evolução de uma síndrome autística

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  • 7/30/2019 Evoluo de uma sndrome autstica

    1/8Psicol. Argum. 2010 abr./jun., 28(61), 159-166

    ISSN 0103-7013Psicol. Argum., Curitiba, v. 28, n. 61, p. 159-166 abr./jun. 2010

    Licenciado sob uma Licena Creative Commons

    DISCUSSO DA EVOLUO DE UMA SNDROMEAUTSTICA TRATADA EM TERMOS DE ESTRUTURAO

    PSQUICA E DE ACESSO COMPLEXIDADE1

    Discussion about the evolution of an autistic syndrome treated in terms of psychicstructuration and access to the complexity

    Graciela Cullere-Crespin

    Psicanalista membro da Association Lacanienne Internationale e do grupo francs aliado WAHIM (World Association forInfant Mental Health). Especializou-se em psicopatologia do beb e da criana pequena, assim como no tratamento de sndromesautsticas, Universit de Paris XIII, Paris, e-mail: [email protected]

    Resumo

    A autora aborda o autismo como fracasso do circuito pulsional entre o beb e aquele que faz funo deOutro para ele, o que produz a ausncia da apetncia simblica caracterstica dos bebs com desenvolvi-mento padro, cando o beb fechado em si mesmo, assim como seu Outro, extremamente perturbado,tambm se fecha ao contato com ele. Defende a ideia de que a proposta teraputica depende da concepodo distrbio. Assim, na abordagem comportamental, trata-se de fazer suplncia aos dcits cognitivos,atravs de um treinamento especco, que refora o fechamento da criana ao Outro; enquanto na abor-dagem psicanaltica se trata de apostar na criana como sujeito, na sua relao com o Outro. Prope trsetapas para o trabalho psicanaltico com crianas autistas: aproximao, engajamento e trocas, ilustrandocom um caso clnico.

    Palavras-chave : Autismo. Circuito pulsional. Outro. Tratamento psicanaltico.

    1 Traduzido do original Discussion de lvolution dum syndrome autistique trait em termes de structuration psychique et daccs la complexit, publicado em: Cullere-Crespin, G. (Org.). Crespin, G. C. (Org.). (2008). Cahier de Preaut: Evaluations diagnos-tiques, valuation des traitements de lautisme (L. M. F. Bernardino, Trans.). Paris: lHarmattan.

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    Abstract

    The author approaches the autism as a failure in the drive circuit between the baby and the one who play the roleof the Other to him, that brings the absence of the symbolic appetence typical in babies with normal development.The baby stays closed in himself, just like his Other, extremely disturbed, also stays with no contact with him. The

    author defends that the therapeutic proposition depends on the conception of the trouble. So, the behaviorist appro-ach proposes supplying the cognitive decits through a specic training, increasing the closure of the child to theOther. The psychoanalytic approach proposes to bet in the child as a subject in its relationship with the Other. Theauthor also proposes three steps to the psychoanalytic work with autistic children: approximation, engagement andexchanges, and illustrates this with a clinical case.

    Keywords: Autism. Drive circuit. Other. Psychoanalytic treatment.

    O desenvolvimento normal

    O processo do desenvolvimento normal frequentemente descrito como uma construona qual o beb, desde o nascimento, participaativamente com a ajuda de sua apetncia simblica(Cullere-Crespin, 2007a), que o torna atento edesejante diante do que o outro geralmente suamame transmite-lhe ao cuidar dele. Assim, acriana com desenvolvimento padro, aprende,embebendo-se literalmente com as caractersticasdo Outro2, por identicao e em seguida por imi-tao. Esse fenmeno constante e macio duranteos primeiros anos de vida, e garante a emergncia

    do beb enquanto sujeito, enquanto sujeito capazde se pensar ele mesmo.

    A articulao pulsional, tal como a apre-endemos em inmeros trabalhos de M-C. Laznik(2003) sobre as pulses a cavilha mestra dessefenmeno, ao constituir literalmente uma correia detransmisso entre o sujeito e o Outro. Assim, essaarticulao a fonte da organizao e do enriqueci-mento, por via circular e retroativa, alimentando oprocesso de co-construo (Golse, 2006) do sujeitoe de seu outro da relao primordial. Poderamosrepresentar esse processo sob a forma do seguinteesquema (Figura 1):

    2 Entendemos aqui o Outro como o universo simblico descrito por Lacan, que a me presentica: Ele encontra o Outro, nolhes digo como pessoa, ele encontra o Outro como tesouro do signicante, como sede do cdigo (Lacan, 1973, p. 167).

    Figura 1 - Esquema da co-construo no desenvolvi-mento normal

    As echas representam os circuitos pulsio-nais do beb, mas tambm da me, porque para queo fechamento do circuito se opere, preciso que obeb seja tomado enquanto objeto da pulso da me,isto , que o beb seja satisfatrio para ela, de queele, em espelho, obtenha satisfao com isso, por suavez. Esse esquema representa, pois, esse processoem que o beb e a me so objetos de satisfao umpara o outro, constituindo por isso essa ancoragem,esse enodamento dos dois campos, os quais, doravanteentrelaados, garantiro a reciprocidade necessriapara o processo de comunicao, fonte de toda atransmisso e de todo o enriquecimento.

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    3 Hiptese fundamental da pesquisa Preaut, elaborada por M-C. Laznik (2006).

    Os distrbios autsticos

    O que o processo autstico nos ensina,quando ele se enreda, e independentemente de suaetiologia, que a articulao dos dois campos fra-

    cassa3 e os circuitos pulsionais do sujeito e do Outrose fecham sobre si mesmos, cada qual em circuitofechado, ocasionando um processo inverso, a partirdo qual no haver mais uma construo comum,mas duas construes que se opem:

    a) do lado do beb, observamos primei-ramente um dcit das interaes, quedesemboca no curso do segundo anode vida no aparecimento dos sintomascaractersticos das sndromes autsticas.O conjunto desses sintomas corres-ponde ao fato de que as aquisies damaturao neuromotora no so postasao servio da relao com o outro;

    Assim:

    b) A perseguio ocular, que permite aosujeito dirigir seu olhar, culmina noevitamento ativo do rosto e dos olhosdo outro, ao invs do dilogo olhoa olho, to satisfatrio no plano da

    comunicao e da afetividade, tantopara o outro quanto para a criana. Asemisses sonoras, premissas da lingua-gem bem antes da fala, esto ausentesou passam para jarges, ou at mesmopara a produo de palavras constitudas,mas sem endereamento nem intencio-nalidade de troca;

    c) A motricidade global, que culmina namarcha, afasta a criana dos outros, emfuno das deambulaes incessantes,ao invs de aproxim-la delas;

    d) A motricidade na, que lhe permitemanipular, culmina em movimentosestereotipados, ao invs da preensopalmar dos objetos de troca;

    e) O conjunto das aquisies no se orga-niza em brincadeiras de imitao e em

    seguida em brincadeiras simblicas,fontes de tantas aprendizagens para acriana normal;

    f) Do lado do outro, observamos o quechamo de estados de extrema confuso

    (Cullere-Crespin, 2006), em que todasas competncias relacionais e de comu-nicao so suspensas na relao comesta criana em particular, o pai ou ame conservando, alm disso, intactassuas capacidades linguajeiras e de comu-nicao nas outras relaes.

    Poderamos representar este processo peloseguinte esquema (Figura 2):

    Figura 2 - Esquema do processo autstico

    As echas do circuito pulsional, voltadascada qual em circuito fechado para seu campo

    prprio, representam esse processo de duplo desen-volvimento em autarquiaum do outro, culminandouma no fechamento autstico e a outra no estado deextrema confuso.

    Esse processo verica, a contrario, o papelcivilizador da articulao pulsional, em sua dimen-so de transmisso, pois ela organiza o corpo e seufuncionamento, o comportamento e as representa-es do sujeito, em outras palavras, sua entrada nomundo simblico e relacional.

    extremamente interessante observar queesse processo permanece o mesmo, quer a sndrome

    autstica seja acompanhada de um dcit severo o que o mais frequente , ou de capacidadescognitivas fora do comum, como nas sndromes deAsperger. Pois nesse ltimo caso, essas capacidadesexcepcionais tampouco so postas ao servio darelao com o Outro.

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    Com efeito, tais capacidades podem sedesenvolver de uma maneira exponencial, mas forade contexto, no endereadas, como a capacidade deDaniel Tammet para memorizar as 22.514 primeirasdecimais do nmero Pi! (Tammet , 2007).

    Mesmo se essa extraordinria competnciafoi secundariamente posta ao servio de uma causaarticulada com os outros Daniel Tammet se servedela para recolher fundos para tratar de crianasatingidas, como ele, de epilepsia infantil , no deixade ser verdadeiro que, com exceo do caso de serpesquisador em matemtica e por isso ser levado,com um objetivo preciso, a calcular tais nmeros, umacompetncia dessas cafora de sentido para o comumdos mortais, inclusive para o prprio Daniel Tammet.

    Assim, a no instaurao da ligao pul-sional engaja muito cedo o sujeito em um desen-volvimento em autarquia que, de acrscimo, querseja decitrio ou no, apresenta uma resistncia ativa,perseverante em sua organizao prpria, como seesse fechamento em relao ao mundo dos outrostivesse uma funo protetora para a criana. Essaorganizao autrquica permanece muito arrediaa nossas tentativas de reconduzi-la a formas maisprximas do desenvolvimento da criana dita normal.

    As diferentes abordagens teraputicas

    Da se deduz que todo tratamento destetipo de problemas se choca com um problemafundamental, que deve ser resolvido antes de poderavanar: necessrio fazer suplncia ausncia dedesejo ou incapacidade, ou resistncia dacriana para nos imitar e para buscar no mundoexterno modelos identicatrios para seu prpriofuncionamento? A organizao mesma do distrbiofaz com que o acesso intersubjetivo transmisso mesmo perturbado, como o caso nas diculdadesclssicas de aprendizagem inacessvel.

    Assim, as diferentes abordagens elaboraramtcnicas que correspondem concepo que tm dodistrbio: as abordagens comportamentais, para asquais parece se tratar de um puro dcit irreversvel,procedem por condicionamento operante para fazersuplncia ausncia de desejo do sujeito para seconformar ou a se opor, como na criana normal aos comportamentos cognitivos e sociais habituais.

    A abordagem psicanaltica que preconizo,por sua vez, visa a suscitar, tanto quanto possvel, a

    restaurao da articulao pulsional, a m de recolocarem funcionamento o motor pulsional, de modoque a criana possa, com relao ao desenvolvimentonormal, comear a se organizar, se construir e seenriquecer por meio identicatrio e de imitao.

    Poderamos representar essas duas diferen-tes iniciativas no seguinte esquema (Figuras 3 e 4):

    Figura 3 - Esquema da recuperao obtida por reeducaocomportamental

    Figura 4 - Esquema da recuperao obtida pela aborda-gem subjetivante

    Ser que a espcie de enxerto que cons-titui a imposio de um comportamento obtido

    por condicionamento operante pode culminarem efeitos subjetivantes? s vezes, sim, em casosfavorveis, mas ento esses efeitos se produzem deacrscimo, pois no so especicamente visadosnesta abordagem.

    Ser que a reanimao psquica (Laznik,2005) que visa abordagem analtica culmina emefeitos socializantes e de aprendizagem? Sim, noscasos favorveis, pois permitem, alm da constru-o psquica, o acesso complexicao, pela via

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    normal, isto , a identicao e a imitao, comono desenvolvimento padro.

    o que mostrarmos na sequncia, com oauxlio do material clnico da evoluo de uma criana.

    Da estruturao psquica complexificao

    Nas trs etapas que descrevi da abordagemanaltica dos distrbios autsticos (Cullere-Crespin,2007b), interessante notar que as duas primeirascorrespondem ao encontro, no sentido da articulaode dois mundos: o mundo autossensorial da crianaautstica e o mundo intersubjetivo do terapeuta,visando construo psquica da criana. E a terceiraetapa, considerada como a ltima, corresponde passagem da construo complexicao. Comefeito, alm da construo psquica, que tem comoresultado o acesso da criana a uma subjetividadeprpria, o processo torna-se cumulativo e conduz complexidade.

    A este ttulo, pode-se considerar que o bebque se apresenta bem, equipado com sua apetnciasimblica(Cullere-Crespin, 2007a) desde o nascimento,chega de entrada complexidade nas trocas.

    As trs etapas da abordagem analtica das

    sndromes autsticasNa relao sensorial que a criana autista

    estabelece com o objeto no se trata, como nolactente com desenvolvimento normal, de umcomportamento exploratrio de descoberta de umobjeto, como o descreve, por exemplo, Piaget noestdio sensrio-motor. Com efeito, nesse estdiode sua evoluo, a atividade sensorial do lactente,segundo Piaget, permite-lhe construir uma relaocom um objeto que o funda em retorno como umsujeito, fazendo-o sair de um mundo centrado em

    torno de algo que se ignora a si mesmo enquantosujeito (Piaget, 1937).Na teorizao piagetiana, a articulao que

    permite criana franquear o estdio sensrio-motorpara o estdio em que ele se reconhece como sujeito atribuda unicamente ao desenvolvimento cognitivo.

    Do ponto de vista psicanaltico, esse fran-queamento s pode se produzir na relao com oOutro, na medida em que o objeto mesmo queseja nosso parceiro nas trocas s existe para os

    humanos porque o outro no-lo designa como objetodo desejo. Esse desejo supe o encontro com o outroe sua perda, isto , sua presena e sua ausncia, e asimbolizao dessa, com o correlato acesso faltaque conduz ao desejo.

    Assim, a sensao se torna percepo, aqual, nos humanos, corresponde ao acoplamentodo funcionamento de um rgo sensorial com umaaparelhagem signicante.

    Apenas empregando esse caminho tortu-oso que os objetos do mundo se tornam objetos deinvestimento, dignos de interesse e de cobia, e queeles abandonam seu estatuto de puro real, capazesapenas de sustentar uma experincia sensorial quepermanece emparedada em si mesma. Portanto,a cognio, para ns, apoia-se na pulso (Laznik,2003), no investimento e na satisfao pulsional,e por isso est indissociavelmente articulada aoencontro do Outro.

    A etapa de aproximao

    Assim, na primeira etapa do processo anal-tico, trata-se de ir ao encontro da criana utilizando oregistro sensorial que a criana por si mesma privile-gia: deambulao, manipulaes de objetos, tapinhasou gritos. No de modo algum para ensinar-lhe

    algo ou para desvi-la disso, mas para introduzir-sea, para forar nossa entrada enquanto companheiro debrincadeiras, aceitando a atividade da criana como se elanos fosse dirigida.

    O terapeuta far criana o que a criana faza si mesma, introduzindo a seu jbilo: ele mostrar criana a que ponto ele est feliz de provocar-lheesta satisfao que ele se provoca sozinho.

    Mesmo que essa introduo seja apenaspura efrao, que num primeiro tempo reproduzirtodo evitamento, a criana vai se achar tomada emum circuito que a partir de ento inclui o Outro,

    seu jbilo e seu desejo, pois o terapeuta pode pararde fazer-lhe sua estimulao, para perguntar se elaa quer de novo.

    Bem entendido, essa manobra pode durars vezes um tempo muito longo antes de esboarna criana uma relao verdadeiramente articuladaao jbilo e ao desejo do Outro, a criana autistaperseverando ativamente em sua busca de satisfaoautossensorial imediata. quando o terapeuta ternecessidade de autossustentao, para no afundar

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    na extrema confuso e abandonar suas tentativas deentrar em contato verdadeiro com a criana.

    Maxence

    Nos primeiros tempos de seu tratamento,Maxence, 3 anos, era muito dispersivo e deambulava,tocando em tudo e no se interessando por nada.Sentado, ele batia seus ps fazendo muito barulho.Sentada na sua frente, comecei a bater por minhavez. Pouco depois, introduzi nas batidas um ritmo,o que muito rapidamente interessou Maxence, queprestou muita ateno. Batidas ritmadas ocuparamlongamente muitas de nossas sesses no incio dotratamento. Em seguida, introduzi turnos de papis:ele batia, eu batia, e parava. Produzia-se ento umsilncio, durante o qual eu o olhava intensamente, semuma palavra, mas com uma mmica de expectativadivertida. Se ele batia de novo, o jogo recomeava,depois eu o interrompia novamente, deixava-lhe ainiciativa da brincadeira. Enm, eu o surpreendirepetindo a brincadeira quando ele no estavaesperando. Rapidamente, chegamos a uma algazarraalegre e barulhenta, que durava sesses inteiras, eque constituram o primeiro verdadeiro encontroentre mim e Maxence.

    A etapa de engajamento

    Se formos sucientemente perseverantescomo terapeutas, a criana comear a enviar sinaisde reconhecimento de nossa presena, a partir dosquais mudaremos de posio: ao invs de estarmosna efrao de seu circuito, nos colocaremos naposio de questionadores de sua posio desejanterecm-adquirida. o que caracteriza a entrada noengajamento: a satisfao no lhe vem mais de umaautoestimulao sensorial, mas do Outro, e a esse

    ttulopode vir a faltar.As condies necessrias para o surgimentode um desejo e, portanto, de uma demanda dirigida,esto reunidas e o terapeuta trabalhar assiduamentepara reproduzir as situaes em que a criana poderatravessar inmeras vezes essa experincia.

    Quando a experincia do encontro eda perda se produz, a criana e o conjunto doentorno, inclusive o terapeuta! devem enfrentar svezes verdadeiros cataclismos, que podem nos fazer

    acreditar que a criana vai de mal a pior. No se tratadisso, e se soubermos administrar essa passagemdelicada como o que ela a inscrio desta perdaoriginal que nos humaniza a todos , impondo-nosao mesmo tempo a falta, mas abrindo-nos via do

    desejo, a criana a atravessar e poder ter acessoa uma relao desejante, no apenas com o outro,mas com os objetos, que se tornaro objetos deinvestimento e no mais puros reais.

    Maxence

    Aps aquele primeiro encontro barulhento,rtmico e motor, as ocasies para fazer Maxenceatravessar as experincias de conceber um desejo nodeixaro de se apresentar: Maxence se coloca cadavez mais e comea a se interessar mais de perto portudo o que se oferece a ele na pea, como desco-berta e explorao. Inicialmente, de maneira fugaze pouco organizada, seu interesse por objetos ebrinquedos comuns se arma pouco a pouco. Assim,rapidamente abordamos a necessidade de canalizarsua atividade, e as primeiras proibies zeram seuaparecimento. Com esses primeiros limites zemos aexperincia de sua absoluta intolerncia frustrao:crises de clera cada vez mais espetaculares zeramsua apario. Violento, ele quebrava tudo, atacava o

    settinge o corpo da terapeuta, jogando-se no cho egritando bem forte.Ele seguiu um perodo muito delicado, em

    que pais e professores tiveram que ser especicamenteapoiados pela terapeuta e pelo orientador, pois ocomportamento de Maxence tinha se tornado muitoviolento e destrutivo. Todo o mundo pensava queMaxence regredira e que estava cada vez pior. Foium verdadeiro trabalho convencer a todos a terempacincia e, ao mesmo tempo, permanecerem muitormes quanto aos limites dados a Maxence. Sua irmmais velha, que no compartilhava da estupefao

    e da angstia dos pais, foi de grande ajuda: ela nose intimidava; se era proibido para ela, ela no vianenhuma razo para que no o fosse para Maxence.Durante todo um perodo, a nica pessoa capaz de semanter rme com Maxence foi sua irm mais velha.

    Por meu lado, a privao real que represen-tava para Maxence o fato de eu interromper a sesso,na qual ele apreciava tanto o espao de brincadeiras,foi a resposta que opus ao seu exerccio de onipo-tncia: desde que ele bloqueava e iniciava uma crise

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    de clera, eu parava tudo e o carregava literalmentepara fora da pea, de tal modo ele se recusava a sair.

    Durante vrios meses as sesses acabavamrapidamente, de modo que tive de contar com acompreenso e a tolerncia dos pais, que aceitaram

    que esse era o nico modo de acabar com as crisesde clera de Maxence. Eu os apoiava, assim comoaos professores, na ideia de que se tratava, com osmeios fsicos de uma criana de 4 anos, da famosacrise de oposio clssica das crianas de 18 meses.

    Algumas semanas mais tarde, quando euacabara de interromper a sesso e de combinarcom sua me a prxima consulta, vejo pelo cantodo olho Maxence se levantar e juntar os lpis queespalhara pelo cho, motivo da interrupo da ses-so. Digo-lhe: Viu s? Era o que tinha que fazer!e Maxence se joga em meus braos, sob o olharemocionado da me.

    O aparecimento da ambivalncia marca umavirada no tratamento, pois a partir de ento a crianaestava capturada nas trocas e na reciprocidade4.

    A entrada nas trocas

    O que caracteriza doravante a terceiraetapa a capacidade da criana de entrar nas trocas.Eu a considero como a ltima, pois, do ponto de

    vista de sua estruturao psquica, a criana possui apartir de ento as ferramentas requeridas para entrarem relao intersubjetiva com o mundo. a partirdesse momento que me parece possvel dizer que seabandonou o tempo da construo para entrar notempo da complexicao5.

    Com efeito, absolutamente notvel que,quando se consegue colocar novamente em curso oprocesso de desenvolvimento, este se desenrola namesma ordem que para a criana de desenvolvimentopadro e procede da mesma fonte: a criana aprendeatravs da identicao e da imitao.

    para ns um trunfo, se posso dizer assim,que essa recuperao operada pela terapia analticarestabelea um processo nos limites do possvel,

    4 Para um relato detalhado dos progressos de Maxence, ver Cullere-Crespin (2007b, p. 87-88), em particular a Discusso dosresultados: o caminho percorrido em termos de referncias psicanalticas.

    5 Sem dvida, era o que queria expressar Marie-Christine Laznik, h cerca de dez anos, quando dizia que a psicanlise aplicadas crianas autistas era uma psicanlise ao inverso: ns as deixamos freqentemente no ponto em que habitualmente as outrasiniciam uma anlise!.

    e segundo as capacidades de cada criana que justamente aquele que falhou no incio da vida.

    Embora as crianas assim recuperadas per-maneam marcadas s vezes severamente peloatraso adquirido e/ou pelas bizarrices prprias de

    sua organizao anterior, sempre presentes sob formaresidual e prontas para ressurgir em caso de perigointerno, elas tm, contudo, acesso a um verdadeirolugar de sujeito de seu desejo, capazes de express-loe de sustent-lo, bem como de ouvir/entender umlimite para sua onipotncia ou seu gozo onipotente!

    E quando ento lhes propomos espaosreeducativos especcos, elas tm acesso s apren-dizagens guiadas pelo interesse e sustentadas porseu desejo, com os contratempos e impasses queisso implica, como constatamos nas diculdades deaprendizagem comuns nas crianas recm-chegadasem geral.

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