feierman, steven. african histories and dissolution of world history

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FEIERMAN, Steven. African histories and the dissolution of world history [Histórias africanas e a dissolução da história mundial]. In: BATES, R. H.; MUDIMBE, V. Y.; O’BARR, J. (editors). Africa and the disciplines: the contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago: University of Chicago Press, 1993, pp.167-212. Tradução de Elisangela Queiroz. Houve um tempo em que os historiadores entendiam que certas civilizações (as ocidentais) eram seus temas naturais, que alguns líderes políticos (Thomas Jefferson, Napoleão, Carlos Magno) eram os mais importantes, e que determinados períodos e temas (a Renascença, o Iluminismo, o surgimento do Estado-Nação) eram os únicos merecedores de nossa atenção. Outros lugares, outros povos, outros temas culturais menos centrais no curso da civilização ocidental não contavam. Atualmente tudo isto é questionado. Os historiadores já não concordam com os assuntos sobre os quais eles devem escrever. Peter Novick, em um livro sobre a evolução do ofício de historiador nos Estados Unidos, nos relata o estado atual da profissão nos títulos dos dois últimos capítulos: The Center Does Not Hold, e There Was No King in Israel . Ele descreve “o colapso dos estudos históricos profissionais como empreendimento minimamente coeso” (1988, p.579). Theodore Hamerow escreve que “os historiadores deixam de acreditar que são capazes de por ordem no caos” (Novick, 1988, p.578). O fim do consenso sobre os temas históricos é apenas uma parte da mudança que levou os historiadores a escrever sobre a fragmentação e o caos. O debate sobre os temas históricos surge ao mesmo tempo em que cresce o número de historiadores que começam a duvidar de seus próprios métodos. Muitos agora consideram impossível sustentar as alegações de que suas escolhas temáticas e metodológicas estavam fundamentadas em um conhecimento objetivo. Estes historiadores se conscientizaram de que seus próprios escritos, seus modos de construir as narrativas ocultavam algum tipo de conhecimento histórico, mesmo quando revelavam outros; e que suas escolhas de temas e métodos são produto de seu próprio tempo e das circunstâncias e não um resultado inevitável do progresso imparcial da ciência histórica. Esta mudança, que tem raízes no interior da filosofia contemporânea, também emerge da evolução do próprio ofício do historiador. Um profundo paradoxo da escrita da história na atualidade é o de que nossa fé no conhecimento histórico objetivo vem sendo solapada, precisamente, por causa do avanço do “conhecimento” em seu sentido objetivo. A versão autoritária do conhecimento histórico vem sendo abalada porque historiadores, nas décadas recentes, construíram áreas de conhecimento sobre as quais seus predecessores não poderiam nem ao menos sonhar. Por sustentar suposições sobre o conhecimento histórico através de suas conclusões, os historiadores descobriram alguns dos limites de suas suposições. A evolução da história da África mostra exatamente o quão dramático vem sendo o crescimento de nossa compreensão no interior de uma estrutura herdada da história como conhecimento positivo. Na metade de 1950, graduandos em história de Harvard, Princeton, Chicago, Berkeley, Columbia e quase todas as demais universidades brancas da América 1

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FEIERMAN, Steven. African histories and the dissolution of world history [Histórias africanas e a dissolução da história mundial]. In: BATES, R. H.; MUDIMBE, V. Y.; O’BARR, J. (editors). Africa and the disciplines: the contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago: University of Chicago Press, 1993, pp.167-212. Tradução de Elisangela Queiroz.

Houve um tempo em que os historiadores entendiam que certas civilizações (as ocidentais) eram seus temas naturais, que alguns líderes políticos (Thomas Jefferson, Napoleão, Carlos Magno) eram os mais importantes, e que determinados períodos e temas (a Renascença, o Iluminismo, o surgimento do Estado-Nação) eram os únicos merecedores de nossa atenção. Outros lugares, outros povos, outros temas culturais menos centrais no curso da civilização ocidental não contavam. Atualmente tudo isto é questionado. Os historiadores já não concordam com os assuntos sobre os quais eles devem escrever.

Peter Novick, em um livro sobre a evolução do ofício de historiador nos Estados Unidos, nos relata o estado atual da profissão nos títulos dos dois últimos capítulos: The Center Does Not Hold, e There Was No King in Israel. Ele descreve “o colapso dos estudos históricos profissionais como empreendimento minimamente coeso” (1988, p.579). Theodore Hamerow escreve que “os historiadores deixam de acreditar que são capazes de por ordem no caos” (Novick, 1988, p.578).

O fim do consenso sobre os temas históricos é apenas uma parte da mudança que levou os historiadores a escrever sobre a fragmentação e o caos. O debate sobre os temas históricos surge ao mesmo tempo em que cresce o número de historiadores que começam a duvidar de seus próprios métodos. Muitos agora consideram impossível sustentar as alegações de que suas escolhas temáticas e metodológicas estavam fundamentadas em um conhecimento objetivo. Estes historiadores se conscientizaram de que seus próprios escritos, seus modos de construir as narrativas ocultavam algum tipo de conhecimento histórico, mesmo quando revelavam outros; e que suas escolhas de

temas e métodos são produto de seu próprio tempo e das circunstâncias e não um resultado inevitável do progresso imparcial da ciência histórica. Esta mudança, que tem raízes no interior da filosofia contemporânea, também emerge da evolução do próprio ofício do historiador.

Um profundo paradoxo da escrita da história na atualidade é o de que nossa fé no conhecimento histórico objetivo vem sendo solapada, precisamente, por causa do avanço do “conhecimento” em seu sentido objetivo. A versão autoritária do conhecimento histórico vem sendo abalada porque historiadores, nas décadas recentes, construíram áreas de conhecimento sobre as quais seus predecessores não poderiam nem ao menos sonhar. Por sustentar suposições sobre o conhecimento histórico através de suas conclusões, os historiadores descobriram alguns dos limites de suas suposições.

A evolução da história da África mostra exatamente o quão dramático vem sendo o crescimento de nossa compreensão no interior de uma estrutura herdada da história como conhecimento positivo. Na metade de 1950, graduandos em história de Harvard, Princeton, Chicago, Berkeley, Columbia e quase todas as demais universidades brancas da América viviam em um mundo em que a história da África não existia. Nenhuma destas importantes instituições oferecia cursos de pós-graduação sobre este assunto. Em 1958-59 a Associação Americana de História questionou os chefes de departamento sobre os principais campos de estudo de seus alunos de graduação. O número total de graduandos era de 1.735, o número indicado de estudantes dedicados à história africana era 1.1

No final da década de 1970, existiam 600 historiadores nos Estados Unidos que se dedicavam à África, e este número continuou a crescer (Curtin 1980). Muitos deles escreveram suas dissertações de Ph.D. em história africana, e muitos continuaram suas pesquisas depois do doutorado. O crescimento nos números levou, desta forma, a uma enorme expansão do conhecimento. Entre os africanistas existem aqueles que lêem os arquivos europeus sob uma nova perspectiva, para apreender o que os documentos conservados em tais instituições revelam sobre a sociedade africana; ou

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existem aqueles que estudam fontes escritas em árabe, tanto por africanos quanto por visitantes mulçumanos vindos de fora do continente; e existem outros ainda que lêem fontes em línguas africanas; há também os coletores e analistas críticos da tradição oral; lingüistas históricos; estudiosos especializados na religião africana, na história da agricultura africana, na da doença, na do gênero, na dos movimentos camponeses e uma infinita gama de outros assuntos.

Uma conseqüência óbvia da expansão da pesquisa histórica a partir de 1960 foi revelar como eram limitados nossos entendimentos anteriores. Muitas das novas pesquisas especializadas focalizaram pessoas ou grupos que anteriormente haviam sido excluídos da história geral da humanidade. A história da África não está sozinha neste sentido. Ao seu lado estão as novas áreas de conhecimento sobre a história dos camponeses medievais, dos bárbaros na Europa antiga, dos escravos nas plantações americanas, e das mulheres como a maioria anteriormente silenciada (silêncio, ao menos, nos relatos históricos) em todos os tempos e lugares.

Os ganhos substanciais no nosso conhecimento têm conduzido muito mais a um senso de dúvida do que a um senso de triunfo. Os historiadores compreendem agora os critérios dúbios segundo os quais mulheres e africanos, camponeses e escravos foram excluídos da história das gerações precedentes. Portanto, eles não podem ajudar, mas podem se questionar sobre quais populações e quais domínios da experiência humana eles próprios estão excluindo hoje.

As histórias excluídas anteriormente não apresentam somente novas informações para serem integradas às narrativas mais amplas; elas levantam questões sobre a validade da própria narrativa. Historiadores universitários inserem a história africana na história do século XVIII, ou na do XIX, sendo que muitas histórias escritas ou recitadas na África não medem o tempo histórico em séculos. Historiadores acadêmicos se apropriam de partes do passado africano transferindo-as para o interior de uma grande estrutura do conhecimento histórico que tem raízes européias — a história do intercâmbio de mercadorias, por exemplo. Eles raramente pensam em utilizar partes da história européia para ampliar as narrativas

africanas, sobre a sucessão dos santuários akans ou a origem e segmentação das linhagens dos tivs.

Mesmo antes que estas difíceis questões começassem a incomodar os historiadores, o crescimento do saber sobre as sociedades não-européias começou a solapar as antigas histórias, questionando as narrativas da história acadêmica que, até os anos de 1960, pareciam ser irrepreensíveis. O novo conhecimento mostrou que o que se pensava ser uma história universal era, de fato, muito parcial e seletiva. A narrativa da história humana que os historiadores ocidentais montaram naquele tempo não poderia mais se sustentar. Sua destruição contribuiu para o sentido de fragmentação e de perda de coerência.

Podemos traçar o processo pelo qual a história se enfraqueceu a partir de seu interior, pelo qual o conhecimento cresceu e trouxe ele próprio dúvidas, por meio do exame de livros sobre a história universal, todos eles publicados durante os anos de desenvolvimento da história africana. Alguns deles cobrem todas as eras da história, outros cobrem apenas um breve período, mas todos tentaram integrar a história de todas as partes do mundo em uma única narrativa.

No começo dos anos de 1960, ainda era possível descrever a história humana em termos de uma história com uma única narrativa linear, dos primórdios até os tempos modernos. Agora que esta possibilidade se foi, é difícil para nós relembrar o quão profundamente nossa visão de história mudou, a não ser que voltemos a examinar importantes trabalhos daquela época. Por exemplo, o livro de Willian McNeill, The Rise of the West, publicado em 1963 quando a história africana tinha acabado de emergir, apresentando uma narrativa unicêntrica e unidirecional, de um tipo inaceitável hoje.

The Rise of the West divide o mundo antigo entre “civilizações” e a terra dos “bárbaros”. O livro focalizou a difusão das técnicas de civilização, originalmente da Mesopotâmia, e então dentro da área que McNeill denominou de ecumene, como oposta à terra dos bárbaros. Oikounenê (um dos termos de Arnold Toynbee) também foi utilizado pelo grande antropólogo A. L. Kroeber para

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designar “a série de culturas mais desenvolvidas dos homens”, e desta forma “as civilizações inter-relacionadas milenarmente conectadas às principais massas de terras do Oriente” (1952, p.379). Esta era uma zona de intercomunicação no interior da qual as técnicas básicas de civilização foram criadas, e a partir da qual se propagaram. As zonas fronteiriças mudaram com o tempo, mas este centro primitivo estava no antigo Oriente Próximo.

A origem da civilização, na narrativa de McNeill, deixou de fora a introdução da agricultura. Sobre este assunto ele tomou posições contraditórias, apesar de tentar manter uma única narrativa linear. Ainda que a introdução explique que a agricultura foi introduzida mais que uma vez, a narrativa do livro focaliza o papel central da Mesopotâmia, fazendo uma exceção apenas à introdução da agricultura na China (1963, p.11). Sobre as Américas, McNeill escreveu, “sementes e mudas devem ter sido trazidas na travessia do oceano pela agência humana em tempos muito remotos” (1963, p.240). Então, um pouco depois, ele explica que “contatos eram tão limitados e esporádicos para permitir aos ameríndios tomarem emprestadas técnicas de outras culturas mais avançadas do Velho Mundo. Como resultado, as civilizações andinas e mexicanas se desenvolveram tardiamente, nunca conseguiram controlar seus meio-ambientes sendo incapazes de competir com os níveis de domínio alcançados por seus contemporâneos na Eurásia”.2 Ele não viu possibilidade da domesticação ter se iniciado de forma independente na África e escreveu que a agricultura veio ao oriente e ao sul da África apenas nos últimos cinco séculos. Até então, “caçadores primitivos perambulavam, assim como faziam seus antepassados há incalculáveis milênios” (McNeill 1963, p.481).

Esta afirmação é ela própria incorreta por milênios. Sabemos agora aquilo que os estudiosos daquela geração não sabiam: que a domesticação de animais veio, muito antes, da África (possivelmente antes que do Sudeste da Ásia), e que existiam centros autônomos de cultivo na África ao sul do Saara.3

Historiadores da geração de McNeill sabiam que os grandes impérios tinham se desenvolvido na África subsaariana na primeira metade do presente milênio —

Ghana, Mali, Songhay e outros grandes reinos na África oriental, e muitos outros grandes reinos na África ocidental, central e meridional, dos quais Zimbábue ficou famoso devido suas magníficas ruínas de pedra. McNeill viu em tudo isso empréstimos. As mais avançadas sociedades africanas, ele escreveu, “nunca foram independentes das principais civilizações da Eurásia” (1963, p.252). O Islã, no seu ponto de vista, teve um papel central ao trazer a civilização da Eurásia para África. Mesmo a migração para o sul dos agricultores falantes de bantu “pode ter sido reforçada pela migração das tribos que fugiam das pressões mulçumanas no nordeste” (1963, p.560).

Pesquisas arqueológicas recentes têm mostrado que o urbanismo baseado no comércio chegou à África ocidental antes do começo do Islã. Em cerca de 500 D.C. Jenne, no rio Níger, surgiu como uma cidade construída pelo comércio local de excedentes agrícolas tirados das terra inundadas pelo rio. Neste caso, os africanos ocidentais construíram suas próprias cidades que se desenvolveram antes do Islã se tornar importante (McIntosh e McIntosh 1988).

Na África central e meridional, também, se desenvolveram reinos fora das bases locais. Zimbábue é somente uma entre muitas routras ruínas de pedra construídas em estilos similares. Estas foram assentadas para transformar a criação e a transumância de gado possíveis, da mesma forma que o comércio de longa distância. Como na África ocidental, as evidências apontam para o crescimento dos centros localmente consolidados que participaram do comércio de longa distância. A história não pode continuar a ser escrita como uma única narrativa da difusão das artes das civilizações de um ecumene, um centro histórico, para a África e outras partes do mundo.4

As novas tendências desafiam os historiadores a encontrar novos caminhos para definir as fronteiras espaciais de importantes processos na história mundial. Nestes desafios, e em muitos outros, o surgimento da Escola dos Annales na França interagiu de maneira criativa com o desenvolvimento da história africana. Os criadores dos Annales tinham uma visão histórica arejada; eles desafiavam a ortodoxia do estilo histórico (associado ao legado de Leopold Von Ranke) focado no

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estudo crítico dos documentos, especialmente, aqueles que relatavam minuciosamente os eventos políticos. Os primeiros estudiosos associados à Escola dos Annales reagiram contra as limitações da definição política dos temas da história. Marc Bloch, em seus primeiros trabalhos, escreveu sobre um entendimento coletivo do mundo que nos parece próximo a uma abordagem antropológica (Bloch 1924, 1925). Bloch, Lucien Febvre e outros estavam preocupados com a história da sociedade de maneira geral, e não apenas com um limitado grupo social sobre o qual os principais documentos políticos se referiam.5

Fernand Braudel, o principal líder da segunda geração dos Annales, estendeu as fronteiras do espaço histórico de um modo que tornou mais fácil entender a África no contexto da história mundial. Muitos dos antigos historiadores se limitavam à história nacional, da França, da Itália ou da Espanha. Outros foram das fronteiras nacionais para as continentais. Braudel em sua obra-prima viu o Mediterrâneo, com suas palmeiras e oliveiras, como uma significativa unidade histórica, mesmo que composta por partes da Europa, da África e da Ásia. Uma unidade que se ligava por suas rotas marítimas, mas que se estendia a qualquer parte onde houvesse comunicação humana: “Nós precisamos imaginar milhares de fronteiras, não apenas uma”, ele escreveu, “algumas políticas, algumas econômicas e outras culturais” (1976, p.170).

Uma abordagem flexível sobre as fronteiras espaciais nos fornece ferramentas para destruir as limitadas definições de centro e periferia na história mundial. Nós não precisamos ver os mulçumanos da África ocidental a partir de uma moldura que os coloca unicamente como responsáveis por conduzir a cultura do centro da civilização para a periferia. Podemos vê-los como africanos ocidentais, na economia, na língua e em muitos outros elementos da prática discursiva, e ainda, ao mesmo tempo, reconhecê-los como mulçumanos. Não precisamos ler a partir de um único mapa histórico que inevitavelmente separa os africanos dos habitantes do Oriente Médio. Podemos ler os mapas em paralelo: alguns para a língua, alguns para a economia, alguns para a religião. Similarmente, quando definimos as fronteiras das práticas de cura da África, não precisamos estancar nossa

análise nos limites continentais; nossa história pode se estender para as Américas. Ao adotarmos uma compreensão especificamente flexível e situacional do espaço histórico, o complexo das plantations, quase sempre associado às Américas — como um fenômeno do Caribe, Brasil e sul dos Estados Unidos — pode ser entendido em seus prolongamentos, na costa leste africana e no norte da Nigéria (ver Cooper 1977; Sheriff 1987; Lovejoy 1979).

Braudel, assim como os demais historiadores dos Annales, insistiu em perguntar o quão representativo nosso conhecimento histórico é em relação à totalidade do universo que poderia ser descrito, se apenas soubéssemos toda a história. Ele viu a economia, como estudada pelos economistas, por exemplo, como apenas uma pequena parte de uma mais ampla e obscura esfera da atividade econômica. Ele observou que “a economia de mercado continua a controlar a maior parte das transações que aparece nas estatísticas”, como um modo de argumentar que os historiadores devem se preocupar também com o que as estatísticas não mostram (1981, p.24 grifo no original). Uma preocupação com o caráter representativo do conhecimento histórico esteve no centro do crescimento da histórica da África; que, neste sentido, pode ser vista como braudeliana em sua inspiração.6 Historiadores africanos diziam que mesmo se as fontes convencionais existentes se silenciam sobre a África, isto não pode ser tomado como evidência de que nada tinha acontecido na África. Se os contornos da história mundial foram determinados pelos silêncios de nossas fontes, e não pela forma dos objetos históricos, então precisamos encontrar novas fontes.

No entanto, mesmo Braudel não pôde romper com uma história unidirecional do mundo com a Europa no centro. Civilisation matérielle, économie et capitalisme, o terceiro volume de sua história mundial (século XV-XVIII) em três volumes, é conduzido pela tensão entre a disciplinada tentativa de Braudel de encontrar a correta estrutura espacial para cada fenômeno (para explicar o crescimento da população no século XVIII, numa perspectiva mundial, por exemplo), e sua definição da moderna história mundial como a ascensão de uma Europa dominante.

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Civilisation Matérielle, como uma história mundial, fala sobre o lugar da África em um contexto comparativo. O primeiro volume se refere à história da vida material cotidiana: comida, roupa, plantações, habitação, mobília e daí por diante. A dificuldade de Braudel em entender a África subsaariana não prejudica sua análise mais ampla, exceto quanto isto determina suas reflexões mais gerais sobre toda a experiência humana.7 O mesmo é válido para o segundo volume, sobre as técnicas por meio das quais as pessoas trocaram bens em várias partes do mundo. No terceiro volume, contudo, a questão sobre o lugar da África na história (e da América Latina) fica mais próxima do foco de análise. Este volume, escrito a partir do pensamento de Immanuel Wallerstein, questiona o processo que fez emergir uma economia capitalista mundial dominante, cujo centro é o ocidente. Em 1750, ele diz, os últimos países a se industrializarem foram responsáveis por 22,5 por cento da produção bruta mundial. Em 1976, os mesmos países foram responsáveis por 75 por cento daquela produção. Quais foram as origens deste movimento de uma relativa paridade econômica das partes do mundo para o domínio do centro capitalista? (1984, p. 534; 1982, p. 134).

Wallerstein, de quem Braudel adota a estrutura analítica (daquele período), começou a explorar a história econômica mundial para responder questões que surgiram de seu trabalho como um especialista em sociologia da África. A década de 70 foi um tempo em que muitas nações africanas, nascidas no otimismo dos anos de 1960, foram forçadas a lidar com a intratável natureza de sua pobreza. Wallerstein refletiu sobre suas causas e origens. Ele tomou emprestados estudos sobre a dependência na América Latina e formulou uma estrutura interpretativa descrevendo todo o mundo, no período mais recente, como um sistema capitalista, independente das formas locais de organização do trabalho ou da propriedade. As desigualdades mais significativas, argumenta Wallerstein, podem ser compreendidas em termos de uma metáfora espacial. Os países mais poderosos do centro capitalista fortaleceram-se a partir de suas relações com os países mais pobres da periferia; a semi-periferia atua com um papel mediador que é importante para a estabilidade do sistema total (Wallerstein

1974a, Wallerstein, 1974b, o próximo livro de Cooper et.al. explora o modo no qual escrever sobre a África e a América Latina levou à fragmentação da história mundial de Wallerstein. Ver também Stern 1988, DuPlessis 1987 e Jewsiewicki 1987).

Braudel adotou esta moldura no que se refere ao caráter sistêmico da desigualdade entre os povos, aos quais ele chama de “os que têm e os que não têm” (1979, p.16). Ele estava interessado em entender como o domínio do centro capitalista cresceu fora do desenvolvimento interno da Europa, e fora das relações entre as economias-mundo locais. Estas últimas eram unidades espaciais que adquiriram certa integração orgânica por causa da densidade das relações de troca no seu interior. O Mediterrâneo no século XVI era uma economia-mundo neste sentido.

Braudel tentou fazer uma séria avaliação dos níveis do quanto a riqueza vinda de fora da Europa contribuiu para o advento do capitalismo, mas ele tratou os africanos, e em menor grau os povos das Américas, como atores históricos apenas na medida em que eles estavam relacionados com as necessidades dos europeus (1984, p.386):

Embora pudéssemos ter preferido ver estes “não-europeus” em seus próprios termos, isto não poder ser entendido corretamente, mesmo antes do século XVIII, exceto nos termos da poderosa sombra da Europa ocidental que os encobriu... E era de todos os lugares do mundo... que a Europa estava retirando uma parte significativa de sua força e sua substância. E esta era a parte extra que habilitava os europeus a alcançar a elevada condição de super-humanos, incumbidos da tarefa de lutar pelo curso do progresso.

Esta é uma afirmação quase estranha, englobando uma significativa parte do mundo simplesmente nas bases de uma mesma categoria daquilo que não é Europa, e propondo ignorar a não-Europa em seus próprios termos.

Braudel descreve o desenvolvimento africano, em particular, nos termos da essência racial. Na sua visão toda a civilização originou-se do norte e se irradiou para o sul. Ele escreve, “eu gostaria agora de me concentrar no coração da África Negra, deixando de lado os países do Magrebe — a ‘África Branca’ contida dentro da órbita do

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Islã” (1984, p.430). Usualmente, a compreensão de Braudel do espaço histórico é engenhosa e sutil, nela cada estrutura espacial é cuidadosamente diferenciada. Aqui, entretanto, ele funde várias estruturas de um modo inflexível e inexato. Primeiro, ele mistura raça (“Branca” ou “Preta”) com religião (Islâmico ou não-Islâmico), ainda que muitos mulçumanos fossem povos que ele, em outro caso, teria descrito como “pretos”.

Segundo, ele caracteriza a “África Negra” como passiva e inerte. Ele escreve que os navios europeus na Costa Ocidental não encontraram “resistência ou vigilância” e que o mesmo tinha acontecido nas margens do deserto: “As comitivas de camelos islâmicas eram tão livres para escolher seus pontos de entrada quanto eram os navios europeus” (1984, p. 434). Isto é demonstravelmente incorreto. Um grande conjunto de estudos históricos explora as complexas inter-relações entre os reis ou comerciantes da África ocidental e aqueles que atravessavam o deserto vindos do norte. A expansão do Islã e o comércio trans-saariano foram moldados a partir de iniciativas tomadas por ambas os lados do deserto.8

De acordo com Braudel, todo o movimento teve uma única direção. “Curiosamente, nenhum explorador negro empreendeu qualquer viagem através do deserto ou do oceano, que estavam ao seu alcance... Para os africanos, o Atlântico era, assim como o Saara, um obstáculo impenetrável” (1984, p.434). Ele escreveu isto apesar do conhecimento (com o qual ele certamente teve contato) de que muitos mulçumanos comercializavam pelo deserto, ou que peregrinavam até Meca, vindos do Sudão ocidental. Eram africanos que seriam descritos por Braudel como negros, trazendo com eles a herança cultural da África ocidental. Relatos mostram que alguns dirigentes da África negra fizeram a peregrinação para Meca ainda no início do século XI (Al-Naqar 1972, p.27). Mansa Musa do Mali viajou da África ocidental ao Cairo, depois para Meca no século XIV com um séqüito composto por 60.000 indivíduos (Hiskett 1984, p.15; ver também pp.29, 34 e 55). Ainda que o número correto seja provavelmente menor, não há dúvida que milhares de africanos atravessaram o deserto para visitar o mundo do Mediterrâneo e do Mar Vermelho, e outros (da Costa Oriental),

1 A afirmação sobre a inexistência de história africana em Berkeley é baseada no Bulletin: General Catalogue... (ver Califórnia, Universidade da, 1955). A afirmação sobre a Universidade de Chicago é baseada no Announcements: Graduate Programs... (ver Chicago, Universidade de, 1956). A afirmação sobre Columbia é baseada nas memórias de minha pesquisa sobre os historiadores africanos em 1960, quando eu estava na graduação. A afirmação sobre Princeton é baseada em comunicação pessoal de Robert Tignor. A observação sobre os chefes de departamento é descrita em Perkins e Snell 1962, p.32. É provável que houvesse um número de graduandos trabalhando com a história do Egito e do Magrebe que não foram considerados, naquele momento, como estudantes de história da África. 2 McNeill 1963, pp.242-43. McNeill continuou seus estudos seguindo novas direções depois de The Rise of the West. Plagues and Peoples (1976) não reduz toda a história mundial ao destino de algumas civilizações centrais. The Human Condition (1980) recapitula alguns dos principais temas do livro de 1963, mas com importantes mudanças de ênfase se afastando do unidirecionamento. Em Polyethnicity and National Unity in World History (1985), McNeill deixa claro que os centros dos grandes impérios atraíram pessoas de uma ampla diversidade de origens. “O resultado... foi uma mistura étnica e um pluralismo em grande escala” (McNeill, 1985, p.15).3 Uma nova pesquisa sobre o primeiro pastorialismo é descrita por Wendorf, Close, e Schild 1987, e Bower 1991, pp.56-57. Sobre as origens da agricultura, ver Harlan, DeWet, e Stemler 1976, e Clark e Brandt 1984.4 Sobre as origens indígenas nos reinos dos lagos do oriente africano, ver Schmidt 1978; Tantala 1989; Schoenburn 1990; Berger 1981; Karugire 1971; e Centre de Civilisation Burundaise 1981. Reefe (1981) escreveu sobre o Império Luba. Sobre as origens indígenas do Zimbábue, ver Garlake 1973 e 1978. Henrika Kuklick (1991) descreve a interação das políticas raciais e das pesquisas arqueológicas que levaram às primeiras interpretações do Zimbábue com estranhos à África. Martin Hall (1987) fornece uma síntese geral do conhecimento arqueológico sobre o relacionamento entre a organização política e a economia para as regiões meridionais da África. Graham Connah (1987) faz o mesmo para toda a África. Para uma história geral, ver Curtin, Feierman, Thompson e Vansina 1978.5 Sobre os Annales, ver Burke 1990; Stoianovich 1976; Chartier 1988.6 Eu não estou sugerindo que todos os africanistas leram Braudel. Esta influência pode ter ocorrido indiretamente, quando os africanistas liam e discutiam o trabalho dos seus colegas europeus. 7 Braudel não cita muitos trabalhos sobre a África escritos por intelectuais modernos. Mais de um terço das citações sobre a África neste volume se referem a um trabalho de 1728, editado por Father Labat que sequer visitou o continente africano; as descrições da África são de André Brue que viveu no Senegal no final do século XVII e início do século XVIII (Nouvelle Biographie Générale, vol.28 [Paris: Frimin Didot Frères, 1859], pp.333-35; Dictionnaire de Biographie Française, vol. 7 [Paris: Libraire Letouzey, 1956], p.473).8 A literatura sobre esses assuntos inclui centenas de livros e artigos. Para uma discussão sobre as raízes africanas dos notáveis em um centro de saber islâmico, ver Saad 1983. Para interessantes estudos de casos locais ver Roberts 1987 e Bathily 1989. Um interessante estudo de caso regional nos é dado por Last 1985. Para um quadro geral da história econômica de África ocidental, ver Hopkins 1973; para as últimas literaturas sobre esse assunto, ver Austen 1987. A economia local baseada em formas islâmicas de atuação são discutidas em Hanson 1990.

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cruzaram o Oceano Índico para alcançar o Golfo Pérsico e a Índia.

Finalmente, a caracterização da diferença que Braudel estabelece entre a “África Negra” e a “África Branca” é baseada em sua compreensão de raça. Na Grammaire des Civilisations ele admite que a Etiópia (neste caso, cristã) foi uma civilização, explicando que ela “indiscutivelmente possuía elementos étnicos brancos, e foi fundada em uma população mestiça, muito diferente, entretanto, daqueles que eram verdadeiros melano-africanos” (1987, p.152). Ás vezes, ele nega a existência de alguns fatos para preservar a clara distinção entre a África Negra, que é incivilizada, e a África Branca que é civilizada. Em um livro de 1963, Braudel admite que a região próxima ao Golfo da Guiné foi urbanizada muito cedo (1987, p.164; originalmente publicado em 1963). Mas, em um livro posterior, no qual argumenta que as cidades eram uma das marcas distintivas de civilização, escreveu que não existiam cidades na orla do Golfo da Guiné. (1981, pp. 292-93).

Uma vez que os historiadores têm chegado a uma melhor compreensão da urbanização africana e das iniciativas africanas nas trocas intercontinentais, fica mais fácil ver a fragilidade desta pequena parte do trabalho de Braudel. Entretanto, uma questão central permanece: se a sua interpretação unidirecional da África é meramente uma infeliz idiossincrasia que se opõe ao grande historiador, ou se é um sinal de problemas profundos no modo como muitos historiadores constroem suas narrativas.

No trabalho de Pierre Chaunu e Bartolome Bennassar, membros da terceira geração dos Annales, podemos ver a tensão entre a nova evidência africana, mostrando processos autônomos, e a velha visão de história mundial na qual o progresso irradia das poucas civilizações históricas. Na história do mundo entre os séculos XIV e XVI escrita por eles, o processo central é a fusão de espaços históricos locais no interior de um único espaço mundial interconectado. Bennassar toma o cuidado de ler os novos trabalhos dos africanistas, até então apenas parcialmente assimilados. Ele explica, por exemplo, que muitos dos mercadores mulçumanos da África ocidental eram negros africanos ocidentais, e que o Islã atuou no avanço da agricultura e da metalurgia na “civilização

Bantu” dos grandes lagos da África oriental (Bennassar e Chaunu 1977, pp. 71 e 73). Porém, no mesmo capítulo Bennassar escreve sobre a região dos grandes lagos “do Lago Rudoff até o Lago Nyasa, onde Estados negros com economias diversificadas estavam... aptos a se estabelecerem à medida que a penetração árabe estimulava a função comercial” (Benessar e Chaunu, 1977, p.72). Esta visão da penetração árabe, para a qual não existem evidências, surge apontando e fixando, claramente, a posição da África dentro de uma narrativa mais ampla.

Esta narrativa mais ampla no livro de Bennassar e Chaunu, no trabalho de Braudel e em McNeill, fala sobre o impacto das “civilizações” no mundo. Apesar da centralidade das “civilizações”, o termo raramente é matéria de discussões cuidadosas. McNeill, que escreveu que as “sociedades civilizadas têm muito para ensinar e relativamente pouco para aprender dos povos ainda não civilizados”, define civilização como “um estilo de vida caracterizado por uma complexidade, riqueza e imprevisibilidade geral que justificam o epíteto de ‘civilizada” (McNeill 1963, pp. 65 e 32).

“Civilização” na língua inglesa, ao longo dos séculos, carregou conotações relacionadas a si própria e ao outro, ou do próprio ou impróprio para ordenar uma sociedade. “Civilizar” no Oxford English Dictionary (1933) é “educar o que é rude ou grosseiro... domesticar, domar (animais selvagens)... fazer ‘civil’” no sentido de “ter boa ordem pública ou social”. “Civilização” é uma condição ou estado civilizado nestes sentidos, mas é igualmente “um desenvolvido ou avançado estado da sociedade humana”.

Braudel faz uma distinção entre “civilizações” e “culturas”, estando as sociedades da África Negra entre as culturas. Em The Structures of Everyday Life ele escreve que “a cultura é uma civilização que não atingiu ainda sua maturidade” (1981, p.101), mas em Grammaire des Civilisations ele toma emprestado de Lévi-Strauss, a divisão das sociedades entre relógios e máquinas a vapor, para argumentar:

As sociedades que correspondem a culturas são aquelas... que têm a tendência de se manter indefinidamente em seu estado inicial, o que explica, além

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disso, porque elas, para nós, parecem ser sociedades sem história e progresso... Nas breves culturas primitivas encontramos a semente das sociedades igualitárias, nas quais as relações entre os grupos são reguladas uma vez e para todos, repetindo elas próprias, enquanto as civilizações são encontradas nas sociedades hierárquicas, com... tensões que se transforma, conflitos sociais, lutas políticas e uma perpétua evolução. (Braudel 1987, p.48)

As culturas africanas, de acordo com este argumento, são igualitárias e estáticas enquanto as civilizações européias são hierárquicas e dinâmicas.

O sinal externo mais significativo de civilização, de acordo com Braudel, é a presença de cidades (1987, p.48), mas estas, por sua vez, são indicadores da existência de espaço hierarquizado, dividido entre centros ricos e periferias pobres (Braudel 1979, p.16). As desigualdades espaciais emergem onde a intercomunicação e o comércio são bem desenvolvidos e onde a agricultura é produtiva. A produtividade da sociedade civilizada é fruto do cultivo com arado; as culturas costumam contar com a enxada (Braudel 1981, pp.56-64, 174-82). Chaunu é claro sobre a importância da mudança na agricultura: o aumento na produtividade leva ao crescimento da densidade populacional que é acompanhada, por sua vez, pelo aparecimento de hierarquias (Bennassar e Chaunu 1977, pp.47-51). Um dos elementos centrais na emergência da civilização é a existência da escrita. Chaunu escreve que concorda com Braudel sobre a importância da escrita para a civilização: “As artes da memória estão situadas no coração da acumulação” e a escrita é “a mais eficaz” das artes da memória (Bennassar e Chaunu 1977, p.56, n.49).

Temos aqui um complexo de elementos que juntos formam uma configuração coerente: hierarquia econômica e política, cidades, comércio e intercomunicação, escrita, arado, alta densidade populacional e dinamismo histórico.

O problema deste complexo quando aplicado à África, no contexto das histórias mundiais

como a de Braudel ou de Bennassar e Chaunu, é que tais inter-relações não se sustentam. Na maior parte da África subsaariana o arado não é utilizado porque ele é prejudicial aos solos tropicais. Algumas áreas ostentavam próspero comércio, considerável intercomunicação e alta densidade populacional, mas sem hierarquia política.

As áreas ibo (Ibolândia) na região sudeste da Nigéria, por exemplo, tinham uma alta densidade populacional; em tempos recentes algumas partes desta região atingiram 800 habitantes por milha quadrada. Os povos cultivavam a terra com enxadas, e tinham uma densa rede de mercados periódicos (mercados estes que se revezavam em um ciclo de quatro a oito dias para facilitar aos mercadores a mudança de um lugar para outro), e tinham também uma rede de feiras de longa distância. Ao final do primeiro milênio D.C. esta região importou quantidades substanciais de bens por rotas terrestres até o Mediterrâneo — tudo isto sem escrever e, na maior parte da Ibolândia, não possui formas claras de hierarquia política. Conselhos igualitários mantinham o lugar do mercado e os agentes dos oráculos religiosos se comunicavam por longas distâncias. Diferentes tipos de funcionários rituais coexistiam na Ibolândia, cada um preservando uma ou outra forma de conhecimento, a ser transmitido oralmente para a geração seguinte. Artesãos praticavam numerosos ofícios. A região era economicamente dinâmica, tanto internamente, quanto em relação ao comércio de exportação; quando a demanda de óleo de palma cresceu no começo do século XIX, a Ibolândia e a área ao sul enfrentaram o desafio e, por volta de 1853, estavam exportando cerca de 30.000 toneladas de óleo de palma por ano, usando formas nativas de organização.9 Ela de nenhum modo pertence ao conjunto de sociedades descritas por Braudel com “tendência de se manter indefinidamente em seu estado inicial... para o qual as relações entre os grupos foram reguladas uma vez e se repetem”.

9 Sobre a organização e desenvolvimento do comércio pré-colonial, ver Northrup 1978, e Ukwu 1967. Northrup é também uma fonte sobre a densidade populacional (1978, p.13). Para uma interpretação sofisticada da organização social e cultural Ibo do período pré-colonial, ver Afigbo 1981. Sobre a exportação do óleo de palma verificar Dike 1956. Sobre o início do comércio de longa distância, ver Shaw 1970 e 1975. A literatura sobre a Ibolândia é enorme, a região é praticamente um sub-campo separado da história africana. Para alguns dos importantes eventos do século XX, ver Susan Martin 1988.

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Este é um ponto de extrema importância: a experiência histórica do sudeste da Nigéria seguiu um padrão para o qual a categoria de “civilização” estabelecida pelos historiadores foi irrelevante. A região teve alta densidade populacional e a ausência de estados hierarquizados, comércio sem escrita e produtividade agrícola sem arados. As características da “civilização” — a alta densidade populacional, comércio, hierarquia, e daí por diante — são significativos apenas na medida em que, como elementos distintos, tiveram um significado relacional: na medida em que o arado, a hierarquia política e a atividade mercantil estão relacionados, por exemplo, os elementos não têm qualquer significado explicativo se tratados simplesmente como um check-list. Nesta parte da Nigéria, fica claro que um grupo diferente de inter-relações ocorria. Não é de admirar que os historiadores, confrontados com a obrigação de levar a sério a história de Ibolândia, queixem-se da “fragmentação” e do “caos” no conhecimento histórico. Algumas das categorias da compreensão histórica longamente aceitas são irrelevantes neste caso.

Isto não significa dizer que Braudel, ou Bennassar e Chaunu, não se interessassem pelas mudanças subjacentes nas sociedades africanas. Bennassar, por exemplo, explorou os princípios da organização social africana, em sua pesquisa para responder a questão central levantada por Braudel: Por que a África não foi o lugar onde as mudanças econômicas emergiram? Por que a África não foi o lugar onde ocorreu a grande ruptura que ocasionou o capitalismo? Para responder esta questão, Bennassar começou pela compreensão dos fatores sociais que levaram à ruptura na Europa. O fator central, em sua visão, foi a liberdade parcial dos mercadores em relação ao controle político, e sua capacidade de acumular riquezas em seu próprio direito. Ele olhou para os mesmos fatores na África, começando com aquele que para ele parecia ser o mais avançado dos reinos africanos. No reino do Congo, ele argumentou, os mercadores eram rigorosamente controlados pelo rei. A terra revertia ao rei quando da morte do proprietário, assim impedindo a possibilidade de acumulação. O rei era a fonte da miséria e da prosperidade, aos mercadores faltava

autonomia e o crescimento econômico foi restrito (Bennassar and Chaunu 1977, pp.85-87).

A análise caiu, entretanto, não apenas por causa da larga diversidade das estruturas de Estado na África, mas também por causa da incorreção do pressuposto básico de que a autonomia dos mercadores exigia uma estrutura estatal que pudesse sustentar seus negócios. John Janzen tem escrito sobre a história de um conjunto de instituições com funções mercantis que abrangem várias regiões ocupadas por Estados e áreas de organização política acéfala. Esta é uma área que se estende além do limite norte do reino do Congo, principalmente ao norte do rio Congo, à medida que este desce ao Oceano Atlântico. Esta era uma região de intensa atividade entre mercadores que comerciavam localmente e contribuíram para o comércio de exportação. O comércio de marfim no século XVII foi alimentado por uma matança anual de 3.000 a 4.000 elefantes. Estimativas, também do século XVII, mostraram que esta região era capaz de exportar quarenta toneladas de cobre por ano.10 Uma outra parte crucial da economia regional estava fora dos limites do reino. Era uma área em que uma série de importantes funções governamentais era mantida pela Lemba — uma associação de cura, ou nos termos de Janzen (e nos de Victor Turner), “um tambor de aflição”.

As pessoas eram iniciadas no Lemba como um modo de tratar suas doenças e ainda como forma de estabelecer organizações comerciais. Os iniciados tinham um papel essencial na manutenção da livre passagem através de toda a rede de mercados de quatro dias. Lemba era uma forma de expressão religiosa, uma medicina consagrada, na qual, os mais altos níveis de iniciação eram muito caros. Os comerciantes mais ricos estavam comumente no topo da organização Lemba, e eles utilizavam as redes rituais para atingir seus interesses econômicos. Este é um exemplo exato do tipo de autonomia mercantil que Bennassar estava procurando. Ele não a encontrou (ou outras instituições similares) porque o historiador dedicado à história mundial normalmente não procura por atividades mercantis na ‘sagrada medicina de governar’;... ‘no governo da multiplicação e

10 Janzen 1982, pp.28 e 32; alguns dos trabalhos mais importantes da reconstrução da história do comércio foram feitos por Phyllis Martin 1972.

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reprodução’... e ‘na sagrada medicina integrando pessoas, vilas e mercados’” (Janzen 1982, p.4).

O problema aqui é que as categorias de análise histórica são normalmente trazidas da Europa, e, conseqüentemente, os historiadores buscam na África uma constelação familiar de reis, nobres, igreja e mercadores. “A sagrada medicina de governar” é estranha a essa análise. V.Y. Mudimbe tem explicado que análises funcionalistas dependem do contraste entre o normal e o patológico. Se o europeu é definido como normal, então os não-europeus aparecem de forma distorcida, anormal, primitiva (1988, pp. 27 e 191-92).

Como, então, podemos construir um relato da história mundial dentro de uma mesma moldura, se os princípios da organização social dos Lemba, ou na Ibolândia, são diferentes dos princípios europeus? Eric Wolf tenta fazer isto, construir um relato coerente enquanto dá a devida atenção aos não-europeus em Europe And The People Without History (1982). Pelo fato de Wolf ter trabalhado tão arduamente para reverter o balanço da ênfase da Europa para “os povos sem história”, podemos ver os limites e as dificuldades deste empreendimento.

As primeiras partes do livro não tentam delinear um processo unificado na história mundial. Wolf orienta suas primeiras descrições, baseado em três “modos de produção”. Por outro lado, esta descrição pode ser utilizada para reduzir a diversa experiência em alguns tipos simples dentro de um esquema feito na Europa. Se esse fosse o caso, Wolf poderia ter violentado os princípios localmente específicos de organização, os africanos entre outros. Mas este não é o caso. Os modelos são categorias heurísticas. Estes não são tipos de sociedades, ele escreve, mas “construções que buscam imaginar certos relacionamentos estratégicos”.11 Ele fez um amplo esboço da geografia social mundial e da organização política em 1400, enfatizando as formas políticas autônomas, especialmente aquelas que não eram puramente locais e que faziam

integrações regionais possíveis. Wolf então se volta para o capitalismo, para o momento de sua origem.

Foi para o período capitalista que Wolf objetivou construir uma história universal, baseada nas regularidades do processo histórico e não somente na moldura histórica da análise. O surgimento de um mercado mundial levou ao aparecimento do dinheiro (e dos preços) como linguagem universal. Os bens em todas as partes do mundo se transformaram em mercadorias, e estas “podiam ser compradas e trocadas sem nenhuma referência à matriz social na qual elas eram produzidas (1982, p.310)”. Cada mercadoria tinha um valor quantitativo em relação a todas as outras mercadorias devido à existência de instituições de mercado.

Para o período em que o mercado mundial existe, os historiadores podem escrever uma história universal do modo como as mercadorias foram produzidas e trocadas. Este é o projeto de Wolf. Ele esboça as conseqüências políticas e econômicas do comércio de pele para as pessoas na América do Norte e do comércio de escravos para a África. Mais à frente no livro ele viaja ao mundo, mostrando os efeitos da produção de mercadorias — exemplificando o impacto da produção da borracha, por exemplo, na Bacia Amazônica e no sul da Ásia.

O foco de Wolf sobre os não-europeus na história mundial é especialmente útil para revelar como é difícil construir uma única narrativa mestra, para o que deve necessariamente existir níveis de experiência que Wolf não descreve — níveis nos quais as pessoas se esforçam para criar novos modos de dar formas culturais para a ação social, níveis em que a experiência escapa da regularidade dos processos “universais”.12

Recentes trabalhos de Arjum Appadurai e Igor Kopytoff mostram, por exemplo, que objetos se transformam em mercadorias em modos culturais específicos (Appadurai 1986; Kopytoff 1986; ver também Geary 1986; Cassanelli 1986). Os objetos, nesta visão, têm uma história de vida na qual em algum momento, adquirem a condição de

11 Wolf 1982, p.100. Para uma excelente crítica desta parte do trabalho de Wolf, ver Asad 1987.12 Michael Taussig diz algo parecido em um ensaio (1989), mas seu extravagante e difuso estilo literário, algumas vezes, dificulta a compreensão do que ele diz. O próprio Taussig parece, por vezes, cair dentro de uma compreensão da cultura capitalista na qual todas as forma locais são, porém, expressções de caracteríticas universais. Ele escreve sobre o “acoplamento e o desacoplamente da reificação como fetichização” enquanto “a base da cultura capitalista” — claramente um argumento totalizante (1989, p.9).

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mercadoria, como no caso da herança em que os membros da família não podem vender, até um certo momento do ciclo de vida da família, quando o produto da herança se torna disponível para a venda. Este padrão em que os objetos adquirem a condição de mercadoria varia de uma sociedade para outra.

Sharon Hutchinson, escrevendo sobre os nuer no sul do Sudão, mostra que o dinheiro e as mercadorias são culturalmente definidos de maneiras radicalmente diferentes do esperado. A cultura das mercadorias é localmente definida e não a partir de um padrão universal. Tampouco se pode “prever como o dinheiro será conceitualizado e incorporado por outras culturas” (Hutchinson 1988, p.179).

Os nuers destes dias trabalham por ordenados, sendo ativos como mercadores e engajados como compradores e vendedores no comércio de gado e outras mercadorias. Podemos dizer, portanto, que eles entraram no mundo capitalista da troca de mercadoria, eles falam a língua mundial do dinheiro e dos preços. Todavia, o gado é mercadoria em um contexto relativamente circunscrito, ele é diferente da mercadoria descrita por Wolf, o da mercadoria encontrada em Marx, para quem a troca capitalista rompe fronteiras, dando espaço ao livre comércio. Os nuers vendem gado por dinheiro, mas eles não podem trocar o dinheiro assim obtido do mesmo modo que trocam gado. A diferença crucial entre dinheiro e gado é que o “gado tem sangue”, sangue este que o povo associa a idéia procriação; “dinheiro não tem sangue”. Por esta razão o dinheiro não pode ser usado em contextos onde o sangue do gado é relevante: para a prosperidade da linhagem [bloodwealth], ou sacrifico, ou (exceto em um grau limitado) para o dote [bridewealth]. Mesmo quando o gado é utilizado em transações sociais, distinções são feitas entre os usos do animal comprado com dinheiro (“gado de dinheiro”) e os animais utilizados como dote (“gado de menina”).

O dinheiro não é um meio homogêneo de troca para as pessoas da Nuerlândia. Dinheiro ganho na limpeza de latrinas ou em trabalhos domésticos é chamado de “dinheiro de porcaria” não podendo ser utilizado na compra de gado. “Gado comprado com dinheiro de porcaria não consegue viver”

(Hutchinson 1988, p.152). Outros ordenados são chamados de “dinheiro de suor” e aquele ganho na venda de gado é o “dinheiro de gado”. Para os nuers, o dinheiro não é um fluido universal. Há diferentes tipos dele, com diferentes usos (Hutchinson 1988, pp. 108, 110, 115-16, 148, 149, 152-62, 176 e 179).

Os nuers tiveram que construir uma nova síntese de mercado e comunidade, um novo conjunto de categorias de troca, para atender suas próprias necessidades. Este é um tipo de processo criativo que não é considerado numa narrativa da expansão das mercadorias na história mundial. Dizer isto não significa negar a existência de mercadorias, nem a sua comensurabilidade a partir de uma base mundial, nem a importância do surgimento de um mercado mundial. Dizer isto significa simplesmente que a história das mercadorias não é uma história total, que existem espaços de experiência para além do alcançado.

A história comparativa ainda é possível para historiadores que estabelecem objetivos modestos. Cross Cultural Trade in World History, de Philip Curtin, explora as formas tomadas pelas redes de comércio pré-industriais que conectam os povos por meio de fronteiras culturais. Esta é uma sociologia histórica comparativa focada nos estabelecimentos de especialistas comerciais, removidos fisicamente de suas comunidades de origem e vivendo como estrangeiros entre seus hospedeiros, conectados com outros estabelecimentos similares em uma rede comercial, uma “diáspora mercantil”. Os comerciantes chineses criaram uma diáspora comercial no sul da Ásia, assim como fizeram os juulas no oeste da África, e os fenícios e os gregos no Mediterrâneo. As comunidades interconectadas de mercadores forneciam serviços de comércio e informações umas às outras através de áreas amplamente dispersas. Curtin usa o comércio diaspórico para explorar a definição das zonas de intercomunicação na história mundial. Esta é uma retomada do tema tratado por McNeill (Curtin escreve sobre “regiões de comércio ecumêmico”), mas sem levar em conta a história unidirecional. “Um dos mitos da história da África”, ele escreve, “é a velha visão de que o comércio na África foi largamente uma iniciativa de estrangeiros... De fato, o comércio para além do nível da aldeia começou como uma iniciativa

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africana” se expandindo a partir deste nível inicial para o exterior (Curtin 1984, pp. 15-16). Curtin rejeita a idéia de que as diásporas comerciais estão todas ligadas a um mesmo compasso de um sistema econômico, no estilo de Wallerstein ou André Gunder Frank. “Elas são somente uma influência entre tantas no curso da história”. (Curtin 1984, p.9).

Uma leitura de McNeill, Braudel, Bennassar e Chaunu, Wolf, Curtin e outros, aponta para um mais amplo e geral desenvolvimento: que o surgir da história africana (e da asiática e da latino-americana) tem mudado profundamente nossa compreensão da história geral, e do lugar da Europa no mundo. Não é mais possível defender a posição de que os processos históricos entre os povos não-europeus possam ser vistos como meras conseqüências de influências encadeadas que emergem de um centro europeu dominante. Esta mudança em nossa compreensão é desconfortável para quem vê a história como a expansão da civilização a partir de um centro europeu, e é igualmente desconfortável para quem esquematiza a história nos termos de um sistema auto-determinado de exploração escravista.

A mudança das narrativas históricas que se originavam na Europa vem sendo acompanhada e autorizada por inovações nos métodos de construção do conhecimento sobre os povos e as pessoas que anteriormente foram deixados de lado pelos estudos históricos acadêmicos. Estes métodos renovados, alguns dos quais se desenvolveram inicialmente entre os historiadores da África, incluem história oral, arqueologia histórica, lingüística histórica, bem como análises históricas de formato antropológico. Os novos métodos e modos de interpretação permitiram aos historiadores se aproximar da história dos povos iletrados, em muitos casos destituídos de poder, sem partir dos cânones aceitos pela crítica da pesquisa histórica. Os historiadores estão aptos a conhecer histórias das quais eles nunca tiveram conhecimento antes. As conseqüências são, uma vez mais, paradoxais. Os avanços significativos na qualidade do conhecimento histórico ajudam

a mexer com a fé dos historiadores na qualidade de seus conhecimentos. Para vislumbrar todas as regiões da história anteriormente desconhecidas, para ver o lado obscuro da lua, a fé dos estudiosos foi perturbada em sua própria onisciência.

Os avanços metodológicos não se limitam à África. Eles tiveram impacto em numerosos campos históricos, mas muitos deles surgiram com clareza e força particular entre os historiadores da África.13 O impacto da história oral resultou em um grande avanço nos estudos sobre a África subsaariana, onde muitas sociedades eram perfeitamente compatíveis com esta forma de pesquisa: estes povos transmitiam um conjunto substancial de conhecimento de uma geração para a seguinte e sustentavam uma complexa hierarquia política e econômica, tudo sem o uso da escrita. Tradições orais ainda estavam vivas (e em muitos casos ainda estão) quando os historiadores das décadas de 1960 e 1970 fizeram suas pesquisas. Diferentemente da América Latina, onde o período colonial começou há alguns séculos, foi apenas no final do século XIX que a maior parte da África subsaariana experimentou a conquista. Antes disso, os europeus, em muitos casos, não interferiram diretamente na transmissão do conhecimento.

Jan Vansina em De la tradition orale foi o primeiro a argumentar coerentemente entre os africanistas que as tradições orais poderiam ser utilizadas como fontes históricas e ofereceu elementos básicos para um método (Vansina 1961, revisitado em 1985; ver também Miller 1980, Cossanell 1982; Cohen 1985). Em muitos casos os historiadores acadêmicos eram africanos que tiveram a oportunidade de aprender fragmentos de história oralmente transmitidas em suas infâncias, e que retornaram à África anos depois, e trouxeram ferramentas para estudar as mesmas tradições. (Kimambo, 1969; Ogot 1967; Samatar 1982; Alagoa 1964, 1972, 1980; Were 1967). Os historiadores, no entanto, precisavam entender que as próprias narrativas, contadas no interior das sociedades africanas, não são recitações

13 A história oral, como uma prática entre os africanistas, teve significante influência entre os historiadores europeus (ver Stock 1983; Clanchy 1979). É importante notar, entretanto, que o africanista que teve maior influência entre eles foi Jack Goody, que não é um historiador, e que não utilizou a tradição oral para o propósito da reconstrução da critica histórica. Não africanistas leram Goody porque é possível compreender seu argumento sem ter que possuir um substantivo conhecimento sobre história da África.

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socialmente neutras que servem a todos igualmente. Elas são mais um objeto de disputa, localizado na rede de relações de poder, assim como são os relatos das glórias da civilização ocidental ou da criatividade afrocêntrica. A interpretação histórica precisa ler as tradições (precisa ouvi-las e assistir suas performances) prestando atenção nas formas de dominação inscritas nelas, e as relações da rede social na qual elas estão encravadas (ver Feierman 1990 e Tonkin 1992).

O sentido de que havia um mundo de experiências históricas na África para além do que era descrito nos documentos levou os historiadores a explorar novas técnicas de reconstrução histórica, acompanhando o estudo da história oral. Arqueologia histórica — arqueologia de períodos relativamente recentes (os últimos 3.000 anos) — combinando tradição oral, etnologia e técnicas arqueológicas mais comuns, tem ajudado os historiadores na ausência de ricos registros documentais (Schmidt 1978, 1983a, 1983b, 1990; Chittick 1974; Posnansky 1969; McIntosh e McIntosh 1980a, 1980b, 1984, 1986; Shinnie e Kense 1989). Os historiadores africanos têm feito também um uso criativo da lingüística histórica (Ehret 1968, 1971, 1988; Schoenbrun 1990).

A ampla gama de métodos empregados pelos historiadores africanos tem se mostrado útil não somente nas sociedades sem escrita, mas também nos estudos das classes desfavorecidas da sociedade, com considerável quantidade de iletrados. Os historiadores têm usado destes métodos ampliados para construir ricos relatos da maioria africana na sociedade colonial e especialmente para nos revelar os esplêndidos relatos da resistência camponesa à dominação colonial.14

Os melhores estudos da resistência à conquista, um dos quais o trabalho de Allen Isaacman, por exemplo, explora a tensão central da sociedade africana antes da conquista — o curso da resistência à dominação pelas autoridades indígenas — de modo que mesmo a história do domínio colonial é dividida entre histórias feitas na

Europa e outras que encontraram fontes de coerência dentro das histórias africanas, enraizadas nas tradições orais (Isaacman 1972, 1976, 1990; Ranger 1985a).

O sentido de que não podemos contar a história como uma única narrativa, a partir de um único ponto de vista consistente, ou de uma única perspectiva, provocou golpes profundos no pensamento cultural e social mais recente. Michel Foucault escreveu, em Language, Countermemory, Practice, que a idéia do conjunto da sociedade “surgiu no mundo ocidental, neste desenvolvimento histórico altamente individualizado que culmina no capitalismo. Para falar do “conjunto da sociedade” como a única forma que ela tem tido, é preciso transformar nosso passado em sonho” (citado em Janeiro de 1984, p.521). As muitas categorias por meio das quais compreendemos a experiência universal se origina em uma experiência particular do centro do mundo capitalista.

Esta é a mesma lição ensinada num exame da história africana. As categorias que são usadas ostensivamente como universais são, de fato, particulares, e se referem à experiência da Europa moderna. O fato de termos aprendido esta lição de dois modos diferentes — através de escritos com base filosófica sobre a Europa e através das histórias dos não-europeus — nos forçou a perguntar sobre o relacionamento entre os dois grupos de desenvolvimento. A questão central que ainda não foi completamente resolvida é o relacionamento entre a crise da representação histórica que surgiu quando os historiadores começaram a ouvir as vozes até então silenciadas, e a crise epistemológica mais geral que afeta todas as ciências sociais e humanas.

Para responder esta questão seria necessário escrever uma história geral, política e intelectual, dos anos desde a Segunda Guerra Mundial. Esta é a única possibilidade, no espaço de alguns parágrafos, para fazer sugestões preliminares.

Nas décadas após 1945, a política racial tomou uma nova e decisiva direção nos impérios coloniais europeus e nos Estados Unidos. Os conflitos que conduziram à

14 Beinart e Bundy 1987; Berry 1985; Chanock 1985; Cohen e Atieno-Odhiambo 1989; Cooper 1987; Coquery-Vidrovitch 1988; Crummey 1986; Elphick 1977; Hay e Wright 1982; Iliffe 1979; Kanogo 1987; Karp 1978; Kea 1986; Kimambo 1991; Kitching 1980; Lan 1985; Lemarchand 1970; Mandala 1990; Mbembe 1991; McCann 1987; Moore 1986; Newbury 1988; Packard 1989; Prins 1980; Ranger 1985b; Robertson 1984; Schmidt 1992; Strobel 1979; Vail 1980; Van Onselen 1982; Vincent 1981; Watts 1983; White 1990.

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descolonização — guerras na Indochina, Argélia e Quênia, e os movimentos de independência menos violentos em inúmeros outros territórios — levaram os intelectuais europeus a reconsiderar as qualidades e os valores que haviam sido definidos como europeus. A perda do império aconteceu ao mesmo tempo em que alguns pensadores questionavam se historiadores e outros estudiosos das ciências humanas eram capazes de descrever o Outro, ou se fazendo isso eles estavam de fato engajados naquilo que Emanuel Levinas chamou de “imperialismo ontológico”, no qual, a alteridade desaparece e se torna parte do mesmo (Young 1990, p.13).

Alguns pensadores argumentaram que as descrições dos nativos, o Outro colonial, estavam impregnadas de um discurso no qual os europeus se autodefiniam. Nas palavras de Edward Said, “O Oriente foi... não o interlocutor da Europa, mas seu outro silencioso” (Said 1985, p.17).15 Como era possível definir a liberdade se não a partir do contraste com o cativeiro, autonomia senão em contraste com a escravidão, ou civilização (ela própria o coração da história mundial, como vimos) senão em contraste com o barbarismo? Sem o nativo, sem o escravo, o servo ou o bárbaro, os valores centrais do ocidente seriam difíceis de imaginar. O escravo e o bárbaro não eram incidentais para a civilização, condições aberrantes nas margens; eles eram constitutivos da civilização, um modo da civilização se autodefinir. Com o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, começou a emergir uma percepção similar, de que a escravidão e as últimas formas de opressão racial não eram erros nas margens da sociedade americana; elas tinham, de um modo fundamental, definido a sociedade americana. O relacionamento entre raça e os principais valores igualitários americanos foi, nos termos de Gunnar Mydal, “um dilema americano”.16

O declínio dos impérios coloniais e o fim da segregação oficial nos Estados Unidos trouxeram um crescente número de não-brancos para o estudo profissional da história

mundial e para as audiências nas quais os historiadores a discutiam. Nos anos de 1960, muitas das recentes nações africanas independentes fundaram suas próprias universidades. Os africanos que passaram a integrar os novos departamentos de história tinham um grande interesse em reconstruir a história autônoma dos africanos dentro das fronteiras nacionais. Britânicos, franceses ou historiadores americanos, que estavam olhando agora para as histórias nacionais de um modo muito diferente daquele pelo qual haviam visto a história das colônias, foram influenciados pela significativa presença de colegas e estudantes africanos e afro-descendentes. O resultado deste desenvolvimento foi o crescimento de grupos de historiadores que começaram a trabalhar seriamente na África, na Europa, e na América do Norte, para reconstruir e registrar o passado africano.

Existiram outras forças trabalhando nesta ampla transformação intelectual — o aparecimento das mulheres na academia e o feminismo, e as mudanças radicais na história da ciência que influenciaram o pensamento sobre a história como uma ciência. Contudo, duas das forças mais centrais nasceram fora da política racial das décadas do pós-guerra: o senso de definição do lugar de subordinação do Outro nos discursos europeus, e a abertura para as histórias dos não-europeus como objeto legítimo da pesquisa histórica.

O trabalho do especialista da reconstrução histórica serviu para revelar os povos sobre os quais os antropólogos sempre escreveram e insistir para que fossem colocados no interior de uma ampla narrativa histórica. As mudanças no contexto requeriam uma mudança na maneira pela qual os historiadores entendiam a agência. Os povos anteriormente mudos agora seriam vistos como autores e atores. As culturas exóticas não eram novidades para a imaginação acadêmica, mas o estilo da descrição era novo. O novo conhecimento rompeu com a longa tradição intelectual que tratou as culturas exóticas como se elas existissem em um tempo diferente do resto da humanidade

15 Sobre o relacionamento entre a crise intelectual geral e o fim do império, ver Robert Young, White Mythologies: Writing History and the West (1990), que argumenta que a crise intelectual francesa foi precipitada pela perda da Argélia e não pelos eventos de 1968. Sobre o lugar do Outro, ver Fabian 1983; Mudimbe 1988; e Said 1979. Para alguma discussão sobre etnocentrismo, história e categorias intelectuais, ver Lévi-Strauss 1962, pp.324-60; Derrida 1978, pp.278-93; Derrida 1974, pp.244-45. Foucault, com certeza, encontrou o outro dentro da sociedade européia, em seu estudo sobre a loucura.16 Para uma análise elegante deste assunto nos escritos de um novelista americano branco, ver Morrison 1972.

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— a idade da pedra, ou a era do bronze, ou os povos da idade do ferro, vestígios do passado que não existiam no mesmo mundo onde os historiadores viviam e, portanto, não sujeitos às forças políticas e econômicas (Fabian 1983).

Uma vez que os historiadores da África afastaram as culturas exóticas de seus “jardins culturais”, colocando-as em seu próprio mundo, este mundo deixou de existir da mesma forma. Tratar os africanos e mulheres, camponeses e escravos como atores históricos colocou um desafio fundamental para a compreensão histórica de um modo geral. Desafiou a noção de que a história contada de um ponto de vista restrito e de uma população menos representativa tivesse um menor valor e universalidade.

A mudança que isso representa para a história da África é fundamental. A experiência histórica dos africanos em seu próprio continente deve ser entendida no sentido cultural especifico e nos termos de suas linguagens e motivações. O que significa, por exemplo, quando um jovem homem dependente consegue uma “esposa” dentro da associação de cura Lemba? Ela não era a esposa com quem ele esperava construir um lar, cultivar junto e procriar; ela era a “esposa” com quem ele estabeleceu uma ligação social somente no contexto de cura. Quais seriam as alternativas de uma mulher igbo sem filhos quando ela busca o oráculo de Aro para saber as causas de sua infertilidade? Quando os homens nuer recorrem ao sacrifício de sangue? O que eles buscam ao realizar este sacrifício? Estas são questões que só podem ser respondidas por um historiador que penetrou profundamente nas raízes de formas locais da experiência histórica.

Tendo feito isto, o historiador não pode assumir que os africanos, tendo ações culturalmente fundamentadas, tenham apenas o poder de formatar eventos locais ou tomar parte em um processo local. Os casamentos Lemba ajudaram a estabelecer redes de relacionamento que habilitavam o homem a participar no comércio ultramarino de escravo, de marfim, de cobre e outros bens. Na Ibolândia, o oráculo Aro determinava, em muitos casos, o local para

onde o transgressor deveria ser mandado no comércio atlântico de escravos. Os homens nuers viviam sob as regras coloniais e eles precisavam ajustar suas atividades à economia colonial de modo a acumular riquezas que tornassem possível o sacrifico. Fazendo isto eles mudavam a configuração do controle colonial.

O iniciado Lemba, a mulher ibo e o homem nuer ajudaram a modelar os processos históricos de grande alcance. O problema para os historiadores, então, é como capturar todos estes diferentes níveis ao mesmo tempo, como fazer justiça ao local, ao regional e ao internacional em uma única descrição ou em uma única estrutura de análise.17

É melhor que se faça uma breve exploração da história do lugar dos africanos no comércio atlântico de escravos para entender alguns dos problemas da interpretação em múltiplos níveis. O comércio de escravos foi um conjunto de ações articuladas umas às outras em grande escala, alcançando diferentes continentes. Os escravos individualmente podem ter sido arrancados de suas casas no interior da Nigéria, ou de Angola, ou de outra parte do continente africano. Se imaginarmos um irmão e uma irmã raptados juntos, talvez o irmão se encontre caminhando em direção à costa para ser embarcado em um navio, enquanto sua irmã parou ao longo do caminho, para servir arduamente como trabalhadora compulsória perto de sua casa. Uma vez tendo atravessado o oceano, o irmão poderia forjar laços com os outros escravos, talvez da Costa do Ouro ou da Costa da Guiné. Ele provavelmente poderia trabalhar em uma plantação de açúcar pertencente a um capitalista do norte da Inglaterra. Definido como um sistema espacial, nos termos de Braudel, um sistema escravista se estendeu para o Caribe, as Américas, a Europa e também para o Oceano Índico.

Dentro de um sistema imaginado, entendido deste modo, houve muitas outras fronteiras: as locais e as fronteiras dos subsistemas. Cada área local tinha seus próprios padrões de costumes e língua, suas formas características de integração social. Pessoas falando umas com as outras nas línguas locais, tornando-se noivas e noivos Lemba,

17 Para dois dos muitos exemplos possíveis de bons trabalhos históricos que visam dar igual peso, tanto para o nível local, quanto para o regional, ver Harms 1981 e Ewald 1990.

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ou consultando o oráculo Aro. Não obstante, eles também participaram de um metasistema coordenado, de significados e ações atingindo todos os caminhos do interior da África até as Américas e a Europa.

Os historiadores têm trabalhado longamente para situar os diversos e heterogêneos elementos do comércio escravo dentro de uma narrativa clara do desdobramento histórico, movendo-se em uma única direção para formar o mundo tal como o conhecemos. Capitalism And Slavery, publicado por Eric Willians em 1944, abriu um debate contínuo sobre as relações entre a escravidão e a ascensão do capitalismo. Segundo Willians, a escravidão no Caribe contribuiu para a formação do capital na Grã-Bretanha. A industrialização da Europa, em sua visão, foi construída sobre as costas dos escravos nas Américas. Os debates sobre esses assuntos continuam, mas os historiadores das últimas gerações têm também estendido suas discussões sobre as inter-relações econômicas para além do foco original, na Europa e nas Américas; eles estão se voltando para a África atlântica.

Os historiadores se perguntam por que os africanos foram escravizados e não os povos de outros continentes. Patrick Manning (1990) e Stefano Fenoaltea tentam responder a esta questão ao perguntar se o trabalho africano era menos produtivo na África do que era na América. Poderia o tráfico ter acontecido como uma forma de aumentar a produtividade do trabalho? Este foi o motivo para, na maioria das vezes, o baixo preço dos escravos em comparação com o montante que poderiam produzir nas Américas? Claude Meillassoux (1986) argumenta que os escravos eram baratos não por causa de sua improdutividade na África, mas porque eles eram roubados. Os que utilizavam o trabalho escravo não precisavam pagar o custo da alimentação da criança escrava ou cuidar das mães escravas; eles precisavam apenas pagar o custo de manutenção dos exércitos e de outras instituições políticas que tornavam tal roubo possível. Joseph Miller (1988) analisa a lógica econômica do tráfico escravo em cada um de seus estágios, começando com os usos do capital europeu na transformação interna das sociedades africanas para que elas pudessem fornecer escravos, seguindo, a partir daí, os fluxos dos capitais na travessia do Atlântico. Nossa base de conhecimento sobre a economia do

comércio escravo é qualitativamente melhor do que era há vinte cinco anos, e este conhecimento se estende às sociedades africanas.

Nossa compreensão sobre as conseqüências demográficas do tráfico escravo cresceu ao mesmo tempo. Desde que Philip Curtin abriu o campo de pesquisa com The Atlantic Slave Trade: A Census (1969), nosso conhecimento sobre os lugares de origem e de destino dos escravos tem ser tornado mais substancial. (Ver Lovejoy 1983 e Inikori 1982). Ralph Austen (1979) seguiu com um importante estudo sobre o comércio trans-saariano. Os historiadores passaram a estudar os maiores efeitos do comércio escravo sobre as tendências demográficas de longo prazo na África (Manning 1990). Estes foram influenciados pelas diferenciações de gênero no uso dos escravos — por exemplo, o tráfico atlântico comercializou mais homens que mulheres, e os proprietários de escravos na África empregavam mais mulheres que homens (Robertson e Klein 1983).

A história do comércio escravo fez surgir questões de especificidade cultural e processo histórico de forma extrema. Um homem que era vendido por comerciantes na África central e que, enfim, atravessasse o Atlântico para trabalhar em uma plantation na Jamaica era claramente um escravo. Mas é incerto que seu proprietário original na África conhecesse a palavra inglesa “slave” e é incerto também que o termo local que definia a forma de dependência da pessoa que estava sob seu domínio, equivalesse precisamente ao termo escravo. As maiores associações da escravidão na Inglaterra são com as plantations escravas no sul dos Estados Unidos, no Caribe e na América Latina. Os historiadores continuam a usar esta palavra para as estruturas dentro da África que parecem ser muito diferentes das plantations escravas.

Em Shambaai, nas montanhas ao norte da Tanzânia onde eu fiz pesquisas etnográficas e coletei narrativas orais, homens pobres que não podiam alimentar seus filhos durante a fome recorriam, nos tempos pré-coloniais, aos estoques de comida do chefe. O homem que não podia alimentar sua filha podia deixá-la na corte do chefe, onde ela comia e onde ela trabalhava. No final do período de fome o pai podia trazer cabras para livrar sua filha do controle do chefe e ele podia levá-la

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para casa. A garota, enquanto estava na corte, podia ser chamada de mtung’wa, a mesma palavra utilizada para “escravo”, e ela também era chamada de mndee do chefe — a “garota do chefe”, uma designação ambígua que em alguns casos pode ser traduzida como “escrava”. Um americano, provavelmente, não a veria como uma escrava, mas caso seu pai não retornasse para reclamar sua filha, ela continuaria na servidão (Feierman 1990, pp. 53.64).

No final dos anos 1960, eu entrevistei uma mulher cuja mãe, nascida em uma parte da África oriental distante de Shambaai, tinha sido uma “escrava” (mtung’wa) na corte do chefe. Logo após a conquista germânica, o chefe a vendeu para um homem comum [commoner] de quem ela se tornou esposa. Meus informantes descreveram sua mãe como uma mulher infeliz que tinha sido abusada por sua co-esposa e por seu marido uma vez que ela não tinha uma família para defender seus direitos. A outra mulher da casa, a co-esposa, tinha um grau maior de proteção porque seu marido pagou um dote [bridewealth] para os parentes homens da família dela. Por este motivo a mulher podia recorrer a estes parentes quando necessitasse.

No período em que tudo isto ocorreu, os árabes proprietários de plantações na costa da Tanzânia e nas Ilhas de Zanzibar e Pemba não muito longe da costa, empregavam o trabalho escravo na plantação de cravos, açúcar e grãos. Alguns anos depois, a mulher sem família, mãe de minha informante, poderia ter sido vendida como uma escrava de plantação, se o chefe assim tivesse escolhido. Em vez disso, ela se tornou uma esposa sem plenos direitos.

Este caso ilustra que a escravidão era apenas uma entre outras condições relatadas. A mulher em questão era uma esposa, não uma escrava, mas uma esposa sem plenos direitos. Ela facilmente poderia ter se tornado uma escrava de plantação, e também poderia ter se tornado uma mulher com plenos direitos se ela tivesse se casado em casa e seus irmãos ou pai tivessem recebido um dote [bridewealth] como pagamento. Um observador social onisciente estaria apto para organizar estas diferentes condições dentro da gama mais geral de condições que uma mulher poderia ter, como um mapa social. Mas se tais condições são vistas do

ponto de vista da mulher daquele período, para quem as ditas condições eram possibilidades de escolha de vida, é claro que eles representariam um desafio: como negociar de modo a se tornar uma mulher sem direitos ao invés de uma escrava, ou mais ainda, se tornar uma mulher com plenos direitos.

A mulher daquele período entendia que as chances de sua vida eram definidas por uma constelação de relacionamentos de dependência. Se suas negociações não fossem bem sucedidas e ela fosse enviada para o comércio de escravos intercontinental, ela experimentaria uma drástica simplificação de suas possibilidades. E então apenas a condição de escrava seria relevante. Os historiadores acham difícil caracterizar a condição da mulher no processo de se tornar escravizada. Se eles a tratam como escrava, pode parecer que estão negando a importância das formas locais básicas de dependência; se eles a tratam a partir de sua condição em termos locais, eles estão negando a importância do processo intercontinental. Uma explicação adequada deve, ao meu ver, apresentar as duas visões.

Os historiadores da África têm tentado fazer uma clara escolha para um lado ou outro, e ao fazerem isto têm distorcido os processos sociais dentro da África. Este assunto veio à tona pela primeira vez nos anos de 1960 em um debate entre Walter Rodney (1966), o grande estudioso guineense, e John Fage (1969). Fage argumentou que a escravidão já existia muito antes do comércio escravo, que meramente mandou os escravos para mais longe de casa do que eles poderiam ter ido, mas isto não mudou seu status. Rodney, por sua vez, dizia que a instituição escravista passou a existir a partir do tráfico. Hoje, muitos historiadores dizem que os africanos praticavam uma escravidão de parentesco [kinship slavery] em períodos anteriores, e mudaram para as formas comercializadas de escravidão com a vinda do tráfico.

Suzanne Miers e Igor Kopytoff, em importante tentativa de criar uma interpretação cultural específica das formas de escravidão no continente africano (1977), compararam a “escravo” (sempre em aspas simples em seu ensaio) a uma pessoa que passou da fase liminar num rito de passagem. Em tal rito o iniciado é separado de uma condição social

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no primeiro estágio, então passa ao estágio de liminaridade [liminality] ou de transição, e finalmente é reintegrado na sociedade em uma nova condição social. Miers e Kopytoff desenharam um panorama social ocupado por numerosas linhagens. Às vezes os indivíduos se desprendem de todas as linhagens, como prisioneiros de guerra, ou no caso de uma criança para quem não há comida o bastante em sua linhagem, e cujos direitos são transferidos para outra linhagem. Estes são os “escravos”, “estranhos em um novo grupo” (1977, p.15). Miers e Kopytoff não apresentam a “escravidão” como uma condição permanente, mas uma fase entre o estágio final de sua reincorporação total como um ser socialmente pleno em sua nova linhagem.

De acordo com esta interpretação é um erro ver os “escravos” como bens ou propriedade, exceto no extremo final de um continnum de formas sociais. Nem todos os “escravos” na África podiam ser vendidos. “Escravidão”, segundo Miers e Kopytoff, precisa ser compreendida como um exemplo de um sistema mais vasto no qual as linhagens transferem os direitos das pessoas. Um exemplo óbvio disso foi o do dote [bridewealth], o pagamento feito pela linhagem do marido para adquirir direitos sobre o trabalho da mulher e sua capacidade de gerar filhos.

Kopytoff retorna a este assunto em um ensaio sobre o fim da escravidão (1988) para argumentar que quando a escravidão terminou, depois da conquista colonial, os escravos não experimentaram a alforria como “liberdade”. Desde que a escravidão era uma condição dependente em um continuum de condições de subordinação, cada um dos antigos escravos estava interessado em alcançar uma condição diferente e melhor de subordinação — não a “liberdade”.

Numerosos historiadores africanos submeteram o argumento de Miers e Kopytoffo a uma intensa crítica. A maior reclamação era a de que se baseava numa definição espacial que igualava as fronteiras das instituições históricas às das fronteiras dos continentes: a “escravidão” africana existiu na África e a escravidão americana nas Américas. Isto não era assim. As plantations escravistas de modelo americano

foram transportadas para a África nos últimos dias do comércio escravo. Frederick Cooper (1977) escreveu um excelente livro sobre a plantation escravista na África oriental, em um estabelecimento onde os senhores dos escravos eram árabes que utilizavam as leis islâmicas para regular as relações entre escravos e senhores.18 Paul Lovejoy (1979) também mostrou que as plantations escravistas passaram a fazer parte da cena africana, neste caso no norte da Nigéria, com os africanos sendo os proprietários dos escravos.

Para Lovejoy (1983), a escravidão de linhagem [kinship slavery] descrita por Miers e Koptoff era limitada não somente no espaço, mas também no tempo. Ela era uma forma inicial e crescentemente marginal de escravidão que veio a ser suplantada no interior da África pela escravidão da plantation. As instituições que apareciam centrais para Miers e Kopytoff eram insignificantes para Lovejoy. Apenas um tipo de escravidão era historicamente importante em seu ponto de vista, e esta era a escravidão no centro do sistema de produção, como no caso das plantations. Ele deu grande ênfase no limitado número de lugares e tempos na história africana: no Sudão ocidental que tinha sua produção baseada no trabalho escravo, em uma época antiga, no Sahel no século XIX, quando a população local estava buscando usos para os escravos que anteriormente eram vendidos no comércio atlântico, e em um limitado número de outros lugares.

Meillassoux, em Anthropologie De L’Esclavage (1986), se junta ao ataque à escravidão de parentesco [kinship slavery], mas a partir de outros fundamentos. Ele argumenta que a escravidão não pode ser interpretada como uma extensão do parentesco ou um status de descendência, como Miers e Kipytoffy gostariam que fosse, porque a escravidão está fora das relações de parentesco; de fato ela é “anti-parentesco”. Os maiores estudiosos da escravidão enfatizam a condição do escravo como a de um estranho [outsider], sem direitos públicos como pessoa. O escravo deve ser representado no mundo público pelo seu senhor. O escravo não pode negociar uma posição em um amplo sistema de parentesco em seu próprio direito. Orlando Patterson (1982) descreveu esta condição

18 Uma década depois, Abdul Sheriff (1987) colocou estas plantations mais firmemente na história da economia da região.

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como “alienação natal”; Moses Finley (1968) a viu como central para a definição da condição do escravo.

Esta discussão recorda o importante, porém não publicado trabalho de Franz Steiner, como relatado por Paul Bohannan. Segundo Bohannan,

Pode-se dizer que um relacionamento servil existe quando uma pessoa tem direitos legais sobre uma outra, se estes direitos são mantidos com a exclusão da outra pessoa e não derivam de qualquer obrigação contratual ou de parentesco. Os direitos do senhor sobre o escravo são direitos legais, não derivados de parentesco ou de contrato, que excluem todas as outras pessoas de direitos similares (1963, p.179).

Bohannan aceita a idéia de que a escravidão é apenas um entre muitos modos através dos quais uma pessoa pode ter seus direitos tomados por uma outra, mas mostra como este modo é diferente dos outros, em três fundamentos. Primeiro, apenas um único indivíduo, o senhor, detém direitos sobre o escravo. Dentro do domínio do parentesco é possível que duas pessoas possam dividir os direitos sobre um único indivíduo, como no caso de uma mulher casada em muitas sociedades africanas sujeita a ter os direitos tomados por seu esposo ou por seu pai e irmãos. No caso do escravo, apenas o mestre detém direitos sobre ele. Segundo, a pessoa que detém os direitos não pode fazê-lo sob uma base contratual. Quando uma equipe esportiva americana detém os direitos sobre um jogador (direitos que permitem sua venda), isto só pode ser feito sobre bases contratuais. Finalmente, os direitos sobre um escravo não derivam de qualquer forma de obrigações de parentesco.

Meillassoux vai mais longe e argumenta que é melhor não definir a escravidão em termos de direitos legais sobre uma pessoa; que o mais importante é o contexto institucional da escravidão em meio ao mercado de escravos e às guerras de captura. Escravidão, mercado e violência estavam necessariamente conectados um ao outro em um único vínculo. Isto conduz a um segundo sentido, a compreensão da escravidão como “anti-parentesco”: a escravidão não estava conectada com reprodução. O trabalho de escravo era barato nas plantações americanas (ou nas africanas) porque os

proprietários não pagavam os custos da criação de crianças. O trabalho escravo era suprido e não reproduzido; ele era adquirido, em última instância, por atos de violência, por furto. O roubo baseado em um sistema espacial incluía as sociedades que usavam escravos [slave-using societies], a organização do mercado, e as sociedades das quais os escravos eram roubados.

Uma vez que a produção barata e violenta de força de trabalho era utilizada para tudo, o processo de reintegração dos escravos nas relações de parentesco (um processo que está no centro da análise de Miers e Kopytoff) não era relevante. Ao dizer isto, Meillassoux subestima a importância das formas de dependência escrava [slavelike forms of dependency]. Ele faz isso porque focaliza exclusivamente na violenta apropriação; ele não explora a possibilidade de que uma sutil negociação pode levar à escravização. Em sua visão, as zonas de origem dos escravos não os utilizavam na produção, e, portanto, não tinham escravos para oferecer para venda, exceto os cativos obtidos por salteadores que atacavam de forma aleatória. Meillassoux não considera a possibilidade de que as escolhas dos escravos dentro de sociedades produtoras eram feitas através de um complexo processo de negociação, no qual, os fatores de parentesco tinham um papel.

Algumas das mais importantes zonas de origem dos escravos estão fora do alcance das análises de Meillassoux porque elas não utilizavam o trabalho escravo de um modo sistemático. A Ibolândia, por exemplo, era uma grande fonte de escravos para as Américas, e ainda sim o trabalho escravo era insignificante em muitas partes desta região; formas anteriores de organização permaneceram (Northrup 1981). Regiões produtoras de escravos não necessariamente precisavam basear suas economias em trabalho escravo. Estas regiões eram capazes de produzir escravos para o mercando internacional através um processo socialmente negociado, embora a maior parte dos dependentes nas sociedades locais sustentem condições sociais definidas em termo de parentesco e descendência.

Para ver porque isto foi assim, gostaria de olhar brevemente para a vida de uma única “escrava”, contada a nós em suas próprias palavras e apresentada aos historiadores por

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Márcia Wright (1975, 1884). Esta é Narwimba, uma mulher que viveu na região entre o Lago Tanganica e o Lago Niasa, perto da fronteira do que é hoje a Tanzânia e a Zâmbia. O período da história de Narwimba, década de 80 e o começo da década de 90 do século XIX, foi um tempo de grande agitação na região, um tempo no qual escravos eram capturados e utilizados localmente, e no qual alguns eram enviados para plantações da costa leste africana.

Este foi um período de grande dificuldade para Narwimba, começando com a morte de seu esposo em 1880, aproximadamente. Neste momento de sua vida Narwimba foi feita cativa por soldados de um chefe estrangeiro sendo oferecida à venda para mercadores de escravos. Ela escapou, mas viveu tempo bastante para ver sua neta ser feita cativa e depois libertada em duas ocasiões diferentes. Narwimba viveu durante a transição para o governo colonial e, nos últimos tempos, passou a viver com seu filho que tinha sido convertido ao Cristianismo pelos missionários.

Este período foi de intenso perigo e luta para Narwimba, grande parte dos quais promovidos pelo violento roubo de pessoas destinadas ao comércio escravo. Todas as estratégias de Narwimba mostram o quão importante ela pensava ser a sua marginalização dos termos de parentesco, e buscar uma ligação com um protetor masculino, preferencialmente em um relacionamento estabelecido por um casamento com dote [bridewealth]. Podemos ver isso em diversos momentos importantes. Depois da morte do esposo de Narwimba, um dos parentes de seu marido a visitou e decidiu se casar com ela. Narwimba, em seu relato disse: “e eu, de minha parte, implorei a ele para me tomar com sua esposa, então assim nós poderíamos estar protegidas (Wright 1984, p.2). Sem a proteção dele, ela ficaria muito mais vulnerável. A filha de Narwimba formou uma residência com um homem que não pagou o dote [bridewealth]. Talvez, ela tenha achado que sua ligação irregular fosse necessária devido a debilidade da posição social de sua mãe. De qualquer modo, a filha nascida desta união pertencia a casa do chefe. Seu pai não tinha direitos sobre ela, uma vez que, não pagou o dote [bridewealth] para a sua mãe. O resultado disso foi que a neta de Narwimba, Musamarire, era um membro vulnerável da

casa do chefe. Em uma ocasião, quando a diplomacia requisitou que o chefe desse uma pessoa para manter a paz, ele se propôs a dar Musamarire. Ao invés disso, Narwimba fugiu com ela. Em outra ocasião a neta foi capturada novamente, em uma disputa sobre uma dívida.

Nota-se aqui a mudança no ponto de vista. Miers e Kopytoff definem as linhagens como agentes de reintegração das pessoas marginais. No meu entender, as linhagens não agem, são as pessoas que atuam. Nos anos que se passaram desde o livro de Miers e Kopytoff surgiram críticas radicais sobre o conceito de linhagem como agente (Guyer 1981; Kuper 1982). Se os intelectuais tratavam a linhagem como uma unidade funcional, eles se esquivavam das diferenças entre direitos e obrigações, privilégios e deveres dos diferentes membros da linhagem. Ações que servem ao interesse do homem mais velho em uma linhagem podem prejudicar os interesses de uma mulher, ou de um jovem homem. Direitos de propriedade mantidos por uma linhagem como um grupo não, necessariamente, servem homens e mulheres, ou velhas e jovens mulheres, igualmente. No presente caso, os interesses, particularmente de base masculina, podem, hipoteticamente, ter servido para deixar a neta de Narwimba ir. A avó teve que agir em um ambiente difícil para concretizar os eventos. Seus principais objetivos eram encontrar uma proteção masculina e resgatar aqueles a quem amava da escravidão. Ela não se guiou pela preocupação da integridade da linhagem, mas pela necessidade de encontrar uma posição segura como mulher ou (mais a frente na história) como a mãe de uma filha adulta.

No tempo de Narwimba, a escravização por meio de um roubo violento foi se tornado cada vez mais freqüente. Neste ponto Meillassoux está correto. E se tornava freqüente dentro de um contexto onde havia espaço de manobra para Narwimba. Ela pôde se proteger por um longo tempo a partir da negociação de um espaço dentro de um sistema de parentesco de dominação masculina.

A escravidão pode não ter sido compatível com o parentesco, mas ela existiu dentro de um contexto no qual as alternativas à escravização eram alternativas de

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parentesco, onde o caráter da captura e comercialização do escravo era determinado pelas relações das redes de parentesco. O caráter do relacionamento entre senhor e escravo, neste caso, foi definido pela existência de outras formas de dependência concomitantes a escravidão. A existência de parentescos e gêneros alternativos à escravidão moldou a luta entre Narwimba e os potenciais senhores de escravo que poderiam tomar o controle dela ou de sua neta.19

O caso de Narwimba mostra, além disso, que na que na medida em que as tradições locais de dependência tiveram efeito sobre a plantation escrava africana, a introdução da escravidão teve um profundo impacto sobre outras formas de dependência. Narwimba estava claramente determinada a aceitar a possibilidade da extrema e relativamente brutal subordinação no casamento porque este, mesmo sob estas condições, era uma proteção contra a escravidão. A capacidade de uma mulher de resistir a um marido violento era, sem dúvida, superior na geração da mãe de Narwimba, antes do comércio escravo representar um extremo perigo. Para compreender o comércio escravo neste contexto particular, precisamos compreender as tradições locais de dependência, o lugar destas na configuração das dinâmicas internas da escravidão, e então o lugar da escravidão na configuração dos padrões locais de parentesco.

Nos anos de 1950, décadas depois da morte de Narwimba, debates em Shambaai (não muito longe da costa leste africana) exploraram o significado da escravidão e da liberdade. Julius Nyerere compareceu a uma reunião local para requerer que à Tanganica fosse dado Uhuru — a Liberdade. Esta é uma palavra que sempre aparece nos textos históricos em swahili das escolas coloniais. Os livros escolares ensinavam que os africanos tinham praticado a escravidão e que o governo colonial trouxe o uhuru. Nyerere lembrava aos povos locais esta

associação para argumentar que o governo colonial era uma nova forma de escravidão, e que o uhuru não foi em nenhum momento algo que pudesse ser dado ao povo pelos seus governantes. Que teria que ser conquistado por eles mesmos. Os camponeses que escutaram isto se lembraram da “escravidão” nos termos da linhagem, como a condição de pessoas marginais (como Narwimba) sujeitas ao controle arbitrário. Os camponeses locais, homens e mulheres, começaram a argumentar que a “escravidão” ainda sobrevivia não somente no controle exercido pelos britânicos sobre os africanos, como Nyerere tinha dito, mas também no controle exercido pelos chefes sobre seus súditos, pelos homens idosos sobre os jovens homens, e pelos homens sobre as mulheres. Eles pediam que uhuru, agora entendido como “manumissão”, fosse empregado para subverter todas as formas centrais de hierarquia social (Feierman 1990, pp.212-14; e 219-20).

Ao descrever a luta de Narwimba como tendo sido impulsionada pelo comércio internacional de escravos, mas enraizada nas formas sociais locais, não se rompe inteiramente com a estrutura da narrativa européia. O problema, claro, é que neste relato as forças centrais que transformaram a vida de Narwimba têm origem na cena internacional e na história do capitalismo. Isto não é como os contemporâneos de Narwimba na África central enxergavam as coisas. Eles poderiam ter posto os eventos da vida dela dentro de um contexto de narrativas de grupos lingüísticos individuais, ou narrativas de distribuição geral entre regiões dos povos falantes de bantu. Muito provavelmente estas narrativas não teriam atribuído um papel importante ao comércio internacional e a uma economia centrada na Europa.

Quando criança, Narwimba fugiu com sua família dos ataques dos soldados de Ngoni e encontrou refúgio com o Kyungu (o chefe

19 Glassman (1991, 1988) fez uma argumentação similar sobre o setor de plantation na costa lesta africana — a região para a qual Narwimba teria sido levada se ela tivesse sido vendida. Ele mostra que não há uma única categoria de “escravo”, mas múltiplos status dependentes, incluindo escravos artesãos urbanos e escravos de caravanas de comércio, com diferentes níveis de capacidade de se comprometer com a reprodução social. O conflito entre escravos e mestres envolvia manipulação de possibilidades alternativas. Diferente da escravidão caribenha, na qual os escravos não compartilhavam uma experiência comum com seus senhores, as formas africanas de escravidão originaram-se fora dos primeiros sistemas de dependência pessoal. Senhores que desejavam aumentar a produção econômica utilizando o trabalho escravo tentavam reduzir as oportunidades escravas para reprodução social; os escravos por sua vez resistiam através da manipulação de velhas ideologias na tentativa de obter a capacidade para a reprodução social. A forma do atual sistema escravo emerge deste conflito.

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principal) da comunidade Ngonde. Foi o Kyungu que determinou que um parente de seu esposo morto se casasse com ela. As narrativas ngonde das terras de Kyungu (ou as ngoni de outras regiões) oferecem aos historiadores alternativas para as narrativas eurocêntricas, alternativas próximas da vida e da linguagem de Narwimba.

As histórias ngonde permaneceram verdadeiras em seus próprios princípios na construção da história de Narwimba. Suas histórias políticas foram elaboradas segundo a compreensão de que a integridade do Kyungu (do chefe) e a saúde social moldam as condições básicas de harmonia e de prosperidade das terras que lhe pertence. Havia uma associação entre a saúde física do Kyungu e o bem-estar de seus domínios. Se uma gota de seu sangue caísse no chão era sinal de que toda sua terra poderia sofrer com fome e doenças, a menos que ele fosse morto. Havia também uma associação entre o incontestado domínio sexual do Kyungu dentro de sua casa e o vigor de seu domínio político. De acordo com algumas tradições, nas primeiras gerações, a maioria dos filhos do Kyungu foram mortos porque o povo ngonde “temia que, se o Kyungu tivesse muitos filhos [vivos], eles poderiam seduzir as esposas de seu pai trazendo doença para Kyungu e seu país” (Wilson 1939, p.13). Na comunidade ngonde, assim como em outras partes daquela região, o adultério praticado com a mulher do chefe era um ato de guerra ou de alta traição.20 Entre os nobres, também, encontra-se essa expressão na prática do casamento. Um chefe pagava e recebia dotes [bridewealth] mais altos que um indivíduo comum [commoner].

Uma pessoa local, tentando dar sentido a vida de Narwimba, pode bem ter entendido isto dentro do contexto do casamento como uma gama de formas que expressam os graus do domínio político. Narwimba e seus parentes mais próximos, por muito de suas vidas, teriam praticado formas de casamento, as quais eram muito humildes quando vistas dentro de uma ampla hierarquia. O tamanho do pagamento do dote [bridewealth] expressava a classe e a filha de Narwimba se casou completamente sem dote [bridewealth].

Muitos historiadores universitários poderiam focar contextos completamente diferentes da vida de Narwimba, como temos visto. Eles poderiam prestar significativa atenção à história do comércio. Deste ponto de vista, o evento mais significativo seria a abertura do comércio ngonde para o Oceano Índico. Esta mudança importante surgiu como resultado da reorientação do comércio de marfim de Kyungu para o leste (atravessando o Lago Malawi). A mudança para o leste estava associada com a mudança fundamental na constituição política, em torno do crescimento da autoridade secular. As próprias narrativas ngonde, contudo, não indicam um lugar central para a história do comércio como fazem os historiadores universitários. Godfrey Wilson, que estudou estas tradições orais nos anos da década de 1930, queixa-se que tais tradições só lhe permitiram vislumbrar as trocas comerciais importantes (Wilson 1939, p.18). Em vez disso, as tradições relatadas pelos homens mais velhos ngonde descreviam mudanças constitucionais com sendo ocasionadas por casamentos políticos cruciais (Wilson 1939, pp.12-18). De acordo com a própria narrativa do Kyungu, como contada a Wilson, a mudança em direção ao leste no comércio ocorreu quando um dos primeiros Kyungu “encontrou o lago atravessando-o até chegar em Mwela [a terra dos canoeiros Mwela] onde casou-se com uma mulher mapunda” (Wilson 1939, p.18).

Então, os historiadores ngonde, podem facilmente ter entendido a história de Narwimba como uma parte menor e humilde da ampla história na qual a classe e a mudança política são formadas por casamentos. Para estes historiadores o comércio atlântico de escravos teria surgido para ser distante, e, de fato, completamente irrelevante. Os demais historiadores que escolheram se debruçar sobre o comércio atlântico de escravo ou sobre o surgimento do capitalismo precisam explicar porque este contexto é privilegiado, porque a vida de Narwimba deve ser explicada deste modo e não em relação à história pessoal dos Kyungus e seus casamentos.

Os historiadores europeus ou americanos bem poderiam argumentar que a história ngonde é local e a história do capitalismo é global — que se queremos compreender os

20 Wilson descreve a classificação dos pagamentos dos dotes [bridewealth] (1939, p.44). Sobre o adultério com a mulher do chefe como um ato de guerra entre os bemba, ver Roberts 1973, pp.41-42, 107n., 122, 140, 143, 167, 237, 250 e 263.

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eventos segundo uma larga escala devemos associá-los a narrativa européia. De fato, os processos históricos africanos não são tão minuciosamente localizados. Algumas interelações entre gênero, descendência e classe estão amplamente distribuídas, e elas podem ser estudadas utilizando ferramentas histórico-lingüísticas e histórico-etnográficas comparativas. Alguns dos eventos da história da vida de Narwimba estavam encaixados nos movimentos históricos de enorme extensão. Bem no início da história, por exemplo, ocorreu o ataque ngoni que expropriou sua família. Os ngoni, naquele tempo, eram a nova presença na sociedade centro africana. Cada estado ngoni era organizado por um grupo dominante, os quais, se originaram no Sul da África, a mais de mil milhas de distância, nas guerras entorno da criação do reino Zulu. Os pequenos bandos de homens armados ngoni tomaram esposas e crianças como cativos para construir Estados de rápido desenvolvimento [snowball states]. Estes também, assim como os Kyungu, operavam dentro da política regional de casamentos e dependência que eles utilizavam para a construção de novas formas de Estado.21

O estudo da história africana nos leva para além das formas de representação histórica, nas quais, a energia que conduz a narrativa tem sua origem na Europa, enquanto a história africana (ou latino-americana) fornece uma cor local, estabelecendo um cenário pitoresco para o drama central. Não há outro modo de se entender a história de Narwimba sem que se penetre profundamente nas raízes da longa história do desenvolvimento das formas sociais na África. De que modo os povos estabeleciam relações de dependência? Como a autoridade era instituída? Quais eram os idiomas de poder nas histórias regionais da África? Tudo o que sabemos sobre o estudo da história nos diz que não podemos compreender algo tão complexo quanto os idiomas de poder sem estudar suas variações no espaço e suas

histórias no tempo. As narrativas africanas devem carregar seus pesos totais.

A busca por narrativas africanas revela que elas são múltiplas. E poderia ser um engano dar um lugar privilegiado para as narrativas reais ngoni, ou a narrativa de Kyungu, ou para aquelas dos nobres ngonde. Não existe razão para que elas tenham grande peso, ou sejam privilegiadas em detrimento dos relatos de Narwimba; não há motivos para que as palavras rituais de Kyungu tenham mais valor que as palavras rituais de uma súdita.

Cada uma das diversas narrativas africanas carrega as marcas de sua própria história, incluindo a história do relacionamento com a Europa. Em Ruanda, por exemplo, Joseph Rwabukumba e Aléxis Kagame, intelectuais ruandenses, tem escrito histórias do reino a partir de uma extensa coleção de tradições orais locais. Eles pegam variedades do conhecimento local que eram feitos para ser separados e secretos — ubwiiru como um código ritual dinástico, por exemplo — e fazem um registro escrito deles comparando-os com outras tradições para, desse modo, construir uma narrativa geral. Os historiadores orais ruandenses do século XIX tinham métodos para fazer comparações críticas das tradições, mas elas não eram as mesmas técnicas de Kagame. Tampouco as histórias orais teriam encontrado um espaço fácil, como fez Kagame, dentro de um quadro geral do conhecimento histórico criado entre os acadêmicos de fora de Ruanda.22 Kagame e Rwabukumba são historiadores ruandenses, utilizando materiais ruandenses, escrevendo dentro de um gênero criado na Europa.

A tarefa de encontrar narrativas puramente africanas não é fácil se voltarmos nossa atenção dos intelectuais universitários para os camponeses. Em Ruanda sob o controle dos belgas e Tanganica sob o controle inglês, as autoridades coloniais governaram através dos chefes africanos somente para construir sobre o que, nas palavras de um governador

21 Sobre os ngoni nesta região ver Barnes 1954; Fraser 1970; Elmslie 1970. Spear 1969 nos oferece um guia de fontes. 22 Kagane 1972, 1975, e 1981; Rwabukumba e Mudandagizi 1974. Ver também Vansina 1962; Coupez e Kamanzi 1962; e Vansina 1985, pp. 38 e 86.

Referências:

Para as referências consulte versão original do artigo.

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britânico, era a “lealdade e ‘livre respeito’” dos súditos pelos seus chefes. O efeito foi lançar os debates dos camponeses sobre a política colonial nos termos das antigas formas do discurso político. Quando as histórias orais das dinastias receberam as marcas da dominação colonial, historiadores orais dissidentes responderam com buscas fora das histórias anti-dinásticas em seu próprio passado (no caso de Tanganica) histórias de regicídios nos livros de história Inglesa (Feierman 1990; Newbury 1988).

Estamos então deixados com uma questão ampla, com narrativas históricas de origem africana que precisam receber o devido peso ao lado das narrativas européias. Temos visto, entretanto, que este não é um processo simples de inclusão de mais um conjunto de conhecimentos para nosso fundo, do aumento do equilíbrio no relato. Os historiadores precisam escutar as vozes africanas com o mesmo impulso com que buscam ouvir as vozes que foram silenciadas dentro da historia européia. Uma vez que é tão difícil satisfazer-se em ouvir uma única voz africana autoritária deixando outras silenciadas, ou ler textos africanos sem reconhecer marcas de poder, ou sem questionar a autoridade do historiador (africano, americano, europeu ou asiático) que presume para representar a história. Os historiadores não têm escolha senão dar espaço na história mundial para a história africana, mas ao ter feito isto, os historiadores descobriram que os seus problemas apenas começaram.

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