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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA
DEPARTAMENTO DE ADMINISTRAÇÃO E PLANEJAMENTO EM SAÚDE
FRANCES VALÉRIA COSTA E SILVA
A PRÁTICA DO ENFERMEIRO EM SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE EM TRANSFORMAÇÃO
Rio de Janeiro
1999
A PRÁTICA DO ENFERMEIRO EM SISTEMAS LOCAIS DE SAÚDE EM TRANSFORMAÇÃO
FRANCES VALÉRIA COSTA E SILVA
Escola Nacional de Saúde Pública / FIOCRUZ
Área de Concentração: Planejamento e Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde
Dissertação apresentada a Escola Nacional de Saúde Pública, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, para a obtenção do Título de Mestre em
Saúde Pública.
Orientadora: Profª. Dr.ª Silvia Gerschman
Rio de Janeiro, 1999
Geralda morreu hoje de manhã.
Fiquei triste porque já há muito sabíamos que isso aconteceria a qualquer
hora. Seu tratamento estava muito aquém do desejado e me sinto mais triste quando
lembro que talvez pudéssemos ter feito mais...Não sei.
Quando a conheci ela já estava surda em virtude do tratamento de sucessivas
(talvez desnecessárias) infecções.
Trocava meu nome, pois nunca consegui fazer com ela entendesse um nome
tão incomum para sua realidade.
Não sabia ler ou escrever.
Sabia de sua doença apenas o que seu sofrimento lhe dizia. Sofrimento
longo, mas que de modo geral não lhe tirava o sorriso.
Nos últimos dias entrava e saia de um leito hospitalar onde poucos lhe
olhavam como alguém que precisava de cuidados.
Em sua morte, me contaram que toda tecnologia disponível foi usada.
“Fizemos o que foi possível !”
Ainda acho que foi pouco, porque o possível podia ter sido feito antes...
Dedico esse trabalho a ela, com o desejo que um dia possamos construir um
sistema de saúde onde o possível seja feito no momento oportuno.
AGRADECIMENTOS
Esta página é de valor inestimável por permitir expressar a gratidão pelo apoio e
colaboração de tantos que, de variadas formas, tornaram possível que eu chegasse até
aqui: o apoio de minha mãe, o estimulo do Fidelis, a força e os toques da Giselle, a
colaboração da Neide, os longos discursos da Erô sobre a atuação dos enfermeiros no
serviço que ela gerencia.
Algumas pessoas tem participação mais ativa na construção do trabalho, a quem
dirijo um agradecimento especial
- A Profª. Silvia, através de valiosa orientação;
- Aos enfermeiros e gerentes de serviços do Município de Niterói, que cederam parte
de seu tempo com entrevistas indispensáveis para a realização desse trabalho;
- A Leila, conseguindo agendar entrevistas difíceis e obtendo documentos, sempre
necessários para ontem:
- As Professoras Maria Helena Machado e Maria Alícia Ugá, que se dispuseram a
participar da banca de avaliação do projeto deste trabalho, oferecendo contribuições
valiosas;
- Aos Professores Otávio Vargens, Maria Helena Machado, Aluísio Gomes e Ana
Luiza Vieira, que aceitaram o convite para compor a banca de avaliação deste
trabalho.
RESUMO
Esse trabalho é um estudo de caso que discute as transformações que vem se efetuando na prática do enfermeiro em um sistema local de saúde, a partir da implantação do SUS, no início da década de 90. É tomado como campo do estudo o Município de Niterói, que incorporou no processo de implantação do SUS uma experiência inovadora no campo da política local de saúde: o Projeto Médico de Família. A prática do enfermeiro é estudada em dois espaços distintos: o PMF, representando uma novo espaço de prática desse profissional e a rede de unidades básicas de saúde, representando o espaço tradicional de prática do enfermeiro. O estudo tem como marco teórico conceitual a história da enfermagem no Brasil, identificando as origens dos conflitos que se fazem presente na prática atual do enfermeiro e que se somam aos conflitos resultantes da adoção de uma determinada política de saúde. A discussão a respeito da prática desse profissional e das mudanças que nesta tem se efetuado são realizadas a partir de entrevistas realizadas junto a gerentes e enfermeiros dos serviços, destacando-se como questão central ao desenvolvimento dessa prática, o papel que o enfermeiro desempenha nos serviços de saúde.
Palavras chave: prática do enfermeiro, sistema local de saúde, política local de
saúde, experiências inovadoras.
ABSTRACT
This work is a study of case that discusses the transformations that have been accomplished in the nurse’s practice in a local system of health, since the implantation of SUS, at the beginning of the decade of 90. The municipality of Niterói is taken as a study field that incorporated to the SUS process of implantation a innovative experience in the field of the local policies of health : the family doctor project. The nurse’s practice is studied in two distinct spaces: the family doctor project, representing a new space of practice for that professional, and the net of basic units of health, representing the traditional space of nurse’s practice.The study has as conceptual – theoretical mark the history of nursing in Brasil, identifying itself to the origins of the conflicts that are present in current practice of the nurse and that are added to the resulting conflicts of the adoption of certain policies of health.The discussion concerning to that professional’s practice and the changes that have been made in it are accomplished from the interviews with managers and nurses on duty, standing out as central question to the development of that practice, the role that the nurse performs at the services of health.
KEY WORDS : The nurse practice; local system of health, local policies of health; innovative experiences
LISTA DE SIGLAS
ABEn - Associação Brasileira de enfermagem
AIS - Ações Integradas de saúde
CAPs – Caixas de Aposentadorias e Pensões
COFEM – Conselho Federal de Enfermagem
CONASP – Conselho Nacional de Administração e Saúde Previdenciária
COREM – Conselho Regional de Enfermagem
DNSP – Departamento Nacional de Saúde Pública
FMS – Fundação Municipal de Saúde
INAMPS – Instituto Nacional de Assistência da Previdência Social
PAIS – Programa de Ações Integradas de Saúde
PCL – Policlínica Comunitária de Saúde
PIASS – Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento
PMF – Projeto Médico de Família
PMN – Prefeitura Municipal de Niterói
SUCAM – Superintendência de Campanhas de Saúde Pública
SUDS – Sistemas Unificados e descentralizados de Saúde
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade Básica de Saúde
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF – Universidade Federal Fluminense
LISTA DE ANEXOS Anexo I Roteiro de Entrevista para resgate dos antecedentes histórico da
prática do enfermeiro em Niterói.
Anexo II Roteiro de Entrevista com Gerentes.
Anexo III Roteiro de Entrevista com Enfermeiros.
Anexo IV Mapa de Niterói e distribuição de rede de Serviços Públicos de Saúde.
Anexo V Lei Municipal n.º 905/90 e anexos – Aprova Planos de Cargos e Salários da Fundação Municipal de Saúde de Niterói.
Anexo VI Quadro demonstrativo do quantitativo de Servidores da Fundação Municipal de Saúde de Niterói.
Anexo VII Documento – O que é o Projeto Niterói.
Anexo VIII Documento – Municipalização: Relato de uma Experiência
Anexo IX Síntese do Documento “Estudo Técnico para a Implantação do SUDS – Projeto Niterói, 1988.
Anexo X Quadro demonstrativo dos Vencimentos dos Servidores da FMS / Niterói.
ÍNDICE
Página
LISTA DE SIGLAS ......................................................................................................07 LISTA DE ANEXOS.....................................................................................................08 INTRODUÇÃO............................................................................................................11 Capítulo
I. MARCO TEÓRICO CONCEITUAL.....................................................................16
1.1. A Prática da Enfermagem no Brasil...............................................16 1.2. Metodologia Utilizada no Desenvolvimento do Estudo................29
II. MUNICÍPIO DE NITERÓI E A POLÍTICA DE SAÚDE – UM POUCO DE SUA HISTÓRIA...............................................................................................34
2.1. Caracterização da Rede de Serviços Básicos de Saúde de
Niterói.......................................................................................45 2.2. Antecedentes Históricos da Prática do Enfermeiro na SMS/
Niterói.......................................................................................47
III. A PRATICA DO ENFERMEIRO NO MUNICÍPIO DE NITERÓI – O CONTEXTO ATUAL...................................................................................................57
3.1. O Papel do Enfermeiro nos Serviços Básicos de Saúde de
Niterói.......................................................................................58 3.2. Como se expressa na Prática seu Papel – O Fazer do
Enfermeiro.................................................................................79 3.3. O Profissional que se Forja no Cotidiano dos Serviços..................90 3.4. Mudanças na Política municipal de Saúde e a Prática do
Enfermeiro – Mudanças Concretas ? Abstratas? Possíveis!...100 3.5. O que ainda há para discutir: A Absorção dos Enfermeiros pelos
Serviços – Critérios de Alocação e Remuneração...................115 3.6. Costurando os Resultados.............................................................125
IV. CONCLUSÕES.........................................................................................129
12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................135 ANEXOS.............................................................................................................142
INTRODUÇÃO
Uma revisão nos acontecimentos relacionados ao setor de saúde na última
década mostra inúmeras mudanças ocorridas não só na concepção de saúde, inserida
agora no texto constitucional como um direito, mas também nas formas de pensar a
organização do sistema de saúde, de forma a traduzir esse direito em modificações reais
para uma ampla parcela da população, para a qual saúde se constitui em um ideal ainda
muito distante.
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi a estratégia utilizada para viabilizar a
reorganização do setor. Em sua concepção, o Município é o ator principal para a concretização do desejo
de uma nova organização das práticas de saúde. É o espaço privilegiado onde, através da constituição de
Sistemas Locais de Saúde, se faz possível a introdução de novas experiências que permitam a construção
de novos modelos assistenciais.
No espaço dos Sistemas Locais de Saúde temos visto germinar algumas
experiências que trazem em seu bojo uma proposta de transformação nas práticas de
saúde, possibilitando uma aproximação com os pressupostos básicos do SUS. Essa
transformação traz como conseqüência uma reorganização de papéis de diferentes atores
e nos leva a refletir sobre a prática dos profissionais que compõem a equipe de saúde.
Este trabalho se insere na interface entre construção do SUS, tomada como linha
mestra da política de saúde no espaço do Município, e a prática profissional do
enfermeiro em meio às transformações que vem ocorrendo a partir da incorporação de
experiências inovadoras no âmbito do Sistema Local de Saúde estudado. Trata-se de um
Estudo de Caso, realizado em um Sistema Local de Saúde que tem feito mais que
cumprir obrigações legais que determinam a implantação do SUS, mas que também tem
buscado nesse processo formas de reorganizar suas práticas de saúde. Aqui o Município
de Niterói foi tomado como exemplo de um Sistema Local de Saúde em processo de
transformação onde o processo de municipalização permitiu se incorporar como uma
experiência inovadora na política local de saúde : o Projeto Médico de Família (PMF)
12
que, junto com a reorganização da rede de unidades de saúde preexistentes, pretende
alcançar um novo modelo de organização de práticas de saúde.
O objeto do trabalho refere-se à forma como vem se desenvolvendo a prática do
enfermeiro nesse Sistema Local de Saúde, que é estudada, no âmbito do primeiro nível
de atenção à saúde, em dois espaços distintos: um composto pelas Unidades Básicas de
Saúde (UBS) e Policlínicas Comunitárias de Saúde (PCL), ao qual estaremos nos
referindo como “rede básica”; e outro, considerado como experiência inovadora no
âmbito desse Sistema Local de Saúde, ao qual estaremos nos referindo como Projeto
Médico de Família. Tal prática é estudada a partir da percepção dos enfermeiros a
respeito de sua prática nesse espaço, abordando-se também essa prática a partir da visão
institucional, evidenciada nos relatos dos gerentes dos serviços relacionados ao primeiro
nível de atenção à saúde.
Ao escolher a cidade de Niterói como campo de pesquisa, consideramos que esta
incorpora a seu cotidiano uma experiência inovadora no campo de políticas de saúde.
Propondo transformar o modelo de atenção à saúde no Município, com base nos
pressupostos de equidade, integridade, universalidade e acesso a atenção à saúde. A
incorporação dessa experiência inovadora – o Projeto Médico de Família se coloca
então como um parâmetro para a análise das transformações no sistema de saúde
estudado e suas implicações com a prática do enfermeiro
Os objetivos do trabalho foram de analisar historicamente o desenvolvimento da
prática profissional do enfermeiro desde a criação da Secretaria Municipal de Saúde de
Niterói, até os anos 90. Como também de estudar a atual prática dos enfermeiros
inseridos nas Unidades Municipais de Saúde (UBS) e no Projeto Médico de Família
(PMF), desenvolvido por esse Município e identificar as modificações que estão se
produzindo na prática do enfermeiro a partir da incorporação de experiências
inovadoras na política de um Sistema Local de Saúde. Nesse sentido, a hipótese que
norteou nosso trabalho foi que “as modificações nas políticas locais de saúde, com a
implantação de experiências inovadoras no espaço do Município, tem possibilitado
mudanças na prática do enfermeiro”.
Com o propósito de desnudar tal hipótese, foi necessário buscar a história da
prática do enfermeiro no espaço da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói,
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reconstituída através do discurso de informante qualificado e da análise de documentos,
sendo possível assim, estabelecer as mudanças que se processaram nessa prática a partir
da implantação do SUS.
A motivação para proceder tal estudo foi a inquietação de quem vê, no rastro das transformações
decorrentes de mudanças nas políticas locais de saúde, o espaço para a construção de uma nova prática
profissional – talvez mais humana para agentes e sujeitos dessa prática.
Enquanto estudo de caso, temos consciência de suas limitações no sentido de generalizar suas
conclusões para horizontes mais amplos que aquele do universo estudado. Deve ficar claro, portanto, que
o quê se apresenta não é uma tese definitiva sobre a prática do enfermeiro no âmbito de um sistema local
de saúde, mas sim uma observação sistematizada de um recorte dessa prática, que mostra, em sua
multiplicidade de aspectos, os conflitos inerentes à construção do objeto de trabalho do enfermeiro de
saúde pública em meio às transformações que sofre o sistema, decorrentes de uma dada política de saúde.
Tendo a prática do enfermeiro como objeto de análise, trabalhamos com a perspectiva de prática
social, ou seja, de uma prática profissional que influencia e sofre influências das transformações sociais
que ocorrem no espaço onde se inserem. Desta forma, não podemos considerar essa prática como se fosse
regida apenas por critérios técnicos, constituintes da base de seu desenvolvimento, sendo necessário
atentar para as influências do que vai além do técnico: as modificações no campo da política, da cultura,
da economia, entre outras, que se refletem no seu cotidiano provocando as transformações que vamos
conhecendo ao longo da história.
Assim sendo, não é possível pensar na prática de enfermagem sem lembrar que
esta tem como antecedentes uma prática desenvolvida por religiosos e que, ainda hoje,
os ideais cristãos humanitários são presentes nessa profissão. Ou que, ainda no
chamado período negro da enfermagem, as consequências da reforma protestante, que
expulsaram os religiosos dos hospitais, determinou o recrutamento de pessoal leigo, na
maioria mulheres marginalizadas, tratadas como categoria inferior. Isso também deixou
marcas na enfermagem, que Florence Nightingale tentou apagar impondo às
enfermeiras de sua escola, rígidos padrões de conduta moral, que ainda hoje permeiam o
ensino da enfermagem – questões como a medida do comprimento da saia por vezes
colocada como mais importante que a discussão a respeito do papel do enfermeiro em
nossa sociedade. Não é possível esquecer também que o papel do enfermeiro
(contrariando as regras gramaticais muitos ainda usam “enfermeiras”, uma vez que a
mulher ainda é a maioria desse grupo profissional) reflete o papel tradicionalmente
ocupado pela mulher na sociedade, marcado pela desvalorização de seu lugar e de seu
trabalho. Dessa forma, percebe-se que a moderna enfermagem que conhecemos hoje é
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resultado de uma construção que vem se processando ao longo dos últimos séculos e se
transformando a cada dia diante das transformações de nosso mundo.
Logo, ao estudar a prática do enfermeiro em um dado espaço, no caso em
questão, o Município de Niterói, não podemos perder de vista a história subjacente a
essa prática. É necessário, para isso, recortá-la para nos aproximarmos da realidade que
desejamos estudar, não esquecendo contudo que as partes destacadas compõem um todo
que, muito além das práticas da enfermagem, se refere à construção da nossa sociedade.
No desenvolvimento do trabalho, esses recortes se transformam em histórias
singulares, que falam entre si: um retrato da enfermagem no Brasil, o desenvolvimento
da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói, e o desenrolar da prática do enfermeiro
nesta secretaria.
Nenhum dos recortes apresentados tem pretensão de esgotar o assunto tratado –
expressam apenas a face que, em nossa busca, se fez conhecer. O que pretendemos, a
partir de tais perspectivas, é subsidiar a análise do momento presente, que não é
estanque e está se modificando enquanto escrevemos, tornando esta análise um subsídio
para compreender um futuro que se fará presente.
No que se refere à organização do trabalho, seu corpo é formado por quatro
capítulos, além da Introdução.
O Capítulo I corresponde ao marco teórico conceitual e subdivide-se em duas
partes. A primeira trata da prática da enfermagem no Brasil, que foi abordada de forma
que pudéssemos melhor compreender a origem dos conflitos que se apresentam na
prática atual do enfermeiro. A segunda parte refere-se à descrição da metodologia, onde
pode ser vista a forma como foi desenvolvido esse trabalho.
No Capítulo II apresentamos o Município de Niterói, discutindo a história que
permeia a condução de sua política de saúde, abrindo um parênteses para discutir
também os antecedentes da prática do enfermeiro na sua Secretaria de Saúde. Buscamos
caracterizar o município como um espaço de inovações no campo das políticas de
saúde, desde a construção de sua Secretaria de Saúde, ainda na década de 70, com
destaque para as mudanças advindas do processo de implantação do SUS. O
conhecimento dessas práticas inovadoras nos oferece então subsídios para identificar
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possibilidades diferenciadas de inserção do enfermeiro nos espaços criados. Os
antecedentes da prática desse profissional nesse espaço foi então resgatado com a
finalidade de servir de base para a compreensão das transformações que ocorreram na
prática do enfermeiro a partir da implantação do SUS no Município de Niterói.
O Capítulo III discute a atual prática do enfermeiro na Fundação Municipal de
Saúde de Niterói, à luz das categorias obtidas no material colhido no trabalho de campo,
junto a enfermeiros e gerentes do PMF e da rede básica de saúde, que foram
selecionados e entrevistados para nosso estudo. Este capítulo é dividido em cinco
subseções que correspondem às diferentes categorias que se destacaram no processo de
análise.
No capitulo IV são apresentadas, por fim, as conclusões obtidas a partir de todo
o estudo, onde são tecidas algumas considerações finais.
CAPÍTULO I
MARCO TEÓRICO CONCEITUAL 1.1 - A Prática da Enfermagem no Brasil A enfermagem brasileira nasceu no seio da saúde pública e se desenvolveu
dentro de um forte vinculo institucional, expresso na ligação de suas escolas aos órgãos
condutores das políticas de saúde no Brasil. Não pretendemos aqui contar sua história,
pois não é esse o propósito deste trabalho, mas buscar na história subsídios para a
compreensão da questão tratada no momento presente – a prática do enfermeiro,
entendendo a importância atribuída por GERMANO (1983) às origens e raízes de uma
dada área de conhecimento, como forma de compreendê-la.
O conflito e as indefinições da enfermagem, que autores como NAKAMAE
(1987) assinalam como sendo próprios do enfermeiros, se colocam visíveis para os
profissionais que desenvolvem sua prática no dia a dia, aparecendo também no discurso
dos gerentes de sistemas e serviços de saúde. Procuramos, à luz da história e nos
antecedentes deste conflito, mapear o papel do enfermeiro paralelamente ao
desenvolvimento das políticas de saúde, para, por fim, refletir sobre o lugar do
enfermeiro no momento presente. Tomamos como marco de nossa revista a história da enfermagem brasileira na terceira década do
século vinte. Tal escolha se explica por ser nesta década, mais precisamente no ano de 1923, que começa
a funcionar no Brasil a primeira escola de enfermagem nos moldes nightingaleanos, introduzindo aqui a
chamada “enfermagem moderna”. (SILVA, 1989, MELLO, 1986)
É importante lembrar que, embora tenhamos tomado como marco da
institucionalização do ensino de enfermagem no Brasil a criação da escola Ana Neri,
não estamos afirmando com isso que em momento anterior ao ano de 1923 não
houvesse existido escolas de enfermagem no Brasil. Contudo, nosso interesse está no
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“enfermeiro”, caracterizado pela Associação Brasileira de Enfermagem, segundo
ADAMI (1972) como
“pessoa que completou um programa de educação de enfermagem e está qualificada e autorizada, no País, a prestar serviço de enfermagem de maior responsabilidade para a promoção da saúde, prevenção da doença e cuidado com o indivíduo doente”. (ADAMI, 1972:122)
Considerando o contexto mais amplo, o nascimento da enfermagem moderna no
Brasil se dá em meio a “hegemonia das políticas de saúde pública: modelo de atenção
em saúde orientada predominantemente para o controle de epidemias e generalização
das medidas de imunização” (COSTA, 1985:117) As políticas de saúde desenvolvidas na época mantinham relação direta com o desenvolvimento
da economia, baseada no modelo agro exportador adotado no Brasil. A manutenção de tal modelo
implicava na manutenção de condições de salubridade que permitissem não só a imigração bem como o
livre fluxo de cargueiros para o escoamento da produção agrícola.
É neste contexto que se organiza e se institucionaliza o serviço e o ensino de
enfermagem no Brasil, através de um acordo entre o governo brasileiro, representado
por Carlos Chagas, na época, diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública
(DNSP) e o governo americano, representado pela Fundação Rockfeller. (GEOVANI et
al., 1995) Um grupo de enfermeiras norte-americanas, trazidas ao Brasil em função deste acordo, se
responsabilizaram então pela organização do serviço de enfermagem do DNSP. Contribuíram também na
fundação da Escola de Enfermagem do Departamento Nacional de Saúde Pública, posteriormente
denominada Escola de Enfermagem Ana Néri. (GEOVANNINI et al., 1995; SILVA, 1989)
PIRES (1988) ressalta como indicador de prestigio da categoria recém criada a existência de um
órgão de enfermagem central. Explica o fato pelo momento histórico, na medida em que a categoria se
coloca a serviço do controle de doenças que restringiam a implantação do modelo de produção capitalista
no país, tendo, por outro lado, um ideal de submissão que não ameaçava a hegemonia médica.
A profissão criada destinava-se a moças brasileiras, de classe social elevada, inclinadas a servir a
pátria e aos doentes, contando além do prestigio, com altos salários, que serviam de estímulo para atrair
postulantes à profissão.
A demanda por enfermeiras visitadoras que deveriam se integrar ao combate
das grande epidemias que assolavam o País naquela época era significativa, conforme
afirma PAIXÃO (1969). Contudo, vale ressaltar a observação de SILVA (1989) que
assinala, a respeito da formação versus prática dessas enfermeiras, a contradição
inerente à institucionalização de um ensino de enfermagem com moldes norte-
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americanos, que pressupunham uma extensa prática hospitalar, frente a necessidade
existente no País: a emergência de graves problemas de saúde pública, que
demandavam soluções rápidas.
Uma outra questão, assinalada por GEOVANI et al. (1995), diz respeito à
desvinculação gradativa das associações religiosas do ambiente hospitalar. Com a
medicalização desse espaço, demandando mão-de- obra que viesse então a substituir as
irmãs de caridade, saídas do espaço hospitalar. Contudo, como foi possível observar na
literatura consultada, as enfermeiras egressas da escola Ana Néri não supriam essa
demanda.
Sobre a inserção das profissionais egressas da Escola Ana Néri, PAIXÃO
(1969), assinala que sua primeiras alunas foram logo contratadas pelo Departamento
Nacional de Saúde Pública, iniciando seu trabalho na área de profilaxia de tuberculose e
higiene materno infantil, estendendo-o posteriormente aos casos de doenças
transmissíveis.
CASTRO (1977) reitera tal afirmação, referindo-se ao papel do enfermeiro
nestes primeiros anos, estando relacionado à prestação de cuidados de enfermagem no
domicílio. Entretanto, como a própria Paixão assinala mais adiante em seu texto, o
número de “enfermeiras diplomadas” é menor que a necessidade de profissionais,
criando-se em alguns Estados os cursos de visitadoras sanitárias.
SILVA (1989)destaca que
“o interesse do governo em fomentar o desenvolvimento da nova profissão pode ser comprovado, por exemplo, através da política de facilitar o comissionamento das pessoas interessadas em cursar enfermagem...” ( SILVA, 1989:78)
O espaço da prática desses enfermeiros permanece, nesse período, “circunscrito
às atividades de saúde pública” (OLIVEIRA citado por OLIVI,1982). No espaço
hospitalar a assistência ainda conta, em grande parte, com o peso das religiosas.
MELO (1986) aprofunda a discussão sobre a inserção dessas enfermeiras. Para a
autora, estas atuavam basicamente nos serviços de saúde pública, contudo seu papel
principal não era assistir os doentes, o que pode ser percebido no texto abaixo transcrito.
“O trabalho da enfermagem no Brasil nasce dividido, e os novos profissionais formados pela Escola Ana Néri assumem as chefias dos
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serviços de saúde pública ou o ensino e começam a preparar pessoal auxiliar – as visitadoras sanitárias – que é quem vai executar o serviço. Tal modelo, é uma transposição clara do modelo americano. Estes profissionais eram absorvidos em serviços públicos e em menor escala, no atendimento domiciliar feito a doentes abastados” (MELO, 1986:65)
Considerando o exposto acima, identifica-se como lugar dessa “enfermeira
diplomada” não a atenção direta à clientela, mas sim uma atuação de maneira indireta,
que se processa de modo a criar condições para que a assistência de enfermagem,
prestada em sua maior parte pelos outros agentes da enfermagem, se opere.
Isso evidencia, conforme o pensamento de MELO (1986), a divisão social e
técnica do trabalho em enfermagem, caracterizada por essa autora no trecho abaixo:
“As primeiras enfermeiras diplomadas pela escola brasileira eram, em sua maioria, possuidoras do diploma do Curso Normal e muitas pertencentes a uma classe social alta, igual a do próprio médico. As enfermeiras reproduziam na sua profissão a divisão entre trabalho manual e intelectual, desde quando a sociedade brasileira, assim como as demais, não aprova o trabalho da mulher fora do lar, muito menos para executar um serviço caracterizado como manual. E, portanto, inferior. As novas enfermeiras, cuja origem de classe era superior ao do pessoal que até então exercia o trabalho remunerado dentro da enfermagem, passaram a executar um trabalho considerado superior, a maioria delas exercendo supervisão e ensino e não o cuidado direto ao paciente” (MELO, 1986:65)
A origem da divisão do trabalho na enfermagem tem raízes na formalização do
treinamento em enfermagem, iniciado na Inglaterra no século 19. A esse treinamento,
eram submetidas mulheres de duas categorias sociais distintas, cabendo as de maior
grau social, as ladies, o trabalho intelectual caracterizado pela prática administrativa,
pela criação de condições para o funcionamento dos serviços. Às mulheres de classe
social inferior eram destinados os trabalhos manuais, o cuidado com o corpo enfermo,
considerado trabalho de menor valor.
As décadas de 20 e 30 se colocaram como período de implantação da
enfermagem profissional no Brasil, com a criação de escolas e associações de classe. No
período que se segue, ocorre a consolidação dessa profissão. Há que se considerar
também a ampliação das categorias auxiliares, que encontram já na década de 30, algum
respaldo legal para sua atuação. (SILVA, 1989; MELO, 1986)
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É também na década de 30 que a enfermagem começou a sofrer influências da
escola clássica de administração,1 reforçando a divisão técnica do trabalho em meio à
categoria. MELLO et al. (1992) referem-se à enfermagem que se estruturou a partir de
então como “enfermagem funcional”, na qual as tarefas eram dividas entre o pessoal de
pequeno preparo, tornando a enfermeira uma administradora, cujas decisões eram
tomadas intuitivamente a partir de um rígido sistema de classes.
A partir da exposição acima, fica clara a afirmação de CASTRO (1977), quando
se refere ao nascimento da enfermagem brasileira sob a égide da saúde pública.
Percebe-se ainda o estreito vínculo entre a formação desses profissionais e a adoção de
uma dada política de saúde, evidenciada, inicialmente pela subordinação da Escola de
Enfermagem ao DNSP, fato que se repetiu na criação de outras escolas subordinadas a
outros órgãos condutores de políticas de saúde. Encontra-se também, na
institucionalização da profissão do enfermeiro, a semente do conflito e da indefinição
do seu papel, que vem sendo acompanhado por uma ideologia de submissão em relação
aos outros profissionais de saúde. Isto fragiliza a sua organização e permite que se
multipliquem agentes de pouco ou nenhum preparo, que passam cada vez mais a
assumir a execução da assistência de enfermagem, deixando ao enfermeiro o papel de
administrador ou, pior, de executor da burocracia dos serviços, que pouco se relaciona
com a ação de enfermagem.
O vinculo formal entre a Escola de Enfermagem Ana Néri e o DNSP só se
desfaz no ano de 1937, quando essa escola passa a integrar a Universidade do Brasil
(CARVALHO,1976). Contudo, é clara a influência dos rumos tomados pelas políticas
de saúde na prática da enfermagem, como evidencia GERMANO (1983), que relaciona
as mudanças curriculares dos cursos de enfermagem às mudanças nas políticas
nacionais de saúde.
BRAGA & PAULA (1986) assinalam na década de 30 a emergência de uma
Política Nacional de Saúde, quando houve o deslocamento do motor da acumulação
econômica do setor agro exportador para o setor industrial que começava a se instaurar.
Tal política vai se organizar entre o sub setor de saúde pública e o de medicina
previdenciária, sendo o primeiro predominante até a década de 60.
1 - A escola de Administração Cientifica ou Escola Clássica congrega o pensamento dos primeiros autores a discutir e propor formas de racionalização do trabalho, tendo como referências iniciais os trabalhos desenvolvidos por Taylor e Fayol. Sua idéia principal é explicitada por Motta a partir da afirmação “Alguém será um bom administrador à medida que planejar cuidadosamente seus passos, que organizar e coordenar racionalmente as atividades de seus subordinados e souber comandar e controlar tais atividades”(MOTTA, 1982.:3-4)
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As ações de saúde pública se estruturaram com base em programas, que
retomaram, a partir da metade da década de 30, as campanhas de saúde pública, o que
marcou a atuação do Estado na área de saúde nesse período.
Na segunda metade da década de 60, o modelo de medicina previdenciária
assumiu então a hegemonia nas práticas de saúde. Tal modelo começava a ser
construído desde a década de 30 com a criação das CAPs (Caixas de Aposentadorias e
Pensões) e, posteriormente, dos institutos de previdência. Assim, a assistência médica
foi se incorporando aos serviços oferecidos aos seus beneficiários, deslocando as ações
de saúde do campo coletivo para o hospital e a assistência médica individual e curativa.
Alguns fatos, além do processo de industrialização, influenciaram as mudanças
no modo de atenção à saúde. Dentre eles, se destacaram a força da industria hospitalar e
de produção de equipamentos médico hospitalares, que encontraram um mercado
consumidor importante na rede de hospitais próprios e privados, criados as expensas da
previdência social.
O modelo médico previdenciário, que se ampliou através do estímulo à
construção de hospitais de caráter privado, com a posterior compra de seus serviços pela
previdência, determinou o crescimento da demanda por pessoal de enfermagem.
Contudo, conforme ressalta GEOVANNI et al. (1995), o pessoal incorporado pelo setor
privado era basicamente composto por auxiliares, ou mesmo por ocupacionais, sem
qualquer formação. A absorção do enfermeiro continuava a se dar principalmente pelo
setor público.
A criação dos hospitais de clínica e a incorporação de uma nova concepção
administrativa no seio dos hospitais da previdência, abriram um novo espaço para a
atuação do enfermeiro. (OLIVEIRA citado por OLIVI, 1982)
MELO (1986), a esse respeito diz:
“O hospital passa a ser o símbolo da supremacia da atenção médica sobre as medidas sanitárias de modo geral, no Estado que era o centro político e econômico do País. O novo hospital, agora incorporado de tecnologia desenvolvida, exigia pessoal auxiliar capacitado. As enfermeiras diplomadas passam a integrar o corpo de pessoal do hospital, organizando em novos padrões o serviço de enfermagem. A legitimação do pessoal auxiliar então existente, se dá com a Lei 775, de 6 de agosto de 1949, que cria oficialmente os cursos de auxiliares de enfermagem e regulamentam as escolas de nível superior já existentes no país”. (MELO, 1986:67)
22
Assim, a enfermagem que nasce “de saúde pública”, sai de seu berço,
encontrando o seu lugar no hospital. O papel do enfermeiro é novamente a organização
do serviço de enfermagem, o treinamento da equipe auxiliar.
No que se refere às ações de saúde de âmbito coletivo, cabe destacar o modelo
construído com base nas campanhas de saúde pública, que tem como seus principais
agentes a SUCAM e a FSESP. Esta última, representando um campo para a atuação do
enfermeiro na área de saúde pública, tem suas ações voltadas para o controle
epidemiológico, assistência materno infantil e cuidados aos doentes em unidades mistas
de internação (OLIVI, 1982).
No âmbito da educação, o currículo de enfermagem privilegiava o ensino
especializado e a assistência curativa. Com o crescimento significativo dos cursos para
a capacitação de atendentes e auxiliares de enfermagem. (GEOVANI et al., 1995)
No contexto de expansão do modelo médico previdenciário de atenção à saúde,
se dá o crescimento da categoria de enfermagem, baseado na criação de novas
categorias, segundo as demandas do mercado, mas que não representam uma melhor
qualificação profissional, fragmentando e subdividindo cada vez mais a força de
trabalho.(SILVA, 1989; GEOVANI et al., 1995)
O crescimento da categoria, sobretudo as expensas de uma classe de
trabalhadores, a maioria das vezes sem formação, fez com que a equipe de enfermagem
se constituisse em uma pirâmide, que tem em sua base uma imensa parcela de agentes
sem qualificação e em seu vértice uma pequena parcela de enfermeiros (ALMEIDA &
ROCHA, 1986). Em meio à equipe de saúde, isso se traduz em uma situação polarizada,
onde se conta, de um lado, com a especialização da prática médica e, de outro, com
trabalhadores sem capacitação. Situação que reflete a ação dos setores privados,
contratados pela Previdência e que se utilizavam de mão de obra barata e desqualificada
como forma de ampliação de seus lucros.
Para ALMEIDA & ROCHA (1986) a divisão do trabalho entre a equipe de
enfermagem não fluiu de maneira harmônica, sendo agravada pela crise de identidade
da enfermagem e seus agentes. A autora assinala o agravamento dessa crise justamente
nas décadas de 50/ 60, quando o ensino de enfermagem se voltou para a formação de
lideres, com elementos do saber voltados para o cuidado. A ocupação de cargos de
chefia pelos enfermeiros gerou uma marginalização das práticas de saúde, devido ao
distanciamento do cliente e do pessoal auxiliar.
23
ALMEIDA & ROCHA(1986) evidenciam, em décadas mais recentes, uma
acentuação dessa marginalização, a partir das transformações tecnológicas do setor
saúde, que aumentaram o número de intervenções realizadas, deixando a execução
dessas aos atendentes.
A partir da década de 70, importantes mudanças marcaram o país, com reflexos
importantes nas políticas de saúde. O modelo médico previdenciário que cresceu e se
expandiu, tornando-se hegemônico a partir da década de 60, já começava a mostrar
sinais de esgotamento. Algumas das explicações para esse fato se referem aos custos
crescentes da assistência a saúde, o aumento no número de segurados e ao aumento na
longevidade média da população sem um financiamento compatível, além da fraudes,
que ficaram famosas na história da previdência social. Por outro lado, esse modelo não
trazia benefícios compatíveis com seu alto custo, gerando demandas insatisfeitas que,
face à crise que o país enfrentava, tornaram-se mais graves.
Frente a indicadores de saúde de péssimo nível, algumas estratégias foram
traçadas visando a reorganização das estruturas responsáveis pelo desenvolvimento da
Política Nacional de Saúde, organizadas, com base na Lei 6229/75 em forma de um
Sistema Nacional de Saúde. Interessa-nos destacar, em meio a esse contexto, a
elaboração de programas de ação caracterizados pela proposta de extensão de cobertura
das ações de saúde : como, por exemplo, o Programa de Interiorização de Ações de
Saúde e Saneamento (PIASS).
Os programas de extensão de cobertura encontraram base nas propostas da
Organização Mundial de Saúde, que foi explícita no informe final da Conferência
Internacional de Cuidados Primários a Saúde, reconhecendo a Atenção Primária à Saúde
como estratégia de alcance de condições adequadas de saúde para as populações de
países pobres, pesando a crítica de que esta pode ser caracterizada como uma medicina
pobre para uma população pobre.
Tal condução deveria se basear em ações tais como a promoção de uma nutrição
adequada, o abastecimento suficiente de água potável e saneamento básico, a assistência
materno infantil, inclusive planejamento familiar, imunização, prevenção e combate às
endemias locais, educação em saúde e métodos de prevenção de doenças, tratamento
apropriado das enfermidades comuns e disponibilidade de medicamentos essenciais.
(OMS/ UNICEF, 1978:11)
Nas recomendações acerca dos recursos humanos necessários ao
desenvolvimento dessa proposta, o documento se refere à utilização de agentes da
24
própria comunidade, devidamente capacitados, bem como a necessidade de capacitação
técnica e social dos profissionais de saúde, particularmente médicos e enfermeiros.
Percebe-se na proposta de atenção primária um conteúdo significativo de
práticas de enfermagem, particularmente os voltados para a educação em saúde e a
orientação sobre prevenção de doenças. Dentro dessa perspectiva, cabe a informação
trazida por PUCÚ E TEIXEIRA (1979) a respeito de experiência desenvolvida em
Londrina, onde cerca de 85% dos problemas de saúde da população eram resolvidos
pelo auxiliar de saúde.
Assim, cabe refletir sobre o papel do enfermeiro em meio a esse contexto, a
partir das questões apontadas por PUCÚ E TEIXEIRA (1979), explicitadas abaixo.
• Frente a uma nova modalidade do entender e prestar cuidados à saúde, a
formação do enfermeiro é inadequada, sendo necessária uma reformulação
para que este profissional possa atuar.
• São então identificadas duas áreas de atuação: enquanto membro da equipe
de saúde e na área específica da enfermagem.
• Enquanto membro da equipe de saúde, essas autoras observam restrições à
atuação do enfermeiro no que se refere à própria inserção nos programas,
referindo-se à ausência do enfermeiro no projeto de criação do PIASS
• Com relação à atuação na área específica da enfermagem, referem-se ao
cerceamento de algumas atividades próprias ao enfermeiro como, por
exemplo, a consulta de enfermagem, a realização de partos, entre outros.
As autoras consideram fundamental a mudança na formação do enfermeiro,
como forma de permitir que este profissional seja capaz de ocupar o espaço aberto, a
partir desse novo contexto que prevê uma nova maneira de prestar cuidados à saúde.
Identificamos, em meio às propostas de ampliação de cobertura e com base nas
observações de PUCÚ E TEIXEIRA (1979), a possibilidade de definição de um novo
papel para os enfermeiros, saindo do hospital e integrando-se novamente à saúde
pública, numa volta a suas origens. O papel que se delineava referia-se à retomada da
relação direta com a clientela, que se processava através de ações educativas e
assistenciais tais como o acompanhamento pré-natal e assistência ao parto. Onde,
inclusive, havia também uma atuação em meio à equipe de saúde, no sentido da
capacitação pedagógica dos seus agentes, bem como a colaboração no planejamento
mais amplo das ações de saúde. Contudo, mais que mudanças na formação, seria
25
necessária uma mudança de postura da categoria, no sentido de definir seu espaço de
atuação e então, ocupa-lo.
Em pesquisa desenvolvida pelo Conselho Federal de Enfermagem (1985), os
resultados destacaram a transformação da prática de enfermagem a partir dos
postulados da atenção primária. Contudo, o relatório de tal pesquisa identificaram que,
embora os enfermeiros estejam de acordo com tais mudanças, não crêem que sejam
possíveis, pois as mesmas são dependentes de outras mudanças na realidade social do
país. Concordamos com a premissa de que a realidade social do país precisa ser mudada, através de
uma distribuição eqüitativa de renda e acesso igualitário da população a equipamentos de proteção social;
contudo, não acreditamos que isso, por si só, transforme a prática da enfermagem. É necessário para tal
transformação uma postura mais combativa da categoria, a fim de que não tenha sua inserção no mercado
de trabalho definida ao sabor das marés das políticas de saúde, mudando uma realidade que é assim
expressa por MELO (1986),
“... a atenção primária à saúde permanece nas mãos das categorias auxiliares e a enfermeira cabe mais uma vez coordenar, treinar e supervisionar o pessoal auxiliar”.(MELO, 1986:74),
que indica que a atenção primária é ainda apenas uma possibilidade na redefinição do
papel do enfermeiro, que pode não ser aproveitada. As mudanças que se processaram a partir da década de 80, em meio à grave crise da previdência
social, com a abertura democrática e a luta do movimento sanitário no sentido de construir um novo
modelo de assistência à saúde, culminaram no final da década, na inclusão, no texto constitucional, da
concepção de saúde como um direito do cidadão. Definiu-se também a criação de um Sistema Único de
Saúde como forma de reorganizar os serviços e as práticas de saúde no país.
Tendo como eixo a descentralização e a municipalização de serviços e ações de saúde, a
tentativa de construir o SUS vem se dando com avanços e retrocessos entre as diversas regiões do País.
Considerando a observação de que as prática da enfermagem no Brasil tem se construído a
reboque das políticas de saúde, cabe agora um olhar sobre a prática do enfermeiro frente às mudanças
mais recentes.
ALMEIDA et al., (1989) em sua reflexão a respeito da situação da enfermagem na década de
80, assinala mudanças no seio da categoria no sentido de compreensão da enfermagem como prática
social. Esta questão pode ser vista na existência de estudos, a partir desta década, que ampliaram a visão
da prática de enfermagem para além de uma visão idealista de base cristã humanitária que, segundo essas
autoras, encobriam suas contradições. A crise e as mudanças no setor saúde são, para elas, propulsoras de
novas articulações sociais que também envolvem a enfermagem.
Percebe-se nas discussões apresentadas pelas autoras que a década de 80 se caracterizou por um
período de rupturas. Houve o desvelamento de conflitos internos da categoria, que permaneciam, até
26
então, ocultos numa visão homogênea da enfermagem como profissão neutra, cientifica, que atendia a
todos indistintamente.(ALMEIDA et al. 1989)
Das divergências que se explicitaram na década de 80 são destacadas:
• A percepção da enfermagem como ciência e, como tal, com um estatuto de
autonomia que lhe é próprio versus sua compreensão enquanto trabalho
que guarda relações sociais com outros trabalhos e que, portanto, contém
conflitos e uma autonomia relativa;
• As divergências com relação ao objeto de trabalho do enfermeiro entre os
que entendem que esse objeto é o cuidado e os que acreditam que este seja
a administração;
• Divergências a respeito da formação do enfermeiro – se essa deve ter
apenas o cunho técnico-científico ou abarcar também um cunho político.
Concordamos com as autoras quando elas referem a importância de se ter
explícitos tais conflitos como uma forma de possibilitar transformações na prática do
enfermeiro.
Cabem aqui algumas considerações acerca dessas mudanças. A primeira delas é
que tais mudanças parecem se colocar muito mais no plano acadêmico que no cotidiano
dos serviços. Tal idéia se baseia no seguinte: a análise que a autora desenvolve se dá a
partir da exploração das discussões desenvolvidas durante os congressos de
enfermagem. Partindo do pressuposto que, apenas uma parcela seleta da categoria de
enfermagem freqüenta esses congressos (professores, gerentes de serviços, etc.), parece-
nos que existe um descompasso nas reflexões sobre a prática do enfermeiro entre os
dois espaços – academia e serviços.
Cabe assinalar ainda que, na década de 80, foi sancionada a Lei 7.498/86,
tratando do exercício profissional da enfermagem. Tal Lei, se por um lado substitui a
anterior (5.975/73) já defasada, por outro, apresenta divergências entre a categoria
durante sua tramitação no Congresso Nacional, não sendo isenta de criticas após sua
aprovação.2
Frente a construção do SUS, a ABEn, no Relatório Final do 41º Congresso
Brasileiro de Enfermagem, apontou para a necessidade do engajamento da enfermagem
na organização desse sistema, evidenciada pela proposta de elaboração de um currículo
direcionado à formação de um enfermeiro generalista, com competências definidas nos
27
vários níveis da assistência. Onde seria ressaltada a necessidade da inserção da categoria
nas discussões sobre a reforma dos sistemas locais e estaduais de saúde, além do
“...desenvolvimento de um modelo de processo de trabalho na enfermagem que seja entendida como assistir, educar e administrar de forma dinâmica que leva à integralização das ações.” (ABEn, 1991:86)
O novo currículo mínimo de enfermagem foi aprovado no ano de 1994, pela
Portaria n º1721/ 94, contendo em seu bojo uma proposta de formação de enfermeiro
mais coerente com as demandas que são colocadas pelo SUS. Este envolve muito das
discussões que permearam a enfermagem na década de 80, trazendo um espaço de
discussão na área da saúde pública, o que era negado no currículo anterior. Também
foram incorporadas à grade curricular disciplinas da área de ciências sociais e ciências
humanas, de forma a capacitar esse profissional a entender as práticas de saúde e de
enfermagem como práticas histórica e socialmente determinadas. Vale lembrar
entretanto que os profissionais formados sob essa nova ótica ainda não se encontram no
mercado de trabalho. O que torna impossível perceber, por enquanto, que contribuições
essa mudança em sua formação pode trazer para a prática profissional do enfermeiro e
para uma melhor definição de seu papel. Esse breve resgate da história da enfermagem brasileira vai nos permitir perceber, com maior
clareza, as raízes das indefinições na prática do enfermeiro inserido nos serviços de saúde de Niterói.
Porém, antes de passarmos à discussão a respeito da prática do enfermeiro em Niterói, convém destacar
alguns pontos fundamentais que vem marcando a prática do enfermeiro e que se colocam muito presentes
em nossa discussão.
Um primeiro ponto refere-se à forte relação do desenvolvimento da enfermagem
com a construção de uma determinada política de saúde. Isso pode ser percebido já na
implantação de seu ensino formal, quando as escolas eram criadas a partir das demandas
dos órgãos públicos responsáveis pela condução da política de saúde. E, posteriormente,
em sua adaptação ao modelo de atenção médico previdenciário que se estruturou no
país, ainda que em suas origens o propósito de sua formação fosse ligado a saúde
pública.
Outro ponto diz respeito à contradição entre formação e prática, que já se
expressava no nascimento da enfermagem no Brasil, quando o propósito de formar
2 - A esse respeito ver Lorenzetti, J., 1998. A “Nova Lei do Exercício Profissional da Enfermagem: uma
Análise Critica In: Legislação em enfermagem – Atos Normativos do Exercício e do ensino de Enfermagem.( E. Santos et al.) Rio de janeiro: Atheneu.
28
profissionais para a área de saúde pública esbarrou em uma formação que continha
grande prática hospitalar, tal qual os moldes americanos, forjadores do seu ensino no
Brasil. Essa contradição da formação versus prática foi tomando diferentes contornos ao
longo da história, onde se destacaram o conflito entre a formação para a assistência e a
demanda para a prática administrativa (que muitas vezes deixa a administração da
assistência para atender a uma burocracia de utilidade duvidosa).
Há que se ressaltar também a divisão social e técnica do trabalho que ocorre na
profissão, criando uma multiplicidade de agentes prestadores de assistência, com
qualificações variadas. Tal situação relaciona-se menos com critérios técnicos e mais
com as necessidades, particularmente no setor privado, de baratear o custo da
assistência de enfermagem, muitas vezes em detrimento de sua qualidade. Essa situação
contribui com a indefinição de papeis entre os membros da equipe de enfermagem pois,
ainda que pese a definição legal das atribuições de cada um de seus membros, na prática
isso não acontece. Para o enfermeiro, essa indefinição é ainda mais acentuada pelos
conflitos que advém de sua formação.
Algumas mudanças na política de saúde tais como a proposta de Atenção
Primária à Saúde e, mais tarde, no espaço do SUS, a proposta de mudanças nas formas
de organizar e prestar assistência à saúde, abrem a possibilidade de refletir sobre o papel
do enfermeiro no espaço da saúde coletiva, tendo a contribuição de algumas análises
críticas sobre a prática desse profissional, produzidas em meio a década de 80. Contudo,
a fraca mobilização da categoria, entre outras questões, não permite uma discussão
ampliada de sua prática e as possibilidades abertas no campo da política não significam
necessariamente mudanças na prática do enfermeiro.
1.2 –Metodologia
A opção metodológica foi por um Estudo de Caso, realizado no município de Niterói. A escolha
do local se fundamenta no fato da autora ter desenvolvido no mesmo ampla prática profissional, onde o
processo de municipalização tem incorporado modelos inovadores de atenção à saúde.
Temos clareza das limitações desse estudo quanto às suas possibilidades de
generalização. Entretanto vale ressaltar sua contribuição para a compreensão de uma
realidade específica.
29
Nossa análise considera, enquanto marco conceitual do trabalho, a história da
enfermagem no Brasil. A discussão empreendida foi elaborada a partir de um
levantamento bibliográfico que permitiu obter subsídios para a análise da prática do
enfermeiro e suas transformações – objeto deste trabalho. A história da política de saúde
do Município de Niterói foi reconstituída a partir de referencial bibliográfico, além de
documentos emitidos pela própria Secretaria Municipal de Saúde/ Fundação Municipal
de Saúde, que constam dos Anexo IV a IX deste trabalho. Para discussão relativa à
prática do enfermeiro desde a sua formação foi utilizada uma entrevista semi estruturada
com uma das primeiras enfermeiras da rede pública deste município, que se constituiu
em “informante qualificada”, contando-se ainda com relatos de outros enfermeiros que,
na discussão de sua prática cotidiana, resgatavam fatos históricos por eles vivenciados.
Além das entrevistas, contamos também com documentos emitidos pela Secretaria
Municipal de Saúde que também se incluem nos anexos IV a IX deste trabalho.
O tratamento destes temas tiveram o intuito de resgatar a história da enfermagem
até a atualidade, obtendo-se assim a base sobre a qual se processam as mudanças na
prática profissional que serão aqui estudadas com maior profundidade a partir das
transformações na política de saúde decorrentes da implantação do SUS no Município
de Niterói. Na história de enfermagem encontramos as raízes de muitos dos conflitos
que têm se expressado nos serviços sob a forma de uma prática profissional
inespecífica e um papel indefinido.
A partir dessa reconstituição histórica exploramos dois aspectos que permitem
uma melhor avaliação das mudanças que aconteceram na prática da enfermagem a partir
dos anos 90. São estes:
a - A inserção dos enfermeiros nas equipes de saúde
Este aspecto foi explorado através de entrevistas semi estruturadas com gerentes
de diferentes níveis do sistema.
Baseamo-nos nos seguintes tópicos para a condução da entrevista (Roteiro
consta do Anexo II):
• Participação dos enfermeiros nas equipes de saúde.
• Critérios para a alocação desse recurso humano nas redes básicas e
no Projeto Médico de Família.
• Atividades desenvolvidas pelos enfermeiros inseridos na rede básica
e no PMF.
30
• Qualificação exigida dos profissionais que atuam nas UMS e no
PMF.
• Ganhos salariais dos enfermeiros inseridos nas UMS e no PMF.
• Mudanças que podem ser identificadas na prática do enfermeiro a
partir das transformações do sistema local de saúde estudado.
A escolha de cada gerente a ser entrevistado levou em consideração
a diversidade dos serviços existentes (descrita no capitulo 2.2) e, no caso dos
supervisores, optou-se pela entrevista com a chefia de maior grau na hierarquia das
equipes de supervisão. Considerou-se também o tempo de trabalho destes gerentes na
rede (pelo menos 02 anos). Assim foram selecionados 7 entrevistados da seguinte
forma:
⇒ Dois gerentes de policlínica comunitária : A opção por duas policlínicas
foi feita em virtude de registrar as suas diferentes características – uma originalmente
um pequeno Posto de Saúde do Estado, recentemente elevado à categoria de
policlínica. E a outra, originalmente, um Centro de Saúde do Estado, de grande porte
e que, historicamente, inclui em seu cotidiano experiências inovadoras no campo das
práticas de saúde.
⇒ Um gerente de unidade básica – Considerando que tais unidades, a grosso,
modo, tem uma certa uniformidade, sorteou-se uma dentre as existentes.
⇒ Dois gerentes de supervisão de rede básica – A escolha de dois gerentes
deveu-se ao fato do pouco tempo (menos de 1 ano) no qual o chefe do Departamento
de Supervisão (maior grau da hierarquia) ocupava tal cargo. Optou-se então por
mantê-lo na relação de entrevistados face à sua experiência anterior no Projeto
Médico de Família, o que possibilita a visão de duas realidades distintas;
entrevistando-se também o gerente que ocupa a segunda posição na escala hierárquica
do departamento desde a criação do cargo.
⇒ Um gerente de supervisão do Projeto Médico de Família – Considerou-se
a existência de um único gerente, sendo esse o escolhido.
b - As percepções do enfermeiro acerca de sua prática profissional.
Esta questão foi explorada a partir de entrevistas semi-estruturadas com
enfermeiros inseridos em diferentes unidades da rede básica e do projeto médico de
família.
31
A condução da entrevista baseou-se nos seguintes tópicos:
• Percepção do profissional sobre a inserção do enfermeiro nos
serviços básicos de saúde, a partir de sua prática.
• Atividades que o profissional desenvolve.
• Relação entre a formação profissional e sua prática.
• Percepção das políticas de saúde e a influência desta em sua
prática profissional.
A escolha de cada enfermeiro a ser entrevistado levou em consideração as
diferentes possibilidades de inserção do enfermeiro nos serviços (módulos do PMF,
policlínicas ou unidades básicas), seu vínculo empregatício (estadual, municipal ou
federal) e seu tempo de trabalho no âmbito da rede municipal de saúde (pelo menos
cinco anos). O critério de tempo de trabalho não se adequa aos profissionais do PMF,
uma vez que algumas equipes deste projeto existem a menos de cinco anos.
Foram realizadas cinco entrevistas, assim distribuídas:
⇒ Dois enfermeiros de distintas equipes de supervisão do programa médico
de família, escolhidos aleatoriamente.
⇒ Dois enfermeiros de unidade básica de saúde, sendo um de vínculo federal
e um de vínculo municipal.
⇒ Um enfermeiro de policlínica comunitária de saúde, com vínculo estadual.
Coleta de dados
Foi realizada pelo próprio pesquisador, em entrevistas previamente agendadas
com os componentes da população acima descrita, e busca de documentos nos arquivos
da SMS/ FMS. A busca documental frustrou-se pela escassez de documentos nos
arquivos da instituição, podendo-se contar apenas com alguns documentos do arquivo
pessoal do pesquisador, que datam de período recente, ficando assim um vácuo de
informações dos primeiros períodos da secretaria de saúde.
Análise de dados
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A análise dos dados foi realizada com base nas entrevistas, utilizando-se também
alguns documentos, destacando o plano de cargos da SMS Niterói, que nos serviu de
base de apoio para a discussão das atividades próprias a esse profissional. Optamos pelo “tema” enquanto unidade de registro, por ser considerada a mais adequada para o
tratamento de documentos e entrevistas (Bardim, 1977:106). As temáticas que constituíram nossa área de
interesse foram destacadas do discurso do entrevistado, constituindo-se as cinco grandes categorias de
análise relacionadas a seguir:
1. Como o enfermeiro se insere nesse espaço – Seu papel.
2. Como o papel se expressa na prática – Seu fazer.
3. O profissional que se forja no serviço – Sua relação com a formação profissional.
4. As mudanças na política municipal de saúde e a prática do enfermeiro.
5. O que ainda há para discutir – A alocação do profissional na rede e seus salários.
Algumas subcategorias foram incluídas em meio à análise das categorias principais por estarem a
essas intimamente relacionadas, não merecendo tratamento em separado. Por exemplo, a satisfação do
profissional com seu trabalho foi abordada em conjunto com o fazer do enfermeiro; o ganho de
autonomia por esse profissional foi pensado em meio à discussão das mudanças que vem se processando
na prática profissional; abordando-se também em conjunto as questões referentes à alocação do
profissional nos serviços e a sua remuneração.
A análise buscou, em cada relato, identificar recorrência de questões de interesse, ou mesmo a
sua ausência no material analisado, além das contradições presentes em cada relato individual e entre
relatos diferentes. Foi estabelecida uma comparação, para cada categoria, entre a abordagem dos gerentes
e a abordagem dos enfermeiros das duas experiências – O Projeto Médico de Família e a Rede Básica de
Saúde.
Trechos das entrevistas utilizadas aparecem no decorrer do trabalho para ilustrar as discussões
desenvolvidas. Optou-se por preservar o anonimato dos entrevistados, identificando as entrevistas a partir
do cargo ou função desempenhada; utilizando-se essa forma de identificação para as citações parciais das
entrevistas que aparecem no texto. Não houve preocupação com a correção de vícios de linguagem,
porventura existentes na fala dos entrevistados.
CAPITULO II MUNICÍPIO DE NITERÓI E A POLÍTICA DE SAÚDE – UM POUCO DE SUA HISTÓRIA O Município de Niterói localiza-se na região metropolitana do Estado do Rio de
Janeiro, contando com aproximadamente 450.000 habitantes, se colocando entre os
cinco mais populosos do Estado. Tem sua economia centrada no setor terciário - o setor
de serviços, havendo referência a um “fraco desempenho econômico nos setores
produtivos, um superdimensionamento do terciário e a hipertrofia do setor público”
(PMN / Consultoria Especial de Ciência e Tecnologia, 1994:87)
Esta situação não se dá ao acaso, explica-se através da história, que identifica
nesse Município a locomotiva para o desenvolvimento do antigo Estado do Rio de
Janeiro e que vai perdendo a importância com a fusão entre Estado do Rio de Janeiro e
Estado da Guanabara.
A história de Niterói acompanha a história do Brasil colonial. Sua eleição para
capital da Província do Rio de Janeiro data do ano de 1835, sendo logo a seguir eleita a
categoria de cidade. (PMN / Consultoria Especial de Ciência e Tecnologia, 1994)
Sua principal função foi, desde então, administrativa, perdurando como capital
do Estado do Rio de Janeiro até o ano de 1975, quando se deu a fusão entre este e o
Estado da Guanabara, deslocando-se a capital do Estado recém criado para a cidade do
Rio de Janeiro.
Existe referência na literatura consultada a uma característica própria aos
municípios capitais estaduais, que também foi comum a Niterói. Essa característica
refere-se ao fato deste municípios encontrarem-se envolvidos em uma sobreposição de
poderes, onde o poder estadual sufoca e absorve parcelas do poder municipal que,
portanto, acaba atrofiado. (PMN / Consultoria Especial de Ciência e Tecnologia, 1994)
No caso de Niterói, o processo de fusão e a conseqüente perda do seu status de
capital determinaram então uma readequação da máquina pública municipal, para que
pudesse assumir as ações que lhe eram próprias. Como herança dos tempos de capital, a
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cidade guarda uma ampla rede de serviços de saúde de origem federal e estadual,
atualmente, em grande parte, municipalizados. (MOYSES, 1989)
A Consultoria Especial de Ciência e Tecnologia deste Município admite que
“...o setor de serviços, apresenta-se ainda hipertrofiado e ainda não
completamente refeito do abalo provocado com a perda do status de capital estadual a partir da fusão (...) que fez com que a cidade ficasse despojada de sua função político administrativa mais expressiva, por conseqüência da transferência de diversos órgãos da administração pública para a cidade do Rio de Janeiro, capital instalada do novo estado” (PMN / CONSULTORIA ESPECIAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO MUNICÍPIO DE NITERÓI, 1994:8)
No texto “NITERÓI, antes e depois da Fusão”, o Jornal “O FLUMINENSE”, de
20 de agosto de 1989, discute a importância da cidade de Niterói como prestadora de
serviços para a região norte fluminense e as conseqüências da fusão para a região. A
posição da cidade como polo econômico, social e cultural não só para a região norte
fluminense mas também para a região dos lagos e alguns municípios vizinhos, tais como
São Gonçalo e Itaboraí , foi construída e consolidada no tempo que a cidade ainda era
Capital do Estado e deixou para o Município, pós fusão, uma ampla rede de serviços de
cunho estadual e federal. Isto fez com que a cidade, mesmo após a fusão, continuasse a
receber a população de outros Municípios, buscando atendimento a suas demandas em
áreas tais como saúde e educação.
As políticas de saúde no âmbito do Município até então refletiam o modelo
dominante no país neste período, o qual foi descrito por VIANA (1995) como altamente
centralizado e privatizante, com a responsabilidade dividida entre duas instâncias de
nível federal – o Ministério da Saúde e o Ministério da Previdência Social; cabendo à
Secretaria Estadual de Saúde “o desenvolvimento de ações de saúde pública de tipo
higienista e atendimento primário, desenvolvido conjuntamente com órgãos
municipais”. (VIANA, 1995:5)
Considerada a sobreposição de poderes Municipal e Estadual, anteriormente
referida e uma política de saúde centralizada em nível federal, não é de se estranhar o
relato brincalhão de alguns profissionais de saúde que atuaram na secretaria durante
esse período. No mesmo estava assinalado que a Secretaria de Saúde era responsável
pela saúde dos mortos, uma vez que, a seu cargo, ficavam os dois cemitérios municipais
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(CUNHA et al., 1994; MOYSES, 1989) e estando as ações de saúde propriamente ditas
a cargo da Secretaria Estadual e da instância federal.
Com a saída da capital do Estado deste município, alguns rearranjos foram feitos
na estrutura municipal, que começava a criar uma rede de serviços básicos de saúde.
A eleição para prefeitura da cidade, não mais capital estadual, era então realizada
de forma direta. O prefeito eleito pertencia ao partido de oposição da época (MDB)
sendo indicado para a Secretaria de Saúde o Prof. Tomazzini, cuja gestão da Secretaria
Municipal de Saúde foi considerada, por muitos dos que a viveram, um marco para
políticas de saúde deste Município. O ano de 1977 marca então, o início das mudanças
que se processam na Secretaria Municipal de Saúde. (DIAS et al., 1992)
Sob a gestão do Prof. Tomazzini, foi definida uma política municipal de saúde
baseada na proposta de extensão de cobertura e valorização dos cuidados primários à
saúde, sofrendo influências de todo o movimento nesse sentido, já expresso na VI
Conferência Nacional de Saúde, que foi corroborado no ano seguinte com a realização
da Conferencia Internacional de Cuidados Primários realizada no ano de 1978 em Alma
Ata, na Rússia.
A atuação da Secretaria de Saúde se processa em conjunto com a Universidade
Federal Fluminense, num exercício de integração universidade / serviço.
Face à escassez de unidades básicas de saúde no Município são construídas tais
unidades em áreas estratégicas, considerando a necessidade de buscar integração com as
unidades estaduais e federais, a maioria de nível secundário e terciário, localizadas na
região central do município.
As modificações na SMS / Niterói aconteceram em confluência com inúmeros
fatores, tais como: as experiências bem sucedidas da integração docente – assistencial,
desenvolvidas pelo Município e pela Universidade (UFF); a proposta de aumento de
cobertura através dos cuidados primários de saúde, fruto da Conferência Internacional
de Cuidados Primários em Saúde, realizada em Alma Ata; além das ações do “Programa
Integrado de Saúde Materno Infantil” que, entre outros, contribuíram para uma
consolidação de uma proposta de trabalho expressa no plano de ação para a SMS no
período de 1977-80 (DIAS et al. 1992)
Tal plano,
“estabelecia em seu modelo de intervenção as seguintes
características: regionalização; hierarquização; aumento de cobertura; coordenação interinstitucional; financiamento multilateral;
37
relacionamento com o sistema informal; participação comunitária; uso de equipes de saúde; integralidade da atenção à saúde; reprodutividade.” (DIAS et al., 1992)
DIAS et al. (1992), caracterizam a gestão Tomazzini pela:
“quebra do monopólio do saber médico, num lado pela construção
de uma equipe multiprofissional (...) Por outro lado, criou-se a figura do agente de saúde pública, recrutado na comunidade, treinado pela equipe da SMS, e que era contratado pela prefeitura, com base em critérios definidos pela própria comunidade em discussões com a equipe de saúde.” (Dias et cols., 1992)
Esse trabalho com agentes comunitários de saúde foi, na época, amplamente
criticado pela associação médica local, que caracterizava esses agentes como “médicos
de proveta”.(CUNHA et al., 1994)
MOYSES (1989) relaciona a proposta desenvolvida em Niterói com a proposta
de extensão de cobertura via cuidados primários assumidos na VI Conferência Nacional
de Saúde realizada no ano de 1977. Para a implantação de tal proposta a autora refere-se
à necessidade de obtenção de recursos, que foram conseguidos através do Fundo de
Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS).
A construção das unidades municipais de saúde determinaram para Niterói já na
década de 80,
“...um setor público de saúde cuja capacidade instalada está
acima da média nacional, qualitativa e quantitativamente, com uma rede assistencial abrangendo do 1º ao 3º níveis de complexidade de atenção à saúde e um hospital universitário de excelência. Os serviços são prestados pela Universidade Federal Fluminense, pelo INAMPS, pelo Estado e pela Prefeitura.(MOYSES,1989:49)
Ainda que o plano de ação da Secretaria de Municipal de Saúde tivesse como
propostas a participação da população e a integração interinstitucional. MOYSES
(1989) assinala que isso não acontecia. Uma vez que o complexo de serviços, tal qual
o restante do país, operava de forma desarticulada e a população “estava inclinada a
entender e se mover dentro do caos” .(MOYSES,1989:49)
Se considerada frente ao contexto nacional, o valor da experiência realizada em
Niterói não pode ser negada, uma vez que, de certa forma, caminhou na contramão da
política nacional de saúde vigente, mantendo certa singularidade. Pois, apesar da grande
38
insatisfação popular induzindo a criação, ainda dentro do modelo assistencial em voga,
de propostas alternativas de atenção à saúde, utilizando a estrutura da Previdência Social
para atenuar essa insatisfação, as propostas daí geradas, como por exemplo o Programa
de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), não chegaram a constituir-
se em uma mudança no modelo em questão.
Na experiência iniciada em Niterói, o interesse no coletivo e a utilização de
tecnologia simplificada se contrapôs às principais características da política nacional,
que primava pela especialização e o cunho individual da assistência.
Tal proposta evoluiu com avanços até o ano de 1980. A partir desse período
houve um retrocesso no obtido até então, em função da saída do secretário de saúde
(que ocorreu em virtude das inúmeras pressões contrárias ao trabalho que vinha se
desenvolvendo, e dos novos interesses políticos do prefeito). No período que se iniciou
a partir daí, ocorreu uma desestruturação do que havia sido feito anteriormente. As
ações de saúde assumiriam um caráter eminentemente curativo, sem valorização das
ações básicas e do acompanhamento do cliente ( DIAS et al., 1992)
Em nível nacional, o início da década de 80 é marcado pelo auge da crise
financeira da Previdência Social, além da intensificação das criticas ao modelo
assistencial. O debate advindo daí, se expressa na VII Conferência Nacional de Saúde
que tinha como tema “Serviços Básicos de Saúde”, promovendo a discussão sobre a
expansão da cobertura de ações básicas de saúde além da descentralização do sistema.
(NORONHA & LEUCOVITZ, 1994.)
Nesse contexto, a experiência desenvolvida em Niterói até o início dos anos 80 é
citada por NORONHA & LEUCOVITZ, (1994) pela sua inovação, no sentido de
experimentar modelos organizacionais fundamentados na idéia de responsabilização do
Estado pela saúde da população.
Esses mesmos autores assinalam a contraditória tendência de expansão de
cobertura versus a marcante redução de recursos destinados à assistência médica no
início da década de 80, determinando a formulação, pelo governo, de alternativas para a
crise financeira que assolava a previdência . As propostas formuladas são, em grande
grau, penalizadoras dos beneficiários da previdência ou contrárias aos interesses de
poderosos. Um outro dado que deve ser ressaltado é a proximidade das eleições de 1982
que geravam rejeição a tais propostas.
Das propostas apresentadas, a que obteve maior grau de consenso foi a do
CONASP - Conselho Nacional de Administração e Saúde Previdenciária, “que só se
39
tornou possível pela composição interinstitucional do Conselho, com representação de
diversas frações da sociedade civil que se opunham ao modelo de organização vigente
no sistema de saúde brasileiro...” (NORONHA & LEUCOVITZ, 1994) Tal plano
propunha a redução de gastos da Seguridade Social, utilizando a rede pública de saúde,
com ênfase no planejamento local, além da construção de um sistema hierarquizado e
articulado entre todos os seus níveis. Um dos principais projetos deste plano foi
denominado Programa das Ações Integradas de Saúde (PAIS), que integrava , através
de convênios interinstitucionais, serviços de diferentes origens, com vistas a um novo
modelo de organização e prestação de serviços de saúde. (NOVAES, 1990)
MOYSES (1989) vê o CONASP e seu “Plano de Reorientação da Assistência a
Saúde no âmbito da Previdência Social” como um aliado fundamental para a retomada
da proposta de atenção à saúde iniciada no ano de 77 e ceifada em 1980 com a
mudanças dos interesses políticos do prefeito.
Para entender tal afirmativa é importante resgatar um pouco da história do
movimento que ficou conhecido como “Projeto Niterói”.
CUNHA et al.(1994) apresentaram o projeto Niterói como resistência do Grupo
alijado da Secretaria, que conformava grupos de trabalho com técnicos do INAMPS, da
SES e da UFF, trazendo a reboque a própria Secretaria Municipal de Saúde. Esse grupo
contava com o apoio dos níveis federal e estadual, sintonizava suas propostas com a das
ações integradas de saúde, contando com um grande empenho de seus participantes.
Em documento da Secretaria Executiva do Projeto, este é definido como
“um modo planejado de prestar serviços de saúde à população de
Niterói, onde através de um trabalho integrado, regionalizado e hierarquizado das Instituições Públicas de Saúde de Niterói (...) se procura garantir a qualidade, presteza e eficiência no atendimento à população.” (PROJETO NITERÓI, mimeo, s.d.)
MOYSES (1989) descreve o nascimento do Projeto a partir de uma demanda
inicial da Universidade Federal Fluminense pelo uso de instalações físicas pertencentes
ao INAMPS. Tal demanda levou a uma articulação gradativa entre instituições, tais
como a própria universidade, o INAMPS e o Instituto de Medicina Social da UERJ. O
que culminou em uma reunião para discutir a organização dos serviços de saúde em
áreas metropolitanas. Diversas conclusões foram tiradas então. Entre elas, a opinião de
que a área de Niterói/ São Gonçalo seria ideal para a experimentação de uma proposta
40
alternativa de modelo para a organização dos serviços e que este se desenvolveria com o
respaldo do CONASP.
MOYSES (1989) assinala a portaria do INAMPS 697/82 como responsável pela
formalização do projeto, criando uma comissão consultiva que reunia profissionais do
INAMPS, da Prefeitura de Niterói, IPEA, FGV, OPAS, UERJ e Ministério da Saúde.
Tal comissão definiu a necessidade de uma plano de ação para Niterói, envolvendo
questões tais como delimitação de área de abrangência e população, hierarquização das
unidades prestadoras de serviço, integração docente assistência, participação da
população, entre outras.
O Projeto se organizava em torno de uma Comissão Executiva (CEL) e grupos
de trabalho(GT), onde MOYSES (1989) indica a presença mais marcante da Secretaria
Municipal de Saúde e do INAMPS. Uma Secretaria Executiva foi também criada, com
vistas a permitir a integração dos diferentes grupos de trabalho com a CEL,
acompanhando também o planejamento e implantação do trabalho.
MOYSES (1989) identifica no Projeto Niterói três momentos distintos, assim
caracterizados:
“...o primeiro, pela efervescência produtiva, onde toda a estrutura e a dinâmica do sistema prestador de serviços de saúde foram redefinidas; o segundo, pela tentativa de sedimentação das relações interinstitucionais ao nível de seus representantes, com vistas ao fortalecimento da Comissão Executiva Local e acompanhado por um processo de quase paralisação dos Grupos de Trabalho; um terceiro, em vigor, onde se colocam os limites do próprio processo no sentido do avanço da proposta sem que haja mudança radical na forma de condução da gerência e execução do Projeto Niterói no âmbito das estruturas internas administrativas e do poder das instituições envolvidas”(MOYSES, 1989:57)
Na visão dessa autora, o Projeto Niterói fez com que esse Município se
transformasse em
“...um laboratório de uma experiência que se expandiu para o
restante do país, assumindo outras características mas mantendo o caráter geral da proposta iniciada em Niterói: integração, hierarquização e regionalização das ações de saúde através das Ações Integradas de Saúde (AIS).” (MOYSES, 1989:62)
Para NORONHA & LEUCOVITIZ (1994), a estratégia das AIS funcionou, no
plano nacional, como forma de implementação de um programa social com objetivos
41
de proporcionar um acesso universal com a integralidade das ações superando a
dicotomia prevenção x cura .
Nesse processo se deu significativa expansão de serviços oferecidos à
população, a partir da assinatura de acordos entre inúmeros estados e municípios.
As AIS contribuíram de forma marcante na expansão da capacidade instalada,
particularmente do âmbito dos municípios, contribuindo também para a articulação
institucional. Porém, não foram capazes de combater o paralelismo de ações, a
multiplicidade gerencial e a centralização do poder decisório no âmbito federal.
O passo seguinte, no sentido da municipalização foi o SUDS que, segundo
VIANA (1995) constituiu um novo passo no sentido da descentralização pró-setor
público, representando uma proposta de consenso entre Ministério da Saúde, Ministério
da Previdência e Movimento Sanitário, baseada nos seguintes pontos:
• O INAMPS deve perder seu papel de prestador e continuar como
financiador do sistema de saúde; • A prestação passa para estados e municípios; • O planejamento passa a ser descentralizado; • Os princípios da integração, regionalização, hierarquização e
controle social são assumidos como prioritários” (VIANA, 1995:11)
O período compreendidoa entre 1983 a 1987, onde se situam as AIS e o SUDS, é
caracterizado por VIANA (1995) como um período de transição no modelo de
intervenção do Estado na área de saúde; entre um modelo centralizado e um modelo
pós- constitucional descentralizado.
As modificações no modelo de organização do sistema de saúde brasileiro são
discutidas por GERSCHMAN (1995) que avalia o processo de reforma sanitária frente à
democratização da sociedade brasileira, discutindo o avanço alcançado com relação aos
pressupostos constitucionais estabelecidos para o setor saúde, inscritos na Carta
Constitucional de 1988. Em sua avaliação, a implantação do sistema de saúde ali
desenhado tem sido difícil, destacando que “...o processo de legislação do setor não foi
acompanhado pela efetivação da política...” (GERSCHMAN, 1995:137). Ao discutir as
dificuldades existentes para o desdobramento do SUS do plano legal para implantação
efetiva, Gerschman assinala os confrontos políticos entre o governo federal e as forças
de oposição, ocorridos no início desta década. E ainda identifica, a partir desse
confronto, o estímulo aos municípios para que estes assumissem a implantação da
42
política de saúde, face às dificuldades sentidas no plano federal. Com isso, a autora
acredita que
“...o sistema passou a depender inteiramente da definição política
dos prefeitos com relação a reforma sanitária e a disponibilidade de recursos das prefeituras a serem aplicados no sistema local de saúde.” (GERSCHMAN, 1995:140-41).
Dentro dessa perspectiva, Niterói pode ser citado como um dos Municípios onde
existiu uma opção por implantar o SUS. E projeto tomou dianteira a partir da
implantação das Ações Integradas de Saúde, consolidando essa posição quando, no ano
de 1989, o então Secretario Executivo do Projeto Niterói foi designado Secretário
Municipal de Saúde. E, daí em diante, a Secretaria de Saúde tomou as rédeas do
processo.
Nesse período foram criadas, no município de Niterói, as bases para a
municipalização dos serviços de saúde. No documento “MUNICIPALIZAÇÀO:
RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA; CONTRIBUIÇÃO AO DEBATE”, O’Dyer,
considera que
“A experiência que vem sendo desenvolvida no Município de Niterói
desde 1982, inicialmente com a criação do Projeto Niterói e evolutivamente com os avanços obtidos com a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde, ensejaram, juntamente com as estratégias de integração das Instituições e Serviços de Saúde, a formulação de modelos gerencial e assistencial que já permitem a definição objetiva de um novo modelo de organização do Sistema de Saúde, permeado pela lógica da participação comunitária com direção colegiada e interistitucional” (O’DYER, mimeo.s.d)
Algumas das estratégias assinaladas por O’DYER, então Secretário de Saúde,
para a implantação desse novo modelo de organização do Sistema de Saúde, já eram
encontradas na Síntese do Documento “Estudo Técnico Para a Implantação do SUDS/
Niterói”, elaborado pelo Projeto Niterói no ano de 1988. Entre outras questões, esse
projeto abarcava a criação da Fundação Municipal de Saúde, que tinha como propósito
suprir a necessidade de um órgão gestor que desse autonomia e agilidade ao sistema e
força política frente a outras secretarias (CUNHA et al., 1994)
A Fundação Municipal de Saúde (FMS) foi então criada no ano de 1990 em
meio à construção do SUS, sendo apontada por O’ Dyer, na época Secretário Municipal
43
de Saúde, como forma de consolidação do Sistema Único de Saúde no Município; tendo
como “diretrizes organizacionais e estruturais (...) aquelas que atendem aos
compromissos políticos que perpassam a decisão de implantar o SUS” (O’ DYER,
mimeo. s.d.)
Dentro do modelo organizacional adotado pela FMS, estava a necessidade de
descentralização gerencial, que se expressou pela criação dos distritos sanitários.
Foram criados três Distritos a saber:
• Distrito Sanitário Norte – Compreendia a região norte da cidade. Sua
rede de serviços abarcava unidades de 1º, 2º e 3º níveis de atendimento, de origens
municipal, estadual e federal
• Distrito Sanitário Centro Sul – Compreendia a região central e zona sul
da cidade. Em sua área de abrangência se localizavam a maioria das unidades de 2º
e 3º níveis de assistência existentes no município, de origem federal e estadual.
Existiam poucas unidades de primeiro nível.
• Distrito Sanitário Leste – Compreendia a área de Pendotiba e Região
Oceânica. Sua rede era composta basicamente por unidades de 1º nível e serviços de
pronto atendimento, todos de origem municipal.
Os critérios da divisão do município em distritos sanitários foram explicitados
em termos de características sociais, demográficas, geográficas e epidemiológicas,
considerando-se nas discussões também a acessibilidade aos serviços.
No período de sua existência os distritos sofreram inúmeros questionamentos
que variavam desde os critérios considerados para sua delimitação enquanto espaço
geográfico até sua finalidade política e administrativa.
Sem dispor de uma análise mais cuidadosa acerca dos processos de
distritalização em Niterói, uma vez que se percebe que as justificativas para sua
manutenção ou extinção foram fortemente permeadas pela disputa de poder entre os
distritos e as superintendências que compunham a estrutura hierárquica da Fundação,
constatamos a extinção dos distritos sanitários no ano de 1995, ainda que mantivessem
defensores de sua existência. Independente de opiniões favoráveis ou contrárias à
manutenção dos distritos, acreditamos ser possível afirmar que os mesmos deram sua
contribuição, no sentido de possibilitar espaços concretos de experimentação de novas
formar de gerir e prestar assistência a saúde.
Findos os Distritos Sanitários, a Fundação Municipal de Saúde se reorganiza. As
unidades de saúde se dividem entre a Superintendência de Ações Ambulatoriais e
44
Coletivas e a Superintendência de Ações hospitalares, que passam a coordenar as ações
de saúde desenvolvidas no âmbito municipal.
A extinção dos distritos sanitários não diminui, contudo, o interesse no
Município de Niterói. E as mudanças em seu sistema de saúde continuaram a ocorrer.
O Projeto Médico de Família, foi um exemplo, pois tornou-se objeto de interesse de
pesquisa, por tratar-se de uma experiência inovadora no âmbito das políticas municipais
de saúde.
Em tese de mestrado recente, SENNA (1995) examina o projeto, aclarando um
pouco mais nossa compreensão sobre ele.
A sua implementação teve início no Município de Niterói em setembro de 1992,
inspirado no modelo de medicina familiar de Cuba, com o objetivo de atingir
comunidades de baixa renda. A atenção, desenvolvida por um médico e uma auxiliar de
enfermagem a famílias cadastradas, dentro de uma determinada base territorial, assinala
como objetivo a garantia da atenção integral, continuada e setorizada aos indivíduos e
suas famílias, visando a promoção e prevenção em saúde.
O programa foi estruturado com base em uma equipe coordenadora municipal,
composta pelo Secretário Municipal de Saúde, pela Superintendente de Ações
Integradas de Saúde e pelo assessor cubano. Como co-gestor junto a Prefeitura, o
programa conta com as Associações de Moradores , cabendo a estas a “contratação de
recursos humanos para atuação local, com repasse de verbas do município para este
fim”(SENNA, 1995:.83). As associações podem indicar os componentes das equipes,
que serão submetidos à avaliação pela coordenação municipal. Além disso, as
associações tem participação na gestão administrativa e na avaliação de desempenho
das equipes.
SENNA (1995) assinala que
“A perspectiva da burocracia municipal em torno do PMF expressa
nos movimentos da coordenação é a de que o Programa configura a implantação de um novo padrão de assistência à saúde no município. A novidade residiria no fato do PMF ser inspirado, em tese, nas noções de integralidade, hierarquização territorial, adscrição de clientela e participação popular.”( SENNA, 1995:.98)
A autora abre uma discussão refletindo algumas tensões no PMF, tais como as
existentes entre os objetivos do Projeto (voltados a medicina preventiva) e as demandas
da população (por um pronto atendimento); a política de alianças que envolve as
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associações de moradores e a relação destas com a burocracia municipal, privilegiando
determinadas comunidades em detrimento de outras; o paralelismo do Projeto face a
rede municipal de saúde, dificultando integração e limitando o ‘modelo’ no que se
refere à sua pretensão de integralizar a ação.
Dessa forma SENNA (1995) coloca as limitações do Projeto, ao ser identificado
como modelo assistencial, destacando como fator de grande contribuição para tais
limitações a exclusão de setores fundamentais na formulação e execução de políticas no
âmbito do Município. Contudo, tais limitações não invalidam o Projeto que marcou e
continua marcando a implementação do SUS no Município.
Essa breve retrospectiva da história de Niterói nos mostra que este Município
tem sido campo fértil para a experimentação e construção de propostas alternativas no
campo das políticas de saúde. As mudanças ocorridas no plano nacional influenciaram
e, de certa forma, sofreram influências das experiências desenvolvidas nesse espaço. O
o que pode ser exemplificado não só pelas Ações Integradas de saúde, bem como pelo
próprio Projeto Médico de Família que, ainda que bem diferente do Programa Saúde da
Família, proposto pelo Ministério da Saúde, contribuiu para a formulação deste último.
Sob o ponto de vista prático uma das questões colocadas na atualidade para esse
município é referente à integração do Projeto Médico de Família ao restante da rede de
serviços de saúde. Formando assim um processo de troca que permita dispor das
contribuições e corrigir as imperfeições do que foi construído até então, traduzindo os
avanços que se dão no discurso dos gerentes do sistema em um serviço de melhor
qualidade para a população.
Na caracterização da rede de serviços de Niterói, que apresentamos a seguir, é
possível vislumbrar (conferir no anexo IV) a fórmula proposta para a integração
gradativa do PMF à rede básica, através das policlínicas comunitárias. Porém, ainda há
muito que ser realizado nesse sentido.
2.2 – Caracterização da atual rede de serviços de Niterói A rede de serviços de Niterói é estruturada em torno de duas superintendências
a SUAEH – Superintendência de Ações Emergências e Hospitalares e a SUAAC –
Superintendência de Ações Ambulatoriais e Coletivas.
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Como nosso foco de interesse é voltado para as ações de saúde coletiva,
interessa-nos descrever aqui os serviços ligados a SUAAC. Tais serviços são
constituídos pelas unidades ambulatoriais da Fundação Municipal de Saúde e pelos
módulos do Projeto Médico de Família, que contam com os departamentos e
coordenações que lhes garantem supervisão e apoio.
Existem basicamente três tipos de unidades ambulatoriais ligadas a essa
superintendência: as policlínicas especializadas, as policlínicas comunitárias de saúde e
as unidades básicas de saúde.
Considerando a lógica de hierarquização de serviços de saúde, que admite três
níveis distintos de atenção, as unidades básicas de saúde, em conjunto com as
policlínicas comunitárias, compõe o primeiro nível de atenção à saúde. Passamos aqui a
denominá-las “rede básica”.
Além dos serviços relacionados acima, está ligado à SUAAC o Projeto Médico
de Família, que se constitui uma experiência inovadora no âmbito do sistema estudado.
Enquanto serviço, o projeto está organizado em módulos de atendimento, que também
integram o primeiro nível de atenção. Contudo sua estrutura organizacional é paralela à
rede básica de saúde, dispondo de mecanismos de gerência e supervisão diferentes
desta. Constituindo-se em uma proposta de modelo de atenção distinto do que
representa a rede básica.
A proposta de articulação entre os dois modelos de atenção se daria no espaço
das policlínicas comunitárias, onde o programa e rede básica se integrariam e teriam
possibilidade de acessar a rede do segundo nível de atenção.
Nossa pesquisa envolveu as duas estruturas: o Programa Médico de Família e a
rede básica, incluindo seus elementos de supervisão.
Os serviços da rede básica são assim estruturados:
• Unidades básicas de Saúde (UBS)– Dispõem de médicos nas
especialidades básicas (pediatria, clinica geral e gineco-obstetrícia), além de
odontólogo, assistente social, enfermeiro e equipe de nível médio. Sua proposta de
atenção se relaciona ao oferecimento de atendimento básico (consultas nas clínicas
básicas, ações educação para saúde, vacinação)
• Policlínicas Comunitárias (PCL) - Com objetivo de oferecer suporte
para as unidades básicas, possuem um maior grau de complexidade que estas, no
entanto, não chegam com isso, a constituirem-se em um segundo nível de atenção.
Dispõem dos mesmos serviços das unidades básicas, as quais se agregam algumas
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especialidades tais como cardiologia, cirurgia ambulatorial de pequeno porte, e
outras, de acordo com as necessidades de saúde da população da área na qual se
inserem.
A rede básica sofre supervisão pela equipe do DESUM - Departamento de
Supervisão Técnico Metodológico, que conta com uma chefia de departamento e uma
divisão, relacionada de maneira direta com os serviços.
O Programa Médico de Família é estruturado da seguinte forma: Um
coordenador de programa (ligado à Superintendência de Ações Coletivas como
acessoria, sem linha de poder) ao qual estão vinculadas três equipes de supervisão. Tais
equipes possuem um coordenador e são compostas por médicos das especialidades
básicas (pediatra, clínico geral e gineco-obstetra) além de um profissional da área de
saúde mental, um sanitarista, um assistente social e um enfermeiro. A cada equipe de
supervisão são vinculados em torno de 4 módulos que abrigam as duplas de auxiliar de
enfermagem e médico, que são os responsáveis pela atenção direta à clientela.
O total de serviços vinculados a SUAAC se distribui da seguinte forma:
⇒ 13 unidades básicas
⇒ 5 Policlínicas comunitárias
⇒ 3 Policlínicas especializadas.
⇒ 11 Módulos do Projeto Médico de Família
A distribuição dos serviços acima relacionados, bem como a relação de
referência entre os serviços pode ser melhor visualizada no mapa em anexo. (Anexo IV)
2.3 - Antecedentes históricos da prática do enfermeiro na SMS/ Niterói:
Para reconstituir a história da prática do enfermeiro na rede básica de saúde de
Niterói, procuramos obter subsídios em documentos e relatos de participantes ativos
dessa história. Dada a especificidade do tema tratado, que só começou a merecer
atenção nas duas ultimas décadas, o material produzido sobre o assunto na rede de
Niterói é escasso. Tal fato, somado à falta de preservação da memória institucional, nos
levou a trabalhar principalmente com o relato de uma das integrantes da primeira dupla
de enfermeiras a ingressar na rede de Niterói.
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Com isso, reconhecemos as limitações do relato aqui desenvolvido. No entanto,
entendemos que o que foi possível obter garante os subsídios necessários à discussão do
eixo central desse trabalho, que são as transformações na prática do enfermeiro a partir
do processo de municipalização das ações de saúde.
A história da prática do enfermeiro na Secretaria Municipal de Saúde de Niterói
teve seu início em meio à década de 70 correspondendo, no contexto nacional, à
implantação da estratégia de atenção primária à saúde. Como poderemos notar, esta
história não é desligada da historia da enfermagem brasileira, trazendo consigo todos os
conflitos que lhe são presentes, tais como a formação versus necessidades do serviços;
prática administrativa versus assistência; administração da enfermagem versus
administração dos serviços. Entretanto, embora relacionada ao desenvolvimento da
profissão no contexto nacional, tal prática tem sua especificidade delimitada pela
construção da política local de saúde em um espaço singular.
Como ponto de partida dessa história, convém lembrar que a Secretaria
Municipal de Saúde de Niterói tem tido como linha de atuação a partir de sua criação,
no ano de 1977, a atenção primária à saúde.
Assim, encontramos a inclusão dos enfermeiros, na Secretaria Municipal de
Saúde associada a essa proposta política. Sua inserção, nesse contexto, não contempla a
assistência à clientela. O seu papel principal era a capacitação de mão de obra para atuar
no programa de atenção primária - os agentes de saúde. Estes, juntamente com os
médicos, constituíam a equipe de saúde que tinha um contato efetivo com a população,
como pode ser visto no relato abaixo. Após a capacitação inicial dos agentes de saúde,
os enfermeiros tornavam-se responsáveis por sua supervisão.
“Quando a secretaria começou, ela começou com uma
enfermeira(...) era um programa de atenção primária à saúde (...) se pensava que para tocar um posto de saúde, bastavam o agentes de saúde” .
(Informante H)
O postos de saúde tinham :
“ ... a princípio, um generalista, de preferência o chefe da unidade; um clínico; um obstetra; um ginecologista e um pediatra, e uma enfermeira para a supervisão. A gente não tinha enfermeira em todos os postos” (Informante H)
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Conforme o relato acima, percebe-se claramente que na organização das equipes
de saúde situavam-se os médicos e os agentes de saúde, expressando bem a composição
da força de trabalho nessa área. A sua constituição abriga uma polaridade que contém a
especialização profissional evidenciada na figura do médico, e a total falta de formação
representada pela figura dos atendentes e similares (MEDICI et al., 1992).
Cabe assinalar que no ingresso dos profissionais de nível superior na rede
municipal de saúde, neste espícifico momento histórico, não se percebia a discriminação
salarial que é comum observar entre médicos e demais profissionais.
Uma qualificação era exigida a todos: a formação em saúde pública. Com isso,
cada membro da equipe tinha o mesmo salarial e a mesma jornada de trabalho, como
podemos ver no relato abaixo.
“...porque na secretaria todo mundo entrava como sanitarista e
para que você fosse admitido, você tinha de ter o curso, então era um salário único e uma carga horária única de 8 horas diárias, independente da profissão”(Informante H)
O fim da proposta de atenção primária no âmbito do Município, já na década de
80, também significou o fim dos critérios técnicos para ingresso na rede, prevalecendo o
clientelismo, conforme expressa a fala abaixo.
“...Era a equipe das unidades básicas, né. E depois, com esse negócio de cabide de empregos, aí entrou nutricionista, fono, fisioterapeuta, e não se sabia onde enfiar essa gente. Mas a principio era um generalista, de preferência o chefe da unidade, um clinico, um obstetra, um ginecologista e um pediatra, e uma enfermeira para a supervisão”(Informante H)
Para os enfermeiros, considerando o contexto nacional, a década de 80
representou o início de uma reflexão mais crítica sobre seu papel profissional no âmbito
dos serviços de saúde. Não percebemos com muita clareza, nos relatos analisados, uma
influência desse movimento mais amplo na prática dos enfermeiros na secretaria
municipal de saúde. Contudo, houve um relato a respeito de uma maior absorção de
enfermeiros na rede básica, indicando a presença de um enfermeiro por unidade de
saúde, criando-se também uma coordenação de enfermagem no nível central da
secretaria. Isso pode ser visto abaixo :
50
“A gente não tinha enfermeira em todos os postos. Depois chega a fulana, que aí eu ficava com quatro unidades de saúde e ela com quatro e fazia a supervisão duas vezes na semana, com os agentes de saúde, com vacina, com tudo isso. Tinha muito mais entrosamento do que agora e depois, quando foi(...) viu-se a necessidade, o conselho começou a entender que tinha que ter uma enfermeira em cada unidade, então criou-se uma coordenação de enfermagem, onde ficava a enfermeira no nível central e as outras nas unidades e se fazia uma reunião com as enfermeiras mensal, para saber como é que ia unidade, quais as dificuldades de uma, que não era a de outra”.(Informante H)
Quando a entrevistada menciona a exigência do Conselho profissional de
enfermagem em garantir a presença de enfermeiros em todas as unidades, buscamos na
legislação profissional leis, normas ou resoluções que indicassem a mesma. Na Lei de
n.º 775/49 o artigo 21 que é dito o seguinte:
“As instituições hospitalares, públicas ou privadas, decorridos
sete anos após a publicação desta Lei, não poderão contratar, para a direção de seus serviços de enfermagem, senão enfermeiros diplomados.”(LEI 775/49, publicada no D.O de 13 de agosto de 1949)
Embora o referido artigo não trate da direção de enfermagem em serviços de
saúde pública, no texto da Lei 2604/55, que trata do exercício da enfermagem
profissional, encontramos o seguinte em seu artigo 3º :
“São atribuições do enfermeiro, além do exercício de
enfermagem: 1º - direção dos serviços de enfermagem nos
estabelecimentos hospitalares e de saúde pública, de acordo com o art. 21 da Lei n.º. 775, de 6 de agosto de 1949;” (LEI 2.604/ 49, publicada no D.O de 21 DE SETEMBRO DE 1955)
Percebe-se que desde o ano de 1955 já se definia como responsabilidade do
enfermeiro a direção dos serviços de enfermagem. Apesar deste fato, é somente em
1988 que encontramos normas para definição de responsabilidade técnica de
enfermeiros que ocupassem chefias de serviço de enfermagem. O que possibilitou aos
mesmos a chefia de apenas um serviço, tornando então obrigatória a presença de um
enfermeiro em cada unidade de saúde.
Considerando que temos pouca clareza a respeito da real exigência do Conselho
de Enfermagem da presença de um enfermeiro por unidade de saúde, uma vez que a
legislação não é clara sobre esse assunto, e o discurso da entrevistada é hesitante,
51
poderíamos supor que o incremento do quadro de enfermeiros na rede básica de Niterói
se deu, na década de 80, pela modificação do perfil das unidades de saúde. Estas, ao
centrarem-se cada vez mais no atendimento médico, criaram maior demanda de ações
de enfermagem, sugerindo a presença de enfermeiros como organizador, não só do
processo de trabalho da enfermagem bem como do restante do trabalho da unidade. O
que é delineado no relato abaixo:
“... Era uma valorização muito maior, eu acho né, eu acredito
assim; porque avançou, claro, algumas coisas avançaram, agora outras eu acho que ficou pelo caminho, principalmente na parte com relação aos enfermeiros, vamos dizer assim... que a gente tinha, a maioria dos enfermeiros, tinha uma gratificação por assumir, entre aspas, digamos assim, uma chefia, uma responsabilidade que você tinha dentro da unidade, que muitas vezes você assumia uma sub-chefia, que naquela época não era direção, era chefia de unidade e você dava um suporte, lógico, muito grande para as chefias.”(ENF. UBS I)
Dessa forma, apesar de não ser possível definir os motivos que determinaram a
inclusão de novos enfermeiros na rede, é possível compreender um pouco do papel que
estes desempenhavam, ao se situarem como agentes de organização das unidades de
saúde e não apenas do serviço de enfermagem. Mais que a relação com os agentes de
saúde e a comunidade, o profissional toma aqui o lugar de administrador da casa, uma
governanta
É importante ressaltar, na fala acima transcrita, a referência à existência de
cargos de chefia ocupados pelos enfermeiros, percebidos por esses profissionais como
instrumentos de valorização de seu papel. Em virtude da impossibilidade de obter o
organograma da Secretaria de Saúde daquele período, não foi possível identificar qual
era o significado desses cargos na linha de poder da Secretaria.
Há referência, na fala dos entrevistados, a existência de uma Coordenação de
enfermagem, que era responsável pela integração dos profissionais existentes na rede
básica de saúde. Não se identifica seu lugar na linha de hierarquia da Secretaria de
Saúde, entretanto percebe-se que essa coordenação garantia uma forte integração entre
o serviço de enfermagem das unidades, servindo também de referência técnica para as
ações desenvolvidas nos serviços. O fim dessa coordenação é percebido como uma
perda que vem com o processo de municipalização. Isto pode ser percebido no relato
abaixo:
52
“...tinha uma coordenação de enfermagem onde o enfermeiro era
responsável por essa coordenação, nós tínhamos reuniões periódicas, as ações eram de um modo geral, eram uniformes, todo mundo falava uma mesma linguagem. Lógico que a gente tinha o quê, eram 10, 8, 10 unidades naquela época. Hoje nós somos uma infinidade, né. Com o sistema que foi implantado, o SUS, agora você englobou quem é Estado, agora ficou tudo uma esfera só e, eu acho que houve essa perda nesse sentido, que hoje você está assim, dentro das unidades você é muito responsável por programas. Eu sou responsável pelo programa materno infantil, a outra é da mulher, a outra está com a vigilância, e fica assim, coisas estanques, sem que lá em cima, a nível central, haja uma coordenação de enfermagem, você está solto.”(ENF. UBS I).
Nesse processo de absorção de novos profissionais pela Secretaria de Saúde é
importante destacar as modificações nas exigências de formação. Se, no início da
secretaria , todos os profissionais, inclusive enfermeiros, eram contratados como
sanitaristas, exigindo-se para tal o curso na área de saúde pública, tendo também cargas
horárias e salários semelhantes, com o passar do tempo a inclusão de novos
profissionais começou a se fazer de maneira diferenciada. A demanda passa então a ser
pela habilitação em saúde pública e não mais pelo título de sanitarista, obtido pela
especialização. Alguns profissionais são contratados como enfermeiros e ainda há
aqueles que ingressam em desvio de função. Isto é, profissionais com curso superior de
enfermagem são contratados pela secretaria como agentes de saúde, exercendo função
de enfermeiro. Os desvios de função no interior da secretaria foram motivo de grande
mobilização dos funcionários, só sendo sanados após a criação da Fundação Municipal
de Saúde, já na década de 90.
De certa forma, podemos traçar um paralelo às mudanças na política local de
saúde. Já começava a se desfazer a proposta de cuidados primários de saúde e o
enfermeiro passava, paulatinamente, a se integrar nessa estrutura cada vez mais
medicalizada, assumindo gradativamente a “organização da unidade”. Entretanto, esse
papel de gerente dos serviços é desempenhado tal qual o de uma “eminência parda”,
uma vez que não se relaciona a ocupação cargos de chave na estrutura hierárquica da
secretaria, como vem acontecendo mais recentemente
Uma mudança importante com relação à enfermagem como um todo, e ao
enfermeiro em particular, é a publicação, no ano de 1986, da lei n.º. 7.498/86. E,
posteriormente, o Decreto n.º. 94.406/87, que vem substituir a legislação de exercício
profissional vigente.
53
A partir de sua publicação, as atividades de enfermagem desenvolvidas por
técnico ou auxiliar somente poderiam ser realizadas sob a supervisão do enfermeiro,
exigindo-se também que todo pessoal de nível médio que estivesse atuando na área sem
a devida formação (curso técnico ou auxiliar) se tornasse capacitado dentro de um
período de no máximo 10 anos após a promulgação da lei.3 Os reflexos dessa lei para o
Município se expressavam pela necessidade de contratação de novos profissionais, para
suprir as vagas existentes nas unidades de saúde, uma vez que nem todas contavam
com enfermeiros.
Há que se considerar também as mudanças decorrentes do processo de
municipalização vivenciado por Niterói. A proposta de transformação do modelo
assistencial vigente, implica também na redefinição do lugar de cada profissional,
criando ou suprimindo demandas para contratação.
Em 1989 é realizado o primeiro Concurso Público da Secretaria Municipal de
Saúde. São oferecidas 28 vagas para enfermeiros, destinadas sobretudo a unidades
básicas de saúde.
O primeiro grupo admitido através desse concurso, do qual a pesquisadora faz
parte, ingressou em uma secretaria em plena mudança, sendo recepcionado, pelo lado
da equipe gestora da secretaria, como aliado e, pelos enfermeiros já existentes, com
reservas. Percebe-se um ressentimento destes em função de algumas perdas que já
começavam a ser sentidas. Entre elas, o fim da Coordenação a qual estavam vinculados
e a perda da integração entre os profissionais da área, que se tornou mais evidente com
a criação dos distritos sanitários.
No espaço dos distritos, algumas tentativas foram feitas no sentido de resgatar o
intercâmbio entre os profissionais e uniformizar as práticas da enfermagem na rede
básica. Contudo, as ações não foram muito sistemáticas e se perderam em meio a tantas
mudanças que estavam ocorrendo.
Na atualidade, observa-se a ausência de intercâmbio entre as unidades da rede,
que, além das reuniões de chefia, contam com poucos espaços para troca de
informações. Para o enfermeiro isso não é diferente, sendo comum o desconhecimento
das atividades que são desenvolvidas pelo colega em unidade próxima a sua.
3 - A lei 8.967, de 28 de dezembro de 1994 assegura que esse pessoal, que já exercia atividades de enfermagem sem a devida formação, antes da publicação da lei 7.498/ 86, continue exercendo tais atividades sem a necessidade de qualquer formação, desde que estejam sob supervisão do enfermeiro.
54
Com relação à força de trabalho em enfermagem na rede de Niterói, é
expressiva a dificuldade dos setores de recursos humanos estabelecerem uma análise
precisa das necessidades da rede, seja sob o ponto de vista qualitativo e quantitativo.
A Lei Municipal de n.º. 905 de 26 de dezembro de 1990 (Anexo V), que trata do
Plano de Cargos e Salários da Fundação Municipal de Saúde de Niterói, indica em seu
anexo III, a existência de 32 enfermeiros com vinculo municipal, indicando como
lotação ideal 86 profissionais (não há referencia a critérios utilizados para a definição
desse quadro).
Em relatório emitido pelo Departamento de Recursos Humanos da FMS, em
agosto de 1988, indica-se a existência de 236 enfermeiros a serviço do Município de
Niterói. Neste grupo, são 39 vinculados a FMS (46 a menos do que o previsto no
quadro ideal), 100 vinculados ao quadro de servidores federais, 72 ao quadro de
servidores estaduais e 25 de vinculo não especificado.
Para fins de nossa análise, interessa especificamente os enfermeiros lotados na
rede básica de saúde (sabe-se que a maioria tem vínculo municipal ou estadual),
contudo essa informação não se encontra disponível no Departamento de Recursos
Humanos.
Em levantamento feito junto ao Departamento de Supervisão da SUAAC por
ocasião do inicio dessa pesquisa, não foi possível estabelecer com precisão quantos
enfermeiros existem exercendo suas funções nos serviços vinculados a esta
superintendência. Contudo, foi possível observar que em 5, dos 19 serviços
considerados, os únicos enfermeiros presentes no serviço ocupavam cargos não
relacionados diretamente à enfermagem, como por exemplo, a Chefia de Unidade de
Saúde. Essa situação pode ter uma diversidade de explicações, que podem variar desde
a evasão em consequência de baixos salários e a falta de preocupação em preencher
esse vazio em virtude da pouca importância atribuída à presença desse profissional nas
unidades, até a crença em que as atividades do enfermeiro são pequenas, podendo ser
supridas pela chefia de cada unidade; ou ainda pela dificuldade em definir critérios para
alocação do profissional nos serviços.
Assim, o lugar e a prática do enfermeiro inserido na rede básica de serviços são
assuntos a serem investigados. Pois, como prática social, sofre influências das
mudanças que se desenrolam à sua volta, não sendo hoje a mesma de 20 anos atrás.
Mudou; está mudando. Mas para onde leva essa mudança?
55
Para que, posteriormente, possamos efetuar a análise da prática atual do
enfermeiro, é necessário destacar algumas questões sobre a que vem se desenrolando
desde a criação da Secretaria Municipal de Saúde de Niterói.
A primeira delas refere-se ao momento histórico que marcou seu surgimento: a
criação da Secretaria de Saúde, que se deu a partir de uma proposta política que estava
na contramão do modelo de atenção vigente no País. A atenção primária à saúde
proporcionou ao enfermeiro uma inserção diferenciada da prática desenvolvida no
espaço disponível no modelo médico previdenciário. Seu papel estava relacionado à
capacitação dos agentes de saúde, que tinham em sua prática uma predominância de
ações de enfermagem. Assim, o profissional tinha uma prática eminentemente
educativa e de supervisão de tais ações. O conflito entre assistência e administração não
ficava caracterizado nesse período como uma questão importante, uma vez que o
quantitativo de enfermeiros não era suficiente para dar conta da assistência. Assim
como o seu papel parecia estar claramente definido, em pé de igualdade com os demais
membros da equipe de saúde no que se refere à carga horária, salários e proposta de
trabalho. Por outro lado, ficava evidente que a sua atuação junto à população se dava de
forma indireta, o que demonstrava também a inadequação da formação desse
profissional para atuar em um novo espaço, demandando uma capacitação na área de
saúde pública.
Na medida em que mudavam os rumos da Política Municipal de Saúde, no
início da década de 80, o quantitativo de enfermeiros se ampliava no espaço da
secretaria. O seu papel começava então a ser desligado da capacitação dos agentes de
saúde, distanciando a sua prática da assistência de enfermagem (ainda que indireta),
tornando-a mais inespecífica.
O modelo de atenção implantado atualmente é, tal qual o modelo vigente no
País, centrado na atenção médica, onde encontramos uma equipe polarizada entre
médicos e ocupacionais (agentes de saúde, auxiliares de enfermagem. Agora, o
enfermeiro agora é o “organizador dos serviços”.
Não encontramos reflexos, na prática do enfermeiro dos serviços de Niterói, da
reflexão crítica sobre seu papel profissional. Como já foi visto na literatura da área, na
década de 80. Este profissional atualmente se molda `a política de saúde ora adotada. O
papel de “organizador” , inclusive, parece lhe conferir algum status, não sendo
portanto, totalmente rejeitado por ele. A “Coordenação de Enfermagem” é vista como
um espaço de valorização e de poder para o grupo.
56
Começamos a perceber uma relação mais conflituosa desse profissional com sua
prática a partir das transformações impostas pelo SUS na Secretaria de Saúde de
Niterói. Houve uma perda de espaço na nova estrutura administrativa da Secretaria de
Saúde, que era ocupada pela então Fundação Municipal de Saúde, existindo a queixa da
perda do poder e da integração dos enfermeiros. Foi criada assim uma estrutura de
mando dentro das unidades de saúde, que não contemplava e não contempla uma chefia
de enfermagem, embora os enfermeiros possam ocupar cargos antes dominados pelos
médicos.
Os novos enfermeiros, admitidos pelo concurso, questionam a prática vigente,
incorporando a esse espaço algumas interrogações tais como: qual é seu papel ? por que
não fazem consulta ? É necessário trabalhar com os novos conceitos no campo da
técnica. Esses novos integrantes da equipe da secretaria, muitos recém formados,
trazem um pouco da reflexão crítica sobre seu papel do enfermeiro, que fazia parte do
cotidiano acadêmico. O conflito manifesto é entre “os novos” e o “pessoal antigo”.
Mas, na verdade, é o “vir à tona” dos conflitos latentes no dia a dia do enfermeiro, que
se expressam, principalmente no questionamento: “Qual é o seu papel nos serviços
básicos de saúde?”
Em 1992, com a implementação do Projeto Médico de Família no Município,
surge um novo espaço de atuação do enfermeiro. Talvez este signifique um lugar onde
podemos encontrar respostas para a questão acima, mas essa é uma discussão que
faremos no capítulo seguinte.
Capitulo III A PRÁTICA DO ENFERMEIRO NO MUNICÍPIO DE NITERÓI – O CONTEXTO ATUAL Pretendemos agora expor o resultado da análise das entrevistas e documentos
obtidos durante nosso trabalho de campo, explicitando as principais questões que
permeiam a prática do enfermeiro no Município de Niterói a partir da implementação do
SUS.
O material obtido durante o trabalho de campo consistiu de entrevistas semi-
estruturadas com enfermeiros e gerentes de serviços de Niterói. Tal material foi lido
cuidadosamente, selecionando-se nos textos os temas de interesse, ou seja, aqueles que
poderiam contribuir com o aclaramento de nossa hipótese. Após essa fase inicial, esses
temas foram agrupados em temas maiores que, reagrupados, deram origem a cinco
grandes categorias. Tais categorias, que expressam a singularidade da prática do
enfermeiro no município de Niterói, guardam relação com questões bastante atuais nas
análises mais recentes a respeito da prática do enfermeiro no contexto nacional. Assim
sendo se torna vital a discussão que busca compreender o lugar do enfermeiro na
sociedade em que vivemos.
A primeira categoria tratada permeia a discussão das demais. Trata do lugar do
enfermeiro nos serviços básicos de saúde de Niterói – o seu papel. Relaciona-se a uma
questão central nas análises mais recentes a respeito da prática do enfermeiro no Brasil.
Nessa discussão contamos com a contribuição de autores (ainda escassos), que vem
pensando sobre esse assunto e buscamos fazer um paralelo entre o que se discute como
o papel do enfermeiro nesse referencial bibliográfico e o que se percebe como papel do
enfermeiro no espaço estudado.
A segunda categoria trata da expressão do papel do enfermeiro na prática – o seu
fazer. Estreitamente ligada à categoria anterior, obteve destaque enquanto categoria de
58
análise em virtude da contradição que, muitas vezes, foi encontrada entre o que foi
definido como papel do enfermeiro e o que foi descrito como sua prática cotidiana.
A terceira categoria refere-se à relação entre as necessidades do serviço e a
formação do profissional. Foi eleita como categoria de análise face à referência
constante à inadequação da formação do enfermeiro frente as necessidades do serviço.
Na quarta categoria discutimos as mudanças nas políticas locais de saúde,
abordando as contribuições e as perdas que trouxeram as mesmas, ocorridas no espaço
do Município, para a prática do enfermeiro.
Por fim, a Quinta categoria de análise refere-se à duas questões: os critérios de
alocação do enfermeiro na rede e seus salários. Tais questões foram abordadas em
conjunto por referir-se à forma institucional de absorção do enfermeiro nos serviços
Passamos então à discussão de cada uma das categorias.
3.1- O Papel do Enfermeiro nos Serviços Básicos de Saúde de Niterói O significado do termo “papel”, como um elemento no desempenho de funções,
é definido, no DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS como: “seqüência padronizada
de ações apreendidas, realizadas por uma pessoa numa situação de interação.” (1997
:861)
KROM (1976) define papel como “um conjunto de comportamentos que a
sociedade espera que o indivíduo demonstre em uma situação específica”. (KRON,
1976.:23)
Partimos desses conceitos para desenvolver nossa discussão.
O enfermeiro, enquanto integrante da equipe de enfermagem e num, contexto
mais amplo, da equipe de saúde, tem seu papel colocado de maneira pouco explícita, o
que se manifesta através de contradições evidenciadas quando se busca caracterizá-lo na
literatura ou através de referências à realidade cotidiana. Tomando como conceito de
sociedade “qualquer grupo de pessoas que viveram ou trabalharam juntas o tempo
suficiente para pensar em si como uma unidade social com limites bem
definidos”(CHINOY citado por SANTOS et al.., 1997:79), encontramos, na diversidade
59
de sociedades existentes, a expectativa de diferenciados comportamentos ou “papéis”
para o enfermeiro.
Assim, identificamos no grupamento médico a expectativa de um enfermeiro
submisso e disposto a servi-lo (PADILHA, 1997; SOUZA et al., 1986), uma expectativa
do “mercado”, representado pelas instituições que o empregam, de que este assuma um
papel de controle e disciplina da equipe auxiliar (MELO, 1986; NAKAMAE, 1987;
SILVA, 1989); uma expectativa do usuário dos serviços de saúde, que não conseguindo
identificar o enfermeiro entre os vários membros da equipe de enfermagem, enxerga a
todos como “anjos de branco”, numa situação de total abnegação, que excluindo a idéia
de um trabalhador, com as mesmas necessidades e dificuldades de todos os outros.
Enquanto profissionais, observa-se uma oscilação entre os enfermeiros que se enxergam
como gerentes da equipe de enfermagem versus aqueles que acreditam que seu lugar é
no cuidado direto à clientela. (MEDEIROS & TAVARES, 1997; NAKAMAE, 1987)
As diferentes expectativas aqui explicitadas e encontradas na prática cotidiana
dos serviços de saúde caracterizam o desempenho deste ou daquele papel, de acordo
com o espaço onde cada profissional está inserido, juntamente com a sua prática - o seu
fazer.
Uma das abordagens relacionada à inserção do enfermeiro no espaço da
produção de serviços de saúde se refere às relações de poder existentes entre os
membros de uma equipe de saúde, que tem no médico a sua figura hegemônica.
PADILHA et al. (1997) assinalam que
“ o desenvolvimento da enfermagem e demais profissões da área da saúde, bem como a forma como as relações de saber/poder se estabelecem entre elas, foi construído a partir do sistema de poder na sociedade, mas também no interior do hospital”. (PADILHA et al.., 1997:439)
Estas autoras salientam que a saída das religiosas do espaço hospitalar está
relacionada ao surgimento da figura do enfermeiro, que tem sua atuação, disciplinadora
do espaço hospitalar, vinculada e subordinada ao médico. Ressalta ainda que a
subserviência necessária a essas relações de poder permeiam a enfermagem como parte
indissociável desta, sendo um elemento presente na enfermagem moderna de Florence
Nightingale .
60
“ A enfermagem é uma profissão de mulheres e como tal, no processo histórico de sua evolução, sempre foi considerada como elemento de apoio, sempre subordinada e nunca agente principal das ações sociais” (PADILHA et al., 1997:443)
Para essa autora, até os dias de hoje perdura essa relação de poder, onde o
discurso médico modela o comportamento das enfermeiras, “ ...influenciando o
pensamento e o imaginário social das próprias enfermeiras com relação ao que se
espera delas”. (PADILHA et al.,, 1997:446)
Uma outra abordagem do papel do enfermeiro diz respeito à forma como este se
insere no modo de produção capitalista. O resgate da história da enfermagem brasileira
mostra que a introdução da enfermagem moderna no país surgiu em meio à
incorporação do modo de produção capitalista no seio da sociedade brasileira. Tendo a
nossa enfermagem absorvido em sua organização a divisão entre trabalho manual e
intelectual. O que reproduz, de certa forma, a divisão proposta por Florence
Nightingale, que indica que, nas origens da enfermagem moderna, na Inglaterra,
admitia-se a existência de duas categorias na enfermagem: as nurses, de origem social
mais baixa, a quem cabia o cuidado direto aos pacientes, e as ladies nurses, originadas
da aristocracia ou da pequena burguesia inglesas, a quem cabia as tarefas de ensino e
supervisão.
Assim, desde a institucionalização do ensino da enfermagem no país, no início
desse século, a relação direta entre a enfermagem e a população acontece sobretudo
através de uma categoria auxiliar, naquele período caracterizada pela existência das
visitadoras sanitárias. Ao enfermeiro cabia a capacitação dessas visitadoras e o
acompanhamento de seu trabalho
Nessa abordagem destacamos o trabalho de SILVA (1989), que faz uma análise
critica da prática do enfermeiro, e de MELO (1986), que vai discutir a divisão do
trabalho na enfermagem.
SILVA (1989) assinala que o objeto da enfermagem se transforma
historicamente, tonando-se mais complexo e fragmentando-se em meio ao modo de
produção capitalista, na medida em que a assistência à saúde perde seu caráter religioso.
Passa então a ser entendida como necessária à manutenção de corpos sadios para o
atendimento a necessidade de mão de obra para a produção. Neste contexto, esta autora
assinala:
61
“Sendo a enfermagem, como as demais prática sociais, parte integrante de formações sociais concretas, presta-se sobretudo a sua preservação; assim, a enfermagem tradicional serviu ao feudalismo, e a enfermagem moderna serve ao capitalismo, contribuindo para manter a sua continuidade através de seu papel no processo de manutenção da força de trabalho necessária a produção social; de seu papel na realização da mais valia, sobretudo a gerada no complexo médico industrial e ainda seu papel na produção- reprodução da ideologia dominante.”.(SILVA, 1989:117)
Nesse contexto, caberia ao enfermeiro a responsabilidade pela organização e
administração dos serviços de enfermagem, enquanto aos ocupacionais4 caberia a
assistência direta à clientela.
É importante destacar na discussão de SILVA (1989) que, para ela, não existe
uma indefinição de papeis na enfermagem, ou, se isto existe, ele se dá, na verdade, nas
categorias auxiliares (técnico e auxiliar de enfermagem), que tendo como objeto de
trabalho o cuidado direto à clientela, não tem uma delimitação clara do que é
competência de cada um5. O papel do enfermeiro, por outro lado, é, para essa autora,
claramente definido. Sua explicação para essa afirmativa repousa na existência de uma
legislação especifica que trata do assunto, onde o enfermeiro tem o seu lugar bastante
claro. Contudo, há aí uma rejeição deste ao papel que lhe é atribuído (gerente da
equipe). Tal rejeição é, para SILVA (1989), reflexo dos antecedentes históricos da
enfermagem, que a partir de um ideal cristão humanitário, idealiza o profissional de
enfermagem como aquele que deve estar junto ao cliente. Este ideal é reproduzido no
currículo dos enfermeiros, que privilegiando a prática assistencial, em detrimento da
gerencial, demandada pelo mercado.
MEDEIROS & TAVARES (1997), a esse respeito, chama a atenção para a
fragmentação do trabalho da enfermagem que deixa mais explicito o papel das
categorias auxiliares do que a dos enfermeiros. Referindo-se a uma discussão do 41º
congresso de enfermagem, eles acreditam que “a enfermagem possui vários objetos de
trabalho, cabendo aos enfermeiros o processo de administrar a assistência e a
educação em saúde e enfermagem”. (MEDEIROS & TAVARES, 1987:287)
4 - SILVA (1989), faz referencia a utilização da expressão “enfermagem profissional” para designar a categoria das enfermeira, entendidas por ela como profissionais de enfermagem, utilizando o termo ocupacionais da enfermagem ao referir-se a atendentes, auxiliares e técnicos de enfermagem. Nos valemos, nessa discussão, do termo “ocupacionais”, para designar aqueles que exercem atividades de enfermagem, não possuindo, contudo, o curso superior de enfermagem.
62
Algumas considerações de NAKAMAE (1987) devem ser colocadas frente às
apresentadas até então. Esta autora reitera o conflito do enfermeiro, que se coloca entre
uma prática gerencial e burocrática frente à imagem assistencial que tem de si mesmo.
Para ela, as instituições de ensino e saúde no Brasil foram constituídas a serviço de uma
ideologia dominante, cabendo analisar o papel do enfermeiro frente a esse contexto.
Face à contradição capital versus trabalho, a autora situa a prática de dessa
profissão, assinalando que essa contradição determina a impossibilidade de pensar a
enfermagem numa perspectiva unificada, problematizando-a a partir de seus aspectos
organizacionais e técnicos, vistos que esse não são puros.
Um exemplo claro deste fato é a multiplicidade de agentes que prestam
assistência de enfermagem, frente à inexistência de critérios técnicos ou organizacionais
que os justifiquem. Para essa autora, o parcelamento da equipe não advém de uma
necessidade real, mas de um reflexo do modo de produção vigente, onde a
multiplicidade de agentes da enfermagem se justifica pela necessidade de obter o
máximo rendimento do trabalho pelo menor salário. Isso se dá, nesse caso, pela
proliferação das categorias ocupacionais.
Sobre o enfermeiro, neste contexto, a autora diz:
“ ... a questão do enfermeiro, que, dependendo do ângulo pelo qual seja abordada, surge como crise de identidade, percepção conflituosa de si mesmo ou de sua prática, circunscrição de seu espaço, indefinição de papeis, etc., podendo ser objetivamente posta como a questão do lugar ocupado e da função desempenhada por ele na instituição de saúde e no interior do conjunto dos agentes que executam o trabalho de enfermagem.” (NAKAMAE, 1987:78)
Ao discutir o papel do enfermeiro, a autora assinala que essa reflexão deve
passar pela discussão da divisão social e técnica do trabalho no espaço da enfermagem.
Contamos com a contribuição de HARNECKER para discutir a questão da divisão
social e técnica do trabalho na sociedade capitalista. Nessa discussão, assinala que a
divisão técnica do trabalho constitui-se na “ divisão do trabalho dentro de um mesmo
processo de produção” (HARNECKER citado por NAKAMAE, 1987:78) onde se
estabelecem relações técnicas de produção compreendidas como “as formas de controle
ou domínio que os agentes da produção exercem sobre os meios de trabalho em
5 A lei de exercício profissional n.º 7.498/ 86, em vigor a partir do ano de 1986, explicita as atribuições e cada categoria; contudo, no cotidiano dos serviços isso não é obedecido.
63
particular e sobre o processo de trabalho em geral” (HARNECKER citado por
NAKAMAE, 1987:78). Sobre a divisão social do trabalho assinala que esta se constitui
na “distribuição das diferentes tarefas que os indivíduos desempenham na sociedade
(tarefas econômicas, ideológicas ou políticas), que se realizam em função da situação
que eles tem na estrutura social” (HARNECKER citado por NAKAMAE, 1987:78).
Com base no exposto acima, a autora considera ainda a ocorrência do trabalho
coletivo, fragmentado e parcelar como conseqüência da necessidade de incremento na
produção e aumento nos lucros, que ocorre na sociedade capitalista. Com isso, existe a
necessidade de
“...uma direção que harmoniza as diferentes atividades individuais e
execute as funções gerais necessárias para que se ponha em marcha o processo de produção global. Essa função de controle, vigilância e direção converte-se em uma função do capital tão logo o trabalho submetido a ele assuma a forma de trabalho coletivo” (HARNECKER citado por NAKAMAE, 1987:78)
NAKAMAE (1987) fazendo um paralelo entre a estruturação dos trabalhos nas
sociedades capitalistas e nas instituições de saúde, identifica a função da enfermagem
como a responsável pelos trabalhos manuais. Havendo assim a separação com o
trabalho médico, o enfermeiro passa a ocupar o papel de supervisor desses trabalhos.
Assim, a autora considera que, frente às condições apresentadas, seria estranho
encontrar o enfermeiro prestando assistência direta à clientela no espaço dos serviços de
saúde no Brasil, visto que a demanda existente o leva para o caminho inverso.
Embora a discussão desenvolvida por NAKAMAE (1987) tenha grande
semelhança com a abordagem de SILVA (1989), encontramos uma diferença que vale a
pena ser destacada. Essa diferença refere-se à postura do enfermeiro, enquanto grupo,
frente às exigências do mercado. Se esta última autora acredita que a posição mais
adequada seria aquela onde o enfermeiro assume de vez seu papel como gerente,
atendendo às demandas do mercado, NAKAMAE (1987) identifica aí um erro de
avaliação. E explica essa discordância no fato que, nem mesmo no espaço gerencial
ocorre uma admissão de enfermeiros, estando muitas vezes esses cargos ocupados por
profissionais não qualificados. Face à necessidade de redução de custos, há uma opção
clara do mercado por profissionais menos qualificados. Assim,
64
“...a enfermeira é demandada pelo mercado por sua competência como ocupante do lugar de controle da força de trabalho (manual), na rígida disciplina do hospital, mas também é dispensada dele pela praxe capitalista de reduzir custos, com aproveitamento de pessoal menos qualificado” .(NAKAMAE, 1987:93)
A autora discute que a dispensa da enfermeira tem muita relação com a pouca
importância atribuída à qualidade da assistência de enfermagem em meio ao processo
terapêutico. Uma inserção diferenciada do enfermeiro seria então possível, no âmbito de
uma sociedade cuja política de saúde seja voltada realmente para as necessidades da
população. Uma vez que, dentro dessa perspectiva, seria atribuído maior valor a uma
assistência de enfermagem qualificada em detrimento da utilização de agentes de
enfermagem menos qualificados e, portanto, mais baratos.
Dentro dessa linha de pensamento, NAKAMAE (1987) discorda da idéia da
renuncia, pelo enfermeiro, ao cuidado direto, considerando que isso seria a submissão
final desse profissional ao capital, com mutilação de sua competência técnica. Para ela,
“ O resgate do cuidado direto pelo enfermeiro não implica,
todavia, na renuncia ao cuidado indireto. Mas supõe, obrigatoriamente, sua inscrição no quadro da ruptura da divisão trabalho manual/ trabalho intelectual, que igualmente supõe superação desta sociedade dividida em classes e com interesses antagônicos.” (NAKAMAE,1987:95)
O conflito evidente entre admitir-se como papel do enfermeiro a gerência da
assistência versus assistência direta à clientela assume maior complexidade quando
procuramos definir o teor dessa gerência. Pois, se parece claro que ela se relaciona à
assistência de enfermagem, no cotidiano dos serviços não é bem isso que ocorre.
ALMEIDA & ROCHA(1986) fazem referência à não execução das ações de
planejamento, coordenação e avaliação da assistência de enfermagem. Na prática, elas
são substituídas por um conjunto de tarefas de controle com base na administração
científica, que não tem uma proposta educativa, mas sim o cumprimento imediato de
tarefas.
Essas diferentes abordagens nos levam agora a refletir sobre o papel que o
enfermeiro ocupa no espaço da Fundação Municipal de Saúde de Niterói.
Sob o ponto de vista documental, é importante destacar que pouco foi
encontrado sobre o assunto tratado. Destacamos aqui o Plano de cargos e Salários desta
Fundação, aprovado pela Lei Municipal n.º 905, em dezembro de 1990, que enquadra o
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enfermeiro na carreira (NS) 1, onde são enquadrados todos os profissionais de nível
superior. O documento detalha salários (a principio idênticos para todos os
profissionais, exceto médicos e odontólogos, que embora tendo recebendo o mesmo
valor em moeda que os demais profissionais, tem sua carga horária menor que estes,
indicando que sua hora trabalhada é mais bem remunerada) relacionando também as
atribuições típicas de cada um. A síntese das atribuições do enfermeiro são descritas no
referido plano da seguinte forma:
“Atividades que envolvem supervisão, coordenação, orientação,
execução especializada ou sob supervisão superior, relativas à observação, cuidado, terapia e educação sanitária da população, bem como a administração de medicamentos e tratamentos prescritos por médicos, além da aplicação de medidas destinadas a prevenção de doenças”(LEI 905/90, ANEXO IV:24, Anexo V)
Em tal síntese, saltam aos olhos a sucessão dos termos “supervisão”,
“coordenação”, “execução”, “sob supervisão superior” “tratamentos prescritos por
médicos”; indicando assim um papel eminentemente administrativo e dependente de
prescrição superior.
Cabe destacar que o administrativo aqui colocado não caracteriza claramente
essa prática como administração da assistência de enfermagem. A leitura desse
documento nos remete à idéia do enfermeiro “organizador”, um pouco como a
governanta do serviço de saúde, que de certa forma é encontrada nos discursos dos
gerentes do sistema – seja no nível central (departamentos de supervisão), seja no nível
local (unidades de saúde). Embora a idéia do organizador seja dominante nesses
discursos, ela não anula a idéia do enfermeiro que assume um papel de agente
terapêutico, deixando entrever a existência de uma área de indefinição que identifica a
ampliação das funções do enfermeiro de saúde pública, mas que confunde tais funções
com a especificidade dos técnicos da área de epidemiologia.
A idéia do enfermeiro que supervisiona, gerencia e administra tem uma
supremacia sobre a idéia do enfermeiro que presta cuidado diretamente. No contexto da
saúde pública isso pode ser evidenciado na literatura consultada a partir da referência
abaixo transcrita.
“...a atenção primária permanece nas mãos das categorias
auxiliares e a enfermeira cabe mais uma vez coordenar, treinar e supervisionar o pessoal auxiliar. A dimensão social do trabalho é
66
fortalecida com a separação das funções ditas ‘mais intelectuais’ a cargo das enfermeiras, contra o serviço manual realizado pelo pessoal auxiliar...” (MELO, 1986:74)
Entretanto, mais que a relação direta com a equipe auxiliar de enfermagem, a
prática do enfermeiro parece ser ampliada pela incorporação de atividades burocráticas
alheias à especificidade do cuidar (próprio da enfermagem) ou mesmo à criação de
condições para que esse cuidar se faça livre de riscos. A incorporação de atividades
burocráticas, sem um fim em si mesmas, colocam o enfermeiro como “o faz tudo”, ao
mesmo tempo em que não se sabe exatamente o que é que ele faz.
Assim, não estranhamos quando um gerente, questionado sobre a inserção desse
profissional nas equipes de saúde, perceba dessa forma a participação do enfermeiro nas
unidades básicas de saúde:
“Eu acho que é uma participação fundamental ... a participação
do enfermeiro dentro das unidades de saúde. Porque ... até pela formação que ele tem. Formação na Universidade, na Faculdade. Formação diferente. Ela tem uma formação organizacional que não é comum nas profissões tipo o médico...” .(GERENTE SUP II)
O enfermeiro tem “...milhares de atividades para fazer, mas principalmente como catalisador e como montador desse serviço, do fluxo dentro dessa unidade (...) e o enfermeiro, enquanto profissão e não enquanto cargo, ele ficaria como... fazendo esse tipo de organização dessas unidades”. (GERENTE SUP II)
Os trechos acima nos mostram claramente que a expectativa desse gerente é
que o enfermeiro cumpra o papel de “organizador da unidade”, mas não enquanto
“cargo”. Ou seja, seu papel de organizador não aparece relacionado à ocupação de um
cargo dentro da estrutura de chefias da FMS, mas é visto como inerente à sua formação.
É próprio à sua profissão. Nota-se ainda que esse gerente não faz menção à posição do
enfermeiro enquanto líder da equipe de enfermagem.
Uma percepção mais ampliada por parte de um dos gerentes a respeito do papel
do enfermeiro na FMS refere-se à incorporação, por esse profissional, de
conhecimentos e ações de alcance coletivo, de forma a se integrar mais com a
realidade da população que atende. Contudo, essa ampliação de conhecimentos não se
coloca, na prática, como uma mudança no fazer do enfermeiro. Não se realizando,
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assim, uma mudança efetiva no papel que este ocupa, conforme podemos perceber na
fala transcrita a seguir.
“Eu acho que, do ponto de vista teórico, a enfermagem tem
avançado muito com relação a seu papel. Deixou de ser única e exclusivamente aquele papel administrativo de material : ficar vendo se faltou isso ou se o material foi esterilizado, se tá limpo ou se tá sujo. Saiu um pouco dessa função. Não somente essa função, mas incorporou outras atividades - atividades de educação em saúde e não isoladas (...)então ela passa a dominar a epidemiologia, passa a perceber a importância dela ter uma melhor relação, uma melhor noção de como são as instituições na região em que ela trabalha, de que forma estão organizadas, se a população esta organizada ou não está e criar essa interlocução. Não fica essa coisa só dependente da assistente social. Quer dizer, a enfermeira começa a englobar uma série de funções atributos que são de outros profissionais de saúde também. Então, eu acho que hoje, conceitualmente, a enfermagem está trabalhando com essa visão, mas na prática a gente vê ainda um comportamento mais ortodoxo na postura da enfermeira.”(GERENTE SUP I)
Vale refletir sobre o motivo pelo qual é freqüente a referência à figura do
enfermeiro como “enfermagem”. Embora seja evidente o conhecimento, pelos
entrevistados, que a categoria de enfermagem é representada por uma diversidade de
profissionais, e que o enfermeiro é um deles como veremos adiante, isso se repete no
discurso de outros gerentes.
É onde se efetiva a prática do enfermeiro que a percepção de seu papel parece
mais conflituosa, o que pode ser visto na fala hesitante dos gerentes das unidades de
saúde. Observemos os discursos abaixo:
"...minhas enfermeiras - uma é enfermeira e a outra é chefe da
Epidemiologia, né...;. e eu acho a que a função de chefe da Epidemiologia tem uma carga muito grande sim. Eu acho que eles deveriam ter (ou talvez isso seja um erro meu, que eu deveria definir isso, porque eu não sei como é feito em outras unidades, um auxiliar para auxiliar ou um administrativo para auxiliar, porque é tanto numerozinho para contar, tanto papelzinho que tem que fazer, tanta coisa que tem que controlar que eu acho que a I.* acaba não fazendo muito função de enfermagem ou se subdividindo demais em alguns momentos, quer dizer, em alguns momentos ela deveria estar sendo chefe de Epidemiologia e ela é obrigada a ser enfermeira, entendeu?
...A minha outra enfermeira, por acaso, é farmacêutica; então acaba dando uma ajuda para a gente no controle da medicação e é quem supervisiona mais a enfermagem, quem faz escala de tudo, que vê esterilização, todas essas coisas. Eu acho que poderia se deter um pouco mais em fazer consulta de enfermagem, coisa que eu não tenho aqui e
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que eu não consegui, acho que talvez por falha minha, instituir: a consulta de enfermagem, entendeu” (GERENTE UBS I)
“A gente tem que ver o seguinte: existem profissionais e profissionais. Nos serviços básicos, eu acho que ele deveria coordenar toda a parte de enfermagem, em relação a auxiliar, orientando o auxiliar e tudo mais. Mas acho que a gente também confunde um pouco com a vigilância em saúde. Eu não sei exatamente como a gente separa isso. Será que a gente podia discutir isso?...”( GERENTE PCL I)
Os dois depoimentos acima transcritos vem nos mostrar o quão confuso é, para
os gerentes, a percepção do papel do enfermeiro no espaço das unidades de saúde. Se
por um lado eles ressaltam a importância deste profissional atuando junto ao do auxiliar
de enfermagem (o que não acontece com os gerentes de nível central), por outro lado
fazem referência a um papel que mescla o “chefe de epidemiologia” ou mais
recentemente chamado, “chefe de vigilância em saúde”. Cargo que, cada vez mais é
ocupado pelos enfermeiros, com o papel do enfermeiro enquanto técnico, não ficando
claro quem deve fazer o quê.
Ainda que admitamos a existência de uma situação conflituosa, que se coloca
face à dificuldade que o próprio enfermeiro tem em definir o seu objeto de trabalho e,
com isso, o seu papel, cabe considerar que frente a uma proposta de mudanças seria de
grande valor a obtenção de indicadores que definissem o papel de cada serviço de
saúde, assim como o perfil de sua equipe. Esse esclarecimento seria uma contribuição
indispensável para a definição do papel do enfermeiro inserido nessas equipes.
O papel da chefe de vigilância em saúde se perde em meio à diversidade de
formulários e estatísticas a preencher. O que faz crer que, ainda hoje, a idéia da
vigilância à saúde no espaço estudado ainda não conseguiu sair da vigilância para os
papéis.
Se admitimos que as chefias locais de vigilância em saúde, refletindo as
indefinições sobre sua prática, se atém ao “cuidado com os papéis”, não é surpresa que
isso se confunda com a prática burocrática, muitas vezes referida como administrativa,
do enfermeiro, possibilitando assim uma confusão entre os dois papeis.
Assim, na fala transcrita acima, a chefe de vigilância em saúde, que é enfermeira
(mas poderia não ser), “não faz muito a função da enfermagem” e tem que “se
subdividir demais em alguns momentos”. Por outro lado, a outra enfermeira, que não
tem cargo de chefia, tendo uma outra graduação, deixa seu trabalho como enfermeira e
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“ajudar na farmácia”. E, assim, o papel da enfermeira desaparece em meio a essa
confusão.
Será que a gente podia discutir isso? Pergunta um gerente. Sem dúvida, isso
precisa ser discutido.
Não vamos ver, nessa pesquisa, o papel do chefe de vigilância em saúde, nem o
seu objeto de trabalho, pois não é esse o objetivo de nosso estudo. Mas cabem aqui
algumas reflexões sobre o objeto de trabalho do enfermeiro.
SILVA(1989) considera que, a despeito de uma corrente de pensamento que
admite o cuidado direto como objeto de trabalho do enfermeiro, isso não corresponde a
verdade. Pois, no salto da enfermagem tradicional, adequada à idade média, para a
chamada enfermagem moderna, criada em meio à construção do modo de produção
capitalista, este objeto se transformou, não sendo mais o cuidado direto, que agora está
nas mãos dos auxiliares de enfermagem, a atividade principal de seu trabalho. Mas sim
o cuidado indireto, ou seja, a criação de condições para que o cuidado direto se
processe, através da “administração e organização dos serviços de enfermagem”,
responsabilizando-se ainda pelo “conjunto de idéias e valores transmitidos pelo ensino
e literatura da área, que servem à manutenção da ordem social existente”. (SILVA,
1989:118)
MEDEIROS & TAVARES (1997) concordam com esta autora quando se
referem ao processo de administrar a assistência e a educação em saúde e a enfermagem
como objeto de trabalho do enfermeiro.
NAKAMAE (1987) desenvolve em seu trabalho uma linha de pensamento que
em muitos momentos coincide com SILVA (1989). Entretanto, no que se refere ao
objeto de trabalho do enfermeiro essa autora acredita que, embora o cuidado indireto
constitua-se no objeto de trabalho do enfermeiro, também o cuidado direto o é.
Essas abordagens nos remetem ao trabalho de VARGENS (1997), que discute os
conflitos na construção da imagem profissional do enfermeiro a partir dos depoimentos
de estudantes de enfermagem. Nesse trabalho, o enfermeiro aparece como “o que está
distante”, confrontando-se com a percepção de enfermagem como “a que está junto”. O
título do trabalho, “Tentando Descobrir um Modo de fazer Enfermagem sem Ser
Enfermeiro” indica o quanto o enfermeiro está afastado da enfermagem, sugerindo que
para fazer enfermagem o enfermeiro precisa estar junto de seu paciente e de sua equipe.
O que, em nosso ver, não pode ser obtido quando assumimos somente o “cuidado
indireto” como o objeto de trabalho.
70
É necessário considerar, entretanto, a limitação da idéia de “cuidado” para fazer
referência à prática do enfermeiro no espaço da saúde coletiva. Uma vez que a noção de
“cuidar” pode ser melhor compreendida dentro do processo de trabalho de enfermagem
na assistência à saúde individual. Já que esta incorpora, entre outras questões, idéias
como necessidade de interação, proximidade, aprendizagem mútua. 6 Poderíamos pensar
na aplicação dessas idéias no plano coletivo, porém não julgamos ter subsídios
suficientes para fazê-lo. Assim, considerando ALMEIDA et al. (1997), que lembram
que o espaço que se refere à saúde individual e o espaço que se refere à saúde coletiva
fazem parte de uma mesma realidade, acreditamos que o objeto de trabalho do
enfermeiro no campo coletivo também envolve o cuidado, mas não fica restrito a ele.
Embora o que vai além deste não esteja ainda bem definido.
Concordamos com CASTELANOS et al. (1989), que consideram que “o grande
desafio é recriar modelos de processos de trabalho em enfermagem que contemplem
objetos e finalidades coletivas a partir da finalidade do processo de trabalho em saúde
coletiva...”( CASTELANOS et al., 1989:159).
No desenvolvimento de nossa análise, tomamos o cuidado como objeto de
trabalho do enfermeiro, apesar das ressalvas expostas acima. Isso acontece por três
motivos básicos: o primeiro diz respeito à dificuldade em definir, num momento em que
as transformações no modelo de atenção à saúde ainda são incipientes, um objeto de
trabalho para o enfermeiro que se adeqüe ao trabalho em saúde coletiva (é possível que
esse objeto seja também coletivo). O segundo motivo tem relação com a observação
feita anteriormente sobre a existência de um espaço para atenção individual à saúde que
não invalide o coletivo. E, como último motivo, a existência de uma prática efetiva de
atenção à saúde individual nos serviços considerados em nosso trabalho, possibilitando
ao enfermeiro tomar o “cuidado” – direto e indireto - como objeto de seu trabalho.
O exercício do cuidado indireto pelo enfermeiro decorre da realidade presente
onde a existência de uma multiplicidade de agentes de menor qualificação, que são os
responsáveis pelo desenvolvimento da assistência de enfermagem, exige que o
enfermeiro tenha de assumir uma prática administrativa e pedagógica que levem a
integração da equipe. Essas atividades, que caracterizam o cuidado indireto, não
incorporam entretanto atividades burocráticas e administrativas alheias ao serviço de
enfermagem.
6 - A respeito dessa questão, consultar Waldow, V. R. – Cuidado: Uma revisão teórica. Revista Gaúcha de
enfermagem, Porto Alegre, 13(2):29-35, jul. 1992 e
71
O cuidado direto se expressa na relação direta entre o enfermeiro e a população
adscrita a um dado serviço, em ações educativas e assistenciais; na atuação junto com
sua equipe, num processo de interação entre enfermeiro e demais membros da equipe de
enfermagem, expressando-se sob forma de uma assistência qualificada. Vale destacar a
importância da educação em saúde que se constitui em instrumento valioso para a
construção do objeto de trabalho do enfermeiro em saúde coletiva.
A admissão do cuidado como objeto do trabalho do enfermeiro torna mais fácil
estabelecer uma distinção entre sua prática e a prática desenvolvida pelo “chefe de
vigilância”. Pois, embora o enfermeiro possa utilizar instrumentos da vigilância
(vigilância epidemiológica, dados demográficos, etc.) para fundamentar sua ação de
cuidar, seu objetivo ainda é a fundamentação do cuidado e não a vigilância em si.
Esclarecida essa distinção entre o papel do enfermeiro versus papel do chefe de
vigilância voltamos nosso olhar para o Projeto Médico de Família, e o papel do
enfermeiro neste contexto.
A experiência do Projeto Médico de Família, que para nós funciona como um
paralelo de comparação com a estrutura da rede básica de serviços, apresenta maior
clareza a respeito do papel do enfermeiro. Notamos que o papel que esse profissional
assume nesse espaço é o de supervisor, um supervisor que tem como sua principal
função a formação, a reconstrução quotidiana dos profissionais que atuam diretamente
junto a comunidade. Essa formação está baseada em uma proposta de atenção definida
com clareza para toda a equipe de supervisores, onde o enfermeiro se responsabiliza
pelo cuidado indireto, segundo o que explicitamos nas páginas anteriores. Vejamos :
“ ...o núcleo básico do Projeto Médico de família é o médico e o
auxiliar de enfermagem(...)” (GERENTE do PMF)
“...essa equipe, você sabe, ela é composta por enfermeiro, por assistente social , por um sanitarista e os profissionais das clinicas básicas, os especialistas (...) o enfermeiro, ele entra como um desses elementos, que vai estar trabalhando com essa equipe na ponta, no sentido de capacitar, ações dessa equipe que está na ponta é muito abrangente, muito alta; e a gente priorizou esse contato com a enfermagem não só como elemento de aperfeiçoamento do técnico, do auxiliar de enfermagem, mas do médico inclusive.” (GERENTE do PMF.)
Ao questionar o gerente do Projeto a respeito da razão do enfermeiro não estar
inserido nos módulos, uma vez que entendemos que dessa forma sua contribuição seria
72
muito maior, a sua resposta evidencia, de maneira clara, a divisão social e técnica do
trabalho da enfermagem. Ao mesmo tempo que se fundamenta em uma proposta
política específica, expressa também a concepção corrente de que ao enfermeiro não
cabem as atividade manuais. Isto é, utilizar auxiliares de enfermagem provenientes da
própria comunidade como forma de melhor integração do Projeto a população. Como
observamos na fala abaixo transcrita.
“... o enfermeiro, na verdade, quando o Projeto foi elaborado, ele
entrava como elemento até assim de... como eu falei pra você, de capacitação. Na verdade, como você pressupõe que as atividades nessa atenção primária, que a auxiliar estaria desempenhando seria de ... enfim, atividades laborativas mesmo, ou seja, a coisa operacional no sentido de aplicação de vacina, de realização curativos, de aplicação de medicamentos, nebulizações, etc. e tal, quer dizer, enquadravam-se mais no perfil de um auxiliar, de um técnico de enfermagem”. (GERENTE DO PMF. ( Grifos nossos ) )
Diferente da explicação oferecida pelo gerente, que pode ser verdadeira sob o
ponto de vista político e, até mesmo, técnico, cabe assinalar ainda uma outra
possibilidade: o custo financeiro. Este seria sensivelmente aumentado, se a opção fosse
por manter enfermeiros, ao invés dos auxiliares de enfermagem, para as atividades
desenvolvidas nos módulos. Além da possibilidade de uma relação mais conflituosa que
se coloca entre médico e enfermeiro.
Interessa ressaltar que, diferente das unidades da rede básica, o papel do
enfermeiro no PMF, aparece claramente definido. Apesar disso, é evidente que mesmo
no Projeto Médico de Família, ainda persiste essa visão arraigada que diz que ao
enfermeiro cabe “organizar as coisas” que não se relacionam diretamente com o cuidado
de enfermagem, conforme notamos no depoimento abaixo:
“...a gente brinca muito: a enfermagem no sentido da
organização das coisas, no sentido de dar aquele sentido de planejamento, de programação para o trabalho. É o sentido de organização mesmo. Então ela começa trabalhando muito esse elemento, no início do funcionamento de um módulo, com as auxiliares, que são os elementos chave para o desencadeamento das ações...” (GERENTE do PMF.)
Tal realidade apresenta, certamente, o reflexo de toda a história do profissional.
E, ainda que exista uma crítica e mesmo uma insatisfação dos enfermeiros, as mudanças
são demoradas e muitas vezes implicam em ônus – seja para o profissional, seja para o
73
serviço que estimule as mesmas, conforme podemos observar no relato de um gerente
da rede básica.
“... esse papel histórico do cara que coordena auxiliares, que de
alguma maneira organiza as coisas, tem essa tarefa organizacional, isso é visto de uma maneira meio careta, meio demodê. (...) Deus me livre, eu não sou chefe de enfermagem” - Mas não percebe que fica meio frouxo se não tem alguém que desempenhe esse papel, e eu não conheço outra pessoa que faça isso, mais ou menos, que não seja o profissional enfermeiro. Eu acho que com toda essa ansiedade de abrir o campo de trabalho, a coisa degringolou um pouco.” (GERENTE PCL II.II)
É evidente a dificuldade em encontrar um ponto de equilíbrio na prática do
enfermeiro que presta assistência direta à clientela. E que, como tal, se exime de
assumir não só as ações administrativas de caráter mas também as gerais, inclusive as
da própria supervisão do trabalho da equipe auxiliar de enfermagem. Mais que uma
questão específica dos enfermeiros, esse dilema passa a ser da própria gerência deste
serviço. Já que numa atitude de não reflexão sobre a realidade da rede básica, assume e
estimula uma nova forma de inserção do enfermeiro nas equipes de saúde, diferente do
tradicional papel de “organizador”.
“Desde que eu vim para cá e, mesmo antes de ser diretora, gerente e
tal, já havia um papel mais diferenciado desse enfermeiro aqui, que eu acho que nos últimos anos a gente vem fortalecendo e acreditando: enfermeiros ligados aos serviços, com seu papel profissional de atuação terapêutica e de assistência junto ao paciente. Não com isso dizendo que muitas vezes o enfermeiro não tem que ter o papel de...(supervisor) (...)...existe todo um jogo de relação, de relação histórica do enfermeiro com o auxiliar, que eles respeitam ou acham melhor assim. Então, esse papel do enfermeiro fica, muitas vezes, esquecido aqui porque nossos enfermeiro tem desenvolvido muito esse lado de estar ligados ao serviço e atuarem como profissionais que tem um papel próprio.” (GERENTE PCL II)
Se retomamos a origem da inclusão dos enfermeiros na SMS, fica evidente que
àquela época o papel do enfermeiro tinha característica semelhante ao que exerce
atualmente no Projeto Médico de Família : Capacitação e supervisão do trabalho da
equipe auxiliar, e que se perdeu nas mudanças políticas da Secretaria de Saúde. Com a
implantação do SUS, passaram a conviver em meio a rede municipal, agora ampliada
pela incorporação de unidades originalmente federais ou estaduais, profissionais
74
moldados segundo culturas institucionais distintas, trazendo para os serviços suas
concepções acerca do papel de cada profissional no interior dos serviços.
Sob o ponto de vista legal, por outro lado, o papel do enfermeiro encontra-se
bem delimitado. Entre outras funções, cabe a ele, privativamente, a responsabilidade
pela equipe auxiliar, que implica na sua capacitação, bem como a supervisão, com
valorização da avaliação e orientação necessárias a uma prática qualificada.
O dilema dos enfermeiros, conforme já discutido, surge a partir da sua formação
assistencial em oposição a uma demanda administrativa. O dilema da gerência do
serviço surge a partir da necessidade de acompanhamento da equipe auxiliar (que é
rejeitada pelo enfermeiro) e a crença, pautada na observação cotidiana, que a relação
direta entre enfermeiro e população qualifica o serviço prestado.
A demanda dessa gerência, por um dado papel dos enfermeiros, não se
caracteriza como uma demanda administrativa, tal como a explicitada pelos demais
gerentes, mas como uma demanda por uma prática pedagógica. Esta é legitimada pela
Lei do exercício profissional, quando atribui ao enfermeiro tal função, construída
historicamente.
Contudo, embora a demanda seja legitima, ela é rejeitada pelos enfermeiros. A
explicação pode ser, em parte, baseada no que SILVA (1989) apresenta como
explicação das enfermeiras para “ a razão do conflito entre enfermeiras e atendentes”.
Os despreparos desses últimos é um argumento bastante utilizado por elas para justificar
a baixa qualidade da assistência de enfermagem. Entretanto, gostaríamos de percorrer
um outro caminho para considerar essa questão.
SILVA (1989) assinala a administração do serviço de enfermagem como
estando estreitamente vinculado à economia interna das instituições de saúde,
assemelhando-se ao papel econômico da dona de casa. E, como tal, obscurecidos no
cotidiano dos serviços.
Por outro lado, como veremos mais adiante, a relação direta com à clientela é
uma fonte de satisfação para o enfermeiro. Seu trabalho como agente terapêutico, como
profissional que tem uma agenda e clientela a ele destinados são elementos que
parecem valorizar seu papel. Assim, se existe a opção de escolher entre uma função
administrativa obscura e uma terapêutica que lhe oferece um status diferenciado, parece
natural que ele opte por esse último, criando um vazio nos serviços.
Passando agora à análise do discurso de enfermeiros da rede básica, nota-se em
sua fala uma dificuldade em definir claramente o seu papel. Percebe-se uma oscilação,
75
identificada anteriormente no discurso dos gerentes, também da rede básica. Nesse
espaço de trabalho, o papel do enfermeiro se situa em uma interface entre uma função
administrativa e uma função assistencial. Contudo, observa-se que a admissão de um ou
outro polo parece estar estreitamente vinculada à existência de uma prática dentro desse
polo.
Na literatura, a função administrativa do enfermeiro se confronta com sua
função assistencial, sendo por vezes caracterizada em pólos opostos, conforme assinala
AGUDELO (1995). Porém, não acreditamos que tais funções sejam excludentes pois,
uma vez que admitimos que o enfermeiro detêm o saber e a equipe auxiliar domina o
fazer, entendemos que uma assistência de enfermagem com qualidade só pode se dar na
medida em que os dois se articulem em uma prática integrada, onde a função educativa
do enfermeiro se expresse na prática conjunta com a equipe auxiliar.
A indefinição em seu papel é manifesta nos discursos dos enfermeiros pela
amplitude com que expressam suas funções, como se a ele coubesse tudo e um pouco
mais. Vejamos nos relatos abaixo:
“Historicamente a gente sabe que o enfermeiro tem N
incumbências, responsabilidades”(ENF. UBS I)
“Eu acho que é uma mesclagem mesmo(...) Eu acho que é técnico, educativo e cientifico, né. Eu acho que é uma mistura disso aí...” (ENF. UBS II)
A medida que exploramos essas falas, fica mais clara uma polaridade do
discurso das enfermeiras da rede básica, ora tendendo para um papel administrativo
“...eu acho que historicamente, academicamente a gente falando, o
enfermeiro tem uma parte da atividade dele que tem que ser o atendimento da clientela, da população, principalmente do enfermeiro de saúde pública, agora, ele não pode perder esse referencial de administração, que é uma coisa que eu acho que é nata do enfermeiro” (ENF. UBS I)
Outras vezes, tendendo para um papel assistencial:
“Como eu te falei, eu acho importantíssimo o enfermeiro com o
cliente. Até por isso que eu acho que o enfermeiro não tem que ter muita atividade administrativa”(ENF. PLC)
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Diferente dos gerentes, que ao mencionar o papel administrativo do enfermeiro,
relacionavam este à função predominante de controle ou administração de materiais, o
papel administrativo que os enfermeiros da rede básica admitem para si não contém esse
crivo. Encontramos em suas falas uma preocupação mais evidente com o pessoal sob
sua responsabilidade – os auxiliares de enfermagem, conforme observamos no texto
abaixo.
“...Ele tem sob responsabilidade dele elementos que ele tem que
fazer supervisão de alguma forma, se...Os auxiliares não podem ficar soltos dentro de uma unidade de saúde...os auxiliares, os agentes de saúde, seja lá o nome que se queira dar; então ele tem, de alguma forma ele tem a responsabilidade de ter elementos, funcionários, seja agentes de saúde ou auxiliares de enfermagem, sob sua responsabilidade e ele tem que dar conta de fazer a supervisão do que está sendo realizado por esses elementos, fazendo a prestação do atendimento, vamos dizer assim, com a população” (ENF. UBS I)
“Eu acho que tem que ser ao enfermeiro, porque o auxiliar é de enfermagem, é o auxiliar que trabalha com o enfermeiro. Ele pode trabalhar junto ao médico, mas técnicas básicas, não adianta que somos nós que sabemos. Eu acho que isso aí é nosso sim, infelizmente. Eu acho que essa é da nossa formação e eu acho que o técnico e o auxiliar tem que ser supervisionado pelo enfermeiro sim. Isso é nosso. Eu digo infelizmente entre aspas, porque eu sou obrigada a fazer isso, uma coisa que eu não gosto de fazer, mas eu reconheço que tem que fazer, que isso é meu, é um papel, do mais primário do enfermeiro – essa coisa de supervisionar, de administrar a enfermagem”( ENF. UBS II)
“É importante o papel do enfermeiro na parte administrativa assim: supervisão de pessoal, supervisão de técnica; mais estatística, papelada para preencher, aquele monte de papelada, tem enfermeiro que preenche tudo. Se bobear preenche até a receita que o médico vai assinar. Então aquela papelada toda que o enfermeiro preenche, escala de pessoal, pedido de material, essas coisas eu acho que não tinha que ser o enfermeiro, no meu entendimento” ”(ENF. PLC)
Essa relação com o auxiliar, é percebida pelos enfermeiros, de maneira bem
clara, como pode ser visto acima, como seu papel. Contudo, não fica explícito como
essa relação se processa : se ocorre com base na administração clássica, onde o papel
assumido é o de controle da força de trabalho do auxiliar, ou se se dá com base na
capacitação cotidiana desse membro da equipe de enfermagem, onde o desenvolvimento
de ações junto com o auxiliar, realça seu papel pedagógico..
77
A primeira suposição parece mais realista, se considerarmos que na divisão do
trabalho em enfermagem a figura do enfermeiro, historicamente, incorporou em sua
prática os princípios clássicos da administração científica, assumindo um papel de
controle sobre a equipe auxiliar (MELO,1986). A rejeição manifesta por essas ditas
atividades administrativas, expressa na fala do enfermeiro de unidade básica,
assemelha-se assim à rejeição à idéia de assumir esse papel de controle, que tem um
caráter negativo no ideário profissional, conforme assinala GONÇALVES (1994:206).
O papel assistencial, por outro lado, não se coloca de forma tão explícita como
um ofício do enfermeiro, tal qual o administrativo, que existe desde o momento em que
existe o próprio enfermeiro e o auxiliar. Esse papel, que os entrevistados enxergam para
os enfermeiros inseridos em serviços básicos de saúde, parece depender de algumas
condições para que exista, sendo a principal delas o desejo do enfermeiro. Assim, ele
parece se relacionar mais à postura que alguns enfermeiros assumem individualmente,
encontrando-se estreitamente ligado à sua prática individual.
Dessa forma, diferente do papel administrativo, percebido como inerente a todos
os enfermeiros, o papel assistencial é contingencial - parecendo estar muito mais
associado a uma busca de prazer, satisfação profissional - mais próxima das atividades
assistenciais que administrativas. Isso não parece ser questionado pela SMS, uma vez
que cada enfermeiro traça essa busca segundo sua própria preferência ou critérios que
ele mesmo determina.
O teor desse papel assistencial, que é referido nos discursos dos enfermeiros, é
diferente do papel “terapêutico” (caracterizado pelas consultas de enfermagem,
oferecidas a indivíduos de uma clientela específica), referido por um dos gerentes. Ele é,
sobretudo, educativo. E tem como base as relações que se dão entre enfermeiro e
clientela, em grupos educativos relacionados a assuntos específicos (ou a programas
específicos).
Ao contrário dos enfermeiros da rede básica no PMF, os profissionais
identificam a importância de seu papel deixando explícito que nesse Projeto não se
considera a assistência direta à clientela como ação destinada ao enfermeiro. Sua função
é a supervisão da dupla médico / auxiliar de enfermagem, com ênfase nas atividades
desenvolvidas pelo auxiliar. A idéia de supervisão fica clara, assumindo contudo um
aspecto mais pedagógico e menos de controle da força de trabalho. Isso corrobora a
idéia de autores como MEDEIROS & TAVARES (1997) e SILVA (1989), que vêem o
papel do enfermeiro como eminentemente gerencial e pedagógico.
78
Nos parece ainda que essa clareza que os enfermeiros do PMF tem de seu papel
está fortemente relacionada a uma definição prévia do que o Projeto demanda. Dessa
forma, ainda que o enfermeiro possa questionar, individualmente, se seu lugar não seria
outro, admite seu papel segundo o que está dado. Pouco percebemos nos discursos dos
entrevistados uma crítica ao lugar onde se inserem, ou mesmo a atividade que
desenvolvem a exceção da seguinte observação feita por uma enfermeira do PMF:
“ ...se tivesse que chegar para mim e perguntar “Como você optaria para a montagem?” Eu basicamente acho que seria super..., mais fluiria mais fácil se tivesse um enfermeiro na unidade – eu concordo com isso, mas não é a estrutura do Projeto e, não sendo a estrutura do Projeto, nós enfermeiros, enquanto lideres da equipe, temos que nos adaptar a situação” (ENF. PMF I)
A falta de uma postura crítica a respeito de seu papel é comum aos enfermeiros e
da rede de Niterói, seja no Projeto Médico de Família ou na rede básica. Contudo, talvez
a estrutura do Projeto possibilite criar um espaço de reflexão que permita uma postura
mais crítica, mas essa é uma discussão que gostaríamos de levantar no momento que
discutirmos as mudanças na prática do enfermeiro.
Em linhas gerais, observamos que a crise de identidade do profissional se
manifesta na realidade de Niterói, com questões semelhantes ao contexto nacional. Qual
é o papel do enfermeiro? Gerenciar ou prestar assistência ? Gerenciar o quê ? O
processo de trabalho em enfermagem ou todo o serviço de saúde? Qual é o objeto de
trabalho desse profissional? As respostas foram diferenciadas possuindo diferentes
graus de clareza de acordo com o espaço de prática estudado: o PMF e a rede básica.
Sobre a definição do papel do enfermeiro, pudemos perceber que ele é claro no
PMF e indefinido na rede básica. Acreditamos que tal fato está relacionado à
característica do próprio projeto, que tem por pressuposto a definição clara de seus
objetivos e do papel de cada profissional que nele desenvolve sua prática. Assim, o
enfermeiro no PMF é o supervisor, responsável pela capacitação técnica da equipe dos
módulos, tal como os demais supervisores, tendo também sob sua responsabilidade a
organização do funcionamento dos módulos, podendo contar com o auxilio dos demais
supervisores. Não se espera que assuma a assistência direta à clientela, a não ser que
isso faça parte do processo pedagógico destinado à capacitação da equipe.
Por outro lado, na rede básica de saúde seu papel é percebido de diferentes
formas, não sendo possível afirmar exatamente o que lhe cabe em função de duas
79
questões. Uma diz respeito à indefinição dos profissionais, que é anterior à existência
do serviço. E a outra é própria do serviço que, na medida em que não define o papel de
cada unidade e, estas, por sua vez, não têm clareza de como deve ser sua relação com a
população a qual deve assistir, permite que cada um escolha o papel que deve assumir,
numa gradação que varia do administrativo ao assistencial puro. Um dado que deve ser
destacado diz respeito ao fato destes enfermeiros atribuírem para si a responsabilidade
sobre a prática do auxiliar de enfermagem, o que devemos confrontar posteriormente
com o relato de sua prática.
Face a essa situação, fica evidente que ainda hoje a prática do enfermeiro
caminha de acordo com o rumo das marés das políticas de saúde, sem existir uma
análise crítica destes a respeito do lugar a ocupar no espaço dos serviços de saúde.
Passamos agora a discussão da expressão desse papel, que é a prática do
enfermeiro.
3. 2 - Como se expressa na Prática seu Papel - O Fazer do enfermeiro O papel se expressa em uma prática concreta. No cotidiano dos serviços, o fazer
do enfermeiro se relaciona ao fazer do restante da equipe de enfermagem, constituindo
assim assistência de enfermagem, prestada a um indivíduo ou a uma comunidade.
Em busca da compreensão e conceituação da assistência de enfermagem,
XAVIER et al. (1987) procederam a identificação dos procedimentos, tarefas e
atividades realizadas pelas categorias de enfermagem no país, categorizando-as da
seguinte maneira:
• “Ações de natureza propedêutica e terapêutica complementares
ao ato médico e de outros profissionais – Essas ações são determinadas em função do ato médico e/ou de outros profissionais.(...).
• Ações de natureza terapêutica e propedêutica de enfermagem – O foco dessas ações está na organização da totalidade da assistência de enfermagem prestada à clientela. Essa totalidade se dá através do diagnóstico e encaminhamento de situações que se verificam na relação entre clientela, demais profissionais e a instituição. Elas caracterizam a necessidade de tempo e continuidade do trabalho da enfermagem. Como exemplo temos aquelas atividades que promovem o conforto e segurança assim como aquelas referentes ao trabalho educativo realizado com à clientela.
80
• Ações de natureza complementar e de controle de risco – A essência dessas ações prende-se à diminuição da probabilidade de agravos à saúde e/ ou de suas complicações. Esse caráter de complementariedade refere-se ao fato de que essas ações são desenvolvidas pelo coletivo de profissionais de saúde. Estão incluídos nessa categoria as atividades de vigilância epidemiológica e nutricional, as ações sobre o meio, ao controle de clientela de baixo risco (mulher, criança), ao controle de infecção hospitalar, ao controle de doenças crônico degenerativas, ao controle de agravos produzidos à população trabalhadora no processo produtivo, entre outras.
• Ações de natureza administrativa – A essência dessas ações está na organização do processo de trabalho coletivo da enfermagem. Considera-se nessa categoria todas as ações referentes ao planejamento, gestão, coordenação, supervisão e avaliação da assistência de enfermagem.
• Ações de natureza pedagógica – Nessa categoria inscrevem-se todas as ações de treinamento, formação e educação continuada dirigida à força de trabalho de enfermagem empregada na rede de serviços.” (XAVIER et al., 1987:179)
Segundo os autores, na enfermagem brasileira predominam as ações de natureza
propedêutica e terapêutica complementares ao ato médico, sem que as demais tenham
expressão no conjunto da prática da enfermagem. Entre outras questões, ressaltadas
pelas autoras, vale destacar a fragmentação e a descontinuidade do processo de
assistência, além da improvisação das atividades de apoio (administrativas e
pedagógicas).
Considerando a pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem
(COFEN, 1985), nota-se também que tais atividades expressam uma parcela importante
do fazer do enfermeiro O documento compara as funções dos enfermeiros em ambientes
hospitalares e para hospitalares, indicando que as funções administrativas constituem
uma parcela da prática bem maior no ambiente hospitalar que no espaço extra
hospitalar. Contudo, as atividades administrativas e pedagógicas constituem parcela
importante das atividades do enfermeiro também em ambientes para hospitalares.
Num estudo mais recente, ALMEIDA et al.(1997), considerando que a inserção
da enfermagem na produção de serviços de saúde em nível coletivo se dá através de
ações que se diversificam desde o cuidar até o planejamento em saúde, fizeram um
mapeamento do trabalho da enfermeira em unidades básicas de saúde, de diferentes
graus de complexidade, no Município de Ribeirão Preto. As atividades foram
classificadas em cinco grupos, encontrando o grupo definido como “procedimentos de
enfermagem e comunicação com a clientela” como o grupo de atividades a que as
81
enfermeiras dedicam mais tempo. Referem que o fato da unidade ser de nível básico
possibilita ao enfermeiro realizar, além de atividades administrativas, procedimentos de
enfermagem diretas com a clientela. Assinalando ainda a forma de organização
tecnológica do trabalho, centrada no ato médico, gerando demanda à enfermeira, que se
coloca desenvolvendo atividades decorrentes do ato médico ou como triadora da
clientela que chega à unidade, numa função de repressão de demanda que chega em
busca do atendimento médico.
O segundo grupo de atividades ao qual a enfermeira dedica maior tempo se
refere a função de coordenação e controle das atividades desenvolvidas com o
pessoal auxiliar, além da coordenação entre trabalho de enfermagem com o
trabalho médico. As autoras observam que são nessas atividades que as enfermeiras
demonstram sua função de coordenação, supervisão e controle das atividades
executadas pelo pessoal auxiliar.
Esses dois grupos de atividades constituem-se em média, 60% das atividades dos
enfermeiros e mostram que os achados apresentados no trabalho do COFEN (1985),
bem como as considerações de XAVIER et cols. ainda refletem a realidade da inserção
dos enfermeiros nos serviços, tornando verdadeira a assertiva
“a assistência de enfermagem que se realiza hoje no Brasil tem
aderência às políticas de saúde, cuja lógica intrínseca privilegia a quantidade em detrimento da qualidade dessa assistência”. (XAVIER et al. 1987:179)
Num contexto de mudanças, tal qual o que se coloca na implantação do Sistema
Único de Saúde, onde admitimos como pressuposto a idéia da integralidade da atenção,
a assistência de enfermagem qualificada deve ser pensada como parte importante dessa
construção. Isso implica na redefinição de funções no seio da equipe de enfermagem,
diferente da dissociação fazer/ saber, que a tem caracterizado.
Para proceder a análise das falas dos gerentes e enfermeiros, nos apoiamos na
categorizarão de XAVIER et al.(1987), acima explicitada, para delimitar o fazer do
enfermeiro no espaço estudado.
Estreitamente ligada à idéia do PAPEL, o fazer pode se constituir na tradução
das expectativas, abordadas quando da pré-definição de um dado papel, se
consideramos uma prática concreta (que nem sempre se ajustam as expectativas pré-
definidas).
82
Na realidade estudada, temos na descrição dos gerentes da rede básica a
percepção de um fazer que “é”, ou seja, é uma realidade concreta que é descrita em
suas falas. Além dessa abordagem, percebe-se, permeando as falas analisadas, um fazer
que “deve ser”. Esse deve ser que já foi expresso ao se definir o papel do profissional
de enfermagem e que constitui, agora, na expectativa de concretização desse papel.
Para os enfermeiros, o fazer é o seu dia a dia, a sua prática concreta.
A comparação entre o que é descrito como o fazer e o que é assumido como o
seu papel apresenta uma certa incoerência, no relato dos enfermeiros da rede básica.
Uma vez que o fazer descrito constitui-se apenas em parte do que caberia no papel
definido por esses profissionais para eles mesmos.
Assim, diferente dos gerentes, que descrevem o fazer no sentido do que é visto e
assimilado como a prática real, mediada por um “deve fazer”, os enfermeiros da rede
básica mencionam em seu discurso o fazer mediado pela busca de satisfação, como se
abdicassem de parte do papel anteriormente definido. A explicação que aparece nas
entrelinhas para tal situação se coloca da seguinte forma : embora definissem seu papel
com uma amplitude que envolve as ações administrativas, pedagógicas e assistência
direta, o fazem atrelado apenas a um grupo específico dessas ações – a assistência
direta. A mediação entre o papel definido e a prática concreta é dada pela satisfação que
essa prática oferece. Assim, ele opta pela prática que lhe dá satisfação e rejeita o papel
anteriormente definido.
Interessa ressaltar que a questão da satisfação do trabalho foi mencionada apenas
na fala dos entrevistados da rede básica (em duas entrevistas por menção espontâneas e
em uma terceira entrevista por referência do pesquisador), aparecendo, sempre
relacionada à práticas que envolvem a assistência direta à clientela.
A razão dessa satisfação nos leva a pensar, por um lado, na expressão do desejo
de atuar frente à clientela, num atendimento as demandas da formação do profissional.
E, por outro, na insatisfação referida por uma das enfermeiras em ter que fazer uma
prática administrativa, rejeitando este papel, por ele estar, geralmente, ligado à idéia de
controle sobre a equipe auxiliar, o que tem uma conotação negativa no ideário de alguns
profissionais.
Passemos então a discutir tais questões de maneira mais detalhada.
Quando perguntamos aos gerentes o que fazem os enfermeiros inseridos na rede
de Niterói, percebemos em suas falas uma crítica à prática desse profissional, como se
83
esta não satisfizesse as expectativas desses. Encontramos assim dois discursos : o que
faz o enfermeiro e o que deve fazer, segundo o que pensa cada gerente.
Das categorias de ações desenvolvidas pela enfermagem propostas por XAVIER
et al. (1987), os seguintes grupos estão presentes nos discursos analisados: ações de
natureza administrativa, ações de natureza pedagógica, ações de natureza complementar
e de controle de risco. Contudo, segundo os gerentes, o enquadramento das ações
desenvolvidas, dentro das categorias acima, foi, de certa forma, dificultada, na medida
em que esses não descrevem ações isoladas praticadas pelo enfermeiro, mas grupos de
ações, denominadas por eles como administrativas, assistenciais ou organizativas. Ou
ainda, numa definição vaga, o gerente não consegue clareza para dizer o que fazem
esses profissionais, como acontece com esse gerente da rede básica :
“...o que eu percebi ao longo do tempo, mais ou menos uns dois meses que nós estamos deflagrando essa discussão, é que cada um trabalha da forma que acha que deve trabalhar. Então, não existe uma linha de trabalho comum, homogênea para toda a rede básica” (GERENTE SUP I,)
Buscamos, dentro de cada texto analisado, identificar em qual das categorias
essas falas se enquadram, destacando as divergências, que são identificadas nas falas
desses mesmos gerentes.
Predomina nas entrevistas a caracterização da prática do enfermeiro como
administrativa, não ficando explícita uma relação direta dessa prática administrativa
com à assistência de enfermagem, conforme caracterizada por XAVIER et al. (1987).
Muitas vezes aparece, mesclada ao que os gerentes chamam de prática administrativa, a
expressão “organizador”, explicando a ação do profissional nos serviços. Dentro dessa
idéia do “enfermeiro organizador”, se insinua a idéia do enfermeiro que faz tudo na
unidade:
“Tudo.( O enfermeiro faz) Tudo, o enfermeiro se coloca como
organizador de fluxo da unidade, ele se coloca como organizador de programas da unidade, de saída de dados, de...então ele faz um trabalho extremamente amplo e que eu até deduzo, pelo que me colocam, que seja o grande trabalho do enfermeiro mesmo...”. (GERENTE SUP II)
A visão do enfermeiro “faz tudo”, expressa acima, longe do que Xavier et
cols.(1987) definem como ações de natureza administrativa, não é uma ilusão do
entrevistado, mas assusta sua dedução de que esse “seja o grande trabalho do
84
enfermeiro”. Certamente essa dedução encontra bases na realidade concreta dos
serviços, onde ele acaba realmente fazendo tudo (e nada) . Embora esse não seja o
discurso de todos os gerentes, a prática como profissional da área, nos permite uma
idéia do quanto esta percepção se encontra enraizada no ideário dos profissionais de
saúde – sejam eles gerentes ou não.
Uma segunda caracterização desse fazer, em termos de freqüência com que
aparece na fala dos entrevistados, relaciona-se com as Ações de natureza complementar
e de controle de risco. Nessas ações o destaque é para o trabalho educativo voltado para
à clientela. Essa prática se relaciona a participação em grupos educativos, frações de
programas específicos, particularmente na área de saúde da mulher.
No grupo de Ações de natureza terapêutica e propedêutica de enfermagem,
temos o relato de um gerente, que mencionou o fazer terapêutico como constituinte da
prática do enfermeiro no âmbito do serviço que gerencia. Vale ressaltar que esse gerente
responde por uma policlínica que, por sua própria história, investe em experiências
inovadoras. Com isso, podemos considerar o fazer terapêutico como uma possibilidade
no espaço dos serviços, mas que não parece constituir, nos serviços de Niterói, uma
prática ampliada tal qual a prática administrativa ou mesmo a educativa
Dessa forma, podemos perceber, com base nos discursos dos gerentes, que a
prática do enfermeiro é predominantemente administrativa, com rasgos de assistência
prestada à população. Acreditamos que isto se relaciona com o desejo de desenvolver
essa ou aquela atividade, mas que também expressa a ausência de definições dos
próprios serviços de saúde sobre seu papel no seio de uma população, determinando
qual é o perfil profissional mais adequado ao serviço. Essa idéia é bem representada no
texto abaixo:
“Eu acho que a atividade que a enfermagem vem fazendo hoje é fundamentalmente administrativa, tá, tem algumas concentrações na área assistencialista (...). Mas isso vai muito ao gosto do enfermeiro, quer dizer, se ele gosta de trabalhar com determinada área, ele trabalha com determinada área, com determinado grupo.(...) Essa lógica é muito presente no serviço público”. (GERENTE SUP I)
A respeito da idéia do “deve fazer”, evidenciada no discurso dos gerentes,
notamos em suas falas uma expectativa de ampliação de funções. Em alguns momentos
essa ampliação é tão significativa, que o enfermeiro aparece como um profissional
85
multimídia, capaz de atuar em todos os campos oferecidos pelo serviço. Se colocando,
de certa forma, como busca do enfermeiro generalista.
“Então aqui no serviço de enfermagem de uma área básica, nós
estamos priorizando trabalhar com promoção, com prevenção, assistência também, e a área administrativa na parte da enfermagem, mas priorizando promoção e prevenção. Então,a capacitação de professores da rede escolar da área onde ele está inserido, no sentido de repassar as informações em saúde para a classe da aula, para a reunião de pais; articulação com a associação de moradores pra fazer esse trabalho junto a comunidade: de educação, de informação, de discussão. Então eu acho que o enfermeiro, a partir do momento em que ela incorporar isso na sua rotina, tem um dia em que ela pode fazer a assistência dela ao pré natal, a puericultura, coleta de pré-natal, etc.; um dia que ela vai trabalhar educação em saúde não só específico de grupos mas com ações mais amplas na comunidade; dias onde ela vai observar melhor a questão administrativa que ela tem responsabilidade por orientar ou por fiscalizar. Enfim, acho que tem que seguir esse raciocínio: trabalhar em todas as áreas, mas com prioridade para a educação em saúde.” (GERENTE SUP I)
Na classificação de XAVIER et al.(1987), as ações propostas acima se integram
ao grupo de Ações de natureza complementar e controle de risco que, embora façam
parte das ações de domínio do enfermeiro, não são atividades exclusivas desse
profissional, mas parecem ser, cada vez mais, delegadas a ele.
Em outros momentos a ampliação do fazer parece relacionar-se a uma tentativa
de suprir a falta do profissional médico nos serviços:
“Acho que, como eu falei, a participação desses grupos é
fundamental e acho que a tal consulta de enfermagem, que eu não tenho noção, até depois você podia me esclarecer, porque eu não tenho noção direito do que deveria ser, eu acho que é uma coisa que é importante; que supre uma necessidade às vezes, que você não tem um médico para dar determinadas orientações, que não precisa de uma coisa mas técnica, né, dá função do médico, e o enfermeiro cabe muito bem nessa função”(GERENTE UBS I)
Essa idéia, ainda que não pareça representar um pensamento corrente na rede de
serviços de Niterói, remete a lembrança de que, historicamente, muito da ampliação do
trabalho do enfermeiro se deu a partir da incorporação, à sua prática, de funções
médicas delegadas. Particularmente as funções ditas “manuais” ou consideradas “menos
nobres”. As recentes modificações na assistência ao parto em alguns hospitais
localizados no Município do Rio de Janeiro, que permite e estimula que os enfermeiros
86
assumam a condução do parto normal7, nos levam a pensar se o seguinte movimento
não estaria novamente acontecendo: à medida que a medicina se especializa a atenção
básica à saúde passa a ser considerada “menos nobre” e é delegada ao enfermeiro. O
serviço público ganha assim uma assistência qualificada, a custos mais baixos.
A idéia acima não é identificada, nesse momento, como tendência no município
de Niterói, no que se refere à ação do enfermeiro como agente terapêutico. Contudo,
notamos que é cada vez mais comum que estes profissionais assumam cargos de chefia
ou de vigilância em saúde nas unidades básicas. Nos perguntamos se isso se deve
apenas à sua qualificação ou à sua disponibilidade de oferecer o tempo integral que tais
cargos demandam, frente as baixas gratificações que oferecem. Para o médico, tais
cargos parecem não serem tão atraentes sob o ponto de vista financeiro. Já que, muitas
vezes, uma atividade pontual em uma clínica privada lhe rende o mesmo que um cargo
de chefia. Sendo que este tem exigido cada vez mais da gerência responsabilidade em
seu comando e em sua administração.
A flexibilidade nos horários e a disponibilidade de uma prática liberal, por outro
lado, não é comum ao enfermeiro, que pode encontrar na ocupação desses cargos de
chefia uma chance para aumentar um pouco o seu salário. Além de ganhar um status
que habitualmente não tem.
No espaço do PMF seu fazer é caracterizado, na fala do gerente do Projeto,
como uma prática mesclada por várias atividades, predominando a administrativa,
conforme a fala abaixo:
“...vamos dizer que predominaria em um primeiro momento essas
questões de ordem administrativa, vamos dizer assim, que seja a primeira etapa de estabelecer uma rotina de funcionamento, que seja ... essa etapa, o enfermeiro mais do que ninguém, é um elemento fundamental” (GERENTE PMF.)
Contudo, da mesma maneira que os gerentes da rede básica, as ações
administrativas propostas vão além da especificidade da administração da assistência de
enfermagem
Notamos, também, um peso importante das Ações de natureza pedagógica,
relacionadas à capacitação dos auxiliares de enfermagem do Projeto. Embora se
perceba, na fala inicial desse gerente, a intenção de que o processo de supervisão do
7 Tal função já era garantida ao enfermeiro por lei, desde 1986, contudo, encontrava-se restrições a essa prática nos serviços.
87
enfermeiro esteja vinculado à dupla de médico e auxiliar de enfermagem, percebe-se no
decorrer da entrevista que a relação é muito mais estreita com os auxiliares. Percepção
esta que se consolida na observação da elevada freqüência com que os auxiliares são
citados como objeto de intervenção do enfermeiro, sem que se faça menção à figura do
médico, conforme a transcrição que se segue:
“...a gente tem essa perspectiva, a principio desenvolvendo junto
com as auxiliares, que dizer, fazendo um plano de trabalho com as auxiliares, seja assim , coisas bem operacionais, práticas mesmo. Por exemplo, orientação a respeito dos curativos, das rotinas de vacinas, controle e solicitação de medicamentos e materiais, a própria observação, que o enfermeiro também faz o treinamento e também faz a supervisão ao servente, no sentido da manutenção e da limpeza do módulo, que também é uma referência direta ao enfermeiro; a conduta com relação à esterilização de materiais e tal, e aí, as auxiliares geralmente é que vão dando os indicativos de como é que está o funcionamento, quer dizer, a dinâmica no modulo como um todo”. (GERENTE PMF.)
Observando-se ainda a forte referência que se faz à enfermagem - não só ao
enfermeiro, como uma atividade de apoio, o que também pode ser percebido no
decorrer do texto acima e em toda a entrevista.
Diferente dos gerentes da rede básica, não encontramos no discurso do gerente
do médico de família uma idéia de um “deve fazer” para esse enfermeiro, o que indica
que a prática que o enfermeiro ali desenvolve é a desejada para o projeto.
Na fala dos enfermeiros seu fazer aparece relacionado as Ações de natureza
complementar e de controle de risco, Ações de natureza administrativa e as Ações de
natureza pedagógica.
No relato dos enfermeiros do PMF, está relacionado principalmente a Ações de
natureza pedagógica, desenvolvidas junto aos auxiliares de enfermagem.
“Do que eu dedico mais tempo, depende tudo da exigência do que
o auxiliar demonstra, das suas dificuldades. Por exemplo: eu tenho um trabalho na minha equipe, nesses módulos todos, eu me programo para supervisão, nessa supervisão estou sempre tentando fazer educação em saúde, fazendo a orientação básica, reciclando automaticamente e compete a mim, eu deixo comigo, os paciente mais graves eu faço supervisão direta.” (ENF. PMF I)
“...então a gente tem que estar treinando os profissionais e supervisionar o trabalho que eles realizam...” (ENF. PMF II)
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As ações de natureza administrativa referidas pelos enfermeiros do Projeto
aparecem, principalmente, referidas à organização do processo de trabalho do auxiliar
inserido nos módulos, estando mais perto do que XAVIER et al.(1987) chamou de
Ações de Natureza administrativa.
Não se identifica, em suas ações regulares, ações de assistência direta à clientela.
Estas, quando ocorrem, tem como objetivo a demonstração para o auxiliar de
enfermagem. Em algumas falas, aparece uma referência à execução, pelo enfermeiro, de
atividades mais complexas, desenvolvidas junto com o auxiliar.
Diferente do Projeto Médico de Família, no relato dos profissionais da rede
básica, não aparece em momento algum a execução das atividades de natureza
pedagógica ou supervisão junto ao auxiliar de enfermagem. Vale ressaltar que, embora
esses mesmos enfermeiros afirmassem ser o auxiliar de enfermagem uma
responsabilidade sua, parte inexorável de seu papel, quando pedimos que falassem sobre
o que fazem, não houve nenhuma referência direta à ação junto ao grupo auxiliar.
O que vai caracterizar então o fazer dos enfermeiros inseridos na rede básica é a
relação com a clientela, no grupo de ações que XAVIER et al..(1987) chamou de ações
de natureza complementar e controle de risco. Essas ações se caracterizam por seu
caráter preventivo. O caráter de complementariedade refere-se ao fato destas ações
serem desenvolvidas também por outros profissionais de saúde.
As atividades mencionadas como seu fazer estão relacionadas, principalmente,
ao controle de risco em grupos específicos, conforme relato abaixo transcrito :
“Eu faço puericultura, quer dizer, eu tento ver ao máximo esse
lado de prevenção mesmo de doenças”. (ENF UBSII) “Eu sou responsável pelo programa materno infantil, a outra é da
mulher...” .(ENF UBSI
“Eu faço trabalho básico justamente de educação em saúde, ligado à saúde da mulher; onde nós levamos a mulher ao questionamento, à reflexão”.( ENF PCL)
De forma diversa das atividades administrativas, a referencia à satisfação com o
trabalho aparece sempre ligada à atividades que envolvem uma relação direta com a
clientela, ocorrendo no discurso dos enfermeiros da rede básica, na maioria das vezes,
por menção espontânea do entrevistado.
89
As atividades administrativas são, tal qual o trabalho doméstico, importantes
mas desvalorizados. Portanto, muitas vezes rejeitadas. Por outro lado, as atividades mais
intimamente ligadas ao usuário criam um vínculo deste com o enfermeiro, na medida
em que o reconhece como um agente que trabalha em benefício de sua saúde. Isso pode
ser percebido na frase abaixo:
“... e a gente cria um relacionamento com o cliente, e eu acho que
isso daí é gratificante demais”. (ENF UBSI)
Estar trabalhando com o que se gosta surge então como condição para que o
trabalho seja prazeroso. Contudo, a possibilidade de trabalhar dessa forma é
identificada, em alguns relatos, como existente apenas no espaço singular dos serviços,
dependente da chefia imediata, conforme transcrição abaixo.
“Eu acho que, na medida do possível, se tem até empenho do
funcionário, do profissional, trabalhar naquilo que ele gosta, mas vai depender da chefia, da direção. (ENF UBSI)
A questão da insatisfação frente à sua prática é tratada, na literatura, como
decorrente da frustração determinada por uma formação idealizada, que constrói um
enfermeiro assistencial e uma demanda real por alguém que seja administrador. Uma
vez que a instituição onde esse profissional se insere possibilita a expressão de uma
prática tal qual a idealizada, seu grau de satisfação é maior.
Com isso, podemos dizer que a prática do enfermeiro inserido no espaço
estudado assume características diversas no PMF e na rede básica.
No primeiro caso, mais coerente com o papel que anteriormente lhe foi
atribuído, tanto pela gerência do Projeto, quanto delimitado pelos próprios profissionais,
temos uma prática predominantemente pedagógica, relacionada sobretudo ao grupo de
auxiliares de enfermagem. A parcela administrativa dessa prática parece ir além do que
XAVIER et al.(1987) caracterizaram como “prática administrativa da enfermagem”.
Contudo, não se pode afirmar que fuja totalmente da especificidade do trabalho do
enfermeiro.
No caso da rede básica, não se percebe a mesma coerência entre o papel e
prática. O papel híbrido, exposto nos discursos de gerentes e enfermeiros, admite sua
atuação junto à clientela, de acordo com condições existentes. Entretanto, atribui mais
90
valor a sua função administrativa (na fala dos gerentes extrapola a idéia de
administração da assistência da enfermagem). Na prática, encontramos o inverso – o
profissional descreve sua atuação junto à clientela como sua principal função, sem
percebermos com muita clareza a regularidade com a qual essas ações são
desenvolvidas. Essas atividades parecem estar relacionadas à busca de satisfação (que é
referida sempre associada à ação direta junto à clientela). Por outro lado, existe, no
discurso dos gerentes, uma referência à existência de ações de caráter administrativo,
que não é explicitado em termos de ações concretas pelos enfermeiros.
Com isso, observamos como principal diferença entre as duas experiências, no
que se refere a prática do enfermeiro, é que, se no PMF podemos identificar com clareza
a prática que desenvolve, encontrando correspondência com o papel que lhe foi
definido, o mesmo não acontece com os enfermeiros da rede básica, que tem uma
prática dispersa, de contornos tão indefinidos quanto seu papel.
3.3 - O Profissional que se Forja no Cotidiano dos Serviços A questão dos recursos humanos é presente em qualquer discussão que trate da
reorganização dos serviços de saúde. A formação está entre os problemas que
determinam uma inadequação dos profissionais a uma proposta de mudança nas formas
de organizar as ações e serviços de saúde. É mais do que discutido que o modelo de
formação desses profissionais não contempla as necessidades dos serviços, obedecendo
uma demanda que estimula a incorporação de equipamentos e a especialização intensa,
que não dão conta das necessidades de saúde da população.
Com o enfermeiro, não ocorre diferente: a sua formação se espelha em políticas
equivocadas e, permeada por uma ideologia que o definia como profissional submisso,
tem contribuído para a manutenção de um modelo assistencial que não contempla as
necessidades de saúde .
Sobre essa questão, GERMANO (1983) assinala nas origens da enfermagem, as
raízes ideológicas que, segundo ela, marcam até hoje o ensino de enfermagem na
sociedade brasileira. O enfermeiro deveria ser "alguém que não exerça crítica social,
porém console e socorra as vítimas da sociedade" (GERMANO,1983:25).
91
Se no campo ideológico esse enfermeiro é completamente inadequado para uma
proposta de mudança que se coloca na contramão da ideologia hegemônica, que admite
como conceito que se oriente a atenção à saúde uma prática individual e curativa, no
campo técnico isso não é diferente. O currículo de enfermagem, vigente até o ano de
1994, portanto, responsável pela formação dos enfermeiros que vem ingressando no
mercado nos últimos anos, se espelha no currículo médico, que tem o hospital como
campo privilegiado do desenvolvimento profissional, abordando as questões
relacionadas à saúde, sob o ponto de vista coletivo, de forma superficial.
SCHRAIBER & PEDUZZI (1992) discutem uma tese de concepção tecnológica,
em que as mudanças na formação dariam conta de modificar todos os componentes da
prática profissional, transformando assim a forma de produção dos serviços de saúde,
assinalando que esta se baseia na
"...crença no pressuposto de que a inculcação de valores, além
de poder derivar simplesmente da transmissão de certos conhecimentos, tem maior poder transformador da prática do que a reformulação nas bases materiais e objetivas do trabalho no qual o agente se insere". (SCHRAIBER & PEDUZZI, 1992:8)
Se considerado esse olhar, as transformações desejáveis ocorreriam a partir de
uma dimensão subjetiva do profissional, colocado como principal responsável pelas
mudanças propostas.
Dentro do movimento de reforma sanitária, o olhar sobre a forma de produzir
serviços de saúde se amplia e a qualificação se torna uma "condição tecnológica
necessária", mas não mais suficiente para dar conta da proposta de resolutividade dos
serviços de saúde.
Com a concepção das práticas de saúde como históricas e socialmente
determinadas, percebe-se que para que mudanças nestas práticas ocorram, é necessário
mais que mudanças curriculares, mas mudanças no próprio espaço dos serviços, com
associação entre a formação do profissional e a reconstrução das práticas de saúde. Com
isso, poderia der desfeita a contradição entre formação e prática profissional, expressa
por LIMA (1994), que identifica um ensino voltado para a reprodução e manutenção de
modelos de prática idealizados, mas que não encontram espaço nos serviços.
EGRY et al. (1992) assinalam a integração docente assistencial como a
possibilidade de articular a construção do saber e o fazer no âmbito dos serviços.
92
GASTALDO & MEYER (1989) destacam a ênfase que é colocada na formação
do enfermeiro no aspecto de sua conduta, em detrimento ao conhecimento. Com uma
construção de conhecimento irregular no campo da enfermagem, essas autoras
consideram intocadas as relações de poder no seio da equipe de saúde, onde o
enfermeiro permanece sem autonomia. Por outro lado, a formação permeada pela
ideologia de submissão fez da enfermeira "uma executora modelar das diretrizes do
governo", mantendo-a alheia as necessidades da população. Também contribuindo para
que as enfermeiras tenham clareza do que se espera delas em relação à sua aparência
pessoal, mas sem muita percepção de suas reais atribuições.
A questão da adequação da formação do enfermeiro frente as necessidades dos
serviços de saúde em que ele se insere na rede de Niterói é tratada de duas formas.
Alguns entrevistados identificam uma inadequação do currículo de formação
profissional, referindo a necessidade de mudanças no mesmo. Uma outra abordagem,
mais presente, é aquela que assinala um insuficiência nos conhecimentos dos
profissionais no campo da saúde pública, mencionando com freqüência a necessidade
de suprir essa deficiência. Contudo, a capacitação que é julgada necessária ao trabalho
não seria, segundo tais falas, inseridas na formação do profissional durante sua
graduação, mas sim a partir do momento em que esse se insere nos serviços, através de
treinamentos específicos, citando-se algumas vezes o Curso Básico de Vigilância
Epidemiológica8 ou um curso na área de saúde pública a título de especialização.
Assim, não existe, nem no PMF nem na rede Básica de saúde, uma exigência de
qualquer qualificação formal, além da graduação, para que o enfermeiro venha a
integrar suas equipes.
A demanda por algum conhecimento de saúde pública necessário a tal
profissional é referida como 'desejável'. Contudo, sua ausência não inviabiliza a
incorporação desse profissional, na rede básica. No caso do PMF esse conhecimento é
fundamental para que o profissional seja incluído no grupo, mas não existe delimitação
sobre que extensão do conhecimento em saúde pública é necessária para que o
enfermeiro atue no PMF.
8 - Tal curso é composto de módulos de capacitação na área de vigilância epidemiológica. Foi elaborado pelo Ministério da Saúde, sendo aplicado inicialmente por esse órgão, e depois reproduzido para as equipes das redes estaduais e municipais de saúde. Na Fundação Municipal de Saúde de Niterói o curso foi oferecido, ainda na década de 80, a muitos profissionais, com o objetivo de capacitar equipes para trabalhar na área de vigilância.
93
A demanda por esse tipo de conhecimento evidencia, na prática, os reflexos da
estrutura curricular de formação dos enfermeiros, que não tem em seu tronco de
formação principal a exploração do campo de conhecimentos relacionado à saúde
pública. A incorporação desse conhecimento só vai acontecer se houver uma escolha do
graduando. Caso o contrario, sua formação, tal qual o currículo dos demais
profissionais de saúde, é direcionada à prática do atendimento individual, calcado no
ambiente hospitalar.
Vale apontar a mudança que ocorreu na formação do enfermeiro no ano de
1994, quando foi criada uma estrutura curricular com a proposta de oferecer ao
enfermeiro mais coesão à idéia dele se tornar um profissional mais consciente e hábil
no campo da saúde pública, com a capacidade de exercer uma visão crítica à prática
que desenvolve. Contudo, os enfermeiros que estão recebendo essa formação ainda não
ingressaram no mercado, e o impacto de sua atuação ainda demorará um pouco para se
perceber.
Dessa forma, percebemos que as adequações da formação do enfermeiro à
realidade acontecem na prática quotidiana dos serviços.
Explorando agora o discurso dos entrevistados a respeito da formação do
enfermeiro e as demandas da rede de saúde de Niterói, passamos a observar como essa
questão aparece, num primeiro momento, para os gerentes do sistema. Posteriormente,
será discutido a percepção que o enfermeiro tem a respeito de sua formação versus
demandas dos serviços.
Ao questionarmos os gerentes sobre a formação que era demandada dos
profissionais que integram a rede básica, encontramos respostas diversas. No discurso
da maioria o que se expressa é a necessidade de que esse profissional conheça saúde
pública. Conforme se explicita na fala abaixo:
"...ele é enfermeiro e teoricamente o enfermeiro está
capacitado para tudo. A gente sabe que isso não é verdadeiro. Então, ele sai da faculdade sem condições de trabalhar em todos os programas, de exercer plenamente o que é necessário em uma unidade básica. Mas não existe, que eu saiba, uma programação para isso (...).. Eu acho que o mais importante para trabalhar na unidade básica é aquele enfermeiro com formação em saúde pública". (GERENTE PCL I))
"...acho que saúde pública ia ser bastante interessante como acho que saúde pública ia ser bastante interessante para mim também.
94
Eu acho que saúde pública tem importância, já que ele está lidando com isso."(GERENTE UBS I)
Uma outra demanda, a titulo de formação que pode contribuir para a atuação
desse profissional nos serviços, refere-se à necessidade de uma especialização na área
onde o profissional atua. Porém, ao contrário do conhecimento em saúde pública,
assinalado como necessário, mas que pode ser adquirido em cursos ou treinamentos de
curta duração, essa capacitação caminha no sentido inverso à idéia do enfermeiro
generalista, que é referida por aqueles que identificam a mudança curricular como o
caminho para obter um profissional mais adequado as necessidades do serviço. O
depoimento abaixo expressa essa demanda:
"Precisa onde ele tiver lotado. Então como a gente estava falando antes, o profissional que está desempenhando funções em um determinado serviço precisa se qualificar; e essa é uma demanda que a gente recebe muito forte, muito vigorosa desses profissionais, né. Então a enfermeira que está no pré natal precisa fazer uma formação específica de obstetriz, né. Então tem um curso ótimo na UERJ que é um curso de nove meses...". (GERENTE PCL II
Cabe assinalar que essa demanda não é uma questão presente em todos os
discursos, mas encontra uma especificidade na realidade de uma policlínica
comunitária, que ainda que se caracterize como unidade de primeiro nível, engloba nos
serviços oferecidos, algumas especialidades. Nesse espaço, o trabalho do enfermeiro, tal
qual o trabalho médico, tende a se especializar, não cabendo muito bem a idéia do
generalista. Isso fica evidente na fala abaixo, quando o mesmo gerente refere-se ao
valor do profissional generalista para a unidades básicas, mas não supre a demanda da
policlínica.
"Eu acho que se tiver a competência de montar uma formação
para esse enfermeiro generalista, é um profissional precioso. Eu acho que essa qualificação em especialidade ou em localizações, acho que aqui, principalmente porque é uma unidade grande, em que cada serviço tem um porte pesado, de uma demanda importante. Acho que a idéia é muito boa. Acho que se tiver uma formação que garanta, esse profissional terá uma visão ampliada. Aí, eu acho que ele pode exercer tranqüilamente essa tarefa em unidades básicas”.(GERENTE PCL II)
95
A partir da idéia do enfermeiro generalista, surge uma discussão interessante.
Retomamos a discussão sobre o papel deste profissional. Sendo este caracterizado
como administrativo e pedagógico, refletimos sobre a pouca especificidade das práticas
administrativas e pedagógicas, e nos perguntamos se essa formação não daria conta
para o exercício de tal papel. Essa relação, contudo, não é tão simples.
Administrar um dado serviço pressupõe conhecer seus processos de trabalho e o
exercício da prática pedagógica demanda conhecimento da área na qual a equipe deve
receber capacitação. Uma vez que o ensino do enfermeiro privilegia o hospital, o
domínio dos processos de trabalho e da assistência de enfermagem em saúde coletiva
não é próprio a maioria destes, tornando-os limitados para executar esse papel. Por
outro lado, ainda que assumíssemos seu papel implica numa prática assistencial no
espaço dos serviços básicos de saúde, seu conhecimento é limitado também nesse
campo.
Considerando tais observações, assinalamos que, embora concordando com a
observação dos gerentes a respeito da necessidade de conhecer saúde pública para que
o enfermeiro possa melhor atuar no campo, não acreditamos que qualquer curso de
saúde pública, seja curto ou extenso, supra as necessidades do enfermeiro, pois existem
muitas questões específicas da enfermagem que necessitam ser abordadas. Nesse
sentido, concordamos apenas em parte com a idéia que se delineia no depoimento
abaixo, a respeito da mudança no currículo profissional.
"Eu acho que talvez tivesse que haver uma mudança no currículo
de formação do enfermeiro, porque o enfermeiro é formado e é direcionado totalmente para o hospital. O currículo de formação do enfermeiro é bastante hospitalar, tanto quanto a formação médica; então eu acho que o ideal...Não acho necessário fazer uma especialização para o profissional trabalhar em uma unidade básica de saúde. Eu vejo isso para todos os profissionais de saúde que trabalham.... Eu vejo numa reforma curricular, aí sim , se você incorporar no currículo(...)que o aluno já entra na unidade básica desde o inicio, ele já percebe qual é a lógica de funcionamento do sistema porque está lá dentro do sistema, está lá dentro da ponta, está lá vendo como é que a coisa funciona, a responsabilidade sanitária, o compromisso com a clientela, com a população adscrita. Então tudo isso, ele incorpora durante sua formação; e se amanhã ele vai trabalhar no hospital, é uma questão de opção" . (GERENTE SUP I)
A mudança curricular é necessária, na medida em que possibilita ao enfermeiro,
ainda na sua formação, conhecer e questionar os processos de trabalho em saúde
96
coletiva, identificando o seu papel ou construindo um novo. Contudo, só a mudança
curricular é insuficiente. Conforme referido anteriormente, é preciso mais. A integração
entre os aparelhos formadores e os serviços também devem mudar, de forma a atender
as reais necessidades da população, possibilitando assim forjar um profissional mais
adequado à realidade.
Recordamos uma experiência como docente em uma instituição que iniciava a
implantação do novo currículo de enfermagem, assinalando que uma das grandes
dificuldades estava na inexistência de campos de prática abertos a mudanças do
profissional. Assim, acreditamos que a mudança curricular, sem uma transformação no
seio dos serviços, pouco contribui para sanar o problema da inadequação dos
profissionais, mudando apenas o caráter dessa inadequação. Uma possibilidade para
que as mudanças necessárias se processem vem com a integração entre ensino e
serviço, que em alguns espaços da rede de Niterói já acontecem.
"Então, a escola de enfermagem (eu acho que como
universidade tem essa obrigação meio de desbravar o caminho) dizer "Olha!"; apontar para qual é o pensamento hoje do mercado de trabalho para o profissional enfermeiro — traz para a unidade, que sempre foi um campo de estágio para seus alunos, essa reflexão".(GERENTE PCL II)
Passando ao PMF, identificamos como demanda também do projeto, o
conhecimento em saúde pública,
"...se eu fosse falar para você, a gente realmente teria uma
preferência para pessoas que realmente tivessem ou uma formação teórica ou prática dentro da saúde pública. Esse é um elemento que para a gente é muito caro no sentido de estar trazendo essa dimensão para o trabalho mesmo. A gente está hoje saindo daquele aspecto puramente assistencial, que foi uma etapa inicial, que faz parte de toda a implantação, para essa etapa mesmo de uma visão mais do coletivo, para uma dimensão maior da saúde coletiva, da saúde pública. Então eu acho que seria hoje um dos principais requisitos".(GERENTE PMF.)
Contudo, ressalta-se que tão importante quanto uma formação ou uma
experiência na área de saúde pública é a harmonia ideológica desse profissional com as
propostas do Projeto:
97
"...mas basicamente eu acho que a qualificação que se espera ela..., no caso todas elas tinham essa qualificação já repercutida dentro de um trabalho que foi desenvolvido, mas eu acho que o principal fator é ter essa sensibilidade para o papel que está desempenhando. Sensibilidade no sentido de compreender a proposta , estar afinado com sua proposta de trabalho... A gente brincava que isso não era um trabalho, isso era uma militância(...) Então para você, de certa forma, militar no Projeto, tinha que ter uma afinidade ideológica que não passa por pelo território da ideologia partidárias mas assim, eu acho que esse é o principal elemento e, é claro, ter uma prática que respalde isso, quer dizer, ter um compromisso profissional...".(GERENTE PMF.)
Não acreditamos que o ensino formal, por si só, garanta a harmonia ideológica.
Contudo, acreditamos que esta seja de alcance mais fácil na medida em que ocorre
uma integração entre ensino e serviço. De forma que o profissional possa melhor
conhecer os serviços ainda durante sua formação, criando capacidade de análise crítica
sobre sua prática e buscando integrar-se a propostas de trabalho com a qual tenha maior
afinidade ideológica.
Uma questão que foi pouco apontada nos discursos, mas que merece ser citada,
é a necessidade de uma reciclagem ou capacitação em serviço, assinalada por um dos
gerentes como atividade que deveria ser desenvolvida ou estimulada pela FMS, mas
que não acontece com a freqüência desejável. Assinala-se que essa demanda é suprida,
muitas vezes, por iniciativa do profissional, com pequena contribuição do serviço, não
refletindo uma política contínua de capacitação de recursos humanos.
"...Porque em todos esses aspectos, a gerência bancou que as
pessoas fossem fazer formação sem respaldo institucional; porque você sabe qual é o tramite para ser liberado para qualquer curso nessa Fundação: Primeiro tem que pedir a Deus, depois ao Papa, depois a todos os Bispos e a essa altura o curso já acabou."(GERENTE PCL II,)
O ponto comum entre o discurso dos gerentes e dos enfermeiros está na
percepção de que a graduação do profissional não dá conta das necessidades da prática.
A percepção do enfermeiro a respeito de sua formação frente as demandas dos
serviços de Niterói se coloca em torno de dois pontos principais: um se refere à
formação que se processa na prática quotidiana nos serviços, e o outro as mudanças
curriculares.
98
Com relação ao primeiro ponto, percebe-se na fala dos enfermeiros que, na
medida em que sua formação não supre as necessidades que ele sente no trabalho, surge
a necessidade de se reciclar:
"... eu lembro que a minha formação, que tem vinte anos, nem
aleitamento materno eu ouvi falar (...) Hoje eu trabalho basicamente com esse aleitamento(...) eu acho que profissionalmente a gente tem que estar sempre se atualizando..."(ENF.UBS II)
Vale destacar aqui que esse aperfeiçoamento reflete a necessidade sentida pelo
profissional, não se constituindo em uma demanda do serviço. Como necessidade do
profissional, há que se considerar que é extremamente singular, capacitando-se apenas
aquele profissional que julgar isso necessário, permanecendo defasado aquele
profissional que não o faz.
Além da capacitação formal, aparece na fala de alguns enfermeiros a
aprendizagem que se faz com a prática nos serviços :
"...nos formam quanto ao básico, mas o dia a dia vai fazendo
você se modificar, se reciclar e aprender"(ENF. PMF I)
No que se refere às mudanças curriculares, estas aparecem de dois modos na fala
dos enfermeiros. Em um momento, na identificação da necessidade de mudanças, como
abaixo:
"...vamos reprogramar, o curso de formação, o curso
básico..."(ENF PCL)
Em outros momentos, na percepção de como estas mudanças estão se
processando:
"...a formação nossa, eu acho que os currículos estão mudando
nas faculdades"(ENF UBS II)
A discussão que se desenvolve em torno das mudanças na formação do
enfermeiro apenas evidencia que ela é inadequada as necessidades que se colocam nos
serviços. Entretanto não oferece respostas ideais sobre o que fazer com aqueles que ali
estão exercendo sua prática, com todas as limitações trazidas pela formação. Se
99
originalmente as deficiências são as mesmas para enfermeiros da rede básica e do PMF
a resposta, a princípio, parece ser semelhante, porém com algumas ressalvas. Na prática,
todos acabam por complementar sua formação no dia a dia dos serviços. Contudo, o
PMF tem algumas vantagens nesse processo: primeiro, a possibilidade de selecionar
seus profissionais segundo uma experiência prévia e um determinado perfil ideológico.
E, segundo, dispor de espaços para a reflexão do trabalho cotidiano, possibilitando um
conhecimento cada vez mais profundo do trabalho e o crescimento do profissional.
Na rede básica, por outro lado, a seleção é feita através de concurso público, que
não tem conseguido selecionar profissionais afinados com os objetivos do serviço (que
também não estão tão claros). O espaço institucional para reflexão sobre a prática
inexiste, ficando a cargo do desejo individual. Certamente também nesse caso o dia a
dia do serviço vai contribuir para forjar esse profissional. Mas não será necessariamente
este o profissional adequado para atender as necessidades de mudança, que estão postas
enquanto política de saúde do município.
Nessa discussão é possível então perceber que a inadequação da formação
recebida é identificada tanto no espaço da rede básica de saúde, quanto no espaço do
PMF. Tal como os gerentes, os enfermeiros reconhecem uma insuficiência no curso de
graduação mas, diferente destes, não colocam as limitações em termos de conhecimento
de saúde pública. Eles abordam questões mais internas à profissão como, por exemplo,
se essa formação deve valorizar mais a questão administrativa ou a educativa.
A necessidade de complementar a formação está mais presente na fala dos
enfermeiros, como demanda individual e não do serviço. E, ainda que tenhamos
conhecimento, particularmente no início do processo de municipalização, de iniciativas
institucionais para discutir questões referentes à reorganização que se processa nas
práticas de saúde a partir do SUS, isso não aparece em momento algum na fala dos
entrevistados.
Dessa forma, percebe-se que os serviços de Niterói recebem o profissional tal
qual sai da faculdade, ficando a formação complementar a cargo da prática cotidiana
nos serviços e da busca realizada individualmente por cada profissional. Obtêm-se
assim perfis profissionais tão diversos quanto o número de enfermeiros existentes na
rede.
100
3. 4 - Mudanças na Política Municipal de Saúde e a Prática do Enfermeiro: Mudanças Concretas? Abstratas ? Possíveis!
Uma rápida olhada na história deste Município, no que se refere às políticas de
saúde, vai mostrar uma realidade dinâmica, desde a criação da Secretaria Municipal de
saúde, ainda na década de 70.
No desenrolar da história, a secretaria vivencia a proposta de atenção primária. É
precursora das Ações Integradas de Saúde(AIS), experimentando, na prática, algumas
das “soluções” propostas em meio a crise, já vigente, do modelo médico previdenciário
da atenção à saúde. Das AIS ao SUDS e, logo depois , na experiência de construir o
SUS no âmbito municipal, este município incorpora, a cada momento, uma nova e
diferente página na sua história de políticas de saúde.
Da mediação entre as políticas implementadas e a reação manifesta pelos
diferentes atores sociais envolvidos, se constrói a prática quotidiana nos serviços -
prática vivida, sentida e questionada, de forma ativa ou passiva, por aqueles que a
constróem.
A participação dos enfermeiros nessa construção não pode, segundo as
entrevistas analisadas, ser considerada como uma participação ativa. Pelo contrário,
encontramos em seus discursos a dúvida, o desconhecimento e, muitas vezes, a apatia
com relação as mudanças ocorridas nas políticas locais de saúde. As referências feitas
são, geralmente, relacionadas à percepção de uma mudança “no papel”, que não
encontra eco na prática. Dessa forma, percebemos que as transformações na prática
desse profissional, quando ocorreram, se relacionaram mais a uma conseqüência de
mudanças num plano mais amplo que aquele permitido por uma luta específica do
grupo,
Independente dessa postura dos enfermeiros, é possível identificar os reflexos
das transformações nas políticas municipais de saúde na prática desses profissionais.
Ainda que, muitas vezes, esses profissionais não as identifique, em sua fala, como um
fato novo em sua prática.
Entretanto, as mudanças concretas são poucas e ocorrem em espaços singulares
de unidades da rede básica ou no Projeto Médico de Família. As modificações na
política de saúde municipal abre novas possibilidades para a prática do enfermeiro.
Entretanto, a concretização de tais possibilidades, permitindo uma transformação no
papel e nas ações desse profissional, depende da postura do próprio profissional e,
101
ainda, da postura do gerente do serviço. Diante de um posicionamento dos enfermeiros
que é, geralmente, de pouca mobilização, essas transformações podem ficar apenas no
campo das possibilidades.
Essa idéia de uma reformulação possível, porém não concretizada, aparece com
mais nitidez no discurso dos gerentes, que citam poucas mudanças no fazer dos
profissionais, falando de possibilidades de um novo papel e uma nova prática para o
enfermeiro.
O Projeto Médico de Família, enquanto experiência inovadora, vem contribuir
com a criação de tais possibilidades, definindo, no seu espaço específico, o papel do
enfermeiro, caracterizando a sua prática. Num contexto mais ampliado, suas influências
transbordam para a rede básica, fomentando a discussão sobre a definição do papel dos
serviços de saúde e, nesse contexto, a definição do papel de cada profissional –
inclusive o enfermeiro. Contudo, embora acreditemos no poder dessa experiência em
estimular a discussão, pela própria necessidade de rever seu lugar frente a toda estrutura
de serviços pré- existentes e, por tabela, rediscutir o lugar de cada elemento dessa
estrutura organizacional, tal discussão já vinha se dando em um momento anterior à
própria existência do Projeto, quando se processava a organização dos Distritos
Sanitários. Mas, sem dúvida, o Projeto estimula e oferece subsídios a tal debate,
conforme percebemos na fala abaixo.
“ Eu acho que a unidade básica de saúde avançou e ela avançou
muito porque o médico de família de uma certa forma puxou por isso. O médico de família foi um grande laboratório para o Município – eu vejo dessa forma. Não vejo como forma de rixa entre serviços. Era um laboratório ótimo para testar vários conceitos que o SUS colocava..(...) ...ele é um grande laboratório e permitiu ter essa visão – Olha, se você não for conhecer a comunidade onde você está atuando, você não vai conseguir organizar seu serviço adequadamente. Hoje, para a rede básica, isso está evidente para todos, para todas as categorias profissionais, e pra enfermagem, isso forçou ela mais ainda para um olhar para fora de só os serviços de enfermagem que ela fazia antigamente.”(GERENTE SUP I)
“...mas eu acho que o Projeto foi, enquanto prática inovadora, foi conquistando seu espaço e até incomodando de tal forma as outras estruturas em que elas tiveram que realmente repensar e redimensionar(...). Eu acho que a rede de Niterói passa por um redimensionamento, e o médico de família tem esse caráter também, tem esse potencial de provocar essa reflexão, enfim; porque ele sozinho não resolve nada, quer dizer, se você realmente não percebe e concebe a
102
estratégia do médico de família como realmente uma estratégia, um elemento, ele não é a salvação da pátria, a salvação da lavoura, entendeu. Ele é um elemento fundamental assim que, por estar trabalhando diretamente com as questões aonde elas acontecem de fato e com uma aproximação, uma vinculação muito grande entre equipe e comunidade, quer dizer, ao mesmo tempo que você resgata... essa relação profissional de saúde X comunidade, você esta resgatando a relação comunidade X sistema de saúde, serviço de saúde, e você depende, obviamente, de um outro serviço de referência, ou um serviço de maior complexidade, ou de uma internação hospitalar, um sistema de comunicação, de transporte, de um laboratório, enfim é uma rede que tem que estar estruturada; e o médico de família tendo esse peso dentro da política municipal, ele provoca essa reflexão e outras transformações no seu desenvolvimento”. ( GERENTE PMF.)
No campo concreto, as mudanças propiciadas pela transformação das políticas
municipais de saúde na prática do enfermeiro se traduzem na ampliação das funções
desse profissional. Nessa percepção, que é comum a gerentes da rede básica e ao
gerente do Projeto Médico de Família, a ampliação se dá principalmente pela
incorporação, às atividades do enfermeiro, do planejamento de ações de saúde, num
nível decisório mais amplo, do que aquele onde o profissional tradicionalmente se
insere.
“ Olha, eu acho que cresceu a função, muita coisa. Quando eu entrei aqui a enfermeira achava que a função dela era controlar a quantidade de coisas no almoxarifado, tomar conta da geladeira, o quê que tinha antes, a temperatura, se estava certo, se estava errado, dar uma orientação a enfermagem e acabou. Tanto que a enfermeira virou para mim e disse que se ela viesse aqui uma vez por semana ela dava conta do recado – do recado que ela tinha como recado para ela. Então eu acho que isso é uma grande mostra da mudança que houve. Hoje é diferente. Eu tenho uma enfermeira que é chefe de epidemiologia, que foi um cargo que aconteceu, uma função que apareceu depois nessa mudança aí de organograma, nessa mudança administrativa. Então eu acho que hoje a enfermeira se envolve mais com uma série de coisas que não se envolvia antigamente. Então ela hoje tem uma função muito maior do que essa aí que alguns colegas diretores ainda vêem, que é se relacionar com o auxiliar de enfermagem, tomar conta, supervisionar o auxiliar de enfermagem e só. Hoje a enfermeira faz uma VD, avalia um monte de coisas, participa de grupo, vai fazer visita a neném que nasceu no Azevedo Lima, entendeu. Faz vigilância de todos os casos de hepatite, disso e daquilo, o que muitas vezes, era função só minha. A enfermeira estava tomando conta do auxiliar de enfermagem”. (GERENTE UBS I)
103
Essa idéia, contudo, adquire mais concretude no discurso do gerente do PMF
que no dos gerentes da rede básica. Pois, se no primeiro, essa prática do enfermeiro
como planejador de saúde é inerente à sua prática cotidiana, no segundo caso, ela
aparece vinculada à ocupação de um cargo de chefia. Vale destacar aqui que a ocupação
de cargos de chefia na estrutura da FMS tem se tornado freqüente para os enfermeiros .
Ainda dentro da idéia de ampliação do campo de prática, vale citar a referência,
por um dos gerentes, da atuação do enfermeiro como agente terapêutico. Isto é, não
mais como gerente, dono das chaves, mas como profissional que interage diretamente
com a clientela e contribui positivamente para a recuperação de sua saúde. Identifica-se
aqui a expressão de uma das correntes de pensamento que admite que o caminho para a
inserção do enfermeiro no âmbito da saúde coletiva deve se dar a partir da prática da
consulta de enfermagem, em uma relação direta com o cliente que individualmente
procura o serviço.
Essas duas “novas” inserções do enfermeiro no contexto do município não
constituem, a princípio, uma novidade em seu campo de atuação. Uma vez que já
estavam escritas, desde o ano de 1986, na lei de n.º 7498/86, que regula o exercício
profissional da prática desse profissional. Entretanto, sabemos que a lei escrita não
garante uma prática, mas respalda essa prática, garantindo sua existência quando ela é
construída no espaço institucional. A novidade então é a quebra das barreiras que
limitavam a atuação do profissional nesse campo, já definido como seu.
O que pode explicar a quebra de tais barreiras aparece, nas palavras dos
gerentes, como decorrente da construção de novos tipos de relação que se estabelecem
entre equipes e serviços, num processo de troca, permitindo que diferentes profissionais
expressem seu saber, conforme exposto nas falas abaixo:
“.... Se você municipalizou você começa a quebrar um pouco aquelas rotinas
de trabalho que cada instância definia(...)isso criava dentro das unidades uma heterogeneidade de ações por parte daquele profissional muito grande, (...) , então eu acho que com a implantação do SUS, (...) isso favoreceu que essa discussão do papel da enfermeira e da hierarquização do sistema ficasse incorporada pela categoria de forma mais plena, eu acho. Eu vejo isso hoje de uma forma muito positiva. Você discute hoje com a enfermagem da unidade básica e ela aponta até onda vai o limite do papel dela e ela coloca isso com mais clareza, ela coloca com mais clareza o compromisso que ela tem com aquela população adscrita. (...). Então, do ponto de vista do conceito de Niterói, que isso avançou consideravelmente na prática da enfermagem. Ela ficou estagnada, eu acho, no papel da enfermagem a nível hospitalar, porque ela se manteve ortodoxa, na sua prática e ela não ampliou sua visão em cima da enfermeira que tem ação lá na ponta, na Unidade Básica de saúde, porque dentro da própria enfermagem também existe essa questão do status profissional (GERENTE SUP. I)
104
“... essas estruturas em que se tem essa tradição de setorização, essa tradição de até, hierarquização maior, mais acirrada, eu ainda acho que o enfermeiro não esta exercendo plenamente suas atividades e não está sendo totalmente aproveitado. Então ainda há aquela coisa que o enfermeiro é responsável, vamos dar um exemplo, pelo programa de esterilização, então ele faz exclusivamente a esterilização daquele local. Então isso é uma coisa que está sendo mudado, até pela dificuldade dessa mão de obra, desse recurso humano, mas que ainda se encontra e que tem resistência tanto do enfermeiro, e que tem resistência da própria estrutura toda. Especialmente no antigo INAMPS, mas no Estado também, em que esse enfermeiro é muito setorizado, às vezes eles não sabem o que tem no andar de baixo e que a gente está tentando sempre bater para que não haja essa setorização tão grande (...) Acho que a gente pode afirmar com certeza, o enfermeiro deixou de ser um operacionalizador de ordens(...) Ele passou a ser... acho que as unidade passaram a constituir equipes de trabalho, o SUS é importante nessa virada, então, hoje em dia você tem a participação de todos os profissionais de saúde enquanto formador de perfil da unidade, enquanto montador do trabalho da unidade.; então eu acho que foi assim muito, muito evidente.(GERENTE SUP II)
Nos trechos acima transcritos, observa-se também uma outra mudança, ainda
que mais abstrata, que diz respeito à incorporação da discussão relacionada as
indefinições inerentes à profissão do enfermeiro ao cotidiano dos serviços. Deve ficar
claro aqui que, não se pretende dizer que no âmbito do sistema de saúde estudado é
possível criar uma solução para seus dilemas e impasses. O limite do possível está na
contribuição que a discussão sobre a prática desse profissional pode oferecer para a
reflexão mais ampliada dos enfermeiros, nesse espaço que, por mais que ainda possam
haver críticas, tem avançado na tentativa de transformar as práticas de saúde com base
nos preceitos do SUS.
É importante assinalar aqui que, embora em suas falas os gerentes identifiquem a
ampliação das funções do enfermeiro, sendo possível incorporar também aos serviços a
discussão sobre a prática desse profissional, isso não ocorre uniformemente em toda a
rede. Mas sim de forma pontual, favorecidas por condições tais como um dado
grupamento profissional, um serviço com história e prática diferenciada dos demais. Ou
ainda uma gerência que deseja e estimula tais mudanças. Para tornar mais clara essa
idéia, consideremos o relato que se segue.
“ É muito difícil para nós, por exemplo, bancarmos junto a
própria população e junto os próprios serviços, que aquele profissional tem o papel de ter uma agenda, ter clientes para serem atendidos, terem
105
toda uma atenção própria daquele profissional. Isso dentro de algumas equipes, ás vezes é problemático, mas na nossa visão isso as vezes vem qualificando demais o serviço.” ( GERENTE DE PCL II)
“Então eu acho que a característica e a natureza da unidade de ser uma unidade inovadora, que gosta de coisas diferentes, que busca outros horizontes, acho que facilita muito, acho que propicia, vamos dizer assim. Porque em todos esses aspectos, a gerência bancou que as pessoas fossem fazer formação sem respaldo institucional; porque você sabe qual é o tramite para ser liberado para qualquer curso nessa Fundação: “Primeiro tem que pedir a Deus, depois o Papa, depois a todos os Bispos e a essa altura o curso já acabou. Bem, aí a gente fala: “Vai”, e banca isso porque apostou. Todos apostamos nessa história – tanto quem foi fazer quanto quem respaldou, e acho que na medida que fazemos parte de uma rede – aí vem a história do SUS – acho que ampliou muito a integração entre forças diferentes, das diferentes unidades, do contato e do conhecimento de outras esferas de trabalho; acho que muito viabilizou que se bancasse essa diferenciação(...)acho que é cada vez mais expressiva a presença do profissional enfermeiro e o perfil desse profissional vem dando uma cara nova aos serviços também. É quando você começa a ter resultados e análise qualitativas que não sejam exatamente trabalhos científicos, mas da vivência cotidiana. Eu acho que é bem flagrante que ele fez meio que uma costura dos serviços. (GERENTE DE PCL II)
Observamos nesta fala que nesse espaço se observa uma mudança concreta - o
enfermeiro assumindo o atendimento direto à clientela - que é, em grande parte,
subsidiada por uma postura gerencial (que não reflete necessariamente todas as
gerencias da instituição), e uma história desse serviço, que prima por experimentar
novas alternativas e práticas para atenção à saúde.
Além da ampliação das funções, bastante presente no discurso dos gerentes,
mas que se acentua no espaço do Projeto Médico de Família, há a atuação em equipe.
“ ...eu chamaria atenção primeiro a isso, quer dizer, a essa
característica de estar desenvolvendo um trabalho em equipe, assim de cada elemento da equipe a enfermagem indistintamente estar trazendo a contribuição para a estrutura do grupo como um todo.”(GERENTE PMF.) O trabalho de equipe, tão decantado, pode não parecer novidade. Mas para nós
o novo é transformar o discurso da equipe multiprofissional em uma prática que se
desenvolve no cotidiano. Prática que não é perfeita, é claro, mas que tenta acertar.
Cabe assinalar ainda como contribuição do Projeto Médico de Família à prática
do enfermeiro, de forma diversa do encontrado na rede básica, a definição clara de seu
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papel que, como referido em discussão anterior, é o de supervisor. E ainda que
pudéssemos até questionar se é esse realmente seu papel, não há como negar que,
diferente da rede básica, no PMF o lugar do enfermeiro se encontra definido de forma
coerente com as propostas do Projeto.
Passando ao discurso dos enfermeiros, o que podemos perceber em uma leitura
inicial de suas falas é que estes têm uma grande dificuldade em apontar que mudanças
ocorreram em sua prática. Contudo, fazem referências a mudanças positivas em seu
papel, que se torna mais amplo e fortalecido no processo de municipalização.
Independente disso, é possível identificar em alguns momentos a sensação de perda,
particularmente nos originários da rede federal e municipal, referida principalmente
como perda de integração dos serviços e perda de relação com seus pares.
A fala dos enfermeiros vem refletir um pouco das tendências e contradições da
prática de enfermagem, já referida por ALMEIDA et al. (1989) no 41º Congresso
Brasileiro de Enfermagem, onde as autoras fazem referência ao rompimento de
conceitos idealizados de prática de enfermagem, em meio à tentativa de ruptura da
prática hegemônica de organização e prestação de ações de saúde. Nesse processo, a
prática pode se caracterizar por uma ação terapêutica individual, tomando a consulta de
enfermagem como espaço privilegiado de inserção do profissional. Porém, de certa
forma, essa postura caminha na contramão das mudanças desejadas, já que o enfermeiro
assume como seu trabalho um atendimento individualizado, tal qual o atendimento
médico. Outras possibilidades dizem respeito a um caminho diferente, que passa pela
reconstrução do objeto de trabalho da equipe atuante na área de saúde coletiva – e agora
não só o enfermeiro. Tal equipe tem como seu locus privilegiado de ação não mais o
consultório e a relação individual, mas a prática educativa, que vai sendo reconstruída
em meio a espaços coletivos.
Para melhor caracterizar a percepção dos profissionais sobre as mudanças na sua
prática a partir das mudanças nas políticas de saúde, vamos considerar três aspectos:
Mudanças Positivas, Mudanças Negativas e Questões Controversas.
1. Mudanças Positivas:
Identificadas a partir de dois aspectos: a ampliação do espaço de atuação
profissional e a criação de espaços para a reflexão sobre a prática.
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Com relação ao primeiro, a percepção é assinalada pela ocupação por
enfermeiros de cargos de chefia tais como chefias de unidade de saúde, chefias de
vigilância em saúde, entre outras funções, saindo do papel obscuro de “governanta” de
unidades de saúde.
“Há vinte anos, a quinze anos atras, não existia, eu não me
lembro, só depois da década de noventa, é que o enfermeiro assumiu direção de unidade. Até então não era; nenhum outro profissional, só o médico que assumia direção de unidade. E a partir de 90 isso já começou a mudar.”(ENF. UBS I)
Cabe contudo refletir sobre o que explica esse fato: seria uma conquista
profissional do enfermeiro ou estaria o médico abrindo mão dessas funções ? Vejamos a
opinião de uma das primeiras profissionais a se integrar a rede de Niterói:
“Eu acho que o médico não abre mão, não. Ele não quer é ter o comprometimento, eu acho que ele não acha isso importante, e é o único profissional que pode ter 3 ou 4 empregos num dia, em locais diferentes. E em termos de unidade ele está preso ali, e ele não tem aquele compromisso. O compromisso dele é de chegar, de atender e ir embora. Com raríssimas exceções você vê um médico chefe de unidade que tenha o compromisso. Como dizem que eu sou lenda viva, eu tinha, na época, alguns médicos que ficavam 8 horas na unidade de saúde. (...). Muitos tinham consultório e plantão. Todos tinham um outro compromisso. Também não sei se os que ficavam era porque a gente tinha uma carga horária de 8 horas e o salário era de 14 salários mínimos. Eu acho que isso aí tem que ser pensado e avaliado.”(INFORMANTE H.)
A fala acima nos leva a pensar que, diante da exigência de um gerente mais
presente nos serviços, é realmente mais difícil para os médicos ocupar tais cargos, uma
vez que a possibilidade de articular uma variedade de empregos lhe garante uma renda
maior que a oferecida por cargo de chefia de unidade, que exige presença integral no
serviço, com um salário considerado baixo. Por outro lado, o enfermeiro, pelo trabalho
que exerce, tem menores possibilidades de múltiplos vínculos, podendo estar mais
presentes aos serviços, sendo portanto, mais “comprometido” com os serviços,
tornando-se apto a exercer tais cargos, mesmo com salários pouco vantajosos.
Essa é apenas uma explicação a respeito da ampliação das funções do
enfermeiro no espaço estudado. Pode não ser a única, mas deve servir de base para uma
reflexão sobre a forma como ele vem ganhando mais espaço nos serviços públicos de
108
saúde : não estaria ocorrendo uma nova divisão técnica do trabalho, onde o enfermeiro
assume parcelas da atenção à saúde que não mais interessa ao médico, ou porque são
pouco lucrativas ou porque já não oferecem tanto status ? Ao fazer tal questionamento,
não estamos negando a importância deste novo espaço para a prática, mas lembrando
que é necessária uma análise mais crítica das condições sob as quais esse novo espaço é
ocupado, tais como salários ou condições de trabalho, para que esse espaço não se
constitua apenas a sobra do que não interessa mais ao poder médico.
O segundo aspecto, relacionado à ampliação do espaço para a reflexão sobre a
prática profissional, é percebido através da seguinte comparação: se pensamos na
reorganização dos serviços como em uma casa em que tudo é tirado do lugar, vamos
necessariamente pensar que para reorganizá-los é preciso definir para onde vai cada
parte. Ou elas voltam para onde estavam e cumprem a mesma função de antes ou
mudam de lugar e definem uma função diferente.
O enfermeiro, com as mudanças que vêm ocorrendo a partir da década de 90,
ganhou espaço para discutir e escolher para onde vai.
“Acho que se começou a discutir com muito mais seriedade o papel do enfermeiro na saúde pública, na saúde coletiva”. (ENF PMF II)
Mas ele ainda não definiu para onde quer ir. Podendo escolher entre
permanecer onde está ou definir que o seu lugar é outro :
“...Houve muita mudança, mas acho que o enfermeiro tem,
acho que ele vai ter o espaço dele sim, nessa proposta. Agora, cabe ao enfermeiro garantir esse espaço se impondo, eu digo assim, se impondo como profissional, trabalhando mesmo, tentando se atualizar, garantir o seu espaço profissional”.(ENF PCL)
É necessário que o enfermeiro passe imediatamente a pensar sobre sua prática, refletir sobre as
mudanças, sob risco de ter a definição de seu papel e de sua prática ditados por agentes externos à sua
profissão.
2. Mudanças Negativas
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A principal mudança negativa assinalada pelos enfermeiros refere-se a falta de
integração da rede e de intercâmbio entre os profissionais. Há uma percepção clara de
que a rede cresceu:
“Hoje nós somos uma infinidade, né. Com o sistema que foi implantado, o SUS, agora você englobou quem é Estado, agora ficou tudo uma esfera só”(ENF UMS I, Anexo V)
Hoje conta-se com 20 unidades de primeiro nível, entre unidades básicas e
policlínicas comunitárias, sem falar nas unidades especializadas e hospitais. A
municipalização que misturou serviços e culturas diferentes, permitindo que diferentes
níveis institucionais conhecessem um pouco de do que o outro fazia, talvez tenha
perdido o que havia de bom em cada um, talvez ainda não tenha conseguido criar
mecanismos que façam com que a rede e seus profissionais se falem.
Notamos no discurso de todos os profissionais a menção à falta de intercâmbio
na rede. Essa falta de intercâmbio aparece colocada de duas formas: numa abordagem
mais ampliada, a falta de intercâmbio entre unidades da rede, e destas com os diversos
níveis condutores das políticas de saúde. E, em uma abordagem mais singular, se
expressa na falta de intercâmbio entre os enfermeiros da rede de Niterói.
Considerando a abordagem mais ampliada, que envolve a falta de intercâmbio
entre as diversas instâncias institucionais, esta não se coloca como uma questão
específica da enfermagem, mas é assinalada pelos profissionais, na medida em que
afeta sua prática, como é visto abaixo:
“Uma crítica até que eu faço, que se você me pergunta assim – o
programa da criança e da mulher, quem está na coordenação desse programa? Eu não sei te responder. Eu dou conta da minha parte aqui na unidade(...)Agora, a nível central eu não sei quem está respondendo pelo oquê. É uma critica que eu fiz, no relatório que eu faço mensalmente, de querer saber quem está a frente disso(...) Nunca fui chamada a nível central para reunião para saber : O quê que você está fazendo? Como é que estão as ações dentro da unidade ?”(ENF. UBS I)
“Nós, por exemplo, que estamos a nível local, aqui, atuando, fazendo os grupos, nós dificilmente temos reunião a nível central – Para avaliação, para nada... de planejamento. Pelo menos não somos convidadas. Então já pedi que quem vai as reuniões que traga para agente a relação do que está funcionando mesmo. Não é só no papel não(...) Então eu acho que há uma falha grande nisso que você falou aí. Do envolvimento, da divulgação dos serviços das unidades e eu acho que isso caberia até a secretaria de saúde fazer. Poderia a secretaria de
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saúde se envolver com isso, até para haver intercâmbio entre as unidades, para divulgar melhor isso.”(ENF. PCL, Anexo IX)
A falta de intercâmbio entre os enfermeiros é expresso no desconhecimento
existente por parte destes, particularmente da rede básica, das ações que vem sendo
desenvolvidas por seus pares, inseridos em unidades externas a sua. No que se refere ao
intercâmbio entre os enfermeiros do PMF, ele existe na medida em que o grupo é
pequeno, o que facilita o contato, contudo a relação destas com a equipe de enfermeiros
da rede é inexistente. É também evidente o desconhecimento, por parte dos
profissionais da rede básica, da situação da enfermagem no PMF. Algumas
desconheciam a presença do enfermeiro no projeto, e outras manifestaram curiosidade a
respeito de sua prática :
“...uma coisa que eu não sei se tem, gostaria até de perguntar se tem, eu estava pensando... “Como é que pode isso, rodar assim?” Existe o médico de família, tem o auxiliar, o médico generalista, e o psicólogo...(...)Essas atribuições do auxiliar, quem é que faz a supervisão?(...) Pensei que nem tivesse enfermeiro. Menos mal.” (ENF. PCL)
Essa falta de intercâmbio é vista como resultado negativo da municipalização,
que é mais evidente na fala dos profissionais originários do INAMPS e da rede
municipal. Até porque, antes da municipalização essas instituições tinham uma
estrutura formal de coordenação de enfermagem ou similar, que promoviam o
intercâmbio entre eles.
“Eu sinto muita falta do intercâmbio. Hoje em dia dentro do SUS
a gente não tem esse intercâmbio(...)Eu lembro que na época do INAMPS a gente tinha uma coordenação local, uma coordenação a nível municipal, e que a gente tinha reuniões de tanto em tanto tempo, que eu não lembro mais, mas que a gente expunha o que a gente estava fazendo e ficava sabendo o que os outros estavam fazendo(...)Hoje em dia a gente não tem mais isso na rede municipal, a gente não tem esse intercâmbio.” (ENF.UBS II)
A demanda pela criação de uma estrutura de coordenação de enfermagem, tal
qual no passado, aparece na fala de uma das enfermeiras:
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“...e fica assim, coisas estanques, sem que lá em cima, a nível central, há uma coordenação de enfermagem, mas você está solto. Você está subordinado a direção e a uma superintendência a nível de fundação municipal de saúde. Eu vejo dessa forma, eu acho que houve essa perda. (...)Eu acho que a gente é uma categoria, então eu acho que deveria existir uma coordenação de saúde pública, uma coordenação de enfermagem, seria o caso... pode dar-se o nome que quisesse, mas que a gente tivesse um referencial para os nossos questionamentos, para as nossas reivindicações. Enfim, para a gente saber como é que as outras unidades estão funcionando, porque fica tudo assim meio solto.”(ENF. UMS I).
Vale abrir um parêntese aqui e destacar que os gerentes, quando questionados a
respeito da criação de estruturas organizacionais tais como chefias ou coordenações de
enfermagem, assinalam que isso seria uma atitude contrária à perspectiva que se tem de
criar equipes multiprofissionais. Uma vez que a criação de uma chefia de corporativa
sugere a criação de outras, dificultando em muito o trabalho em equipe.
A nosso ver, a resposta desses gerentes, que parece caracterizar bem a linha da
FMS, é coerente. Contudo é evidente a necessidade de criar espaços para a troca,
possibilitando o conhecimento da realidade de serviços diferentes, possibilitando a
elaboração de respostas coletivas para problemas que, muitas vezes, são comuns a
vários serviços. Nesse sentido, os espaços criados devem ser mais amplos que aqueles
que se encaminham apenas para a resolução de questões singulares da enfermagem,
devendo abarcar a pluralidade de profissionais e serviços.
Quanto à singularidade das questões da enfermagem, acreditamos que elas até
possam ser discutidas em meio a esses espaços plurais, no âmbito institucional. Mas há
que se considerar que esses profissionais também poderiam buscar algumas respostas
para suas reivindicações em fontes tais como a associação dos servidores municipais,
contando ainda com órgãos de classe e o curso de enfermagem da própria
Universidade, que certamente, pode oferecer algumas respostas. Entretanto, é
necessário que os profissionais se mobilizem para obtê-las.
3. Mudanças Controversas:
No que se refere a divergências, interessa-nos destacar o tratamento dado pelos
enfermeiros à questão da autonomia profissional, que tem diferentes abordagens em
112
suas falas, que não podem ser caracterizadas como próprias aos enfermeiros da rede
básica ou do PMF.
A questão da autonomia é expressa como possibilidade do enfermeiro atuar sem
depender da presença do médico:
“...e eu vi que a enfermagem está crescendo, que cada vez mais está pegando mais autonomia, que era uma coisa que a gente não tinha antigamente. Você não podia ter seu consultório de enfermagem, você não tinha autonomia. Você tinha que estar sempre agregado ao médico. Hoje em dia a gente vê que tem muito mais autonomia, dá para você trabalhar sozinha, dá para você desenvolver um trabalho, digamos assim, de primeiro mundo. “ (ENF..UBS II)
Contudo, percebe-se nesse discurso que essa possibilidade é entendida pela
entrevistada como advinda do desenvolvimento da profissão, não tendo relação direta
com as mudanças nas políticas de saúde.
Em outra fala, percebemos na entrevistada uma preocupação nítida com os
limites da prática profissional, referindo-se à postura do profissional que, muitas vezes,
não se posiciona no sentido de “exercer a vontade de influir e tomar decisões”.
“... você pode ter uma autonomia do seu serviço, porém ela vai
estar muito limitada também daquilo que compete o limite do enfermeiro. Eu não posso dar um passo a mais além do meu limite. Eu acho que com essa mudança da saúde eu acho que facilita para o enfermeiro ter mais espaços de conduta, mais linhas de ação, mas o limite dele ele tem que está ciente. (...) Eu acho até que nós tínhamos que batalhar mais; eu acho a categoria de enfermagem, me incluo também, nesse ponto, não batalhadora para dentro de seu conselho, dentro do sindicato. A gente peca um pouco nisso. A gente fica muito detido com as nossas funções do dia a dia, aquele corre – corre e muitas vezes a gente esquece de batalhar mais, participar mais nos sindicatos, estar mais ativo no conselho, tentando aumentar mais a questão da legislação do enfermeiro, ter mais autonomia em determinadas situações, porém respeitando sempre cada um, o seu limite.” (ENF. PMF I)
Outra abordagem da questão da autonomia aparece na fala dos enfermeiros
como dependente dos limites institucionais:
“Autonomia... Eu vou voltar um ponto que eu não sei se vai bater
com que você está ..., com o que está sendo respondido por outros colegas, mas eu acho que isso varia muito de direção.”(ENF. UBS I)
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Para melhor compreender as falas acima, contamos antes com a contribuição de
CRUZ (1997), que, ao discutir a autonomia do enfermeiro, faz uma abordagem
conceitual do termo. Desta abordagem gostaríamos de destacar a controvérsia que a
autora destaca nos conceitos existentes, que versam sobre a liberdade de ação sem
constrangimento externo, que estão associadas à idéia de responsabilidade e autoridade.
Entendendo a “autoridade como direito ao poder para atender a responsabilidade, a
autonomia se torna liberdade para exercitar esse direito”(CRUZ, 1997 :53). A autora
faz referência às duas fontes dessa liberdade: a estrutura organizacional e ao indivíduo
profissional.
Para essa autora,
“A estrutura organizacional é que permitirá, mais ou menos, o exercício da autonomia, e o indivíduo é que exercerá ou não, a vontade de influir e de tomar decisões” ”(CRUZ, 1997: 53),
Essa citação reflete bem o que é expresso na fala dos enfermeiros no que se
refere à questão da autonomia profissional no espaço estudado. Se por um lado, ela é
compreendida como liberdade para que o profissional atue sem o constrangimento de
agentes externos, pela possibilidade de atuar independente da presença do médico, por
outro lado, as limitações da autonomia do profissional inserido na secretaria são
identificadas com base nas limitações de ordem institucional (organizacionais) e de
ordem individual (o enfermeiro que não se posiciona).
CRUZ (1997) assinala que admitir a autonomia do enfermeiro como profissional
vai depender do enfoque utilizado, sendo comum identificar na figura do médico “o
grande vilão da história”. Acreditamos que a autonomia do enfermeiro em um modelo
de atenção de base clínica- individual acaba por sofrer restrições importantes no que se
refere a sua atuação de forma independente da figura do médico. Uma vez que, nessa
situação, grande parte das ações de enfermagem são decorrentes do ato médico. Esse
modelo de atenção cria também uma estrutura na organização dos serviços que objetiva
dar suporte ao desenvolvimento da prática médica, contribuindo para limitar a ações que
com ela não se relacionem diretamente. Um exemplo disso pode ser visto no cotidiano
dos serviços, onde muitas vezes o trabalho com grupos educativos é limitado pela
114
ausência de espaço físico para que ele se desenvolva, pois a prioridade e a garantia do
espaço é para a consulta médica.
Por outro lado, ainda que saibamos que a transformação desse modelo ainda está
longe de ser concretizada, não dá para negar que alguns espaços foram abertos.
Contudo, nem todos foram ocupados, levando a pensar se as limitações da autonomia
profissional no espaço estudado não são, muitas vezes, impostas pelo próprio
enfermeiro que, como diz CRUZ (1997:53), pode desejar permanecer à sombra das
ordens médicas, se eximindo da responsabilidade inerente à autonomia. Assim, as
mudanças nas políticas de saúde podem ser ou não positivas para o enfermeiro de
acordo com sua postura. Na fala de uma das entrevistadas:
“...foi positiva. Como eu te disse, eu acho que fortaleceu o papel do enfermeiro. Só não é positiva se ele insistir na questão muito assistencialista, se o enfermeiro não se tocar de ampliar um pouco mais a sua visão.” (ENF PMF II)
Assim, com relação às transformações na prática do enfermeiro no espaço
estudado podemos identificar que elas ocorrem muito mais no plano das possibilidades
do que no de uma mudança prática concreta.
Abrem-se algumas possibilidades para o enfermeiro ocupar novos espaços no
plano das gerências dos serviços, ampliando suas funções. Contudo, ressalta-se a
necessidade de refletir sobre as condições sob as quais essas funções são ampliadas
Identificamos como novo e concreto algumas experiências isoladas no âmbito da
rede básica como, por exemplo, a consulta de enfermagem desenvolvida em uma das
policlínicas. Além da prática do enfermeiro no PMF, onde se destacam as novas
relações que são criadas entre as equipes de trabalho, tornando a idéia de trabalho em
equipe algo concreto, o projeto contribui também para mobilizar uma discussão sobre as
mudanças que vem se desenvolvendo na rede, trazendo em seu bojo alguma discussão
sobre o papel do enfermeiro. Entretanto, a falta de integração dos serviços limita essa
contribuição, na medida em que é restrita a determinados níveis institucionais,
cerceando a possibilidade de troca entre o projeto e as rede básica. Os reflexos dessa
falta de integração podem também ser vistos nas críticas feitas pelos profissionais da
rede básica ao PMF, críticas a sua estrutura chamando atenção o fato da mesma ser
feita sem o conhecimento da estrutura real do projeto, como podemos ver abaixo:
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“Novamente eu vou te informar da minha não informação. Não sei se nessa equipe, na coordenação, eu acredito que tenha um enfermeiro, mas esse enfermeiro não está dentro do módulo. Quem fica no módulo é o médico e o auxiliar de enfermagem. Eu acho que aí já vai de encontro a exigência de ter o enfermeiro. Se você tem um auxiliar de enfermagem você tem um enfermeiro superior que faça a supervisão e que esteja ali com ele, porque ele está lidando com a clientela. Eu acho que a partir daí já tem alguma coisa errada”(ENF. UBS I)
Não é possível fazer alusão ao PMF como o melhor caminho para a organização
dos serviços no espaço estudado nem a prática do enfermeiro ali desenvolvida. Uma vez
que acreditamos que essa prática seria mais rica se o enfermeiro estivesse inserido nos
módulos do Projeto, desenvolvendo sua prática junto a clientela. Porém, ainda que se
faça essa restrição, queremos ressaltar sua contribuição na medida que subsidia a
discussão sobre um lugar para o enfermeiro nos serviços básicos de saúde. No entanto, é importante destacar que, criados os espaços para discutir e trabalhar, quem deve
decidir são os enfermeiros. Ou optam por um papel definido, assumindo uma postura crítica a respeito das
políticas desenvolvidas e a responsabilidade por seus atos, ou então permanecem à sombra das barreiras
institucionais, deixando seu papel ser definido por outrém. E a esse responsabilizando por seus conflitos e
insatisfações.
3.5 - O que ainda há para discutir : A absorção do enfermeiros pelos serviços - Critérios de alocação e Salários
Nos propomos agora a abordar três questões que não foram tocadas e que,
embora não tenham, na fala dos entrevistados, o destaque das questões anteriormente
abordadas, não podem ser esquecidas. Essas questões dizem respeito aos critérios de
alocação dos enfermeiros nos serviços e aos salários recebidos por esse profissional.
Começamos por discutir os critérios de alocação:
A dificuldade de identificar claramente os critérios utilizados para a alocação de
enfermeiros nas unidades básicas de saúde da rede de Niterói foi, a princípio, uma das
questões que nos estimulou a realizar está pesquisa.
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Tratando, primeiro das unidades básicas de saúde, essa dificuldade se evidencia a
partir da observação do quadro de lotação desses profissionais nos serviços, onde
encontramos situações que variam desde sua ausência ou, no caso das policlínicas
comunitárias, um serviço que contam com mais que o dobro do número de profissionais
encontrado nas demais policlínicas.
No que se refere à normas extra institucionais que propõem critérios para
alocação de enfermeiros em serviços de saúde, contamos com a resolução COFEN- 189,
que embora seja, a princípio, genérica, quando observada com atenção podemos notar
que tem maior especificidade para serviços de caráter hospitalar do que para unidades
básicas de saúde.
No decorrer dessa pesquisa, o que foi ficando cada vez mais evidente é que a
dificuldade em identificar esses critérios de alocação não esta relacionada a sua
desobediência, mas sim a sua inexistência, no momento histórico presente, marcado pela
reorganização das ações e serviços de saúde. Essa falta de critérios foi assim explicitada:
“...tentei inclusive junto ao conselho regional de enfermagem,
para que eles me orientassem sobre como eu faria uma base teórica para quantidade de enfermeiro por unidade. Eles não tinham, não tinham essa informação para me dar. Então a coisa, eu acho que é feita no ‘achometro’ mesmo, dentro de uma conduta lógica, mas que não tem embasamento teórico pelo que eu entendi.” (GERENTE SUP II)
“ ...eu vejo essa distribuição aleatória de enfermagem sem uma lógica, fazendo parte do caos que se encontra o serviço, a secretaria nesse momento, com relação a distribuição de recursos humanos.”(GERENTE SUP I)
É importante assinalar essa inexistência nos critérios de alocação profissional no
tempo presente, pois o resgate da história do enfermeiro na rede de Niterói nos mostrou
que estes existiam com base em algumas definições. A principio, numa relação entre
enfermeiros e agentes de saúde que seriam capacitados. Posteriormente, em uma relação
entre estes profissionais e um dado números de unidades que deveriam ter o trabalho de
seus agentes de saúde acompanhado por enfermeiros. E, mais tarde, em uma relação de
um enfermeiro por unidade. Não estamos fazendo um julgamento sobre a adequação de
tais critérios para suprir a necessidade desse profissional no serviço básico de saúde, mas
sim assinalar a sua existência. Com as transformações nas políticas locais de saúde e
seus reflexos para os serviços, esses critérios, tomando como última referência a
existência de um enfermeiro por unidade de saúde, foram sendo “desobedecidos”.
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Atualmente, impera a lógica do “achometro” , que indica a lotação de enfermeiros nas
unidades de acordo com o que se “acha” necessário. Na medida em que algumas
unidades de saúde não contam com a presença desse profissional (sabemos que esse fato
não consiste de uma observação pontual no momento de coleta de dados da pesquisa,
mas perdura por algum tempo), podemos supor que não se “acha” necessária a presença
desse profissional nas unidades de saúde. Contudo devemos esmiuçar um pouco mais
essa idéia, para que não pareça uma análise por demais simplista.
Num primeiro plano, há que se considerar algumas explicações para a falta de
critérios de lotação do enfermeiro nos serviços, que podem ser encontradas na fala dos
gerentes. Uma delas diz respeito a falta de definição do lugar de cada profissional nas
equipes de saúde e, considerando de antemão a indefinição do papel do enfermeiro em
meio a essa equipe, temos esta como uma das causas da dificuldade em alocar esse
profissional nos serviços. Vejamos como isso se explicita no trecho abaixo:
“Hoje o que nós estamos fazendo aqui no departamento é uma
discussão sobre qual é o papel da unidade básica de saúde. E, em cima desse papel dela, qual deve ser a composição da equipe multiprofissional ideal mais racional dentro das possibilidades dos recursos que nós temos hoje (...)eu fico no momento completamente incoerente com minha forma de ação. Locais com aparente excesso de enfermeiros e outros sem enfermeiro nenhum. O excesso de enfermeiro é por uma indefinição ainda clara do papel do enfermeiro, coisa que a gente está tentando fazer agora: Definição do papel do médico, do enfermeiro, do assistente social.”( GERENTE SUP I)
Outra explicação refere-se à movimentação desse profissional na Fundação
Municipal de Saúde, considerando-se que o número de profissionais admitido foi se
reduzindo pelos pedidos de demissão. Ou ainda, pelo deslocamento da função de
enfermeiros para cargos de chefia não relacionadas à enfermagem, como pode ser visto
no depoimento abaixo:
“...Mas o que levou a essa lotação irregular foi o processo
histórico. Ë o enfermeiro que pede licença de uma unidade e vas para ...ou pede exoneração, ou pede transferência para outro lugar, ou muda de enfoque seu trabalho, ou assume um cargo, etc. Todos esses remanejamentos que foram acontecendo ao longo dos anos proporcionaram isso.” (GERENTE SUP I)
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Consideradas as explicações dos gerentes, há que se ressaltar o seguinte:
Percebe-se a evidente dificuldade na redefinição dos papeis profissionais no contexto
dos serviços básicos de saúde, em particular do enfermeiro, face a crise de identidade
pela qual passa esse grupo. Essa indefinição de papéis contribui com a dificuldade em
delimitar critérios para sua lotação nos serviços. Contudo assinalamos a obrigatoriedade
da existência de enfermeiros em todas as unidades onde são desenvolvidas ações de
enfermagem, o que pode ser observado na legislação do exercício profissional e melhor
explicitado na resolução do Conselho Federal de Enfermagem n.º COFEN – 146.
Assim, suprir a ausência desse profissional se coloca como critério de alocação anterior
a qualquer outro. No entanto, este não parece ser considerado no contexto da rede de
saúde de Niterói.
Refletindo sobre o que explica a não aceitação desse critério básico, buscamos
identificar o que origina a demanda por enfermeiros nas unidades básicas de saúde,
além da resolução do Conselho Federal de Enfermagem.
Na fala da gerente de recursos humanos da FMS, essas demandas aparecem da
seguinte maneira:
“Olha, por incrível que pareça, a demanda que chega aqui sempre
é do gerente. Ou é o diretor do hospital, chefe da unidade... Nunca foi organizada da categoria... que por sinal em Niterói está bem desorganizada. Agora, isso aí não me compete. Agora, a demanda chega sim... como eu disse a você, apontada pelos chefes, nunca pelo próprio enfermeiro. E o fato é que nós precisaríamos realmente do concurso, e enfermeiro é a necessidade mais apontada por todos. Há necessidade de abrir concurso para enfermeiro.”(GERENTE RH.)
Consideramos, na origem dessas demandas, duas naturezas distintas: num
primeiro plano, as demandas internas aos enfermeiros enquanto classe profissional
representada pelo COREN/ COFEN. E a pressão que os estes, enquanto funcionários da
FMS, exercem sobre suas chefias imediatas para a inclusão de mais profissionais nos
serviços. Num segundo plano, se colocam as demandas externas ao grupo de
enfermeiros, na qual incluímos a institucional, que se expressa principalmente pelas
demandas dos gerentes das unidades de saúde, construídas a partir da identificação da
necessidade do profissional naquele serviço (dependente do papel que este gerente
identifica para esse profissional). E também a demanda da população que, ao exigir uma
assistência de enfermagem mais qualificada, pressiona pela existência de enfermeiros.
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Analisando cada item em separado, percebemos que a demanda interna à classe
de enfermeiros é fraca, pois embora conte com o apoio de base legal para requisitar sua
presença nos serviços, não se percebe uma mobilização para garantir um quantitativo
adequado aos mesmos. Também é limitado o poder do Conselho Profissional sobre os
serviços públicos, no sentido de obrigar que estes mantenham, em seus quadros, uma
dada composição da equipe de enfermagem.
No que se refere as demandas externas aos enfermeiros, a demanda para sua
contratação expressa, pelo lado institucional, a indefinição de seu papel, na medida que
não consegue definir quantos são necessários para seus serviços e que atividades devem
desenvolver nos mesmos. Pelo lado da população não há uma demanda caracterizada
para sua inclusão nos serviços, o que pode ser explicado pelo desconhecimento da
existência desse profissional, além da super valorização do atendimento médico em si,
como ato central do atendimento a saúde, desconsiderando a importância das demais
práticas de saúde, dentre elas, da assistência oferecida pela enfermagem.
Assim, em que pese o critério de suprir a ausência desse profissional nas
unidades, como um possível critério de alocação, a demanda por seu atendimento não
tem força suficiente para romper com as explicações oferecidas para a ausência de
enfermeiros na rede básica de saúde, ou seja:
“Dando uma explicação por parte do gestor, nós estamos com uma
grande evasão de profissional servidor civil da União e do Estado também, e o Município não tem, segundo consta, recursos necessários para repor essa mão de obra. Então, se nós tivéssemos que abrir um concurso, não temos como cobrir financeiramente a folha, para fazer frente as nossas necessidades de reposição. Esse é o quadro dramático atual”. (GERENTE RH.I)
No que se refere aos critérios utilizados para a alocação de enfermeiros no
Projeto Médico de Família, cabe considerar que, diferente do que acontece na rede
básica, se percebe uma definição clara da forma como estes são alocados na equipe,
conforme demonstra um dos gerentes do Projeto:
“É uma equipe de supervisão integral para quinze mil pessoas, o
enfermeiro como um elemento. Vamos dizer aí você tem quinze auxiliares e um enfermeiro.” (GERENTE PMF.)
120
Se esse é o melhor parâmetro, é uma outra discussão. Mas o fato é que ele existe
e é subsidiado por uma definição de funções que é dada no contexto da própria FMS,
expressando novamente que é de fundamental importância a definição do papel do
enfermeiro nas unidades básicas de saúde. São necessários critérios para contratação
desse profissional que para que ele possa ir além do suprimento da ausência, como
explicitado por alguns gerentes:
“...acho que a ausência passa a ser um critério básico quando ela existe. Se eu não tivesse ausência em algum lugar, eu acho que existem outros critérios que são importantes de serem avaliados para você lotar alguém em algum lugar, mas eu não posso esquecer que na rede ainda existe ausência, então se existe ausência a prioridade deve ser aonde existe ausência. Passando o plano da ausência; acabando a história da ausência, porque eu acho que toda unidade, seja ela de que tamanho for, ela tem que ter um enfermeiro, existem outros critérios. Critérios: Tamanho da comunidade, da população, da área de abrangência; tamanho da unidade (...)Outras coisas: programas que a comunidade necessita. Eu acho que tem coisas que são básicas: grupo de gestantes, grupo de planejamento familiar, grupo de adolescentes - isso está se tornando cada vez mais básico, (...)Eu acho que tem coisas que funcionam muito bem, que a enfermagem dá um substrato enorme para esses grupos, às vezes muito melhor do que médico; muito melhor e aí, isso passa a ser uma outra coisa que você tem que avaliar para lotar as pessoas, entendeu” . ( GERENTE UBS I)
“... talvez estejamos iniciando agora, uma etapa de planejamento, não só para o Santa Rosa mais para a rede como um todo, do tipo: precisa disso aqui porque o perfil epidemiológico aponta assim, porque as necessidades são assim, porque o quadro de recursos humanos é assim. Eu acho que até agora isso se deu de uma maneira complemente aleatória e atabalhoada” .(GERENTE PCL II)
“Certamente, no mínimo, mais um. Mas, se houvesse possibilidade, mais dois. Alias, já estou requisitando há muito tempo, desde que cheguei aqui. Eu acho que deva ter pelo menos um enfermeiro em cada turno Se puder ter mais melhor, mas pelo menos um em cada turno”. (GERENTE PCL I)
Saindo da discussão a respeito dos critérios de alocação do profissional nas
unidades, passamos a refletir sobre os salários dos enfermeiros no contexto da
municipalização das ações e serviços de saúde em Niterói.
121
Se entendermos o valor do salário como a expressão do valor atribuído a um
dado trabalho, observamos nos serviços de saúde uma escala de valores, onde o trabalho
médico está no topo, refletindo o modelo assistencial vigente, que o toma como sua
figura central. Acreditando em uma proposta de mudança que implique num novo tipo
de relação entre os diversos profissionais de saúde, em que o trabalho de maior valor é o
trabalho da equipe de saúde e não só o trabalho médico, podemos tomar as mudanças no
padrão da escala de salários dos diversos profissionais, como um indicativo de
mudanças nas relações de poder entre esses profissionais, um indicativo de mudança na
organização das práticas de saúde.
Com relação ao salário dos enfermeiros inseridos na rede básica de Niterói9,
percebe-se que, tal qual os salários dos demais profissionais de saúde (inclusive o
médico), este considerado baixo., como pode ser visto no depoimento abaixo:
“Não, como não é compatível para nenhuma outra categoria. Eu
acho que hoje o grande ganho dessa história do enfermeiro atuar profissionalmente com todo o seu potencial de quem é terapeuta, né, todos somos terapeutas de alguma maneira, faz com que não haja muita essa coisa do enfermeiro ganha mal, mas o médico ganha mal. Acho que essa história da multidisciplinaridade, ou melhor, transdisciplinariedade, coisa moderna aí né, de que um entra dentro do outro, acho que faz com que a gente ache que hoje o profissional de nível superior não tenha um salário de acordo com o que é demandado. Até por isso ele talvez não se empenhe tanto quanto podia se empenhar; acho que a gente tem problemas de adequação, de animo, de disposição, estímulo para trabalho, né, porque aquela coisa que eu falei um pouco antes: três salários diferentes com práticas semelhantes cria crises internas muito grandes. Então você tem o enfermeiro municipal, o enfermeiro estadual, e o enfermeiro federal. O estadual ganha trezentos e noventa, o municipal setecentos e noventa, quase oitocentos, e o federal mil e pouco, mil e duzentos, mil e trezentos, por aí. Só isso já é uma confusão. Isso se reflete para todos os outros serviços e outras categorias. Hoje nosso gravíssimo problema é que o que o SUS trouxe de integração trouxe também de desintegração. Você tem que ter.., a gente ... duzentas regras diferentes: você fulaninho, vai trabalhar tantas horas porque ganha tanto; você outro vai trabalhar menos porque ganha menos, então adequar isso é mito complexo, eu acho. Enquanto a gente não tiver um encaminhamento de política salarial para sanar um pouco isso e qualificar de forma que a pessoa se sinta relativamente bem, compensada pelo seu trabalhos, acho que vai ser difícil a gente conseguir ter todo o empenho que a gente precisa que ter, salvo todos os valores de quem trabalha por amor a camisa mesmo né.” (GERENTE PCL II)
9 - Para conhecimento do valor dos salários em reais, consultar o Anexo X.
122
Fica explícito também no relato acima que a inexistência da isonomia salarial
entre profissionais dos três diferentes níveis de governo é um problema que exige da
gerência dos serviços criatividade e habilidade para atenuar os conflitos que lhe são
decorrentes. Vale chamar atenção para o seguinte fato: embora exista uma insatisfação
por parte dos enfermeiros da rede básica com relação a seu salário, de modo geral essa
insatisfação tem referência às diferenças salariais existentes entre o seu salário e o do
médico, mas sim as perdas salariais que vem ocorrendo para os profissionais de forma
mais abrangente.
“Eu acho que em termos salariais a gente estacionou. Em termos
salariais a gente era até mais bem remunerado (...)a gente sabe que o salário aqui no Rio de Janeiro, ele é muito ruim, então de repente tem até um pessoal melhor trabalhando no SUS, de São Paulo para baixo, de repente até pelo próprio investimento.” (ENF.UBS II)
Encontramos a referência, entre os gerentes, de que na rede de Niterói não
existem diferenças salariais, uma vez que há um salário único para todos os
profissionais de nível superior, conforme expresso abaixo:
“Olha só, a remuneração do enfermeiro é igual para todo o nível
superior. E acho que , eu colocaria, acho que todos nós ganhamos um valor não muito compatível com o trabalho que a gente exerce. Acho que poderia ser um valor maior porque eu acho que merecemos, tá, mas na pergunta como você formulou, no contexto todo, eu acho que ele ganha compatível porque ganha igual a todos os profissionais de nível superior.”(Gerente SUP I)
Com relação a essa referência cabe assinalar que ela é uma verdade parcial pois,
embora todos os profissionais de nível superior, com exceção dos sanitaristas, tem a
mesma remuneração, existe uma diferença na carga horária desses profissionais, que
admite para médicos e odontólogos uma carga horária semanal a cumprir de 20 horas e
para os demais profissionais de nível superior, 32 horas. Assim, embora a remuneração
seja aparentemente semelhante, percebe-se que a hora de trabalho médico é melhor
remunerada que a dos demais profissionais, o que pode ser visto nos Anexos V e X.
Entretanto, há que se considerar também os acordos informais que se processam no
espaço dos serviços e que, acabam por reduzir bastante essa diferença, conforme
esclarece o depoimento abaixo:
123
“Olha, em Niterói houve uma diferença sim, para médicos e os demais profissionais de nível superior, só que os fatos sobrepujaram isso. Então as chefias não foram competentes para deter a crescente demanda de equiparação de horário dos demais profissionais. Hoje, o que existe na verdade é o horário oficial e um grande acordo que equipara a todos, sem distinção, pelo que eu estou sabendo. Nós aqui de recursos humanos ignoramos isso oficialmente, porque não nos cabe a gerência direta do pessoal em termos de cumprimento de carga horária e tudo mais. Agora, então eu digo a você com toda a tranqüilidade que em Niterói não existe isso. Está havendo na prática, na ponta, uma equiparação. A cobrança, talvez, maior, como sempre, pode ser feita em relação ao nível elementar ou médio, mas eu também não acredito, acho que está tudo equiparado mesmo”.(GERENTE RH.)
Esse acordo referido acima talvez seja uma das explicações para que não exista,
por parte dos enfermeiros, referência às diferenças entre seu salário e o salário do
médico e do odontólogo.
Cabe fazer referência ainda à situação salarial do enfermeiro no PMF, que até o
momento em que foram colhidos os dados dessa pesquisa, continuava em aberto. Na
referência do gerente do projeto, a proposta é que todos os supervisores, inclusive os
enfermeiros, contassem com salários e carga horária iguais. Contudo, isso ainda não
havia sido alcançado, como é explicitado no trecho abaixo:
“A gente tem vários problemas com isso, principalmente no início,
pois como eu te falei, as pessoas estavam vindo de uma ... os supervisores eles se incorporavam fossem quais fossem os vínculos que elas tivessem. Se você fosse do Estado, você vinha para o trabalho ganhando seu salário do Estado; se fosse da prefeitura você vinha com seu salário da prefeitura. O médico e a auxiliar, eles eram, ou até por força de lei, de um convênio que foi aprovado em câmara, eles eram contratados pelas associações de moradores, que tinham convênio entre a associação de moradores e a prefeitura, que delegava a FMS a co-gestão do modelo. Então a FMS e as associações de moradores são os gestores do Projeto, dessa proposta. Então isso abria possibilidade de vinculação de um profissional a uma carga horária de 40 horas, ganhando um salário diferenciado(...) Agora, os supervisores a gente não tinha essa possibilidade, por conta das vinculações, etc. e tal. Só com o aperfeiçoamento e principalmente com muita participação da acessoria jurídica que foi abrindo essa possibilidade hoje de estar contratando também, ou complementando essas referências; (...) hoje de fato não está tudo igual. Assim, ainda tem muitas distorções de salário, principalmente por conta da situação profissional de cada um, mas hoje a gente está discutindo e já está bem adiantado isso, uma forma de equiparar os salários, complementando essas diferenças. A gente fez um estudo disso para ver a viabilidade, mas hoje, de fato, tem distorções, mas a perspectiva é que a gente está
124
torcendo, está batalhando para que isso assim, tenha uma faixa é uma faixa igual, quer dizer, que todos os supervisores, está mais atrelada a carga horária do que formação. Então você tendo um referencial de salário até de 40 horas do médico de família, o supervisor recebe isso mais um X por cento, o coordenador mais um X por cento acima, acrescido no salário do médico da equipe básica e a auxiliar de enfermagem também, que hoje ela tem uma faixa salarial muito razoável, muito acima mesmo do que dentro do mercado de trabalho, principalmente para serviço público. Então isso causa também muita discussão. Eu acredito assim, que não passa pela questão assim, como eu estava dizendo para você, foi uma alternativa, foi uma viabilidade e até uma forma de tentar essa proposta; eu acho que não é o médico de família e o auxiliar ou o supervisor que ganha muito, é a outra estrutura, a outra situação que paga pouco. Acho que não é criticando a proposta, criticando o modelo, que você vai... Acho que tem que realmente lutar pela isonomia.”(GERENTE PMF.)
Percebemos com isso que, ao menos a título de proposta, o enfermeiro que se
insere no Projeto Médico de Família encontra possibilidades de ter o valor de seu
trabalho percebido como de valor idêntico aos demais profissionais da equipe. Talvez o
grande ganho que se coloca nesse ponto seja menos a questão salarial, mas sim a
possibilidade de trabalhar em equipe. Por outro lado, fica ainda uma questão: Teria o
enfermeiro o mesmo salário do médico, caso este se inserisse nos módulos e não apenas
na equipe de supervisão?
Desta forma, para nós fica clara a inexistência de critérios para a alocação do
enfermeiro na rede básica de saúde. Sob o ponto de vista institucional, isso pode refletir
o desconhecimento do papel desse profissional nos serviços ou a pouca importância que
lhe é atribuída (até mesmo pela população, que muitas vezes desconhece sua
existência). Sob o ponto de vista do profissional, percebemos uma grande imobilidade,
uma vez que não existe qualquer movimentação dos enfermeiros discutindo ou
demandando a resolução de situações tais como a existência de unidades de saúde que
só contam com os auxiliares de enfermagem. Sob o ponto de vista salarial, há que se
destacar que, embora exista um discurso de igualdade de salários entre todos os
profissionais de saúde de nível universitário, tal fato cai por terra quando são
comparadas as cargas horárias destes profissionais. O médico cumpre um horário
visivelmente menor que o dos demais profissionais, indicando que existe uma
valorização desse profissional em detrimento dos demais.
Com relação ao PMF, os critérios de alocação do profissional ao serviço são
claras. Eles guardam uma relação com um contingente populacional, o que reflete a
125
clareza que se tem do papel do profissional no projeto. A questão salarial permanece
ainda em aberto, mas a princípio a proposta é que não exista diferença entre o salário
dos diversos profissionais que ocupam a posição de supervisor.
3.6 - Costurando os resultados Cabe agora relacionar de forma mais sólida as categorias de análise que foram
trabalhadas até então, oferecendo assim uma visão mais clara a respeito da prática do
enfermeiro nos serviços de saúde de Niterói.
A questão do papel do profissional é presente em todas as discussões
desenvolvidas. Ela deve ser pensada a partir de dois prismas que se interligam : o
primeiro, inerente aos enfermeiros, que ainda vivem o conflito interno de não ter claro
seu papel. Já o outro refere-se à capacidade dos serviços de definirem sua missão junto
a população. Quando os enfermeiros se integram a um determinado serviço, a
indefinição que trazem a respeito de seu papel pode se resolver ou se tornar mais
conflituosa, de acordo com a clareza que tais serviços tenham de sua missão e da forma
como cumprí-la. Assim, olhando para a experiência de Niterói, percebemos que o PMF
tem, enquanto uma experiência inovadora, uma definição clara de seus objetivos do
lugar de cada um dos profissionais que compõe sua equipe, inclusive o lugar do
enfermeiro. Por outro lado, no momento de transição pelo qual passa a rede básica não é
possível ter clareza a respeito de sua missão ou da composição de sua equipe, ou ainda,
do papel de cada um de seus membros. Nesse contexto, se a instituição não define o
lugar que cabe ao enfermeiro e estes também não tem isto claro, essa definição se dá
individualmente – “Cada cabeça, uma sentença” . Teremos assim o enfermeiro
ocupando uma diversidade de papéis, que contém sua crença individual no que acha que
deve fazer, relacionado com a pressão que oferece sua chefia imediata para assumir esse
ou aquele papel.
A demanda gerencial tende a puxá-lo para a administração, não a administração
da assistência de enfermagem, mas a organização do espaço interno da unidade,
entendendo que é o enfermeiro o profissional mais capaz de fazê-lo (talvez porque
esteja acostumada a vê-lo desempenhando essas atividades). Por outro lado, o
enfermeiro vê como seu papel a supervisão dos auxiliares. Que caminho tomar ?
126
A resposta aparece quando discutimos a segunda categoria – o fazer. Numa clara
contradição entre o que haviam definido quando questionados sobre qual seria seu papel
– a supervisão do auxiliar de enfermagem, esses enfermeiros optam pela assistência. A
busca pela assistência não se baseia na crença de que o enfermeiro é capaz de qualificar
a assistência de enfermagem, na medida em que a assuma, mas é resultado da busca de
satisfação no trabalho (ou da fuga da relação conflituosa que se constitui entre
enfermeiros e auxiliares de enfermagem). Com isso, acreditamos que essa assistência
acaba por contribuir pouco com uma proposta de mudanças nas condições de saúde da
população, uma vez que tem pouca relação com as necessidades dessa mesma
população. Além de ser, muitas vezes, ocasional. Uma vez que a expressão do desejo
individual do enfermeiro não é assumida pelos serviços durante sua ausência.
Interessante destacar a rejeição à relação com a equipe de auxiliares, que é expressa
nessa prática. A relação com os auxiliares aparece então como outra questão conflituosa
em meio aos serviços. Pois, se o enfermeiro nega, na prática, que a equipe auxiliar é sua
responsabilidade, de quem é essa responsabilidade? A questão acaba sobrando para as
gerências dos serviços.
Diferente dos enfermeiros da rede básica, os enfermeiros do PMF apresentam
uma prática bastante coerente com o que lhe foi definido como papel. Se sua definição
de papel implicava uma relação de supervisão com as duplas de médico e auxiliar de
enfermagem atuantes nos módulos, é exatamente essa a atividade que vem
desenvolvendo, tendo sua prática voltada para ações de natureza pedagógica e
administrativa que, ainda que possam estar distanciadas do cuidado direto à clientela,
não parecem perder a especificidade da administração do trabalho da enfermagem.
Os reflexos de uma formação distante da realidade dos serviços se colocam tanto
para os enfermeiros do PMF quanto para os da rede básica, evidenciando-se que na
verdade sua formação se completa nos serviços. A diferença significativa entre as duas
situações reside no fato de que essa formação complementar tem uma direção no PMF,
o que não ocorre na rede básica. Neste último caso, o enfermeiro vai determinar o
caminho necessário para que essa formação se complemente, que pode estar associado
à busca de sua satisfação no trabalho e, não necessariamente, ao atendimento a objetivo
(ocultos) do serviços.
Como mudanças resultantes das transformações ocorridas a partir da
implantação do SUS no município de Niterói, percebemos que se referem
127
principalmente a abertura de uma possibilidade de construção de uma nova prática.
Entretanto, pouco se concretizou no sentido de construir uma prática diferenciada.
Poderíamos pensar que a prática do enfermeiro no PMF se constitui em uma
prática diferenciada. Ela realmente o é, quando tomamos como objeto de comparação a
prática dos enfermeiros da rede básica de saúde. Contudo a sua diferença fundamental
está na clareza que se tem no papel do enfermeiro nesse espaço e da coerência entre seu
papel e sua prática.
Em nossa avaliação, isso acontece menos pelas características do projeto em si e
mais pela clareza que possui de sua missão, o que não acontece com a rede básica. Essa
observação implica em dizer que o papel e a prática do enfermeiro ainda são definidos
externamente aos profissionais, que se moldam à proposta política vigente. Assim,
diante da existência de um projeto que tem claro seus objetivos e as estratégias
utilizadas para alcançá-los (inclusive composição de sua equipe), como o PMF ou como
foi a proposta de Atenção Primária à saúde, no início da Secretaria de Saúde de Niterói,
percebe-se mais claramente o papel do enfermeiro. Na ausência dessas definições, tal
qual é hoje a rede básica de saúde de Niterói, o papel do enfermeiro e sua prática não
tem contornos nítidos.
O Projeto Médico de Família trouxe para o enfermeiro a possibilidade real do
trabalho em equipe e um maior espaço de reflexão a respeito de seu papel e sua prática.
Na rede básica, o enfermeiro teve suas funções ampliadas, passando a ocupar espaços
que anteriormente eram próprios do médico, mas não conseguimos perceber um maior
aclaramento do que seja o objeto de trabalho do enfermeiro em saúde coletiva.
Poderíamos até pensar que os enfermeiros do PMF tem isso claro, contudo, parece-nos
que a definição desse objeto de trabalho é resultante não de uma discussão dos mesmos,
mas de uma definição política que lhe é anterior.
Não se trata aqui de fazer uma critica à atuação dos enfermeiros do PMF, mas
colocar uma questão que está em pauta no cotidiano profissional. Cabe ao enfermeiro
apenas gerenciar o processo de trabalho desses auxiliares? Deve o enfermeiro render-se
às definições políticas sem ao menos questioná-las? Antes de fechar esse capítulo é importante relembrar que estamos trabalhando com a concepção
uma prática social que, como tal, vai sofrer as determinações de questões alheias a sua especificidade
como, por exemplo, as políticas de saúde sendo também capaz de provocar mudanças. Mas que mudanças
seriam possíveis diante de uma postura apática dos enfermeiros que, tal qual um boneco “joão bobo”, é
empurrada e volta, sem nenhuma reflexão sobre ser esse ou aquele o melhor movimento, o melhor
caminho. A forma como as instituições de saúde absorvem ou remuneram os profissionais tem relação
128
com uma série de questões. Entre elas, o poder de pressão desses profissionais, que é maior ou menor na
medida em que lhe é atribuída mais ou menos importância. Qual a importância do enfermeiro? Alguém já
viu um grupo de moradores do bairro X perguntar à chefia daquela unidade porque até hoje não existe
enfermeiro ali? Já fazem mais de três anos que o último saiu. A resposta certamente é não, mas eu já vi
mais de uma vez a mesma população questionar essa chefia sobre os motivos pelos quais o médico não
está presente “ hoje”.
É certo que as políticas de saúde tem possibilitado espaço para que o enfermeiro
mude sua prática, mas é preciso que os enfermeiros, enquanto grupo profissional,
definam que prática é essa.
CONCLUSÕES Ao tomar como marco teórico conceitual deste trabalho a história da prática da enfermagem no
Brasil, foi possível identificar que as indefinições que hoje marcam a atual prática do enfermeiro
encontram raízes plantadas no desenvolvimento dessa prática ao longo dos anos.
Originada de uma demanda institucional, a profissão do enfermeiro surge no País sob a marca da
saúde pública num momento em que a política de saúde está voltada para esse campo, mas perde essa
característica na medida em que ocorrem mudanças nas linhas mestras da Política Nacional de Saúde.
Além dessa forte influência da política de saúde, a prática do enfermeiro é marcada pelo padrão
de submissão que moldou seu ensino desde a sua institucionalização. Essa submissão ainda hoje é
presente no cotidiano desse profissional, se perpetuando em uma prática acrítica e na aceitação pacífica
das mudanças que se operam nos serviços.
Essa submissão também permeia as relações do enfermeiro com o restante da equipe de saúde,
onde não encontramos uma prática de enfermagem autônoma, mas geralmente dependente de prescrições
superiores.
Nessa história, o papel do enfermeiro aparece associado à figura daquele que lidera,
supervisiona, ensina, organiza, mas quase nunca como aquele que assiste, confrontando-se assim com a
sua formação que o prepara para tal função.
Ao retomar o primeiro objetivo de nosso trabalho, a análise da prática histórica
do enfermeiro desde a criação da Secretaria Municipal de Saúde até os anos 90,
evidenciamos que as questões levantadas a partir do marco teórico se expressam na
trajetória da prática do enfermeiro na SMS/ Niterói. Essa trajetória foi fortemente
influenciada pelas linhas condutoras das políticas de saúde adotadas pela Secretaria
Municipal de Saúde. O enfermeiro tem se moldado ás diferentes políticas adotadas no
decorrer do tempo, sem oferecer muita resistência ou questionar a adequação dessas
políticas às necessidades de saúde da população. Assim observamos que a reflexão
crítica sobre sua prática não se faz sentir na evolução de sua história no espaço
estudado, ainda que tenhamos conhecimento de uma movimento – ainda que fortemente
vinculado à academia – que vem efetuando uma análise mais crítica sobre a prática
desse profissional.
Nota-se que os questionamentos dos enfermeiros a respeito de seu papel nos
serviços de saúde estão mais relacionados com sua inserção na estrutura de poder da
130
Secretaria de Saúde (através de chefias de enfermagem, por exemplo), do que com a
contribuição efetiva que podem oferecer, enquanto profissionais, para mudanças que
tragam uma assistência mais qualificada e mais justa para a população para a qual os
serviços devem atender. Tal situação foi identificada no discurso dos enfermeiros pela
sensação de perda de poder percebida a partir da extinção de estruturas especificas da
corporação, como a Coordenação de Enfermagem, existente na SMS até o fim da
década de 80.
Dentro dessa trajetória, a implantação do SUS representa para os enfermeiros
uma relação mais conflituosa com as mudanças que começam a ser introduzidas na
secretaria, onde todos os espaços começam a ser mexidos – inclusive o que era o “seu
espaço” . Na nova proposta de estrutura da Secretaria de Saúde e, posteriormente, da
Fundação Municipal de Saúde, resultantes do compromisso de implantação do SUS, o
papel do enfermeiro é vago. Pergunta-se: Qual é seu papel dentro de uma nova proposta
de organizar os serviços? Porque esses profissionais mereceriam ter para si uma
coordenação corporativa? Como diferenciar o papel do enfermeiro do papel do chefe de
vigilância a saúde? A consulta de enfermagem é uma necessidade do serviço?
Há o conflito entre o novo (os enfermeiros que chegam através do concurso) e o
velho (quem já estava lá). As respostas oferecidas pelos profissionais são hesitantes,
refletindo também esse conflito. Estamos na década de 90 e, além da rede básica, se
incorpora à estrutura de serviços básicos do Município uma nova experiência: O Projeto
Médico de Família. Como tem se desenrolado a prática do enfermeiro nesses dois
espaços?
Passamos ao segundo objetivo – Estudar a prática dos enfermeiros inseridos na
rede básica de saúde e no PMF.
Não é uma prática livre de conflitos, pelo contrário. As questões levantadas no
parágrafo anterior são apenas algumas das que resultam das indefinições específicas da
prática do enfermeiro quando associadas à realidade mutante dos serviços de saúde.
Todavia, não há reflexão, não há questionamento sobre o assunto, como se essa relação
conflituosa não existisse.
O conflito é melhor percebido na fala dos gerentes dos serviços, particularmente
os da rede básica de saúde, que visualizam na prática do enfermeiro uma inadequação
no que percebem como sendo o papel desse profissional. Assim, esses gerentes
descrevem uma prática ideal para o enfermeiro da rede básica de saúde, que se choca
com sua prática real. No caso do PMF essa inadequação entre papel esperado e prática
131
desenvolvida pelo profissional não é evidente, estando o enfermeiro bastante ajustado às
definições do projeto.
A prática profissional do enfermeiro continua a se moldar às definições políticas
que lhe são anteriores. A definição de seu papel e a coerência da prática com o papel
que lhe é atribuído é tanto maior quanto mais clara estiver a proposta do serviço no qual
se inserem. Assim, na rede básica de saúde, essa prática é quase tão diversificada quanto
o número de enfermeiros existentes na rede, havendo pouca coerência entre o papel que
lhe é atribuído e a prática que desenvolve. Por outro lado, o PMF oferece uma
delimitação clara a respeito do papel que espera que este profissional assuma,
observando-se que os enfermeiros estão bem adaptados a ele, desenvolvendo uma
prática coerente com esse papel.
As relações entre enfermeiros e auxiliares de enfermagem (ou demais membros
da equipe, inclusive agentes de saúde) parecem ser mais conflituosas no espaço da rede
básica, observando-se que essa relação tende a ser rejeitada pelo enfermeiro, que busca
no desenvolvimento da atenção direta à clientela uma maior satisfação com sua prática
profissional. Cabe refletir aqui sobre a validade dessa prática assistencial, uma vez que,
dado seu caráter muitas vezes assistemático, temos dúvidas sobre seu grau de
resolutividade para a população a qual o serviço deve atender.
As relações entre enfermeiros e auxiliares de enfermagem do PMF parecem
menos conflituosas (seria ilusório pensar na inexistência do conflito), talvez em virtude
de uma delimitação clara de quem é quem no Projeto.
Com relação ao PMF, a questão que deve ser levantada não diz respeito a existir
ou não um papel definido para o enfermeiro, pois este é bem claro. A pergunta é se é
este o papel ideal, se é este o lugar onde o enfermeiro dá o máximo de seu potencial ou
se é apenas o resultante da sobreposição de uma justificativa política e/ou econômica a
critérios técnicos. Neste caso, a inexistência de enfermeiros nos módulos como
resultado dos custos financeiros que isso poderia representar (seria necessário oferecer
ao enfermeiro o mesmo salário de médico sob pena de gerar atrito, o que significa dizer
que um enfermeiro custa quase quatro vezes mais que um auxiliar de enfermagem), ou
ainda resultado do desejo de limitar os conflitos advindos da relação entre médico e
enfermeiro, que são mais presentes que na relação entre médico e auxiliar de
enfermagem.
O olhar sobre a prática do enfermeiro nos dois espaços estudados nos mostra
então que a diferença central em suas práticas é resultante da definição prévia de seu
132
papel, ficando também evidente que sua contribuição para que esse papel seja definido é
ínfima, deixando isso a cargo de agentes externos. No caso estudado, das definições
decorrentes da adoção de uma política de saúde. Por essa definição, os enfermeiros do
PMF assumem uma prática mista, cujo centro é a ação pedagógica junto a dupla
auxiliar/ médico, tendo também a função de “organizar” os módulos. Já para os
enfermeiros da rede básica, percebe-se uma prática diversificada, onde o que a define é
a busca de satisfação, associada a uma prática assistencial.
Passando, por fim ao último objetivo – identificar as modificações que estão se
produzindo na prática do enfermeiro a partir da incorporação de experiências
inovadoras no espaço de um sistema local de saúde, identificamos que essas mudanças
lançam algumas possibilidades para a transformação na prática do enfermeiro. Porém,
estão mais próximas do plano das possibilidades que do plano das mudanças concretas.
A primeira mudança que se percebe relaciona-se à possibilidade do enfermeiro
ocupar espaços no plano das gerências dos serviços, trocando o papel de governanta da
unidade, onde pode exercer seu poder, mas não é diretamente chamado a responder pelo
que faz, por um papel no qual é efetivamente responsável pelos caminhos percorridos
pelos serviços.
Existe também a possibilidade do exercício autônomo da prática de enfermagem,
desenvolvendo a consulta de enfermagem no espaço das policlínicas, evidenciando-se
ainda as novas relações que se estabelecem entre a equipe de saúde, no espaço da equipe
de supervisão do PMF.
Todas essas mudanças são ainda tratadas como possibilidades, pois embora
possam ser encontradas como ocorrências concretas no espaço dos serviços estudados,
ainda são ocorrências pontuais, se considerarmos os serviços como um todo.
Na verdade, a grande contribuição das mudanças advindas da implantação do
SUS para a prática do enfermeiro está em tirar sua estabilidade e questionar algumas
posições que vem ocupando com um certo conforto: a de “eminência parda”, que exerce
um poder nos serviços mas que não se responsabiliza por seus resultados, ou a de um
profissional subjugado pelo sistema, que é obrigado a se adaptar ao papel que o sistema
lhe reserva.
Ao ser questionado, o enfermeiro pode pensar, refletir sobre sua prática e optar
por ocupar novos espaços, definir seu objeto de trabalho e crescer em importância como
profissional que tem ajudado a construir um sistema de saúde melhor. Ou não. Ele
também pode continuar a ocupar um papel obscuro, optando pela comodidade da prática
133
já conhecida que implica em não se responsabilizar por seus atos diante da população
(já que desconhece sua existência).
Vale considerar que o espaço do PMF é mais propício para que o enfermeiro
reflita sobre sua prática. Talvez até pelo seu caráter de “experiência” que deve provar
seu valor, o espaço de avaliação é mais desenvolvido e abarca também uma discussão
sobre a prática do enfermeiro, ainda que não seja seu ponto central. Na rede básica não
há um espaço estruturado para essa reflexão, que quando ocorre acaba por ser solitária
ou, eventualmente, na coletividade de um serviço singular.
Embora percebamos tal situação como uma deficiência da FMS, que limita a
possibilidade de integração e intercâmbio entre serviços e profissionais de saúde, não é
menor a responsabilidade dos enfermeiros pelo fato de não existir uma discussão
coletiva sobre sua prática. Existindo no Município um curso superior de enfermagem,
ligado à Universidade Federal Fluminense, que utiliza as unidades básicas de saúde
como campo de prática de seus alunos, é possível imaginar aí a constituição de um polo
para discussão da prática que está sendo construída e necessita ser reformulada.
Certamente a integração dos serviços básicos de saúde de Niterói, inclusive o
PMF, no sentido de criar um intercâmbio entre as diversas experiências que vem sendo
desenvolvidas isoladamente em cada serviço, seria uma contribuição fundamental da
FMS para que cada enfermeiro, tendo um olhar global sobre a prática existente neste
espaço, possa refletir sobre ela e propor modificações. Mas não é bom para a categoria
que fique esperando somente o espaço oferecido pela FMS – esse espaço deve ser
criado por ela para refletir suas questões específicas. Casa não seja feito, a pena é ficar e
perder o bonde da história. Ou, melhor dizendo, perder a oportunidade de mudar e
crescer como profissão, dando oportunidade para que surjam questões tais como: Para
quê enfermeiro? O auxiliar de enfermagem não faz tudo o que ele faz?
Concluímos aqui esse trabalho, desejando ter oferecido alguma contribuição
para a reconstrução da prática profissional do enfermeiro na FMS/ Niterói, a partir da
sistematização de algumas reflexões de quem vive a prática. Porém, para mudá-la é
necessário que essas reflexões sejam coletivas.
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ANEXOS
ANEXO I
ROTEIRO DE ENTREVISTA I
Utilizado para a entrevista em busca de informações a respeito dos
antecedentes históricos da prática do enfermeiro na SMS/ Niterói.
• Falar um pouco sobre a estruturação da Secretaria de Saúde de Niterói e a política de
saúde da época em que foi criada
• Como os enfermeiros foram absorvidos pela Secretaria então criada?
• O que faziam
• Onde atuavam
• Existia alguma diferenciação entre salário e carga horária entre os profissionais
de nível superior integrados as equipes da Secretaria?
• Falar a respeito de sua percepção sobre a prática do enfermeiro desde a criação da
Secretaria até a implantação do SUS
• Percebeu mudanças nessa prática?
• As mudanças, se existiram poderiam ser associadas a algum fato ou momento
histórico?
ANEXO II
ROTEIRO DE ENTREVISTA 2
Utilizado nas entrevistas com os gerentes de diferentes níveis do sistema.
• Falar sobre a participação do enfermeiro nas equipes que integram os serviços
básicos de saúde
• Como o quantitativo de enfermeiros é definido no seu espaço de gerência
• Tal número foi estabelecido a partir de que critérios?
• Que demandas gera a contratação de enfermeiros
• Que qualificação é exigida para que o enfermeiro atue em seu espaço de gerência?
• Existe alguma qualificação não exigida, porém desejável?
• Que atividades desenvolvem os enfermeiro em seu espaço de gerência?
• As atividades desenvolvidas por esse profissional então de acordo com as
necessidades do modelo assistencial proposto para o Município?
• Tem visto mudanças na prática do enfermeiro inserido na SMS/ Niterói a partir da
década de 90? Que relação as mudanças tem com a implantação do SUS?
• Que mudanças podem ser assinaladas?
• Tais mudanças podem ser relacionadas a algum fato ou momento histórico?
ANEXO III
ROTEIRO DE ENTREVISTA 3
Utilizado nas entrevistas com os enfermeiros.
• Percepção sobre a participação do enfermeiro nas equipes que integram os serviços
básicos de saúde
• Relato de sua prática profissional na área de atuação (Projeto Médico de Família ou
Rede Básica de Saúde)
• Destaque para atividades as quais mais se dedica
• O que percebe como prática desejável para o enfermeiro inserido no modelo
assistencial proposto pelo Município?
• Houve exigência de alguma qualificação (além da graduação) para que fosse
integrado a esse serviço? Há necessidade de alguma qualificação específica? Porque?
• Frente a prática que desenvolve (no PMF ou Rede Básica), como é vista a prática
desenvolvida pelos enfermeiros inseridos na outra proposta de organização das ações
de saúde (Rede Básica ou PMF)?
• Percebe mudanças na prática do enfermeiro inserido na SMS/ Niterói a partir da
década de 90? As mudanças causam impacto na prática do enfermeiro
• Que mudanças podem ser assinaladas?
• Tais mudanças podem ser relacionadas a algum fato ou momento histórico?
ANEXO IV
Rede de Serviços de Saúde de Niterói
ANEXO V
Lei Municipal n.º 905/90 e anexos 1, 2, e 3
ANEXO VI
Quadro Demonstrativo do Quantitativo de Recursos Humanos da Fundação Municipal de Saúde de Niterói
ANEXO VII
Síntese do Documento “Estudo Técnico para a Implantação do SUDS- Niterói” Projeto Niterói, 1988
ANEXO VIII
Documento : O que é o Projeto Niterói?
ANEXO IX
Documento: Municipalização Relato de Uma experiência
ANEXO X
Quadro de Vencimentos dos Servidores Municipais de Fundação municipal de Saúde de Niterói
Nível Sub-Grupo* Indice** Vencimentos Brutos***
A 710,82
B 682,39
1.1
C 665,80
A 649,22
B 636,18
Superior
1.2
C 623,15
A 503,50
B 491,65
2.1
C 467,96
A 450,19
B 432,42
Médio
2º Grau
2.2
C 409,91
A 361,33
B 351,86
3.1
C 343,56
A 322,24
B 311,58
Médio
1º Grau Completo
3.2
C 300,91
A 258,25
B 248,79
4.1
C 238,12
A 226,28
B 219,17
Elementar
1º Grau Incompleto
4.2
C 213,25
Fonte: DRH
* - As carreiras compreendidas em cada subgrupo podem ser consultadas no anexo II da Lei Municipal 905/ 90, que pode ser encontrada no anexo XXX deste trabalho
** - Relacionam-se ao tempo de cada servidor na FMS. Cada índice corresponde a cinco anos.
*** Em Reais, sem inclusão do adicional de insalubridade.