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    Giulio Cario rgan • MaurizioFagiolo

    GUIADE HISTÓRIADAARTE

    2 a e ição

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    EDITORI L EST MP

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    1 C MPO D RTE

    o campo fenomenal da arte é dificilmente delimitável: cronologicamente, compreende manifestações que vão da mais remota pré-história atéaos nossos dias; geograficamente, todas as áreas habitadas da comunidadehumana, qualquer que seja o seu grau de desenvolvimento cultural. Consideram-se artísticas actividades muito diferentes entre si : não apenas asartes chamadas visu i s de que nos ocuparemos neste livro, mas tambéma poesia, a música, a dança, o espectáculo, a jardinagem. Mesmo restringindo o campo às artes chamadas visuais, é impossível indicar categoriasde objectos que, pelo simples facto de pertencerem a uma dessas categorias, sejam todos objectos artísticos.

    Pode considerar -se obra de arte um complexo monumental e até umacidade inteira, e podem considerar-se obras de arte em si mesmas as coisasque constituem aqueles conjuntos edifícios religiosos e civis, públicos eprivados; ruas, praças, parques; pontes, estátuas, fontanários, etc.) . No extremo oposto da escala dimensional, podem ser arte as miniaturas ou asgravuras que ornamentam as páginas de um livro, as pedras preciosas, asmoedas, etc. As funções práticas, representativas, ornamentais, a que ascoisas se destinam não nos fornecem critérios de discriminação: podem serobras de arte um templo, um palácio, uma vivenda, uma fortaleza; ummóvel ou um qualquer utensílio; um paramento sacro, um estandarte, umtraje de cerimónia, uma armadura de parada ou de combate. Nem sequeras técnicas servem para qualificar de artísticos os seus produtos: quasetodas as técnicas praticadas pelo homem têm produzido por vezes obrasartísticas, mas nenhuma técnica tem produzido sempre obras com valorartístico . Está estabelecida pelo uso uma distinção entre artes m iores

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    (arquitectura, pintura, escultura) e artesmenores (todos os géneros deartesanato): nas primeiras prevaleceria o momento ideativo ou inventivo,na segunda o momento executivo ou mecânico. Mas trata-se de umadistinção válida apenas paraas culturas que a estabeleceram, e nem sequeré resolutiva neste caso: existem obras de ourivesaria, esmaltes, tecidos,cerâmicas, etc., que, artisticamente, valem mais do que obras medíocresde arquitectura, pintura ou escultura.

    O conceito de arte não define, pois, categorias de coisas, mas umtipode valor. Este está sempre ligado ao trabalho humano e às suas técnicase indica o resultado de uma relação entre uma actividade mental e umaactividade operacional. Esta relação não é a única possível: também umaobra de engenharia pode realizar umarelação perfeitade ideação e execução, e nem por isso é uma obra de arte . O valor artístico deum objectoé aquele que se evidencia na sua configuração visível ou como vulgarmente se diz, na suaforma, o que está em relação com a maior ou menorimportância atribuída à experiênciao real, conseguida mediante a per

    cepção e a representação. Qualquer que seja a sua relação com a realidadeobjectiva, uma forma é sempre qualquer coisa que édada a perceher,uma mensagem comunicada por meio da percepção. As formas valemcomo significantes somente na medida em que uma consciência lhescolhe osignificado: uma obra é uma obra de arte apenas na medida emque a consciência que a recebe a julga como tal. Portanto, a história daarte não é tanto uma história de coisas como uma história dejuízos devalor. Na medida em que toda a história é uma história de valores, aindaque ligados ou inerentes a factos, o contributo da história da arte para ahistória da civilização é fundamental e indispensável.

    2 A LITERATURA ARTÍSTICA

    Em todas as épocas e em todas as culturas existiu a consciência dovalor artístico.As coisas de valor artístico sempre foram directa ou indirectamente associadas àqueles que a sociedade considerava os valoressupremos: o cult o do divino, a memória dos mortos, a autoridade doEstado, a História. Sempre ascoisas em que se reconheceu valor artísticose transformaram em objecto de particulares atenções: expostas, admiradas, celebradas, conservadas, protegidas, transmitidas de geração em

    geração. Ali

    teratura que de diversas maneiras trata da arte é apenasum

    pálido testemunho parcial do valor atribuído à arte. Mas também por elase vê como a arte foi desde a antiguidade considerada uma das compo

    tes essenciais, e por vezes verdadeiramente o eixo, do sistema culturaln e ~se ocuparam os filósofos, cientes da impossibilidade de construir um~ e t e mdo saber sem ter em conta a arte: a partir do século XVIII criams ~ ~sucedendo-se até aos nossos dias, autênticas filosofias da arte. Dela- ~~ c u p r mos literatos e sobretudo os historiadores, conscientes da ims ortância das obras de arte como factos históricos e acontecimentos me~ o r á v e i sna história religiosa e civil. Pelo meio do século XVI surge, comas Vite,de Giorgio Vasari, a primeirahistória da arte específica, que traçao desenvolvimento orgânico dos factos artísticos por um período de cercade três séculos, ilustrando oscontributos originais das personalidadesemergentes, de Cimabue a Miguel Ângelo.

    Na literatura sobre arte, ocupa um lugar importantíssimo atratadística,que fixa normas e dáinstruções segundo as quais os artistas evitariamerros e aproximar-se-iam da arte que constantemente é mencionada comoa ideal, a perfeita. Na Idade Média, os tratados dizem especialmente respeità técnica e têm um carácter normativo. No século XIV, oLihro deli Arte,de Cennini, descreve os processos técnicos da pintura, mas não deixa deindicar as origens e a finalidade ideal da arte e, sobretudo, precisa queatécnica descrita é a praticada por um grande mestre, Giotto, e pelos seusdiscípulos. No século XV, com Leon Battista Alberti, ostratados assumemum carácter teórico: enunciam e explicam a teoria da qual deve procedera práxis da realização artística. Mais numerosos são os tratados sobrearquitectura, que descrevem e analisam os modelos antigos, passando emseguida a ditar regrastipológicas (edifícios sacros ecivis; planimetriascentralizadas e longitudinais),mOlfológicas (as cinco ordens da arquitectura clássica; envasamentos, ornatos, cúpulas, etc.), estilísticas(simetria eproporções, relação com o espaço circundante, etc .), técnico-construtivas(estática do edifício, materiaise processos deconstrução). De vez emquando, a tratadística ocupa-se de problemas gerais, de critérios fundamentais da representação, válidos para todasas artes: a perspectiva (porexemplo, Piero della Francesca no século XV, o padre Pozzo no séculoXVII),as proporções (Luca Pacioli no século XV, Albrecht Dürer, Vincenzo Danti no século XVI), o desenho (Vasari, Frederico Zuccari noséculo XVI). Um caso à parte, mas da maior importância, é oTrattatode a Pittura, de Leonardo, que não tem uma estrutura teórica verdadeirae própria, mas recolheas reflexões do artista sobre asOa própria experiência pictórica.

    Outro sector da literatura de arte é acrítica: incluem-se no seu âmbito,no século XVI, as discussões sobre os méritos comparativos das váriasartes (Benedetto Varchi) e sobre a preferência a dar ao desenho floren

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    tino e romanoou ao colorido veneziano(Ludovico Dolce, Paolo Pino),e tambémas expressivas descrições das reacções emotivas experimentadasperante obras de arte (Pietro Aretino e, noséculoXVII, Marco Boschini).A partir do século XVII (G.B. Bellori), a crítica é sobretudo apreciaçãoda situação artística contemporânea, com a manifesta intenção de apoiaresta ou aquela corrente.

    No século XVIII, quando se pretendeu dar a todo o conhecimentoumfundamento crítico ejá não dogmático, tentou-se(1. Richardson) fundamentar cientificamente o juízo crítico sobre o valor das obrasde arte.O crítico é propriamente umperito,uma pessoa que, possuindouma longae vasta experiência da arte, está em posição de reconhecerse, na obra queexamina, se contém aquelaqualidadeque a prática lhe ensinou encontrar-se em todas as autênticas obras de arte; eque, aprofundando o exame,reconhece na obra que estuda caracterese processosque a aproximam dasobras certas de umdeterminado período, de umacerta escola, deum certomestre. No decurso do século XIX, cuja cultura é dominada pelo pensamento positivista, procurou-se eliminar tudo o quehavia de empírico naactividadedo perito e fornecer-lheum método baseado em dados objectivos (Giovanni Morelli). Se bem que, originariamente, a figura do perito,que se limita a reconhecer a existência dos factos artísticos, seja bemdiferente da do historiador que os reagrupa e os ordena, é propriamenteao perito que se deve o aparecimento de uma historiografia da arte (emItália, Giovanni Battista Cavalcaselle, Adolfo Venturi, Pietro Toesca)jánão baseadaapenasna tradição e emdocumentos, mas no estudo directoe analítico das obras, entendidas comodocumentosprimeiros e essenciaisda história da arte.

    Na prática, subsiste ainda uma diferença entre críticae história da arte,se bem que,seguindouma tradição que remontaao séculoXVIII, a críticase ocupe principalmente daarte contemporânea,seguindo-lhetodos osmovimentos, preferindo abertamente uns ou outros, informando o públicoatravés da imprensa e procurando orientá-lonesta ou naquela direcção.Todavia, esta diferença não encontra justificação no plano teórico: aquiloa que se chama juízo sobrea qualidade das obras é, como veremos, umjuízo sobre a sua actualidade, sobre o seu descolamento do passado esobre as premissas que estabelecem para os desenvolvimentos futuros dapesquisa artística. Ojuízo crítico inclui-se por isso no âmbito de actividade do historiador.

    3 A FUNÇÃODA HISTÓRIADA ARTE

    Na nossa época, duas disciplinas se ocupam da arte: a filosofia e história. A filosofia da arteestética) estuda a actividade artística no seuonjunto, como tipo de actividade com motivações, modalidades e fin

    ~ i s que a distinguem das outras. Se no passado se apresentou com

    a suprema teoria da arte, procurando definir-lhe o conceito e mostrado-a comomodelo ideal de todas as actividades artísticas (incluindoas nãovisuais), hoje o processo inverteu-se,porque parte das análises dosfenómenos busca, para além da sua multiplicidade e diversidade,umprincípio estrutural comum, aproximando-se assim dos métodos do estruturalismo linguístico.

    Neste livro não trataremos da filosofia, mas apenas dahistóriada arte.Digamos desdejá que esta não consta somente do reagrupamento dofactos artísticossegundo certos critérios de ordem, mas visa tambémexplicarhistoricamentetoda a fenomenologiada arte. A obra de arte não

    é um factoestético quetem tambémum interessehistórico: é um facto quepossui valor histórico porquetem um valor artístico, é uma obra de arte.A obra de um grande artista é uma realidadehistóricaque não fica atrásda reformareligiosa de Lutero,da política de Carlos V, das descobertascientíficasde Galileu. Ela é, pois, explicadahistoricamente,como seexplicam historicamente os factos da política,da economia, da ciência.

    Os problemas paraos quaiscada obra de arte é a solução encontradou propostasão problemas tipicamente artísticos;mas porquea arte éumacomponenteconstitutiva do sistema cultural, existe decertouma relaçãoentre osproblemas artísticos e a problemática geral da época. O histordor não deve, pois, tentar entender como aquela problemática geraldesdobra na obra do artista e nela constitui otema ou o conteúdo, mascomo aquela problemática envolve o problema específico da arte e apresenta ao artista como problema artístico. Miguel Ângelo viveu prfunda e dramaticamente a crise religiosa do seu tempo e, semlevarmosem linha de conta aquela situação histórica, não podemos compreenderfrescosque pintou na Capela Sistina. Estava certamente cienteda enormeresponsabilidadeque comportava o seu empreendimentopictóricono lugarmais sagrado,no centro ideal da cristandade. Assumiu umaposiçãoideológicaque pôde ser explicada também no plano doutrinal, quedecertoinfluiu de maneira determinante na evolução da crise. Mas não ilustr

    nem exprimiu,em figuras, conceitos que teriam podido ser igualmenexpressos num discurso falado ou escrito. Sentiu que a crise religiocolidia também com a arte e enfrentou-acomo problema da arte, do

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    mesmo modo que os filósofos a enfrentaram como problema filosófico eos políticos como problema político. É de facto fácil verificar que a mesmaconsciência dramática da crise se manifesta noutras obras do artista, nãorelacionadas tão directamente com os grandes temas da crise: a génese eo destino da humanidade, a salvação ou a queda final

    A história da arte tem, pois, a função de estudar a arte não Como umreflexo, mas como agente da história: ela é, portanto, uma história especial(como a história da filosofia ou da economia ou da ciência), que operanum campo próprio e tem metodologias próprias, mas, como todas ashistórias especiais, desemboca e enquadra-se na história geral da cultura ,explicando como será a cultura elaborada e construída pela arte.

    4. JUÍZO CRÍTICOE VALORARTÍSTICO

    A história da arte é, obviamente, a história das obras de arte: mas comose decide que uma obra é uma obra de arte? Já dissemos que esta decisãopode derivar apenas do juízo crítico; mas em que consiste propriamenteesse juízo? E até que ponto é ele fidedigno? Em todas as épocas o juízode valor sobre obras de arte foi formulado mais ou menos explicitamente,mas em cada época fo i formulado segundo parâmetros diversos . Há obrasque no passado foram celebradas como grandes obras-primas e que nósjá não vemos como tal, enquanto revalorizamos outras já esquecidas oudesacreditadas. Pode reconhecer-se fundamento científico a um juízo quenunca é definitivo, e que cada época, cada cultura e até cada pessoaformula e motiva de maneira diferente? E, por outro lado, pode imaginar-se uma ciência que não formule juízos? Sem o juízo, a arte seria umaamálgama confusa de fenómenos díspares, onde as obras que caracterizaram uma época ou uma cultura, alterando-lhes por vezes o curso, se misturariam em paridade de valor com milhentas obras insignificantes, e nems q u ~ rpoderia manter-se a diferenciação, bem clara em cada civilização,entre a arte e ofício. O juízo é, pois, necessário, mas não pode reduzir-se à declaração de que uma dada obra é obra de arte e tem valor artístico;nem pode constituir só por si a premissa da investigação histórica que,sabendo que aquela obra é obra de arte, deveria localizá-la no espaço eno tempo coordená-la com outras obras com as quais tem uma relação,explicar a situação em que foi produzida e as consequências a que deulugar . Noutros tempos os parâmetros do juízo de valor foram o belo, afidelidade na imitação da natureza, a conformidade com certos cânonesicónicos ou formais, o significado religioso, o interesse da narração figu-

    IR

    BlBUOTECA PE.. l\LBElHl) -NTOl -.lP . ,

    rada, etc . Para a nossa cultura, que se baseia na ciência e considera ahistória a ciência que estuda as acções humanas, o parâmetro do juízo éa história . Uma obra é vista como obra de arte quando tem importânciana história da arte e contribuiu para a formação e desenvolvimento de umacultura artística. Enfim: o juízo que reconhece a qualidade artística de umaobra, dela reconhece ao mesmo tempo a historicidade. Não existe, portan

    to, uma diferença substancial entre o crítico ou o perito e o historiador dearte. É verdade que o juízo crítico consiste sobretudo no senti . a obra dearte, no intuir o seu valor; mas, pondo de lado o facto de essa intuiçãoimplicar uma experiência histórica da arte, ela mais não é do que umahipótese de trabalho, que espera da investigação histórica a necessáriaaveriguação .

    5. UTENTICID DE DA OBRADE RTE

    Decidir pela qualidade de uma obra de arte significa decidir pela sua

    autenticidade. A noção de autenticidade, fundamental para o estudo daarte, é também ela uma noção histórica . Em sentido restrito, o autênticoé o contrário do falso; e o falso, em arte, é a coisa que passa por ser oque não é, a contrafacção do estilo de um artista ou de uma época. Emsentido mais lato, não se incluem no âmbito do autêntico as cópias (aindaque, por vezes, vindas da oficina ou da própria mão do artista), as imitações, as derivações. Em sentido ainda mais alargado, não é arte autênticatudo aquilo que é repetição, conformidade com modelos, operação técnica separada de qualquer acto ideativo C . A história da arte, como qualquer história, é processo : tudo aquilo que marca passo e não faz avançar

    ( ) A autenticidade de uma obra de arte não se identifica com a autografia. Em todosos sectores da arte a participação do artista criador na execução material da obra é muitasvezes parcial, quando não se reduz à direcção dos trabalhos ou à mera projecção . Nosfrescos de Giotto, na Basílica de Assis (por exemplo), são muitas as partes não-autógrafas,e nelas se podem distinguir as mãosdos diversos discípulos ou ajudantes; mas apesar disso,todo o ciclo deve ser considerado obra alllênr ca de Giotto. Há quadros que ostentam aassinatura de Giovanni Bellini e nos quais a in tervenção directa do mestre foi mínima ounula: porém. na medida em que tudo leva a crer que foram idealizados, acompanhados.aprovados pelo mestre, incluem-se na série das suas obras autênticas. a menos que sejamsimples repetições que decalcam o modelo de certas obras do mestre especialmente apreciadas e procur adas pelo públ ico.

    As réplicas são muitas vezes autógrafas ou de qualquer modo executadas na oficina

    c sob o controlo do mestre : têm o va lor de obras autênticas quando na sua execução o

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    o processo, nem modifica a situação é isento de autenticidade. Consideramos, pois, interessante para a história da arte tudo aquilo que, de qualquermaneira, se despega da tradição: seja continuando-a e desenvolvendo-a,seja desviando-se do seu curso, seja invertendo-o polemicamente . Adiscriminação do autêntico e do não autêntico é portanto necessária atodos os níveis: ao dos valores máximos, levará a que se caracterize a obrade arte como acto único e irrepetível; ao da produção menor (mobiliário,

    cerâmica, tecidos, etc.), onde a repetição em muitos exemplares está previstae calculada desde a fase inicial da ideação e do projecto, levará a que secaracterizem os protótipos ou os modelos .

    A distinção entre arte e não-arte passa-se muitas vezes no interior daobra do artista, e até dos maiores : nem se afirma apenas que uma obra émelhor do que outra, mas também que na Illesma obra existem por vezespartes conseguidas e partes falhada s . Diz -se então que o nível daactividade daquele artista é descontínuo e a qualidade da obra desigual.Também este tipo de juízo, que parece depender sobretudo da sensibilidade e do gosto de quem o emite, é um juízo histórico: até a um grandeartista pode acontecer repetir-se, e até na mesma obra podem surgir partes

    em que o artista põe problemas novos e outras onde fica ligado aospróprios hábitos. MoreIli, quando se propôs dar uma base científica à

    mestre tenha influído int ensamente, e também renovado, ou de qualquer modo a lterado, aexperiência consum d no obr de que provêm.

    Ex istem, por exemplo, réplicas de quadros de El Greco em que a textura pictórica éde tal modo viva que devem se r consideradas verdadeiros originais que têm em comumcom a obr de que provêm apenas a composição e a tinta. As cópias são geralmenterepetições mecânicas, decalques. fácil reconhecê-las confrontan do-as com o original.Distinguem-se das repetições porque estas, sendo executadas pelo artista ou pelos seusajudantes. mostram o estilo habitual do artista ou da su escola, e a sua feitura tem um ritmomais solto e seguro. enquanto o copista imita diligentemente, mas sem agilidade , o estilode outrem.

    No problema d autenticidade inclui-se o do estado de conservação. As obras antigaschegam frequentemente até nós com lacunas, gastas, estragadas, alteradas . Muitas vezes osestragos são antigos, e os restauros com que se quis remediar o ma l pioraram-no. Não éraro que os restauros ten ham acabado por se substit uir em inteiramente ao origina l, destruindo praticamente a a ut enticid ade d obra . fun ção do historiador detectar tudo o que restade autênt ico e recompo r o tema d obra; é também função sua, como primeiro e verdadeiroresponsável pela conservação dos documentos da história d arte, fazer com que outrasmodificações não venham juntar-se aos estragos do passado. Se bem que o restauro deobras de arte seja hoje uma ciência autêntica e específica, que se Socorre de metodo logiase de equipamento altamente aperfeiçoados, a direcção das operações de restauro deve caberexclusivamente ao historiador de arte. como a única pessoa que está em condições deajuizar d autenticidade de um tema figurativo como facto histórico.

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    actividade do perito, sugeriu que se atentasse sobretudo nas repetições oun S maneirismos, supondo que nas partes menos importantes da obra oartista possa repetir mecanicamente processos habituais (por exemplo, odesenho das orelhas, das mãos, dos drapeados). De facto, os esquematismos os maneirismos, as maneiras típicas ou habituais, são exactamenteaquilo que os imitadores mais facilmente copiam. Já CavalcaseIle notouque a coerência do desenvolvimento de um artista não está na recorrênciade certos temas ou motivos, mas na contínua mutação da sua maneira: ou,mais precisamente, na ordem e na razão das sucessivas mutações; aquiloque o historiador deve reconstruir, seja no âmbito das personalidadessingulares, se j a no âmbito mais lato de uma situação cultural, é o desenvolvimento de uma experiência. Os artistas v ivem no mundo da arte comoos cientistas no da ciência, conhecem e avaliam o que foi feito antes delese o que fazem os se us contemporâneos; tal como para os cientistas, tambémpara os artistas não é admissível a ignorância da história e das condiçõesactuais da sua disciplina . Nas suas obras e com os meios da sua arte, osartistas desenvolvem um discurso cultural precioso, que o historiador devedecifrar e reconstruir: reconhecem ou limitam ou negam a autoridade dosmestres, aceitam ou discutem ou recusam polemicamente os resultados deoutras pesquisas, reexaminam criticamente a sua própria actividade passada. O historiador decompõe a obra de arte nas suas muitas componentesculturais , analisa-a como um conjunto de relações, de factores interactuantes. No se u discurso falará frequentemente de influências recebidas ouexercidas, porém não existe contradição entre as influências e a originalidade da obra, a menos que se trate de influências passivamente sofridase não de opções motivadas e reflectidas. Na pintura de Rafael é possívelreconhecer influências de todos os maiores artistas contemporâneos e, noentanto, Rafael é um artista absolutamente original, e a pluralidade dessas

    influências demonstra não já o ecletismo, mas o altíssimo nível intelectualda sua pintura. De facto, em vez de influências, deveria falar-se de vivase construtivas reacções críticas às pesquisas dos seus contemporâneos .

    6. QU LID DE D OBR DE RTE

    A qualidade de uma obra de arte é o sinal de que ela documenta orealizar de uma experiência, com todo o interesse e a ânsia de busca quenecessariamente a acompanham. O conceito de qualidade artística foidefinido no séc ulo XVIII por J. Richardson como valor que a crítica, e só

    a crítica, pode descobrir com a leitura atenta das obras. Justamente

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    Richardson desvia a atenção do estudioso das coisas que o artista diz paraa maneira como as diz. A maneira do artista é tensa, intensa, essencial;a maneira do imitador, copista ou falsário que seja, é fraca, penosa, ouapenas superficial e artificiosamente viva. Todavia, a qualidade ou aautenticidade não se manifestam nec essariamente na fluidez, na facilidade ,na espontaneidade da formulação. Nas pintura s flamengas do século XV ,a feitura é lenta, minuciosa , precisa; nos quadros de Cézanne é laborio sae atormentada : num e noutro caso a qualidade, altíssima, manifesta-sejustamente naquela feitura bem distante de imediata e espontânea . Assim ,uma pintura de Ingres não é qualitativamente inferior a uma pintura deDelacroix pelo facto de os contornos serem firmemente marcados e nãodiluídos, as cores cuidadosamente esbatidas e não lançadas à tela comtoques rápidos e impetuosos; e os ár or t de Canova não são qualitativamente inferiores aos esboce tos porque apresentam superfícies polidase lustrosas em vez de ásperas e acidentadas . O estudioso deve, poi s,concentrar a atenção não no fulgor exterior, que pode ser facilmentesimulado, mas na vitalidade interior das características; verificar se, na

    verdade, são ou não expressivas, se são necessárias ou supérfluas, sedefinem ou apenas descrevem convencionalmente, se no contexto soambem ou mal. A busca da qualidade requer indubitavelmente sensibilidade,mas a sensibilidade não ajuda se não for exercitada, e a única maneira dea exercitar (ou antes, de a formar) é ler o maior número de obras de artepossível, até se adquirir uma familiaridade total com os processos expressivos das várias escolas e dos vários artistas. Muito mais do que nas aulasdas universidades e nas bibliotecas, o historiador de arte forma-se nosmuseus, nas galerias, nas igrejas, onde quer que existam obras de arte.

    7. OS INSTRUMENTOS DO HISTORI DOR DE RTE

    Vejamos agora sobre que materiais o historiador trabalha. Há muitasobras famosas das quais se sabe tudo , praticamente : o artista que as feze quando, como e para quem as fez. Elas constituem os pilares da históriada arte, sem dúvida, mas nem por isso deixam de representar para ohi stor iador outros tantos problemas. Há depois muitas obras acerca dasquais não existe documentação exaustiva ou, com frequência, qualquerdocumentação : os estudiosos estão de acordo ao reconhecerem nela simportância histórica, mas discordam quanto à atribuição e data . Há, por

    fim, o campo sempre aberto à pesquisa. Muitíssimas obras são até agora

    inac essíve is , por uma razão ou por outra, à atenção dos estudiosos: frescosescondidos debaixo do reboco e mais tarde pelas transformações dasestruturas de alvenaria; pinturas que continuam quase ignoradas em igrejas distantes dos grandes centros, ou em velhas colecções muitas vezescobertas por camadas de sujidade ou por reparações que toma impossívelqualquer leitura sem um bom restauro ; quadros , esculturas, objectos detodo o género que giram por esse mundo passando de um comerciantepara outro, sem que os estudiosos deles tenham notícia; objectos de ourive sar ia, paramentos, códigos com iluminuras sepultados nos tesourosdas igr ejas; ob jectos de alto artesanato que ficaram ignorados porque oestudo das ditas artes menores ainda está, especialmente em Itália, bempouco dese nvolvido . Há depois outro material, p recioso para a re construção da história da cultura artística e dos processos de trabalho dos artistas:os desenhos que documentam os estudos, as pesquisas, por vezes as fasesdos projectos e da preparação das obras; as gravuras que no passado constituiram um dos principais intermediários para a difusão do conhecimentoda arte dos grandes mestres; as réplicas, as cópias, as derivações, que, se

    não podem ser consideradas obras de arte autónomas, são todavia umtestemunho precioso de originais perdidos. Há, finalmente, as notícias dasfontes literár ias, os escritos dos artistas, as cartas, os documen tos relativosa encomendas, a pagamentos, às sucessivas vic issitudes das obras.

    Nos limites do possível , evidentemente, o trabalho do histor iador deveprocessar-se sobre textos originais: nenhum juízo decisivo pode ser feitoa partir de reproduções, ainda que tecnicamente perfe itas. Uma obra dearte é sempre uma realidade complexa, que não pode ser reduzida apenasa imagens. O limite das reproduções é especialmente evidente na arquitectura: nem uma vasta série de fotografias do conjunto com perspectivas

    diversas, e dos pormenores do exterior e do interior , permitirá jamais aoestudioso ficar a conhe cer factores essenciais como a dimensão do edifício,a sua relação com o ambiente, a articulação dos espaços interiores, etc. Omesmo limite é válido para as esculturas: as fotografias poderão apresentá-Ias de diferentes perspectivas , mas isso não substituirá o panorama circular e contínuo que o estudo de um facto plástico exige, nem dará aoest udioso a possibilidade de avaliar as qualidades mais subtis da modelagem , a reacção da matéria à luz, a profundidade dos alicerces e as infra-estruturas . Até as pinturas que se apresentam como imagens de superfíciesão na realidade objectos plásticos dotados de uma estrutura complexa. Oest udioso poderá recolher muitos conhecimentos interessantes a partir da

    natureza dos suportes (a qualidade e a idade da madeira ou da tela, a

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    estrutura das tábuas ou das molduras, etc .), dos sinais que frequentementese apresentam inscrições, assinaturas, chancelas, etiquetas, números deinventário, etc.), da espessura e da composição da imprimação ou dascamadas de preparados interpostos entre a base e a superfície pintada, dasvárias espessuras e da contextura diversa desta última. Uma reprodução,ainda que boa, não dará nunca a noção precisa das dimensões da pintura,da exacta relação das cores, da qualidade da superfície, e só uma longaexperiência permitirá ao estudioso reconstruir imperfeitamente o aspectodo original 2).

    Ciente destes limites e procurando, na medida do possível, tomarconhecimento directo dos originais, o estudioso de arte opera sobretudosobre reproduções fotográficas. Independentemente dos casos em que areprodução substitui originais perdidos ou ~ n i f i c d o sou inacessíveis, otrabalho do historiador desenvolve-se principalmente sobre reproduções,porque consiste predominantemente no confronto entre obras de arte.Porque o objectivo é explicar a obra de arte como um sistema de relações,

    1) m arquitectura recorre-se frequentemente à reprodução cinematográfica, que tema vantagem de fornecer uma série praticamente ilimitada de imagens, de permitir ver dedistâncias e perspectivas diversas, de orientar o observador no reconhec imento visual tantono ex terio r como do interior. Natura lmente, a filmagem de um ediffcio ou de um conjuntode ediffcios reflecte sempre a interpretação do operador ou de quem o orienta: isto é, nãofornece uma informação objectiva mas uma leitura crítica da obra . A margem deixada àinterpretação objectiva do operador é re levante também para a reprodução fotográfica daescultura escolha dos pontos de vista, iluminação); é certamente menor para a pintura,embora a fotografia da pintura possa considerar-se totalmente imparcial. Salvo no caso deobjectos de pequenas dimensões, a fotografia de uma obra de arte fornece o conjunto e ospormenores. Para uma documentação objectiva, a série dos pormenores deveria cobrir todaa superfície do original em tamanho natural; mas, como na maior parte das vezes a escolhados pormenores é feita pelo operador, reflecte inevitavelmente o seu gosto. A fotografiaa cores é, sem dúvida, um subsídio útil, mas resulta quase sempre escassamente credívele muitas vezes completamente enganadora . Se a reprodução a preto e branco dá ao estudioso pelo menos uma descrição invariável, a reprodução a cores altera os valores cromáticosde mane ira tão desigual que se toma quase impossível de utilizar num trabalho científico .

    De grande utilidade são outros processos, como a fotografia com luz rasante, que fazressaltar o desenvolvimento da superfície pictórica, o ducll S do pincel, o desenvolvimentoda crosta as gretas da pasta de tinta depois de seca : elemento muitas vezes precioso paraa determinação da autografia de uma pintura); a fotografia a infravermelhos, que permitea leitura de camadas por baixo da superfície; o exame à luz de Wood raios ultravioletas)que permite distinguir as partes repintadas. Subsídio técnico de primeiríssima ordem é aradiografia, que põe em evidência as camadas profundas da pintura revelando o esboço,as correcções feitas pelo artista na primeira feitura e as partes originais eventualmenterecobertas por grandes áreas de nova pintura .

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    e as relações são muitas vezes indirectas e a longo prazo, somente atravésde uma extensa série de confrontos é possível caracterizar uma por umaaS muitas e muito espalhadas raízes de que a obra nasceu . Os confrontos,de facto, não servem apenas para revelar as analogias e as dependênciasdirectas, mas também as divergências, as associações de experiênciasdiversas, os percursos por vezes complicados de pesquisa do artista.

    8. ATRIBUIÇÃO

    A vançando pela via dos confrontos, que se referem principalmente aoestilo e às qualidades intrínsecas das características, o estudioso chega àdefinição histórica da obra, à atribuição. Com ela , coloca a obra no precisoâmbito cultural em que foi realizada : nas condições artísticas de um localou de uma época, no âmbito de uma «escola» ou da actividade de determinado artista. Como já se disse, não basta verificar analogias temáticasou formais; é necessário reconstruir o processo de desenvolvimento deuma cultura figurativa, tendo em atenção que nela se operam frequentemente mudanças ou viragens radicais . Para darmos um único exemplo,consideremos a pintura de Caravaggio; as obras juvenis, como o Repouso11 Egipto ou a Madalena são pintadas com cores claras que dão um efeitode luminosidade difusa, e as figuras têm atitudes compostas, quase semmovimento; nas obras da maturidade predominam os escuros, rasgadospor efeitos chocantes de luz incidente, e as figuras têm frequentementegestos resolutos, violentos. Neste caso, a mudança de estilo do artista édescrita por fontes literárias; mas se as fontes silenciassem, poderia oestudioso chegar à conclusão de que dois grupos de obras tão diversos sãodo mesmo artista? Já uma primeira análise mostra que entre os dois grupos,além das diferenças evidentes, existem afinidades ou consonâncias. Elas

    revelam uma origem, um fundo cultural comum que não é certamenteromano ainda que os dois grupos de obras tenham sido com certeza feitosem Roma), mas sim lombardo-veneziano : nenhum outro artista setentrional trabalhando em Roma entre o fim do século XVI e o princípio doXVII, além de Caravaggio, teria podido produzir obras com uma qualidade tão elevada, tão claramente expressivas de uma atitude polémica nosconfrontos da cultura figurativa do maneirismo romano tardio . Entre osdois grupos de obras há uma espécie de contradição que não é meradiversidade; as segundas assinalam uma nítida inversão de tendência emrelação às primeiras: são os sinais de uma crise que se desenrolou no

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    interior damesma consciência em crise, ea de Caravaggioé notoriamenteuma consciênciaem crise,em contínua edura polémica, não sócom oambienteartístico doseu tempo, mas tambémconsigomesma.

    A atribuição nãot m grande interesse quando se limita a baptizar umaobra, a catalogá-la; mast m um carácter dejuízo históricoautênticoepróprioquando corrige e precisa o quadro de uma determinadasituaçãocultural. Toda a gente reconheceusempreque o retábuloRucellai é umaobra-chavepara a história de pinturatoscana no fim do século XIII;porém, tem-se discutido longamentese o retábulo,seguramentedevidoaum mestre de primeira grandeza, se deveatribuir aCimabue, florentino,ou a Duccio di Boninsegna, de Siena. Se bem que não tenham aparecidonovos elementosdocumentais, hoje égeralmente aceite a atribuição aDuccio: através de uma análise mais aprofoodada de situação artística dotempo e especialmentedas relações entre Florença e Siena, chegou-seàconclusão de que a obranão podia incluir-se na coerência daactividadede Cimabue, e sein seria antes naactividade de Duccio,na época da suaestada em Florença.

    Também a determinação da data implica a análisehistórica. Quandoa data nãoestáescrita na obraou não é fornecida pordocumentos credíveis,pode ser estabelecida pelo menospor aproximação, através do confrontoda obra com o que veio antese com o que veio depois, istoé, situandoa obraem causaentre outras de quese conhececom segurança a data. Emsuma,trata-se de colocar um facto numa concatenaçãohistórica de factos,de compreender que experiências pressupõe e que consequências terá tidono trabalho posterior do próprioartista ou no ambienteculturalda época.

    A atribuição e adatação não pressupõem necessariamenteo conhecim nto da personalidade histórica doartista a que se referem: muitasvezeso historiador depara com obras ougruposde obras que nãojulga poderatribuir a um artistajá famoso,e que atribui a personalidades hipotéticas,designando-aspor um nome provisório (por exemplo, Mestre de Santa

    Cecília, Mestre de Madalena, Mestre do Bambino Vispo , Mestre daNatividadede Città di Castello,etc.). Por vezes, como alargamento dainvestigação, chega-se aidentificar oartista ou a reconhecerna obradesignada por um nome provisório oproduto de uma fase ainda nãoestudadade um mestrefamoso por outros motivos.

    Parao verdadeiroperito aatribuição e a dataçãosão oponto dechegadada pesquisa: um dos maiores donosso século,Bernard Berenson, compilou os resultadosde muitos anos de assíduo reconhecimentode igrejasitalianase de museusem todo o mundo numasérie de simples listas paracada artista, contendo aspinturascertas e aquelaspor ele atribuídas aos

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    mestres doRenascimentoitaliano. O mesmo Berenson publicou ocorpusdos desenhosflorentinos. Outros investigadores e peritos reuniram emrepertórios quase completosas pinturas murais esobremadeira dosséculosXIII e XIV, os pequenos bronzese as medalhas do Renascimento, osexemplaresmais significativos da cerâmica, de tecidos, etc. São recolhaspreciosasde materiaisaturadamente estudados,e constituem úteistrabalhos preparatórios,mais do que tratados históricos. Profundidade deinvestigação edensidade de pensamento bem diferentesassumea atribuição, no trabalho de peritos-historiadorescomo Pietro Toescae RobertoLonghi: implicando uma leitura penetrante dos textos figurativos e aindividualização das complexas componentes culturais da obra, e tambéma recriaçãodo delicado e tantas vezes imprevisível processo pelo qual oartista as combinou,a atribuição assume carácter de juízo crítico ehistórico.

    Visando a recriaçãodo percurso estilístico dosartistas, a pesquisaatributiva encontrou apoio no pensamento estético idealístico, para o quala obrade arte é a expressãoda personalidade do artista. omo a obrade um artista se desenvolve num certo espaço de tempo, uma grande parteda pesquisa históricasegue um métododiacrónico e resultaem tratadosde caráctermonográfico nos quais a obra do artistaestudadoé reconstruída desde a formaçãoaté à maturidade plena e tardia, para demonstrarcomo uma coerência de fundose estende da primeiraà última obra.

    O critério da personalidade deu resultados apreciáveis quando foiaplicadoa períodos em que os próprios artistas,cientesda sua qualidadede agentese protagonistas da história, propuseram-se deliberadamenteafirmar a própria personalidade. O mesmo Vasari, quandose dispôs anarrar o desenvolvimentodo renascimento da arte desde Cimabue aMiguel Ângelo,deu-se conta de não poder fazê-losenão escrevendoasvidas dos maioresartistas. Muitomais difícile muito menos útilseria a

    pesquisada personalidade noutros períodos(por exemplo, a altaIdadeMédia)em que as obras dearte, sejamde umsó artista oude uma oficina,não exprimema maneira deser e de sentirde um indivíduo,mas de umacomunidade. Nestesperíodosem que os artistasnão tentam minimamentefazer algo de novo no que respeitaà tradição, masantes colhemdela asimplicações maisprofundas e asmais remotas inflexões e variantes, ocritério sincrónico parece, se não preferível,tão necessário como odiacrónico : de facto, torna-se evidenteque na arquitecturaromânica nãoseria nunca possível distinguir umasucessão ordenada,e é bem maisinteressante verificar apresença simultânea de diversasinfluências.

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    9 CRíTICA E ARTE

    Se o trabalho do historiador de arte consistissesimplesmente emandarà caça de inéditos e em colar nas obras etiquetas com nomes e datas,osestudiososnão teriam motivo parase ocupar de obras de quese sabecomsegurançaserem obras-primas, quando e por quem eem que exactascircunstâncias foram feitas. Ou, quando muito, essas obrasseriamestudadas como pontos de referência para a atribuição e datação de outras. Pelo

    contrário, é justamente nessas obras incontestáveis efamosas que seconcentra a atenção dos estudiosos interessados nosgrandesproblemas dahistória de arte. Dos frescos de Masaccio, na Igreja do Carmo em Florença, dos de Rafael, nas Stange do Vaticano ou de Miguel Ângelo, na CapelaSistina, ninguém discutirá a at ribuição e a data (a nãoser por determinadasquestões: por exemplo,as colaborações ou a duração do trabalho), masdiscute-se e continuará a discutir-se ainterpretação. Delas, e das obras dearte em geral, cada época deu interpretações diferentes, mas não podedizer-se que existam, emabsoluto,interpretações correctas e interpretações erradas.Tomemos, como exemplo,A Escola de Atenas, de Rafael:lendo as muitas coisas que têmsido escritas sobre esta pintura desdeo

    séculoXVI até hoje, veremos que alguns escritores insistiram nagrandiosa representação do espaço, na arquitectura, na disposição perspéctica dasfiguras, nas suas atitudesvigorosamente plásticas, na função doc aro--escuro e das cores; outros discutiram longamente o significado ideológicoe os conteúdos doutrinal e histórico; outros ainda interessaram-se pelaposição que Rafaelassumiu,com esta obra, nos confrontos dos grandesacontecimentosda cultura artística contemporânea: a arquitecturadeBramante, a pintura de Miguel Ângelo, etc. A série, muito mais longaemais variada, não fica concluída enquanto aquele frescosuscitar ereceberinterpretações diferentes. Algumas delas serão provavelmentearbitráriase irrelevantes; pelo contrário,serãofuncionais e interessantesaquelasquetêm uma base concreta naobrae nessa base a explicam nasua totalidade.Se a primeira interpretaçãose limitasse a medir o espaço de representação,a demonstrara exactidão perspéctica dacomposição,a descrevera atitudedos personagens,seria parcial eescassamenteexplicativa;se a segundailustrasse apenas os conteúdos doutrinais, não explicaria porque forameles expressosmediante a representação figurativa, e porquêeste tipo derepresentação,e não mediante umescritoou um discurso;se a terceirasecontentassecom registaras ligações de Rafael com o antigoe com osmaioresartistasdo seu tempo, nãoexplicariaporque Rafael procurara umasíntese ouuma súmu/a do antigo edo moderno. Masse a primeira inter

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    pretação explicarque comaquele espaço arquitectónico, aquela composiçãoperspéctica, aquele desenvolvimento volumétrico das figuras, Rafapretendeurepresentar um espaço universal; se asegundapassar do conteúdodoutrinalpara a necessidade de o exprimir mediante a representação visuda unidade universal da natureza e da história;se a terceira esclarecer queas diversasexperiências de Rafael não reflectem um ecletismo indiferentmas a consciênciada universalidade da cultura, então deveremos reconhecerque as três interpretações são por igual legítimas, e que cada um

    delas representa um ponto de vista diferente pelo qualse considera e noqual se expõe, na sua globalidade, a realidade histórica da obra. Rafapintoueste fresco para exprimir o pensamento dasua própria época{masporque a obra de artese destina a durar no tempo, não vale apenas poraquiloque significouna situaçãodo momento, mas por aquilo que significou depois, significa para nós,significarápara quemvier depois de nós.Cadaépoca deve definir o quesignificamas obras dearte do passado noâmbitoda sua própria cu tura e que problemas representam no quadro dseus próprios problemas.l

    Uma investigação de que historiagrafia modema de arte não podprescindir é arelativaà história da crítica . Deve-sea Julius von Schlosseruma monumentalStoria della letteratura artistica (1924), e a LionelloVenturi uma fundamentalStoria della critica d arte (1938); procuram-see republicam-se com um interesse cadavez maior as fontes literárias dahistória da arte; quase sempre os tratados histórico-artísticos começampela análise do desenvolvimento e dasituaçãoactual do problema, isto é,por um capítulo da históriad crítica. O estudo da história da crítica nãoé auxiliar e colateral, é um processo metódico da historiografia da art

    Porque temos desaber o que pensaram de Giotto, de Mantegna, deTiciano osseuscontemporâneos e os estudiosos dosséculosquese seguiramaté ao nosso, uma vez quesabemosque a o s s ~interpretação da obradaqueles mestres será necessariamente diferente?

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    próprio como crítica dos juízos procedentes. Resumindo, pode dizer-seque a história da arte, sendo história dos juízos emitidos sobre obras dearte, é históriad crítica de arte.

    10 HISTÓRIA E CRÍTICA

    Se aquilo que determina e justifica a nossa interpretaçãod arte dopassadoé a situação da nossa cultura e especialmente,como é fácil deentender, da cultura artística, não é possível compreender a arte do passado se não se compreende a arted própria época. Os movimentos, osdesenvolvimentos da arte, têm sempre influenciado profundamente a construção da perspectivai stóricaem que se enquadram e explicam os acontecimentos artísticos do passado. Quenos sirva o exemplodo Renascimento italiano: não foi o renascido interesse pela arte clássica que, noséculo XV, determinou o afastamento da arteitalianad triunfante tradição gótica, e depoisum a viragem radical na cultura artística, mas exactamente oinverso, tantomais que os primeiros investigadores e estudiosos

    do antigo foram os artistas, esó depois, na sua esteira, se desenvolveuo estudosistemáticodo antigo, a ciência arqueológica. Assim, deve-seàtendência artística romântica a recuperação,no século passado, da artemedieval. Não é apenas uma coincidência fortuitao facto de se teremdesenvolvido aomesmotempo apesquisados puros valores na visão daarte (o Impressionismo) e a teoria da pura - visualidade no pensamentoestético. O Expressionismo alemão dos primeiros anos do nosso séculolançouuma luz reveladora sobre a arte, feita de extrema tensãodramáticados séculos XV-XVI alemães; o quase esquecido Grünewald, expoentemáximo daquela tensão interior, é posto aonível ou mesmo acima docelebradíssimo contemporâneo Dürer, que por sua veztinhaprocurado dar

    à arte alemã uma orientaçãoidealizantee classicista. Ainda no princípiodo nosso século, deve-se aos artistas/auves, aos expressionistas, a Picasso,a descoberta do alto valor estético da artenegra, anteriormente considerada simples documento etnográfico. A pintura cubista, com a sua buscasistemática da estruturalidade da forma, abriu praticamente o novo caminho d investigaçãocrítica e histórica, levando-a a estudarsobretudoossignificados internose os desenvolvimentos das formas.

    Por aqui se vê como é absurdo o preconceito, muitodifundido nopassado eainda hoje não completamente extirpado, de que ohistoriadordeve ocupar-se apenas da arte antiga (o limite era estabelecido, nãose sabeporquê, no fim do século XVIII), deixando ao crítico a tarefa de tratara

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    arte modema. A este preconceito corresponde o oposto:que o crítico,tratandoa arte do seu tempo,não deve proceder segundo os métodos dahistória,como se a arte contemporânea constituísseum problemahistórico.pode fazer-se ahistória da arte antigacom uma metodologiamodema, epode f a z e r s ~a hi íria d arte modem com metodologias antigas e ultrapassadas. E evidente que o historiador, expoente responsável pela culturdo seu tempo,deve sempre fazer umahistóriamodema, quer o objectodasua investigação e do seujuízo seja antigo quer moderno.

    II PERIODIZAÇÃO E LOCALIZAÇÃO

    A historiografiamodem d arte prefere o critério problemático aocritério monográfico. Toda a investigação histórica delimita um campopróprio, isto é, caracteriza e analisa grupos de fenómenos que, estandoligados entre si, formamum sistema de relações, umperíodo O início deum período é geralmente assinalado por uma mudança mais ou menosprofunda em relação ao precedente: cada período pode incluir-se, comoutros,num período mais vasto. A primeiradeterminaçãode um períodohistórico foifixada por Vasari, que reconheceu uma concatenação entrea obra de personalidades artísticas diferenciadas quese sucederamemItália desde a grande mutação queteve lugar no século XIII (o afastamentoda maneira bizantina) até ao meio do século XVI, ao vértice de MiguelÂngelo. A historiografiamodem ultrapassou, naturalmente,o esquemade periodizaçãode Vasari, que vê a históriacomo um arco, cuja curvaascendente culmina num apogeu a que se sucede inevitavelmente acurva descendente da decadência. Para a maior parte dos historiadoresmodernos, todavia, a unidade-base é ainda a personalidade do artista, e ocampo de investigação estende-se quando muito aos precedentes (a

    formação) e aos consequentes (a escola). O conceito de escola é antigo:constitui o princípio de classificação e ordenamento da primeirahistóriada pinturaitaliana,a do abade Lanzi, no fim do século XVIII. O conceitode escola implicaa concepção do artista comomestre : aqueleque nãosó elabora um estilo próprio, mas também transmite assuas característicasao círculo de discípulos, dos quais alguns serão meros repetidoresecontinuadores,outros desenvolverão de maneira original ou absolutamenteinovadora o ensinamento recebido, apresentando-se por sua vezcomomestres de umanova escola. A extensão do campo de relações explica aextensão doempregodo termo escola muito para além dosentido original,isto é, de um círculo de artistas formados pelomesmo mestre: fala-se da

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    escola de Angélico ou de Lippi ou de Verrocchio,mas depois incluem-se todasna designação de escola florentina ,tal comohá umaescola deTura, uma de Hércules deRoberti,uma de Cossa, uma de Costa, e todasse reassumemna designação de escolade Ferrara . Menos convincentee depoisusada, quando muito,como designação topográfica, é a inclusãonaquelas escolas citadinasde artistasdos séculos XVII e XVIII, ou, pormaioriade razão, de artistas modernos.Nãocaberia na cabeçade ninguémincluirMagnelli, florentino, na escolaflorentina, ou De Pisis, de Ferrara,

    na escola de Ferrara. Nos grandesmuseus encontramosescolas nacionais completamentedistintas: italiana, flamenga, francesa, alemã, espanhola,etc.: e tal comoseria inconcebívelincluiros mosaicosde Ravenaou os frescosde S. Ângelo em Formisna escolaitaliana,seria verdadeiramente ridículoincluir Picasso na e s c o l a e s p a n h o l aChagall na escolarussa, Brancusi na romena.É pois, evidente,que por escola seentendeum âmbitode relações historicamente comprováveis, aindaque muitoseparadas no espaço eno tempo: o conceito de escolaé, pois,um critériode classificaçãohistóricae, como tal,susceptívelde ser, como temsido,criticadoe ultrapassado.a critériode escolapareceassim inadequado noque toca às exigências de classificação eperiodização dahistoriografiamodema, para a qual todas as delimitações decampo, sejam elastipológicas, tipográficas ou cronológicas, são narealidadea definiçãodeuma áreaproblemática.A periodizaçãoconvencional,que conserva alguma utilidadepráticaparao estudo da arteocidental, não tem nenhumaparaoutras áreas culturais: quem se lembraria de chamarmedieval a umapintura chinesa do século XI, ou renascentista aum bronze indiano doséculo XV?Tambémos períodoshistóricossão, pois, campos de relações,e mudam segundo ainterpretaçãodada aos sistemasde relações respectivos. Nenhumhistoriadorde arte poderia jamaisaceitar a periodização,ainda mantida em certosmanuaisescolares, segundo aqual a Idade Médiatermina em 1492,com a descobertada América; omesmoconceito deIdadeMédia perdeu significado históricodesde que,com argumentos bemfundamentados, foram contestados os falsosconceitosde decadência e derenascimento dacultura clássica e, sobretudo, desde quando foram delimitadosoutros camposde fenómenos correlativos(bizantino,carolíngio,românico, gótico, etc.) quepermitiramarticular e ordenar aimensidadedefenómenos que o termoIdadeMédia reunia e misturava num único saco.

    conceito de Renascimento, que ainda compreendia todas as manifestações artísticas italianas e parte das europeias entre o princípio doséculo XV e metade do XVI, parece hoje mais aleatório do que definidor,e já não podeser referido comoo período do renascimento da cultura

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    figurativa clássica. Entretanto, aquele conceito valeria apenas para Itáli(rigorosamente, pelo menos até metade do século XV,apenas para Florença), pois o ditorenascimentoda arte clássicanão serviriadecertoparaexplicara obra dos flamengos Jan van Eyck ou Roger van der Weydenou do francês Jean Fouquet que, no panorama da pintura europeia dprimeirametade do século XV, não sãomenos importantes doque osgrandes mestres florentinos; além disso, ele configura erradamente adinâmica da cultura artística da época comoum processo de irradiação deum centro e não como um sistema de factores inter-actuantes.Se o termo Renascimento tende a desaparecer ejá quase desapareceumesmo,o termo Maneirismo vai adquirindo cada vez maior importânciae extensão,tendo anteriormente sido usado para definir uma fase imagináriade decadênciaque se seguiu ao apogeu do Renascimento:deixando de ter um significado negativo e assumindo um positivo, no sentido dque exactamente nesse período se esboça a problemática de fundo da artmodema,o Maneirismo não podia serjá a sequela e a dissolução da artedos grandesmestresda primeirametadedo século XVI e devia reconhecer-se a estes o mérito de terem realizado e promovidouma transformação radical das próprias estruturas da arte. Maneirista Miguel Ângelo,portanto,e maneiristas Ticiano, Tintoretto, Veronese, e até o mais respeitado teórico do classicismo arquitectónico, Palladio; e, se não maneiristas, pelo menos premissasindispensáveisdo Maneirismo, Leonardo, Rafael,Bramante.

    Barroco , termo depreciativo ou pelo menos fortemente limitativo,designou durante muito tempo tudo aquiloquese fez em Itália e na Europadesdeo princípio do século XVII até metade do XVIII: na crítica modema,e apesar da condenação autorizada de Croce, o termo perdeu qualqueimplicação negativa, embora ainda hoje se discuta a oportunidade de empregarrestritiva ou extensivamente. Em todo o caso, renunciou-se aexcluirdo contexto histórico da época, como se fossem aparições miraculosas, os maiores artistas como Caravaggio em Itália, Velazquez emEspanha, Rembrandtna Holanda, cuja obra surge profundamente integrada e determinante na dialéctica cultural da época.

    A partir do Neoclassicismo, a periodização segue o movimento e asucessão das correntes e dosseus programas explícitos e reflecte porissoo fim daquilo a que se chamava estilos de época . Não faria sentido dizeque os últimos decénios doséculo XIX são a era doImpressionismooutentar estabelecer os limites cronológicos do Cubismo, seja porque estacorrentesnão sãoas únicase explicam-se emrelaçãoe em contraste comoutras, seja sobretudo porqueàqueles termos correspondejá uma área

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    precisa de fenómenos, todosligados aos enunciadosteóricos ou aosprogramas dos vários movimentos.Também as áreas geográficas servempara classificar os fenómenos artísticos na medida em que correspondama outrostantos camposde relações. É absurdo falar-se de arte italiana arespeito de épocas emque não existiauma unidade étnica e culturalitaliana, ou daquelas em que,como na nossa, o conceito de cultura nacionalperdeu todo o significado.

    12 O MÉTODO FORMALISTA

    Os estudos modernos de história de arte desenvolvem-se segundodirectivas metodológicas fundamentais:Jarmalista sociológica ico-nológica semiológica ou estruturalista. A metodologia formalista parteda teoriada pura-visualidade, que, no plano teórico, teve o seu maiorexpoenteem Konrad Fiedler, e no planoda aplicação históricaem Heinrich Walfflin. Tentemos explicá-lacom um exemplo. Tomemos um quadrode Rafael que representa Nossa Senhoracom o Menino numa paisagem. <

    Conhecemos inúmeros quadroscom o mesmo tema; em muitos deles opintor terá procurado manifestar os mesmos sentimentos, aliás bastanteconvencionais, por exemplo, atema solicitude da mãe, a despreocupaçãoda criança que brinca, a suavidade das linhas'e das cores da paisagem. Oque há então de especialno quadro de Rafael? Pondo de parte o assuntoe os conteúdos afectivos, o estudioso verificará, por exemplo, que asfiguras estão dispostas de maneira a formarem quaseuma pirâmide e quese contrapõemcomo um volume sólido no vazio atmosférico do fundo;observará que as linhas dos contornos securvam de maneira diversaeassim se harmonizamcom as curvas delicadasda paisagem; notarápor fimque os volumes são geralmente arredondados e que o efeito de relevoé

    obtido mediante a gradação uniforme do claro-escuro.~ s t scaracterísticasformais não se encontram somente naquele quadro, nemem todas asMadonnas de Rafael, mas também noutras obras do mesmo período,qualquer que seja o assunto, e aparecemjá desenvolvidas em obras cronologicamente mais tardias) Existem, pois, modelos formais próprios deRafael que não servem para comunicar os vários temas, mas algo de maisgeral e profundo, uma concepção domundo e do espaço; e aquilo que sedesenvolve no curso da arte do mestre éjustamente aquele sistema de representação global dar e l i d d es formas têm, em resumo, um conteúdosignificativo próprio, que não é o dos temas históricos e religiosos que devez em quando comunicam; ecomo a representação daqueles temas não

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    é puramente descritiva ou ilustrativa, mas universalizada ou idealizada, éprecisamente o valor universal ou ideal dos sinais que universaliza oidealiza a figuração. Poderá observar-se a seguir que o sistema dos sinarepresentativos não só se desenvolve tendoem conta os sistemas representativos de outros artistas (incluindo os antigos), mas também que existemcertas afinidades entre os sistemas de sinais representativos usados peloartistas da mesma época e do mesmo âmbito cultural. Walfflin procuroureduzir os sistemas de sinais representativos a algumas categorias fundamentais: linear e pictórico; superfície e profundidade; forma fechada eforma aberta; multiplicidade e unidade; clareza e não-clareza. Pode parcer uma abstracção arbitrária; mas, como é fácil de ver, a cada categoriacorresponde o seu oposto, e nesta série de opostos Walfflin pretendrepresentar aquilo que considera os dois grandes rumos da arte: a representação e a expressão, o clássico e o não-clássico, a arte domundomediterrânico e a arte domundo nórdico. e um lado está a representação,que implica a distinção, mas também o paralelismo e o equilíbrio entreaquilo queé representado e aquele que representa, entre o mundocomoohjecto e o homem como sujeito; no outro está a indistinção e depois aidentificação do dinamismoda vidacom o dinamismo do cosmos) Esquematização semelhante de grandes áreas étnicas, se não propriamenthistóricas, propusera Worringer (1906); as formas representativas manfestariam o conhecimento de uma realidade que, na sua clareza formalhes serve de modelo (daí a concepçãoda arte como imitação, própria dopensamento clássico), enquan to os sinais abstractos da arte nórdicareflectiriam a tensão entre ohomem e um ambiente indefinido, suspeitoou hostil Para um outro estudioso, Alois Riegl, a simbologia implícita nmorfologia dos adornos reflecte uma intuição do espaço e do tempo próprdo mesmo grupo étnico e dependente do tipo de experiência vivida. Ainque estas posições possam conduzir ainadmissíveis distinções raciais

    (como aconteceucom alguns estudiosos alemães) não se pode negarquepermitiram supera r a classificação tradicional dos factos artísticos segunas nações. Perfilam-se assim áreas ou sistemas de alcance mais vastcomo o da arte ocidental (Focillon) e o da arte oriental (de Bizânciao Islão, à Índia, ao Extremo Oriente).

    J perigo inerente a este tipo de pesquisa consiste na fixação decons-tantes formais, nacionais ou étnicas, e no consequente retardamento dprocesso histórico: se não se pode negar que as relações são mais estreite frequentes entre fenómenosda mesma área cultural, não se trata deconstantes invariáveis, mas de desenvolvimentosh i s t ó r i c o s~ É certamentepossível que alguns sistemas ou modos de representação se encontrem em

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    artística tem impulsos mais profundos, ao nível do inconsciente individuale colectivo ) Períodos houve (por exemplo, o da arte bizantina) em que asfigurações obedeciam a prescrições iconoRrájicas precisas e inevitáveis ,fixadas pela liturgia, e toda a actividade inventiva era vedada aos artistas:mas nem por isso o seu valor artístico era menor. A iconologia é diferenteda iconografia: num caso e noutro, porém, o que conta, porque tem umsignificado próprio, é a imagem .fI assunto que a crítica formalista elimina como facto inteiramente contingente, é sempre uma componente da

    obra: uma interpretação que se queira exaustiva não pode desprezá-Ia. Afiguração de Nossa Senhora com o Menino é sempre uma mulher jovemcom o filho, mas houve épocas em que foi representada como uma rainhano trono, outras como uma dama nobre ou até uma mulher do povo como filhinho. Tal como se pode fazer a história da arte como história dasformas, também se pode fazê-Ia como história das imagens. A actividadeartística é essencialmente actividade da imaginação : mas na imaginaçãoincluem-se também as imagens sedimentadas na memória . Os processosda memória e da imaginação são diferentes dos da observação e dainvenção ) Quantas vezes, invocadas pelas mais diversas circunstâncias,não ressurgem da nossa memória imagens de que não conservamos uma

    recordação consciente, mas que estavam sedimentadas nas profundezas danossa experiência? Os estudiosos que se formaram no glorioso institutocriado por Warburg em Hamburgo (depois anexado à Universidade deLondres) concentraram primeiro as investigações no Renascimento, a épocaque parecia marcada pelo triunfo de forma absoluta , ideal. A forma absolutaera a forma clássica; mas quanto mais os artistas do Renascimento alargavam o estudo do antigo, mais se apercebiam de que aquela formaabsoluta era uma abstracção e que aquilo que encontravam era um extraordinário e riquíssimo património de imagens. Como visavam conciliar asapiência do antigo com o pensamento cristão , pensavam que os antigos,não tendo recebido a revelação, não conheciam a verdade senão poralegorias, metáforas , imagens : mas, justamente, reanimando-se e revivendo no pensamento c ristão, aquelas imagens revelavam o seu verdadeiro eprofundo significado. A história da arte (do ponto de vista iconológico)é, pois, a história da transmissão, da transmutação das imagens.

    Haveria então na arte duas categorias distintas, a das formas e dasimagens, a da representação de uma realidade objectiva (seja natural ouhistórica) e a da evocação de imagens remotas sedimentadas na memória?

    anofsky conseguiu demonstrar que as consideradas formas representativas mais não são do que um caso particular, uma classe de imagens.Vejamos o exemplo da perspectiva : tem uma base geométrica i e n t í f i ~

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    e é considerada a representação rigorosamente objectiva do espaço; todavia é também ela, uma forma simbólica , uma iconografia do espaço,que não difere substancialmente da iconografia do Omnipotente ou daTrindade . Existe, pois, e tem uma importância capital na história da civili zação, uma cultura de imaRens; G história da arte é a história da culturaelaborada não pela via dos conceitos mas por meio das imagens. Asimagens têm no mundo uma existência própri ;J propagam -se, emboraalteradas, em todas as classes sociais, não conhecem limites de escolha ,

    nem de estilo nem de nação. Por vezes um grande monumento (o Colosso,digamos) é reproduzido de maneira mais ou menos esquemática, reduzidoa um símbolo, a uma sigla a que se atribuem os mais diversos significados:alusão à universalidade do império romano, ao sacrifício dos mártirescristãos ou, simplesmente, indica a cidade de Roma. Seja como for, aimagem do Colosso faz parte do inconsciente colectivo, torna-se um sinalque pode assumir diversos significados, mas que cada um pode decifrarcomo quiser. Neste sentido, Q método iconológico permite uma análisedos processos de fruição e de recuperação ainda mais extensa do que a quese faz com o método sociológico. Também ao método iconológico secensura o facto de não ter em conta a qualidade e de não estar em posição

    de a assegurar ) Limitar-se-ia a recolher e ordenar um imenso mas indiscriminado material icónico, em que se misturariam a criação do génio eas medíocres e por vezes mesquinhas imagens devotas , ilustrativas,populares . Na arquitectura , portanto, o método iconológico revalorizariaas detestadas tipo /ag ias sendo evidente que a tipologia do templo redondoperíptero ou a da basílica cristã ou, até, as ordens clássicas, são outrastantas iconografias. É verdade que não se definiu um valor de qualidadeinerente às imagens ; mas não é verdade que o método iconológico considere apenas as repetições do tipo de imagem: (pelo contrário, ele ocupa-se sobretudo das m u t a ~ õ e sdas diversas associações de imagens paratomar novos significado.$-. Por outras palavras, se a iconografia é o estudoda conformidade com uma imagem-tipo, a iconologia é o estudo das infracções ao modelo, do percurso muitas vezes misterioso da imagem naimaginação . dos motivos para as suas reaparições por vezes muito distanciadas no tempo. Na cultura da imagem, os processos de associação etransmissão surgem de facto muito mais complexos e estruturalmentediversos dos da cultura da forma, que requerem a relação directa e consciente : muitas vezes, é certo, um tema icónico é ligado a culturas e tradições remotas, fora de qualquer continuidade verificável, como aconteceu precisamente no Renascimento, quando se estabeleceu uma relação,à distância d e séculos, com a cultura de imagem do mundo clássico. Nãoé correcto dizer-se , como se tem dito, que o método iconológico não é um

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    método histórico:Cexactamente como método histórico é que ele estuda edescreve processos peculiares da cultura artística como cultura da imagem, que explicam a sua maneira específica de evoluir e difundir-se. '

    15. O MÉTODO ESTRUTURALISTA

    estruturalismolinguístico pôs em movimento, no campo dos estudosda arte, pesquisas que ainda se encontram em fase experimental e que, atéhoje, se localizaram especialmente no campo da arquitectura . O objectivoda pesquisa é aquilo a que se poderia chamar o factor comum a todas asmanifestações artísticas, a unidade mínima constitutiva do acto artístico,ou seja, o lugar, o tempo e a cultura em qU'e se produziu. Para além doconceito de forma, cuja validade se limita às culturas que vêem a artecomo representações interpretativas da realidade e depois como acção deconhecimento ; para a lém do conceito de imagem,que limita a act ividadeartística à esfera da imaginação, o conceito de sinal surge hoje como oúnico válido indistintamente para todos os fenómenos artísticos e que porisso consente uma delimitação da área fenomenal da arte. O estudo dosinal semiologia) parece ter tendência para subtrair o estudo da arte àsmetodologias históricas, para o instituir como ciência absoluta, substituindo a mutabilidade das interpretações pela decifraçãorigorosa dos sinais,mediante a determinação dos códigos correctos . Justamente por isto seatribui ao estud ioso da arte a função específica da descodificaçãodasmensagens por sinais. Uma vez que os sinais são significantes,o problemada arte está incluído no da comunicação: e mais do que nunca fica abertoo debate acerca da possibilidade ou da legitimidade de distinguir amensagem estética da mensagem puramente informativa . De facto, nãobasta identificar o valor com a não-redundância, isto é, a novidade dainformação : uma obra de arte não deixa de ser esteticamente fruível pelofacto de ser antiga, já vista vezes sem fim , conhecidíssima. Está claro quenão é possível estabelecer categorias de comun icações estéticas e comunicações não-estéticas: um edifício comunica sem dúvida informaçõessobre a sua função própria (igreja, palácio, forta leza, vivenda, hospital,biblioteca, etc.) , mas esta informação não é necessariamente estética , e étanto assim que, entre vários edifícios que têm a mesma função e a mesmaconfiguração, distingúimos os que têm valor estético dos q ue não o têm.Naqueles que o têm, e que portanto transmitem uma informação estética,as duas funções coexistem e a sua duplicidade não se resolve decertoseparando a função da forma visível. Se o mesmo sistema de sinais funciona

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    níve l estético e a nível não-estético, o problema des loca-se mais uma veza ara aquele plano sociológico que o estr utura lismo exclui: teremos de~ o n l u i rque o mesmo objecto vale somente pela sua função prática paraquem não possua o código que lhe permita decifrar a mensagem estética,e vale tamhém(ou apenas) como mensagem estética para quem o possua.Este problema, porém, não se apresenta apenas no âmbito dos est udos daarte : insere-se, de facto, no problema mais vasto da cultura de massas . Noâmbito da cultura de massas é possível a produção estética, como produção superior ou de elite? É possível ~ estét ica ou uma teoria de arte quenão se insiram numa teoria de valores? E possível uma ciência estética que

    ão seja história da arte? Finalmente, é possível a história, como pensamento e como pesquisa, num sistema cultural em que se toma conhecimento dos actos humanos através de circuitos de informação próprios, masnão se pode formular um juízo?

    6 . CIÊNCIADA ARTE E HISTÓRIADA ARTE

    Embora no actual estado de coisas a tentativa de substituir a históriada arte por uma ciê ncia da arte pareça uma total veleidade, e a históriacontinue a ser a única ciência que explica os fac tos artísticos , muitos sãoos procedimentos c ientíficos (no vulgar sentido do termo) que o historiador de arte utiliza no seu trabalho. Não existe uma distinção entre oestudioso que escreve a história da arte ou a ensina de cátedra e aqueleque se dedica à investigação, à recolha, à conservação, à catalogação, àprotecção das obras de arte: um e outro são igualmente responsáveis porum património cultural, mesmo se um deles o estuda para o conservar etransmitir, e o outro o conserva e o transmite para o estudar e para quepossa continuar a ser estudado. a nossa época o património artístico está

    em perigo por causa do impetuoso desenvolvimento de uma cultura técnico-científica que tem e ostenta outros interesses; da degradação da figuradas cidades, que constituem precisamente o loca\ da arte; da especulaçãodescontro lada; da tendência infeliz para considerar os bens cu lturais sobo aspecto puramente económico. Afirma-se levianamente que a disciplinahegemónica do mundo de hoje é a ciênc ia, e que o espírito da ciência estáem contradição tanto com a arte como com o pensa m ento histórico. Pelocontrário, é certo que a ciência, no vulgar sentido do termo, oferecepreciosos subsídios para o estudo e para a conservação da arte , e que ohistoriador de arte que estu ltamente afirmasse não querer proceder cientificamente faltaria aos deveres inerentes à sua profissão. Sem o emprego

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    de processos científicos (por exemplo, a fotografia, o microfilme, a cine. matografia, etc.), o historiador de arte não poderia dispor dos materiais

    indispensáveis para fazer bem o seu trabalho . São científicos os processosde catalogação das coisas de arte, e a catalogação científica é a primeiracondição da sua conservação. São científicos os critérios de ordenamentoe de apresentação das obras de arte: a ciência chamada museografia nãodiz respeito apenas à arquitectura mas à estrutura orgânica do museu, aoordenamento e à apresentação das suas colecções. O restauro que nopassado era considerado uma actividade reservada a artistas mais ou menosespecializados (com resultados na sua maioria deploráveis), é hoje umaverdadeira ciência específica a que se dedicam, em estreita colaboraçãocom os historiadores de arte , físicos, químicos, biólogos, geólogos . O emprego de aparelhos e procedimentos cientificos é também necessário àinvestigação propriamente histórica. A microfotografia, os raios infravermelhos e ultravioletas permitem ler uma pintura como não s poderiafazer a olho nu, recolhendo dados preciosos para lhe estabelecer a autentic idade e reconstruir-lhe a história. Numa pintura, a radiografia revela o

    que estava por baixo da última camada: o original debaixo de uma emenda,o esboço, por vezes as fases sucessivas de concepção e da textura da obra(como no caso do Martí ri o de S . Mateus de Caravaggio). Existem váriosprocessos de análise (é famoso o do Carbono 14) que, em qualquer caso,permitem definir com segurança a data das obras. Tudo isto que a ciênciarevela são dados históricos não menos preciosos do que os que se recolhem nos documentos de arqu ivo e nas fontes literárias. certo que aanálise científica não pode substituir a investigação histórica, mas forneceao historiador os meios para penetrar mais profundamente na realidadehistórica da obra de arte. fácil prever que o progresso do equipamentocientífico e as novas vias que assim se abrirão à investigação, levarão a

    uma progressiva transformação das actuais meto dologias históricas, semque por isso a história da arte deixe de ser a única ciência da arte possível.

    GUIA BIBLIOGRÁFICO

    Maurizio Fagiolo

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