temos uma construção

discursiva centrada na narrativização da vida e a ideologia está inscrita neste contexto. É um

modo opaco de apresentar a figura do empreendedor como sendo alguém diferenciado, dotado

de capacidade superior, que pode transformar o mundo e a forma de agir das pessoas. Isso, de

fato, parece um tanto utópico, porque não fica claro o que é este ser empreendedor de alto

impacto.

Ao mesmo tempo, não estamos falando de qualquer empreendedor, mas aqueles que se

destacaram em suas práticas empreendedoras, sendo considerados como transformadores,

caso contrário, não seriam espetacularizados no palco do Day1. Isso é essencial para serem

escolhidos pela Endeavor e se apresentarem neste palco. Assim, podemos dizer que estas

narrativas de transformação de vida são apresentadas como lógica de vida que pode pautar

todas as nossas atitudes em todos os elementos que compõem nossa razão de ser, o que nos

parece até certo ponto um absurdo. Esta forma de utilizar a linguagem dizendo empreendedor

de alto impacto tenta passar uma imagem de um ser humano que está para além das práticas e

ações de vida porque pode ocasionar uma grande transformação de tudo e todos.

Existe toda uma exposição midiática com foco e incentivo para que as pessoas

assistam o Day1. Como visto na figura 6, a Endeavor afirma que a casa “estava lotada”.

Busca, assim, evidenciar o potencial de atração do evento e, consequentemente, seu sucesso.

Também é ressaltado seu caráter inspiracional, ou seja, fica clara a intenção de engajar os

espectadores nas práticas da cultura empreendedora. Que tem o gancho de apresentar o grande

dia de transformação, ou seja, ser alcançado por pessoas que buscam a mudança em suas

vidas e na maneira de agir.

35 Disponível em: <https://endeavor.org.br/o-empreendedorismo-de-alto-impacto/>. Acesso em: mai. 2017.

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Abaixo expomos outro exemplo. Ele diz respeito a um e-mail marketing encaminhado

pela Endeavor, datado de 14 de maio de 2017, para a autora deste estudo.

Figura 7: E-mail marketing Day1 Endeavor (Caixa de entrada)

Fonte: Reprodução imagética de e-mail marketing realizada pela pesquisadora.

Figura 8: E-mail marketing Day1 Endeavor (Conteúdo interno 1)

Fonte: Reprodução imagética de e-mail marketing realizada pela pesquisadora.

Ao abrir o e-mail marketing, tem-se acesso ao seguinte texto:

Olá,

Sua participação na transmissão online do Day1 2017 está confirmada. No dia 5 de junho, pela manhã, vamos te enviar o link para você acompanhar a

partir das 19h00 as sete histórias que serão contadas no palco.

Para não esquecer, salve na sua agenda a data e o horário:

No palco, já temos oito empreendedores confirmados: Luiz Seabra, Paola Carosella, Caio Bonatto, Pedro Lima, Carlos & Noeli Bazzanela, José

Renato Hopft e João Carlos Martins.

Por aqui, já estamos trabalhando com os palestrantes para fazer desse o melhor Day1 da história.

Um abraço e até lá!

Por fim, há um link para acessar a página web de venda dos ingressos para o Day1

Endeavor 2017.

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Figura 9: E-mail marketing Day1 Endeavor (Conteúdo interno 2)

Fonte: Reprodução imagética de e-mail marketing realizada pela pesquisadora.

Na articulação desses materiais, encontramos exemplos do processo comunicacional e

das estratégias de divulgação utilizadas pela Endeavor. Convida-se e intenta-se despertar o

interesse para participação no Day1, seja presencialmente pagando o ingresso ou pela Internet

de forma gratuita.

Em ambos os casos, mas de formas distintas de participação, presencial ou on-line, se

consegue ter acesso e assistir o que estes empreendedores tem a dizer, que poderá impactar e

causar alguma mudança na vida das pessoas. É válido destacar que o fato de cobrar ingresso

para assistir ao Day1 presencialmente corrobora a relação direta que a Endeavor possui com

uma questão econômica e produtiva no que diz respeito ao empreendedorismo. O patrocínio

do banco Santander também patenteia a esse vínculo da organização com a mercantilização de

práticas da cultura empreendedora.

Neste sentido, “na medida em que somos invalidados como seres competentes, tudo

precisa nos ser ensinado ‘cientificamente’” (CHAUÍ, 2014, p. 57). A ideia de que aprendemos

por meio de alguma mediação por especialistas é fato recorrente no contexto vigente e nos

remete diretamente aos objetos de estudo desta pesquisa. Neste caminho, “esse discurso

competente exige que interiorizamos suas regras e valores, se não quisermos ser considerados

lixo e detrito” (ibidem, p. 58).

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O discurso competente enquanto linguagem do conhecimento é a fala do especialista,

do indivíduo que domina certos saberes e técnicas, sendo alçado a um patamar de “escolhido”

porque tem certas competências. Torna-se, portanto, uma autoridade para falar sobre

determinado assunto. Neste contexto, existe uma determinação de poder em que o indivíduo,

que ocupa um lugar de destaque é autorizado a falar, o que acaba influenciando em sua

identidade social. Assim, “o discurso competente é aquele que pode ser dito, ouvido e aceito

como verdadeiro e autorizado porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de sua origem”.36

Também, não podemos desconsiderar, que narrar a trajetória de vida se converte,

atualmente, em uma das principais formas de interação e inserção social. Há pouca interação

entre o empreendedor que realiza a palestra e a plateia; não há, por exemplo, espaço para

perguntas ou intervenções. A questão fundamental deste contexto de palco está baseada em

como os empreendedores apresentam determinados valores. Existe um diálogo apenas no

sentido de que o palestrante fala do seu eu interior e pessoal, que se relaciona com o outro.

Já as pessoas no auditório compõem uma plateia, a quem as mensagens diretamente se

dirigem. Elas podem ou não assimilar algum ponto das narrativas de vida expostas. O

auditório é visível, mas representa a presentificação contínua deste discurso retratado pelas

narrativas do eu que cada empreendedor revela em confronto com a percepção do outro. Estas

narrativas de vida existem para atualizar as normas e valores neoliberais em jogos de

interesses sociais, políticos e econômicos, muitas vezes intimamente relacionados à cultura

empreendedora.

Como mencionado anteriormente, as narrativas autobiográficas estão centradas na

transformação da trajetória de vida em diferentes etapas e momentos do que foi vivido. Este

processo de relatar a vida produz sentimentos e afetos na plateia que assiste, podendo ocorrer

um identificação e reprodução dos sentimentos relatados na própria vida de quem assiste ao

Day1. Há, pois, uma estratégia de comunicação no sentido que se possa reproduzir tais

efeitos, por meio de técnicas e exemplos que se utilizam da retórica e da arte de falar bem, em

público, para impressionar, persuadir e engajar. O palestrante tem o intuito de convencer por

36 O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-

determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o

conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção

principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico,

religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber,

que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem. Disponível

em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2012/09/marilena-chaui-debate-ascensao-conservadora-sao-

paulo.html >. Acesso em: mai. 2017.

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meio da espetacularização de sua capacidade de comunicar, em função dos jogos e interesses

de promover as práticas e valores do empreendedorismo estabelecidos pela a Endeavor.

Assim, a interface entre a comunicação e o consumo das narrativas autobiográficas de

transformação, em seus textos audiovisuais, congrega uma carga simbólica que serve para dar

sentido às próprias práticas dos empreendedores que ali estão, no palco do Day1, e, em

extensão, ao empreendedorismo. Trata-se de um processo que ao mesmo tempo propaga e

legitima a cultura empreendedora e sua ideologia, que são razão de ser da própria

orquestradora destas “vozes”, a Endeavor.

Há uma relação de construção do sujeito que tem a ver com a produção distribuição e

consumo de narrativas autobiográficas de transformação centradas em práticas da cultura

empreendedora. Neste contexto as narrativas são apresentadas com estratégias

comunicacionais da organização Endeavor para inspirar pessoas no sentido que possam se

engajar neste contexto.

Não podemos deixar de considerar, portanto, as questões relacionadas à autoridade,

pois elas estão fortemente presentes no Day1 e em toda a estratégia comunicacional da

Endeavor. Tendo em vista que a autoridade é imprescindível à formação do campo

(MORAES, 2005), o “lugar de fala” que a Endeavor passa a ocupar no panorama nacional.

No que concerne à cultura empreendedora, é um reflexo expressivo tanto de seu

posicionamento enquanto organização quanto da receptividade encontrada em nossa

sociedade para o empreendedorismo. As “vozes” dos empreendedores que a Endeavor invoca

para legitimar suas ações, como evidenciado no Day1, reforçam a própria delimitação do

campo do empreendedorismo, de onde as narrativas sobre sua relevância social ganham ainda

mais força.

Entender o mercado de ideias em que essas narrativas estão enquadradas, bem como as

estratégias de comunicação utilizadas se torna um exercício complexo na medida em que os

empreendedores exercem o papel de nos convencer acerca de uma vida pautada nos valores

do empreendedorismo. Estas narrativas estão para além da questão do lucro, mas na promoção

da organização Endeavor e na produção e difusão destas narrativas inspiracionais oferecidas

“gratuitamente”. O papel da organização é construir uma abordagem em forma de narrativa de

vida que valorize o empreendedorismo, reforçando o projeto da sociedade empreendedora

prevista por Drucker (2011).

Ao verificarmos as vidas narrativizadas no evento Day1 Endeavor, há uma tentativa de

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113

parar o tempo e congelar acontecimentos para que, retidos em produtos midiáticos, possam

ser consumidos coletivamente. A reconstrução das trajetórias de vida dos empreendedores que

ali se encontram (no palco do Day1) compõe um entendimento de mundo em que o

empreendedorismo ganha inegável centralidade. Memórias individuais e coletivas se

encontram para constituir novas memórias, pautadas na narrativização de vidas transformadas

(positivamente) pelas práticas empreendedoras e por projetos de vida inseridos no sucesso.

Neste sentido, passamos a pensar nesta fórmula de sucesso proposta pelo Day1 que

não necessariamente vai transformar a sua vida, mas retrata uma narrativa do presente de se

constituir enquanto autorrealizador de si (MORIN, 2007). Ao mesmo tempo, o indivíduo

passou a ser convocado a empreender a si mesmo, “sendo ele próprio seu capital, sendo para

si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo sua fonte de renda” (FOUCAULT, 2008, p.

311). O empreender a si mesmo coloca o sujeito na condição de ser produtor de suas

habilidades técnicas e morais.

No próximo capítulo, abordaremos a explicações da metodologia e os conceitos

teóricos que vão pautar as análises de vídeos do Day1 Endeavor.

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114

CAPITULO 4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE DAS

NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS DE TRANSFORMAÇÃO

O principal objetivo desse capítulo é apresentar a proposta metodológica utilizada na

pesquisa e a definição do corpus, a partir dos vídeos do evento Day1 Endeavor, extraídos do

site da organização Endeavor e/ou do site de compartilhamento de vídeos YouTube.

A presente pesquisa se desenvolveu em três etapas metodológicas, que se relacionam

entre si. A primeira etapa correspondeu a uma revisão bibliográfica com o objetivo de

recuperar conhecimentos científicos sobre a problemática, na qual foi realizada uma busca de

conteúdos que serviram de base para as reflexões teóricas estabelecidas durante a produção

desta tese. Neste sentido, os principais eixos temáticos da pesquisa estiveram centrados em:

narrativas autobiográficas de transformação, espaço biográfico, cultura empreendedora,

comunicação e consumo. A segunda etapa corresponde à seleção do corpus (que será mais

bem detalhada a seguir). E a terceira etapa diz respeito à análise das narrativas autobiográficas

das empreendedoras que participaram como palestrantes do Day1 Endeavor.

A metodologia utilizada para a análise das narrativas autobiográficas de transformação

contidas nos vídeos das palestras do Day1 tem uma abordagem qualitativa, ancorada na

análise de discurso de linha francesa (ADF) – que se constitui o paradigma epistemológico

deste estudo. Pautados nesta teoria, entendemos que as narrativas de vida estão inseridas no

contexto de um conjunto de discursos presentes na sociedade, relativos à cultura

empreendedora, que se interinfluenciam. A partir da (ADF) é possível entender estas relações

socioculturais, bem como de que forma a ideologia capitalista e de uma sociedade neoliberal

se alicerça no cerne deste novo espírito. No subcapítulo 4.2 explicaremos de forma mais

detalhada a ADF e seus fundamentos.

As narrativas autobiográficas do Day1 mobilizam representações social calcadas em

um perfil moral de agir – englobando diretamente o trabalho e a narrativização da vida, como

previamente abordado, inserido no novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI;

CHIAPELLO, 2009), esse perfil se pauta em projetos de vida e na construção do sujeito

inserido na cultura empreendedora. Focado na representação da figura do empreendedor, o

sujeito constrói este perfil e esta visão de mundo por meio de uma rede de relacionamentos,

sendo empreendedor de si. Leva em conta em tal processo a cultura empreendedora e toda

carga simbólica nela contida.

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115

Assim, os discursos nas narrativas autobiográficas de transformação de vida e trabalho

legitimam “o efeito de sentido construído no processo de interlocução” (BRANDÃO, 2004,

p.106), ou seja, da relação entre sujeitos e pelo cruzamento de diferentes enunciados entre o

eu e o outro. Isso faz com que as narrativas autobiográficas de transformação sejam

atravessadas por enunciados construídos na cultura de determinado tempo histórico. Como

consequência, os dizeres não são “apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de

sentido que são produzidos em condições determinadas e que estão de alguma forma

presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de

apreender” (ORLANDI, 2009, p.30).

Segundo Orlandi (2009), para se compreender o discurso é preciso conhecer suas

condições de produção, que entendem o sujeito, o contexto, a cultura, a memória e a narrativa.

Portanto, há de se considerar o contexto ideológico, sócio-histórico e a “memória discursiva”

(sendo um saber que possibilita a criação de sentido, que corresponde a algo que já foi dito

anteriormente, e que continua a ordenar nossos discursos). A autora também esclarece que

essa memória discursiva é pautada como “interdiscurso” (ibidem, p. 31-34). Por interdiscurso

entende-se o conjunto de discursos, saberes, narrativas que se delimitam reciprocamente

(MAINGUENEAU, 2008), podendo ser apresentado como um espaço de um ou mais campos

(BOURDIEU, 2009).

Utilizaremos também a análise de percurso de vida, proposta por Giele e Elder Jr.

(1998). Ela se volta à composição de uma visão dos diferentes momentos contidos na

narrativização da vida, como no caso das empreendedoras que participam do Day1.37

4.1 CRITÉRIOS DE SELEÇÃO DO CORPUS

O universo dos eventos Day1 Endeavor corresponde a cerca de 56 palestras

protagonizadas por empreendedores, entre o período de 16 de agosto de 2011 até junho de

2017, de acordo com site da organização.38 Para nossa pesquisa, selecionamos oito vídeos

com mulheres empreendedoras.

Para a escolha de corpus, concentramo-nos na análise de oito vídeos extraídos das

cinquenta e seis palestras do Day1 realizados pela Endeavor até o momento (jul. 2017). Os

37 As palestras das empreendedoras que participam no Day1 estão disponíveis no CD que acompanha esta tese. 38 Informações sobre o evento Day1. Disponível em: <https://endeavor.org.br/lancamento-do-programa-Day1

https://endeavor.org.br/lancamento-do-programa-Day1/>. Acesso em: 11 de junho de 2016.

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116

mesmos são divulgados no site da organização e em várias mídias sociais, tais como o site de

compartilhamento de vídeos YouTube. A justificativa desta escolha se fundamenta porque

somente nestes oito vídeos encontramos a representação da narrativização do trabalho e vida

protagonizados por empreendedoras escolhidas para estarem no palco do Day1. Vale ressaltar

nosso interesse de estudar a narrativização da vida de empreendedoras na contemporaneidade

por meio de narrativas autobiográficas de transformação. Além disso, há o interesse de

compreender como são articuladas estas narrativas de vida e as representações sociais

materializadas em um perfil moral também exercido por mulheres que se tornaram

empreendedoras.

Este processo de definição e seleção do corpus apresentou um indício relevante para a

nossa análise uma vez que não conseguirmos respostas aos vários e-mails e telefonemas

encaminhados para a Endeavor, para entender o porquê de em um universo de 56 palestras

realizadas encontrarmos a presença de somente oito mulheres que foram escolhidas para estar

no palco do Day1. De qualquer forma, consideramos que o total de oito vídeos pode trazer os

elementos de análise que necessitamos para embasar nosso estudo.

Assim, é importante pensar que neste universo de eventos do Day1 há uma

predominância e protagonismo de homens empreendedores, o que materializa uma exposição

maior do fazer empreendedor centrado na figura masculina. Mesmo não obtendo uma resposta

institucional da Endeavor em relação à exposição entre homens e mulheres empreendedores

podemos mencionar que é um espelhamento do mundo de trabalho que se apresenta em nossa

sociedade.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, procuramos fazer o levantamento de todos os

vídeos das palestras do Day1 que foram publicados no site da Endeavor e/ou divulgados no

YouTube. Assim, escolhemos somente os vídeos que foram protagonizados por mulheres que

se tornaram empreendedoras “de sucesso”.

Para a produção da análise, mapeamos todos os vídeos e verificamos de que forma as

narrativas autobiográficas de transformação das empreendedoras estão neles dispostas. Assim

foi possível averiguar como essas narrativas de vida são apresentadas e quais são as

diferenças e semelhanças entre os discursos materializados em cada vídeo, sendo uma forma

de desvendar estas narrativas de vida.

Em função do mapeamento e de como estas narrativas de vida são utilizadas,

compreendemos como os projetos pessoais e de transformação de vida são demarcados em

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117

um contexto de ações inseridas em uma cultura empreendedora (CASAQUI, 2016).

Intentamos verificar como e de que forma os elementos da construção destas narrativas foram

utilizados para dar exposição aos feitos espetacularizados (SIBILIA, 2008) nesta construção

de empreender a si em projetos de vida pessoal.

As informações principais sobre os oito vídeos do Day1 que compõem o corpus de

análise se encontram na Tabela 6.

Tabela 6: Corpus da análise

Tema da palestra Palestrante DataAcessos ao vídeo

(em 14/05/2017)Duração

Day1 | A história de

sucesso - Sônia Hess

[Dudalina]

Sonia Hess- CEO da

Dudalina11/04/2012 97.897 visualizações 20 minutos

Day1 | Tudo o que a gente

é, é um pouco de todo

mundo [Sofia Esteves]

Sofia Esteves - CEO

da Cia de Talentos 10/05/2012 86177 visualizações 29 minutos

Day1 | A fórmula da

autoestima [Zica e Leila

Velez - Beleza Natural]

Zica Velez e Leila 11/11/2012

Página excluída -

última contagem mais

de 30.000

27 minutos

Day1 | Do caixa da loja à

bolsa de valores [Luiza

Trajano - Magazine Luiza]

Luiza Helena Trajano

ex CEO 11/12/2012 98.163 visualizações 22minutos

Day1 | Louca é Elogio -

Linda Rotenberg

Linda Rotenberg -

CEO da Endeavor

Brasil

08/04/2014 13.346 visualizações 21 minutos

Day1 | Tire Seus Sonhos

da Gaveta! [Janete Vaz e

Sandra Costa –

Fundadoras dos

Laboratórios Sabin]

Janete Vaz e Sandra

Costa - fundadoras08/10/2014 18.923 visualizações 24 minutos

Day 1 | Como "não aceitar

um não como resposta" a

levou ao Bill Gates -

Cristina Boner, Global

Web

Cristina Boner, Global

Web - Fundadora e

representante do

conselho

06/08/2016 39.412 visualizações 26 minutos

Day1 | Paola Carosella:

"Os sonhos que eu tenho

não têm limite"

Paola Carosella -

cozinheira,

empresária, executiva

e chefe de cozinha

05/06/2017 208.283 visualizações 33 minutos

Fonte: Elaboração própria.

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118

Por último, destacamos que levaremos em consideração os discursos, presentes nos

vídeos para refletir sobre a forma como essas empreendedoras constroem suas narrativas de

vida, o que desperta nosso interesse pela incidência de um perfil moral constituído em função

das interações sociais que mobilizam elementos de comunicação e consumo dessas

construções de mundo.

Ressaltamos, também, que algumas imagens e cenas dos vídeos serão apresentadas

com a intenção de complementar as narrativas que foram proferidas pelas empreendedoras.

As mesmas servem para materializar e reforçar os pontos mais relevantes destas narrativas.

Não temos a intenção de fazer uma análise específica e profunda em relação às teorias

referentes às imagens, cor e movimentos da câmara; mas, ao contrário, os tomamos como

ponto complementar àquilo que é apresentado na palestra.

Ao apresentar a narrativa autobiográfica de transformação de vida e trabalho presentes

no evento Day1 Endeavor, encontramos a marca da trajetória de vida, de forma cronológica,

que legitima a construção de identidade e o perfil moral das empreendedoras palestrantes e

protagonistas do evento. Estamos falando de empreendedoras com conhecimento e vivência

naquilo que está sendo narrado, a se materializar pelos resultados alcançados pelas

protagonistas.

4.2 REFLEXÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA

A ADF surgiu na França, nos anos 1960. Está pautada em áreas de estudo como a

sociologia, a linguística, a psicologia e a antropologia. Em síntese, busca compreender a

interação e interpretação dos discursos. Por um lado, a ADF se preocupa com a construção

dos sentidos dos discursos, que recebem influência histórica; por outro lado, pressupondo uma

relação direta da linguagem com o mundo. Ela evoluiu graças às relevantes contribuições do

teórico Michel Pêcheux, que estudou na língua a materialidade que produz representações,

visões e interpretações de mundo. Em seus estudos, ele considerou a concepção de história

como uma materialidade que acaba intervindo na língua a partir da ideologia. Em aditamento,

Baccega assevera que:

Consideramos como fundamentais os estudos do campo da comunicação e as

conquistas da Análise do Discurso, sobretudo as da Escola Francesa

(Pêcheux, Orlandi entre outros), que nos possibilitam desvelar a materialidade da articulação das ciências humanas e sociais, o conhecimento

do percurso das apropriações ocorridas, uma vez que permitem revelar o

discurso como lugar em que linguagem e ideologia (pontos de vista, ideias,

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119

conteúdos, temáticas etc.) se manifestam de modo articulado (BACCEGA,

2007, p. 83).

O sujeito, na ADF, é entendido como um produtor e receptor de discursos, sendo que

língua e sociedade se entremeiam nesse processo. A ADF permite, deste modo, uma melhor

interpretação das articulações discursivas, que são construídas pela e na ideologia. Em suma,

pauta-se no tripé materialidade linguística, discurso e ideologia. Como explicita Foucault

(1979, p. 247):

(...) um discurso é um conjunto de enunciadores que tem seus princípios de

regularidade em uma mesma formação discursiva. O discurso é o espaço em que saber e poder se articulam, pois, quem fala, fala de algum lugar, a partir

de um direito reconhecido institucionalmente.

O sujeito, ao narrar a própria trajetória de vida, utiliza-se de vários discursos presentes

na sociedade e em seu cotidiano. O discurso permite uma multiplicidade de leituras e

podemos entender que ele nunca é neutro, é sempre ideológico. Logo, não há apenas um

sentido em jogo, tendo em vista a polissemia engendrada. Ou seja, pressupõe-se sempre uma

pluralidade de sentidos marcados em cada enunciado, que representam posições assumidas

por um ou vários sujeitos discursivos. O discurso é “efeito de sentido construído no processo

de interlocução” (BRANDÃO, 2004, p. 106).

No discurso, os sujeitos assumem determinadas posições, a partir das quais expressam

suas crenças, seus valores e suas vivências, em interação com os contextos sociais por onde

circula. Orlandi (2004, p. 39) esclarece que “é no discurso que o homem produz a realidade

com a qual ele está em relação”. Assim, o discurso representa um sistema simbólico da

linguagem, que nos permite interagir com o outro, pensar e conferir sentidos à nossa

existência social. E nessa articulação junto ao contexto social, valemo-nos da “memória

discursiva” (ORLANDI, 2013). Ela se refere ao modo como recorremos a outros discursos já

ditos no passado, que fazem parte da memória (individual e coletiva).

O discurso do sujeito é, assim, transpassado por diversos outros discursos e por sua

historicidade, refletindo e refratando uma realidade social dada (BAKHTIN, 1997). Para Bosi

(2003, p. 124), “cada indivíduo pensa que é um caso à parte quando opina”, isto é, crê estar

criando um discurso próprio; mas, na realidade, está reelaborando discursos passados. Neste

sentido, Maingueneau (1987, p. 93) afirma que o “discurso: é linguagem enquanto

funcionamento. O discurso apresenta uma heterogeneidade constitutiva”, permeada por ditos

e não ditos. Alicerçadas em uma “escuta plural”, como forma de apreensão dos contextos

sociais, as múltiplas vozes contidas nos discursos nem sempre estão em harmonia; pode haver

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120

(e há) embates entre elas.

Ideologia, relações de poder e tensionamentos integram as dinâmicas da linguagem

(oral e escrita) em seu cerne. Elas se manifestam por diferentes perspectivas de interação, em

uma relação dialética entre o eu e o outro, de onde nasce a dicotomia sujeito-objeto. Esta, por

sua vez, é fundamental à produção e leitura dos sentidos. Para Orlandi (2004, p. 39), “é no

discurso que o homem produz a realidade com a qual ele está em relação”.

Somos seres discursivos constituídos pela linguagem e práticas sociais de construção

de sentidos, utilizando da memória discursiva (o que já foi dito e relembrado) e dos

interdiscursos (os discursos de outros), para que possamos interpretar e interagir no mundo

(ORLANDI, 2013). A interpretação dos efeitos de sentidos sob a superfície discursiva permite

verificar as “vozes” que estão presentes nos discursos sociais. Dessa maneira, a ADF

possibilita estudar a questão da linguagem como produção social, que desenvolve significados

na interação com o mundo.

Nas palavras de Maingueneau (2001, p. 17), a ADF:

(...) visa a apreender a estrutura dos enunciados através da atividade social que os carrega. Ela relaciona as palavras a lugares. Através da multiplicidade

das situações de comunicação, o discurso eclode numa multiplicidade de

gêneros, cujas condições de possibilidades, rituais e efeitos se devem

analisar.

A linguagem, portanto, tem um papel ativo no processo do conhecimento e do

pensamento humano (SCHAFF, 1971). Schaff (idem) sustenta que a linguagem é mediadora

entre o individual e o social. Ela é “socialmente transmitida ao indivíduo humano, forma a

base necessária do seu pensamento, a base que o liga aos outros membros da mesma

comunidade linguística e na qual se funda a sua criação intelectual individual” (ibidem, p.

251-252).

Nesse sentido, a linguagem é produto das interações sociais e da prática discursiva

humana que influência a maneira de perceber a realidade da cultura. Isso explicaria a

dinâmica das línguas, pois, com a mudança de costumes e hábitos, novas palavras são criadas

ou ganham novas acepções, enquanto outras ficam esquecidas e praticamente enterradas na

memória coletiva. Linguagem e cultura estão fortemente interligadas, ou seja, a linguagem é

indissociável das interações sociais.

É neste sentido que a retórica discursiva para a construção de imaginário de mundo

está inserida. Para Baccega (1998, p. 16), “o homem só consegue perceber as finalidades de

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sua ação quando as concebe e, para concebê-las, é fundamental a linguagem”. Sem a

linguagem, o indivíduo não interage com a cultura e não consegue legitimação social.

Assim, linguagem é palavra em movimento. Ela possibilita que o fazer do sujeito seja

materializado no repertório de vida e nos discursos praticados, neste estudo, por narrativas de

vida que são transformadas em sua tentativa de se moldar à ideologia existente. Para Bakhtin

(2009, p. 32), a palavra tece a linguagem:

(...) literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de

colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a

partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as

relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo

daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda

não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas

acumulações quantitativas que ainda não tiveram tempo de engendrar uma

forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases

transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.

Os fios ideológicos constituem os discursos e relações sociais, sendo a palavra a

principal indicadora das transformações de determinado contexto (BAKHTIN, 2009). Por

meio da linguagem, podemos compreender a relação dialógica existente entre os enunciados.

A linguagem faz parte de um processo ideológico, conforme assevera Bakhtin (1988), e

materializa, também, o discurso de outros (o interdiscurso).

De acordo com Pêcheux (1975, p. 149), o interdiscurso diz respeito à “objetividade

material contraditória, objetividade material essa que reside no fato de que algo fala sempre

antes, em outro lugar e independentemente, isto é, sob a dominação do complexo das

formações ideológicas”. Na relação de sobreposição de discursos, cada texto/enunciado

representa uma interação constante, afetando e sensibilizando o outro, por meio da linguagem.

Assim, a linguagem faz circular as ideologias ininterruptamente.

Para Halliday (1978, p. 94), “ideologia são os significados gerados em relações de

poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder”. Ou seja, o texto é

considerado uma linguagem (oral ou escrita) concreta. Entretanto, “o mundo só é

representado pelas estruturas sociais, relações de poder e pela natureza da prática social”

(ibidem, p. 100). Os textos suportam muitas interpretações e os significados são heterogêneos.

Podemos dizer que a ideologia deve ser tratada em sua materialidade de significação, que

coaduna nas estruturas sociais. Assim, ideologia também “são relações sociais, o mundo

físico e as identidades” (HALLIDAY, 1978, p. 117) que se espraiam por campos discursivos.

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122

Maingueneau define campo discursivo como “um conjunto de formações discursivas

que se encontram em concorrência, se delimitam reciprocamente [...]” (1984, p. 28). Tal

concorrência deve ser considerada de forma ampla: “ela inclui tanto o afrontamento direto

quanto a aliança, a neutralidade aparente [...] entre discursos que possuam a mesma função

social e divergem sobre o modo como se deve ocupá-la” (idem, p. 28). O campo discursivo

objeto deste estudo se inscreve em narrativas de transformação de vida centradas na cultura

empreendedora.

Em nosso estudo, temos a articulação de discursos de diferentes campos. Encontramos

discursos do trabalho empresarial pautado por atividades empreendedoras, discursos da vida

privada, discursos que atravessam a lógica do consumo, discursos com uma vertente

neoliberal, e assim por diante. Tendo em vista que, por conta de ideologia, nenhum discurso é

neutro, há interesses socioeconômicos neles englobados. Como exemplo, podemos citar

aqueles que corroboram o novo espírito do capitalismo, reforçando valores neoliberais e seu

modus operandi (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Estes serão analisados com base nos

princípios teóricos-metodológicos da ADF na medida em que forem surgindo nas narrativas

autobiográficas de transformação da vida.

4.3 MÉTODO DE ANÁLISE DAS NARRATIVAS NAS TRAJETÓRIAS DE VIDA

Utilizamos como base de análise as trajetórias de vida, trabalhada por Giele e Elder Jr.

(1998), considerando a interação entre a trajetória de um indivíduo e a estrutura social que a

permeia. Os mentores deste método de análise entendem a relação existente entre contexto

individual e social no percurso de vida. Casaqui (2013), em seu artigo “Questões

metodológicas para o estudo das vidas narrativizadas: aplicação às narrativas de

empreendedores sociais”, relata como empregou esse método em sua pesquisa de pós-

doutoramento, que estudou o empreendedorismo social na comparação entre os cenários

brasileiro e português. Após a observação realizada por vários estudos de mestrado e

doutorado (DANTAS, 2012; LEAL, 2015; MITRAUD, 2012; SINATO, 2016; SALGADO,

2016) inseridos nos estudos da comunicação social e suas metodologias de análise do corpus,

consideramos que esse método é adequado à nossa pesquisa por se tratar de narrativas

autobiográficas de transformação de trabalho e vida, que abordam as diferentes etapas da

trajetória de vida e sua relação com o contexto social.

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123

Para Giele e Elder Jr. (1998), a trajetória de vida está fundada em quatro pilares, que

correspondem à maneira como as articulações individuais-sociais se processam.

1. Location in time and place (localização no tempo e no espaço): remete ao modo

como a experiência individual é representada por um momento histórico, de uma

sociedade e de uma cultura. Nesse estudo, a empreendedora brasileira é estudada no

contexto contemporâneo e nas práticas e interação da cultura empreendedora em que

encontramos normas decorrentes do tempo presente.

2. Linked lives (vidas interligadas): as relações de vida apresentadas nas narrativas

autobiográficas de transformação das empreendedoras se articulam ao plano

discursivo, na forma como o “eu” se articula com o outro (CASAQUI, 2013) por

diferenças ou semelhanças em que sentimentos e relações de afetos estão articulados a

e interesses de negócios/mercado que estão envolvidos, ou seja, as empreendedoras

estão inseridas num contexto relacional entre o eu (individual) e o outro na relação

cotidiana.

3. Human agency (orientação pessoal das ações): busca-se compreender as motivações

de caráter pessoal, o percurso de vida construído que leva o sujeito a ter determinados

objetivos e necessidades, a partir dos quais toma decisões e segue sua trajetória. A

figura da empreendedora, ao apresentar suas narrativas de vida e o valor das práticas

empreendedoras que acredita; ao mesmo tempo, apresenta os sucessos e os fracassos

dessa trajetória de vida.

4. Timing of lives (momentos da vida): apresenta um olhar na maneira como a vida

narrativizada se concretiza a partir de momentos de transformação, de marcos e

adaptações ao contexto social. Temos a presença das diversas fases da vida que

acionam acontecimentos retidos na memória. Assim, as narrativas autobiográficas de

transformação, construídas a partir das ações empreendedoras, “estabelece uma

reelaboração de marcos temporais e acontecimentos pessoais que vão dar a ideia do

percurso, das verdadeiras narrativas que desembocam em uma experiência marcada no

presente e projetada para o futuro” (CASAQUI, 2013, p. 877).

Nossa análise, portanto, se pauta em dois eixos: o primeiro eixo corresponde ao texto,

seus significados e produção de sentido na articulação da linguagem entre sujeitos inseridos

na ADF. O segundo eixo se volta à análise da narrativa e das trajetórias de vida das

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empreendedoras em função dos quatro elementos do método de Giele e Elder Jr. (1998)

mencionados.

Consideramos que para a análise das narrativas de vida presentes nos vídeos que

compõem nosso corpus é importante estabelecer a seguinte sequência: a) realizar um breve

perfil da protagonista do vídeo no sentido de situarmos quem é a empreendedora em questão;

b) síntese dos conteúdos e temáticas encontrados em cada vídeo; e c) análise das narrativas

fundamentada nos aspectos mais relevantes da metodologia escolhida. Cabe salientar que não

se pretende analisar todas as falas contidas nos vídeos, mas somente aquelas que nos

parecerem mais representativas e alinhadas aos eixos de análise de Giele e Elder Jr. (1998).

A partir desses fatores pretendemos desenvolver uma análise comparativa entre as

narrativas apresentadas nos vídeos, com o objetivo de verificar de que maneira o perfil moral

de cada empreendedora é representado pela organização Endeavor. Quais são as semelhanças

e diferenças existentes nestas falas? De que maneira as empreendedoras se apresentam a partir

de suas trajetórias de vida? A partir destes agentes sociais, como se constitui a voz da

agenciadora neste processo em torno da cultura empreendedora? Em função das narrativas das

empreendedoras a serem analisadas, podemos entender a marca de algumas representações de

vida que são construídas na linguagem discursiva da própria Endeavor, agenciadora do evento

Day1. No próximo capítulo vamos realizar a análise dos vídeos selecionados para se chegar as

considerações sobre este estudo.

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5. ANÁLISES

É importante mencionar que todos os vídeos do Day1 Endeavor são produzidos no

idioma português, com exceção da palestra de Linda Rottenberg, fundadora da Endeavor

Brasil, que foi proferida em inglês. Contudo, a Endeavor, por ser uma organização

transnacional, tem atuação em vários países do mundo e dissemina seus valores centrados nas

práticas da cultura empreendedora em cada um deles, com conteúdos específicos. A

organização, por exemplo, produz e divulga este mesmo tipo de evento em outras línguas e

países, o que demonstra uma atuação globalizada com o objetivo de promover seus valores,

princípios e forma de atuação.

Em linha com a mobilização dos pressupostos teóricos apresentados, analisaremos as

narrativas de vida das empreendedoras do evento Day1 Endeavor em função do nível

discursivo presente em suas falas, bem como as articulações e interações sociais que são

legitimadas em seu percurso de vida.

Ressaltamos que todas as citações das empreendedoras serão apresentadas

transcrevendo a fala seguindo a construção original, marcada pela oralidade, sem corrigir

imprecisões do uso da norma culta.

5.1 ANÁLISE 1: SÔNIA HESS

Sônia Regina Hess de Souza é catarinense, estudou administração e especializou-se

em confecção no ramo de camisas. Sua vida profissional começou muito cedo nos negócios

da família e continuou na empresa Dudalina, que é especializada em moda masculina e

feminina. Ela foi fundada pelos pais de Sônia, Sr. Duda (Rodolfo) e Dona Adelina. Sônia

Hess trabalhou durante 35 anos na empresa, sendo 12 anos como presidente do grupo (de

2003 a 2015).

Em 2013, foi eleita pela revista americana Forbes a sexta mulher de negócios mais

poderosa do Brasil. Assumiu o comando da empresa em 2003 e foi responsável por um

crescimento anual de 30% no período de 2009 até 2013. Ainda no ano de 2013, a empresa

Dudalina foi vendida aos fundos de investimento americanos Advent e Warburg Pincus, em

transação avaliada na época entre R$ 600 milhões e R$ 1 bilhão. Sônia permaneceu na

presidência da Dudalina até maio de 2015. Em 2016, deixou o conselho administrativo da

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empresa.

Atualmente, Sônia Hess se dedica exclusivamente ao terceiro setor; faz parte do

conselho curador da Fundação Dom Cabral; é mentora e embaixadora do conselho da

Endeavor, do conselho da Verdescola, do conselho do Instituto Ayrton Senna, sendo membro

do grupo Mulheres do Brasil; é mentora em um programa de mulheres da Ernst & Young,

chamado Winning Women Brasil, da EY; jurada do prêmio Cartier Women´s Initiative;

presidente do Lide Mulher; conselheira do grupo Sequoia e consultora da Warburg Pincus do

Brasil.

5.1.1 Síntese do vídeo

A palestra de Sônia Hess foi realizada no auditório da instituição de ensino Insper, em

onze de abril de 2012, em São Paulo. A empresária e empreendedora, por meio de um

processo de narrativização da vida, apresenta como assumiu a presidência da Dudalina, que

surgiu dos negócios e esforços dos seus pais, do amor desta união e de uma família. A

empreendedora narra como foi o aprendizado e os conhecimentos adquiridos na área de

vendas, marketing e gestão dos negócios até chegar à presidência do grupo Dudalina,

transformando-a na maior exportadora de camisas do país.

Nascida da cidade de Luís Alves, no interior de Santa Catarina, revela que o espírito

empreendedor veio de sua mãe, que foi a grande mentora dos negócios da família, com

origem em um pequeno negócio de secos e molhados e em um curso de corte e costura. Relata

que os pais tinham duas lojas em Camboriú, uma do pai e outra da mãe, sendo que a loja da

mãe era mais promissora e com melhores resultados.

Sônia diz ser filha de um pai poeta e de uma mãe empreendedora, precisando superar

muitos desafios para alcançar o sucesso no trabalho e na vida. Por meio de uma linguagem

informal e motivacional, revela como transformou um sonho em um grande negócio, tendo

como premissa básica o amor pela camisa e pelas pessoas.

Esta trajetória de vida apresenta os momentos vividos na infância, com sua ida, aos 13

anos, para Blumenau, onde passou a estudar em uma escola de elite. Lá era vista como uma

colona de Luís Alves, período em que se considerava feia e desajeitada e que enfrentou

discriminação social por ser considerada uma “caipira”.

Após esse período, foi aprender a técnica de ensinar a costurar para ajudar os negócios

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da família. Ela também menciona suas diferentes experiências de trabalho e de vida, e afirma

que passou por vários desafios até chegar à posição de presidência da empresa Dudalina. Ou

seja, mescla passagens em que evidencia o trabalhado tanto na empresa familiar quanto em

outras empresas do mercado, no sentido de adquirir conhecimentos e experiências (pessoais e

profissionais).

Ao mesmo tempo, a empreendedora menciona a importância de ser mulher e os

percalços que teve de enfrentar até chegar à posição de presidente, em uma empresa dominada

por homens.

5.1.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

Apontamos algumas datas que comprovam a importância da relação do tempo e

espaço na narrativização de vida de Sônia para a contextualizarmos. No vídeo, encontramos a

marca da contemporaneidade não só pela composição do cenário apresentado pelo Day1

Endeavor, em formato de palestra que conta a vida de determinadas pessoas, como também a

data do evento, que ocorreu em 11 de abril de 2012. Nele se inscreve a espetacularização e

exposição da narrativa do eu (SIBILIA, 2008), que têm sido uma prática recorrente no sistema

neoliberal contemporâneo.

Em 1974, Sônia foi escolhida pelo irmão mais velho para viajar à Espanha para

aprender a tecnologia de costura. Em 1975, retorna para a cidade de Luís Alves, reabre a

empresa dos pais e treina todas as costureiras da empresa da família.

Em 1977, aos 21 anos, a empresa da Espanha em que a Sônia foi aprender técnicas de

costura convida a mesma para ensinar e ser instrutora-chefe das costureiras de uma empresa

localizada na cidade de Montes Claros (MG). Tinha como objetivo ajudar na estrutura e

negócios desta fábrica. No entanto, encontrou dificuldade para se adaptar com a cidade e às

pessoas. Em seguida a este período, vai trabalhar em Belo Horizonte, convidada por outra

empresa na qual já havia atuado na área comercial, e permanece por um período de dois anos.

Em final de 1983, Sônia decide que queria morar em São Paulo. Seus irmãos ficam

sabendo e a convidam para retornar aos negócios da família e trabalhar na estruturação das

vendas da empresa Dudalina na capital paulista. Nestas várias passagens por diferentes

empresas, Sônia aprimora seus conhecimentos em marketing, na área comercial,

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desenvolvimento de produto e matéria-prima no ramo de confecção.

No final de 2002, o irmão mais velho, Armando, é convidado para a posição de

secretário do governo em Santa Catarina e indica a irmã, Sônia, para o conselho da Dudalina.

Em 2003, ela assume a presidência da empresa e apresenta várias mudanças na gestão e nos

negócios da família.

Estas citações de datas são importantes para sinalizar as diferentes mudanças e feitos

que ocorreram na vida de Sônia até alcançar a posição de presidente do grupo. Como exemplo

dos enunciados que ilustram estes momentos de vida da protagonista, encontramos: 39 “E

nisso estava com 21 anos. Era 77, queria sair de casa. Imagina vocês o que é dezesseis irmãos

morando numa mesma casa, com pai e mãe, o que era isso todos os dias, e o negócio era

nosso e todo mundo trabalhava junto, aquele rolo”. Temos uma formação discursiva que

dialoga e atravessa o mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2001), em função do dito explicitado

“o negócio era nosso”, que sinaliza uma representação simbólica do trabalho e das práticas do

campo do empreendedorismo.

Ao mesmo tempo, encontramos uma voz implícita que marca o exercício laboral com

origem no que foi herdado da família e não em uma escolha pessoal. Também temos a marca

do campo da educação familiar ao se referir ao contexto de diferentes vozes, dos irmãos e da

família numerosa. De forma explicitada, a empreendedora apresenta na frase “aquele rolo” o

que pode sinalizar uma dificuldade de convívio das diversas vozes representadas pelos pais e

irmãos, em que os indivíduos precisam negociar interesses tanto do lado laboral (com a

empresa familiar) quanto pessoal. Assim, temos a importância e representação do trabalho

como algo central na vida de Sônia em suas práticas e decisões do agir.

Dando continuidade à análise, a palestrante afirma que:

Chegou em final de 83, eu decidi que eu queria vir morar em São Paulo, com

a cara e a coragem, sem emprego. Eu vou pedir emprego, eu quero morar em São Paulo, os meus irmãos souberam disso e falaram “Não, então vem pra

São Paulo e monta a estrutura comercial da Dudalina em São Paulo”.

Neste enunciado, temos um lugar de fala que sinaliza a mudança a ser realizada pela

empreendedora. Trata-se de algo que está novamente relacionado à centralidade do trabalho

em sua vida, ao ponto de ir tentar novas experiências em outro lugar (como São Paulo). Aqui

temos um não-dito que pode representar a cidade de São Paulo como um lugar em que as

39 Todas as citações das empreendedoras nas análises correspondem a uma transcrição direta da fala seguindo

sua construção original, marcada pela oralidade, sem corrigir imprecisões do uso da norma culta. Ou seja, são

apresentadas da forma como foram mencionadas pelas empreendedoras.

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oportunidades de negócio e emprego se tornam realidade. Ao mesmo tempo, acreditamos na

presença de um subentendido segundo o qual trabalhar para a empresa da família é ter que

conviver com os irmãos e com múltiplos interesses individuais nos negócios, nem sempre em

sintonia.

Assim, encontramos nesse exercício laboral o negócio da família inserido na cultura

empreendedora e suas práticas, a partir das quais se objetiva o lucro e a relação com o capital.

Concomitantemente, ocorre a negociação de interesses e vozes que são ocultados e que

representam os irmãos em suas decisões nos negócios da família.

Existe um discurso que se sobrepõe a partir dos termos “empreendedora” e

“empresária”, pois, no caso da protagonista, a empresa já existia, tendo sido criada pelos pais.

Inserida neste cenário, Sônia retorna à empresa e reestrutura, junto ao conselho da Dudalina,

os negócios.

Em seguida, menciona: “Então eu assumo a presidência da empresa, com mais dois

irmãos na diretoria, e, nessa época (01/01/2003), começa. Eu tinha que organizar a empresa,

estava bem, mas tinha alguns problemas”. Temos aí a presença de outras vozes que cruzam

pela prática laboral deste agente social, o empreendedor. Ocorre um não-dito das falas

silenciadas dos funcionários, irmãos e consumidores da Dudalina em sua forma de

representação social. Há uma memória discursiva que circula pelo trabalho, relações de afetos

entre irmãos e a relação comercial e de consumo de bens. Ter conquistado o papel social de

estar na posição de presidente confere uma carga simbólica do indivíduo que detém

habilidade e conhecimento específico para gerir um negócio.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

Nos enunciados abaixo fica explícita a importância da família e dos irmãos no

processo relacional entre pais, filhos e Sônia:

É o legado que eu tenho, porque é o legado que meus pais me passaram, que

é de cuidar e continuar essa empresa como eles pensaram, como eles, como a

minha mãe me pedia muito: “Filha, você tem que cuidar dos teus irmãos”.

(...) Então eu acho que essa alma do empreendedor, essa alma veio da minha mãe, eu tive esse modelo dela. Ela a vida inteira foi uma grande

empreendedora, ela teve os seus 16 filhos, educou, todos são muito

trabalhadores. Mas ela foi uma empreendedora e o meu pai era um poeta.

Encontramos a representação de uma família grande, com dezesseis filhos, que são

herdeiros da empresa Dudalina. Como forma de contextualizar melhor essa questão, logo no

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início da palestra a protagonista menciona sua infância e o convívio com os pais e irmãos. A

mãe, considerada empreendedora, marca a posse de um negócio próprio; já o pai, “o poeta”,

apesar de também administrar a empresa, era mais sonhador. Assim, há nesse enunciado a

expressão da importância dos laços familiares na formação e construção identitária de Sônia.

Além disso, cabe relatar que a linguagem utilizada em “alma do empreendedor”

assume uma narrativa de cunho divino, de uma voz que pertence ao plano espiritual, como se

o empreendedor fosse alguém predestinado.

Neste contexto, as relações interpessoais entre Sônia, pai, mãe e irmãos é atravessada

pelo mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011; FIGARO, 2008). Há vozes que nos relevam a

importância dos afetos e sentimentos entre os membros da família, entrecruzadas pela prática

laboral.

A palavra “legado”40, por sua vez, remete a algo que foi adquirido em função da

herança da família, sendo passado de geração em geração. Ao mesmo tempo, a mãe da

protagonista tem um papel social representado pela figura da empreendedora, aquela que tem

um negócio próprio, estando inserida na forma de pensar e agir do sistema normativo

neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016), em que os indivíduos são convocados a serem

empreendedores de si (FOUCAULT, 2008) e autores de suas vidas – como é o caso de Sônia.

A construção identitária da protagonista é alicerçada em função de tal legado e

predestinação, desde a infância, no sentido de agir pela união da família, dando continuidade

aos negócios herdados.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

No processo de valorização das práticas e ações da vida, encontramos enunciados que

marcam a importância da aprendizagem como forma de adquirir novas habilidades e melhorar

o conhecimento na aquisição de uma alta performance em todas as ações de vida

(EHRENBERG, 2010).

Para explicar melhor e contextualizar essa questão, salientamos que Sônia relata que

foi enviada para a Espanha para adquirir “novos conhecimentos”, no sentido de ajudar a

40 O legado (em latim: legatus) era um general do exército romano, equivalente ao moderno oficial general. De

categoria senatorial, o legado sobrepunha-se a todos os tribunos militares e estava sujeito ao duque (dux). Para habilitar-se a comandar um exército independentemente do duque ou do governador da província, o legado

precisava ser de categoria pretoriana ou mais alta. Disponível em: <http://www.centoequatro.org/blog/voce-sabe-

o-que-e-o-ted>. Acesso em: set. 2017.

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empresa Dudalina em seu processo de fabricação de camisas. Em seu dito “Eu ia ter que

aprender a costurar, tinha que aprender a costurar, a metodologia na realidade, e ensinar a

costurar”, fica claro um não-dito que equipara a empreendedora à posição de uma professora.

Aciona-se o campo da educação, em que se depreende vozes de sujeitos que transmitem um

conhecimento específico. Em vários momentos no vídeo, Sônia menciona que sabia ensinar a

costurar, apesar de não saber costurar.

Isto marca claramente o seu lugar de fala e a divisão de classes: de um lado o dono dos

meios de produção e do outro o trabalhador. Em outras palavras, a empreendedora representa

a posição de empresária, aquela que comanda, muito distinto do funcionário, que executa.

Ocorre a ocultação das vozes de diferentes pessoas que vivem do trabalho e que atuam no

segmento de confecção na parte operacional e prática. É uma forma de realçar as realizações

da protagonista, sendo exposta a espetacularização da narrativa do eu (SIBILIA, 2008).

Encobre-se outras vozes da sociedade para se destacar os feitos de Sônia, de se colocar no

mesmo patamar de conhecimento e representação social de um professor.

Dando continuidade à sua trajetória de vida, por ocasião em que assume a posição de

presidente na empresa, temos o enunciado: “Como eu recebo um apoio total do conselho, a

empresa começa a se desenvolver e eu começo então a sentir o que é o correr o risco, porque a

responsabilidade maior é sua. Não é mais. Não dá pra olhar pra trás quando a gente assume o

empreendedor”. Há um simbolismo e formação discursiva relacionados à cultura

empreendedora e sua forma de agir. Associa-se, assim, a uma representação do agente social

do empreendedor, que tem como uma de suas habilidades correr risco, viver em constante

transformação de si.

Tal comportamento está inserido no fenômeno cultural da contemporaneidade, em que

presenciamos uma valorização do indivíduo que se torna empreendedor de si. Ao mesmo

tempo, esse sujeito faz parte de uma sociedade de desempenho, em que é necessário mostrar

seus feitos valorizados de forma positiva, no sentido de que todas as classes estejam engajadas

a agir em função da responsabilização de si e dos seus atos de vida.

Quando a protagonista menciona ter o apoio do conselho, há um não-dito de vozes

silenciadas com representação da alteridade, das relações existentes entre funcionários,

diretores e consumidores, que atravessam os feitos e práticas do cargo de presidente. Ou seja,

Sônia assume um lugar de fala que responde pelos atos tanto do campo econômico como

jurídico da Dudalina, e tem que gerenciar, concomitantemente, a sociedade de origem

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familiar, com dezesseis famílias que dependem de seu capital. Assim, encontramos uma

exposição midiatizada em forma de espetacularização da narrativa do eu, como forma de

atestar os feitos e experiência da própria vida de quem fala nesta posição.

Em outro momento, Sônia expõe que: “Sempre me perguntam se ser mulher atrapalha.

Eu acho que não, eu acho que ser não depende do gênero, depende da tua alma, depende do

que você é, depende de como você opta, você tem que ser empreendedor”. Temos a formação

discursiva relacionada tanto ao campo religioso como ao de gênero. A fala explicitada

“depende da tua alma” apresenta um plano espiritual e divino que se vincula à mudança, pois

o discurso centrado na religiosidade atesta uma aura que propõe a mudança como algo

possível de ser realizado, aqui associado, novamente, ao agente social representado pelo

empreendedor, que foi inserido na fala da protagonista como forma de atestar esse fazer. A

questão de gênero fica ofuscada na fala, embora exista um preconceito e senso comum de não

valorização dos feitos femininos na posição de presidente de empresa. Estamos falando de

uma representação social que também faz parte das práticas do novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), que responsabiliza as escolhas e decisões dos

indivíduos.

Por outro lado, a protagonista relaciona a questão de gênero ao campo político, em seu

dito: “Ser mulher abriu muitas portas, eu faço parte do conselho de desenvolvimento

econômico e social do governo, hoje Dilma”. Ser mulher e estar na posição de presidente da

Dudalina fez com que Sônia incorporasse em sua fala a voz do governo, representado pela

importância social e o cargo da ex-presidenta do Brasil, Dilma Vana Rousseff (a primeira

mulher eleita presidenta do Brasil, governando o país de 01 de janeiro de 2011 até 12 de maio

de 2016). Sendo assim, observamos haver a intenção de se igualar à posição e corresponder

aos desafios que este tipo de trabalho requer. Na fala temos vozes que se relacionam aos

interesses políticos e privados que circulam pelas formas de fazer negócios na conjuntura

atual da contemporaneidade. Ter feito parte do conselho de desenvolvimento econômico do

governo Dilma está articulado às práticas relacionadas ao campo socioeconômico. Assim,

acreditamos que Sônia encontra no trabalho empreendedor a centralidade de sua vida ao

gerenciar uma empresa composta em sua grande maioria por mulheres, com representação de

gênero neste sentido.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

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A trajetória de vida da empreendedora Sônia está centrada em uma narrativização de

progresso, pois, quando tenta narrar a si, ocorre a intenção de fazê-lo de forma positiva. Esta

narrativa autobiográfica de transformação de vida atravessa basicamente três ciclos de

existência e momentos que foram relevantes para a protagonista.

O primeiro momento de vida é marcado pelo convívio com a família e a relação com o

pai, a mãe e os dezesseis, vivendo em uma cidade pequena (Luiz Alves) no interior de Santa

Catarina. Neste período, os pais tinham uma loja de secos e molhados e vendiam de tudo. A

protagonista enfatiza, logo no início de sua palestra, que é uma história de amor à camisa e às

pessoas, já mencionado anteriormente, sendo um processo de cruzamento dos negócios da

família. Neles emerge a importância do mundo do trabalho, vivenciado na infância e as

relações de afetos que tinha pelos pais e irmãos, que fizeram parte da sua construção

identitária.

Na passagem abaixo, Sônia relata acerca da mudança de cidade, outro ponto

fundamental em sua narrativa de vida.

E que nós nos mudamos, a família toda se mudou para Blumenau. Chegando lá, eu fui estudar. A minha mãe me colocou num colégio da elite da cidade, e

eu fui estudar. Mas eu era muito desajeitada, eu era muito feia, 13 anos,

desarrumada, vinha de Luiz Alves, brigando com os meus irmãos dentro de

uma Kombi ou sei lá que carro que cabia aquele povo todo.

Encontramos de forma explicitada que lhe incomodava o fato de ter ido estudar em

uma escola de elite, o que configura o contato com a alteridade e marca o convívio de

diferentes classes, ao qual Sônia não estava acostumada. Ao mesmo tempo, encontramos um

dito que subscreve a rejeição. Podemos relacionar esta fala a um discurso de autoajuda

(ILLOUZ, 2011), em que algo precisa ser alterado para que se busque o equilíbrio e harmonia

pessoal.

No segundo momento e ciclo de vida, há o dia de transformação, que no caso da

protagonista começou desde a sua infância, aos treze anos de idade. Abaixo, encontramos a

imagem e enunciado que delimitam esse momento.

Figura 10: A colona de Luis Alves

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Fonte: <www.YouTube.com/watch?feature=player_embedded&v=xrs_hCEOlAI>.

E chego na escola vou pra esse colégio e estou andando no corredor e ouço

uma frase “Colona de Luiz Alves”. Colona é o caipira. Hoje eu acho essa

frase linda, mas com 13 anos aquilo me doeu forte. Eu acho que esse foi o

meu Day1. Eu falei não eu nunca mais vou querer ouvir essa história.

Como sabemos, o Day1 representa o dia de transformação que ocorre a partir de um

determinado momento da vida, que no caso de Sônia foi ter escutado a menção “colona de

Luiz Alves”, carregada de uma representação simbólica de preconceito social – associado ao

campo da educação formal em que existe rejeição social e não aceitação de pessoas que

venham de outros lugares. Isso conota alguns comportamentos de representação social deste

sistema normativo em que as pessoas têm determinados comportamentos e pensamentos em

função de valores do grupo a que pertencem. Ser considerada caipira foi o insight para Sônia

transformar a sua vida e tentar superar suas limitações, para nunca mais sofrer tal humilhação.

Foi o sentimento de desafeto que possibilitou a mudança. Neste enunciado, temos a presença

de uma memória discursiva que representa a voz da sociedade e do indivíduo que deve se

transformar de maneira contínua como agente social, que se renova para atender aos

interesses e formas de comportamento deste sistema socioeconômico.

O terceiro momento de vida, consideramos ser o ciclo representado pelo tempo

presente, em que Sônia tem sua carreira bem-sucedida, consolidada e com a espetacularização

da narrativa do eu (SIBILIA, 2008), sendo valorizada de forma midiática por estar no palco

do Day1 Endeavor. Assim, Sônia utiliza uma estratégia motivacional visando inspirar a outros

indivíduos. Neste espírito e engajamento de práticas da cultura empreendedora, temos a

presença do seguinte enunciado que atesta os feitos da protagonista:

Essa empresa agora tem que ser perenizada, ela não é mais da família só, ela é de uma sociedade. Hoje nós temos 1600 pessoas, mais de 1000 mulheres,

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em 4 cidades do Sul do Brasil, 1 no Paraná e as outras 4 em Santa Catarina.

Então a gente tem uma responsabilidade muito grande, porque a empresa, ela

tem que ser blindada, e a família tem que ser resolvida em outra instância. Então esse é o cuidado que eu acho que tem que ter.

O interdiscurso de trabalho relacionado a uma empresa familiar e negócio próprio, que

deve ser perenizado, está atrelado ao campo econômico, no qual há a presença de vozes da

sociedade que representam as pessoas que compram e consomem as camisas. Portanto, as

vozes representam o consumo de bem, no caso específico a camisa, dando continuidade ao

sistema neoliberal. Temos também um interdiscurso que se relaciona ao gênero, porque

enfatiza a contratação de mulheres neste segmento de atuação, e na Dudalina representa quase

63% dos empregos direcionados às funcionárias do sexo feminino.

Os números apresentados consolidam os feitos e a comprovação de métricas de ter

alcançado um aprendizado pessoal que lhe confere alto desempenho (EHRENBERG, 2010)

em todas as ações de sua vida pessoal e no gerir do negócio familiar e empreendedor. Na

linguagem utilizada pela empreendedora “porque a empresa, ela tem que ser blindada”, “ser

blindada” remete a um dito com duplo sentido e que não fica claro, pois existe a dificuldade

de administrar os jogos e interesses das vozes que são demarcadas por cada indivíduo das

dezesseis famílias que compõe esta sociedade familiar e que podem interferir nas decisões e

gerar questionamentos. Ao mesmo tempo, configura uma representação simbólica de não

afetar os resultados do negócio, isto é, do capital que está envolvido e atrelado ao lucro da

empresa Dudalina.

Em outro momento, Sônia expõe:

Sou presidente do Lide like, que é o grupo de mulheres empresárias do Lide41. Faço parte, até interessante que a ADVB42 tem um prêmio que

chamava “Homem de venda” e mudaram pra ser “Personalidade de venda”.

E em Santa Catarina eu ganhei esse prêmio e eu sou a única mulher que ganhou esse prêmio. Então ser mulher, gente, é muito bom, só que mulheres

vão à luta, vão assumir as empresas.

Fica explicitado pelo enunciado que a empreendedora se utiliza da referência e do discurso

competente (CHAUÍ, 2006) de certas instituições (representadas pelo LIDE, ADVB e suas

41 O LIDE - Grupo de Líderes Empresariais é uma organização de caráter privado que reúne empresários em diversos países e debate o fortalecimento da livre iniciativa do desenvolvimento econômico e social, assim como

a defesa dos princípios éticos de governança corporativa no setor público e privado. Fundado no Brasil, em

2003, o LIDE é formado por líderes empresariais de corporações nacionais e internacionais, se preocupa em

sensibilizar o empresariado para a importância de seu papel na construção de uma sociedade ética, desenvolvida

e consciente. Atualmente, o grupo conta com 32 unidades regionais e internacionais e 26 frentes de atuação.

Disponível em: <http://www.centoequatro.org/blog/voce-sabe-o-que-e-o-ted>. Acesso em: set. 2017.

42 ADVB – Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil. Disponível em:

<http://www.centoequatro.org/blog/voce-sabe-o-que-e-o-ted>. Acesso em: set. 2017.

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premiações) no sentido de inserir em seu lugar de fala suas vozes como comprovação dos feitos

que realizou. Ao mesmo tempo, encontramos uma intertextualidade com o campo do trabalho,

sendo marcado pela questão do gênero nas práticas do campo do empreendedorismo

(EHRENBERG, 2010). Aqui, temos as representações das vozes de campos distintos de trabalho

que apresentam jogos de interesses específicos. Contudo, este contexto sinaliza uma forma de agir

em sintonia com o pensamento destas figuras publicamente reconhecidas e que são midiatizadas.

Por fim, Sônia contextualiza as transformações ocorridas nos negócios e na vida

pessoal após a morte do pai, em 1996, e principalmente da mãe, em 2008. Período em que

vivenciou ser presidente de uma empresa familiar, com os conflitos e jogos de interesses de

dezesseis famílias, ou seja, de uma empresa em que os acionistas precisaram tomar decisões

com valores do trabalho e não mais por sentimentos afetivos relacionados à família.

5.1.3 Síntese da análise

Algumas datas e lugares marcam a “Localização no tempo e no espaço” na

apresentação de Sônia: a viagem à Espanha, em 1974; a mudança para a cidade de Montes

Claros (MG); a ida para a cidade de São Paulo; e o ano de 2003, quando assume a direção da

empresa Dudalina. Elas destacam momentos de conquistas e de superação da palestrante,

fazendo parte de sua trajetória de sucesso.

Nas “Vidas interligadas”, a importância da família aparece como um eixo central em

sua narrativa, tanto à promoção de valores que a acompanham até os dias atuais como na

gestão de um negócio em sua raiz familiar. Ou seja, o âmbito familiar e o âmbito de trabalho

se mesclam, tornam-se praticamente indissociáveis.

Em relação à “Orientação pessoal das ações”, Sônia evidencia a necessidade de

aquisição de conhecimentos essenciais ao desenvolvimento dos negócios administrados por

ela (e pela família). Também se nota a configuração de um cenário no qual correr riscos é

fundamental ao sucesso das ações propostas, um valor da cultura empreendedora que ela

ratifica. O gênero também está colocado em sua discursividade como um fator que não

influencia diretamente o modo de empreender, pois, segundo Sônia, o que importa de verdade

são as ações. Apaga-se, portanto, as diferenças e hierarquias entre os gêneros, dando a

entender que no campo do empreendedorismo essas diferenciações são diluídas ou mesmo

inexistentes: o que importa e tão somente a “competência”.

Finalmente, os “Momentos de vida” são articulados à trajetória pessoal da

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empreendedora, que busca narrá-la de forma positiva. Depois de um primeiro momento de

vida, configurado pelo seio familiar, menciona seu Day1: o dia decisivo em que é chamada de

“colona” por outros alunos da escola onde foi estudar aos 13 anos. Desde então, segundo

relata, decide não mais querer aceitar esse “selo” que lhe colocam. É a partir desse momento

que suas ações se voltam à mudança de uma realidade social dada, que se processa

substancialmente pelas práticas empreendedoras. Já os dias atuais são representados pelo

sucesso, pelas conquistas que obteve ao longo de sua administração da empresa bem como de

seus feitos mais recentes (após a venda da Dudalina).

5.2 ANÁLISE 2: SOFIA ESTEVES

Sofia Esteves é presidente do conselho do Grupo DMRH, constituído pela DMRH43 e

Cia de Talentos. A empreendedora possui graduação em psicologia pela FMU (Faculdades

Metropolitanas Unidas), pós-graduação em Gestão de Pessoas e é professora no MBA em

Recursos Humanos da FIA (Fundação Instituto de Administração), professora convidada em

orientação de carreiras e mercado de trabalho no Insper e palestrante convidada pela

Fundação Dom Cabral. É diretora de jovens profissionais na ABRH/SP (Associação

Brasileira de Recursos Humanos – São Paulo), trabalha em pesquisa na área de tendências de

carreiras futuras e é autora do livro “Virando gente grande - Como orientar jovens em início

de carreira”. Sofia recebeu os prêmios “Mulheres mais influentes do Brasil” na categoria de

recursos humano em 2007, pelo extinto jornal Gazeta Mercantil, e o “Empreendedores do

novo Brasil”, em 2006, oferecido pela revista Você S/A e a Endeavor.

5.2.1 Síntese do vídeo

Com o título “Tudo o que a gente é, é um pouco de todo mundo”, a palestra de Sofia

Esteves ocorreu em dez de maio de 2012, em São Paulo. A empreendedora, em sua

narrativização da vida, apresenta que veio de uma família de imigrantes, pai português e mãe

italiana, e marca o quanto os exemplos dos seus pais foram importantes em sua formação.

43 A DMRH, é uma empresa especializada em consultoria de recursos humanos, foi fundada em 1988, por Sofia

Esteves, que trabalha com atração, recrutamento, seleção e desenvolvimento de pessoas com atuação

profissional. Este tipo de serviços de acompanhamento e aconselhamento profissional engloba desde estagiários

até presidentes, nos mais diversos segmentos do mercado. A essência do Grupo DMRH é contribuir para o

crescimento de profissionais, empresas, economia e sociedade e, por essa razão, realiza constantemente

pesquisas sobre o mercado de trabalho e carreira para balizar sua atuação. O grupo possui escritórios no Brasil,

na Argentina e no México. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me2111201011.htm. Acesso em

setembro de 2017.

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Dentre estes, destaca a importância de cada filho ir atrás de seus objetivos e fazer por merecer

qualquer coisa na vida.

Sofia relata o quanto a passagem de várias pessoas em sua vida foram relevantes,

como, por exemplo, o seu primeiro chefe, o emprego na clíníca onde era recepcionista, a

importância de ter conhecido Alice, pessoa que lhe introduziu o significado de empresa

especializada em RH (recursos humanos), e alguns headhunters (indivíduo que vai em busca

de profissionais do mercado para apresentar as oportunidades de empregos, como foi o caso

do Sr. José Almeida, seu primeiro cliente, assessorado para recolocação profissional, e do

diretor da antiga Gessy Lever – hoje, Unilever –, que lhe confiou ter acesso e cuidar do

programa de preparação de trainee´s – jovens talentos para o mercado de trabalho). Estas e

outras relações com diferentes profissionais do mercado fizeram com que Sofia se tornasse

uma referência neste tipo de serviço de consultoria em RH.

A empreendedora contextualiza, por várias vezes, como as pessoas que participaram

de sua vida foram fundamentais e importantes para a sua formação pessoal e profissional,

possibilitando adquirir novos conhecimentos e experiências que fizeram toda a diferença em

sua trajetória. A empreendedora também relata o sonho de ter um orfanato e ser psicologa

para trabalhar com crianças, mas, ao longo de sua trajetória de vida, vai tendo uma sequência

de oportunidades de trabalho que lhe possibilitou seguir por este caminho de aconselhamento

em RH e desenvolvimento de pessoas.

5.2.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

Na cena abaixo, temos uma posição de câmara em plano geral com Sofia Esteves e a

presença de auditório. Como previamente reportado, a palestra de Sofia no Day1 foi realizada

em dez de maio de 2012. Esta data já nos insere em um contexto que marca a

contemporaneidade.

Figura 11: Sofia Esteves em sua palestra no Day1

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Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=pG_KXAcfVa4>.

Observamos que a protagonista pauta sua vida mencionando algumas datas que

marcaram sua representação social perante o contexto em que vive. Isso fica explícito ao

mencionar, por exemplo: “Com 17 anos, eu fui ser recepcionista de uma clínica médica e aí

eu tive o meu primeiro grande aprendizado na vida profissional.”; “Fui vendedora e depois

gerente de vendas, até o momento que eu me formei. E aí descobri que eu estava formada e

não tinha experiência profissional na minha área. Aí comecei a batalhar e procurar.”; e “Eu

tenho 24 anos e um alto potencial a ser desenvolvido. Eu sou recém-formada, vocês não

querem me dar uma chance para começar?”.

Nessas falas de Sofia há uma representação social do mundo do trabalho, mostrando a

dificuldade real que um jovem tem ao se formar e procurar um emprego formal. Encontramos

igualmente vozes do coletivo, que expressam a mesma dificuldade para conseguir o emprego

e trabalhar alguns anos para adquirir experiência profissional. Patenteia-se como no sistema

neoliberal do capitalismo o trabalho tem a conotação de constituição identitária e legitimação

social, podendo ser exercido de diferentes formas em uma sociedade flexível (SENNETT,

2009).

Por fim, o “dia 18 de janeiro de 1988” coloca outro importante acontecimento na vida

de Sofia, quando protagonista deixa de ser empregada nas diversas empresas nas quais

trabalhou e passa a ter seu próprio negócio – este momento será melhor explicado no item

“Momentos de vida”, em que fazemos um resumo das principais transformações ocorridas em

sua trajetória de vida.

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b) Vidas interligadas (Linked lives)

Desde o início do vídeo, Sofia enfatiza a importância das relações interpessoais,

porque assevera que sua vida é pautada por relacionamentos e formas de fazer negócio com

base na interação com diferentes pessoas, sejam elas pessoas que necessitam de emprego,

profissionais que ajudam a recolocar profissionais no mercado de trabalho ou que os treinam

para obter e/ou manter seus empregos.

Neste contexto de ser dependente do ser humano, logo na infância encontramos um

vínculo com a família: “Meu pai português e minha mãe italiana. Viveram na época da guerra

na Itália e em Portugal. Vieram aos 22 anos tentar a vida aqui. Eles, com a cara e a coragem,

começaram uma vida juntos sem terem um tostão”. Temos uma voz que revela a importância

da família não só na vida da protagonista, mas também aqueles que possuem uma origem

familiar sem muitas condições financeiras. No enunciado “Nós somos em três irmãos, eu sou

a caçula de três irmãos. O meu irmão ainda quando ele nasceu a situação deles era tão difícil

que a minha mãe só tinha pepino pra comer na gravidez dele”, expressa-se uma fala que

comprova a falta de dinheiro. Ao mesmo tempo, acreditamos ser este um discurso

motivacional no sentido de se colocar em um mesmo patamar das vozes da coletividade,

daqueles que passam pela mesma precariedade financeira, permeando tanto o campo social

como o econômico, pois um atravessa o outro.

Várias outras pessoas também foram importantes para o aprendizado de vida e de

trabalho de Sônia. Assim, agrupamos as principais citações que abordam a questão. Em seu

enunciado “A Alice também era psicóloga e trabalhava numa consultoria de recursos

humanos, que eu nunca tinha ouvido falar que existia consultoria de recursos humanos, eu não

fazia a pálida ideia de que existia consultoria,” sinaliza a importância dessa amiga para lhe

apresentar o trabalho de psicólogo em empresas de mercado para ajudar a recrutar, selecionar

e treinar pessoas para o exercício laboral.

Sofia menciona o senhor José Almeida, “um baiano de 58 anos de idade, tinha sido

presidente de várias empresas, tinha trabalhado na ONU e na UNESCO”, que foi o primeiro

cliente assessorado pela palestrante quando ela trabalhava na Manager (empresa de

recrutamento e seleção de profissionais do mercado que atua há vários anos neste tipo de

prestação de serviços). Sobre essa história, ainda relata:

Um headhunter chamado Marco Antonio Bayer, que me perguntou “Quanto

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tempo de experiência você tem?”, e eu falei: “Três meses.” Aí falamos um

pouquinho e ele conhecia o senhor José Almeida, e sabia que o senhor José

Almeida estava precisando de um apoio para se recolocar e pediu pra falar comigo.

Dando continuidade à sua fala e à importância dos relacionamentos interpessoais em

sua vida, a protagonista menciona: “Era o diretor de uma empresa, o Claudio Macedo, que era

diretor de uma grande empresa nacional, me convidando pra fazer um processo de

recrutamento”. Temos aqui uma intertextualidade representada por um dito que mostra uma

distinção: não se trata de qualquer pessoa, mas, sim, a voz de um agente social que representa

uma posição de destaque perante o contexto de trabalho. Concomitantemente, ocorre uma

exposição de fala que ressalta a importância desta posição perante outros sujeitos, sendo fruto

de distinção entre pessoas e posições sociais. Assim, há um não-dito que oculta outras vozes

presentes neste enunciado, que são silenciadas.

Prosseguindo em suas falas, Sofia, menciona também ter contado com:

José Augusto Minarelli, que já era um consultor muito famoso que fazia recolocação de profissionais e já tinha me conhecido, ele ligou no escritório

e falou: “Olha Sofia eu estou te ligando porque eu estava aqui sentado e eu

imaginei que essa era sua primeira crise, então senta aí que eu tenho alguns conselhos pra te dar”.

Encontramos aqui a presença de um discurso especialista (GIDDENS, 2002). Como

sendo uma das maiores autoridades no Brasil nesta área de assessoria em recursos humano,

Minarelli representa as vozes de vários gerentes, diretores e presidentes de empresas de

mercado que foram empregados em função da prestação de serviços em RH. Ao mesmo

tempo, Sofia tenta aproximar sua fala à dele, para se colocar no mesmo patamar.

Esta história não poderia passar sem apresentar a família constituída, ao mencionar:

“Sem eu contar que eu tenho dois filhos maravilhosos, eu tenho um marido que está aqui,

maravilhoso, e que me apoia, e que me ajuda, e me acompanha nos dias que eu chego em casa

cansada, mas que a gente está nessa trajetória junto”. Temos um dito que marca a questão de

gênero e apresenta a profissional de mercado, mãe e esposa.

Neste sentido, em função dos enunciados verificados, observa-se que Sofia reconhece

a importância das relações entre pessoas e como estes relacionamentos lhe possibilitaram

construir sua identidade, sobretudo, a profissional. Em seus ditos, a partir das pessoas que

menciona, o que compõe as falas dos clientes que foram assessorados por ela, dos diretores,

gerentes e trainees que se utilizaram dos seus serviços e dos parentes e amigos, enfim, todos

que de alguma forma atestam seu alto desempenho (EHRENBERG, 2010) nas ações de sua

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vida. Isso conota uma vertente forte para o trabalho e sua relevância na vida das pessoas, ao

mesmo tempo em que expõe os feitos de uma vida bem-sucedida para chegar à posição atual

de poder estar no Day1 Endeavor narrativizando suas experiências de vida.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Desde o início de sua fala encontramos o campo da memória e seus acontecimentos, a

partir dos quais as falas da protagonista são presentificadas. Ou seja, as pessoas que são

relembradas em sua narrativa aparecem para compor uma trajetória e, ao mesmo tempo,

valores importantes em sua constituição de vida, que é a relação do eu com o outro e as

consequentes representações sociais nesta interação.

Na figura abaixo, temos a cena que foi projetada no telão e palco do Day1, que reforça

um dito da protagonista. A imagem representa a composição de pequenas partes, com a

inserção de fotos que no final compõe o rosto de uma pessoa. Não se trata de qualquer rosto,

mas, sim, do rosto em que encontramos diferentes vozes e a presença da memória discursiva

de algo já dito e que atravessa os diversos relacionamentos e pessoas que passaram pela vida

da protagonista para compor sua identidade atual. Temos um não-dito que marca a

diversidade, conferindo um consumo simbólico de uma imagem que atesta a presença de

várias pessoas, que ajudam a compor um perfil moral de agir perante o mundo.

Figura 12: “Um pouco de todo mundo”

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=pG_KXAcfVa4>.

A cena é reforçada pela seguinte frase da protagonista: “(...) porque eu acredito que

tudo o que a gente é, é um pouco de todo mundo”. Ou seja, as vozes da sociedade são

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representadas por diferentes pessoas. Em sua expressão multicultural, isso ajuda a criar um

discurso motivacional e de autoajuda (ILLOUZ, 2011) em forma de conselho para orientar as

pessoas, pois, como consultora de recursos humanos, uma de suas habilidades é escutar e

compreender a forma de pensar dos sujeitos, além de se colocar na posição do outro e

apreender a pluralidade do contexto social e dos mais diversos campos de atuação

profissional. Corresponde, então, a um discurso motivacional que busca se aproximar do

público que assiste a sua palestra.

Em seguida, no enunciado “(...) e aí eu percebi que quando a gente se dedica às

pessoas as pessoas reconhecem e as pessoas também se dedicam pra gente”, pode-se ter uma

interpretação de que emerge em tal discursividade um “nós” que contextualiza uma

conjuntura onde as pessoas necessitam de outras para poder ordenar seus valores pessoais.

Existe, pois, um interdiscurso que dialoga com todos nós, conferindo importância aos

vínculos interpessoais para o exercício de qualquer tipo de atividade laboral do mundo do

trabalho (SCHWARTZ, 2011; FÍGARO, 2008), a comprovar a importância do mesmo na vida

da protagonista, porque tudo gira em torno do fazer, mesmo antes de ela ter se tornado

empreendedora. A impressão passada é a de que a vida da protagonista é centrada

principalmente no trabalho.

Em outro enunciado de Sofia, encontramos: “Mas aquilo me mostrou a importância

da responsabilidade dos nossos atos. Com certeza eu não era responsável, mas eu ia me sentir

muito corresponsável se eu não tivesse cuidado daquele projeto, e dos projetos que eu fazia

com tanto carinho”. Esta fala está relacionada à ocasião em que o Sr. José Manoel se tornou o

primeiro executivo que a protagonista precisou recolocar no mercado de trabalho, como

consultora de recursos humanos. Aqui temos um não-dito que assinala o fato de que, na

atividade laboral de consultoria em RH, o consultor que presta este tipo de serviço depende da

mercantilização do indivíduo (BAUMAN, 2008), neste caso, a do candidato a uma vaga de

trabalho, que necessita ser empregado. Assim, este candidato a uma vaga precisa ter uma

formação educacional e experiência para preencher os requisitos necessários no mercado de

trabalho. Logo, precisa ter investido em seu capital humano (FREIRE, FILHO, 2012),

adquirindo habilidades técnicas não só para a vaga, mas também para todas as ações que

executam.

No âmbito laboral não se tem a certeza da recolocação do indivíduo no mercado de

trabalho; o assessor de RH não pode garantir que vai empregar uma pessoa. A exposição do

bom trabalho do consultor de RH depende de conseguir várias entrevistas e oportunidades de

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vagas para o candidato, no sentido do mesmo ser reempregado. Assim, estamos falando de um

trabalho que não pode garantir o resultado dos serviços prestados. Além disso, este trabalho

de recolocação de candidato costuma custar de 10 a 15% do salário anual do indivíduo, sendo

um valor elevado a ser pago a quem está desempregado. Isso constata que as relações de

trabalho se tornam cada vez mais precarizadas na contemporaneidade (ANTUNES, 2013). Ou

seja, subentendem-se aí as vozes de excluídos, que, por não ter capital, não conseguem

acessar este tipo de assessoria.

Em “(...) o destino das pessoas a gente não muda, mas a gente pode marcar de uma

maneira positiva, dentro daquilo que é possível a gente fazer”, por sua vez, verifica-se um

discurso do tempo (MORIN, 2007) que enfatiza práticas do neoliberalismo segundo as quais

cada um deve ser responsável por todas as suas escolhas, sejam elas acertadas ou incorretas.

Já “de uma maneira positiva” remete à valorização de um modo específico de ação de acordo

com a qual as pessoas precisam agir positivamente, ocultando possíveis conflitos.

Dando continuidade à análise, trazemos a seguinte passagem da narrativa de Sofia:

(...) eu acreditei em mim mesma, porque eu não tinha outra alternativa. Eu

não queria só passar pela vida, eu queria que eu pudesse fazer as minhas

escolhas e os meus caminhos. Então eu tinha que acreditar em mim, eu tinha

que ouvir as vozes que tinha ao meu entorno me trazendo algum conselho,

alguma orientação, eu tive que me arriscar.

Em primeiro lugar, evoca-se nessa narrativa um discurso de autoajuda, como vemos

pela menção da necessidade de aconselhamentos e orientações. Isso se associa proximamente

ao campo de atuação de RH, que se reflete nesse discurso da palestrante. Por outro lado, a

partir da exposição de uma narrativa do eu (SIBILIA, 2008), encontramos um modo de

evidenciar os feitos de Sofia, sobretudo aqueles que se vinculam às práticas empreendedoras.

Como já abordado, o empreendedor é um agente social considerado como aquele que não tem

medo de “se arriscar” para alcançar o sucesso, representado fundamentalmente pelos ganhos

financeiros. Nesse sentido, é interessante nos voltarmos a outra passagem da narrativa de

Sofia:

A Endeavor escutou um monte de vezes eu falando que não queria crescer e

no final a gente cresce. Ter paixão, ter muito amor por todas as nossas ações e todas as nossas atitudes, porque dinheiro é consequência daquilo que a

gente faz melhor, daquilo que brilha os nossos olhos. E fazer por merecer,

né, gente?

Temos, assim, as vozes do campo do empreendedorismo e de sua cultura, pois a

Endeavor representa os agentes sociais que estão ligados ao empreender. A diferença aqui

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está ligada tanto ao campo econômico e laboral, nos quais se têm formações discursivas

distintas, mas que se cruzam para compor o lugar de fala da protagonista. O dinheiro, nesse

sentido, converte-se em um indicador das consequências de atividades laborais relacionadas a

certas competências. Trata-se, assim, de uma consequência do fazer desde que este esteja em

harmonia às habilidades de determinado sujeito. Cabe questionar, todavia, se realmente todos

os fazeres são valorados de maneira igualitária ou se este representa, na verdade, mais um

discurso falacioso do “empreender é para todos”.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

A vida de Sofia é marcada pela infância no convívio com os pais e irmãos em um

contexto de grande privação financeira, quando o dinheiro era restrito e ela e os irmãos

tinham de economizar; em um segundo momento, destaca-se as aprendizagens como

assessora de RH, fase em que menciona diferentes experiências adquiridas em função das

pessoas que lhe permitiram entender a importância do fator relacional, o que lhe possibilitou

dar um salto na carreira.

Sendo assim, podemos dizer que o segundo ciclo de vida da protagonista acontece na

fase adulta, no momento em que Sofia teve contato com o diretor de uma empresa, Marcos

Macedo, iniciando um processo de transição ao empreendedorismo, como vemos na fala que

Marcos lhe dirige: “Você não está entendendo, eu gosto de como você pensa RH, menina.

Monta o seu negócio, porque vai dar certo. Você vai ter sucesso, você pensa RH de um jeito

diferente.” Esta fala apresenta um dito associado a um indivíduo que possui um diferencial e

habilidades associadas ao campo do empreendedorismo, no caso específico um fazer

concatenado à gestão de pessoas e recursos humanos (RH), que marca um tipo de atividade

laboral centrada no aconselhamento e condução das pessoas. Ao mesmo tempo, constata-se

uma prática discursiva e promessa de mudança futura, pois encontrar oportunidades (vagas de

emprego) e aconselhar carreiras pode ser considerado uma mudança de vida a quem é

assessorada por este tipo de serviço.

No que concerne ao empreendedorismo, há um interdiscurso que aponta ao fato de que

um negócio faz parte da representação de vida centrada no agente empreendedor, sendo a

inovação e mudanças características intrínsecas deste perfil moral de agir. Isso possibilita à

protagonista pensar em modificar sua própria vida a partir de tais práticas. Na imagem

projetada no telão do palco, há o destaque dessa segunda fase e ciclo de vida da protagonista.

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Figura 13: O “Day1” de Sofia

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=pG_KXAcfVa4>.

No mesmo instante que a imagem foi projetada, verifica-se o seguinte dizer de Sofia:

“Nesse dia foi o Day1 da minha empresa. Dia 18 de janeiro de 1988, foi o dia que eu visitei a

Denisia na clínica dela e o Claudio Macedo me ligou, e eu, em seguida a ligação do Claudio

Macedo, liguei e aluguei o primeiro escritório da DM dentro da clínica dela.”. Este momento

representa o turn point da empreendedora, no qual encontramos práticas (de vida e de

trabalho) sendo exercidas de forma totalmente diferente e repaginada em relação à fase

anterior. As práticas de trabalho passam a ser exercidas com base em um investimento próprio

que emerge como uma construção identitária centrada no perfil moral de (auto)transformação:

empreender e empreender a si mesmo se fundem.

Os aconselhamentos recebidos pela protagonista durante a experiência de vida e de

trabalho representam vozes de diversos campos, que são mencionados em sua narrativização

da vida e demarcam crenças extraídas da psicologia, do mercado empresarial e da educação

formal, ao se investir no capital humano (FREIRE FILHO, 2011), algo que foi utilizado por

Sofia em todas suas ações e no modo de gerir a vida. Ao mesmo tempo, apresenta as vozes

imbricadas pela alteridade, o que possibilitou enxergar outras maneiras de pensar o trabalho,

reflexo das normas e dos discursos do capitalismo, que confere um momento de incerteza e

medo em que a protagonista resolveu apostar. Há, nesse sentido, um não-dito que permeia a

transformação e virada da forma de gerir a vida, agora na posição (e lugar de fala) do agente

social empreendedor, sendo um empreendedor de si mesmo em nossa sociedade de

desempenho (HAN, 2015).

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Após esta passagem de transformação, a protagonista expõe uma fala que salienta os

feitos realizados. Eles são midiatizados pela prática de narrativa do eu, de modo

espetacularizado, reforçando números e métricas, ou seja, um viés quantitativo. Acreditamos

ser este o terceiro ciclo de mudança, que representa o curso de vida posterior ao turn-point,

como se observa em:

E com a cara e a coragem a gente começou a montar essa empresa que hoje tem 204 funcionários, tem escritórios na Argentina e no México, já

desenvolvemos trabalhos para mais de 44 países no mundo inteiro e países

que eu não faço a menor ideia de onde ficam, mas que a gente tem podido fazer aí trabalhos de recrutamento, seleção e desenvolvimento em várias

partes diferentes.

Tais indicadores contêm um interdiscurso que dialoga com mais um dos valores da

cultura empreendedora: comprovar, por meio de números e retornos financeiros, tudo que se

faz de concreto, atestando certa credibilidade aos feitos empreendedores. Logo, existe a

necessidade de a protagonista apresentar o que foi conseguido em função de sua gestão dos

negócios e de si mesma: desde como sua empresa cresceu e foi considerada bem-sucedida até

como sua iniciativa, sua coragem em enfrentar riscos, a leva a esse sucesso.

Por outro lado, há um interdiscurso que atesta as vozes da meritocracia e do sucesso,

sendo que a narrativa de Sofia a aloca em uma posição legitimada de reconhecimento social

por sua alta performance (EHRENBERG, 2010), caso contrário não estaria no Day1 para

palestrar. Este lugar de fala tenta convocar por meio de narrativas inspiracionais da cultura

empreendedora (CASAQUI, 2015). Isso não significa, no entanto, que o empreendedor é

impassível à conjuntura socioeconômica dos lugares em que seus empreendimentos se

encontram. Sofia comenta essa questão em:

E aí nós batalhamos e o mercado foi aquecendo e eu continuei sempre

fazendo por merecer e guardando um dinheirinho porque podia vir outra crise, como de fato veio em 2009. Mas sempre buscando trazer para cada

trabalho que a gente fizesse entendendo que por trás daquele trabalho tinha

um ser humano, tinha um candidato com mil expectativas, empresas que tinham expectativas, e trabalhando sempre essa questão de trabalhar além de

simplesmente fechar uma posição num processo de recrutamento e seleção.

É interessante notar, nesse sentido, que aparece na narrativa de Sofia uma

vulnerabilidade a que qualquer empreendedor está suscetível; neste caso, ela focaliza uma

instabilidade socioeconômica. Mesmo assim, há a consideração de que é necessário ao

empreendedor prever esses percalços e estar preparado a enfrenta-los, outro dos valores da

cultura empreendedora. Ainda se pode constatar em sua fala que no processo de recolocar

pessoas no mercado de trabalho a empresa de prestação de serviços (no caso específico, uma

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assessoria de RH) depende do cenário socioeconômico em que o mercado de trabalho de

diversas áreas de atuação demite e contrata funcionários.

Encontramos também um interdiscurso que assinala que as empresas de assessoria de

RH dependem dos honorários, portanto, do capital recebido pela prestação de serviços a

serem contratados, isto é, das vagas de trabalho disponíveis no mercado e das de recolocação.

Encontramos, aqui, um atravessamento de vozes com interesses distintos: a marca da voz do

indivíduo desempregado, que está fragilizado, à procura de uma nova recolocação de

emprego, a voz das diversas empresas de mercado, que se aproveitam de determinada situação

socioeconômica desfavorável, e as vozes das assessorias de RH, que em sua conduta

produtiva prestam serviços de assessoria e aconselhamento para encontrar candidatos a serem

apresentados para as empresas, ou seja, ganhar dinheiro em função dos bons candidatos por

elas selecionados.

Assim, deparamo-nos com vozes distintas e com interesses conflitantes, mas que

atravessam o campo econômico e o mundo do trabalho, pois, neste sentido, o conhecimento

adquirido por cada indivíduo se torna uma transação financeira. Ou seja, os indivíduos são

mercantilizados (BAUMAN, 2007), convertem-se em uma “mercadoria desejável” em função

de tais habilidades, que serão utilizadas em empreendimentos e projetos das empresas de

mercado.

Para completarmos a questão de valorização da vida bem-sucedida da palestrante, a

mesma menciona sua outra empresa do Grupo DM especializada em contratação de trainees44.

Em sua fala, afirma:

Então foi aí que surgiu a Cia de Talentos, hoje a maior empresa da América

Latina de recrutamento, seleção e desenvolvimento de jovens para

programas de estágio, trainees e MBAs. (...) Foram mais de 1 milhão de

jovens que passaram em processos seletivos com a gente. Então é uma baita responsabilidade, uma baita responsabilidade, porque a gente está colocando

sementinha na carreira das pessoas.

Novamente encontramos um dito correlacionado ao mundo do trabalho e sua

44 Trainee é o cargo atribuído a jovens profissionais recém formados que serão treinados e capacitados para

ocupar posições de liderança. Trainee é um termo da língua inglesa utilizado para designar um cargo dentro das

empresas. Os chamados Processos de Trainee são as atividades que este profissional desenvolverá até chegar a

ser promovido como um colaborador efetivo. Diversas empresas utilizam os processos de trainee para

encontrarem seus talentos, gestores e sucessores para a alta administração. As oportunidades para trainee são

abertas anualmente em programas de seleção que chegam a atingir mais de 1000 candidatos por vaga. Por serem

postos de trabalho com muitos desafios e recompensas e que proporcionam ascensão rápida na carreira, milhares de jovens buscam esta como uma opção para entrar no mercado de trabalho. Para efeito de informação, hoje, um

trainee pode ter um salário inicial entre R$ 6.000,00 a R$ 8.000,00 por mês. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Trainee>. Acesso em: out. 2017.

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representação social, mas que confere o atravessamento com o campo econômico, pois a

posição de trainee é aquele candidato que se destaca perante outros profissionais uma vez que

detém habilidades que o coloca em uma posição privilegiada. Um trainee passa por um

rigoroso processo de entrevistas em que deve comprovar sua superioridade em relação aos

demais concorrentes. Reside aí, portanto, um não-dito, haja vista que tais vagas são

preenchidas por estudantes que tiveram condições econômicas de estudar em boas instituições

de ensino, aprender idiomas e ter vivência no exterior, por exemplo, o que não é uma

realidade viável a todos os participantes da seleção. Encontramos uma formação discursiva

que atravessa a discriminação social, pois na maioria das vezes apenas os estudantes mais

preparados e oriundos de classes sociais privilegiadas conseguem passar nos testes e ter

acesso a estes postos de trabalho.

5.2.3 Síntese da análise

Em “Localização no tempo e no espaço”, Sofia enfatiza, em um primeiro momento, a

idade com que começou a trabalhar (17 anos) e os trabalhos que teve até se formar.

Posteriormente, frisa a data em que deixou de ser empregada e a passou a empreender.

Já em “Vidas interligadas”, há o destaque para a importância dos relacionamentos

interpessoais, uma vez que os empreendimentos de Sofia giram em torno dessas práticas

(gestão de pessoas). Também faz um relato acerca de seus vínculos familiares, que servem

como base de valores que ela considera primordiais. Outras pessoas (como Alice, José

Almeida e Claudio Macedo) aparecem em sua narrativa como centrais ao desenvolvimento de

seus empreendimentos, influenciando tanto na decisão por empreender como na atuação e

condução dos negócios.

Vimos em “Orientação pessoal das ações” que Sofia sustenta o valor da diversidade,

com o lema “Tudo o que a gente é, é um pouco de todo mundo”. A dedicação ao outro é

trazida à sua narrativa como uma maneira de dar importância às relações interpessoais. O

trabalho aparece como um componente basilar na prática de suas ações empreendedoras.

Também analisamos como esses fatores contrastam, a partir de não-ditos, com uma

mercadorização do indivíduo, base de atuação da DMRH (gestão de pessoas e recursos

humanos). Além disso, verificamos discursos de autoajuda, do “correr riscos” e do

“empreender é para todos”.

Enfim, em “Momentos de vida”, notamos a descrição da infância, o convívio com os

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pais e os irmãos em uma conjuntura demarcada por privações financeiras. Em seguida, Sofia

descreve os aprendizados profissionais e sua atuação na área de RH, que servem como

substrato à sua decisão de empreender. Já a terceira etapa desses momentos é definida pelo

grande dia, o Day1, que é quando Sofia decide abrir seu próprio negócio. O caminho posterior

é perpassado por algumas dificuldades, mas, sobretudo, por superações, crescimento e ganhos

financeiros e de capital simbólico.

5.3 ANÁLISE 3: ZICA E LEILA

Apresentamos a seguir o perfil profissional das duas sócias do instituto Beleza

Natural: Heloisa Helena Belém de Assis Marinho (Zica) e Leila Velez.

Heloísa Helena Belém de Assis Marinho (Zica), ex-empregada doméstica, babá e

faxineira, nasceu e cresceu na Tijuca (RJ), na favela do Catrambi. Filha de uma lavadeira e de

um biscateiro, morava com 13 irmãos em um barraco de chão batido e telhado de zinco.

Hoje, casada e com três filhos, é sócia e fundadora do Instituto Beleza Natural,

considerado a maior rede do Brasil especializada em cabelos volumosos, crespos e ondulados,

com 35 salões de beleza em cinco estados, espalhados em várias capitais do Brasil. O Instituto

possui 4 mil funcionários, um centro de desenvolvimento técnico, uma fábrica com

capacidade produtiva de 300 toneladas por mês, crescimento de 30% ao ano e atende 130 mil

clientes por mês. Tem um ganho avaliado em mais de 140 milhões de reais por ano.

A outra sócia-fundadora, CEO (Chief Executive Officer) e diretora executiva, é Leila

Velez. Em 2010, Leila assumiu a presidência do Instituto Beleza Natural e foi fazer

especialização para poder gerir melhor a empresa. Filha de pai porteiro de edifício na zona sul

do Rio de Janeiro e mãe que lavava roupa para fora, começou a trabalhar aos dez anos de

idade e aos 12 anos vendia cosméticos porta a porta. Formou-se em administração de

empresas com foco em marketing pela ESPM, fez seu MBA executivo pela Coppead-RJ,

participou de cursos de especialização na Harvard Business School, Massachussetts Institute

of Technology, Stanford e Columbia Business School. É palestrante convidada sobre

empreendedorismo, inovação e base dos consumidores piramyd em vários estados brasileiros,

Estados Unidos, França, Inglaterra, Portugal, Espanha, Argentina, Chile e Uruguai. É

envolvida em iniciativas para promover a paridade de gênero e o empreendedorismo.

Entre os prêmios recebidos pelas duas sócias do Instituto Beleza Natural, destacam-se:

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Empreendedor do Novo Brasil (2005); Empreendedor do Ano Ernst & Young (2006);

Mulheres Mais Influentes do Brasil (2007); Mulher Empreendedora de Alto Impacto do Ano

Veuve Clicquot (2011); prêmio Claudia – categoria negócios (2012).

5.3.1 Síntese do vídeo

O vídeo conta a história de duas sócias, Heloisa Helena Belém de Assis Marinho

(conhecida por Zica) e Leila Velez, que começaram suas carreiras como empregada doméstica

e atendente do McDonald´s, respectivamente. A empresa, Instituto Beleza Natural, começou

em função das experiências pessoais destas duas sócias, que sentiam falta de produtos

apropriados para os cabelos crespos, volumosos e encaracolados. Então, para suprir essa

carência de produtos especializados, foram incentivadas e aconselhadas por amigas que

também sofriam do mesmo incômodo e resolveram desenvolver um creme próprio para este

tipo de cabelo.

O principal desafio encontrado foi conseguir o capital inicial para abertura do negócio.

O projeto começou nas residências das empresárias, sendo necessário comprar matéria-prima

e investir em uma infraestrutura mínima para se obter a fórmula do creme adequado. Neste

contexto, o marido de Zica, Jair Conde, vendeu o único bem que tinha, um fusca 1978, e

resolveram investir todas as economias da família para a abertura do primeiro Instituto Beleza

Natural, em 1993. Zica contou com o apoio do irmão, Rogério Assis, pois fazia testes do

creme em sua cabeça, e também com o apoio da amiga Leila Velez.

Assim, em função da experiência adquirida por Leila Velez como atendente do

McDonald´s, a mesma ajudou a organizar o processo produtivo do Beleza Natural, em

diferentes etapas de produção, com redução de custos e otimização da prestação de serviços.

O objetivo principal do instituto era aumentar a oferta deste tipo de serviço para o maior

número de consumidores que tinham os cabelos crespos, ondulados e volumosos. Contudo, as

habilidades de cada sócia foram decisivas e complementares para a implementação do

negócio, e aplicadas para o crescimento produtivo e de mercado.

Figura 14: Zica e Leila no Day1: “Os sonhos que eu tenho não têm limite”

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152

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=lSAk00uB0AA>.

5.3.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

A imagem acima (Figura 14) apresenta um plano geral do palco, com a presença das

duas empreendedoras: Heloisa Helena Belém de Assis Marinho (que iremos chamar como

Zica, forma em que ela normalmente se apresenta na mídia em geral) e, ao seu lado, de

vestido branco, Leila Velez, sua sócia. No canto superior do palco, temos a presença de uma

ilustração que apresenta duas mulheres com o cabelo crespo, ondulado e volumoso em uma

linguagem que denota identificação com outras pessoas a partir de um discurso social de

representação da etnia negra. A ilustração com a foto das duas mulheres, dando destaque aos

seus cabelos ondulados, torna-se uma representação social do indivíduo que tem o mesmo

tipo de cabelo, o que conota uma interpretação de sentido centrado nos discursos sociais

enquanto individualidades (identidade e ações) que compõe esta história de vida e trabalho.

A narrativa autobiográfica de transformação das empreendedoras Zica e Leila tem

como tema de palestra do Day1 “A fórmula da autoestima”. Semelhante às outras palestras do

Day1, o vídeo apresenta a exposição de um palco, plateia e as duas empreendedoras, inseridas

neste mesmo cenário. Esta foi uma das primeiras palestras do Day1 Endeavor com a presença

de mulheres, ocorrida em onze de novembro de 2012. Observamos que a arquitetura do

cenário utilizado apresenta elementos visuais mais simples e com ilustração da imagem

projetada sem muitos detalhes ou tratamentos. O logotipo da Endeavor aparece de forma

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explícita, com menor destaque de iluminação. A palestra ocorre sem música de fundo.

Não encontramos em nenhuma das falas das protagonistas uma referência explícita de

datas específicas de seu percurso de vida, mas o nosso maior referencial é o dia onze de

novembro de 2012, quando ocorreu esta palestra do evento Day1, o que nos revela, portanto,

uma relação de espaço e tempo que marca o contexto da sociedade contemporânea em seu

modus operandi.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

A trajetória de vida das duas sócias (Zica e Leila) é marcada pela presença de várias

pessoas que tiveram importância em suas relações sociais. Destacamos o irmão de Zica,

Rogério de Assis, os pais de ambas empreendedoras, a prima de Zica, funcionários do Beleza

Natural e os consumidores que frequentam esta empresa.

Como exemplo, temos a representação e relação dos pais de Zica em sua vida no

enunciado em que menciona: “meu pai era biscateiro, a minha mãe era lavadeira, e lá em casa

quem tivesse idade pra trabalhar tinha que trabalhar para sustentar os mais novos”. Há aí uma

intertextualidade que dialoga com o mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011; FÍGARO,

2008), apresentando o exercício de profissões não valorizadas e com salários inferiores. Como

subentendido, o biscateiro representa aquele indivíduo que não tem uma profissão

institucionalizada e uma educação formal. Na representação identitária de lavadeira, trata-se

de um serviço doméstico em que não se utiliza o conhecimento intelectual, também

considerado como um trabalho, na maioria das vezes, informal, em que se tem ganhos baixos.

Soma-se a isso a passagem da fala de Zica que menciona a presença dos 13 irmãos

como forma de representar uma família humilde e sem recursos. Um dos irmãos se destaca

em sua narrativa: “Peguei meu irmão pequenininho, na casa era lei, aliás, até hoje, os mais

novos tinham que obedecer aos mais velhos; eu peguei ele garotinho, peguei ele, vem cá que

eu vou fazer experiência em você”. Este irmão é o Rogério Assis, que serviu de “cobaia” para

as experiências com o produto (creme) em desenvolvimento que alisava os cabelos. Na cena

abaixo, temos mais uma vez uma posição de câmara em plano geral, que mostra as duas

empreendedoras e reforça na imagem do telão, com a projeção em Power Point, diferentes

imagens de tipos de cabelos, crespos, ondulados, volumosos, tipo black power.

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Figura 15: cobaia

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=lSAk00uB0AA >.

Temos a presença de um interdiscurso com diferentes formações discursivas da

educação familiar e do trabalho, pois ocorre um subentendido da relação de trabalho de Zica

que se utiliza de seu irmão mais novo para experimentar a fórmula do creme que alisa

cabelos. A relação com a amiga Leila, o marido, a prima e com os clientes legitima os

momentos (antes e depois) de Zica ter descoberto a fórmula de sucesso que deu origem à

empresa Beleza Natural. Dando continuidade, em outra fala revela:

Fui convencer o marido a vender o único fusca-táxi, que era o bem da família, o único bem da família, porque eu já era casada e tinha três filhos. E

ele não tinha dinheiro, era aposentado, comprou um fusca pra sustentar a

família.

Em seguida temos o enunciado: “e convidei a Leila e o Rogério. O Rogério, aquela

cobaia do meu irmão, aquele que foi cobaia, o meu irmão, ele veio, se deu bem né, gente, se

deu bem. Foi cobaia e veio trabalhar”. E, por último encontramos a narrativa que marca a

presença de consumidores do seu produto: “A gente não queria, a gente nem pensava em

dinheiro, a gente queria levantar a autoestima daquelas pessoas que sofriam como eu com o

cabelo”. Nestes discursos de Zica, encontramos a formação discursiva de diferentes campos

(BOURDIEU, 2009) – econômico e trabalho – mas que estão imbricados na sociedade de

consumo contemporânea. Existe, também, um não-dito que consagra a importância do

dinheiro no desenvolvimento pessoal e profissional, no caso da Zica a falta do capital era

motivo de preocupação para a sobrevivência da família e demarca um dito expresso na venda

do automóvel como forma de investimento.

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Entretanto, há concomitantemente um lugar de fala de Zica que confere ao bem fusca

a importância do dinheiro para o investimento e constituição de sua empresa, o que legitima

as práticas inseridas em um mercado neoliberal. Quando a protagonista afirma não pensar em

dinheiro, na verdade, está ocultando o propósito de sua intenção enquanto empreendedora.

O irmão-cobaia e a amiga Leila, por outro lado, reforçam uma memória discursiva

centrada na educação familiar e no campo laboral, pois o irmão servia de cobaia e teste para

Zica aplicar em seus cabelos (representação de cabelos ondulados, duros, volumosos e

cacheados) o produto que ainda não tinha sido plenamente desenvolvido. Emerge uma

representação das práticas laborais da empreendedora que testava as matérias-primas na

tentativa de conseguir acertar a fórmula do creme que iria alisar esse tipo de cabelo. Por fim,

Zica, em um discurso explícito que conclama o “nós” (a gente), ou seja, articula outras vozes

da sociedade em seu discurso. A partir desse ponto destaca que os clientes que frequentam o

Beleza Natural buscam a solução alternativa à demanda comum de adequar-se a um padrão

hegemônico de beleza, representado por cabelos lisos. Obviamente não podemos deixar de

considerar a presença do interesse econômico envolvido na comercialização de um serviço

que está atrelado ao capital e, portanto, ao processo da cadeia produtiva destas

empreendedoras

No que concerne à questão da interligação de vidas, agora com a presença da fala de

Leila Velez, ressaltamos que a mesma teve contato com Rogério Assis, irmão de Zica,

trabalhando no McDonald´s, e, por intermédio dele, conheceu Zica. Na sequência, expõe que:

“Eu comecei a trabalhar com 10 anos e eu era especialista em logística. Como assim? Meu pai

era porteiro de edifício na zona Sul do Rio de Janeiro e minha mãe lavava roupa pra fora”.

Nesta fala, encontramos certa semelhança na origem de vida das duas empreendedoras.

Ambas vieram de famílias sem poder aquisitivo, começaram a trabalhar muito cedo e viviam

em comunidades carentes no Rio de Janeiro. Na narrativa autobiográfica de transformação de

vida, encontramos uma formação discursiva marcada pelo trabalho realizado desde o período

da infância. O não-dito e implícito desta fala é porque a linguagem especialista de logística é

uma forma, em tom de brincadeira, que Leila utiliza para dizer que fazia as entregas das

roupas que a mãe lavava para diferentes pessoas. No enunciado se observa a presença de um

discurso de senso comum de exclusão das pessoas que pertencem a comunidades carentes,

como forma de preconceito.

Dando continuidade, em outra fala Leila menciona: “nós treinávamos essas meninas,

enquanto era um processo simplificado, porque elas faziam eram especialistas em cada etapa

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do serviço”. A palavra “nós” apresenta uma representação simbólica não explicitada que

abarca as protagonistas e funcionários do Beleza Natural. Ao mesmo tempo, temos a

representação simbólica do “nós” que apresenta as vozes de Zica, Leila e de todos os agentes

da sociedade que trabalham no setor de cosméticos, incluindo-se os técnicos, que ensinam às

novas meninas o ofício do trabalho. Neste cenário, encontramos também a marcação do

discurso de gênero, reforçando a ideia do empreendedorismo feminino empregado no Beleza

Natural. Assim, devemos considerar que este ramo de beleza e cosméticos é

predominantemente exercido pelo público feminino.

É importante destacarmos que em uma das falas das protagonistas, as mesmas

mencionam que muito clientes do Beleza Natural se tornaram funcionários, representando,

assim, o mundo do trabalho e suas representações sociais. Leila menciona em seu enunciado,

novamente, a relação das pessoas com a empresa Beleza Natural: “Era quase como se fosse

um Brasil invisível, e a gente queria fazer para essas pessoas que eram como nós”. Ao se

posicionar em relação ao Brasil invisível, fala-se de diferentes formações de discursos

imbricadas no problema de gênero, na questão de raça, no discurso hegemônico da beleza e na

diferença de classe. Na interligação com as pessoas, encontramos o enunciado, “queria fazer

[...] eram como nós”, esta prática discursiva tenta aproximar e igualar as falas das

empreendedoras à voz ofuscada das pessoas e vozes presentes no contexto social que

convivem com o mesmo estranhamento de Zica e Leila em relação aos cabelos e de serem

originárias de uma conjuntura familiar de menor poder aquisitivo, o que demostra a existência

de um preconceito e diferenças de classes presentes na contemporaneidade.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Dando prosseguimento a esta narrativização da vida, demarcamos algumas falas que

apresentam os valores e práticas das sócias Zica e Leila no Beleza Natural. Em seu enunciado,

Zica menciona:

E aí eu tive que alisar o cabelo, como a escova progressiva hoje. Alisei, fui

trabalhar numa boa, tudo bem, mas eu não era feliz. Eu não era feliz porque

eu não tinha a realização do meu sonho, porque quando o meu cabelo molhava, mesmo sendo um bolo de cabelo, ele pesava. E aí era um sonho,

porque eu queria era aquilo, eu queria balançar o cabelo

Nesta fala explicitada por Zica, encontramos uma narrativa autobiográfica de

transformação de vida (ARFUCH, 2010) que se apresenta em dois momentos: a vida antes e

depois do Beleza Natural. O discurso de transformação pode ser interpretado como uma

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maneira de o indivíduo operar em linha com o modo de vida do grupo social ao qual pertence,

no caso específico, das pessoas que desejam alterar a aparência do seu cabelo. Ao mesmo

tempo, ocorre a presença de uma narrativa de transformação relacionada à autoajuda

(ILLOUZ, 2011), em que algo pode ser alterado, com o objetivo de fazer que o indivíduo

alcance o sentimento atravessado pelo imperativo de felicidade tão questionado por Freire

Filho (2011), que é um comportamento valorizado pelas pessoas em nosso contexto social.

Aqui, a condição de não ter felicidade está relacionada a uma fala explicitada de

imposição de um ideal de beleza hegemônica (o cabelo liso). É um discurso que exalta a

representação simbólica de valor estético e com relevância pessoal e coletiva; é um

sentimento de representação social valorado também pelas práticas da cultura empreendedora,

ao ponto de ser criado um bem de mercado, o que confere uma demanda latente dos serviços

prestados pelo Beleza Natural.

Dando prosseguimento a sua transformação de vida, no enunciado a seguir temos a

narrativa de alta performance (EHRENBERG, 2010), que confere a Zica e a Leila uma aura

de empreendedoras bem-sucedidas e o orgulho de ambas, como sócias do Beleza Natural:

E eu tenho muito orgulho de falar o instituto de beleza Beleza Natural, 12

institutos. De 4 colaboradores, tem 19 anos a empresa tá, gente, de 4 colaboradores nós temos 1500 colaboradores, 1500 pessoas, sendo que 1410

são mulheres. A oportunidade, muitas delas com a oportunidade do primeiro

emprego, que a Leila vai falar um pouquinho também. E nós temos uma

fábrica que se chama Cor Brasil, que produz 300 toneladas de produto mensalmente, só para o Beleza Natural. Nós temos vários produtos na linha,

mais de 70 produtos na linha já.

Já a sócia Leila diz que:

A gente tem em torno de 1500 colaboradores, com desejo de chegar a 15000

nos próximos 7 anos. Tem toda uma estrutura de gestão e de qualidade, a

gente já funciona como se a gente tivesse uma empresa pra ser multiplicado em todo o Brasil e no mundo. Então com muito controle rígido de qualidade,

com muita preocupação em manter a essência do negócio, independente se

ele tem 1 ou 1000 clientes, esse é o nosso desejo, manter esse desejo de

servir sempre com muita qualidade.

Encontramos a representação social, que procura diferentes formas de se produzir

enquanto individualidade e que depende do potencial de aprendizado de cada indivíduo, no

caso específico de todo aprendizado e vivência de Zica e Leila. Também temos a

intertextualidade que atravessa a posição e lugar de fala da alta performance quando fica

explicitado as habilidades técnicas e de conhecimento das duas sócias, que foram

implementadas no fazer e gerir das atividades laborais do instituto.

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Trazemos igualmente algumas outras narrativas da sócia Leila no sentido de

apresentar a sinergia de valores e pensamentos das duas sócias em suas ações de trabalho e

vida pessoal. Neste sentido, extraímos do vídeo o enunciado a seguir, em que Leila menciona

a preocupação, no início de sua carreira, ainda adolescente, de ter um emprego com carteira

assinada e a importância desta conquista em seu lugar de fala:

“Depois eu passei a buscar um emprego formal, já estava com treze pra quatorze anos e consegui um emprego no McDonald’s. Falei: “Nossa, tenho

carteira assinada, vou poder ter meu salário fixo ali mensalmente”. Achava

aquilo o máximo”.

Encontramos uma formação discursiva que atravessa a questão de trabalho e emprego

formal (ANTUNES, 2013) em que apresenta a voz e discurso que fala da precarização do

emprego (SOUZA, 2010) que no Brasil é um fato recorrente em função da escassez de postos

de trabalho. Ainda é extremamente comum, por exemplo, vermos muitos indivíduos

trabalhando de maneira informal. Portanto, aborda-se a importância de se ter um trabalho

formal e registrado como algo relevante para as pessoas, principalmente para as novas

gerações, que encontram sérias dificuldades de conseguir o primeiro emprego. Conseguir o

emprego no McDonald´s tem uma interpretação simbólica de sentidos, pois está atrelado ao

início de carreira, indicando uma ponte para o engajamento na “lógica empreendedora”

(CASAQUI, 2015b, pg. 44).

Em outro momento, Leila menciona todo o conhecimento e experiência que foram

adquiridos em função de sua passagem no McDonald´s e que foram agregados à sua vivência

de trabalho. Em sua narrativa “Eu trouxe toda a visão que a gente tinha aprendido no MBA

McDonald’s de dividir o trabalho em etapas, e cada etapa é feita por um especialista como se

fosse uma linha de montagem”, temos um discurso na primeira pessoa que conta ter sido Leila

a responsável por trazer novas técnicas ao Beleza Natural em função das experiências

adquiridas.

A voz da empresa McDonald´s é utilizada para compor o lugar e posição de fala de

Leila, agora como empreendedora, sendo colocada como autorrealização, a partir da

implementação de tais processos em sua empresa. Também o McDonald´s tem um não-dito

comparado ao campo educacional, porque “MBA” (Master Business Administration)

representa a formação discursiva de executivos que estão fazendo uma pós-graduação em

administração e negócios, no sentido de atender às demandas de conhecimento e estarem

atualizados, em linha com as exigências e valores das empresas de mercado, buscando a

melhor gestão de si.

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Leila também relata que:

A gente não queria fazer só um salão, a gente entendia na própria pele o que é ser classe C, o que é ter cabelo crespo, e a gente queria oferecer isso pra

muita gente. Então foi assim que o Beleza Natural começou, com um

conceito que não era simplesmente da beleza do fio, mas era de tratar a alma, de tratar o sentimento, da autoestima mesmo, de tratar a classe C como

classe A.

Neste lugar de fala, há a marca do discurso do empreendedor de si (FOUCAULT,

2008) inserido em uma lógica da sociedade do desempenho (HAN, 2015). Observa-se

também o discurso de autoajuda (ILLOUZ, 2011). Ao mesmo tempo, encontramos a voz do

campo econômico, porque estes discursos têm o objetivo de fazer com que as pessoas

consumam palestras, livros de autoajuda, testemunhos de superação, entre outras formas

midiatizadas de conhecimento e expertise para auxiliar em sua transformação. Entretanto,

estas estratégias comunicacionais têm a intenção de gerar lucro com a comercialização de

bens e serviços. Outro campo que se faz presente neste dito é a questão social, em que

encontramos a diferenciação entre classes socioeconômicas, o que atesta representações

simbólicas de mundo com valores distintos entre os grupos, mas com formas de agir e pensar

de indivíduos que fazem parte de um mesmo grupo e que têm interesses em comum.

O dito “tratar a alma” está relacionado à mudança que se deve fazer em um discurso

centrado na religiosidade, que atesta uma aura divina em que a transformação de si é algo

possível, porque, ao se transformar, pode-se sair de uma posição considerada ruim para outra

a partir da qual se possa alcançar o sentimento de felicidade, prazer e equilíbrio pessoal.

Trata-se de um tipo de sentimento que materializa a representação social deste quadro

normativo (DARDOT; LAVAL, 2016), contexto sistematizado de normas que age em função

de interesses socioeconômicos e tenta engajar a todos da sociedade em função da

autotransformação de si, transferindo a responsabilização de suas escolhas e decisões para

cada indivíduo.

Neste sentido, ocorre uma nova exigência de investimento de si, para estar preparado e

adequar seu conhecimento e aprendizagem de acordo com as exigências da representação

social em que o capital humano (FREIRE FILHO, 2011) deve estar em linha com as

demandas deste sistema neoliberal contemporâneo. No enunciado de Leila, destaca-se:

Então eu fui buscar qualificação para poder ajudar a empresa a crescer ainda mais. Então eu fui fazer administração na ESPM, fiz meu MBA na Coppead,

fui buscar conhecimento e fazer com que a gente buscasse também

profissionais, pessoas que tivessem experiência pra compor a nossa equipe e fazer com que o negócio crescesse muito mais rápido.

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Encontramos um discurso implícito relacionado à formação discursiva do campo da

educação e adequação deste capital humano, em que temos agentes sociais que representam

tais narrativas de transformação centradas no campo da educação formal e educacional, como

forma de aprimoramento da aprendizagem, em se investir neste eu interior (do ser) e de cada

indivíduo no sentido de estar preparado para o fazer tanto do lado pessoal como laboral, em

linha com as exigências do contexto social. Ao utilizar nomes de instituições de ensino como

ESPM e Coppead, a empreendedora Leila insere em sua fala uma posição de ter adquirido

conhecimento em escolas renomadas e que tem uma representação simbólica de prestígio, o

que confere a si uma transformação e aproximação com estes discursos legitimados pelo

mercado.

Finalmente, podemos observar que os valores e práticas de trabalho das duas sócias se

complementam no sentido de mostrar a importância de suas crenças que são sobrepostas aos

feitos do cotidiano. Em outro enunciado de Leila, a mesma menciona: “Eu acredito muito

nessa frase, essa palavra, aliás, desculpa, essa descrição Deus dentro de ti. Ela está dizendo o

significado da palavra entusiasmo. Entusiasmo quer dizer Deus dentro de ti”. Observamos

uma formação discursiva que conecta a religiosidade e o trabalho, que se cruzam para compor

a posição e lugar de fala da empreendedora. Fica explícito a voz e importância de agir,

também em função de crenças materializadas pela fé, cujas representações estão em um plano

divino e superior, sendo, portanto, um dogma. A questão da fé é atravessada pela palavra

“entusiasmo” como sendo um sentimento e valor utilizado no mundo do trabalho e nos

discursos de autoajuda, como mencionado, que se utiliza de depoimentos e conselhos para

ajudar na autotransformação das pessoas, ao mesmo tempo em que sinaliza um discurso

motivacional para que sejam engajadas nas práticas dessa cultura empreendedora a qual Leila

acredita e faz parte.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

Nesta etapa do percurso de vida das sócias, ficamos diante da narrativização da vida

apresentada basicamente por três períodos ou ciclos. Temos uma materialização dos discursos

centrados pela infância e adolescência; um segundo momento marcado pela

autotransformação das empreendedoras; e um terceiro momento centrado na fase atual, em

que as sócias se encontram na posição de serem empreendedoras bem-sucedidas, tendo suas

vidas espetacularizadas (SIBILIA, 2008) de forma midiática, para compor seus feitos

inseridos nesse fenômeno do tempo presente em que ser empresário de si e empreendedor de

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si são comportamentos valorizados pelas matrizes normativas do neoliberalismo (DARDOT;

LAVAL, 2016).

Neste sentido, a representação das vidas tanto de Zica como de Leila se

complementam na maneira de pensar e na forma de agir, em função de seus interesses

pessoais e de trabalho. Sendo assim, as duas sócias tiveram sua infância em comunidades

carentes, começaram a trabalhar ainda meninas – Zica aos nove anos de idade e Leila aos 12

anos –, o que nos apresenta a importância e representação das práticas do mundo do trabalho

em suas vidas (SCHWARTZ, 2011; FÍGARO, 2008).

Sobre esse panorama, Zica comenta que:

Eu comecei a trabalhar aos 9 anos de idade como babá, faxineira, empregada doméstica, mas tenho muito orgulho de falar isso aqui pra vocês, porque

nessas profissões, eu levo isso pra minha empresa até hoje, porque eu

aprendi muita coisa dentro delas. E aí quando eu fui trabalhar na casa dessas pessoas eu ganhava muito pouco, então eu tinha ainda, pra juntar, pra ganhar

mais um pouquinho, eu vendia cerâmica e vendia roupas íntimas. Mas eu

não queria só ser uma vendedora (…).

Observamos que Zica abre sua apresentação relatando que foi faxineira, empregada

doméstica e babá, tendo começado a trabalhar aos nove anos de idade. A ideia para seu

empreendimento surgiu, segundo ela, porque estava cansada de ter o cabelo ondulado e

crespo, tipo black power. Logo, o que emerge é a presença de um discurso de superação de

vida, que se vale da memória discursiva como fundamento à constituição de uma trajetória de

vida por ela marcada: de vítima de trabalho infantil a empreendedora de sucesso. Assim, nesta

primeira etapa, o trabalho é demarcado como fator de sobrevivência, de subsistência. Isso fica

comprovado pelo exercício de atividades laborais menos valorizadas pela sociedade. Ratifica-

se, pois, uma vida precária. Em sua fala, Zica demonstra a existência desse preconceito em

relação às funções exercidas ao dizer que: “(...) mas tenho muito orgulho de falar isso aqui pra

vocês”. Isso também caracteriza uma narrativa de superação, atitude muito valorizada pela

cultura empreendedora.

A conjunção adversativa “mas”, no entanto, tem um efeito de sentido duplo. Se por

um lado indica um prejuízo de valor por parte da sociedade no que se refere a atividades

laborais desconsideradas em sua relevância, por outro também pode revelar que seria

“normal” que Zica não mencionasse essa situação por ela um dia ocupada. Em tom autoral,

memorialista, incita-se a uma estratégia da superação dos obstáculos e se associa essa atitude

diretamente à noção de alta performance por intermédio do trabalho.

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O segundo ciclo de vida é materializado pela transformação de si, pela mudança das

ações de trabalho e de vida que são representados pelo Day1, dia em que as vidas das

empreendedoras são alteradas. O ponto de virada ocorre, assim, quando o trabalho passa a

estar direcionado à cultura empreendedora, como vemos no seguinte excerto:

Um dia eu estava na comunidade e aí minha prima falou assim: “Ô Zica”,

isso passaram 10 anos, 10 anos fazendo essa experiência toda, e aí a minha

prima falou assim, eu subindo do meu trabalho, tranquila, e aí minha prima

falou assim: “O que é que você passou no seu cabelo? Seu cabelo está com

menos volume, seu cabelo tá com brilho”. Gente, brilho antigamente só se

passasse óleo no cabelo, porque não existia, quem tinha brilho no cabelo,

brilho que eu digo, assim, um cabelo bem hidratado, sabe, com aquele brilho

bonito, só se você passasse óleo, não existia. Aí ela falou assim, e quando ela

falou pra mim “Eu também quero”, aí é que eu digo gente que foi o meu

Day1.

Isso fica claro com a utilização de dois tempos verbais: o passado e o presente,

representando, respectivamente, a vida anterior (inserida na memória discursiva) versus a

atual. Temos o cruzamento das vozes da protagonista e da sociedade, com presença dos ditos

e não-ditos do coletivo. Nessa articulação discursiva, encontramos a legitimação da identidade

e subjetividade da narrativa individual da empresária, que se coloca na posição de proprietária

ao mencionar: “Mas tenho muito orgulho de falar isso (minha vida de babá, empregada

doméstica e faxineira) aqui pra vocês. Porque eu levo isso para a minha empresa até hoje”.

Note-se que existe nessas palavras a articulação da posição social exercida atualmente, o

empreender, que é socialmente valorizado, em que o sujeito proprietário do negócio pode ser

considerado empreendedor individual e que enfrentou riscos para chegar a uma posição de

destaque, de sucesso.

Há de se salientar ainda os subentendidos encontrados em “minha vida de babá,

empregada doméstica e faxineira”, que trazem ao discurso privado e social que são

compartilhados publicamente: o trabalho modesto e simples, a falta de reconhecimento, a

pequena compensação salarial, entre outros, reforçando a emergência de transformação do

grande dia, o ponto de virada de se tornar empresária. Assim, verifica-se que esses discursos

dão margem a diversas representações simbólicas das vozes presentes e/ou ocultas, muitas

vezes pela seleção de discursos a serem acionados. Ao mesmo tempo, as falas de babá,

doméstica e faxineira continuam em uma posição inferior ao papel de empreendedora,

apresentando um não-dito que reforça a ideia de transformação com a possibilidade para

todos.

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163

Na mesma linha e materialização da mudança para Leila, diz: “A gente ficou amiga, e

a Zica testou no meu cabelo numa fase já mais adiantada. Graças a Deus, não caiu nem nada.

E aquele foi meu Day1, quando eu senti o meu cabelo transformado pela primeira vez”. Isso é

explicitado em um dito semelhante de Zica, de ter um sentimento de infelicidade em função

do tipo de cabelo que permitiu a mudança. Dando continuidade à sua fala, Leila

complementa:

Eu não tinha ideia do que era essa sensação que eu pude sentir pela primeira

vez. Eu falei “Nossa, a gente pode fazer disso um negócio, porque quantos milhares de mulheres também querem ter a mesma coisa?”. E a gente uniu

forças, a Zica com a fórmula e nós com ideia de fazer.

Da mesma forma que Zica, a sócia Leila tem o discurso explicitado de mudança, e

enxerga a oportunidade de desenvolver um negócio e empreender em uma fórmula, um creme

que iria atender às necessidades de várias pessoas, ou seja, iria espelhar as vozes da

sociedade, outros indivíduos que sofrem do mesmo problema: um negócio de mercado

colocado como um empreendimento social destinado a ajudar pessoas – mas que tem como

fim o lucro, cabe relembrar.

Encontramos nesta fala o cruzamento e interesses do campo econômico com a

presença do lucro na comercialização deste bem e serviço, e o campo do trabalho nas práticas

e ações que atendam aos interesses da cultura empreendedora, em que os indivíduos se

transformam no sentido de agir em linha com este sistema normativo que tenta engajar o

sujeito para desenvolver negócios próprios, sendo empreendedores de si em todos os seus

feitos.

Como representação do terceiro e último ciclo de vida, encontramos as

empreendedoras na posição atual, o que materializa uma vida bem-sucedida que apresenta a

intertextualidade da comprovação de alta performance (EHRENBERG, 2010) e

autorrealização nos negócios e na vida pessoal. Nisso existe a necessidade de expor os feitos

na forma de comportamentos e práticas bem-sucedidas, porque se coloca a necessidade de os

indivíduos serem reconhecidos pelo sucesso de seus feitos.

Nesse sentido, destacamos a seguinte passagem da apresentação de Zica:

Então, gente, foi um sucesso e um sucesso tão grande que a gente ficava

emocionada de ver pessoas contando a sua história de vida, querendo mais,

querendo alguma coisa que pudesse trazer de volta o respeito e o carinho pra si própria, sabe? E isso foi muito lindo pra gente, porque hoje, gente, nós

temos 12 institutos; porque hoje, gente, não são mais salões, são institutos de

beleza, que elas estavam ali, salão não é instituto, e eu tenho muito orgulho de falar o instituto de beleza Beleza Natural, 12 institutos. De 4

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colaboradores, tem 19 anos a empresa tá, gente, de 4 colaboradores nós

temos 1500 colaboradores, 1500 pessoas, sendo que 1410 são mulheres. A

oportunidade, muitas delas com a oportunidade do primeiro emprego (...). E nós temos uma fábrica que se chama Cor Brasil, que produz 300 toneladas

de produto mensalmente, só para o Beleza Natural. Nós temos vários

produtos na linha, mais de 70 produtos na linha já.

No encerramento de sua apresentação, Zica enfatiza os ganhos e conquistas de sua

vida empreendedora. Os indicadores numéricos comprovam esse intento. Estabelece-se um

novo contraponto com a antiga vida de provações. A transformação do fazer laboral surge

como característica relevante ao empreendedorismo. Em relação ao sujeito que nesse campo

adentra, a construção de si passa a estar condicionada pelas atividades do empreender.

Direcionar as ações cotidianas aos negócios e aplicar as práticas empreendedoras à própria

trajetória de vida passa a ser, como vemos em Zica, a representação social do perfil moral do

sujeito empreendedor (CASAQUI, 2015). Em um processo de retroalimentação, essas práticas

acabam por renovar e manter as bases do sistema capitalista vigente, alimentando seu novo

espírito (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Tal fala dita por Zica é reforçada pelo enunciado da sócia Leila, em que se salienta:

Como a Zica colocou, são 12 institutos, alguns deles com 3 andares, mais de

1500 metros quadrados, são enormes, são muito bem decorados, se você

entrar desavisadamente você pode achar que ali é pra classe A, que a estrutura física condiria com o atendimento de um poder aquisitivo muito

mais alto.

Fica explicitado neste dito que o Beleza Natural é fruto das ações de trabalho das duas

empreendedoras ao conseguir, por meio de números e resultados no lucro, alcançar

visibilidade e exposição midiática. A forma de gerir o seu negócio atesta, assim, o perfil e o

papel do empreendedor que atende interesses socioeconômicos distintos, inclusive com

diferenças de valores e preconceitos existentes nas classes A e C. Há um não-dito em que fica

implícito que o Beleza Natural, na posição de fala de Zica e Leila, conseguiu abarcar as vozes

pertencentes à classe A, que tem uma forma de agir diferente, onde encontramos uma outra

maneira de experienciar o mundo.

Neste sentido, em função da trajetória de vida apresentada, visualizamos narrativas

relacionadas ao trabalho bem-sucedido, superação de vida e discursos de autoajuda centrados

na transformação constante da história do eu das duas empreendedoras.

5.3.3 Síntese da análise

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A narrativa autobiográfica de transformação das empreendedoras Zica e Leila, no que

diz respeito à “Localização no tempo e no espaço”, é caracterizada, sobretudo, pela data em

que foi realizada a palestra no Day1 Endeavor (onze de novembro de 2012), configurando o

tempo presente (contemporaneidade) como a principal marca espaço-temporal.

Na trajetória de vida das duas sócias, verificamos como a prima e o irmão de Zica

(Rogério de Assis), os pais de ambas as empreendedoras, os funcionários do Beleza Natural e

os consumidores que frequentam o instituto representam as “Vidas interligadas”. Novamente

a família se converte em um lócus que resguarda valores que são (re)significados a partir das

práticas empreendedoras. No caso de Zica, a família também é um suporte material ao início

do Beleza Natural, como no caso de seu irmão, que serve de cobaia aos produtos que ela

estava desenvolvendo, ou o marido, que vende um carro para apoiá-la financeiramente. Já os

consumidores são trazidos à narrativa como um estímulo às atividades do Beleza Natural,

pois, segundo as empreendedoras, o objetivo seria levantar sua autoestima. Também se

comenta que muitas clientes do instituto se tornam funcionárias, justamente por conta dos

valores defendidos.

Referente à “Orientação pessoal das ações”, observamos que a presença de uma

narrativa de transformação relacionada à autoajuda e ao imperativo de felicidade. Esta, por

sua vez, vincula-se a uma estética específica: romper com um ideal de beleza (o cabelo liso).

A primazia da alta performance também surge como um elemento importante à

empreendedoras. Valores relacionados à educação e ao investimento em si também estão

presentes nas falas de Leila e Zica.

Finalmente, em “Momentos de vida”, de novo são três os momentos salientados: a

infância e a adolescência; a autotransformação das empreendedoras, definida pelas práticas

empreendedoras anteriores e posteriores ao Day1; e o momento atual de suas vidas, no qual se

enfatiza o sucesso de suas ações. A infância é retratada como um momento de dificuldades,

pois tanto Leila quanto Zica são provenientes de uma comunidade carente da cidade do Rio de

Janeiro. Também se destaca a entrada precoce de ambas as empreendedoras no mercado de

trabalho, algo que é retratado de forma positivada (HAN, 2015) por elas, como um aspecto de

importância à trajetória empreendedora que desenvolvem. Em um segundo momento, é

trazido à narrativa o grande dia da transformação, quando Zica, depois de 10 anos fazendo

experimentos, obtém sucesso com a fórmula capilar e sua prima comenta que gostaria de ter

um cabelo como o dela, com brilho e sem volume. Por último, descreve-se os dias atuais, a

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contemporaneidade, que é definida por meio de uma quantificação das ações e dos ganhos do

Beleza Natural como modo de ratificar seu sucesso.

5.4 ANÁLISE 4: LUIZA HELENA TRAJANO

Luiza Helena Trajano Inácio Rodrigues é presidente do Conselho de Administração da

rede de lojas de varejo Magazine Luiza (uma das maiores empresas do ramo eletrônico do

país), da qual é proprietária. É formada em direito pela Faculdade de Direito de Franca, em

1972, é administradora e começou a trabalhar aos 12 anos de idade como balconista na

empresa de seus tios, Luiza Trajano Donato e Pelegrino José Donato, fundadores do

Magazine Luiza. Em 1992, assumiu a superintendência do grupo Magazine Luiza. Luiza

também é vice-presidente do IDV (Instituto para Desenvolvimento do Varejo).

Na mídia em geral, é citada como uma das mais influentes mulheres do país. Dentre

inúmeros prêmios já recebidos, foi eleita em 2007 a 4ª executiva mais importante da América

Latina, pela Revista América Economia. Em 2008, foi homenageada pela Associação

Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade com o Prêmio

ANEFAC Mulher 2008. Em maio de 2009, Luiza Helena recebeu o prêmio Executivo de

Valor: Os Executivos Mais Competentes de Cada Setor da Economia.45

Figura 16: cena extraída da palestra de Luiza Helena Trajano no Day1 Endeavor

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=bew5KzrV-7w>.

45 Disponível em: <http://www.conarec.com.br/2014/06/16/luiza-helena-trajano/>. Acesso em: março de 2015.

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5.4.1 Síntese do vídeo

A apresentação de Luiza Trajano no Day1 é intitulada “A Generosidade Que

Transforma Negócios”. Luiza relata que nasceu e foi criada no interior de São Paulo, em

Franca. Diz ter aprendido muito com a “inteligência emocional” da mãe e com o viés

empreendedor e vocação para as vendas da tia. Em sua narrativização da vida, a

empreendedora menciona que veio de uma família dedicada à área de vendas e começou a

trabalhar cedo porque adorava comprar presentes de Natal. Assim, aconselhada pela mãe, foi

trabalhar ainda menina, aos 12 anos, para arcar com as compras destes presentes. Em função

disso, teve sua primeira experiência de trabalho.

No vídeo, a empreendedora expõe os valores que, segundo ela, norteiam sua vida e

seus negócios: honestidade, sonho de aprender de forma contínua e crença nas pessoas, na

inovação e no atendimento. Estes seriam os pilares de sua empresa. Luiza também diz

acreditar que as pessoas que trabalham estão o tempo todo vendendo alguma coisa para outra,

tanto no plano material como pelas ideias. Em suma, centra-se em eixos temáticos como

família, história de vida, trabalho e relacionamento entre pessoas, de forma prática e informal.

5.4.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

Luiza, na maior parte do tempo, apresenta-se em uma posição de cena e

enquadramento de câmara e imagem em plano geral, de corpo inteiro e falando para a plateia.

Durante a sua palestra, a empreendedora utiliza em sua narrativização de vida uma linguagem

informal para criar aproximação com a plateia.

Do começo ao fim do vídeo temos a construção de um cenário com imagens e

principais textos narrados por Luiza projetados em telão. Tais recursos tecnológicos são muito

utilizados na maioria dos eventos Day1 como forma de midiatizar a narrativa da

empreendedora palestrante. Neste contexto, referimo-nos ao palco do Day1, devidamente

construído, em que temos recursos como iluminação, música de fundo somente na abertura da

palestra, Power Point e o roteiro de fala das narrativas de vida, que foram devidamente

orquestradas para compor uma visibilidade estratégica, a refletir os ideais e valores da

agenciadora deste contexto, a organização Endeavor.

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Em função da linguagem e cenário do palco apresentados, temos a demarcação de um

dito que é marcado por um contexto contemporâneo que valoriza a exposição do indivíduo

por meio da visibilidade e espetacularização da narrativa do eu (SIBILIA, 2008), do que está

sendo dito, para convencer da importância de determinada história de vida e seus feitos.

Encontramos um enunciado que marca o tempo presente: “Então quando eu fui fazer

em 91... quando a gente foi criar a primeira loja eletrônica”. Esta fala direta de Luiza atesta

uma narrativa que se insere dentro da contemporaneidade e do neoliberalismo. Este enunciado

apresenta a presença de outras vozes que atravessam os discursos pertencentes a outros

campos, como da tecnologia da informação (T.I.), que em nosso entendimento reforça o

interdiscurso de globalização, sendo praticado pelo sistema socioeconômico vigente, ou seja,

uma diferente forma de interagir que se adapta às novas tecnologias e a este mundo conectado

por relações em redes (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Neste processo, Luiza se utiliza

de uma fala de outro campo de atuação como tecnologia para agregar ao seu discurso a

questão de interatividade e inovação e compor o seu enunciado na forma de agir em linha ao

sistema neoliberal e sua agilidade de renovação do sistema.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

A maioria das falas de Luiza está centrada na importância da família e dos negócios da

empresa com tradição e origem familiar. Por diversas vezes, a protagonista retoma a questão

da palavra “inovação”, que conota uma representação de sentido e comportamento na

condução dos negócios e assegura à empresa Magazine Luiza uma boa performance

financeira, que está atrelada à sua relação com pessoas; mas isso, segundo Luiza, é fortemente

influenciado por sua origem e criação familiar.

Ao citar no enunciado “Atendimento e inovação. E eu sou focada nisso, eu sou focada

nessas duas coisas, e essas duas coisas, minha gente, presta bem atenção, nós só vamos

conseguir através das pessoas”, encontramos a real intenção da empreendedora, que é estar

conectada com todas as pessoas. Ademais, em função desta inovação, ela e sua equipe

desenvolveram o projeto da loja virtual. Temos a presença do interdiscurso que se materializa

no enunciado “Quem inova e é o primeiro... é com a loja virtual, nós faturamos 100 milhões

de reais em 5 horas”, onde há um entendimento que dialoga com a importância que o dinheiro

legitima na vida de Luiza e que está atrelado a esta questão de T.I., que facilitou este processo

de comercialização. Temos o entendimento e o interdiscurso com o dinheiro e o seu

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significado que circula neste tipo de transação comercial, estando atrelado, também, aos

valores de agir para ter lucro; portanto, uma prática perseguida pela figura do empreendedor.

O lucro na venda de produtos e serviços tem ligação direta com projetos inovadores

implementados na cadeia produtiva do Magazine Luiza e aos interesses do fazer deste papel

da empreendedora.

As ligações familiares entre mãe, tios e filhos se estendem aos funcionários do

Magazine Luiza e marca os princípios e as crenças da empreendedora. A mesma se posiciona

como uma pessoa que acredita nos valores apreendidos em função desta relação entre família

e os sentimentos de afetos aí envolvidos. Na apresentação de Luiza, há um momento em que se

projeta no telão a imagem de seus tios, fundadores da empresa, e a fachada da primeira loja.

Figura 17: presença dos tios e fundadores do Magazine Luiza na apresentação de Luiza Helena

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=bew5KzrV-7w>.

Na imagem apresentada, temos um plano de câmara médio (Luiza aparece na posição da

cintura para cima). O contexto desta imagem marca a importância de seus tios em sua vida, ao

mesmo tempo em que apresenta as fachadas e local que deu origem ao Magazine Luiza. Temos a

presença de um dito demarcado pela foto e pelo enunciado (abaixo), que materializa a importância

deste relacionamento familiar e da vida interligada com tios, mãe, marido e filhos, que influenciou

sua formação e construção identitária. A presença e a marca do interdiscurso com vozes do campo

do trabalho, educação e vida pessoal atravessam este enunciado e legitimam o discurso social

anterior representado pelas imagens dos tios e pela citação da mãe, que demarca a memória

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discursiva e os acontecimentos do passado que são incorporados à sua fala, no sentido de

apresentar sua posição e comportamento de hoje.

Na sequência, menciona:

Eu tive uma mãe com uma inteligência emocional muito forte. Ela, com 12

anos, me deu uma assinatura do Estadão, na cidade de Franca, vocês

imaginam? E ela me mandava pra escola, falava “Vai, você é capaz”. Ela não ficava “Ai, cuidado no ônibus, onde vai parar, olha”. Não. Ela acreditava

em mim. E minha tia, que não tem nem um pingo de inteligência emocional,

mas é uma das pessoas mais empreendedoras que eu conheço. E é tão

interessante porque cada família é a sua história.

Luiza reforça que foi dessas relações familiares e dos afetos envolvidos que o Magazine

Luiza surgiu e prosperou, desde quando ela foi trabalhar com os tios. O destaque recai na

importância dessa origem familiar, apresentando como sua vida foi influenciada por estes valores

familiares.

É interessante observar que neste dito de Luiza se sobrepõem duas vertentes: a questão

familiar e a atividade do campo laboral em que a representação do mundo do trabalho está

relacionada ao gerir a vida. Quando menciona o termo “inteligência emocional”, fica

demarcada uma linguagem extraída de sua vivência laboral; portanto, de uma habilidade

referente ao capital humano (FREIRE FILHO, 2012), que é um comportamento que

demonstra capacidade de gerir os próprios sentimentos de maneira racional. Há uma mescla

de valores do trabalho transportados ao agir e crenças de família, que se originam também por

discursos de autoajuda (ILLOUZ, 2011). Ao se rotular um indivíduo que tenha inteligência

emocional versus outro que não tem, encontramos a materialização de um dito explicitado e a

conotação de diferenciação e valoração entre pessoas, que são características da sociedade

atual e que foram criadas para sugerir um enquadramento de mundo centrado na

autorrealização (GIDDENS, 2002) da protagonista desde a sua infância.

Ao mesmo tempo, quando menciona que a tia era empreendedora, já nos sinaliza a

marca do campo do empreendedorismo, no qual temos a representação do agente social que

foca suas ações no mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011) e o seu fazer em um negócio

próprio e em uma atividade empreendedora. Temos a presença da interdiscursividade

relacionada ao campo do trabalho que atravessa os discursos sociais, em outras palavras, as

vozes e o lugar de fala do ator social empreendedor.

Justamente por empreender, temos uma interpretação de sentido de ser uma pessoa

que detém habilidades técnicas e conhecimento para criar e manter um negócio. Este perfil de

indivíduo deve inovar, ter resiliência e trazer resultado financeiro, fruto da criação de um

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negócio de mercado que são algumas das características abordadas no capítulo dois deste

estudo e que reproduzem o sistema normativo com regras da sociedade neoliberalismo

(DARDOT; LAVAL, 2016). A questão do trabalho fica demarcada pela frase na qual ela se

refere à tia: “Mas é uma das pessoas mais empreendedoras que eu conheço”. A palavra

“empreendedora” materializa uma prática laboral de um campo específico da cultura

empreendedora e suas práticas. Aqui, encontramos a presença do interdiscurso de que Luiza

se utiliza para elaborar a sua posição de fala. Ao mesmo tempo, dá pistas do dito explicitado,

que ser empreendedor é um valor e comportamento social de forma de trabalho que exerce um

papel de importância em sua vida.

Fica explicitada a demarcação dos termos empreendedorismo e cultura empreendedora

espelhada na maneira de ser da tia e sua forma de agir, bem como a existência de uma ligação

afetiva entre ambas. Aqui, observamos a distinção que Luiza faz daqueles que são ou não

empreendedores; ocorre um não-dito implícito que silencia a fala de outros tipos de

trabalhadores presentes neste contexto social, bem como suas representações de mundo que

não estão marcadas neste processo.

É interessante notar que Luiza, o tempo todo, mescla valores extraídos da sua

formação familiar e a importância que têm em sua vida. Na frase “É tão interessante porque

cada família é a sua história”, encontra-se a palavra “história”, indicando uma discursividade

que sinaliza a vida e seus acontecimentos demarcados por uma certa trajetória – onde

indivíduo e sociedade se entrecruzam com a presença de uma memória discursiva.

Esta história de vida é única, mas pode se relacionar com tantas outras semelhantes,

que agem em função de certa afinidade com os valores e a forma de pensar de outros agentes

sociais. Assim, em cada história de vida temos a presença do interdiscurso (de discursos

anteriores ao dito) que altera o modo como elaboramos a nossa própria, nesta relação entre

indivíduo, família e o coletivo. Neste sentido, a família, representada por suas crenças na

forma de agir, acaba por influenciar esta história de vida que carrega consigo a relação com o

outro, como é o caso da empreendedora que, em função dos valores apreendidos em sua

formação familiar, tenta transmitir tais crenças.

A empreendedora não se esquece de citar a importância das relações com o outro.

Expõe que: “Então, assim, eu sou a solução junto com a minha equipe”. Fica demarcado que

só foi possível a realização de um conjunto de ações de trabalho porque envolveu sua equipe

para a solução dos problemas. Entretanto, fica explícito neste dito que a solução do problema

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está centrada nas mãos de Luiza, sendo ela a responsável principal. Ao mesmo tempo, temos a

presença de um não-dito que silencia a voz da alteridade para dar destaque aos feitos de Luiza

e ocultar a importância e experiência dos outros envolvidos neste contexto. Sabemos que

nesta exposição da trajetória de vida é importante que ocorra a espetacularização e o

reconhecimento dos feitos desta história de sucesso pelo viés e imperativo de felicidade

(FREIRE FILHO, 2011), para que seja destacada a gestão de seus feitos. A empreendedora

recebe o suporte de trabalho da sua equipe, reconhece a existência e importância desta equipe,

mas aparece como a mentora e a principal agente social. Assim, nesta história e narrativa do

eu para dar voz e importância à fala da protagonista, é necessário que ocorra o ocultamento

das outras vozes existentes, no sentido de sobressair e compor o lugar de fala de Luiza.

Este fato, por si só, revela a existência do individualismo e a exposição do empresário

de si mesmo, que é uma das marcas de nosso tempo presente, em que as pessoas destacam

seus feitos e a narrativa do eu em sua forma de agir, esquecendo de reconhecer a existência do

outro em suas vidas. Não se pode esquecer e muito menos se omitir que para existir a

narrativa do eu e espetacularização de si (idem) é preciso que ocorra o esquecimento e

existência do outro. Sendo assim, temos a materialização e valorização dos feitos individuais

de quem narrativiza a própria história como sendo o único responsável pela conquista do

sucesso e de seus feitos.

Não se pode esquecer a importância e marcação de gênero de Luiza na posição e fala

da protagonista enquanto mãe e o dito que materializa um discurso ligado ao campo da

educação dos filhos. Luiza, em seu enunciado, apresenta a importância da vida interligada

pela presença dos filhos em sua vida e na condução de seus atos.

Eu sou uma pessoa que o que eu mais desenvolvi nos meus filhos, além da generosidade na minha casa. Nunca nenhum filho sai da mesa sem dizer

muito obrigado à pessoa que está servindo, nenhum filho acha que o dinheiro

compra tudo pra nada, eles não saem de nenhum local, de um bar ou de um

elevador, sem dizer muito obrigado ao motorista que levou. Minha filha, quando casou, veio todas as pessoas que prestam serviço porque a primeira

coisa que eu aprendi que o dinheiro não compra tudo.

Fica explícito o seu lugar de fala no papel de mãe e a preocupação da empreendedora

em relação à forma de educar e ensinar os filhos, o que expõe a importância dos afetos e

sentimentos desta relação familiar. Ao mesmo tempo, materializa características e falas do

gênero feminino, da mulher e empreendedora que se posiciona e concretiza os valores

relacionados a procriar e cuidar da educação dos filhos, além de exercer suas atividades de

trabalho, dentro e fora do lar.

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Inserida neste contexto, a empreendedora valoriza a questão do respeito ao próximo.

Vale destacar na fala “o dinheiro não compra tudo” um discurso que apresenta a

representação simbólica e importância que a protagonista confere ao dinheiro em sua conduta

pessoal de vida e relacionada ao campo do trabalho. Aqui, torna-se importante destacar que na

sociedade neoliberal temos a presença de normas e condutas que são atribuídas em função do

papel exercido na sociedade. Encontramos um não-dito que é utilizado para compor a fala de

Luiza em uma interpretação de sentido que dinheiro tem o poder de corromper as pessoas, na

medida em que se valoriza aqueles que têm mais capital e bens materiais. Esta distinção e

valoração pessoal entre indivíduos e a relação e importância com o dinheiro faz com que

algumas pessoas queiram seguir pelas práticas da cultura empreendedora como forma de se

espelhar na conduta da empreendedora bem-sucedida em sua narrativa do eu (SIBILIA,

2008). Pois o sucesso apresenta um interdiscurso relacionado ao dinheiro e representação que

o mesmo confere, ou seja, revela uma centralidade do capital na conduta laboral de Luiza, que

é próprio do perfil empreendedor.

Dando continuidade à sua narrativa interligada com diferentes pessoas, no caso

específico com seus funcionários, Luiza apresenta em seu enunciado: “Então, assim, eu sou a

solução junto com a minha equipe”. Encontramos uma contradição no dito da empreendedora,

porque se Luiza é a solução (a mentora da solução) sua preocupação com o funcionário se

torna ofuscada e diluída, sendo a equipe uma ponte na conquista de seus projetos. Aqui ocorre

um não-dito que é o apagamento da voz de seus funcionários e nos apresenta um discurso que

reforça a questão do pensamento e ação centrados em características individuais de uma

sociedade de desempenho (HAN, 2015), em que se valoriza empreendedores de si mesmos.

Ainda que se tenha a informação que a gestão de pessoas lideradas por mulheres transita por

aspectos mais relacionais e afetivos (como mencionado no capítulo 1), a questão de se

preocupar com as pessoas não fica claramente demarcada pela protagonista e gera dúvida. Há

um não-dito que oculta a presença de seus funcionários e a existência do outro para que se

atinja os lucros da empresa. Neste sentido os sucessos destes feitos são creditados à figura de

Luiza em uma relação e forma individualizada, porque na história do eu se oculta a presença

do outro para se destacar os feitos da protagonista que está narrativizando sua vida.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Em vários momentos, a empreendedora retoma a questão dos valores aprendidos desde

a infância, em função dos conselhos transmitidos pela tia. A empreendedora herdou da família

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a prática de ser vendedora, considerada por Luiza como um valor de conduta alicerçado no

mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011) e pessoal. Em sua fala “É vendedor e tem que ser

vendedor honesto”, temos a marca e juízo de valor pessoal que o vendedor é um agente social,

portanto, que representa o trabalho (idem), sendo socialmente reconhecido como um

indivíduo que nem sempre é honesto. A questão de ser uma vendedora está relacionada ao

fazer do trabalho mercadológico; requer, pois, a gestão de si, atrelada, no caso de Luiza, ao

sistema normativo contemporâneo (DARDOT; LAVAL, 2016).

Dando continuidade à sua narrativa, menciona: “Não tem jeito, eu sou uma

vendedora”. Luiza se autointitula como uma vendedora. Encontramos um enunciado que tem

a interpretação de ser um indivíduo que se constitui por habilidade e conhecimentos das

práticas de venda; para isto, utiliza-se de técnicas de negociação em um processo relacional de

persuasão e convencimento de outras pessoas.

Em outra passagem, coloca: “Eu sou de família vendedora e sou de família vendedora

aonde não tem vergonha de ser vendedora e nunca vendeu nada que não existia”. Esta fala

possibilita a interpretação de um interdiscurso existente, que conota o entendimento de

preconceito da sociedade em relação às práticas exercidas pela figura do vendedor, pois, no

entendimento de Luiza, a frase “nunca venderam nada que não existia” remete a ter uma

conduta incorreta por parte do profissional da área de vendas, estando relacionado a alguém

que é desonesto porque não entrega o que foi vendido. Há, assim, um juízo de valor e

preocupação na fala da empreendedora de exaltar a questão honestidade, valor que ela

considera importante e destaca sua postura pessoal de agir em função dos feitos praticados

com honestidade. Temos um interdiscurso que tenta atrelar a voz da empreendedora como

uma prática do campo laboral onde não ocorre desvio, pelo menos em sua forma de agir.

Sendo assim, em função das narrativas apresentadas por Luiza, podemos entender a

existência de alguns valores e representações sociais construídas pela Endeavor, no sentido de

atender aos jogos e interesses da organização e de todos os agentes sociais que representam

este campo de atuação (BOURDIEU, 2009); no caso específico, atender às representações de

mundo do contexto social centrada nas práticas do empreendedorismo. Em função disto, a

protagonista foi escolhida para falar no Day1.

Ao mesmo tempo, o culto à performance (EHRENBERG, 2010) e as referências ao

modelo empresarial do Magazine Luiza são pontos importantes na narrativização de sua vida.

A empreendedora retoma, por várias vezes, a questão de ter apresentado algum projeto que

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comprove sua capacidade de gerir negócios com a presença de narrativas que foram “ditas”

como campanhas de promoção de vendas e a habilidade de atendimento do seu SAC (Serviço

de Atendimento ao Consumidor). Assim, Luiza vai construindo sua identidade como

empreendedora bem-sucedida, que escuta a voz de seus funcionários e dos clientes. Luiza

acredita que este sucesso ocorre porque a empresa valoriza a importância da comunicação e

do marketing. Temos aqui a utilização e marca de discursos pertencentes a outros campos de

atuação para dar credibilidade ao seu lugar de fala da narrativa empreendedora do presente.

Assim, encontramos a colocação de duas palavras (comunicação e marketing) que

conferem uma multiplicidade de vozes pertencentes a campos distintos de atuação

(BOURDIEU, 2009), com o propósito de vender mais, pois, para as empresas de mercado, a

comunicação e o marketing são práticas que andam juntas com o objetivo de multiplicar os

lucros e os ganhos financeiros. Também podemos considerar que a narrativização da vida de

Luiza apresenta um lugar de fala demarcado por um discurso de fé e religiosidade, que se

sobrepõem às questões de trabalho. Em seu dito “assim uma grande vantagem minha além da

fé, que eu tenho muita fé (...)” demonstra de forma clara e explícita que Luiza tem princípios

centrados na religiosidade. Trata-se de um modo de persuadir por meio de um discurso

motivacional que abarca outras vozes presentes nas falas das diversas religiões existentes,

sendo inseridas como um valor de conduta da protagonista que conota a importância da

religiosidade na vida desta empreendedora, tanto do ponto de vista pessoal como no trabalho

(na condução de seus negócios).

A questão de solução de problemas pode ser entendida como uma característica do

perfil empreendedor, valorizado pelo neoliberalismo, que acredita que o indivíduo tem de agir

para solucionar seus próprios problemas pessoais e/ou os da empresa e a presença de um

interdiscurso relacionado à prática do mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011). Neste

sentido, fica explicitado que as pessoas devem agir inseridas em função dos valores

praticados, também, no novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009),

em função de gerir a vida e o trabalho (idem) como sendo a solução para a subsistência

pessoal, empreendendo a si no trabalho e na vida, sendo uma forma de distinção social desta

protagonista.

Dando continuidade à materialização de suas práticas de vida, a protagonista legitima

sua preocupação com o lucro de sua empresa, o que significa ter ganho financeiro e boa saúde

financeira. Isso nos apresenta um não-dito e preocupação que a mesma dá à importância do

capital em sua vida. Este não-dito apresenta o valor e a representação simbólica que o

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dinheiro tem na vida da empreendedora, tornando-se um elemento que materializa, também,

uma forma de medir o agente social que é bem-sucedido em forma de retorno do capital

investido. O lucro está atrelado ao dinheiro, sendo valores próprios de julgamento de êxito

que revela o comportamento implícito das normas impostas pelo sistema neoliberal

(DARDOT; LAVAL, 2016).

Para comprovar e dar visibilidade de seus feitos, Luiza menciona como exemplo de

alta performance em seus feitos a solução de problemas em seu enunciado: “Quando a gente

foi criar a liquidação, nós criamos a liquidação às 5 horas da manhã, que mudou o varejo

brasileiro do Brasil. Varejo, uma empresa do interior criou uma liquidação em janeiro que

abria 5 horas da manhã”. Este discurso reforça a importância que a empreendedora dá aos

projetos que foram implementados por ela e silencia a voz dos funcionários de sua empresa.

Ao mencionar o varejo brasileiro, encontramos o lugar na posição de ter sido a responsável

por mudar a forma do varejo trabalhar, portanto, com relação ao mundo do trabalho

(SCHWARTZ, 2011). Há um não-dito que representa outras empresas do varejo que não

estão relacionadas às práticas produtivas exercidas pelo Magazine Luiza, ou seja, pela

protagonista, como são os exemplos da venda automotiva e farmacêutica, que também

representam este campo de atuação. Encontramos um interdiscurso de outros campos de

trabalho que são inseridos em sua fala para compor seu discurso motivacional de usar o Brasil

como forma de abarcar todos os cidadãos que também fazem parte deste país.

Na frase, “a gente” marca a gestora em sua atuação na empresa e na sua relação com

os outros. O exemplo de solução de problemas apresentado por Luiza reforça a importância

deste feito como forma de materialização dos resultados alcançados e das decisões assumidas.

É de conhecimento geral que a narrativização da vida implica em constante posicionamento e

reposicionamento em relação às mudanças ocorridas nos últimos anos, ainda mais com

avanços nas TICs. Nesta fala, encontramos uma exposição midiática que valoriza o que foi

idealizado pela empreendedora e reconhecido por parte da sociedade, sendo uma maneira de

reconhecer e dar visibilidade à sua alta performance. Contudo, sabemos da necessidade

intrínseca dos indivíduos de serem aceitos, tendo a aprovação dos feitos realizados como

forma de atestar sua importância perante o crivo social, bem como a valoração aos feitos

individuais na intenção de justificar uma vida em seus acontecimentos.

Outro ponto que nos chama a atenção na fala de Luiza quando utiliza um nome com

projeção e reconhecimento mundial como a figura do ex-piloto de fórmula 1 Ayrton Senna,

em seu dito: “Porque eu sou uma pessoa assim que eu sou inconformada e eu celebro, nós

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cantamos música do Ayrton Senna, fechou a cota.”. Ressaltamos que Ayrton Senna foi

corredor de Fórmula 1, três vezes campeão mundial, considerado um exemplo de indivíduo

determinado e que soube superar seus limites a ponto de morrer em função de sua obsessão

em ser o melhor. Este discurso de recorrer ao nome do piloto apresenta uma memória

discursiva e, de acordo com Casaqui (2015, p. 2), “aparece como ponto de partida do

raciocínio do ídolo do esporte, reforça o mito da superação pessoal como forma de alcançar o

sucesso, com a legitimação de quem era o maior ídolo nacional à época”.

Encontramos a existência de uma marca textual e imagem do piloto que se

transformou em uma figura mítica. Existe a presença do discurso motivacional utilizado por

Luiza como um exemplo de persistência e esforço de vida que pode inspirar outras pessoas a

agir em linha com a determinação do piloto. Luiza se iguala aos pensamentos que foram

praticados pelo piloto em sua conduta e determinação na vida e em tudo que praticava como

forma de materializar a intertextualidade presente nesta fala que foi incorporada ao seu

enunciado. Assim, acreditamos que empreendedora se utiliza da imagem identitária de Ayrton

Senna para se igualar a alguns valores e crenças construídos por ele, para compor a sua

enunciação e lugar de fala enquanto empreendedora e, ao mesmo tempo, criar relevância ao

que foi dito.

Neste sentido, encontramos também a presença do interdiscurso que atravessa outros

discursos existentes no diálogo social como a voz do batalhador brasileiro (SOUZA, 2010),

centrado em princípios de fé e por uma prática discursiva motivacional que legitima a fala de

Luiza. Assim, sabemos que o Ayrton Senna foi citado e colocado na posição de exemplo a ser

seguido.

Em outro enunciado, Luiza novamente se utiliza de outro nome com representação

simbólica no contexto social “(...) mas eu aprendi com o Peter Drucker: faça perguntas”.

Ressaltamos que Peter Drucker é considerado referência na administração de empresas em

âmbito mundial. Luiza explicita que “eu faço perguntas muito grandes”. Fazer perguntas é

uma maneira de compreender e inserir as vozes do discurso social à sua fala e uma forma de

interagir e se posicionar em relação ao mundo, sendo um discurso de mercado e mundo do

trabalho utilizado para emocionar e convencer a plateia ao se igualar à representação dos

feitos de Peter Drucker. Fica claramente demarcado nesta prática discursiva que a

empreendedora se utiliza da referência do discurso competente (CHAUÍ, 2006) representados

por Senna e Drucker para estar no mesmo patamar e posição dos valores destas pessoas. É

uma forma de agir em sintonia com o pensamento destas figuras publicamente reconhecidas.

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Ao mesmo tempo, a maneira como a empreendedora narra a sua trajetória de vida

conota uma simplicidade e utiliza uma linguagem informal com a intenção de criar

proximidade com a plateia. Na linguagem das narrativas materializadas por Luiza, temos uma

visibilidade da empreendedora que fala para qualquer tipo de plateia, característica própria de

uma pessoa que tem sua identidade associada a vendas no varejo; portanto, deve ter uma

linguagem informal e próxima para persuadir o maior número de pessoas ao seu redor.

Este tipo de linguagem é um discurso motivacional e tem a intenção de persuadir e

aproximar pessoas. É um modo de inspirar a agir da mesma forma da empreendedora e fazer

com que as pessoas associem a imagem de Luiza à empresa Magazine Luiza, ou seja, fazer

com que as pessoas comprem mais em sua empresa. De certa maneira, esse tipo de linguagem

pode cativar e surpreender as pessoas expostas a este discurso. É um discurso de especialistas

(GIDDENS, 2002), que tem a intenção de persuadir e envolver e faz com que as pessoas se

interessem pelo o que está sendo dito.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

Encontramos a presença de um primeiro momento e ciclo de vida pautado pela

infância e as ações de vida alicerçadas pelo entendimento dos valores consolidados por

princípios de honestidade, respeito ao próximo, a interpretação simbólica do trabalho no

varejo e sua importância nas vendas. Neste primeiro ciclo, Luiza destaca sua infância e os

valores adquiridos pelos exemplos e influência da família.

No discurso da empreendedora, há a referência e a presença da mãe como alguém que

lhe fez acreditar em si mesma, portanto, a incidência da alteridade presente nesta relação

ajudou a desenvolver este valor da identidade de Luiza. A mãe de Luiza acreditava na filha a

ponto de deixá-la ir sozinha para a escola. Temos nesta relação um dito implícito relacionado

ao indivíduo com capacidade de autorrealização, pois a mãe da protagonista acreditava que a

filha era capaz de fazer várias atividades de maneira independente. Assim, nos sentimentos de

afetos envolvidos nesta relação entre mãe e filha encontramos um subentendido relacionado a

educação familiar. Acreditar na capacidade, ou seja, acreditar nos feitos da filha é um dos

valores de construção identitária que apresenta um implícito ligado a práticas discursivas de

comportamento relacional.

Ao mencionar a sua relação com a tia, considerada empreendedora por Luiza,

demarca-se um campo de trabalho atravessado pelo discurso das práticas da cultura

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empreendedora. Ao mesmo tempo, marca a interpretação de sentido de vários campos de

atuação como trabalho, vida pessoal e educação familiar. Assim, a tia representou um papel

fundamental na vida da empreendedora, ao lhe ensinar as práticas e o caminho do fazer

centrado no agente social representado pela figura do vendedor. Ser vendedor está atrelado a

uma memória discursiva que circula por uma multiplicidade de representações simbólicas da

sociedade. Assim, a tia influenciou os passos de Luiza no sentido de seguir a área de vendas,

compreender o que é ser vendedor e ter o gosto pelos negócios da família (loja de varejo).

O segundo momento e ciclo de vida da empreendedora, centrado na transformação

empreendedora, não é demarcado de forma explícita, mas há a sugestão de que este seja o dia

em que a empreendedora foi trabalhar em seu primeiro emprego, aos doze anos, em uma loja

de varejo. Lá, aprendeu as funções de vendas e adquiriu o gosto por este tipo de atuação

laboral, o que lhe permitiu a transformação das ações de trabalho e vida, direcionando sua

trajetória de vida. Assim, a escolha por vendas deu continuidade aos negócios da família, o

que possibilitou Luiza chegar à posição de empreendedora e gerir o seu próprio negócio.

Este momento também pode ser marcado quando Luiza revela que adorava comprar

presentes de Natal. Assim, estimulada pela mãe, foi trabalhar para ganhar dinheiro e comprar

os seus próprios presentes. Ter conquistado a primeira experiência de trabalho foi a grande

transformação de sua vida, porque adquiriu conhecimentos em vendas, aprendeu tanto na

teoria como na prática ser vendedora até se tornar adulta, em que chegou na posição

hierárquica de CEO do Magazine Luiza. Vale destacar que o dia de transformação, o Day1,

representa o momento de mudança e marca o dia em que a empreendedora se renova. Esta

transformação pode ser considerada uma prática da sociedade presente de ser o indivíduo o

único responsável por si e por sua vida.

Na fala a seguir, verificamos que a empreendedora foi exercendo suas ações na cultura

empreendedora quando menciona o Day1, sendo escolhida e reconhecida para falar neste tipo de

evento.

E aí a gente foi crescendo, falaram pra gente contar o Day1. Nossa, gente, é

todo dia Day1 pra mim, todo dia é Day1, porque eu sou uma pessoa assim que eu sou inconformada e eu celebro. No outro dia, começa tudo de novo, e

porque, assim, eu sou uma pessoa inconformada. Eu adoro, eu adoro

produzir, eu adoro alinhar pessoas, e aí teve momentos muito importantes.

Neste sentido, podemos aferir nesta linguagem explicitada que um dos motivos de

Luiza ter sido escolhida para falar no Day1 tem relação direta com a alta performance da

empreendedora, com o crescimento da sua empresa, fato que representa uma boa gestão nos

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negócios. Esta narrativa possibilita dar visibilidade a Luiza e seus feitos enquanto

empreendedora. O fato de Luiza ter sido escolhida já nos revela interesses da agenciadora,

pois quando Luiza menciona que cresceu e foi chamada para estar no palco do Day1 temos

um interdiscurso relacionado com o campo do trabalho que nos desperta a atenção para o fato

de que a protagonista não seria escolhida caso sua empresa estivesse passando por

dificuldades financeiras.

Outro dito que merece destaque é o enunciado “Nossa, gente, é todo dia Day1 pra

mim, todo dia Day1”. Isso representa uma memória discursiva centrada nas normas da

sociedade de uma cultura empreendedora, que valoriza a transformação como forma de agir.

Assim, a prática discursiva da protagonista está intimamente vinculada aos discursos da

Endeavor, pois Luiza menciona ter um Day1 a cada dia, o que conota estar em constante

mudança para se adaptar às demandas e normas da sociedade.

A mudança de Luiza, em nossa interpretação, associa-se a fechar cotas e celebrar mais

uma conquista. É uma forma de a empreendedora atestar que a mudança está atrelada a bater

mais e mais metas. “Fechar a cota”, então, tem o significado intertextual do campo econômico

e relação com os resultados de vendas e nos negócios; está associado ao trabalho realizado

pela equipe. E fica explicito a importância do dinheiro na vida da protagonista.

Dando continuidade a esta transformação, já na fase adulta ocorre a necessidade de

legitimar seus feitos e sua existência em função desta alta performance. A protagonista, ao

apresentar os projetos que foram implementados por ela, utiliza-se de discursos do trabalho

que mencionam a criação da loja virtual, ações de promoção de vendas aos finais de semana e

a implementação do SAC, que demarcam falas ditas e vozes com formações discursivas

distintas dos campos de marketing, tecnologia e promoção-de-vendas, mas que comprovam os

feitos da protagonista e atestam as principais realizações da empreendedora, o que por si só já

nos revela a representatividade e importância do trabalho em sua vida.

Neste sentido, encontramos um comportamento que se espelha naquele indivíduo que

deve trabalhar e agir no sentido de obter os melhores resultados em tudo que pratica e ter alto

desempenho (EHRENBERG, 2010). Assim, Luiza é guiada por novas formas de superação de

si em tudo que faz, o que nos desperta o entendimento de ser um comportamento latente, nos

dias atuais, que circula e se sobrepõe, tanto no lado pessoal como no laboral. Este processo de

condução do trabalho e sobreposição com as atividades pessoais faz com que o indivíduo não

tenha plena consciência do motivo de agir em função do trabalho e das normas deste sistema

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normativo do neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016).

No terceiro momento de vida, encontramos Luiza na fase adulta, casada, com filhos e

consolidada por uma representação social de empresária bem-sucedida, reconhecida pelos

seus feitos em função de sua boa gestão nos negócios e resultados nos lucros. Neste momento

de vida, a empresária está legitimada em função de alguns projetos inovadores, de sua autoria,

que foram implementados no Magazine Luiza e que fizeram a empresa crescer. Assim, Luiza

apresenta a carta-credo que entregou ao seu filho por ocasião em que o mesmo conquistou o

seu primeiro emprego. Esta carta-credo representa as crenças e a forma de agir da

empreendedora na vida pessoal e laboral, ou seja, na condução de seus negócios.

Luiza enfatiza que esta carta se tornou um credo de sua empresa, sendo apresentada

para todos os funcionários que ingressam para trabalhar no Magazine Luiza. A carta aparece

em uma tomada de cena em plano médio, com a exposição do corpo de Luiza de costas

olhando para a projeção do telão. Esta carta se torna uma prescrição dos valores e crenças que

pautam a vida de Luiza, de sua empresa e na condução da educação dos seus filhos, tornando-

se as estratégias de condução corporativa como missão e valores da empresa Magazine Luiza.

Figura 18: cena da carta-credo que reforça a fala de Luiza

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=bew5KzrV-7w>.

Assim, na cena acima temos o reforço da narrativa de Luiza quando menciona a carta

e o texto que encaminhou a seu filho, o que explicita a importância dos pensamentos que

estão contidos nesta carta. A imagem reforça os textos de sua fala, que serão explicados a

seguir.

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Figura 19: cena de continuidade que apresenta o texto carta-credo do Magazine Luiza

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=bew5KzrV-7w>.

Na parte de cima da imagem encontramos um telão em que se projeta a fala escrita por

Luiza nesta carta. Temos a presença do logotipo do Day1, que já nós sinaliza uma mensagem

promocional e referência de um dos serviços prestados pela Endeavor, que é o Day1. Luiza

explicita, nesta carta ao filho, seus princípios e perfil moral de condução de vida, que são

repassados e transferidos para a maneira de agir das pessoas que trabalham em sua empresa.

Este episódio relevante de sua narrativização da vida é o momento que releva os principais

valores de sua conduta pessoal, que se cruzam à vida laboral e ao seu papel e fala de mãe.

5.4.3 Síntese da análise

A palestra de Luiza, no que se refere à “Localização no tempo e no espaço”, apresenta

um contexto contemporâneo que valoriza a exposição do indivíduo por meio da visibilidade e

espetacularização da narrativa do eu. Realça-se igualmente o ano de 1991, quando é lançada a

primeira loja eletrônica do Magazine Luiza, indicando a “atualidade” e o pioneirismo de seus

negócios, tendo em vista que nessa época as TICs (com destaque à Internet) ainda não

estavam plenamente difundidas e acessíveis nem no país nem em âmbito global.

Em “Vidas interligadas” verificamos a importância que a família adquire na narrativa

de Luiza. Isso se evidencia em vários momentos, por exemplo: a figura da mãe que a apoia na

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decisão de trabalhar (com apenas 12 anos de idade); os tios, fundadores do Magazine Luiza; e

o filho, que trabalha na empresa. Também notamos a proeminência dos funcionários como

importantes no discurso de Luiza, deixando transparecer que eles seriam uma espécie de

“família estendida”. Essas relações “familiares” são defendidas pela empreendedora como um

fator que fez com que seus negócios prosperassem.

A “Orientação pessoal das ações” salienta os valores aprendidos desde a infância,

sobretudo pela figura de sua tia. Ser vendedora e posteriormente herdar os negócios da família

surgem como um valor de conduta de trabalho para Luiza. Há também a menção a valores

concretos, tais como a honestidade e a fé. Eles são geralmente acionados como essenciais à

solução de problemas, prática estimada pela ideologia neoliberalista. Outra característica

desses princípios que é reforçada são os ganhos financeiros e a boa saúde financeira dos

negócios, salientada pelo imperativo da alta performance, fortemente presente em sua

narrativa. Por fim, o discurso motivacional se inscreve como uma constante, guiando sua

narrativização no que diz respeito ao público ao qual se dirige.

Finalmente, os “Momentos de vida” de Luiza apontam para três períodos distintos. O

primeiro referente à infância, pautada pela aprendizagem de princípios (honestidade, respeito

ao próximo, valorização do trabalho, etc.) que, em outro momento, são considerados

fundamentais aos empreendimentos. O segundo momento desse percurso de vida não está

explicitamente demarcado, mas subentende-se que seja o período em que Luiza vai trabalhar

na loja de sua tia, aos 12 anos de idade, fase que atua como uma iniciação no mundo dos

negócios (e do empreendedorismo). O terceiro ciclo se estende da consolidação e expansão

dos negócios da família (o Magazine Luiza) até os dias atuais, em que seus feitos são

visibilizados como um modelo de sucesso no Day1 Endeavor. Vale reportar que Luiza

assevera não ter apenas um Day1 em sua trajetória, mas que todos os dias são um Day1, ou

seja, são dias de transformação de vida.

5.5 ANÁLISE 5: LINDA ROTTENBERG

Linda Rottenberg é formada em direito, cofundadora e CEO (Chief, Executive Office

– diretora executiva) da organização Endeavor. Lidera o movimento global de

empreendedorismo há duas décadas, com sede em Nova York e 60 escritórios em todo o

mundo. É considerada como uma das “Melhores Líderes da América” pela US News e uma

dos 100 “Inovadores do tempo para o século XXI” da Times. É uma das principais

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especialistas em empreendedorismo, inovação corporativa e liderança. Frequentemente é a

principal oradora nas empresas da Fortune 500 e tem muitos estudos de caso de Harvard e

Stanford Business School que apresentam sua forma de agir. Rottenberg ganhou elogios por

seu trabalho pioneiro ABC e NPR, em que a declararam “a empresária whisperer” (pessoa

que sussurra). O Business Insider chamou-a de “Sra. Davos”, e, durante anos, ela era

conhecida como ”La Chica Loca” (A garota louca) por insistir que os empresários existissem

fora do Vale do Silício, nos mercados emergentes e crescentes.

Publicou o best-seller do New York Times “Crazy is a compliment: The Power of

Zigging When Everyone Else Zags”, em outubro de 2014. Em seu livro, ela argumenta que o

empreendedorismo não é apenas para jovens técnicos. Se você trabalha em uma empresa da

Fortune 500, todos precisam da mentalidade para pensar e agir como um fabricante de

mudanças, ser ágil, adaptativo, ousado e talvez até um pouco louco, ou arrisca ser deixado

para trás. Há outro livro mais recente de sua autoria: “De empreendedor a louco”.

Rottenberg atua no conselho da ZAYO Group, empresa de infraestrutura de banda

larga, sendo líder mundial em Boulder (NYSE: ZAYO), e Olo, uma plataforma de pedidos

on-line líder em Nova York. É membro da Young Presidents Organization (YPO) e atuou no

comitê de direção do empreendedorismo do Fórum Econômico Mundial. Rottenberg foi pauta

de diversos meios de comunicação, como no Wall Street Journal, Forbes, The Economist,

Financial Times, USA Today, Strategy + Business, People, Glamour e MORE, e apareceu no

GMA, Today Show, Morning Joe, Nightline, NPR, CNBC, CNN, Fox News, Fox Business e

Bloomberg News. A Veuve Clicquot a chamou como sua empresária do ano. Por último, e

importante para a trajetória de vida de Rotternberg, ela é casada com Bruce Feiler, jornalista

que se curou de uma grave doença, e tem duas filhas gêmeas, Tybee e a Eden.

5.5.1 Síntese do vídeo

A palestra de Linda Rottenberg ocorreu em oito de abril de 2014, na cidade de São

Paulo. A CEO e cofundadora da Endeavor apresenta o seu momento “a-há” (que corresponde

ao Day1), ocorrido durante uma corrida de táxi. O acontecimento se passa a partir da história

de um motorista de táxi argentino, engenheiro, que não atuava na área e desconhecia o

significado da palavra empreendedorismo. Segundo Rottenberg, após este momento relacional

entre ela e o motorista, teve a ideia de procurar apoiar empreendedores localizados em

mercados emergentes, para contar suas histórias e inspirar outras pessoas, em um movimento

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pró-causa, com a presença de empreendedores de alto impacto (que desenvolvem um negócio

que gera mudança).

Ao compartilhar sua ideia, foi considerada e chamada de louca. Mesmo assim,

persistiu. Tempos depois, encontrou um parceiro investidor, Peter Kellner, cofundador da

Endeavor. Assim, sua ideia foi colocada em prática. Na palestra, a protagonista apresenta sua

experiência como mãe e esposa, e todas as dificuldades encontradas com diferentes

experiências de empreendedores com os quais teve a oportunidade de trabalhar e que lhe

permitiram ter forças para superar suas vulnerabilidades e seguir em frente.

5.5.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

A narrativização da vida de Linda se inicia comentando seu contato com as empresas

Netscape e Yahoo, que são empresas de tecnologia que tiveram suas origens em 1994 e 1995,

respectivamente. Diferentemente dos outros vídeos, a protagonista não revela a fase da sua

infância. Ela focaliza sua fase adulta e materializa uma trajetória de vida a partir de um lugar

de fala que evoca a cultura empreendedora.

Portanto, concede um enfoque maior à contemporaneidade, sinalizando o discurso do

tempo (MORIN, 2007) com valorização do empreendedorismo e suas práticas. Neste sentido,

a protagonista apresenta sua relação com a família (esposo e filhas) e os vários

empreendedores com os quais conviveu e que fizeram parte de sua história de vida. No

sentido de exemplificarmos alguns destes momentos, temos a presença de um discurso em

que Linda menciona:

Hoje “empreendedor” e “empreendedorismo” existem não só em espanhol e

em português como também existe em árabe, turco e quase em todos os

outros idiomas. Mas acredite, 15 ou 20 anos atrás, além dessas palavras não

existirem, elas pareciam impossibilidades.

As palavras “empreendedorismo” e “empreendedor” estão relacionadas, diretamente, a

um perfil laboral de agir pautado no papel social do empreendedor, amplamente mencionado,

com capacidade de ter negócio próprio, correr risco e ser um agente que se adapta a diversos

momentos de mudança.

Este contexto denota uma representação social que abarca o comportamento de pensar

e agir daquele indivíduo empreendedor de si (FOCAULT, 2008), que “se liberta” do emprego

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formal e com carteira assinada, a sinalizar um forma de flexibilização do trabalho e da

meritocracia (SENNETT, 2006), estando inserido na representação simbólica de mundo em

que os acontecimentos deste sistema normativo do neoliberalismo impõe certos

comportamentos e condutas aos indivíduos que passam a atuar pelas normas e condutas deste

sistema normativo da sociedade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016).

b) Vidas interligadas (Linked lives)

Em sua palestra, Linda contextualiza os vários relacionamentos em que temos uma

narrativa que reforça o mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011) por práticas empreendedoras.

Ao mesmo tempo, demarca a gestão da vida e o consumo de bens e serviços que são

mencionados pela protagonista em seus feitos. Observamos que Linda enfatiza, basicamente,

estar em linha com a maneira de pensar dos indivíduos que trabalham em prol de algum

projeto de vida diferente, em que uma ideia foi tirada do papel e transformada em negócio.

Inserida neste contexto, sua vida se pauta em escutar histórias e conviver com outros

empreendedores, salientando-se a importância dos sentimentos e das relações de afetos.

Em um dos enunciados de Linda, pode-se observar a relevância do trabalho em sua

vida:

Mas o legal de ser taxado de louco é que muitas vezes te colocam em contato com outros loucos e foi assim que conheci meu cofundador, Peter Kellner46.

Compartilhei minhas ideias para o movimento e ele deu o nome, Endeavor, e

foi assim que começamos.

Nesta fala, encontramos a voz e a formação discursiva de outros empreendedores,

porque a organização (Endeavor) existe para fomentar as práticas do empreendedorismo em

sua forma de agir, fazendo parte deste negócio mercantilizado. E ser considerado louco é um

dito extraído do senso comum, que ao mesmo tempo em que exclui, pode identificar um

indivíduo visionário, ou alguém que cria suas próprias regras; assim, o lugar de fala da

46 Peter Kellner co-fundou a Endeavor em 1997. É fundador e sócio-gerente da Richmond Global, uma empresa

de capital de risco visando investimentos em estágios iniciais nos EUA e na Europa e investimentos em estágios

de crescimento em mercados emergentes. Richmond trabalha com a rede de empresas da Endeavor a nível

mundial para criar e escalar negócios de ponta, transformando seus mercados e regiões. O Sr. Kellner é um

membro do conselho da Rubicon Global Inc., e nos conselhos sem fins lucrativos do Endeavor Global, Endeavor

Jordan, Endeavor Miami e Endeavor Louisville; BizCorps (um desenvolvedor de negócios de mercados

emergentes fundado pelo ex-presidente da OPIC, Rob Mosbacher) e Ashoka Youth Venture. Ele é um

administrador da escola Allen-Stevenson em Nova York. Ele recebeu seu diploma de graduação da Universidade de Princeton e foi um acadêmico Fulbright na Hungria após a faculdade. Posteriormente, ele recebeu um J.D. da

Yale Law School e um MBA da Harvard Business School. Disponível em: <http://endeavor.org/global-

board/peter-b-kellner/>. Acesso em: set. 2017.

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protagonista sinaliza um não-dito que se iguala ao comportamento do fazer empreendedor.

Ser considerada louca, como foi o caso de Linda, é uma representação social

comparada a outros tipos de personalidades consagradas em seu campo de atuação, como os

exemplos de Steve Jobs e Steve Wozniak, fundadores da Apple, que a princípio também

foram taxados de loucos. Na cena abaixo, temos a presença da posição da câmara em plano

geral que reforça a presença da plateia. No canto esquerdo existe o destaque para o texto

“Loca Linda”.

Figura 20: “Loca Linda”

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=tIwUt2z_fVw>.

No sentido de contextualizar esta trajetória de vida, ressaltamos que para implementar

sua ideia em vários países, a protagonista menciona que precisou de um investimento (capital)

inicial para dar prosseguimento ao seu projeto:

Eu disse: “Não, eu quero você, eu quero seu tempo, sua paixão e U$ 200 mil”. Ele vira para o seu braço direito, Oscar, e diz: “Essa menina está

louca.” E eu digo: “Eduardo,47 estou decepcionada. Você notoriamente

47 Eduardo Sergio Elsztain, nascido em 26 de janeiro de 1960, é um empreendedor imobiliário que virou um

magnata ao tornar o investimento inicial do George Soros no maior patrimônio de terra do país. É um

proeminente empresário argentino, o maior desenvolvedor imobiliário de seu país. De acordo com o Jerusalem

Post, Elstzain "está no topo do maior império empresarial argentino, o líder do país em imóveis e agricultura, que ele construiu com as duas mãos". De acordo com uma fonte de notícias israelense, ele é considerado o judeu

mais rico na América do Sul. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Elsztain>. Acessado em:

set. 2017.

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entrou na sala do George Soros e saiu com um cheque de U$ 10 milhões.

Você tem sorte que só pedi U$ 200 mi”.

Temos um dito que marca a relação com o capital, o que comprova que para

implementar qualquer atividade empreendedora é fato que ocorre uma ligação direta com o

campo econômico, porque ao ser solicitado a quantia de U$ 200 mil dólares estamos falando

de uma somatória elevada para ser investida. Ocorre a intertextualidade que mistura capital

com paixão, que são valores distintos, mas, nesta relação de fazer negócios, são colocados em

um mesmo patamar, fazendo parte do mundo do trabalho e das relações afetivas sobrepostas

para compor esta narrativa.

Entretanto, não se pode asseverar que tenha sido pelo sentimento de paixão que

Eduardo Sérgio Elsztain (um empresário que costuma investir em novos negócios e acreditou

em Linda) tenha aplicado dinheiro por paixão, porque no campo econômico o investidor

arrisca, mas não com a intenção de perder o capital investido.

Encontramos um discurso construído pela narrativização de vida para apresentar o

empreendedor como uma figura mítica e inocente, que resolve investir sem nenhuma intenção

e interesse nesta troca, ainda mais quando se menciona um valor tão elevado. Podemos dizer

que o empreendedor é colocado em uma posição universal de sugerir a mudança possível de

vida e engajar, ao mesmo tempo, outras pessoas a agirem a partir dessas diretrizes. Assim,

essa narrativa autobiográfica de transformação articula modelos midiáticos de consumo

tornados universais. Ela se insere na fala da protagonista, nas diferentes vozes deste agente

social empreendedor que pode transformar o mundo, fazendo desta ação uma narrativa do

“possível para todos”.

Ao dar continuidade à sua fala, Linda menciona que “A próxima ligação que recebi foi

do Beto Sicupira48. Então vim para o Brasil e pedi U$ 2 milhões e ele me fez o cheque. Aí

percebi meu mantra – “Louco é um elogio”“. Novamente, encontramos um discurso que

supõe ser algo fácil conseguir capital, pelo menos no caso desta protagonista. Verificamos a

existência de um não-dito relacionado ao campo econômico, em que não fica claro que a

maior parte das negociações entre empreendedores e seus investidores vem tanto das

48 Carlos Alberto Veiga Sicupira é um empresário brasileiro. Conhecido como Beto Sicupira, é o quarto homem

mais rico do Brasil e o 96º do mundo, atuando em vários setores, principalmente nos de bebidas e varejo. Junto

com seus parceiros de investimentos Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles, o trio de brasileiros são

sócios da companhia belga-brasileira Anheuser-Busch Inbev, a maior cervejaria do mundo, dona de 25% do mercado global além de ser uma das 5 maiores empresas do mundo de produtos de consumo, e da 3G Capital,

que juntos com Warren Buffett, são sócios das empresas Burger King e Heinz.. Disponível em:

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Alberto_Sicupira>. Acesso em: set. 2017.

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empresas privadas como públicas, para conseguir o dinheiro necessário no investimento de

seu próprio negócio.

Ao mesmo tempo, sabemos que muitos empreendedores recorrem ao Estado para

investir e colocar suas práticas junto ao mercado, sendo uma prática discursiva com um viés

que não materializa e representa a real dificuldade de se conhecer alguém, um indivíduo, que

esteja disposto a investir. Ao mencionar, ter recebido outra ligação do Beto Sicupira, não fica

claro o fato de que é um dos maiores empreendedores e investidores do Brasil que

possibilitou a entrada da protagonista, via Endeavor, no Brasil. Assim, encontramos

novamente a presença das vozes de outros empreendedores, do mesmo campo (BOURDIEU,

2009) de atuação, inseridos na fala da protagonista. A mesma usa o nome de Beto Sicupira

para compor o seu lugar de fala, ou seja, a voz e imagem do empresário bem-sucedido.

Vale explicar que durante sua palestra a protagonista menciona a importância de se ter

um mentor: “Eu deveria dizer que dois dos meus mentores 49, temos tantos mentores do Brasil

nessa sala, dois dos meus mentores pessoais, Beto e Jorge Paulo Lemann, realmente me

ajudaram a passar do Day1 para onde estamos hoje”. A palavra “mentor” remete a alguém

que vai te guiar tanto na carreira profissional como pessoal, chegando a ser comparado até

mesmo a uma entidade divina. Portanto, pertence a campos distintos da religiosidade e do

discurso de autoajuda (ILLOUZ, 2011; 2007), com a intenção de aconselhar um indivíduo a

sair de uma forma de pensar para poder enxergar outras possibilidades no sentido de corrigir

e/ou arrumar o que está afetando a forma positiva de agir na vida e no trabalho.

Entretanto, ao citar os dois empresários e investidores, já temos a presença das vozes

desta cultura empreendedora. Ao mencioná-los, ocorre a aproximação ao dito de Linda, que

se coloca no mesmo patamar destes empreendedores brasileiros, para compor sua posição e

lugar de fala. Ao mesmo tempo, encontramos uma formação discursiva que confere

importância ao discurso especialista (GIDDENS, 2002) na condução dos seus projetos de

vida, com objetivo de sucesso no mercado brasileiro – e consequentes interesses econômicos

envolvidos.

Dando continuidade, a palestrante afirma que não separa sua vida empreendedora

pública da vida particular e pessoal, ao mencionar:

49 Mentor é alguém com mais experiência na área de interesse do Mentee (alguém que está iniciando) disposto a repassar o que aprendeu através da prática ou do estudo e observação de cases de sucesso, o caminho das pedras,

o pulo do gato. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mentor. Acesso em: 29 de setembro de 2017.

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“Como líder e mulher, várias vezes sentia que tinha que ser forte, invencível

e independente, mas depois certas coisas aconteceram. Oito anos atrás

engravidei de gêmeas idênticas e três anos depois descobri que meu marido contraiu um câncer ósseo agressivo”.

Encontramos neste enunciado a questão de gênero, bem como os diferentes papéis que

são assumidos pela mulher na contemporaneidade, em que o trabalho é exercido dentro e fora

do lar. Ao se considerar uma líder, evoca uma interpretação simbólica e de sentidos dos

diferentes papéis que as mulheres vêm assumindo no mercado de trabalho, na passagem do

século XX para o XXI.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Como práticas e valores de suas ações, ressaltamos algumas falas da protagonista que

atestam a forma de pensar e agir na constituição deste perfil moral de conduta. De modo

geral, elas reforçam práticas e normas da autorrealização enquanto empreendedora.

Ao citar “É maravilhoso que pessoas abram qualquer tipo de negócio, mas os que

fazem diferença são as que chamamos de empreendedores de alto impacto” não fica

materializado de forma explícita o que representa este empreendedor de alto impacto.50 Parece

uma linguagem de efeito com a intenção de persuadir a plateia, ao mesmo que democratiza a

representação do empreendedor como sendo uma prática acessível, informa os limites que são

próprios do mercado, ou seja, não se trata de qualquer empreendedor, somente aqueles que

desenvolvem um negócio diferente, com impacto financeiro.

Contudo, reforça a ideia de que o empreendedor é um sujeito que tem condições de

viabilizar grandes mudanças, podendo ser comparado ao herói de nossos dias, (BUONNANO,

2011) dotado de habilidades e conhecimentos a serem utilizados em diferentes campos de

atuação. Na fala “qualquer tipo de negócio”, temos a marcação das vozes extraídas do campo

da economia e do mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011), porque não importa em que área

o empreendedor possa atuar, sua forma de agir tem a intenção de persuadir e inspirar, para

que outros indivíduos sigam suas práticas e forma de ser.

50 Alto impacto têm várias interpretações de sentidos e pode ser utilizada em diferentes campos de atuação como esporte, trabalho, vida pessoal entre tantos outros assuntos que são mencionados pelas pessoas. Pode ser

utilizado para representar o choque entre dois objetos, colisão de um projétil com o alvo, abalo, comoção,

perturbação. Disponível em: <http://www.aulete.com.br/impacto>. Acesso em: set. 2017. Dando continuidade à

explicação do que significa empreendedor de alto impacto para a Endeavor, em entrevista à revista Exame, diz-

se “Nós traduzimos suas características em quatro critérios: o empreendedor, seu potencial de mercado, sua capacidade de escala e seu diferencial competitivo sendo o protagonista, o herói e o empreendedor de nossos

dias”. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/pme/o-que-significa-ser-um-empreendedor-de-alto-impacto/>.

Acesso em: set. 2017.

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Assim, o discurso em forma de narrativas autobiográficas de transformação é uma

maneira possível de materializar a comunicação e sua interface com o consumo de

sociabilidades e diferentes formas de pensar. Também materializa a produção de sentido e

interpretação simbólica em torno da valorização do empreendedor e de seus feitos perante o

contexto social. Neste sentido, as posições e falas assumidas pela protagonista são

materialidades no consumo simbólico destas narrativas de vida.

Por vários momentos, a protagonista ressalta as vantagens de agir em prol de “uma

lógica empreendedora que atravessa o imaginário do capitalismo contemporâneo”

(CASAQUI, 2015b, p. 44), para que o indivíduo encontre o empreendedor dentro de si. Esta

dinâmica é reforçada pelo seguinte enunciado da empreendedora:

“Eu não gosto do termo “sem fins lucrativos”, somos um movimento “pró-

causa”. Mas quando nossos empreendedores alcançam sucesso, eles retribuem baseado nesse sucesso, e hoje eles doam uma porcentagem do seu

capital para escritórios da Endeavor locais”.

Encontramos um dito que atravessa campos distintos, na formação discursiva utilizada

em “prol”. A palavra “causa” tem relação com algo que se faz para existir; portanto, motivo e

origem de praticar alguma ação da vida. Temos um não-dito relacionado a uma causa maior,

que tenta dar uma interpretação de sentido que não esteja associada às práticas de mercado e

sua vinculação com o capital. Mas, na verdade, sua intenção é conseguir fazer negócios para

gerar lucro, podendo contribuir com a cadeia produtiva da própria Endeavor. Este dito

atravessa o discurso religioso em que o fiel contribui com alguma quantia em dinheiro (o

dízimo, por exemplo). Aqui encontramos de maneira implícita as vozes representadas por dois

campos distintos do contexto social: o laboral e o religioso, que se misturam para compor a

narrativa e a fala da protagonista.

O capital está relacionado à parte laboral, sucesso e fatores socioeconômicos, pois o

indivíduo na sociedade de desempenho é estimulado a agir em função do excesso de ações de

forma positiva (HAN, 2015), no senso comum, pelas práticas de sucesso e ganho de capital,

que caminham juntas. Neste crivo social, considera-se o sucesso atrelado ao capital, mas não a

forma como este capital foi obtido pelo esforço do trabalho, pedindo empréstimo, roubando

ou recebendo herança familiar; o reconhecimento se dá pela materialização do consumo

simbólico, midiático e de bens, que se relacionam ao grupo social ao qual se pertence. Ou

seja, com interesses espelhados na forma de agir e fazer deste sistema neoliberal.

Neste sentido, a palestrante menciona “Estamos incentivando empreendedores a se

tornarem investidores-anjo e mentores. É aí que o efeito multiplicador acontece. Tudo isso é

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encapsulado pelo que chamamos de Mentor Capital”. Temos um não-dito de inserção do

perfil empreendedor a uma posição divina, denotada na palavra “anjo”, que irá permitir que

este discurso se converta em um discurso vocacionado (como um chamado de Deus), e seja

refletido pelas práticas “desta lógica da cultura empreendedora” (CASAQUI, 2015b, p.44). É

uma maneira de se encontrar um tipo de salvação de vida fazendo com que os indivíduos

possam agir em prol da causa praticada pela Endeavor.

Dando continuidade a esta narrativização da vida, encontramos outro elemento

interessante na fala de Linda: como o fracasso é ressaltado pela empreendedora como forma

de aprendizado e inclusão das vozes de outras pessoas, do contexto social, que também

fracassaram, neste sentido, o fracasso é visto como um elemento de aprendizagem e

contribuição para o crescimento de cada indivíduo. Assim, temos a representação de outras

vozes que tentaram empreender, mas não conseguiram alcançar o sucesso e/ou perderam tudo

que tinham na busca de algum projeto de vida.

Figura 21: um fracasso da Endeavor

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=tIwUt2z_fVw>.

Na imagem em plano geral, encontramos a fala de Linda que foi traduzida para o

português e exposta na legenda. O dito apresenta um crescimento da organização Endeavor.

Também está presente a reprodução da capa da revista Harvard Business Review, que foi

amplamente midiatizada, em que a protagonista menciona porque na Índia a Endeavor

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fracassou, sendo um dos únicos lugares do mundo em que organização Endeavor não foi

“puxada” pelo país, mas tentou “empurrar” a forma de agir da mesma neste contexto.

O fracasso pode estar relacionado à falta de habilidade e conhecimento das diferenças

políticas, econômicas, sociais e tecnológicas da Índia, que inviabilizaram o sucesso da

empreitada. Ao mesmo tempo, há um discurso motivacional, todavia, no qual as fraquezas são

aceitas em forma de aprendizado. Aqui, temos o cruzamento e a representação social da

dialética entre fracasso e sucesso, ou vencer e perder (KARNAL, 2007), sendo um discurso

materializado e representado pelo consumo simbólico. Em resumo, percebemos que a

protagonista constrói sua vida em cima da importância dos valores e crenças destas práticas

da cultura empreendedora como forma de alavancar todas as ações de sua vida.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

Da mesma maneira que as outras empreendedoras do evento Day1, a trajetória de vida

de Linda é apresentada em três grandes momentos ou ciclos. No caso específico da mesma,

estes acontecimentos se concentram em apresentar, especificamente, a fase adulta e as

transformações vividas após se formar em direito.

Assim, inserida neste contexto, a primeira fase desta trajetória autobiográfica de

transformação se pauta no momento em que a protagonista resolve investir no projeto de

apoiar empreendedores em países emergentes. Em suas palavras Linda menciona,

Então voltei para os Estados Unidos e eu tinha minha grande ideia. Contei

para todo mundo que eu ajudaria a criar um movimento para achar e apoiar empreendedores em mercados emergentes e contar suas histórias

inspiradoras.

Nesta fala ocorre uma memória discursiva centrada no trabalho inserido em uma

cultura empreendedora, que marca as vozes presentes de outros empreendedores que

acreditam nas mesmas práticas e valores da protagonista. Em “mercados emergentes” há uma

formação discursiva relacionada aos fatores socioeconômicos e representações simbólicas

acerca da inclusão de outros países em crescimento, que não têm a mesma condição

socioeconômica dos países desenvolvidos.

Esse discurso tem o objetivo de incluir o empreendedorismo como sendo um valor a

ser praticado e necessário para todos. Concomitantemente, é apresentado como o imperativo

do presente: agir com base na prática do empreendedorismo. É uma representação social para

convocar e engajar as pessoas a agir na mesma direção. São narrativas inspiracionais

(CASAQUI, 2015) com a intenção de abarcar novos sujeitos à cultura empreendedora, ou

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seja, ser empreendedor de si e construir o seu próprio projeto de vida, responsabilizando-se

pelas atitudes dos atos praticados. Ou seja, o indivíduo precisa assumir as rédeas do seu

destino em suas mãos em função destas práticas empreendedoras.

Um segundo momento e ciclo de vida, configura-se pela transformação, ou seja, o dia

de mudança e virada da condução dos seus atos. Este momento é apresentado pela linguagem

“a-ha”, como sinalizada na imagem abaixo, na cena em plano médio, com uma lâmpada no

telão para marcar o insight que deu origem à grande ideia, surgida dentro de um táxi na

Argentina.

Figura 22: o momento “a-ha”

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=tIwUt2z_fVw>.

É sempre pertinente destacar que o Day1, como já mencionado, tem a representação

simbólica do grande dia de transformação e que ocorre a partir de um determinado momento

da vida. Este momento conota os comportamentos deste sistema normativo (DARDOT;

LAVAL, 2006), em que as pessoas têm determinados valores e práticas em função das classes

e grupo aos quais pertencem. Ao mesmo tempo, a história do eu da protagonista é uma

narrativa inserida novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO 2009). Existe,

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pois, a presença de uma memória discursiva que representa a voz da sociedade e do indivíduo,

que deve se transformar, de maneira contínua, como um agente social a ser renovado sempre,

para atender aos interesses e práticas deste sistema socioeconômico.

A presença da linguagem discursiva deste enunciado que marca a representação do

Day1 está contida na seguinte fala:

Meu momento a-há, que de agora em diante sempre chamarei de Day1, aconteceu dentro de um táxi em Buenos Aires. Eu descobri que o motorista

era formado em Engenharia, então fiz a pergunta que não me calava: “Por

que você dirige táxi?”. Ele disse: “O que mais eu poderia fazer? Não quero ser funcionário público e empresas grandes não estão contratando.”. “Mas

você é formado em engenharia, por quê não está virando empreendedor?”.

“Um o quê?”. “Você sabe, um empreendedor. Uma pessoa que começa um

negócio.”. “Ah, um empresário”. Eu disse: “Não, não é empresário. É outra palavra que indica inovação e risco”. Ele me olhou e disse: “Não temos uma

palavra assim aqui”.

Não iremos explicar todas as características do perfil empreendedor, amplamente

discutido anteriormente, mas nesta fala ocorre uma representação simbólica que conota o

campo de trabalho exercido no papel do empreendedor. Há um não-dito que marca certo

estranhamento, por parte de Linda, de não entender o porquê um engenheiro resolve ser

taxista ao invés de ser empreendedor, ainda mais tendo em vista o conhecimento e a

aprendizagem adquiridos.

Observamos, que existe uma contradição na fala da protagonista, uma vez que os

termos “autônomo”, “empresário” e “empreendedor” se confundem na fala. Assim,

questionamos se o taxista pode ser considerado um empreendedor. Segundo a fala da nossa

protagonista, não. Estes interdiscursos nos revelam ditos e não-ditos que são silenciados por

uma lógica empresarial que valoriza o lucro expresso em sucesso econômico.

Na fala da protagonista, temos um não-dito que abarca a voz e a possibilidade de agir

em função do indivíduo que se torna empreendedor de si (FOUCAULT, 2008) para poder

lidar com as adversidades da vida, como exemplo, um engenheiro virar um taxista. Formas de

(auto)empreender como estas ocultam desvios e tensionamentos que circulam pelo

capitalismo flexível previsto por Sennett (1999): não existe relacionamentos de longo prazo, o

que corrói os vínculos e representações sociais. Mas para Linda, somente os indivíduos que

correm riscos e são inovadores estão mais aptos a serem bem-sucedidos.

No terceiro ciclo de vida, encontramos a empreendedora no momento atual, em que

ressalta os feitos que comprovam este sucesso, apresenta alguns casos de empreendedores de

sucesso no Brasil e reforça o caso da Leila Velez e Zica, do Beleza Natural, o caso do

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restaurante Spoleto, entre outros, para atestar a importância da cultura e trabalho

empreendedor em sua vida. Ou seja, os exemplos se retroalimentam.

Em seu enunciado, temos a seguinte fala: “O que aprendemos durante todo esse

processo é que negócios podem aprender muito com famílias e vice-versa”. Estabelece-se um

não-dito que o campo da educação, trabalho e família são atravessados pela forma de agir

desta cultura, pois o empreendedorismo depende de investimento em aprendizagem, saber

inovar (sempre se construir) e correr risco. É um discurso motivacional e de testemunho de

quem fala de uma posição reconhecida pela experiência, caso contrário, não teria sido Linda a

mentora do projeto Day1 Endeavor, que se torna um processo comunicacional com produção,

circulação e consumo destas narrativas autobiográficas de transformação.

Pode-se dizer que é um fenômeno social de condução de vida, apresentado nestas

vozes do marido, filhas e dos casos/exemplos de empreendedores extraídos do contexto

social. Assim, acreditamos que a visibilidade das narrativas do eu e da autenticidade

(TAYLOR, 2011) faz parte desta representação simbólica e midiatizada do espaço biográfico

(ARFUCH, 2010), que espetaculariza a narrativa do eu (SIBILIA, 2008) e os feitos desta

trajetória de vida inserida na cultura vigente de responsabilização de si pelos atos praticados.

5.5.3 Síntese da análise

Distintamente das outras palestras analisadas, Linda não expõe em sua narrativa

autobiográfica a infância. O enfoque dado se concentra na fase adulta, na contemporaneidade.

Essa é a principal característica verificada em “Localização no tempo e no espaço”. A partir

dessa conjuntura é que busca valorizar as práticas empreendedoras que desenvolve. O passado

(em questão de 10 a 20 anos), por exemplo, é tido como pouco favorável às práticas

empreendedoras, sendo um período de desafios e obstáculos.

Em “Vidas interligadas”, Linda reforça os relacionamentos interpessoais como

relevantes aos projetos empreendedores. De fato, a figura do empreendedor é trazida ao seu

discurso como fundamento de seu agir (pessoal e profissional), já que a organização fundada

por ela, a Endeavor, atua especificamente com esse público-alvo. Exemplos de

empreendedores de sucesso são acionados, como é o caso de Steve Jobs e Steve Wozniak.

Eduardo Sérgio Elsztain e Beto Sicupira são outras personalidades de destaque, pois os

empresários decidem investir no empreendimento de Linda, sendo centrais ao sucesso

alcançado. Já Beto e Jorge Paulo Lemann são considerados os seus “mentores” no Brasil.

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197

Na “Orientação pessoal das ações”, Linda reforça as práticas e normas da

autorrealização enquanto uma empreendedora de sucesso. O empreendedor, por sua vez, é

convertido em uma espécie de entidade capaz de promover ações de alto impacto, que

transformam, sempre de uma forma pretensamente positiva, o contexto social no qual se

insere. Ou seja, ele é fortemente valorado. Também analisamos como o capital é, em seu

discurso, relacionado às práticas laborais como um indicativo de sucesso ou fracasso: o

retorno financeiro é um valor primário ao modo como entende o empreender. Mas, de modo

interessante, é válido mencionar como o fracasso é ressaltado como um caminho para o

aprendizado - obviamente se tem margem para lidar com suas consequências materiais e

imateriais.

Por último, “Momentos de vida” traz para a apresentação ciclos temporais que

marcam sua trajetória de vida. A ênfase recai no momento em que a empreendedora tem a

ideia de desenvolver a Endeavor. Suas ações são significadas se deslocando de uma

capitalização do negócio, a reforçar, por outro lado, uma “causa”: contribuir ao movimento de

empreendedores em mercados emergentes. O momento desse insight também está contido em

sua narrativa: quando encontra um engenheiro argentino que trabalhava como taxista por ter

dificuldades de se inserir no mercado de trabalho em sua área de atuação.

5.6 ANÁLISE 6: JANETE VAZ E SANDRA COSTA

Nascida em Goiás, Janete Ribeiro Vaz é vice-presidente do conselho de administração

do grupo Sabin – Laboratórios Sabin de Análises Clínicas. Formou-se em bioquímica pela

Universidade Federal de Goiás, com MBA em gestão de negócios pelo Instituto Nacional de

Pós-Graduação (INPG) e MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Dom Cabral (FDC). É

empreendedora e co-fundadora do Sabin, uma das maiores redes de medicina diagnóstica do

país, que está presente em nove estados e no Distrito Federal, oferecendo serviços de análises

clínicas, diagnóstico por imagem, vacinas, etc. Como empreendedora, Janete Vaz integra,

também, o conselho de diferentes entidades, como o Conselho Diretor da Universidade de

Brasília (UnB); o Conselho de Administração da Junior Achievement Brasil (programa de

empreendedorismo de jovens na escola), o Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de

Recursos Humanos do Distrito Federal (ABRH-DF), a Diretoria do Instituto Brasileiro de

Executivos de Finanças do Distrito Federal (IBEF) e tem o assento de número 35 como

membro titular do G100 do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Empresarial e

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198

Econômico. Foi eleita, por dois anos consecutivos, uma das melhores gestoras de empresas do

Brasil pela revista Valor Liderança. Em junho de 2016, lançou, juntamente com a sua sócia,

Sandra Soares Costa, o livro “Empreendendo sonhos – a história do laboratório Sabin e seu

premiado modelo de negócios”.

Sandra Soares Costa, nascida em Inhapim (MG), é formada em bioquímica pela

UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Atualmente, é vice-presidente do Conselho

do Grupo Sabin. Em outubro de 2013, recebeu o “Mérito Mercador Candango”,

reconhecimento concedido pela Federação do comércio do Distrito Federal a empresários de

Brasília.

5.6.1 Síntese do vídeo

A palestra das fundadoras dos laboratórios Sabin, intitulada “Tire seus sonhos da

gaveta!”, ocorreu em oito de outubro de 2014, na cidade de São Paulo. O vídeo apresenta a

trajetória de vida de duas bioquímicas, Sandra Soares Costa e Janete Ribeiro Vaz. Elas se

encontraram na cidade de Brasília, tornaram-se amigas e decidiram empreender no projeto

Sabin. A sociedade ocorreu em função de valores e afinidades que ambas tinham na área,

assim como de conhecimentos aprendidos em suas famílias e na experiência profissional.

As duas empreendedoras afirmam que começaram aos poucos e foram adquirindo

conhecimentos na área de análise clínica. Assim, as sócias passaram a atender pedidos

especiais de médicos e investiram em controle de qualidade e pesquisa. Afirmam, contudo,

que não entendiam muita coisa sobre gestão de negócios, e buscaram consultores

especializados no mercado, como a Fundação Dom Cabral, para ajudar nesse processo. De

acordo com as empreendedoras, hoje não é possível fazer somente por meio da intuição e

enfatizam a importância de aprender com as mudanças que ocorrem o tempo todo. Isso fez

com que o projeto Sabin, que começou com três funcionários, em 1984, crescesse. Hoje já são

mais de dois mil funcionários, atuando em seis estados e no Distrito Federal (DF), atendendo

em média nove mil clientes por dia.

Para Janete, o caminho para conquistar o sucesso é conhecer profundamente o seu

negócio e ter respostas seguras nos serviços prestados, cuidar da rede de relacionamento e

agregar inovação de forma contínua.

5.6.2 Análise do vídeo

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199

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

Da mesma forma que os outros vídeos analisados, temos a presença de um palco,

plateia e as empreendedoras palestrantes. As duas protagonistas apresentam suas vidas

inseridas no contexto da contemporaneidade em função dos marcos temporais relatados em

suas falas, do tipo de cenário construído pela organização Endeavor e a própria data em que o

evento aconteceu oito de outubro de 2014.

O primeiro período destacado é justamente o encontro de Sandra e Janete, que ocorre

em Brasília, quando ambas trabalharam em um dos maiores laboratórios de análises clínicas

da capital, local em que dizem ter aprendido desde a parte técnica ao cuidado com o

atendimento ao cliente. Neste sentido, Sandra menciona: “Eu acredito que a coragem é que

sempre me fez progredir profissionalmente e foi dessa forma que eu cheguei em Brasília,

naquele 1979, e um ano depois a Janete chegou nesse laboratório onde tudo começou”.

Associada a essa temporalidade, já podemos observar a presença de um discurso motivacional,

denotado pela palavra “coragem”, que molda o percurso de vida da empreendedora e indica

uma via inicial para o empreender.

Em outro momento, Sandra relata um encontro com Janete para discutir acerca da

decisão de empreender e a situação conjuntural mais ampla naquela época no que diz respeito

à área de atuação em seu dito:

“Isso foi num sábado e à tarde nós saímos, porque, gente, no início, em

1984, há 30 anos atrás, a atividade laboratorial, laboratório de análises

clínicas era uma atividade extremamente manual, não existia a automação

que se tem hoje, as grandes plataformas”.

Por meio dessa temática, atravessada pela narrativa, verifica-se que o momento de

planejamento do negócio está condicionado indireta ou diretamente pelo âmbito macrossocial.

Na fala a seguir de Sandra, temos a presença das vozes do campo do

empreendedorismo e as práticas de trabalho deste agente social, que na época era uma

atividade que começava a despontar e atrair a atenção.

Gente, ser empreendedor no início dos anos 80 no momento de um Brasil de uma inflação enorme era muito desafiador. Nós duas éramos, somos duas

bioquímicas num mercado extremamente competitivo. Mas cada momento,

cada desafio, ele era encarado com muita coragem e a gente tinha muita humildade para aprender, para buscar isso em todos os momentos.

Apesar dos desafios apontados, é interessante notar uma interdiscursividade que

remete à materialização de uma narrativa de história de vida exemplar (BUONNANO, 2011),

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200

sendo exercida por duas mulheres que estavam aprendendo o que era ser empreendedora. Ao

mesmo tempo, notamos mais um discurso que se aproxima da autoajuda (ILLOUZ, 2011),

pois valores como “coragem” e “humildade” são expressos de modo a ressaltar uma forma de

fazer determinada, que conduz à superação de barreiras, ao sucesso. O empreendedorismo

desponta, assim, como uma oportunidade de mudanças a ser seguida, destacando-se as

técnicas e habilidades específicas a esse processo.

Dando prosseguimento à análise, aparece em outra fala de Janete uma marcação do

tempo (da contemporaneidade):

(...) em 99 pra 2000 eu voltando de Anápolis pra Brasília, a Raquel minha

filha que está aqui falou, ela fazia administração: “Mãe, lê pra mim que

amanhã eu tenho prova de TGA.” Eu nem sabia o que era aquilo, a hora que eu comecei a ler eu falei pra ela: “Mas tudo isso aqui eu faço e está escrito”.

Há aqui o entrecruzamento da narrativa de Janete com o campo da educação. “TGA”

se refere a uma disciplina curricular do curso superior de administração, denominada Teoria

Geral da Administração. Assim, além da datação especificada, encontramos uma justaposição

de campos, (re)compondo o lugar a partir do qual Janete se coloca como empreendedora, uma

vez que atesta que já colocava em uso os mesmos conhecimentos que a filha estava

aprendendo na faculdade. Ressalta-se um modo de criar visibilidade e espetacularizar esta

narrativa do eu em constante transformação. Logo, constata-se sua inscrição na ordem da

atual sociedade neoliberal, em suas práticas pautadas no novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Nesta palestra, portanto, encontramos um novo jeito de apresentar o trabalho e sua

relação com as ações de individualidade que constroem identidade em função das normas

vigentes deste sistema capitalista neoliberal. Como já abordado, ele convoca os indivíduos a

agir em função desta cultura empreendedora (EHRENBERG, 2010), o que nos revela uma

relação de espaço e tempo que marca o contexto da sociedade contemporânea e seu modus

operandi.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

A trajetória de vida das duas protagonistas é marcada pela presença de várias pessoas

que tiveram importância em suas relações de vida e de trabalho; destacamos: o pai de Janete,

os pais de Sandra, especialmente a figura da mãe, a pesquisadora clínica Julia, os médicos e

os consumidores, que são os clientes que frequentam os laboratórios Sabin, e os filhos

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201

mencionados pelas protagonistas. Assim, selecionamos algumas passagens para atestar a

maneira como se processam esses vínculos interpessoais.

Sandra, por exemplo, afirma que:

Eu sou de uma família onde meus pais sempre me estimularam a ser

guerreira, independente, e eu tenho exemplo da minha mãe, que sempre me

inspirou, porque a minha mãe era uma empreendedora. Ela tinha um negócio. Ela era uma costureira e transformou isso num grande negócio pra

época, e foi nela que eu me inspirei.

Nota-se como a família é elencada a um nível estrutural de sua formação tanto pessoal

quanto profissional. Se por um lado os pais lhe ensinam valores como ser batalhadora e

independente, muito apreciados pela cultura empreendedora, a mãe, por sua vez, é uma figura

concreta que fundamenta sua visão sobre o empreendedorismo: sua própria mãe é um caso de

sucesso.

De forma muito similar, há na fala de Janete a presença do pai, como podemos

observar na seguinte passagem:

Eu nasci na fazenda, morei até 11 anos de idade na fazenda. Aprendi a fazer

negócio com o meu pai. Ele era um fazendeiro que tinha até o segundo ano

primário, ensinou matemática e física para os 6 filhos até passarem no vestibular. Um homem íntegro, um homem que deixou muitos valores, um

homem que fazia negócio.

A referência ao pai sinaliza um direcionamento laboral voltado ao campo do

empreendedorismo. Sua falta de escolaridade é inclusive acionada nesse discurso para a

composição de um quadro de superação. Ou seja, existe um não-dito que deixa subentendido

o fato de que não ter uma educação formal de qualidade não corresponde a um impedimento

ao fazer empreendedor. Fica patenteada a valorização desse sujeito empreendedor, de onde

emana os valores que a palestrante diz ter adquirido.

Demonstra-se a prescrição do âmbito do trabalho como uma convocação a partir da

qual o indivíduo necessita reproduzir este modo de fazer como forma de construção e

legitimação identitária junto à sociedade. A prática laboral transforma-se, portanto, em um

objetivo a ser perseguido e serve de modelo social materializado pela narrativa de vida bem-

sucedida, por meio da prática de empreender e de empreender a si em uma sociedade de

desempenho (HAN, 2015). Logo, temos a presença de um interdiscurso com diferentes

formações discursivas que atravessam as vozes da educação familiar e do trabalho, que

contribuem para a constituição do perfil moral de ser das empreendedoras.

Em outro momento, mais estritamente relativo ao gerenciamento dos negócios, Sandra

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202

menciona a importância da relação junto aos médicos: “Esse trabalho foi muito voltado

também para a busca da credibilidade junto aos médicos, que era o maior influenciador do

nosso negócio, o nosso primeiro cliente. Foi ele que nós fomos conquistando”. A classe

médica aparece cristalizada na imagem desse profissional que, de acordo com a palestrante,

teria um papel fundamental ao empreendimento, evidenciando uma certa vulnerabilidade no

que se refere às ações da empresa e aos seus ganhos financeiros – tendo em vista que depende

de indicações de médicos, por exemplo.

As vozes dos médicos, pautadas pelo interdiscurso inserido na representação social

deste indivíduo que atua no campo da saúde, promulga a presença de um não-dito em que

ocorre um interesse comercial na relação entre os laboratórios e a classe médica. Isso porque

os mesmos são considerados os primeiros clientes dos laboratórios. Encontramos, mais uma

vez, a importância do mundo do trabalho (SCHWARTZ, 2011), sua relação com o capital e os

interesses envolvidos nestas representações de mercado que conferem desdobramentos no

contexto socioeconômico.

Na imagem a seguir, temos o plano geral das protagonistas e a plateia, com destaque

para o texto projetado no telão: “A receita: sentir na pele os clientes”.

Figura 23: a receita

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=_hBTO9qftX8>.

A palavra “receita” confere um dito com dupla interpretação de sentido. Por um lado,

pode estar relacionado a um passo a passo, etapas que devem ser cumpridas para se chegar ao

objetivo esperado. Por outro lado, pode representar a “receita médica”, e, assim, estar

intimamente filiado ao campo de atuação dos laboratórios Sabin. Já o complemento da frase,

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“sentir na pele os clientes”, faz uma referência à empatia, nesse caso direcionada àqueles que

estão demandando os serviços dos laboratórios Sabin.

Em seguida, Janete comenta uma das conquistas de sua empresa, dando enfoque a uma

pessoa em específico:

No ano passado, só pra contar rapidamente aqui, mas isso nos encheu de

orgulho, no congresso americano de medicina laboratorial, onde foram

enviados mais de 5 mil trabalhos científicos e foram aceitos apenas 700. Desses 700, apenas 10 foram selecionados para apresentação oral, e desses

10 apenas um era de instituição brasileira, do laboratório Sabin, e clínicas

como John Hopkins e o trabalho vencedor foi o trabalho do laboratório

Sabin e isso nos encheu de orgulho. Realmente o trabalho da Julia que é uma profissional e pesquisadora que trabalha com a gente, um trabalho

desenvolvido lá dentro do laboratório que mostra que realmente vale investir

na pesquisa clínica e levar o conhecimento pra dentro da empresa.

Nota-se como é acionada uma discursividade que remete ao campo científico. De fato,

há um não-dito que busca salientar a competência dos laboratórios Sabin. Ter uma

profissional como Julia, que simboliza essa qualidade, atesta o fazer das empreendedoras e de

seus negócios. Citá-la é valer-se de uma representação social da cientificidade e de suas

condutas, que se reflete em uma agregação de valor ao empreendimento, auxiliando na

composição de sua credibilidade.

Por fim, cabe reportar a existência de um processo produtivo que atravessa as vozes de

diferentes indivíduos, como fornecedores de tecnologia, médicos, clientes dos laboratórios de

análise clínica e as próprias empreendedoras. Aqui, ocorre a formação discursiva de diferentes

campos (BOURDIEU, 2009) – econômico, trabalho e saúde – que estão imbricados na

sociedade de consumo contemporâneo. Vimos como se tenta alcançar um padrão de qualidade

e tecnologia importantes para a estratégia comunicacional do Laboratório Sabin, como sendo

um valor agregado na prestação de serviços materializados pela empresa. Sem dúvida, é

necessário considerar a presença dos interesses econômicos envolvidos na comercialização de

um serviço atrelado ao capital.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Selecionamos nesta etapa algumas falas que apresentam os valores e práticas das

empreendedoras Janete e Sandra.

Sandra explicita: “Então, esses pequenos incrementos diários de inovação, a gente foi

fazendo isso constantemente e com isso a gente foi conquistando mesmo os nossos clientes,

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204

com essa forma delicada de acolhê-los.”. Esta citação é reforçada pelo dito de Janete, que

menciona:

É verdade. Esse jeito Sabin de ser traz pra gente o que é a nossa forma, falar

a verdade, ser transparente, cuidar do cliente, porque sem ele nós não existiríamos. E cuidar do cliente é trazer essas inovações que a Sandra falou,

mas é cuidar também dos sentimentos deles. Então eu falo que nós olhamos

no microscópio, nós conhecemos as células dele, mas nós queremos olhar também nos olhos. Nós não abrimos mão de conhecer as enzimas cardíacas,

mas conhecer os sentimentos e nós ensinamos o atendimento humanizado

para nossos colaboradores, nós ensinamos que o cliente precisa se sentir acolhido. E isto agregou muito valor pra gente.

Sinceridade, transparência, cuidado com o cliente: estas são noções consagradas pela

lógica de mercado, que muitas vezes são imprecisas e repetidas à exaustão, com significados

vazios, mas que se sobrelevam indissociavelmente de uma estratégia discursiva, que, por sua

vez, serve para revertê-los em lucro. Destaca-se na fala de ambas as palestrantes a

importância de um atendimento de qualidade ao cliente, um atendimento que precisa ocorrer

de forma “humanizada”. Dizê-lo dessa forma deixa subentendido, em forma de não-dito, o

fato de que há um tipo de atendimento que desconsidera o status humano do cliente, ou seja,

que não o respeita enquanto tal. O que se coloca é um risco de retorno a esse tratamento

desumano, que se pretende evitar, uma vez que pode ser prejudicial aos negócios.

Janete menciona, em outro momento, a importância da mulher, que representa a

grande maioria de funcionários do laboratório Sabin.

A mulher entende literalmente quando é o mesmo processo da casa e da

família. A mãe tem mais percepção e sensibilidade pra perceber quando um filho chega com problema em casa. Do mesmo jeito, então, ela precisa

entender, a liderança precisa entender que com 75% de mulheres existem

algumas particularidades, que elas não podem ser substituídas, que a mãe precisa estar presente, e nós como gestoras precisamos entender isso aí.

Fica materializado nessa discursividade um entrecruzamento entre valores apreciados

no modo de gerir o empreendimento e a questão de gênero. A figura da mulher é acionada de

modo estereotipado, fortemente associada à imagem de “mãe”, a um instinto maternal de

cuidado e proteção – que, aliás, alinha-se aos valores da empresa, como acabamos de analisar.

Neste sentido, notamos que há uma necessidade de apresentar essa conjuntura de forma

positiva (HAN, 2015).

Na fala a seguir, temos uma discursividade que marca a relação das empreendedoras

junto a seus funcionários:

Nós queremos a competência de cada um aqui dentro, e essa competência ela

está dentro de você e às vezes você nem sabe. Nós queremos extrair o que

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tem de melhor dentro de você pra organização. Nós acreditamos que pessoas

felizes produzem mais e melhor. Por isso que nós queremos tratar você com

carinho, cuidar dos seus sonhos, transformar os seus sonhos em realidade (...).

Fica evidenciada a questão da supervalorização do capital humano em que o indivíduo

tem de atender aos valores socioeconômicos impostos pelo contexto mercadológico, tendo de

se preparar para ser o melhor em todas as ações da vida, sem nunca contar com um ponto de

chegada neste investimento de si. Ao mesmo tempo, temos a presença do imperativo da

felicidade (FREIRE FILHO, 2010), em que as regras deste sistema incentivam as pessoas a

serem sempre felizes, ainda que isto seja de fato descabido, haja vista que é impossível ser

feliz em todos os momentos da vida. Ambos os valores são trazidos como eixos que guiam o

modo de gerenciamento dos negócios, ou seja, a alta produtividade e a felicidade se

convertem em fatores essenciais às ações desenvolvidas pelas empreendedoras, que,

obviamente, os transformam em capital – simbólico e/ou material.

Também ocorre a presença de uma narrativa de transformação relacionada ao discurso

de autoajuda (ILLOUZ, 2011), em que algo pode ser modificado com o objetivo de

proporcionar ao indivíduo o alcance do sentimento de felicidade. Trata-se de uma regra de

comportamento imposta pelo sistema vigente, como vemos empiricamente nesse caso. Aqui, a

condição de não ter felicidade está relacionada a uma falha do indivíduo, que sempre deve

agir de maneira a atingi-la. É, pois, um sentimento, um status valorado pelas práticas da

cultura empreendedora.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

Nesta etapa do percurso de vida das sócias, ficamos diante da narrativização da vida

apresentada basicamente por três períodos. Temos a materialização dos discursos centrados na

infância; um segundo momento marcado pela autotransformação das empreendedoras; e um

terceiro momento, que enfatiza a fase atual, em que as sócias se encontram na posição de

empreendedoras bem-sucedidas.

Neste sentido, a representação das vidas tanto de Janete como de Sandra se

complementam na maneira de pensar e na forma de agir, em função de seus interesses

pessoais e de trabalho. Inseridas neste contexto, as duas sócias tiveram uma infância sem a

presença de dificuldades em relação a problemas financeiros ou privações de ordem

econômica. Contudo, a marca do trabalho é bem ressaltada por ambas em função dos

exemplos recebidos na educação familiar, já analisados, o que nos apresenta a importância e

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representação das práticas do mundo do trabalho em suas vidas (SCHWARTZ, 2011;

FÍGARO, 2008).

O segundo ciclo de vida é materializado pela transformação de si, pela mudança das

ações de trabalho e de vida que são representadas pelo Day1, dia em que a vida das

empreendedoras é alterada (turning point). O ponto de virada ocorre, assim, quando o

trabalho passa a estar direcionado à cultura empreendedora, como vemos na seguinte

passagem (narrativa de Sandra):

E eu digo que o nosso primeiro Day1, porque nós tivemos vários. Mas num

sábado, nós trabalhávamos no sábado, um sábado sim e um sábado não, eu liguei pra Janete e falei, perguntei pra ela aquela sua ideia de montar um

laboratório: “Janete você já notou que nós estamos praticamente já algum

tempo conduzindo esse laboratório? E aquela sua ideia de montar laboratório

ainda está de pé?”. E ela falou: “Claro que está. Eu quero montar o laboratório. Então você topa conversar sobre isso hoje? Vamos conversar?”.

Isso foi num sábado e à tarde nós saímos, porque, gente, no início, em 1984,

há 30 anos atrás, a atividade laboratorial, laboratório de análises clínicas era uma atividade extremamente manual, não existia a automação que se tem

hoje, as grandes plataformas. E na nossa cabeça, e realmente como era, nós

tínhamos que sair alugar um espaço, que era o primeiro passo pra montar um

laboratório. E nós realmente o fizemos. Nós saímos, encontramos e nós terminamos esse sábado literalmente sentadas na calçada olhando para a sala

onde nós decidimos que iríamos alugar e como realmente alugamos. Foi

nesse lugar que o laboratório Sabin começou. E existe até hoje a unidade no edifício de clínicas. E foi ali então que nós decidimos começar o Laboratório

Sabin.

Figura 24: um momento de virada

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=_hBTO9qftX8>.

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No trecho acima, o Day1 se inscreve no cruzamento de interesses do campo

econômico com a presença do lucro na comercialização de uma prestação de serviço (análises

clínicas). Destaca-se o campo do trabalho nas práticas e ações que atendam aos valores da

cultura empreendedora, em que os indivíduos se transformam no sentido de agir em linha com

esta sociedade neoliberal (DARDOT; LAVAL, 2016), que tenta engajar o sujeito a

desenvolver negócios próprios, sendo (auto)empreendedor em todos os seus feitos.

Como representação do terceiro ciclo de vida, encontramos as empreendedoras na

posição atual, patenteada por uma vida bem-sucedida. Apresenta-se uma intertextualidade que

aciona um ideal de alta performance (EHRENBERG, 2010) como vetor para acedê-la. Nesse

sentido, existe a necessidade de expor os feitos em forma de comportamentos de forma

positiva (HAN, 2015), porque se requer um reconhecimento pelo sucesso dos feitos

realizados. Como exemplo, ressaltamos a seguinte passagem da apresentação de Sandra:

Começamos com três funcionários, eu, a Sandra, um coletor e uma

recepcionista, e hoje nós estamos com 2 mil funcionários já, em 6 estados e

o Distrito Federal. Atendemos uma média de 9 mil pacientes por dia, e com 133 unidades de negócio, e temos um planejamento estrutural e econômico

feito até 2020, com parceria com a Fundação Dom Cabral. Nisso estamos

hoje já estruturado para estar até 2020 em 70% dos estados brasileiros.

Estão explícitas vozes do campo econômico (BOURDIEU, 2009) cuja intenção é

atestar a competência do empreendimento das palestrantes. A quantificação é uma forma de

sinalizar o sucesso, as conquistas, as realizações. Os números são utilizados para compor o

lugar de fala de Sandra e Janete, na posição de empresárias bem-sucedidas, destacando uma

autorrealização (EHRENBERG, 2010). Assim, a transformação do fazer laboral surge como

característica importante ao empreendedorismo.

Neste sentido, em função da trajetória de vida apresentada, visualizamos narrativas

relacionadas ao trabalho bem-sucedido, centradas na autotransformação constante.

Encontramos uma narrativa autobiográfica de transformação de vida (ARFUCH, 2010) que se

apresenta em dois momentos distintos: a vida antes e depois dos laboratórios Sabin.

5.6.3 Síntese da análise

No que se refere à “Localização no tempo e no espaço”, verificamos que há uma

predominância de datações que marcam momentos decisivos ao empreendimento das

palestrantes, sobretudo em relação ao período de estruturação do negócio. Quanto às

espacialidades, elas ficam delimitadas principalmente pelos estados de origem das

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empreendedoras e pela cidade de Brasília, que representa o ponto inicial dos laboratórios

Sabin e de sua alçada ao sucesso, expandindo-se, posteriormente, a outras localidades.

Em relação às “Vidas interligadas”, nota-se a valorização do ambiente familiar como

um lócus primordial na formulação de valores que, ulteriormente, passam a ser considerados

essenciais ao desenvolvimento de empreendimentos. Também fica evidente as conexões

profissionais que são necessárias ao bom funcionamento dos negócios, como as com

funcionários bem capacitados e com profissionais da área da saúde, com destaque aos

médicos, vistos como os primeiros clientes da empresa.

Quanto à “Orientação pessoal das ações”, os valores defendidos pelas empreendedoras

se mostram intrínsecos às práticas de seus negócios, sendo um elemento-chave para a “saúde”

dos laboratórios Sabin. Também fica claro nas falas das empreendedoras um imperativo da

alta performance (EHRENBERG, 2010) e da felicidade (FREIRE FILHO, 2010), fortemente

vinculado ao modo como buscam gerir seus funcionários. Cabe reportar que a questão do

gênero aparece como um fator de relevância aos negócios: as mulheres, concebidas como

seres maternais e voltados ao cuidado com o outro, são, assim, de extrema importância ao

bom atendimento aos clientes. Além de se estereotipar o que é “ser mulher”, capitaliza-se seus

pretensos “valores-base”.

Por fim, os “Momentos de vida” salientam a transição de um estado de empregado a

um estado de empreendedor. O Day1 de ambas as palestrantes é representado por essa virada.

Uma quantificação de práticas e ganhos é trazida ao discurso como forma de se confirmar a

positividade de empreender, que aparece como um caminho direto ao sucesso e a uma vida de

riquezas, materiais e imateriais; enfim, a uma vida feliz.

5.7 ANÁLISE 7: ANÁLISE CRISTINA BONER

Maria Cristina Boner, fundadora e presidente do conselho de administração da Global

WEB Corp, nasceu em Ribeirão Preto, em 1961. É bacharel em Processamento de Dados pela

Universidade Católica de Brasília. Fez pós-graduação em Banco de Dados e foi professora

titular do curso de Tecnologia da Informação na UCB, alternando sua experiência acadêmica

com a experiência profissional em diversas atividades e cargos que ocupou em grandes

empresas, como Pão de Açúcar, CNPq e Serpro. Fundou o Grupo TBA em 1992. Em 2004,

criou a ONG Associação das Mulheres Empreendedoras (AME), e em 23 de junho de 2009,

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junto a Maria da Penha criou o Projeto “Lei Maria da Penha51”.

Em um contexto de pesquisa, que envolveu professores e alunos, Cristina Boner

tornou-se detentora de notoriedade nos softwares produzidos pela Microsoft antes mesmo do

lançamento do Sistema Operacional Windows para computadores pessoais. Em 1992, munida

de determinação, conhecimento técnico-acadêmico e algum recurso financeiro, ela criou o que

viria a ser um dos maiores conglomerados de tecnologia da informação (TI) do Brasil, a TBA

Informática, que começou como uma pequena loja de 40m².

A aposta foi formatar e levar ao mercado corporativo uma proposta nova, baseada em

softwares da Microsoft com um produto novo, o Windows for Workgroups, produto que

permitia ligar um computador ao outro estabelecendo uma rede corporativa. O resultado foi

bem-sucedido e promoveu, assim, o início de uma verdadeira revolução da computação

corporativa e pessoal. Boner fez parceria com a Microsoft, e foi eleita e premiada com o título

de maior parceira da Microsoft na América Latina.

A partir de 2002, Cristina Boner profissionalizou a TBA Informática e delegou a

condução da parceria com a Microsoft para um quadro de executivos. Ao mesmo tempo, deu

outro grande passo em sua história de empreendedorismo, promovendo uma reestruturação

societária, com a criação de uma holding e a segmentação das ofertas para o mercado:

segurança; gerenciamento de redes; softwares de várias marcas líderes mundiais, como

Oracle, Symantec, Cytrix e IBM; e serviços de infraestrutura para empresas.

Em 2003, Cristina, após meses de viagens à Índia e visitas a várias empresas locais do

setor de desenvolvimento de software, faz uma sociedade com uma empresa indiana do setor.

Em uma ação inédita, Brasil e Índia se uniram na criação da TCS Brasil, uma joint venture

entre o Grupo TBA e a TATA Consultancy Services mundial, um dos maiores conglomerados

da Ásia, avaliado em mais de US$ 20 bilhões. Cristina Boner, já afastada da direção e não

mais acionista do Grupo TBA, tornou-se consultora empresarial em 2008.

Em 2009, propôs ao Conselho de Administração que uma nova empresa fosse criada: a

51 A Lei Maria da Penha, denominação popular da lei número 11.340, de 7 de agosto de 2006, é um dispositivo legal brasileiro que visa aumentar o rigor das punições sobre crimes domésticos. É normalmente aplicada aos

homens que agridem fisicamente ou psicologicamente a uma mulher ou à esposa. No Brasil, segundo dados

da Secretaria de Política para Mulheres, uma a cada cinco mulheres é vítima de violência doméstica. Cerca de

80% dos casos são cometidos por parceiros ou ex-parceiros. Decretada pelo Congresso Nacional e sancionada

pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de agosto de 2006, a lei entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006, e já no dia seguinte o primeiro agressor foi preso, no Rio de Janeiro, após tentar estrangular a

ex-esposa. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Maria_da_Penha Acesso em: 02 de outubro de

2017.

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Globalweb Outsourcing, com foco em ofertar soluções de outsourcing de infraestrutura

baseada em Data Centers para grandes corporações e soluções de computação em nuvem para

pequenas e médias. Isso resultou na fusão da nova Globalweb Outsourcing com a Benner

Sistemas, uma das líderes nacionais no desenvolvimento de aplicativos de gestão empresarial.

Da união nasceu a Globalweb Data Services Corp, que conta com mais 1.800 funcionários,

dos quais cerca de 750 estão sob contrato de pessoa jurídica, sem vínculo empregatício com a

Globalweb.

Em fins de 2009 veio a informação de um esquema de corrupção conhecido

popularmente como Mensalão do DEM, por envolver diversos políticos do

partido Democratas no Distrito Federal. Em 2011, foi divulgado à imprensa vídeo gravado

secretamente por Durval Barbosa em que este negocia com Cristina Boner o pagamento de

propina a deputados distritais. Em 2012, Cristina Boner foi acusada pelo então procurador-

geral da República, Roberto Gurgel, de corrupção ativa e lavagem de dinheiro.

5.7.1 Síntese do vídeo

A palestra de Cristina Boner, intitulada “Não aceitar um não como resposta a levou ao

Bill Gates”, ocorreu no dia seis de agosto de 2016, no auditório da sala São Paulo. Nele a

palestrante conta que veio de uma família muito pobre e com muita falta de condições

financeiras: morava com os pais e os dois irmãos em um apartamento pequeno em São Paulo.

A empreendedora narra que, em uma ocasião na casa de sua avó, passou o constrangimento de

a família não ter dinheiro nem sequer para comprar um sorvete. Neste dia, ao ter que receber

um cruzeiro do tio para comprar o seu sorvete, prometeu a si mesma que iria vencer e nunca

mais nem ela e nem a família iriam passar dificuldades financeiras.

Sendo assim, a trama toda acontece mostrando os passos que a empreendedora

necessitou percorrer para chegar até os dias de hoje. Foi morar em Brasília com os pais e os

irmãos, estudou economia e arquitetura e dispensou esta formação para tentar um curso

tecnólogo na área de informática, por ser um campo, na época, em desenvolvimento e que

despertou seu interesse. Já formada, foi convidada para trabalhar em uma grande empresa,

onde permaneceu por seis anos. Em seguida, começa a trabalhar em vendas em outra empresa.

Em certa ocasião, teve contato com os programas de computadores da empresa

Microsoft e decide comercializá-los no Brasil, o que lhe proporciona bastante lucro e

possibilita a criação de uma empresa própria, a TBA informática. Anos depois, descobre que

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Bill Gates, dono da Microsoft, viria para o Brasil e tenta realizar um pedido de encontro com

o empresário, que é negado. Nesse momento tem a ideia de apresentar o nome de sua empresa

em uma faixa de propaganda que sobrevoou (em um avião) o local em que Bill Gates estava

em reunião. Na faixa estava escrito: “Wellcome Bill Gates” e o logotipo da TBA. Um vídeo é

mostrado em sua apresentação para ilustrar a maneira como isso ocorreu.

A ideia permitiu que Boner e Gates se conhecessem e que fosse fechada uma parceria

entre as empresas TBA e Microsoft. É nesse momento que ocorreu seu Day1. No palco há

inclusive uma transformação no figurino de Boner, que aparece com os cabelos soltos, calça

comprida e bota longa, totalmente diferente do início de sua palestra, em que está com um

lenço na cabeça, barriga de grávida e uma sandalinha de plástico nos pés.

Depois do Day1 monta outra própria, a Global Web, e revela como foi importante a

presença das pessoas em sua vida no sentido de criar seu próprio negócio, viabilizado pelas

parcerias e os envolvimentos interpessoais.

5.7.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

Em toda a narrativa autobiográfica de Cristina Boner apenas em dois momentos há a

menção de uma temporalidade específica. O primeiro deles ocorre quando se projeta no telão

o vídeo sobre o encontro da empreendedora com Bill Gates, onde se lê “Brasília, 1996”. O

segundo momento aparece em sua própria fala, já no final da apresentação:

Trabalhamos muito fazendo história de tecnologia. Por exemplo, imposto de

renda na internet, nós que fizemos; o Sistema Brasileiro de Pagamento SBP,

toda a parte de segurança SBP, nós que desenvolvemos; a primeira nota fiscal eletrônica do Brasil, que foi em 2006, nós que fizemos e emitimos.

O ano de 2006 marca, nesse sentido, uma realização nos empreendimentos de Cristina,

excluindo-se essas duas datas explicitamente mencionadas, resta considerar a temporalidade

da apresentação em si, que ocorreu no mês de agosto de 2016. Configura-se, assim, a

contemporaneidade na qual a cultura e os discursos empreendedores são fomentados.

Já no que diz respeito às espacialidades, elas são circunscritas à infância em São Paulo

(e à casa da avó, Benedita) e à mudança para a cidade de Brasília, que assinala igualmente o

começo da ascensão profissional e financeira de Cristina. Outro ambiente, que aparece de

maneira coadjuvante, é o lar. Ele é acionado na narrativa de Cristina como um contraponto ao

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ambiente de trabalho, pois ela sustenta que muitas vezes nem sequer voltava para casa por

conta dos afazeres do trabalho. Como analisaremos adiante, ela afirma que chegava a dormir

no trabalho e ir para casa apenas duas vezes na semana.

Em vista disso, aciona-se uma discursividade que promulga uma forma de ser e de agir

voltada ao fazer empreendedor, transposta tanto às temporalidades quanto às espacialidades

presentes em seu discurso.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

A narrativa autobiográfica de Cristina Boner revela uma série de laços afetivos que

perpassam toda sua trajetória de vida. Em um primeiro momento essa característica aparece

por meio da representação do seio familiar. A família, portanto, é o ponto de partida dessas

vidas interligadas. Cristina menciona, por exemplo, suas relações com os pais e os irmãos.

“Eu que vim de uma família muito simples, que morava numa casa de 50 metros quadrados

em São Paulo com os meus dois irmãos, o meu pai e a minha mãe”. Podemos observar nesse

dito, como detalharemos mais adiante, a presença de uma descrição da conjuntura

socioeconômica da família, sentido condensado em “família muito simples”. Mas esse não é

um impedimento para que Cristina desfrute dessa rede de afetos, pelo contrário, ela mesma

assevera que “eu fui muito feliz lá”.

Na sequência, Cristina evoca a figura de sua avó, de nome Benedita. Ela se inscreve

em sua narrativa como uma pessoa “marcante”, pois era em sua casa onde passava os finais de

semana. Outras duas pessoas de extrema relevância são Ivo e Nilo, tios de Cristina. A

demarcação de suas posições na narrativa da palestrante importa à análise uma vez que

estabelece um encadeamento temporal entre o passado dificultoso e o presente bem-sucedido.

Isso fica claro a partir de um episódio específico: o dia em que Ivo leva à casa da avó

Benedita uma caixa de picolés. Cristina relata que ficou em um dilema: disputar um dos

picolés com as várias outras crianças presentes ou desistir. Pesava-lhe nessa escolha um

ensinamento de seus pais, de “não desejar nada que não fosse nosso, não querer o que era dos

outros”, porque “a gente devia se contentar com o que a gente tinha”.

Valores morais expressamente demarcados, eles influem sobre a jovem Cristina (na

época com nove anos), que hesita em pegar um dos picolés. Quando não mais aguenta de

vontade de pegar um dos picolés, ela decide enfrentar os ensinamentos paternos. Entretanto,

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quando ela vai pegá-lo, a caixa já está vazia. A vontade logo se transforma em frustração, e

Cristina relata ter ficado com muita vergonha: “eu me senti derretendo, derretendo na frente

das pessoas”. O insucesso da empreitada junto com a vontade do picolé a leva a pedir dinheiro

ao pai, cuja resposta é uma negativa: ele não tem dinheiro para dar à filha. Novamente ela se

entristece. Seu tio Nilo, compadecendo-se de sua situação, oferece então um cruzeiro para que

ela compre um picolé. A conquista, todavia, não se converte em alegria, pois:

No caminho da padaria eu pensava assim: “Poxa, que coisa viu?! Estou

derretendo aqui, estou morrendo de vergonha e não quero nunca mais passar por uma situação dessa e nem deixar que a minha família passe por um

constrangimento financeiro”. Então naquele momento foi o momento em

que eu decidi lutar pra mudar a minha vida e mudar a vida da minha família.

Fica expresso nessa passagem o quanto os vínculos familiares marcam o percurso de

vida de Cristina. Nesse sentido, é interessante notar que é por meio de uma prática de

consumo (ou de sua impossibilidade) que ela (re)significa uma vontade de mudança. O fato de

o pai não ter condições de sequer comprar um picolé se converte em uma decisão de “lutar”,

termo que evoca um interdiscurso a partir do qual se nota uma confrontação de classes. A

família não tem uma condição financeira boa, o que é entendido como um “constrangimento”.

A escassez de recursos acaba, assim, por impulsionar desde cedo uma necessidade de

ascensão social.

Após esse episódio, a narrativa de Cristina dá um salto. Ela passa a discorrer sobre a

mudança para a cidade de Brasília e as dificuldades enfrentadas pela família, apesar de haver

uma “esperança de uma vida nova”. Não é mencionado o período ou a data exata em que essa

mudança ocorreu, mas de qualquer forma a palestrante afirma que na ocasião já trabalhava na

padaria do tio, onde os pais também passaram a trabalhar. Vale destacar que nesse momento

ela retoma a figura dos pais para reforçar outros valores morais por eles defendidos, como

vemos na seguinte passagem:

Meus pais sempre deram um ótimo ensino pra gente e isso fez toda a

diferença do mundo. Então eu sempre estudei nos melhores colégios e meus irmãos também. Eu estudei Belas Artes, eu estudei inglês, eu fui até o último

nível de inglês e os meus irmãos também. E nós pudemos frequentar as

melhores universidades, meu irmão foi estudar engenharia elétrica, minha

irmã foi estudar processamento de dados, eu fui estudar economia e arquitetura. Então a gente tinha muita bagagem de ensino, o que é muito

importante pra todos vocês.

Pode-se verificar existência de um não-dito que vai de encontro ao exposto até então

pela palestrante: por mais que os pais reconheçam a importância dos estudos, como

proporcionar aos filhos uma formação de qualidade se sequer tinha um cruzeiro para o picolé?

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Com isso, queremos salientar que se abre uma lacuna narrativa a partir da qual Cristina busca

significar seu passado de forma positivada (HAN, 2015). Nesse momento, as dificuldades

ficam de lado para dar espaço ao destaque de uma boa criação, pautada em uma educação de

qualidade tanto para ela quanto para os irmãos. Isso inclusive se converte em uma

discursividade que fundamenta valores familiares que Cristina considera importantes e que

prescreve à plateia: “Então a gente tinha muita bagagem de ensino, o que é muito importante

pra todos vocês”.

Em seguida, Cristina já passa a narrar sua entrada na universidade e comenta que foi

nessa época que conheceu o “pai de suas filhas”. Ao longo de sua palestra é válido atentar ao

fato de que essa figura paterna não volta a aparecer; Cristina nem chega a mencionar seu

nome. Mesmo quando descreve as inúmeras atividades domésticas que tinha de exercer – a

ressaltar uma marca de gênero bastante saliente em sua narrativa –, ela não reporta o papel

desse homem em sua vida. Sobre as filhas, elas são trazidas ao discurso apenas quando a

palestrante aborda a questão trabalho e maternidade: o termo “grávida” é recorrente e reforça

tal análise. Algumas fotos das filhas também aparecem no telão.

Na continuidade, Cristina chega a mencionar o papel de alguns chefes em sua carreira

profissional, mas também não diz os nomes. Dentre os empresários que passam por sua

trajetória profissional, Cristina menciona apenas Paulo César, “amigo e sócio até hoje”, e o

empresário indiano Hatan Tajan, com quem manteve uma sociedade por alguns anos.

De qualquer forma, é quando conta a grande história de sucesso de sua vida é que

volta a evidenciar a significância de uma pessoa específica: Bill Gates. De nome William

Henry Gates (Seattle, 28 de outubro de 1955), Bill Gates é um dos fundadores da Microsoft, a

maior empresa de softwares na atualidade. Gates exerce hoje em dia a função de presidente

não-executivo da Microsoft e é considerado uma das pessoas mais ricas do mundo. Como

analisaremos no item Timing of lives, é desse encontro que emerge o seu “Day1”.

Por fim, Cristina menciona quantitativamente os funcionários que integram a equipe

de sua empresa: quatro mil.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

No item “Vidas Interligadas”, destacamos alguns valores familiares que dão sustento

às práticas profissionais de Cristina. Para além deles, podemos verificar ao longo de sua

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narrativa outros princípios que a influenciaram ou ainda influenciam. Um deles, a se tornar

evidente ainda na infância, é a busca por ganhos financeiros. O episódio do picolé leva

Cristina a querer modificar sua realidade de vida. Por exemplo, em “Não quero nunca mais

passar por uma situação dessa e nem deixar que a minha família passe por um

constrangimento financeiro”, temos um não-dito que configura exatamente o desejo de não

mais experienciar uma vida de restrições.

Isso se converte em um valor de desenvolvimento pessoal e laboral baseado em

marcos numéricos, em aquisições, em bens, como se pode constatar em “E minha busca era

por crescer, crescer profissionalmente e financeiramente”. Nessa passagem, é clara a junção

sígnica de “profissão” e “financeiro”, ou seja, termos relacionados ao mundo do trabalho

(SCHWARTZ, 2011; FÍGARO, 2008). Reside neste ponto, porém, um subentendido, que

indica que o trabalho somente será recompensador se for revertido em ganho de capital. Ou

seja, aqueles tipos de trabalhos menos valorizados em sociedade, que não contam com uma

renda digna a quem os exerce, são, assim, desqualificados.

O que se poderia considerar como um trauma (a falta de recursos financeiros), também

tem como reflexo uma valoração de certa forma exacerbada do trabalho por parte de Cristina.

A palestrante relata:

Então eu tinha mais de 50 sistemas pra entregar. A linguagem era muito nova, as máquinas eram novas, ninguém sabia muito nada direito. Então eu

peguei aquilo muito pra mim. A gente tinha que desenvolver os softwares,

fazer o levantamento, fazer a documentação, fazer toda a entrega, fazer os testes, botar o negócio pra rodar e faltava tempo pra gente entregar tudo.

Então eu levava colchonete para o meu trabalho e eu dormia lá. Eu dormia

às vezes duas horas por noite. Às vezes eu ficava em casa um ou dois dias na semana e o resto do tempo todo lá no trabalho. E isso foi durante os meus

seis anos.

Na fala está expresso o quanto a referida “entrega” ao âmbito profissional de sua vida

acaba consumindo os outros momentos, inclusive de sua vida pessoal, o que pode ser

compreendido na perspectiva da noção de engajamento discutida por Boltanski e Chiapello

(2009). Dormir duas horas por noite significa estar desperta 22 horas por dia, cujo não-dito de

sua narrativa indica que esse tempo era integralmente dedicado ao trabalho. Acresce-se a isso

o fato de ela dormir no próprio ambiente de trabalho, indo para casa apenas dois dias da

semana. E como ela mesma traz em sua narrativa, não se tratou de uma ação pontual ou um

curto período de tempo; pelo contrário, essas atividades se estenderam por anos.

Encontramos, nesse sentido, um valor que se transforma em prática concreta. Podemos

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notar a construção de uma narrativa do herói, ou seja, “conjugando a vida quotidiana e a vida

olimpiana, os olimpianos se tornam modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto

é, modelos de vida” (MORIN, 2007, p. 113). Cristina não relata, por exemplo, as inúmeras

dificuldades ou privações e não expõe seus fracassos e seus momentos de incertezas, que

muito provavelmente tal condição lhe trouxe ao longo desse tempo todo; ao contrário, ratifica

as realizações, os feitos, as ações, que, posteriormente, são convertidas na fundamentação de

seu “espírito” empreendedor.

É válido notar que uma vulnerabilidade é expressa quando Cristina trata de seu papel

de mãe, como vemos em:

Então eu comecei um curso de processamento de dados e, quando eu estava no terceiro semestre, eu descobri que estava grávida da minha segunda filha.

E aí, gente, faltava tempo pra tudo. Faltava tempo pra tudo mesmo. Eu não

sabia o que eu fazia. Eu tinha que cuidar da minha filha, eu tinha que fazer almoço, eu tinha que levar ela no pediatra, enfim, eu tinha que fazer tudo.

Tinha que lavar roupa, enfim, tempo pra mim era zero. Não tinha tempo pra

academia, massagem, tirar sobrancelha, fazer salão de beleza, maquiagem definitiva e nem nada disso. Eu simplesmente rodava uma touca no meu

cabelo, botava um lencinho e fazia a unha em casa. No dia seguinte, tirava o

lenço e ia para o trabalho e era assim todo dia. Fim de semana, a mesma

coisa. E foi assim que eu toquei a minha vida até eu me formar.

Dois sentidos principais podem ser extraídos dessa passagem. O primeiro deles, a

partir de um não-dito, é a ausência de qualquer outra pessoa que pudesse auxiliá-la nos

afazeres que descreve; nem ao menos o marido aparece em sua narrativa. Toda a

responsabilidade pelo cuidado com a filha, com as atividades domésticas e com a carreira

profissional ficam a cargo única e exclusivamente de Cristina. Trata-se de uma construção

discursiva que nos faz questionar até que ponto essa sobrecarga também se deu pelo fato de

Cristina ser uma mulher.

Por outro lado, em sentido oposto, esse discurso pode mais uma vez corroborar a

construção de uma figura de herói (MORIN, 2007), de um ser que supera todas as

dificuldades que a vida lhe coloca, sem demonstrar nenhum tipo de fraqueza. Sua alta

performance é não somente exaltada, mas igualmente considerada exemplar. Sendo assim, a

resiliência emerge como um valor subentendido na narrativa autobiográfica da palestrante.

Outro valor enfatizado é “correr riscos”. Quando Cristina é convidada para ir trabalhar

em outra empresa, em uma área na qual não possuía experiência, ela decide enfrentar o

desafio. “E eu pensei: “Sabe que eu acho que é uma boa? Vou arriscar”. E ‘vou pra lá’. No dia

de seu Day1”, a mesma coisa: ela afirma que a ideia de se encontrar com Bill Gates poderia

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não ter funcionado por uma série de fatores, mas que ela mesmo assim “quebrou paradigmas”.

Isso vai ao encontro de um perfil moral empreendedor correspondente a um sujeito cuja

conduta pessoal e de trabalho é reputada como ousada, audaciosa, corajosa.

No início de sua apresentação esse valor também aparece fortemente:

Loucura é tudo aquilo que você faz que tá fora de padrão, uma quebra de

protocolos, que é algo que alguém te fala que não vai dar certo, mas no teu

ímpeto você sabe que vai dar certo e você faz de tudo para que aquilo aconteça. Então loucura eu acho que é ser um pouco de empreendedor. E

loucura também é crescer e sair do nada e construir empresas.

O termo “loucura” é empregado no sentido significar o empreendedorismo como uma

atividade que contém certo grau de inconstância, uma atividade que em si não traz a priori

segurança alguma àquele que empreende. Pelo contrário, na discursividade da narrativa de

Cristina fica evidente que não se pode saber se um negócio vai dar certo ou não. Assim, o

valor que podemos depreender de sua fala é a “fé”, uma necessidade de se acreditar no

incerto.

Já após o “Day1”, Cristina expõe claramente em sua narrativa alguns valores que

guiam o modo como administra os negócios e relações interpessoais.

Mas tudo isso foi feito baseado em pilares, em pilares que pra mim são

muito importantes, pilares de amizade entre pessoas que trabalham juntas,

entre os meus alunos, entre os meus amigos, pilares de centro de urgência,

pilares de lealdade. Então, assim, sem isso não daria pra crescer. Mas o pilar mais importante que eu acho é o pilar da gratidão. Porque vocês lembram

daquele picolé que eu falei lá no início? Então, ele se transformou, ele se

transformou em milhares de pilares, e nós hoje somos muito gratos a todos

os que contribuíram porque sem eles nós não teríamos chegado aonde a gente chegou. E então eu sou muito grata a todos. Empresas são feitas de

pessoas, mas só tem apenas um líder, e esse líder tem que ser você.

Amizade, urgência, lealdade, gratidão: esses valores são tidos como pilares que

sustentam a organização do modo de vida e de trabalho de Cristina, estendendo-se também ao

outro (como funcionários e alunos). Mas é necessário notar ao mesmo tempo que tais valores

estão associados a um termo-chave na fala de Cristina “crescer”. Ou seja, o dito aí presente

revela um posicionamento da palestrante no que se refere a uma funcionalidade prática de

determinados valores. Eles se convertem, por conseguinte, em um meio para a obtenção de

objetivos intrínsecos ao empreender e relacionados a um não-dito: a obtenção de lucro.

Além disso, Cristina retoma a imagem do picolé, transfigurado em alegoria que

estabelece um vínculo entre as dificuldades financeiras da infância e o momento presente, de

sucesso, configurado pelas práticas da cultura empreendedora. Nesse ponto a palestrante

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reconhece a importância de outras pessoas para o desenvolvimento dessas práticas, o que de

certa forma desestabiliza seu discurso individualizador acerca do empreendedorismo.

Entretanto, a figura do empreendedor enquanto um líder que conduz, que guia os outros, é

retomada e ratificada: “Empresas são feitas de pessoas, mas só tem apenas um líder”. A

conjunção adversativa “mas” corrobora essa apreensão.

Ao terminar dizendo que cada um tem de ser líder, Cristina constitui em seu discurso

um paradoxo. Se todos são líderes, ninguém de fato o é. Ou melhor, realmente todos podem

ou querem liderar? Se por um lado se justifica um princípio empreendedor, por outro se

coloca em xeque sua factibilidade. Trata-se, portanto, de constatar que alguns valores

empreendedores não podem ser praticados ou sua prática se restringe àqueles que

verdadeiramente já se consolidaram como empreendedores de sucesso.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

O percurso pessoal/profissional encontrado na narrativa autobiográfica de Cristina é

demarcado por três momentos distintos: a infância, o início de sua carreira profissional e o

momento após seu “Day1”.

Em relação à infância, como abordado na análise de vidas interligadas, fica expressa

sobretudo a falta de recursos financeiros dos pais, conjuntura que passa a guiar sua vontade de

mudar, de alterar a realidade e melhorar de vida. Podemos considerar que esse é um dos

principais fatores de sua busca por ganhos materiais, de capital, um valor que se propaga em

seus discursos, base de seu perfil empreendedor.

Nesse sentido, consideramos válida a verificação de que uma condição financeira de

falta irá se fundamentar como um substrato primordial da narrativa autobiográfica de Cristina

no que diz respeito ao momento “pré-Day1”. Como exemplo, podemos apontar que, quando

narra sobre sua vida de recém-casada, continua a pautar essa temática. Na passagem a seguir

essa relação fica clara:

Quando eu estava já me formando no curso de economia, eu conheci o pai das minhas filhas. Nós nos casamos, mas a vida ainda… E eu só tinha, para

vocês terem uma ideia, uma sandália, uma sandália melissa igual a essa aqui,

duas batas, um macacão de grávida, a sandália… E eu era muito feliz, mas,

assim, a gente não tinha dinheiro. Pra vocês terem uma ideia, o meu apartamento não tinha elevador, a gente tinha que subir de escada, não tinha

móveis, a gente tinha um colchão e várias almofadas. Não tinha tempo, não

tinha dinheiro, era tudo muito difícil.

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Persiste em seu discurso a caracterização de uma vida perpassada por dificuldades de

ordem material. As poucas vestimentas, um prédio sem elevador, um apartamento sem móveis

e a falta de tempo são ditos que denotam tal desprovimento, que se torna incontestável em “a

gente não tinha dinheiro”. É interessante notar que essa representação se reflete inclusive no

modo como Cristina aparece no palco do Day1 nessa primeira parte de sua apresentação. Ela

literalmente se converte em um espelho do que está a narrar (vide figura XX).

Figura 25: as sandálias da “miséria”

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=7xuuCU469dg>.

Cristina usa uma vestimenta muito simples, inteiramente preta, um lenço na cabeça e

as sandálias azuis de que fala, remetendo ao momento de seu percurso de vida em que “era

tudo muito difícil”. Na interdiscursividade aí colocada se reforça o entendimento de que uma

vida digna depende de modo imprescindível de condições materiais (econômicas) que a

suportem. Novamente, então, Cristina expõe a necessidade de sair dessa situação: “Eu pensei

assim, eu estou feliz? Sim, eu estou feliz. Eu tenho dinheiro? Não, eu não tenho dinheiro. E a

minha busca era por crescer, crescer profissionalmente e financeiramente”. É a partir desse

ponto que sua narrativa se transforma, desde o exercício laboral no mundo do trabalho

(SCHWARTZ, 2011; FÍGARO, 2008) enquanto prática do fazer.

Após largar os cursos superiores que cursava para se dedicar a um outro, de

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processamento de dados, descobrir estar grávida de sua segunda filha e enfrentar uma série de

outras dificuldades, começa a trilhar seu caminho rumo ao “Day1”, como exposto em:

Quando eu me formei, eu já fui convidada imediatamente pra ir trabalhar

numa grande empresa e ser gerente de desenvolvimento de software de mais 120 pessoas. Lá eu já ia ganhar bem e eu tive um dos maiores desafios da

minha vida: eu tinha 120 pessoas pra gerenciar. A gente tinha mais de 50

clientes pra atender, então eu tinha mais de 50 sistemas pra entregar. A linguagem era muito nova, as máquinas eram novas, ninguém sabia muito

nada direito, então eu peguei aquilo muito pra mim.

Nessa passagem precisamos notar, contudo, que a mudança para outro momento de

vida, em que trabalho e ganho financeiro já deixaram de ser o problema central (“Lá eu já ia

ganhar bem”), ocorre de maneira abrupta. Em “fui convidada imediatamente para ir trabalhar

numa grande empresa”, encontramos uma formação discursiva capaz de gerar entendimentos

diversos sobre esse fato.

Por um lado, pode-se supor que “imediatamente” configure uma conexão com as

habilidades e capacitações de Cristina, que, possuindo certa excelência no fazer, consegue um

emprego logo após o término de seu curso. Por outro, há possibilidade de se questionar tal

feito, pois em nenhum momento em sua narrativa de vida a palestrante explicita como se deu

esse processo; por exemplo, ela não aborda como desenvolveu sua experiência profissional:

de um contexto de formação educacional - entremeada pelos percalços advindos da condição

financeira, da criação das filhas e do cuidado ao lar - salta a um cenário de estabilidade

laboral - circunscrita pela posição de trabalho ocupada, a de gerente - e prosperidade. De

qualquer modo, este momento se instaura como uma transição, ininterrupta e sem volta, rumo

ao sucesso.

Outro ponto anterior ao “Day1” de Cristina que cabe ser reportado se relaciona

intrinsecamente com uma questão interseccional de gênero e trabalho, que aparece de forma

bastante recorrente em sua narrativa. Após seis anos como gerente no primeiro emprego,

Cristina diz ter sido convidada por um de seus clientes para ir trabalhar na área comercial de

outra empresa, proposta que ela aceita. Logo na primeira reunião de que participa, para vender

um produto/serviço, ocorre um questionamento de sua atuação profissional.

Depois de uma hora mais ou menos de reunião, só tinha homens na sala e

todo mundo me olhava mais ou menos assim “Ah, essa aí acho que é assistente do diretor, veio tomar nota da reunião”. E depois de uma hora, que

eu vi que aquilo não estava indo pra lugar nenhum aquela reunião, eu botei a

mão na mesa e falei: “Gente, posso falar?”. Aí eu vi que todo mundo me olhou com aquela cara assim “Ixi, ela vai falar. Meu Deus, o que será que

essa mulher vai falar?”. Loira ainda.

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Ser a única mulher na sala já atesta um ambiente marcadamente hegemônico no que se

refere ao valor simbólico do gênero masculino em detrimento do feminino, a indicar um

âmbito laboral desigual. Em consequência, sua presença é descreditada, reduzida a uma

função de segunda ordem. Notamos, por exemplo, que até mesmo a possibilidade de ter voz

está colocada em jogo, o que ratifica uma relação de poder assimétrica entre gêneros.

Esse panorama parece se alterar apenas a partir do momento em que seu trabalho traz

rendimentos à empresa: “Depois dessa venda eu fiz outra venda, e as vendas foram ficando

maiores. E aí o meu diretor, que tinha me chamado pra trabalhar com ele, me definiu como

uma fêmea alfa dominante”.

É patente como tal mudança de perspectiva sobre a condição feminina de Cristina

passa por um processo de masculinização de sua identidade, como conotado na expressão em

destaque. Ser uma “fêmea dominante” abre, assim, uma significação no mínimo dupla: a de

uma animalização de sua imagem pública e a fixação de um perfil autoritário, que domina

para exercer poder - aproximando-a de um estereótipo de gênero masculino. Em suas

palavras, “significa aquela que realmente domina o ambiente, aquela que traz as pessoas pra

perto, que consegue levar um projeto até o fim da forma que dá certo”. É após seu “Day1”

que se observa uma alteração nesse quadro.

No que concerne propriamente a este, ele está intimamente correlacionado a Bill

Gates. De fato, ocorre com base na vinda do empresário americano ao Brasil. Na ocasião,

Cristina já havia largado o emprego e montado a própria empresa.

Foi aí que eu percebi que o Bill Gates vinha para o Brasil. Eu falei: “Opa,

agora é a hora que eu vou mostrar para o dono da Microsoft tudo o que a

gente está fazendo pela empresa dele, quer dizer, nós estamos vendendo, nós estamos fazendo a plataforma crescer, nós estamos dando treinamento,

enfim, eu tenho que falar com ele. Vou pedir pra Microsoft”.

Cristina envia uma carta a Microsoft, pedindo um encontro com Bill Gates. Ao receber

a negativa, decide realizar uma tentativa de comunicação incomum: uma faixa de boas-

vindas, de 150 metros, onde se lia “Wellcome, Bill Gates” e o nome de sua empresa (TBA),

levada por um avião de pequeno porte que circulou pela cidade o dia todo. No vídeo exibido

na sua apresentação, há uma reconstituição de cena em que Bill Gates teria ficado curioso

sobre o que seria a TBA. De qualquer forma, o resultado culmina no momento de virada ou de

real transformação na narrativa autobiográfica de Cristina: no dia seguinte ela se encontra

com o empresário. No telão, exibe-se a fotografia que registra o momento.

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222

Figura 26: o grande encontro

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=7xuuCU469dg>.

Sobre tal empreitada, Cristina afirma que:

Esse foi meu Day1. Assim é que eu acho que eu quebrei os paradigmas. Deu tudo certo. Podia ter dado tudo errado: podia ter chovido, podia a Infraero ter

proibido a gente de voar, ele podia não ter visto, podia um monte de coisa ter

acontecido, mas não aconteceu. Deu tudo certo (...).

A significação de “paradigma” equivale a um padrão ou modelo regimentar a ser

seguido. Portanto, a “quebra” desse paradigma representa um valor específico: o não-respeito

à ordem dada, a partir do qual Cristina consegue alcançar um ponto de virada. Mas ela

reconhece, por outro lado, os riscos assumidos, pois uma série de fatores poderiam ter

contribuído ao insucesso de sua ideia. Isso indica um interdiscurso que remete às dificuldades

de se chegar ao ponto de virada, de se ter um “Day1”.

A partir desse ponto, Cristina passa a narrar sobre os feitos mais recentes de sua

carreira profissional empreendedora. Em sua narrativa, ela foca muito em indicadores

numéricos para salientar o sucesso alcançado: “Nós saímos de 500 mil reais por ano pra mais

de 100 milhões em 4 anos”; “faz uma lista das 10 maiores empresas indianas”; “uma empresa

de 13 bilhões de dólares; na época ela faturava 3 bilhões”; “em 5 anos a gente tinha mais de 3

mil funcionários”; “a Global Web que é um grupo de 7 empresas que hoje nós temos mais de

4 mil funcionários”. O sentido que perpassa tais indicadores está fortemente pautado em uma

métrica quantitativa para se avaliar o sucesso, com destaque aos ganhos financeiros como um

de seus pilares, bem como, atestar sua narrativa do eu, que espetaculariza seus feitos pautados

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223

pela alta performance e o investimento em seu capital humano.

Finalmente, não podemos deixar de considerar na análise a própria performance de

Cristina em sua apresentação no Day1. Se no início se coloca de forma muito simples e

modesta (lenço na cabeça, vestimenta sóbria, sandálias, barriga falsa de grávida), após o vídeo

sobre Bill Gates ela retorna ao palco completamente diferente: está com os cabelos soltos, usa

jaqueta e botas de couro e não usa mais a barriga de grávida. A mudança no visual ilustra seu

momento de vida de transformação, unindo discurso e imagem.

Figura 27: A transformação: do discurso à imagem

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=7xuuCU469dg>.

5.7.3 Síntese de análise

Em “Localização no tempo e no espaço” somente em dois momentos aparece a

menção de uma temporalidade específica: a ocasião da visita de Bill Gates ao Brasil, no ano

de 1996, e o ano de 2006, em que se destaca uma realização de uma das empresas de Cristina

(a emissão da primeira nota fiscal eletrônica no país). Excluídas essas duas datas, resta

considerar o momento presente, a contemporaneidade, no qual suas narrativas são

midiatizadas. Em relação aos espaços, destaca-se a casa da avó, a cidade de São Paulo e a

mudança para Brasília.

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Já em “Vidas interligadas”, por sua vez, Cristina expõe diversos laços afetivos que se

mostram relevantes em sua trajetória de vida, na decisão do ato de empreender e no

desenvolvimento dos empreendimentos. Salienta-se o âmbito familiar na infância e

adolescência (mãe, pais, irmãos, avó, tios); o marido e as filhas, na fase adulta; Paulo César e

Hatan Tajan, sócios da empreendedora em seus negócios; Bill Gates, que inclusive define o

seu Day1; e os funcionários de suas empresas, apresentados quantitativamente (quatro mil).

Como valores principais que surgem em “Orientação pessoal das ações”, temos a

busca por ganhos financeiros, valor de conduta pessoal e laboral, pautado em fundamentos

numéricos, em aquisições, em lucro. Destaca-se, igualmente, a primazia de realizações, feitos

e ações, ou seja, de conquistas que intentam, por meio de uma ratificação da alta performance,

arquitetar a criação de uma imagem heroica, exemplar. Outro valor verificado, que de certo

modo corrobora tal entendimento, é o “correr riscos”, assumido como um princípio primordial

à atividade empreendedora. Por fim, também constatamos que amizade, urgência, lealdade e

gratidão são valores de conduta acionados em suas narrativas autobiográficas.

“Momentos de vida”, enfim, refere-se ao percurso pessoal e profissional de Cristina,

dividido em três momentos: a infância, o início de sua carreira profissional e o período após

seu “Day1”. Na infância, está colocada a falta de recursos financeiros e a aprendizagem de

valores que sustentam sua conduta de vida. O início de sua carreira profissional é

caracterizado ao mesmo tempo como um grande desafio (principalmente no que se refere a

uma carga de trabalho excessiva, que tinha de conciliar com a criação das filhas) e também

como uma ascensão social por meio dos ganhos financeiros obtidos, que, posteriormente, a

permitem dar início a seus empreendimentos. Já a última fase é representada pelo pós-Day1 (o

encontro com Bill Gates), que é tratado como uma fase de pleno sucesso e reconhecimento

social.

5.8 ANÁLISE 8: PAOLA FLORENCIA CAROSELLA

Paola Florencia Carosella nasceu em Buenos Aires, em 30 de outubro de 1972. É

cozinheira, empresária, executiva e chef de cozinha ítalo-argentina radicada no Brasil. De

origem familiar italiana, Paola teve influência das avós, mulheres que plantavam, colhiam e

cozinhavam de maneira intensa.

Terminou o colegial em 1992 e foi trabalhar em cozinhas de grandes restaurantes.

Trabalhou com cozinheiros famosos, tais como: Paul Azema e Francis Mallmann. Viajou para

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Paris e trabalhou no Le Grand Vefour, Le Celadon e Le Bristol. Na Califórnia, trabalhou

no Zuni Café; no Uruguai, no Los Negros; no 1884, em Mendoza, Argentina; no Patagonia

Sur, em Buenos Aires; no Patagônia West, em Nova Iorque.

Chegou em São Paulo em 2001 para dirigir e trabalhar no restaurante Figueira

Rubaiyat, junto com mais dois chefes de cozinha, Francis Mallmann e Belarmino Fernandes

Iglesias. Em 2003, abriu o pequeno restaurante Julia Cocina – considerado uma homenagem a

Julia Child (uma autora de livros de culinária e apresentadora de televisão americana) –, que

foi seu grande aprendizado como empresária. Atualmente, é proprietária do restaurante de

comida mediterrânea Arturito, inaugurado em 2008; e, juntamente com o seu sócio, Benny

Goldenberg, abriu o café La Guapa, onde serve empanadas artesanais e doces latinos

artesanais, na cidade de São Paulo. A cozinheira ficou conhecida por sua exposição midiática

como jurada do programa Master Chef Brasil, versão brasileira de um reality show culinário

transmitido pela emissora de TV Bandeirantes.

É autora do livro intitulado “Todas as sextas”, lançado em 7 de novembro de 2016,

sendo uma mescla de receitas aprendidas durante a carreira e sua autobiografia. Ao longo de

sua carreira como cozinheira, Paola acumulou os seguintes prêmios: chefe revelação na

revista Gula (2009); melhor restaurante variado na revista Veja (2009); Chefe do ano na

revista Veja (2010); melhor restaurante variado na revista Veja (2010); melhor chef do ano

pelo Guia Folha (2014); melhor salgado na Veja São Paulo Comer & Beber (2016/2017).

5.8.1 Síntese do vídeo

A palestra do Day1 de Paola Carosella ocorreu dia cinco de junho de 2017, na sala São

Paulo, integrante do Centro Cultural Júlio Prestes, local em que ocorrem apresentações de

concertos e orquestras. A tomada de cena em plano geral apresenta a empreendedora de corpo

inteiro falando para a plateia. Por ser um local sofisticado e com uma decoração cheia de

detalhes, o espaço impressiona por sua grandiosidade. Paola apresenta os principais

momentos da sua infância e adolescência, que foram influenciados principalmente pela avó,

que tinha o gosto pela cozinha, e pela convivência com os pais.

Figura 28: cena da palestra Day1 de Paola Carosella

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226

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

Nessa fase da vida, Paola se considerava uma menina triste, sozinha e que se ocupava

da cozinha como ofício, sendo a única filha que morava com a mãe e que tinha os pais

separados. A menina cozinhava para ela e sua mãe enquanto esta trabalhava. A sua

narrativização da vida retrata as dificuldades pelas quais passou na infância e adolescência até

chegar à fase adulta, como cozinheira e proprietária de restaurante. Mostra as dificuldades que

teve para montar seu primeiro restaurante, que não deu certo, não pela qualidade da comida,

mas pela a escolha errada do sócio, em que não cofiava. Assim, sua história apresenta as

principais dificuldades financeiras, a má escolha de diferentes sócios e a responsabilidade de

criar sua filha pequena.

5.8.2 Análise do vídeo

a) Localização no tempo e no espaço (Location in time and place)

A narrativa autobiográfica de transformação da empreendedora Paola apresenta

momentos de infância, término do curso colegial na adolescência e a fase adulta, quando

viveu em vários lugares do mundo trabalhando como cozinheira em diferentes restaurantes.

Encontramos um marco de localização de tempo e espaço sinalizado pelo ano de 2001, data

em que a empreendedora Paola chega à cidade de São Paulo; portanto, contextualizando o

tempo contemporâneo. Este cenário é atravessado por um período de diversas transformações

socioeconômicas, o que possibilitou à empreendedora se radicar no Brasil e abrir seu primeiro

restaurante, o Julia Cocina, em junho de 2003.

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Como marcas da relação do tempo e espaço, encontramos os seguintes ditos nas falas

da empreendedora: “Eu tinha 40 anos, foi faz (sic) 4 anos atrás, não precisam fazer as contas,

faz 4 anos atrás, eu tinha 40 anos, estava no Brasil há 12 anos”. Sua vinda ao Brasil em 2001

marca um investimento pessoal e profissional em um novo país com promessas de negócios

futuros, uma vez que o país se encontrava em pleno desenvolvimento econômico.

Temos um tempo que nos sinaliza a fase adulta da empreendedora. Estabelece-se

nesta fala um não-dito implícito de contextualização de um Brasil situado na

contemporaneidade e caracterizado por mudanças nos planos econômico, político e social, em

que o país se abria para a economia globalizada e a entrada do capital de outros países que

estavam interessados em investir aqui. Ocorre, pois, a presença de diferentes vozes que se

associam a campos distintos representados pela política, economia e o campo social, uma vez

que tentar a vida em outro país é ter o desafio de se adaptar a uma nova cultura e implica em

um esforço individual profundo no sentido de se assujeitar às novas regras e valores.

Neste momento, é projetada no telão uma imagem (Figura 29) em enquadramento em

plano geral, que sinaliza essa passagem.

Figura 29: cena extraída do Power Point projetado no telão que fica no palco do Day1

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

A imagem projetada apresenta a América do Sul e o Brasil aparece em destaque, o que

reforça a fala da cozinheira vir residir no país e tentar a vida aqui, na posição de empresária.

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228

Ao mesmo tempo, podemos interpretar que o Brasil nos remete a um subentendido de ter

alguma representatividade socioeconômica junto ao contexto sul-americano.

A palavra “empresária” tem como subentendido a presença de várias vozes

relacionadas ao trabalho e à economia com o sentido de apresentar a empresária como

expoente no mercado, com capacidade de criar empregos. Ao se identificar como empresária,

fica explicitado uma formação discursiva ligada ao campo do trabalho empreendedor

(BOURDIEU, 2009), o que reforça as bases do neoliberalismo presente em sua forma de

operar no contexto atual.

Outro momento de sua vida fica demarcado no enunciado “Então, obviamente, quando

eu terminei a escola aos 18 anos eu escolhi ser cozinheira. Muito bem, eu ia falar dentista,

mas não, foi cozinheira.”. Encontramos em sua fala a marca de sua constituição identitária. É

um dito que fica legitimado logo no início de sua palestra e que nos leva a uma formação

discursiva. Segundo Orlandi (2001), as palavras mudam de sentido em função das posições

das pessoas que a empregam. Paola vacila entre ser empresária e cozinheira, como se uma

categoria anulasse a outra; em outros termos, seu diferencial como empresária é ser

cozinheira, havendo total sinergia entre as duas práticas.

Esta formação discursiva “é determinada em função de uma conjuntura sócio-histórica

dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2001, p. 43). Assim, ser cozinheira

tem sentido no campo de alimentação e está relacionado à questão de se tornar empresária,

pois gostar de cozinhar lhe permitiu pensar em ter seu próprio negócio. Ao mesmo tempo,

encontramos as vozes silenciadas de pessoas representadas pela cozinheira em um lar, bar ou

restaurante, que nem cogitam ou têm condições financeiras de serem empreendedores do seu

próprio negócio.

Outro momento da contemporaneidade fica demarcado na frase “O Brasil, isso foi em

2013 ou 2012, o Brasil vai mudar daqui a pouco, o público vai ser diferente e a gente precisa

se adaptar, nós precisamos ter uma proposta muito mais amável, isso aqui não vai funcionar.”,

onde a protagonista refere-se à mudança de posicionamento de seu restaurante Arturito, que

dividia com outros sete sócios. Esta demarcação discursiva nos revela os últimos anos vividos

pelo Brasil, um país que teve uma série de mudanças no contexto político-econômico, em que

se vivencia uma instabilidade econômica, o que acaba por impactar a vida das pessoas.

Em “A gente precisa se adaptar” há uma formação discursiva de um tempo histórico

dos últimos anos, que possibilitou às pessoas terem novas práticas em relação à forma de

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pensar o trabalho e a vida. Destaca-se um não-dito que universaliza o discurso da mudança

como uma racionalidade prevista nas normas do neoliberalismo (DARDOT; LAVAL, 2016).

Assim, temos interesses distintos na voz de Paola, dos seus clientes e seus funcionários, que

expressam conflitos na forma de agir diante deste sistema.

Complementarmente à fala anterior, a questão da mudança é recorrente, como nos

mostra este enunciado: “Eu estava falando que o Brasil ia mudar e onde a gastronomia

precisava mudar. Eu já sabia que era necessário mudar e mudar rápido.”. Há a presença de um

não-dito que legitima as mudanças ocorridas na vida pessoal e na forma de se relacionar com

o consumo de bens e serviços e que circulam por questões socioeconômicas. Estas mudanças

permitem que os indivíduos possam escolher diferentes lugares de convivência, o que

possibilita, por exemplo, frequentar o restaurante da Paola para consumir os serviços

prestados pela empreendedora.

Neste sentido, em função de atender às novas demandas e mudanças de

comportamento do consumidor, inaugura em 2014 o primeiro café de empanadas artesanais.

Consideramos que a narrativa autobiográfica de transformação da protagonista apresenta uma

sobreposição entre o mundo do trabalho e a vida, em que as práticas da cultura

empreendedora permeiam sua construção social e perfil moral de agir.

b) Vidas interligadas (Linked lives)

A trajetória de vida de Paola é marcada pela presença de várias pessoas que cruzaram

momentos distintos de sua trajetória pessoal e profissional. Encontramos a representação de

suas avós, que fica demarcada de forma clara e explicitada na frase: “Eu cresci brincando de

cozinhar, eu sou eu venho de uma família de imigrantes italianos. Na casa das minhas avós a

cozinha era o centro de tudo.”. Refere-se em especial aos finais de semana em que convivia

com as avós que sabiam cozinhar. Crescer cozinhando é um dito que apresenta o ofício de

cozinhar como algo bom, tal qual a experiência prazerosa do brincar. A comida tem um

entendimento não explicitado que se relaciona aos afetos em família e à união das pessoas,

visto como elemento de ligação entre pessoas próximas.

Temos a presença de vozes não explicitadas que representam os vários componentes

de uma família; uma formação discursiva marcada por uma ideologia em que se valoriza a

família como sendo um pilar de formação identitária. Neste cenário, temos a presença de um

interdiscurso de algo que fala como a memória discursiva de Paola ao se lembrar dos bons

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momentos vividos na casa da avó italiana. A importância da avó é explicitada na frase: “Mas

eu me encantei com a cozinha, eu adorava a forma como a minha avó colocava a comida na

mesa, me parecia um ato muito poderoso dessa minha avó.”. Assim, este exemplo da avó foi

sendo interiorizado por Paola e, de certo modo, influenciou a empreendedora a ordenar o seu

discurso a partir da prática de cozinhar.

Em outro momento, Paola se refere aos pais: “Mas eu cresci, eu sou filha de pais

separados e eu cresci morando com a minha mãe em um apartamento onde o cotidiano era

bastante diferente”. O dito de pais separados está relacionado ao convívio com a separação e a

falta de união entre eles. Podemos ter a interpretação de vozes relacionadas à falta de união,

preconceito de ter pais separados e até mesmo questões relacionadas com sofrimento.

Na frase “Eu tive uma mãe incrível, muito forte, super empreendedora, linda,

inteligentíssima, que trabalhou muito a vida inteira e estudou muito a vida inteira, mas foi

sempre muito triste.” a interpretação tem a ver com o espelhamento de Paola nessa mãe

também empreendedora, que nos revela um discurso das práticas desta cultura onde ter um

negócio próprio e ser empreendedor de si faz parte deste novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Fica um não-dito atrelado ao sistema capitalista que

enfatiza a pessoa que tem uma atividade laboral como forma de ser reconhecida socialmente.

Encontramos o uso de vozes que demarcam sua heterogeneidade no contexto social vigente,

em que se valoriza o trabalho como um fator relevante a ser considerado na condução da vida.

A questão de ser muito triste está relacionada com o não-dito: o imperativo da

felicidade (FREIRE FILHO, 2010), a partir do qual as pessoas são cobradas a estarem na

condição de serem felizes em todos os momentos da vida, pois o sentimento de tristeza não é

uma atitude aceita pelas regras da sociedade vigente. Para o autor é algo que deve ser

combatido, pois, como questiona, há uma impossibilidade de viver a vida sendo feliz em

todas as suas fases.

Outro momento em que se salienta a presença dos pais em sua vida é legitimado no

enunciado: “E me deixaram de herança a minha mãe uma casa e um seguro de vida, e o meu

pai uma aquarela pintada a mão por ele, azul com um vaso branco com flores amarelas.”. A

palavra “herança” conota o recebimento de algum valor, que, no caso, possibilitou sua entrada

na vida empreendedora. Um não-dito que nos leva a interpretar que com a venda da casa e o

dinheiro recebido do seguro de vida se pôde obter capital, importante para se aplicar em

algum projeto de vida. Para Paola, ele serviu à obtenção de recursos para abrir seu próprio

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restaurante. Com uma mãe que lhe deixou algum bem material, fica demarcada a importância

do dinheiro na vida da empreendedora. Em relação à figura do pai, há um subentendido não

claro de uma relação entre pai e filha, cercada por certo afastamento e não convivência

constante.

Dando continuidade, na trajetória de vida de Paola encontramos a figura dos diversos

sócios que teve, essenciais para seu projeto empreendedor. Assim, levantamos os principais

momentos desta dinâmica entre sócios. Na fala “Precisei ou quis ou escolhi ter um sócio, e

essa sociedade em algum momento quebrou-se a confiança da sociedade, quebrou-se e eu

parei de acreditar não somente nele, mas na capacidade dessa sociedade ir pra frente ou ir

além.”, observamos um pressuposto de dificuldade na relação empresarial entre indivíduos.

Em outras palavras, a confiança emerge como um elemento necessário e condutor dos

empreendimentos. Para empreender, Paola necessitou ter um sócio, representado por um

indivíduo no qual a mesma não confiava.

Deste modo, a empreendedora passa a procurar novos sócios. “Então com essa

experiência de escolher um sócio errado eu entrei no embalo e no lugar de escolher 1 sócio

errado eu escolhi 7, argentinos, 7 a 1, desse lado daqui o 7 a 1 nunca dá muito certo”. Temos

um dito onde a protagonista demonstra ter falhado na escolha do sócio e um não-dito que

revela a complexidade da cultura empreendedora, uma vez que existe um perfil e habilidade

de conhecimento para o exercício desta posição. Tal dificuldade pode ser considerada um

comportamento centrado no novo espírito do capitalismo (BOLTANSKI; CHIAPELLO

2009), em que as formas de relacionamento e fazer negócios estão em rede, nem sempre são

duradouras, tendo em vista a falta de confiança entre as partes envolvidas: existe uma vertente

relacional individualista.

Sendo assim, em sua nova tentativa de encontrar um sócio, Paola apresenta ter

descoberto, finalmente, o sócio “certo”: “Então, em 2014, o Benny, que é esse senhor com

essa barba vintage ali, e eu tiramos o projeto empanadas do papel e La Guapa, o primeiro café

de empanadas latinas artesanais saiu do papel e virou loja e eu peguei mais um empréstimo”.

Mas a vida interligada de Paola não se materializa somente pela presença da família e

das dificuldades de encontrar sócios corretos. Surge igualmente a importância de sua filha,

como notamos no enunciado: “Eu fui mãe, eu tive uma filha, eu pus um ser humano nesse

universo e aí, tem algumas pessoas que falam que quando as mulheres são mães elas tiram as

unhas e eu soltei todas as minhas unhas.”. Encontramos uma fala que demarca a representação

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social e de gênero (do papel materno).

Temos a presença de um não-dito que permeia as reponsabilidades na posição de fala

de ser mãe. Ocorre a incidência de uma carga simbólica de ser, também, responsável pela

educação dos filhos. Encontramos a materialização do gênero feminino na função de procriar,

cuidar da alimentação e primar pela educação dos filhos. A presença das vozes da sociedade

atravessa este discurso, porque cada mãe vem de uma origem específica e procura transmitir

os valores e ensinamentos em função de um perfil moral adquirido, extraído de suas

sociabilidades.

c) Orientação pessoal das ações (Human agency)

Na narrativização da vida de Paola, encontramos uma trajetória marcada por uma

construção de identidade embasada na posição e no lugar de fala da empresária, cozinheira e

executiva, que teve a vida marcada por vários acontecimentos centrados nas mudanças para se

adaptar ao sistema vigente. Em um de seus enunciados, constata-se a exposição de seu perfil,

caracterizado pela intuição, explicitada pelo dito: “Porque eu não sei pensar, sinceramente eu

não sou uma pessoa que pensa, sério, eu sou cozinheira, eu sou muito intuitiva, nunca tive que

pensar muito antes de tomar uma decisão.”. Encontramos um dito que reforça as práticas

racionais do empreendedorismo em consonância com o conhecimento intuitivo, próprio do

campo da criatividade. Neste sentido, o trabalho na cultura empreendedora envolve razão e

emoção como práticas objetivas, com jogos de interesses envolvidos. É um discurso que

aproxima a fala da empreendedora da plateia e da sociedade.

Dando continuidade aos valores e práticas que conduzem a vida da empreendedora,

temos o enunciado: “Eu não sou feliz na vida que eu tenho, não estou vivendo a vida que eu

quero; eu preciso fazer alguma coisa pra mudar essa vida porque ninguém vai mudar essa vida

pra mim; e eu sou cozinheira.”. Ele está relacionado à fase de vida em que não encontrava o

sócio adequado. Ela acredita neste discurso, porque considera a gestão de si como condição

essencial para a mudança. Ao mesmo tempo, este desconforto reflete o discurso de autoajuda

(ILLOUZ, 2011), pelo viés do depoimento da empreendedora que reconhece que, para estar

em linha com a lógica do sistema vigente, algo (algum comportamento) precisa ser alterado

em sua vida.

Ao mencionar “eu não sou feliz”, temos a presença de vozes presentes nos discursos

midiatizados, da sociedade, que valorizam a felicidade como um sentimento que deve ser

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preservado. Neste sentido, encontramos, mais uma vez, o imperativo de felicidade (FREIRE

FILHO, 2010) nestas vozes que compõem o discurso da empreendedora de agir em linha aos

valores do contexto social vigente.

Em outra fala de Paola, ela menciona: “E eu me dei bem na cozinha, eu gostava de

cozinhar e eu era boa pra isso e eu fui crescendo.”. Mostra-se uma fala que busca afirmar o

valor de sua competência e habilidade pessoal para o exercício de ser cozinheira. Emerge a

representação do interdiscurso marcado por vozes de outras cozinheiras que estão abarcadas

neste discurso para compor o lugar de fala de Paola. Aqui, começa-se a configurar um saber

específico da empreendedora. Na exposição de si, temos a presença do discurso de alta

performance, que atesta o crescimento no campo do trabalho ao ser legitimada como uma boa

profissional deste ramo. A palavra “crescimento” é polissêmica e pode ser utilizada em vários

contextos; mas crescer enquanto cozinheira é estar em uma posição de fala de ser reconhecida

por seus feitos exercidos.

Neste sentido, em sua narrativa “Eu decidi investir aqui no Brasil porque eu não falava

português, porque eu não tinha documentos, porque eu não conhecia ninguém, então ia ser

muito fácil empreender no Brasil”, temos um discurso que, a partir da palavra “investir”,

confere um jogo semântico, aparentemente contraditório, mas com a presença do traço da

interdiscursividade em que localizamos o mundo do trabalho, agora apresentado por uma

posição de fala não só de cozinheira. Existe uma memória discursiva que apresenta a fala da

empreendedora, que é um agente social que investe em um negócio próprio, de mercado, e

que visa lucro. Temos um não-dito que abarca as vozes do trabalho extraído da cultura

empreendedora em sua forma de agir.

Dando continuidade à sua conduta pessoal, a mesma atravessa o campo laboral com

um valor pessoal de generosidade, como observamos na seguinte passagem:

Eu queria abrir um restaurante generoso, eu queria abrir um restaurante que

fizesse um impacto muito maior no espaço onde estava, na sociedade onde

estava, além de ter clientes ou além de, sei lá, tíquete médio, eu queria ter pessoas que fossem muito felizes

Ocorre a marcação do trabalho, portanto, de uma atividade produtiva relacionada à

figura de empresário e/ou empreendedor, que tem um negócio próprio, não sendo compatível

ao significado e interpretação da palavra “generoso”, pois o sentido da mesma é agir ou

praticar alguma atitude, geralmente sem receber nada em troca, ou seja, algum capital em

função do serviço prestado.

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234

Gerar impacto, na fala da empreendedora, está relacionado a fazer algo diferente, que

movimente a economia, sendo um comportamento inserido no novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009), em que a mudança é um comportamento valorizado

como atitude a ser seguida. A menção ao tíquete médio tem um não-dito e a voz do discurso

econômico relacionada ao capital e à venda de bem material, no caso, a venda dos serviços de

um restaurante. Esta fala, apresenta o subentendido e pressuposto da relação e importância do

dinheiro na vida da empreendedora, porque ao mesmo tempo que quer ser generosa não

esquece da transação financeira que este tipo de negócio confere.

Por fim, a questão da felicidade, aparece novamente, na fala de Paola, como algo a ser

enfatizado, mas agora com uma interpretação de sentido de ser a protagonista na promoção da

felicidade, sendo um discurso que identifica a questão da autoajuda. Embora a palavra

signifique uma “ajuda para si mesmo”, ela reflete o seu inverso, de ser uma narrativa

inspiradora para o outro, o que corrobora a presença da voz da Endeavor.

d) Momentos de vida (Timing of lives)

A vida da empreendedora Paola está articulada em função de uma narrativa de

progresso, pois, quando busca narrar a si, há a tendência de fazê-lo de forma positiva (HAN,

2015) Esta narrativização da vida atravessa basicamente três grandes ciclos de existência e

acontecimentos que foram importantes. No primeiro momento, encontramos a representação

da infância e da adolescência, marcadas por um sentimento de muita solidão, que é

simbolizado por uma criança que se considerava só, com pais separados e que gostava de

passar os finais de semana com a avó, que cozinhava muito bem. No enunciado de Paola,

temos explicitado a presença da fala que materializa ter sido uma criança solitária, o que

confere um sentimento de incômodo.

Na frase “Então a minha infância e a minha adolescência se deram dentro desse espaço

com muita solidão e o que me resgatava da solidão era cozinhar. E eu cozinhava”, a palavra

“cozinhar” se incorpora à fala de Paola para construir uma representação de sentido extraído

do convívio com a avó, que sabia cozinhar e lhe apresenta o universo da culinária. A comida

confere à narrativa um sentimento de boas recordações, pois a empreendedora ia comer nos

seus finais de semana na casa da avó. Na imagem abaixo, encontramos a representação de

uma criança que foi acolhida pela cozinha como forma de sentimento e atividade que gostava

de praticar, o que se estendeu à adolescência e à fase adulta.

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235

Figura 30: a acolhida

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

Nesta imagem se evidencia a representação de outras vozes que se incorporam ao

campo da culinária e que falam pelos agentes sociais representados pelo ato de cozinhar, tais

como: a avó que sabia cozinhar, o cozinheiro profissional do mercado, o chefe de cozinha e o

proprietário de restaurante, que compõem os discursos e os interesses envolvidos neste ramo

de atuação laboral, que é a culinária e sua comercialização.

A imagem da planta, que aparece no canto superior, pode representar um sentimento

que cresce e dá início ao gosto pela cozinha, sendo interpretado na composição da imagem da

infância e o gosto de Paola pela culinária. A imagem das folhas crescendo se ancora em um

não-dito, que subentende ter sido na infância o despertar do interesse da Paola pelo ato de

cozinhar. O ato de cozinhar é uma representação social que materializa uma forma de agir que

influenciou a vida de Paola em sua condução de escolhas pessoais e profissionais, pois a

empreendedora seguiu a profissão de cozinheira.

A imagem de uma panela, no lado direito, que é um utensílio que pertence ao

ambiente da cozinha, leva-nos à interpretação do preparo de pratos/alimentos, materializando

o feito de cozinhar. Encontramos nesta imagem, a representação social da menina que tinha

na cozinha e no ato de cozinhar uma forma de preencher o vazio de sua vida, dando sentido a

ela.

Dando prosseguimento à análise, temos uma frase que marca este sentimento de gosto

pela cozinha, pois há um dito que salienta tal posição assumida: “Eu achava isso tão poderoso

que eu me apaixonei com essa coisa da... essa coisa meio erótica da cozinha, essa coisa

incrível da cozinha que você põe assim no meio da mesa e todo mundo baba.”. Temos um

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236

lugar de fala que nos sinaliza uma pessoa apaixonada pelo trabalho, que está internalizado

como um sentimento. O trabalho deixa de ser considerado como algo externo ao sujeito e

passa a ter uma posição central, influenciando sobremaneira a vida das pessoas. Assim, em

resumo desta fase, aparece uma menina que busca preencher a sua vida com o prazer da

prática de cozinhar, o que depois se tornará um ofício.

Em um segundo ciclo de vida, encontramos Paola na fase adulta, em que ocorre o dia

de transformação, o “Day1”, marcado pela seguinte frase: “O meu Day1 foi, na verdade, o

meu Day14924. Foi o dia que, pelo menos do jeito que eu lembro, eu morri de medo, de

pânico, na hora de tomar uma decisão.”. É importante destacar que o Day1 representa a

grande mudança e virada de vida narrativizada pela empreendedora. Esta narrativa

autobiográfica de transformação nos aponta um lugar de fala de uma pessoa que constrói o

seu perfil moral de ser a partir do sistema normativo do neocapitalismo estudado por Dardot e

Laval (2016). Estamos falando de uma narrativa inserida novo espírito do capitalismo

(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Encontramos, no enunciado, uma memória discursiva

que representa a voz da sociedade e do indivíduo que deve se transformar de forma contínua

no sentido de ser um agente social que se renova, a cada dia, para atender aos interesses deste

sistema socioeconômico.

Neste dia de transformação, a empreendedora tinha 40 anos e estava há 12 anos no

Brasil. No lado oposto à transformação, destaca: “Eu tinha uma filha de 2, eu tinha um

restaurante quase, quase falindo, eu tinha um relacionamento absolutamente falido e eu estava

morando no cheque especial.”. Esta fala perpassava uma narrativa de vida heroica (MORIN,

2007), que, para se alcançar o sucesso, necessita antes vivenciar as mazelas do fracasso como

algo a ser superado. Este discurso se espelha na religião, que, para Weber (1997), representa

um comportamento de convocação ao trabalho como uma conduta e perfil moral de agir, em

que existe uma conduta e esforço pessoal para conseguir a recompensa.

O papel de mãe atravessa uma carga de significados e representação de gênero

atreladas ao fato de gerar e cuidar dos filhos. Ao mesmo tempo, a relação com o dinheiro fica

marcada pelo interdiscurso de algo que fala antes, pois seu dito “quase, quase falida” conota

um entendimento de dificuldade econômica e falta de dinheiro em função de estar utilizando o

cheque especial, fato este que dificulta a vida de qualquer pessoa em relação à continuidade

de seus projetos de vida.

O dito “eu estava morando no cheque especial” traz a presença da voz de outros

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237

sujeitos que foram incorporados à fala de Paola para compor o discurso motivacional que

sinaliza o entendimento de um fenômeno comum, onde a dificuldade financeira não faz

distinção. Temos um “nós” compartilhado com a coletividade, fazendo supor que o

enunciador e o enunciatário pertençam a uma mesma comunidade e campo de atuação

(BOURDIEU, 2009). Na medida em que não considera a distinção entre ambos, reforça a

convivência com o público, apreendido fora desta enunciação, e abarca a representação social

destas vozes que estão implícitas.

Ao mesmo tempo, sinaliza que a empreendedora passou por dificuldade e viveu um

sentimento de fracasso, apresentado pela fala reforçada de “quase, quase falindo”, o que nos

sugere um não-dito segundo o qual as pessoas podem aprender com seus próprios erros. As

falhas e os erros podem representar a possibilidade de uma segunda ou terceira chance na

correção do rumo de vida.

Assim, após ter realizado vários estágios, ter viajado ao redor do mundo para aprender

novas técnicas e ter adquirido conhecimentos com vários chefes de cozinha, Paola menciona:

“Então eu já estava aqui, já tinha um ano de Figueira Rubaiyat, já tinha treinado, já sabia tudo

o que eu tinha que saber sobre cozinha.” Sua fala atesta uma vertente de alto desempenho

(EHRENBERG, 2010), com habilidade no trabalho e na prática de cozinhar. Temos aqui um

implícito de mencionar o Figueira Rubaiyat, que é considerado um dos restaurantes mais

famosos de São Paulo e reconhecido pela arte de sua culinária, de onde saíram os bons chefes

de cozinha, o que demarca o discurso de especialistas (GIDDENS, 2002), das vozes deste

campo de atuação de restaurante de luxo, que atestam o seu fazer. Em 2001, Paola já estava

no Brasil e resolveu investir meio milhão de reais.

Figura 31: o Julia

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238

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

A imagem projetada pretende reforçar a fala de Paola. Nela, na posição de plano geral,

temos ao centro o nome Julia, que está abarcando todo o Estado de São Paulo, conforme

indica o mapa (embora seja o primeiro restaurante que a empreendedora teve e fracassou). O

desenho dos utensílios de cozinha e o prato com comida representam a culinária. Mais uma

vez, temos a presença de um galho de folhas, que pode indicar algo que está nascendo.

Dando continuidade à narrativa de Paola, encontramos o seguinte enunciado:

Eu virei uma empresária e como empresaria eu fui uma excelente cozinheira,

muito boa, ganhei prêmios e tudo. Meu primeiro restaurante chamou Julia, foi um restaurante pequeno que foi um sucesso, realmente foi bem-sucedido,

não foi por culpa da cozinha não era bem-sucedido, quer dizer o fracasso não

foi por culpa da cozinha porque a comida era muito boa, mas aconteceu uma coisa que acho que acontece muitas vezes que é que para eu ter o Julia eu

precisei, precisei ou quis ou escolhi ter um sócio.

“Eu virei uma empresária” permeia o campo e a prática do fazer da figura do

empreendedor; temos um subentendido, que ser empresário é ter um negócio em que se

pretende ter lucro. Ao mesmo tempo, Paola reforça, mais uma vez, sua habilidade de ser

cozinheira, o que reforça, como já mencionado, sua alta performance. Por outro lado, também

destaca sua imagem espetacularizada, enquanto empresária, cozinheira e executiva, que são

vozes que se alternam e se complementam, fazendo parte de diferentes formações discursivas

inseridas para estruturar a constituição identitária de Paola e compor seu perfil moral nesta

exposição midiática.

Como anteriormente relatado, a primeira tentativa de sociedade não deu certo em

função de falta de confiança entre sócios. A escolha de sócios incorretos não acaba neste

momento. A empreendedora entra em uma nova sociedade e escolhe mais sete sócios, que

também não deram certo.

Figura 32: os sócios

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239

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

Na cena em plano geral projetada no telão do palco, temos outra vez o destaque das

palavras ditas pela empreendedora. O texto ao centro da imagem destaca enfaticamente o

nome do restaurante Arturito, no qual a protagonista tinha sociedade. No enunciado “E eu não

gostava do que eu estava fazendo, eu não acreditava nessa proposta, eu não acreditava na

proposta, eu caí lá dentro, porque todo mundo faz cagada algumas vezes, eu caí lá dentro, eu

não acreditava nessa história,” há uma fala relacionada aos sócios do restaurante Arturito.

Mais uma vez, surge a fala de uma pessoa que não estava satisfeita com sua condição atual.

Ocorre uma fala de “relatos expressivos da contemporaneidade”, que tenta abarcar a voz da

sociedade ao colocar “todo mundo” na mesma posição de desconforto.

Trata-se de um discurso que apresenta uma narrativa centrada na cultura terapêutica

(ILLOUZ, 2011) – a mudança – para atender às normas da sociedade. Mesmo reconhecendo

que não acertara na escolha de seus sócios, considerava-os boas pessoas, mas com ideias

diferentes. Assim, é uma forma de evitar o conflito que toda relação pode implicar e não

macular sua imagem pessoal.

Neste momento, no enunciado apresentado pela seguinte frase “Eu queria servir

comida. Eu queria servir comida de uma forma muito mais amorosa, de uma forma muito

mais, sei lá, democrática, se a gente pode falar assim,” temos a imagem da primeira e única

cena do vídeo em que a plateia se manifesta por meio de aplausos, as luzes ficam mais fortes e

a imagem fica em plano geral, dando destaque às pessoas da plateia (Figura 33).

Figura 33: A plateia bate palmas

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240

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

Por meio deste comportamento encontramos um subetendido que nos revela a sintonia

e o engajamento com a narrativa autobiográfica de transformação de vida da protagonista.

Este lugar de fala apresenta a marca de um tempo relacionado ao futuro, e que remete a um

lugar idealizado. Uma “comida democrática” tem a presença de um interdiscurso que insere a

voz de todos, de uma sociedade, e está relacionado, também, a “confort-food”52 acessível a

todos as pessoas, não sendo elitista e que representa a diversidade dos gostos existentes na

sociedade, mas, que ao mesmo tempo, dialoga com a imagem da gastronomia como elitista.

Sabemos, entretanto, que nem todos têm condições financeiras e capital para frequentar um

restaurante, sendo um local que não é plenamente democrático e acessível para todos.

Dando continuidade à narrativização da vida de Paola, temos o seguinte enunciado:

Então nesse dia na verdade o que reparei e o que eu entendi foi que o mais

valioso dessa empresa era eu, e isso pode parecer um pouco arrogante mas na verdade não é, eu que estava cozinhando, eu era que fazia com que

chegasse as pessoas, eu era que dava valor pra esse espaço e absolutamente

ninguém ia dar valor pra isso mais do que eu, eu tinha que dar valor o meu valor.

Fica demarcado na história de Paola que ela tem a necessidade de atestar e expor a sua

vida por meio dos feitos realizados com sucesso, que só foi alcançado em função de seu

esforço pessoal. As vozes das outras pessoas, como sócios, funcionários e clientes se

encontram ocultadas, para sobressair a sua história de sucesso. Paola é exposta de maneira

52 O termo Confort-food significa “Comida Confortável”, que desperta conforto e bem-estar ao ser consumida.

Isso justamente por nos fazer lembrar de momentos especiais, seja um almoço em família, um jantar com os amigos, um piquenique ou o passeio em um parque. Pode ser a comida da mãe, da avó, da tia, ou de alguém que

é especial para você. Disponível em: https://www.jasminealimentos.com/alimentacao/comfort-food/. Acesso em:

03 de fevereiro de 2018

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espetacularizada e mostra o seu perfil de alta performance em tudo que pratica, enquanto

cozinheira e empresária bem-sucedida. Assim emerge como empreendedora que foi escolhida

para estar atestando os interesses da Endeavor no Day1. Não estamos falando da vida de

qualquer empreendedora, mas, sim, da empreendedora escolhida para estar neste evento e

inspirar as pessoas com a trajetória de sua vida e feitos.

Na imagem abaixo (Figura 34), novamente encontramos um plano geral projetado no

telão, com um texto destaque que reproduz a fala da empreendedora de ter uma dívida de 2

milhões de reais. Temos um interdiscurso que nos leva ao entendimento de ser este um valor

elevado, pois, dois milhões de reais, para a realidade brasileira, é um montante de capital

considerável. Este dinheiro, não fica explicitado, foi emprestado do campo financeiro (dos

bancos).

Figura 34: A grande dívida

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

Assim, passado este momento de reconhecimento de suas escolhas incorretas em

relação aos sócios, Paola entra em seu terceiro ciclo e momento de vida. Lembramos que a

mesma se tornou empresária em sua fase de transformação e já tinha sua experiência como

cozinheira consolidada.

Seu terceiro momento de vida, consideramos ser o momento atual, que se encontra

com a vida de empreendedora bem estruturada. Criou seus cardápios de sextas-feiras com o

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projeto fruto de sua ideia e inovação, que batizou de “projeto das empanadas”. Os clientes

aprovaram este seu “teste de mercado”.

Neste processo de implementar o seu projeto de vida, temos no enunciado da

empreendedora “Então eu cheguei em casa e abri uma pasta no meu computador que chamava

projeto empanadas e aí eu virei empresária,” uma fala explicitada no lugar e posição de agente

social que representa o perfil de ser uma empresária que tem como premissa agir em função

da cultura empreendedora. Uma das práticas e ações do fazer é ter ideias inovadoras

semelhantes à de Paola.

Já em “Virei empresária”, há um perfil moral de agir direcionado a ter um negócio

próprio. Ao mesmo tempo, verifica-se a presença do interdiscurso que se insere na fala

anterior de Paola, no ofício de ser cozinheira. Agora, além de cozinheira, Paola se considera

empreendedora. Mesmo já exercendo este papel, ela não se considerava, até então,

empresária. Constata-se um uso do discurso e prática de valores na autorrealização

(GIDDENS, 2000) do sujeito que se reconhece neste perfil moral de agir.

Em sua fala: “Eu já tinha errado suficiente pra saber reconhecer quem poderia ser a

pessoa que tivesse as características, que pudesse me completar e que pudéssemos crescer

juntos,” a empreendedora defende que o fracasso é um acontecimento da vida pelo qual as

pessoas passam e precisam conviver. Ao se colocar no lugar de alguém que falhou, mais de

duas vezes, encontramos um discurso que tenta igualar a sua vida em relação a outras pessoas,

que também falharam. Aqui, encontramos um discurso motivacional com a intenção de

persuadir e aproximar outros indivíduos que passaram pelas mesmas dificuldades.

Dando continuidade à sua “história ou experiência de vida” (ARFUCH, 2010, p. 11),

encontramos uma narrativização de vida que se localiza em seu terceiro ciclo de vida, com os

momentos da trajetória de vida atual. A empreendedora atesta ter encontrado, finalmente, o

sócio correto para dar continuidade ao seu negócio produtivo.

Eu escolhi muito bem e tive uma sorte muito grande de ser escolhida por ele.

Então em 2014 o Benny, que é esse senhor com essa barba vintage ali, e eu

tiramos o projeto empanadas do papel e La Guapa, o primeiro café de

empanadas latinas artesanais saiu do papel e virou loja e eu peguei mais um empréstimo pra fazer o La Guapa, já tinha um de 2 milhões e peguei mais

um.

Paola materializa em sua fala a satisfação de ter um sócio correto, uma vez que teve

várias dificuldades para acertar e encontrar o sócio apropriado para gerir junto com ela o

restaurante. A palavra “sorte” representa um dito de algo que ocorre sem planejamento e que

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independe do desejo das pessoas. É algo que se recebe, mas que não conseguimos definir, ou

seja, não depende do esforço pessoal.

Assim, em seu terceiro momento de vida, Paola já tem o restaurante Arturito e

consegue ter um sócio no qual acredita, colocando em prática sua ideia inovadora que sai do

papel e se transforma em uma loja que é um restaurante que recebe o nome “La Guapa”.

Temos duas falas que se sobrepõem a este dito no enunciado acima. Uma fala que apresenta o

alto desempenho de Paola na implementação do La Guapa; a segunda fala mostra que a

atividade empreendedora se relaciona a um interdiscurso atrelado à parte de capital para poder

viabilizar a ideia inovadora, ou seja, não se pode depender somente de uma ideia. Logo, há

interesses e jogos econômicos envolvidos, que circulam pela representação de um restaurante.

Em uma das falas finais de sua narrativização de vida, Paola diz: “Hoje é o meu Day1

16289, eu sou muito mais feliz do que antes, o La Guapa vale hoje 40 vezes mais do que o

investimento inicial, isso tudo por causa do Barba”. Neste discurso temos a marcação,

novamente, do fator transformação na vida de Paola como algo recorrente e em linha com o

sistema normativo do neoliberalismo. Após passar pelo medo e incertezas de encontrar o

sócio correto, o “Barba” (Benny), fica claro a exaltação do sucesso e da alta performance, ao

enfatizar em seu dito que o restaurante vale 40 vezes mais do que o investimento inicial.

Observa-se o interdiscurso que circula pelo campo econômico e que se relacionam com a

intertextualidade de um investimento, empréstimos e serviços bancários, sinalizando a relação

que a empreendedora tem com geração de lucro em função do capital investido. É uma forma

de atestar seus feitos e a exposição espetacularizada de seu trabalho, dando sentido à sua vida.

Figura 35: O Day1 número 16.289

Fonte: <https://www.YouTube.com/watch?v=Cq_OBKFS-as>.

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Na imagem que mostra o Day1 16.289, temos a representação do coração, que é

indicativo que o seu trabalho é a sua vida, retirando desta interpretação qualquer sentido

econômico, a deixar no lugar valores próprios das relações sociais. Está implícito que só

trabalho é redentor, como a representação simbólica do coração que pulsa dentro de cada um

de nós.

5.8.3 Síntese da análise

O ano de 2001 aparece na narrativa autobiográfica de transformação de Paola como o

marco principal da delimitação da “Localização no tempo e no espaço”. O ano sinaliza sua

chegada ao Brasil, momento em que decide investir e empreender no país. Antes disso, a

idade de 18 anos é apresentada como o ponto de decisão profissional: Paola opta por ser

cozinheira e se dedicar plenamente a esta profissão. Quanto às espacialidades, dois polos

ficam evidentes: a Argentina e a cidade de São Paulo (onde se fixa e abre seus

empreendimentos).

No que se refere às “Vidas interligadas”, verificamos algumas pessoas muito

relevantes em sua trajetória de vida: as avós, que eram exímias cozinheiras; os pais, que se

separaram enquanto ela ainda era pequena, mas com quem também aprendeu valores; os

inúmeros sócios que teve ao empreender no Brasil; Benny, seu sócio atual, que Paola

considera essencial ao sucesso de suas ações; e, por fim, a filha, que é narrada como aquela

que dá sentido às práticas por ela realizadas.

Em “Orientação pessoal das ações”, ressaltam-se a intuição, a praticidade, a

autorrealização por meio das práticas empreendedoras, a generosidade, o imperativo da

felicidade, a capacidade técnica e a alta performance. São valores que sustentam o modo de

pensar e agir da empreendedora.

Nos “Momentos de vida”, fica evidenciada uma narrativa de sucesso, que busca ser

composta de forma positivada. As dificuldades, os percalços e os obstáculos enfrentados são

acionados como uma estratégia para salientar a resiliência da empreendedora e seus feitos,

corroborando ainda mais seu momento atual de sucesso, visibilidade e reconhecimento social.

Por exemplo, se a infância é retratada por um lado como um momento de intensa solidão,

também é representada pela descoberta de sua paixão por cozinhar, que a conduziria ao

caminho profissional trilhado. O mesmo se passa com os empreendimentos: vários deles não

trouxeram os rendimentos esperados ou eram dificultosos demais, não compensando seu

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investimento financeiro e profissional. Finalmente, há o contexto posterior ao Day1,

configurado pela realização, pelo sucesso e pela midiatização de suas narrativas

autobiográficas.

5.9 SÍNTESE GERAL DAS ANÁLISES

Na tabela abaixo, apresentamos uma síntese geral das análises efetuadas de cada

narrativa das empreendedoras, de acordo com as categorias elencadas. Neste sentido, a tabela

síntese apresenta as principais conclusões referentes às particularidades nas falas das

empreendedoras e sua relação com os conceitos teóricos apresentados neste estudo.

Assim, este resumo tem o objetivo de orientar o leitor, deste estudo, para as principais

constatações que chegamos ao analisar as narrativas e suas relações com os conceitos teóricos

apresentados como: cultura empreendedora, capital humano, alto desempenho, discurso de

alto ajuda, exaltação do sucesso e do trabalho empreendedor e crenças como religiosidade,

honestidade e confiança. Ao mesmo tempo, é um elemento de alinhamento das principais

conclusões desta tese na qual são analisadas as narrativas autobiográficas de transformação

destas empreendedoras no exercício de suas falas.

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Tabela 7: Síntese das análises

a

Empreendedora

palestrante

a) Localização no

tempo e no espaçob) Vidas interligadas c) Orientação pessoal das ações d) Momentos de vida

Sônia Hess Tempo contemporâneo

Importância da família na

formação dos valores

individuais e na formação de

uma visão de mundo

empreendedora

I) O mundo do trabalho como uma racionalidade

transversal em todas as fases da vida

II) Configuração de um cenário no qual “correr riscos” é

fundamental ao sucesso das ações propostas, um valor

da cultura empreendedora

III) Apagamento das diferenças e hierarquia entre os

gêneros: “o que importa é tão somente a competência

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras (gestão de si)

III) Day1 (infância): quando é chamada de "colona"

na escola

IV) Dias atuais representado pelo sucesso e por

conquistas

V) Utilização do discurso da autoajuda

Sofia Esteves Tempo contemporâneo

Importância da família na

formação dos valores

próprios ao

empreendedorismo e

destaque aos

relacionamentos

interpessoais, uma vez que os

empreendimentos de Sofia

giram em torno dessas

práticas (gestão de pessoas)

I) O valor da “diversidade”como lema e suporte à

narrativa empreendedora

II) Tudo é construído conjuntamente, ainda que os

resultados beneficiem e prestigiem o individual

III) Ideia da meritocracia

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1 (vida adulta): quando decide abrir o seu

próprio negócio

IV) Dificuldades se convertem em superação,

crescimento e ganhos financeiros

V) Utilização do discurso da autoajuda

Zica Velez e Leila

VelezTempo contemporâneo

Importância da família na

formação dos valores

próprios ao

empreendedorismo.  No caso

de Zica, a família também

aparece como suporte

material ao início de seu

empreendimento

I) Forte presença de uma narrativa de transformação

relacionada à autoajuda e ao imperativo da felicidade

II) Destaque para a religião como 'mola propulsora' ao

empreendedorismo

III) Alta performance, educação e investimento em si

como valores essenciais ao agir empreendedor

IV) Apagamento dos conceitos de individualismo e

competição

I) Indiferenciação entre vida e trabalho.

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1: são três os momentos salientados (a

infância e a adolescência, a autotransformação

definida pelas práticas empreendedoras e o

momento atual de suas vidas, em que se enfatiza o

sucesso de suas ações)

IV) Utilização do discurso da autoajuda

Luiza Helena Tempo contemporâneo

Importância da família na

formação dos valores

próprios ao

empreendedorismo.

Proeminência dos

funcionários como uma

"família estentida", fator que

faz com que os negócios

prosperem

I) O valor da honestidade como garantida de

merecimento

II) Meritocracia tida como uma dádiva religiosa

III) Religião aparece como 'mola propulsora' ao

empreendedorismo

IV) Oposição ao individualismo e à competição

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1 (não demarcado): todos os dias são um

"Day1", ou seja, dias de transformação

IV) Carta-credo como filosofia de vida: seus feitos

são visibilizados como um modelo de sucesso no

Day1 Endeavor

V) Utilização do discurso da autoajuda

Categorias de análise

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247

Linda Rotenberg Tempo contemporâneo

Os valores familiares

contrastam com os exemplos

de empreendedores e suas

histórias de vida

I) Inovação e risco como caracteristicas essenciais ao

empreendorismo

II) Racionalidade a criatividade como condições para a

mudança

III) O empreendedor é convertido em uma entidade

capaz de promover mudanças (sempre positivas)

IV) Capital financeiro como indicativo de sucesso e valor

V) Fracasso como caminho para o aprendizado

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1 (fase adulta): momento em que a

empreendedora tem a ideia de desenvolver a

Endeavor

IV) Capitalização do negócio para uma “causa”:

contribuir ao movimento de empreendedores em

mercados emergentes

V) Utilização do discurso da autoajuda

Janete Vaz e

Sandra Costa Tempo contemporâneo

A importância dos valores

familiares corrobora valores

de mercado. Figuras como

mãe e pai aparecem junta a

médicos, funcionários e

clientes

I) Valores subjetivos se confundem com valores

mercadológicos

II) Honestidade, sinceridade e coragem estão no mesmo

patamar de inovação

III) Imperativo da alta performance e da felicidade

fortemente vinculados com o gerir negócios e a vida

IV) Destaque para a questão de gênero como fator

relevante aos negócios

V) Estereótipo capitalizado para criar diferencial

empreendedor

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1 (fase adulta): para ambas as palestrantes o

momento da virada se dá pela transição de um

estado de empregado para o de empreendedora

IV) Utilização do discurso da autoajuda

Cristina Boner Tempo contemporâneo

São apresentados diversos

laços afetivos que se

mostram relevantes à

trajetória de vida, juntamente

com o desenvolvimento de

empreendimentos. Destaque

à figura de Bill Gates, tida

como fundamental para seu

Day1

I) Honestidade como garantia de merecimento

II) Meritocracia se confunde com uma dádiva religiosa

III) Valor da conduta pessoal e laboral pautado em

marcadores numéricos

IV) Destaque para valores altamente subjetivos como

amizade, lealdade e gratidão

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1: três momentos distintos (a infância e suas

dificuldades financeiras; o início da carreira

profissional e os desafios de conciliar carreira e

criação dos filhos; e, finalmente, a fase representada

pelo pós-Day1 (o encontro com Bill Gates), tratada

como uma fase de pleno sucesso

IV) Utilização do discurso da autoajuda

Paola Carosella Tempo contemporâneo

A importância dos valores

familiares corrobora valores

de mercado

I) Valores subjetivos se confundem com valores

mercadológicos: ressalta-se a intuição, a praticidade e

autorrealização por meio das práticas empreendedoras,

a generosidade, o imperativo da felicidade e a alta

performance.

II) Indicativo ao oposto do individualismo e da

competição

I) Indiferenciação entre vida e trabalho

II) Transformação possível por meio das ações

empreendedoras

III) Day1: narrativa de sucesso que busca ser

composta de forma positiva. As dificuldades e os

obstáculos são apresentados para salientar a

resiliência da empreendedora e seus feitos

corroboram o momento atual de sucesso, visibilidade

e reconhecimento social

IV) Utilização do discurso da autoajuda

Fonte: elaboração própria.

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248

No que se refere à primeira categoria de análise, “Localização no tempo e no espaço”,

evidencia-se a contemporaneidade como um marco central em todas as palestras das

empreendedoras no Day1 Endeavor. Está alicerçado, principalmente, pela data de sua

realização. Quanto às localidades, elas variam de acordo com as histórias de vida que são

narrativizadas materializando, assim, os acontecimentos que foram exercidos na

contemporaneidade. Ao mesmo tempo, estas narrativas de vida estão centradas no discurso do

tempo presente, inserido neste fenômeno atual que exalta a cultura empreendedora, em que se

valoriza aquele indivíduo plenamente alinhado com os preceitos da sociedade neoliberal.

Já em relação às “vidas interligadas”, segunda categoria de análise, verifica-se que há

certa uniformidade. A família aparece na maioria das narrativas das empreendedoras como

um elemento que adequa-se para a constituição de valores identitários. Estes passam a ser

essenciais às atividades empreendedoras que posteriormente realizam. Fica claro, neste

sentido, como são (re)significados esses valores de modo a destacar sua relevância na

condução dos interesses relacionados ao mundo do trabalho. Assim, os valores familiares são

vinculados intimamente ao fazer empreendedor e à lógica capitalista neoliberal.

Na terceira categoria, “orientação pessoal das ações”, há maior variedade nas

características verificadas. Destacaremos aqui aquelas que consideramos mais relevantes ao

estudo. Em primeiro lugar, observamos a tomada de riscos como uma condição fundamental

ao empreendedorismo, pois, na sociedade neoliberal, o empreendedor é considerado como

aquele indivíduo que deve assumir risco e ser capaz de transformar a sua vida por meio de

uma gestão eficaz de si mesmo. Neste sentido, o fracasso é identificado como estímulo e

condição necessária para se valorizar ainda mais a narrativa de sucesso. Outro ponto a ser

destacado é a presença do discurso meritocrático em que os indivíduos centralizam suas

visões de mundo por meio de uma ideologia neoliberal (SENNETT, 1999). Neste processo, se

valoriza aquelas pessoas que se destacam em determinado campo de atuação (escola,

organizações empresariais e as mais diversas formas de representação de trabalho e vida). São

valorizados socialmente na medida em que se destacam atuando em linha com as crenças do

neoliberalismo. Portanto, é uma representação de mundo guiada por uma lógica que exclui

grande parcela dos indivíduos. Neste sentido, desconsideram-se as desigualdades econômicas

e de educação que influenciam nesse processo de competição dentro da lógica de mercado.

Há de se considerar, igualmente, as questões de gênero que surgem nas narrativas das

empreendedoras. Em Sônia Hess, por exemplo, subentende-se que as diferenças de gênero são

apagadas com base em narrativas meritocráticas, o que, como abordamos no primeiro capítulo

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249

da tese, não se mostra factível, tendo em vista as hierarquias estruturais entre mulheres e

homens. Nas falas de Janete Vaz e Sandra Costa, por sua vez, o gênero emerge como um

importante indicativo de influência positiva nas relações de trabalho. Neste cenário, a questão

do gênero aparece conforme os objetivos empregados à narrativa. Por fim, também é

relevante mencionar valores religiosos que, assim como os familiares, fundamentam o fazer

empreendedor. A religiosidade entra como um discurso motivacional que não pode ser

questionado por ser um dogma, mas que permite a superação dos desafios em prol de um

projeto maior que é vencer e ser bem sucedido perante o contexto social.

Estas produções midiatizadas tem o objetivo de enaltecer as narrativas autobiográficas

de transformação em perspectiva com os valores da cultura empreendedora e como forma de

inspirar outros indivíduos. Assim, encontramos discursos que mostram a superação de

dificuldades para que o sucesso seja alcançado e possa servir de exemplo para engajar outras

pessoas. São narrativas que tentam apresentar o empreendedor de si como condição possível

de vencer na vida; na prática, nem todos os indivíduos conseguem ter o perfil para agir em

linha com estes valores espetacularizados na forma de se obter sucesso.

Por fim, em “Momentos de vida”, notabiliza-se um imbricamento entre as esferas da

vida particular e do trabalho. As transformações são tidas como viáveis por intermédio das

práticas empreendedoras. Em relação ao Day1, ele se mostra variável, dependendo do

percurso de vida de cada empreendedora. Mas, de qualquer modo, um ponto em comum se

sobressai: o momento posterior ao Day1 é sempre caracterizado e (re)significado como um

período de sucesso, de plenitude e de conquistas em todos os âmbitos, pessoais e

profissionais. Após este turning point os problemas deixam de ser mencionados; o enfoque

recai, sobretudo, às conquistas, geralmente pautadas em marcadores numéricos. Outro

elemento que aparece em todas as narrativas é um forte discurso de autoajuda, que marca

grande parte do teor das palestras das empreendedoras que participam do Day1. Isso

corrobora com o objetivo fim do evento, que visa engajar outros sujeitos na cultura

empreendedora e inspirá-los a compartilhar desses valores.

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250

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao iniciarmos esta tese, levamos em consideração os discursos centrados na cultura

empreendedora, o mundo do trabalho e as narrativas de transformação de vida inseridas no

espaço biográfico, com foco em mulheres empreendedoras. Neste contexto, encontramos uma

representação de mundo que tem interface com a comunicação, circulação e consumo

simbólico da narrativização da vida das protagonistas do Day1 Endeavor. A emergência das

narrativas que focalizam a trajetória de vida desses indivíduos legitima aspectos de

subjetividade e perfis morais, próprios da contemporaneidade e de uma construção de mundo

que recompõe o entendimento sobre as atividades laborais, afetando em cheio os aspectos

valorativos.

A análise das narrativas, portanto, direcionou nosso olhar para uma melhor

compreensão acerca da cultura empreendedora e do sujeito empreendedor, em suas

vinculações com a esfera produtiva e o espraiamento do neoliberalismo contemporâneo pela e

na vida cotidiana. Neste cenário, o sujeito encontra-se no centro do processo produtivo, e,

consequentemente, sua subjetividade está vinculada a normas e valores próprios do sistema

econômico vigente, tendo em vista a sua manutenção. A partir daí, ratifica-se um perfil moral

de construção do sujeito, principalmente no que se refere à “autoria de vida”. Assentado em

um perfil moral de vida e de conduta que se centra em técnicas e conhecimentos específicos

para essa construção de si, o empreendedorismo e a figura mítica e heroica do empreendedor

se convertem em uma vertente hegemônica no que diz respeito ao sistema capitalista nos dias

atuais, refletindo-se na cotidianidade.

O Day1 Endeavor, como manifestação exemplar dessa construção, mostra-se relevante

para a reflexão de como as narrativas autobiográficas são orquestradas e coordenadas de

modo a destacar a “transformação” (sempre moralmente positiva) de um trabalhador em um

empreendedor (de si e nos negócios). Neste sentido, utiliza as “vozes” de empreendedoras

para salientar as múltiplas contribuições que o empreender pode acarretar, individual e/ou

coletivamente. Não obstante, o ato de empreender se transmuta em uma espécie de

renascimento para quem se arrisca a adentrar em seus domínios. As narrativas ultrapassam a

esfera da competência e instalam-se nas dinâmicas comportamentais e atitudinais.

Este cenário nos ajuda a ponderar sobre a forma como a espetacularização e a

exposição da atividade empreendedora, a partir de uma narrativa ordenada por uma história

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251

autobiográfica que não mais separa vida pessoal e laboral, relaciona-se com o “novo espírito

do capitalismo”. Esta convocação, em que corpo e mente devem ser passíveis de gestão,

tenciona um melhor desempenho – sempre futuro, e, portanto, aberto e inacabado. Em outras

palavras, empreender a si mesmo é estar “sempre em construção” e “aberto (conformado) à

mudança”. O trabalho, por conseguinte, emerge como um projeto maior de vida, pautado nas

práticas da cultura empreendedora. Será a mulher empreendedora a representante modelar

dessa cultura?

De fato, ao longo deste trabalho entendemos que o gênero e o trabalho problematizam

uma série de antinomias, tais como o público vs. o privado; o social vs. o natural; e,

principalmente, a questão do lar e da família enquanto pretensa constituinte central do

feminino. O campo do empreendedorismo retrata a importância que o trabalho exerce na vida

de mulheres e o quanto empreender configura um marco em sua posição social e perfil moral

de valores. As mudanças ocorridas no papel e nas atividades exercidas pela mulher e sua

relação com o trabalho e o consumo tornaram-se elementos relevantes nesta nova arquitetura

do sistema neoliberal contemporâneo. Ao mesmo tempo, são esses mesmos códigos que

classificam o feminino por meio de regras e condutas estabelecidas na representação de

identidades fixas.

A cobrança por resultados e sucesso que esse sistema institui força o sujeito a se

moldar a ele e, assim, legitimá-lo. Desse modo, a “mulher empreendedora”, construída e

midiatizada a partir do discurso sobre o trabalho empreendedor, é moderada por pesquisas,

depoimentos de vida e casos bem-sucedidos, na busca por comprovar que o

empreendedorismo é uma alternativa de vida promissora. Ou mesmo, a única alternativa.

Mascara-se, nessas dinâmicas discursivas e midiáticas, todavia, os múltiplos interesses

econômicos envolvidos no campo.

A vida narrativizada se apresenta como uma forma de transformar a si e conceber uma

disposição identitária que espraia, fomenta e prestigia a ideologia empreendedora. Neste

sentido, a Endeavor pode ser considerada uma orquestradora de tal processo, uma vez que se

vale de estratégias comunicacionais e retóricas que ratificam o empreendedorismo e, por

extensão, o sistema capitalista e o papel substancial das narrativas na produção, circulação e

consumo de uma cultura empreendedora. Compreendida como uma organização que tem o

seu lugar de fala centrado no fomento das crenças desta cultura, é protagonista de um sistema

neoliberal e hegemônico focado nas práticas do empreendedorismo de si, ao mesmo tempo,

que possui interesses socioeconômicos nesta cadeia produtiva.

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252

Assim, com base nas análises das narrativas das empreendedoras do evento Day1

Endeavor, verificou-se que as trajetórias de vida e as transformações ocorridas por intermédio

das práticas empreendedoras se constituem, primeiramente, por uma nova racionalidade

empresarial, própria do neoliberalismo contemporâneo, no qual emerge uma nova

sociabilidade e requerida pelo capital. A linguagem é utilizada como um instrumento de

mudança e o discurso hegemônico estabelece uma nova pedagogia subordinada ao mercado: a

estratégia neoliberal não mais se limita à esfera econômica ou política, avançando para as

esferas social e individual.

As narrativas autobiográficas de transformação se constituem como espetáculo, no

qual as mulheres (foco da nossa análise) são as protagonistas dessas práticas comportamentais

e contribuem para a construção de uma matriz explicativa das relações entre vida e trabalho,

objetivando o sucesso e a felicidade. Colocamos luz em uma característica significativa do

modelo de vida heroica concebida para o empreendedor, alocando-o no comando da tomada

de riscos em uma sociedade que faz da concorrência uma justa competição. No caso da

mulher empreendedora, o “acolhimento” como característica essencialmente feminina desloca

a ideia de meritocracia como ideal de sociedade e a resiliência como atributo imprescindível

para uma versão aprimorada de si mesmo.

Podemos observar ainda que as transformações ocorridas por intermédio das práticas

empreendedoras estão pautadas na disciplina e na automotivação, consideradas inatas ao

sujeito, bastando (apenas) acessá-las de forma correta, ou seja, com um propósito. E este,

sempre vinculado ao trabalho, é caracterizado como motor de um desenvolvimento (também)

subjetivo.

Assim, a estrutura básica do discurso é apresentada em três instâncias

interdependentes: a primeira apresenta um perigo eminente (pode ser uma mudança física,

uma infância com dificuldades financeiras, etc.); o segundo localiza a solução sempre no

indivíduo, isto é, a resiliência, a automotivação e a disciplina emergem como comportamentos

requisitados e como responsabilidades atribuídas ao sujeito; e, por fim, o sucesso aparece

como resultado (mérito) consequente de todo esse investimento.

Neste cenário, os problemas, os percalços e as derrotas ocorridas pelo caminho

ganham conotações positivas e são vistos como oportunidades de aprendizado. Isso se

justifica uma vez que a narrativa de transformação pressupõe que o esforço (requisitado)

sempre será reconhecido (premiado). O uso das metáforas favorece o mito do empreendedor:

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253

campeão (atleta), guerreiro (lutador), ou ainda, corajoso (destemido). Ao mesmo tempo,

características subjetivas são atreladas a esses predicados: humilde, honesto, trabalhador,

apenas para citar alguns deles.

Consideramos, nesta perspectiva, que os relatos biográficos de transformação estão

inseridos em uma lógica neoliberal na qual o empreendedorismo emerge como um conceito

universal. A partir dele, todos devem permanecer em movimento e, portanto, incluídos. O

empreendedorismo é apresentado como condição para uma vida plena de realizações e, em

última instância, feliz.

Consequentemente, vida pessoal e profissional estão sob o mesmo domínio

empreendedor. A vida, na forma de testemunho, apresentada pelas empreendedoras em suas

narrativas autobiográficas de transformação são centradas em feitos de uma trajetória

plenamente bem-sucedida. É justamente esse discurso que permite inspirar outras pessoas no

sentido de adquirir novos aprendizados para alcançar uma melhor posição econômica e social.

Nesta visada, determinação e sonhos necessitam trabalhar de forma contínua, disciplinada e

persistente, para conquistar o potencial de ser um indivíduo de sucesso e integrado ao sistema

neoliberal.

Neste processo, compactuamos com a tese de que existe uma visibilidade midiática

que intenta inspirar outras pessoas, permitindo a construção de um “projeto de sociedade”

focado em práticas e atividades próprias da cultura empreendedora e suas representações

sociais, conforme demonstra Casaqui (2016, 2015a, 2015b) em seus estudos. É neste sentido

que podemos asseverar que os discursos das mulheres do Day1 Endeavor atuam como

narrativas de inspiração.

Com base em sua midiatização, os vídeos dessas mulheres empreendedoras acabam

por se inserir em um consumo simbólico de determinada concepção e visão de mundo. Diante

disso, o que trazemos como contribuição com este trabalho está alicerçado nas narrativas

autobiográficas de transformação proferidas por mulheres empreendedoras que, a partir das

ideias apresentadas e entrecruzadas por estratégias e jogos de interesse envolvidos, tornam

simples, acessível e próximo um sistema tão complexo quanto o econômico e suas

implicações políticas e sociais. Cabe ressaltar a forma como o conteúdo é apresentado,

baseado em um processo de produção, circulação e consumo midiático assentado em pilares

bem demarcados: a vida narrativizada por autobiografias de transformação fortemente

permeadas pela cultura empreendedora; a habilidade de se comunicar bem perante o público;

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e a capacidade de persuasão de cada palestrante, no sentido de convencer e engajar a plateia.

Estas narrativas orientam o sujeito a agir em função das práticas empreendedoras e

seus feitos, como uma forma de (sobre)viver em um mundo flexível e, também, instável.

Frases e verbos no imperativo apontam para a ação, além das associações de valores

altamente subjetivos com valores mercadológicos. Por isso, requer-se um tensionamento entre

as teorias estudadas e o conteúdo instrumental inserido nas estratégias de comunicação

emocional como recurso utilizado para persuadir o ouvinte: o sujeito que narra está em uma

posição de destaque, na qual suas ações são apresentadas de forma positiva, a reforçar os

interesses e as condutas de outros agentes sociais semelhantes aos seus grupos de

pertencimento.

A disposição para empreender e atuar na gestão de si aparece como condição

naturalizada, à semelhança da mulher na posição de gestora do lar e da família. Neste ponto, a

questão de gênero reforça os estereótipos do feminino: cuidadora (tal como cuida dos filhos,

cuida dos empregados); administradora (tal qual administra o lar/a família, administra uma

empresa); humana (mais empática e menos desumana).

Boa parte das narrativas se relacionam com a cultura terapêutica, em que se utiliza o

discurso de autoajuda como libertação de alguns desvios para se alcançar a vida idealizada e

feliz. Mesmo entendendo que o discurso não é neutro, justamente pela multiplicidade de

leituras possíveis (e, portanto, sempre ideológico), pressupõe uma posição de sujeito, a partir

da qual expressa suas crenças, seus valores e suas vivências, em interação com os contextos

sociais por onde circula. Assim, confere sentido à sua própria existência social. Nesta

perspectiva, a ideia de autenticidade, relacionada ao sujeito verdadeiro, legítimo e genuíno,

própria de um capitalismo neoliberal, é o que garante a credibilidade de quem toma a palavra:

as empreendedoras foram colocadas no palco do Day1 Endeavor, em posição de destaque, por

terem vivido a experiência que relatam.

As narrativas espetacularizadas de alta performance reforçam a gestão de si com vistas

à adaptação a esse novo cenário de produção flexível e instabilidade. A prescrição é

generalizada, mas a responsabilidade é individualizada. O empreendedorismo é apresentado,

como já observado, como algo natural, inserido em nossa cotidianidade, abarcando todas as

ações de vida. Desse modo, o trabalho sempre é apresentado como marca identitária desde a

infância – como vimos nas trajetórias pessoais das empreendedoras palestrantes no Day1

Endeavor. Este fato já é suficiente para destacar moralmente a predestinação, o diferencial e o

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merecimento para estar no palco da Endeavor.

As narrativas autobiográficas de transformação das empreendedoras articulam

exemplos de vida pautados por depoimentos, conselhos e modelos inseridos nos discursos de

autoajuda, que pregam o que fazer e como fazer. Serve como orientação para um ideal de

sujeito que possui autonomia plena para alterar o rumo de sua vida e inspirar o sucesso, a

autorrealização, a inovação e a recompensa de outros. Ao mesmo tempo, materializam-se as

normas vigentes do neoliberalismo, em que o indivíduo precisa se adaptar às mudanças e estar

apto a se responsabilizar por gerir seus projetos e sonhos de vida.

Nesta atuação de gerir a vida e seus comportamentos, os indivíduos acabam por

atravessar a questão do capital e a esfera produtiva como forma de sobrevivência. Tal

processo funciona como uma estratégia discursiva presente na contemporaneidade, com o

propósito de engajar, permitindo, assim, a continuidade do sistema vigente. Visa-se a

longevidade deste modo de pensar as representações de trabalho e vida. Isto é, assumir a

própria condução de vida, atendendo obviamente os interesses da lógica de mercado. O

contexto daí decorrente reforça “uma imagem unificada da sociedade, com polarizações

suportáveis e aceitáveis para todos os seus membros” (CHAUÍ, 2007, p. 39).

Consequentemente, observamos que as narrativas de transformação de vida das

empreendedoras do Day1 Endeavor, inseridas no espaço biográfico, são parte de um

fenômeno cultural presente na forma de ser e agir da contemporaneidade, que midiatiza e

espetaculariza a história do eu deste agente social, atuando em função de interesses do campo

do empreendedorismo. Estas narrativas podem ser vistas como uma forma de consumo

centrado no valor de inspiração, que estão em linha com os padrões e normas do

neoliberalismo. O trabalho inserido nas práticas da cultura empreendedora é apresentado por

estas narrativas, fortemente pautadas no discurso de autoajuda e de alto desempenho, além da

espetacularização da vida, em que o privado se torna público.

Atentos à assimetria entre o discurso visível e aquele que é invisibilizado na

perspectiva das narrativas autobiográficas de transformação, apontamos algumas

particularidades que atravessam esses discursos:

a) A conquista e a superação como foco central da narrativa, ou seja, elementos que

justificam e promovem a transformação. Ao mesmo tempo, mascara o imperativo da

performance e da felicidade como resultado de um trabalho incessante, isto é, sem

ponto de chegada;

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b) A importância da família enquanto base de sustentação e razão para esta

transformação. Ao mesmo tempo, mascara o fato de os valores familiares serem

ressignificados pelas práticas empreendedoras;

c) A necessidade de adquirir conhecimento e novas habilidades e comportamentos

para correr riscos. Concomitantemente, apaga-se as diferenças de hierarquia entre os

gêneros e o empreendedor é convertido em uma espécie de entidade capaz de

promover mudanças que impactam não somente a sua vida, mas a sociedade como um

todo (daí sua relevância);

d) Possibilidade que a trajetória pessoal seja narrada de forma (moralmente) positiva,

com o desejo manifesto e legítimo de mudar uma realidade social dada (inferior),

capaz de ser superada pela prática empreendedora (superior). O ápice da

transformação é a passagem do “empregado” ao “empreendedor”.

Este estudo, por conseguinte, comprova a hipótese de que a narrativização da vida

empreendedora é uma forma encontrada pelo sistema capitalista neoliberal para justificar a

participação de todos na manutenção de seu modelo socioeconômico. Ao mesmo tempo, na

interface entre comunicação, circulação e consumo dessas narrativas de transformação de

vida, podemos entender que tais discursos são construídos para engajar e fazer com que as

pessoas acreditem que o empreendedorismo é algo natural e que pode ser exercido por todos,

basta ter força de vontade e determinação.

O modelo exemplar de vida agora se dá por meio do trabalho e gestão de si. O mundo

do trabalho, até então manifesto através de características masculinas (socialmente

construídas), ressaltando seu lado pragmático e objetivo, apresenta hoje sua face mais plural,

amparado por características femininas (também socialmente construídas), colocando foco na

heterogeneidade dos discursos construídos a partir de uma cultura empreendedora. Após as

análises efetuadas, observamos, que em todos os vídeos há uma representação social pautada

por características do espaço biográfico. Nele, fomentam-se narrativas que estão em linha

com crenças inseridas na lógica de mercado.

No tocante às histórias de vida exemplares (BUONNANO, 2011), todas as

empreendedoras apresentam sua vida por meio do saber e da experiência adquirida. O marco

central que os guia é justamente o Day1: as vivências anteriores e posteriores a esse momento

são tidas como essenciais ao desenvolvimento das práticas empreendedoras. A materialização

dos acontecimentos vividos são presentificadas de modo a inspirar e, ao mesmo tempo, atestar

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os feitos de uma trajetória-modelo.

Em relação às questões associadas aos valores e crenças do batalhador brasileiro

(SOUZA, 2010), notamos que os vídeos analisados reforçam um perfil moral de ser e agir

centrado no esforço para a conquista do sucesso, que, como já explicitado, passa

impreterivelmente pelo empreendedorismo. Vimos, por exemplo, como religiosidade e a fé

são um elemento muito acionado nesse sentido, direcionando tanto a condução de vida dos

empreendedoras quanto à administração de seus empreendimentos. Logo, notamos que, no

que se refere ao cumprimento dos objetivos dessa pesquisa, destaca-se a importância das

narrativas das empreendedoras palestrantes no Day1 Endeavor para condicionar determinadas

representações sociais e comportamentos (agir).

Neste sentido, as empreendedoras do Day1 Endeavor reforçam a produção, circulação

e consumo de narrativas autobiográficas de transformação, para que se passe a acreditar e se

adaptar ao modus operandi do sistema hegemônico vigente: o neoliberalismo. Com base na

ADF e na análise do percurso de vida (GIELE; ELDER JR., 1998), pudemos verificar como

se processam a construção dessas memórias discursivas e os ditos e não ditos nelas presentes,

que, associadas à sua espetacularização, apontam para a legitimação e perpetuidade da cultura

empreendedora.

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