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FICHA TÉCNICA Título original: La Cattedrale della Paura Autores do texto: Pierdomenico Baccalario e Alessandro Gatti Ilustrações: Iacopo Bruno Copyright © 2013 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Italia Projeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., Italia Edição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A. International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8 — 20123 Milano, Italia [email protected] — www.atlantyca.com Tradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015 Tradução: Francesco Mai Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n. o 388 963/15 1. a edição, Lisboa, abril, 2015 Jacarandá é uma chancela da Brilho das Letras Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à Brilho das Letras Uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena Copyright © Atlantyca Dreamfarm s.r.l. de nomes, personagens e símbolos, e licença exclusiva de Atlantyca S.p.A. para a edição original. Traduções e/ou adap‑ tações são propriedade de Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sob qualquer forma ou meio, eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou armazenamento de in‑ formação, sem o consentimento prévio, por escrito, do proprietário. Para mais informações contactar Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milano — Italia. [email protected]

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FICHA TÉCNICA

Título original: La Cattedrale della PauraAutores do texto: Pierdomenico Baccalario e Alessandro GattiIlustrações: Iacopo BrunoCopyright © 2013 Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItaliaProjeto editorial de Atlantyca Dreamfarm s.r.l., ItaliaEdição original publicada por Edizioni Piemme S.p.A.International Rights © Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8 — 20123 Milano, [email protected] — www.atlantyca.comTradução © Brilho das Letras, Lisboa, 2015Tradução: Francesco MaiComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.o 388 963/151.a edição, Lisboa, abril, 2015

Jacarandá é uma chancela da Brilho das LetrasReservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àBrilho das LetrasUma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 Barcarena

Copyright © Atlantyca Dreamfarm s.r.l. de nomes, personagens e símbolos, e licença exclusiva de Atlantyca S.p.A. para a edição original. Traduções e/ou adap‑tações são propriedade de Atlantyca S.p.A. Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sob qualquer forma ou meio, eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou armazenamento de in‑formação, sem o consentimento prévio, por escrito, do proprietário. Para mais infor mações contactar Atlantyca S.p.A., Via Leopardi, 8, 20123 Milano — Italia. [email protected]

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C a p í t u l o 1

R E G R E S S O A C A S A

s guerras nunca se combatem no terreno.

Observam ‑se à distância, com o olhar in‑

dulgente e hipócrita dos mais velhos, que

confundem propositadamente os fumos ne‑

gros dos incêndios com os de uma fogueira acesa para

confortar as crianças. Ao atravessar o interior da França,

durante as longas etapas da nossa viagem de regresso

ao continente, protegidos pela doçura das colinas, das

mãos intrincadas das árvores, podíamos imaginar que

nada de tudo o que se ouvia pelos boatos das pessoas era

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verdadeiro. Mas não era assim, todos o sabíamos. E fugí‑

ramos para longe, o meu pai, a minha mãe e eu. Mas

também regressámos.

Os vendedores de jornais que não sabiam ler abanavam

com entusiasmo as páginas escuras dos jornais, e os nomes

que ouvia, Le Mans, Saint ‑Quentin, Lisaine, atravessavam

a minha cabeça como andorinhas em voo. Optara por

não saber nada da guerra, porque tinha a impressão de

que, se tivesse começado a informar ‑me acerca do que

estava realmente a acontecer à minha cidade, a Paris,

poderia enlouquecer pela tristeza. Ou, pior ainda, teria

pedido para regressarmos à casa que tínhamos deixado

há seis meses.

De facto, um inverno inteiro tinha passado desde

o dia em que apanháramos o barco para Dover e, de

seguida, prosseguido para Londres com aqueles formi‑

dáveis comboios, graças aos quais os ingleses são tão

conhecidos. A viagem de ida, de acordo com o meu pai,

deveria ter marcado o início da nossa nova vida. Uma

mudança radical, uma metafórica facada entre o que

aconteceu antes e o que aconteceria lá, em Inglaterra,

longe da guerra que estava a causar tantos problemas

e tumultos em Paris.

Nos meses que passámos para lá da Mancha, os fran‑

ceses tinham perdido tudo o que podiam perder: uma

guerra e grande parte da sua dignidade, sempre de acordo

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com o meu pai, que, apesar de sempre ter vivido em Paris,

não era francês. Era prussiano, como os que venceram

aquela guerra, e esta situação colocava ‑o numa posição

bizarra perante todos os que outrora foram amigos dele.

E à frente dos importantes contactos que, também ao

longo da guerra, não o impediram de trabalhar. O ferro,

era disso que se ocupava o meu pai. E apesar de nunca,

nem uma vez, me ter confessado que o ferro que trabalha‑

vam nas siderurgias Adler servia para fabricar espingardas

e bolas de canhão, houve uma altura em que pensei, de

um certo ponto de vista, que a guerra, afinal, não lhe

desagradava assim tanto.

«É uma altura efervescente, esta...», costumava dizer‑

‑me quando era mais pequena, despenteando ‑me os

cabelos com carinho. «Quiçá não nasça um mundo melhor

onde vivermos, filha querida.»

E sentia que, às vezes, ao pronunciar aquela palavra,

«filha», a mão dele tremia impercetivelmente. De facto,

demorei muitos anos, e passei por muitas aventuras, antes

de me lembrar daquele pormenor, cujo significado, agora

que escrevo, me é evidente.

«Filha querida», dizia o meu pai, antes de deflagrar a

guerra, baralhando as cartas em cima da mesa. Os ricos

ficaram pobres, os rebeldes tornaram ‑se homens do Es‑

tado. Soldados que desertaram e desertores que fingiram

ter lutado para defender a nossa bandeira.

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Bandeira que, descobri, fora atropelada pelos tumul‑

tuosos acontecimentos daqueles meses, assim como tantas

outras coisas.

— Pelos vistos, o estandarte francês já não exis‑

te... — comentou o meu pai, um dia, durante o nosso re‑

gresso. A bandeira era a da Revolução, vermelha, branca

e azul.

— Não? E que é feito dele? — perguntou a minha mãe,

aninhada no cantinho mais protegido do coche, com um

fio de voz.

O meu pai não lhe respondeu ou, se o fez, eu não che‑

guei a ouvir a resposta, ocupada a contemplar o campo

que corria suavemente para lá da janela.

Uma outra facada, pensava. Uma segunda travessia da

Mancha, desta vez em sentido contrário, de Dover para

Calais.

E Londres, a fumosa Londres, tinha desaparecido

numa nuvem cinzenta.

A nossa viagem de regresso não foi nem agradável nem

bonita. E não só pelas condições de saúde da minha mãe.

Lembrava ‑me de que, quando no outono ante rior saímos

de Paris, o senhor Nelson sofrera bastante com a traves‑

sia de barco. O nosso mordomo, mais tarde, tinha ‑me

revelado uma experiência deveras desagradável que pro‑

tagonizara muitos anos antes a bordo de um navio. Estava

embarcado como simples marinheiro quando foi acusado

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de ter assassinado uma passageira, atirando o corpo ao

mar. E quando a embarcação aportou em Londres, foi

injustamente detido pela Scotland Yard.

Agora, durante a viagem em sentido contrário, de Ingla‑

terra para França, Nelson tinha permanecido no convés

principal, cheirando o ar que vinha do continente. Enor‑

me, como uma carranca com a pele escura, ficara imóvel

olhando para sul, como se conseguisse detetar, no meio

daquela neblina salobre, o brilho do aço e as deflagrações

da pólvora.

O meu pai ficou o tempo todo na cabina, vigiando a

mãe, que, pálida como uma vela, desaparecia na cama, de

tão desgastada que já se encontrava. Os médicos ingleses,

e também um de Viena, que o meu pai chamara de pro‑

pósito, não tiveram dúvidas em diagnosticar ‑lhe a doença

de que padecia.

«Uma grave infeção nos pulmões. Culpa do fumo»,

anunciaram.

E foi tudo.

O meu pai olhara para mim com aquele rosto incrivel‑

mente cheio de compaixão que já lhe vira em outras oca‑

siões, e que no fundo era a verdadeira razão por que nunca

lhe perguntei, em toda a sua vida, se havia realmente

fabricado armas, além de carris e rodas de comboios.

«Se o disse também o médico austríaco, deve ser mes‑

mo assim, filha querida», sussurrara ‑me.

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Ele rezara até ao fim para que assim não fosse. Para que

a mãe sofresse de uma pneumonia ou de uma gripe espe‑

cialmente severa, mas nada mais do que isso. Consolara ‑a

dizendo ‑lhe que em breve viria a primavera e aquele hor‑

rível inverno londrino seria substituído pelas cerejeiras em

flor e pelo pólen das tílias de Hyde Park, mas de pouco

servira. As mãos dela iam ficando cada vez mais pálidas,

os ataques de tosse mais pronunciados e dolorosos e o

pulso, magro e fino, cada vez mais débil.

No nosso apartamento de Aldford Street pairava um

silêncio tentacular, quebrado apenas pelo tiquetaque do

relógio de pêndulo e pelo barulho dos talheres roçando

os pratos do serviço de Limoges, enquanto o meu pai e

eu jantávamos em silêncio, sem trocarmos uma palavra.

«Ainda vês aquele teu amigo?», perguntava ‑me quase

todas as noites, esquecendo ‑se das minhas respostas

sempre iguais. O meu amigo era Sherlock Holmes, e sim,

encontrava ‑me com ele com uma certa frequência, que

no entanto a repentina doença da minha mãe tinha feito

diminuir. «Continuam muito chegados?»

Sim, éramos muito próximos. Atrás daquela pergunta

do meu pai escondia ‑se outra muito mais complicada.

Ele estava a pensar em nos mudarmos de novo, deixando

Londres, e daquela maneira desajeitada, tão típica dos

homens adultos, tentava compreender até que ponto

aquela notícia me perturbaria.

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Deixar Londres, onde acabara de chegar. Não me teria

perturbado, se mo tivesse perguntado diretamente.

Mas nunca o fez.

Apenas me comunicou a data da nossa partida. Como

os pólens das tílias, mas sem esperarmos pela primavera.

Assim regressámos a França, mas não a Paris, onde não

havia uma única voz, na capital, que nos parecesse mini‑

mamente confortante acerca da situação. O pai acabava de

adquirir uma propriedade agrícola na vila de Evreux, cerca

de cem quilómetros a oeste de Paris, e era para este des‑

tino que estávamos a viajar de coche. E eram as colinas de

Evreux que observava através do vidro do coche. Tinha as

mãos cerradas sobre os joelhos, como se quisesse segurar

alguma coisa, um pensamento, uma ideia, uma melanco‑

lia, e esforçava ‑me para não olhar nem para o meu pai,

cujo rosto estava escuro como um céu tempestuoso, nem

para a minha mãe, pálida como um fantasma.

Numa das paragens daquela longa viagem de regresso,

perguntei a Horácio o que é que sabia acerca do mal que

afligia a minha mãe, mas o mordomo limitou ‑se a abanar

a cabeça. O meu pai costumava fumar um charuto em

casa, mas só depois do jantar e nem todas as noites. Como

podiam os pulmões da mãe sofrer tamanhas consequências?

— Não é como você pensa, menina Irene... — expli‑

cou ‑me o senhor Nelson. — A doença da sua mãe deve ‑se

ao ar da cidade. As chaminés, os miasmas das fábricas

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de que, hoje em dia, Londres está cheia. A sua mãe tem

os pulmões muito delicados e para ela aquele ar era

como veneno.

De facto era verdade: havia dias em que parecia que era

necessário abrir caminho pelo meio de uma nuvem de pó

suspensa, de uma fuligem densa e sufocante. E lembrava‑

‑me de quando repentinos aguaceiros cobriam as minhas

roupas de pingos parecidos com lágrimas escuras. Era desta

doença que padecia a minha mãe, somada a umas enormes

saudades de França e das boas maneiras dos franceses.

— É por isso que não nos mudamos para o campo

inglês, para Bath ou Oxford? — perguntei ao senhor

Nelson. Sabia que deveria ter dirigido a pergunta ao meu

pai, mas falar com ele tornara ‑se invulgarmente difícil.

O homem alegre e doce de há poucos meses, o homem

que me abraçava e fazia rodar à sua volta com elegância

e ternura, sem aviso prévio começara a esconder os seus

sentimentos atrás de uma cortina, como uma representa‑

ção teatral que termina de repente.

— O seu pai pensa que regressar a França poderá

ser vir à senhora mais do que muitos outros medica‑

mentos... — respondeu o senhor Nelson, enquanto nos

aprontávamos para recomeçar a viagem. — E eu penso

que possa ter razão.

Eu também era da mesma opinião.

Era o dia 6 de março de 1871.

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vivenda no campo que o meu pai tinha com‑

prado encontrava ‑se muito próxima do lugar

de Evreux, uma vila de casinhas baixas cer‑

radas à volta de uma majestosa catedral que

me intimidou desde que a entrevi do coche. Podia ver ‑se

desde muito longe e, com a sua torre dupla e os seus piná‑

culos pontiagudos como setas, destacava ‑se enormemente

no meio de todas as outras construções. A rosácea central,

que dava para o parque, parecia ‑me um vórtice pronto

a engolir ‑me. Baixei o olhar.

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— Eis as tuas catedrais... — sorriu o meu pai, aper‑

tando docemente a mão da minha mãe. — Sentes ‑te um

pouco mais em casa, agora, querida?

Ela anuiu e um sorriso débil iluminou ‑lhe o rosto. Uns

quantos corvos levantaram voo à nossa passagem e deixá‑

mos para trás a catedral e as lojas da aldeia até passarmos

uma ponte. A nossa nova casa mostrou ‑se logo a seguir,

do lado esquerdo, mas era ‑me impossível vê ‑la do lugar

onde estava sentada.

Era demasiado para mim.

— Irene! — repreendeu ‑me o meu pai, assim que me

viu colocar uma mão sobre o mecanismo da fechadura

da porta.

Não ouvi mais nenhum comentário. Escancarei a porta

e inclinei ‑me para fora, segurando ‑me à barra de latão do

tejadilho que se encontrava acima da janela. Icei ‑me com

um único movimento bem balanceado, como me tinha

ensinado a fazer Arsène Lupin. O outro dos meus amigos

com quem tinha uma ligação muito forte.

Desde o assento do cocheiro, um par de olhos atónitos

virou ‑se para mim, mas depois Horácio fez um sinal ao

cocheiro para que fingisse que tudo se encontrava na nor‑

malidade e que prosseguisse sem interrupções.

— Tenha cuidado com as malas, menina Irene... —

advertiu ‑me, contudo, com um tom de voz despreo‑

cupado. — Não sei se estão todas bem presas à carruagem.

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Não acreditei nas suas palavras, porque conhecia muitís‑

simo bem a meticulosidade do senhor Nelson, e sentei ‑me

sobre um dos baús da mãe, enquanto o pai, no interior do

coche, batia no teto com a sua bengala por baixo dos meus

pés, tentando convencer ‑me a regressar para junto deles,

onde uma menina como eu deveria estar. Parecia mesmo

que, tendo em conta a doença da mãe, ele tinha resolvido

desempenhar também o papel dela.

Soprei, aborrecida, e concentrei ‑me no que estava a ver.

A vivenda dispunha de um grande quintal que chegava

até à beira do rio, ostentando um denso caniçal. Entrevi

um pontão de madeira que se estendia sobre a super fície

das águas, mas de repente a carruagem mudou de dire‑

ção, apa nhando a rua principal, ladeada por duas fileiras

de olmos seculares. A casa era pequena como um biscuit. Tinha dois andares e uma terceira fila de janelas redon‑

das imediatamente abaixo do telhado. A cancela estava

aberta, descuidada, cheia de plantas trepadeiras, e os

muitos ramos secos no chão crepitavam sob os cascos

dos cavalos. Alguém tivera a delicadeza de abrir as per‑

sianas antes da nossa chegada, mas era evidente que, pelo

menos durante os últimos tempos, a casa tinha estado

vazia, talvez abandonada. Da chaminé saía uma minúscula

coluna de fumo que me confortou, já que o ar do campo

ainda era fresco, apesar do cheiro a primavera iminente.

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Virei ‑me para trás e suspirei de alívio quando des co‑

bri que a sombria catedral estava fora do alcance do meu

olhar. A estrada que percorrêramos até àquele momento

ladeava o quintal todo, prosseguindo para outros ter renos

e propriedades. Avançámos pelo estreito enredo de sombras

projetado pelos ramos das árvores e finalmente parámos à

porta da vivenda, onde nos espe ravam duas criadas e quatro

outros carregadores de liteira que cuidariam da minha mãe.

O pai desceu para dirigir as operações e desapareceu no

interior da casa, sem sequer se lembrar que acabara de me

dar um sermão. Eu estava muito impressionada pela

maneira como tentava fazer todo o possível por cuidar da

minha mãe da melhor das formas e como, evidentemente,

se sentia perdido sem ela.

Segui por alguns momentos as sombras das outras

pessoas no interior da casa através dos espessos vidros

das janelas. Depois vi Horácio passando ao meu lado,

carregado de bagagens.

— Que tal se eu te ajudar? — perguntei ‑lhe, aprovei‑

tando a ausência dos meus pais para tomar uma liberdade

impensável para uma menina.

Sem esperar pela resposta de Horácio, que já sabia

ser negativa, soltei as cordas que prendiam as ou tras

malas e, quando o mordomo regressou para um segundo

carregamento, descarreguei eu as bagagens do coche,

depositando ‑as nos seus braços.

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Atrás de mim, uma ligeira brisa abanava as canas à

beira do rio.

Não entrei em casa imediatamente.

Dei antes uma volta ao longo de toda a moradia, obser‑

vando ‑a com o olhar atento e desconfiado de quem já

mudou mais do que uma vez de casa e prefere localizar

algo que não funciona antes de se afeiçoar inutilmente

a um elemento harmonioso.

Ainda assim, e apesar da minha desconfiança, gostei

muitíssimo da casa e, quando tinha quase terminado

a minha voltinha, vi algo que dissipou todas as minhas

úl timas dúvidas.

Corri sobre a relva para a beira do rio, onde a pouca

distância da água oscilava um baloiço.

Não podia acreditar. Acariciei as cordas e o assento de

madeira, sentindo ‑me como num daqueles quadros bucó‑

licos que as senhoras da alta sociedade adoram pendurar

nas paredes das suas salas. Abanei a cabeça assim que tive

esta ideia e resolvi entregar ‑me ao prazer do movimento

de vaivém do baloiço.

Tinha de escrever rapidamente aos meus amigos.

Informá ‑los acerca do meu paradeiro e que tinham abso‑

lutamente de me dar notícias suas, talvez até virem cá ver...

Desatei a rir. O que é que haveria para verem? Um

baloiço? Um recanto pitoresco?

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Esperei que chegasse o pôr do Sol e que alguém se

lembrasse de mim.

Depois, assim que ouvi o meu nome, entrei em casa.

Ao jantar, parecia que o meu pai havia recuperado o

dom da palavra. Tinha um rosto avermelhado e transpi‑

rado e insistia para que eu também admitisse que aquela

casa resolveria todos os nossos problemas. Éramos só eu

e ele, como acontecia desde as últimas semanas, mas por

uma vez pareceu ‑me de novo o homem forte e firme que

conhecia, capaz de instilar em mim um sentimento de

segurança como mais ninguém neste mundo.

Respondi ‑lhe que aquela vivenda era muito bonita e

que apreciava imenso os esforços que devia ter feito para

encontrá ‑la.

— Tretas! — ripostou ele. — Consegui ‑a por poucos

francos. Com tudo o que se passa em Paris!

Senti um aperto no coração. Não sabia nada do que

se passava em Paris, exceto umas quantas informa‑

ções que me tinha escrito o meu amigo Lupin na sua

última carta, que datava de duas semanas antes daquele

jantar.

— É uma situação perigosa? — perguntei ‑lhe.

— Perigosa? Muito mais do que perigosa. É absurda.

Imagina, uma mão ‑cheia de canalhas decidindo por todas

as pessoas como bem lhes apraz! — exclamou o meu pai,

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com demasiada ênfase. — Algo está a acontecer. E se

alguém não recuperar depressa o controlo da situação,

será cada vez pior.

— Pior? Como? — perguntei ‑lhe.

— Pior! Ponto final, parágrafo. Afirma ‑o também o

Gautier: a cidade tornou ‑se um asilo para loucos! Neces‑

sitamos de novo de Napoleão, e necessitamos dele rapida‑

mente! — rebentou. Mas os seus olhos estavam a sorrir.

E assim decidi continuar, perante aquele meu pai de

novo tão entusiasmado a falar ‑me de política e, ainda que

não tenha compreendido realmente os assuntos discuti‑

dos, bastaram ‑me a sua recuperada boa disposição e a sua

animação para me sentir aliviada.

— Pai? — perguntei ‑lhe no fim do jantar, enquanto os

nossos pratos desapareciam sobre um tabuleiro de prata.

— Antes da nossa chegada, quem vivia nesta casa?

Ele limpou a boca com o guardanapo, pousou ‑o em

cima da mesa e fixou ‑o durante alguns segundos, como

se estivesse perante um antigo mapa do tesouro. Depois,

respondeu ‑me: — Força, vamos dar as boas ‑noites à mãe?

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