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    O sinthome no autismo o corpoM. Aparecida Farage Osorio

    Na origem do autismo, est a dissociao entre a voz e a linguagem,

    como proteo da presena sonora real do Outro angustiante. A voz, assim, no

    estando ligada ao campo do Outro, um objeto invasor. a incorporao da voz

    o que suporta as identificaes primordiais do sujeito, os S1 que o determinam.

    Como essa incorporao no acontece no autismo, o sujeito fica sem

    representao no Outro, ou seja, na impossibilidade de alienao no significante

    do Outro.O Outro comporta uma falta, um resto de gozo produzido pela linguagem,

    mas no significantizado. Esse resto, que no um elemento do Outro, um

    significante, o que Lacan vai denominar de objeto a. O corpo a sede do

    gozo, pelo fato de ser tomado na linguagem, mortificado e esvaziado de gozo

    pelo significante. O que escapa a essa operao so os objetos a. Para o

    autista, no h Outro portador do objeto a.A extrao do objeto a, que causa da diviso do sujeito, est na

    dependncia do consentimento do sujeito barra que inscreve a marca dessa

    diviso subjetiva. Na ausncia da mediao flica, a relao ao que cai do corpo

    d lugar a um mundo em que tudo real. No autista, tudo real, at a caca

    real. No seu mundo real, o espao virtual no existe. Para ele, portanto, a

    imagem especular impossvel.No h, para eles, o trajeto pulsional. H um corpo, pura superfcie,

    evidenciando a impossibilidade de constituir a zona ergena como um vazio, que

    a pulso contornar atravs dos significantes do Outro. Sem o trajeto pulsional,

    o corpo do sujeito no se articula ao Outro. Para Rosine Lefort, no que se refere

    pulso, se a refenda do objeto no se realizar, e o objeto pulsional permanecer

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    no real, o circuito da pulso no acontece (a refenda do objeto a passagem do

    pnis rgo ao falo enquanto -, o que o psictico no atinge). A pulso est ali,

    mas truncada, reduzida a um impulso-carter primordial da pulso. A fonte

    tambm est ali, posto que orgnica, mas nem o objeto, nem o objetivo tm

    lugar, j que no houve a queda do objeto. Um outro ponto de estrutura especfico do autismo o duplo. Este resta

    como um achado para o autista, no lugar da relao de objeto impossvel. S

    nele o autista se fia e, em alguns casos, tambm se fia no intelecto. Somente

    estes so suportveis para o autista, como geradores de enunciado. O duplo

    vivido em cada outro e, para alguns, pode ser vivido num animal, como se pode

    ver no boi do livro de Temple Grandin Minha vida de Autista. O duplopresentifica a possibilidade de tentar matar aquilo que a linguagem no

    temperou, ou seja, a pulso de morte. Para Rosine Lefort, o duplo a diviso do

    sujeito no real.Os Lefort insistem na ausncia do balbucio para marcar o no

    recobrimento do real pelo simblico, por meio do significante mestre,

    evidenciando a recusa dos autistas de isolar na lalngua os significantes

    mestres.O inconsciente est feito de lalngua, ele uma elucubrao de saber

    sobre lalngua, uma coleo das marcas dos outros sujeitos, quer dizer, aquilo

    com o qual cada um tem inscrito seu desejo na lalngua. O autista no entrelaa

    sua prpria lngua lalngua materna, da a ausncia do balbucio infantil. O

    verboso, a tagarelice, no balbucio, um gozo verboso mimtico. A tagarelice

    uma forma de recusa ao ato de enunciao. no encontro entre o balbucio da

    criana e o encorajador balbucio da me que se esboa a dialtica do dom e da

    demanda, gnese da lalngua, j havendo a a presena-iminncia do Outro da

    linguagem.

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    O balbucio antecipa o Outro, autoertico, no narcsico. No gozo prvio

    do balbucio, o beb est no gozo da voz de seu significante fonemtico. um

    gozo que atrela o objeto voz e o S1. O S1 que vem do Outro no serve

    comunicao nem ao sentido. um gozo prvio relao do sujeito com o

    significante. A isso Lacan chama lalngua.No autista, a ausncia da funo do significante mestre faz obstculo

    alucinao verbal. Esta se ancora sobre dois pressupostos: a inscrio do S1

    sobre a substncia gozante e a capacidade do sujeito de portar o S1, na funo

    do significante mestre. Se os autistas no conseguem reunir pensamento e

    emoo, isso parece estar relacionado a uma deficincia do significante mestre. Pode-se resumir, seguindo os Lefort e Maleval, em sete pontos o que no

    h no autista: no h trajeto pulsional, no h objeto, no h Outro, no h S1,

    no h lalngua, no h imagem especular, no h alucinao verbal. Mas

    podem os autistas desenvolver um recurso sintomtico, construindo seu modo

    de estar no mundo?Maleval, em 2008, por ocasio do Congresso da AMP, fala de duas

    tendncias na Escola: uma de manter as trs estruturas, ou quatro, com oautismo, que a tese dos Lefort. A outra tendncia de dizer que a referncia

    ao sinthome, o que faz, de certa maneira, desaparecer a estrutura. A estrutura

    se reencontra no sinthome. Tem sinthome desabonado do inconsciente como

    em Joyce, tem sinthome que se articula ao Outro, no sinthome ertico. O

    sinthome, na perverso, mais complicado, um sinthome fetichizado. No

    autismo, ele o corpo, o objeto corpo, a construo de um corpo mquina, o

    autista no est separado do corpo pelo Outro. Existem vrias formas de

    sinthome, e Miller, tambm, prope precis-las, como se fez no Seminrio de

    Orientao Lacaniana Coisas de Fineza em Psicanlise.Perguntado, ainda, nesse Congresso, se o sinthome implica,

    necessariamente, um lao social, Maleval responde que, dependendo da

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    definio que se d do sinthome, tem coisas que fazem enganche na estrutura,

    e essa uma maneira de dizer que um sinthome. Encontra-se um sinthome

    degradado na psicose. No autismo, ele no implica um lao social. H uma

    degradao de sinthomas, diz ele, mas uma questo difcil, conclui. Se, na

    psicose, ele implica um lao social, embora um lao limitado, no autismo, ele

    no implica, necessariamente, o lao social. Ao lado do inconsciente, que

    sentido comum e fala para cada um, h o singular do sinthome, onde isso no

    fala para ningum, e Lacan o chama de acontecimento do corpo, do corpo de

    gozo.Em 99, nas XXII Jornadas do Cereda, o autismo apresentado como

    nova estrutura, a partir de um mecanismo significante novo: a forcluso dosignificante materno (DM - o desejo da me). Essa frmula, lanada por Pierre

    Naveau, pe, no centro dos debates, o redobramento da forcluso do NP e do

    DM. A forcluso do desejo da me tem como resultado uma onipresena real da

    me. Tambm a questo de um Outro absoluto no autismo, ao qual no falta

    nada, orienta a tendncia para falar de uma quarta estrutura. Ainda a falta de

    alucinaes permite diferenciar o autismo da esquizofrenia. A sndrome

    autstica, segundo Maleval, compatvel com as raras alucinaes visuais,

    talvez at com algumas alucinaes sonoras (zumbidos, sinos, msicas etc.),

    mas no com autnticas alucinaes sonoras. Para os Lefort, o duplo no deixa

    nenhuma possibilidade de alucinao, ou seja, a relao com o Outro do

    significante mediada por um duplo real e onipresente, que impe um obstculo

    alienao significante.O sinthome pe ordem no mundo, tempera e bordeja o gozo, um

    saber-fazer com o real do gozo. No autista, ainda que sempre mnimo, o

    sinthome seu modo de saber fazer com o real do gozo uma significao

    particular ligada ao pai. O sinthome o singular, o inconsciente no o singular,

    e da Lacan o alojou no Outro, diz Miller. Pode-se tomar a inveno feita, no

    caso trabalhado no Ncleo de Pesquisa Psicanlise e Criana, por Carlos, como

    um sinthome? Carlos constri um simulador de voo tomando elementos

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    paternos. O pai de Carlos viajava muito, e o menino sempre acompanhava o pai

    at o aeroporto.Trata-se de um sinthome sem semblante. No tem a ver com as relaes

    sociais, como na neurose, sinthome sem semblant, posto que no h no autismorelao ao Outro. No Congresso da AMP, em Paris, em abril prximo, o tema

    ordenador de uma das manhs de trabalho ser o Pesadelo do Sinthome sem

    Semblante, a partir do qual se espera avanar nisso.Virginio Baio apresenta um caso de um menino de cinco anos autista, do

    qual, tomando a formalizao borromeana da segunda clnica, diz que h o

    equivalente ao Nome do pai sob a forma do sinthoma, de alguma coisa que

    enoda no mais elementos standard, mas elementos no standard, elementos

    raros, elementos que pertencem apenas ao sujeito . Em seu paciente, Tano, a

    madeira, os pedaos de argamassa, elementos presentes na profisso do pai,

    que construtor, fazem seu sinthoma. Esse um saber mnimo, um

    enodamento de uma lngua atravessada por uma significao particular, ligada,

    forosamente, profisso do pai. Essa inveno do sinthome, em Tano, implica

    uma dupla operao: a de descompletar o Outro (a madeira, os pedacinhos de

    argamassa) e a incorporao no real de um trao do Outro. Sinthome que, se forlesado, deixa Tano entregue invaso do gozo.

    O aparelho desenhado, desde sua infncia, por um autista de alto

    rendimento, Temple Grandin, um sinthome? A funo desse aparelho consistia

    em fazer uma presso prazerosa em seu corpo. Ao ser apertado, contido nesse

    aparelho, minhas obsesses diminuam e eu me tranquilizava , conta ela. Com

    esse aparelho, Grandin cria seu prprio modo de estar com os outros, uma

    forma de temperar o gozo.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICASBAIO, Virginio. Nome-do-pai e autismo. Opo Lacaniana - Revista BrasileiraInternacional de Psicanlise, So Paulo Edio Especial n.50, p.71.Dezembro/2007.MALEVAL, J.-C. Lautiste, son doubl et ses objets. Rennes: PressesUniversitaires de Rennes, 2009. (Coleo Clinique Psychanalytique etPsychopathologie).______. Os autistas escutam muitas coisas, mas ser que alucinam? Opo

    Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanlise, So Paulo n.52,

    p.163.Setembro/2008

    MILLER, J.-A. Curso de Orientao Lacaniana. Coisas de fineza em psicanlise.Lio 8. 07/03/2007.STIGLIZT, Gustavo. Autismo. Scilicet Os objetos a na experincia

    psicanaltica, AMP. Rio de Janeiro.p.43 - 2008.