glauber e o cinema cubano

Upload: leo-vidigal

Post on 10-Apr-2018

224 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    1/22

    Nos anos sessenta, cineastas argentinos, chilenos, cubanos e brasileiros,tais como Fernando Solanas, Fernando Birri, Miguel Littn, Julio Garca Espi-nosa, Toms Gutirrez Alea, Glauber Rocha, compartilharam um desafio co-mum: a criao de um novo cinema latino-americano, que fosse esteticamen-te original, consolidasse uma identidade prpria no panorama internacional,e que tivesse como projeto subjacente a reflexo sobre os problemas peculia-res Amrica Latina como o subdesenvolvimento, o abuso do poder, as gran-

    Amrica Nuestra Glauber Rocha

    e o cinema cubanoMariana Martins VillaaDoutoranda Histria-USP

    RESUMO

    Este artigo um desdobramento da pes-quisa de Mestrado Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentacin So-nora (1969-1972): engajamento eexperimentalismo na cano popular, noBrasil e em Cuba, e enfoca a relao que

    se estabeleceu nas dcadas de sessenta esetenta entre o Instituto Cubano del Ar-te e Indstria Cinematogrficos (ICAIC)e o cineasta Glauber Rocha. A relao en-tre o diretor do instituto cubano, Alfre-do Guevara, e o cineasta brasileiro, atra-vs de correspondncia mantida ao longodos anos sessenta, culminou num pero-

    do de trabalho de Glauber junto aoICAIC,entre novembro de 1971 e dezem-bro de 1972.Analisamos a repercusso daobra glauberiana entre os cineastas cuba-nos e,de forma geral, sua participao nodebate em torno do desenvolvimento dochamadoNuevo Cine Latinoamericano.Palavras-chave: Glauber Rocha; cinemacubano; cinema latino-americano.

    ABSTRACT

    This article develops some issues of mydissertation, called Tropicalismo (1967-1969) e Grupo de Experimentacin So-nora (1969-1972): engajamento e expe-rimentalismo na cano popular, noBrasil e em Cuba, and focuses the rela-

    tionship between the Instituto Cubanodel Arte e Indstria Cinematogrficos(ICAIC) and the most important Brazi-lian filmaker Glauber Rocha. He and Al-fredo Guevara, director of ICAIC, ex-changed letters since 1960. After beinginvited by Guevera, Glauber went to Cu-ba and worked at the Institute from no-

    vember 1971 to december 1972. Basedon these facts, this article analyzes theinfluence of the glauberian productionon the Cubans filmakers and his role inthe debate about the New Latin-Ameri-can Cine.Keywords: Glauber Rocha; Cuban cine-ma; Latin-American cinema.

    Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 22, n 44, pp. 489-510 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    2/22

    des desigualdades sociais, o autoritarismo, a luta pela democracia e, tangen-ciando todas essas questes, o papel do intelectual e do artista nesse contexto.

    Com essas e outras preocupaes, tais cineastas, alguns deles inspiradospela efervescente produtividade de Glauber Rocha, redigiram ensaios, assina-ram manifestos, elaboraram teorias. A circulao desses textos, boa parte pu-

    blicada na forma de artigo em revistas de cinema, assim como a divulgaoinformal ou comercial dos filmes produzidos, a troca de idias e impressesacerca de como seria feito esse novo cinema latino-americano, estabeleceramum campo de discusso e sociabilidade bastante profcuo. A partir dele con-figuraram-se entrecruzamentos de influncias, identificao de projetos e re-sultados artsticos muito interessantes, de caractersticas um tanto similares,ainda que sob propostas por vezes diferenciadas, como veremos adiante. Aproduo ensastica e o exerccio coletivo de reflexo advindos desse debate o objeto deste artigo, que visa analisar a repercusso da obra glauberiana en-

    tre os cineastas cubanos e, de forma geral, sua participao no debate em tor-no do desenvolvimento do chamadoNuevo Cine Latinoamericano. Cabe es-clarecer que nosso enfoque est centrado na abordagem da relao entre oscineastas e no pretende analisar as obras flmicas, a despeito de sua vital im-portncia para estudos localizados na fronteira entre Cinema e Histria. Aoprivilegiarmos os documentos escritos e a bibliografia existente acerca do te-ma pretendemos pr em destaque uma das inmeras questes de interessecomum para uma gerao de cineastas que fez da atividade de reflexo, parteorgnica de seu fazer artstico.

    A trajetria de busca de umNuevo Cine Latinoamericano ganhou seu pri-meiro impulso no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, freqen-tado nos anos cinqenta por jovens como Julio Garca Espinosa, Toms Gu-tirrez Alea, Fernando Birri e outros cineastas latino-americanos quecompartilharam uma formao comum, cujos frutos se veriam especialmen-te nas dcadas de sessenta e setenta. Dentre as referncias presentes nessa for-mao destacavam-se o neo-realismo italiano, o cinema pico de Sergei Ei-seinstein e, em boa medida, o neo-surrealismo de Luis Buuel, a nouvelle vaguefrancesa e ofree-cinema ingls. As tendncias estticas presentes na produo

    europia, aliadas busca de afirmao da latino-americanidade em termospolticos e culturais, resultaram numa ecltica combinao que constituiu afrma para a matria-prima desseNuevo Cine: o contedo poltico-social.

    Em torno desse tema central os cineastas gravitaram e buscaram, dentroda pluralidade de referncias estticas, receitas possveis para a representaoda Amrica Latina. Analisando textos, ensaios e artigos escritos nesse pero-do, possvel detectar anseios comuns em suas tentativas de definio dos ob-jetivos do novo cinema latino-americano. Propsitos como o de se criar umalinguagem prpria, libertadora, de maneira que esta, mais que um instrumen-

    490

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    3/22

    to de denncia, se convertesse em espao de crtica e reflexo; mostrar a facedo verdadeiro homem latino-americano; atingir o grande pblico; fomen-tar a idia de Amrica Latina como Ptria Grande, como costumava se refe-rir Fernando Birri, so metas freqentemente identificveis nesses escritos depoca, dentre os quais destacam-se o artigo de Glauber Rocha, de 15/10/1967,

    Teoria e prtica do cinema latino-americano, na revista italianaAvanti!, oartigo de Fernando Solanas Hacia un tercer cine, em Cine Cubano nm. 55-56, de maro de 1969; e o de Jlio Garca Espinosa, Por un cine imperfecto,tambm escrito em 1969 e publicado na revista peruana Hablemos del Cine,no nm. 55-56 referente a setembro/dezembro de 19701.

    A prpria definio de Cinema Novo de Glauber Rocha, pensado comoum fenmeno dos povos colonizados, extensivo a toda a Amrica Latina,encontra-se impregnada desse anseio de busca que amplamente predomina-va nos meios cinematogrficos latino-americanos. O cineasta baiano anun-

    ciava: onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e a enfrentar ospadres hipcritas e policialescos da censura, a haver um germe vivo do Ci-nema Novo2.

    Naturalmente, o projeto de dimenses continentais desseNuevo Cine perpassado por inmeros outros projetos e movimentos de carter nacional,com caractersticas prprias bem definidas. Este o caso do Cinema Novo,no Brasil, emergente no incio dos anos sessenta, do Cine Libercion, na Ar-gentina, movimento liderado por Fernando Solanas e Octavio Getino, res-ponsvel por inmeras produes entre 1966 e 1972, com nfase em docu-

    mentrios voltados ao protesto e conscientizao poltica, ou do Cine Rojo,lanado na revista Cine Cubano em julho de 1969 atravs do manifesto Jo-vens cineastas, a filmar! No obstante, a comunicao existente entre essescineastas e entre os centros de produo cinematogrfica vigentes nas gran-des cidades latino-americanas (Buenos Aires, Cidade do Mxico, Rio de Ja-neiro), seja por meio de festivais de cinema, seja atravs da circulao de arti-gos em revistas especializadas, produz um debate bastante rico, no qual idiase conceitos so difundidos e incorporados formulao de novas propostas.Podemos citar, como exemplo significativo dessa circulao, a trajetria in-

    ternacional da clebre mxima glauberiana: Uma idia na cabea, uma c-mera na mo, que, aps sua enunciao em 1961 foi repetida aos quatro ven-tos, tornando-se uma espcie de pai-nossode toda uma gerao de cineastas3.

    Assim, e levando-se em conta o fato de que praticamente todo diretor decinema, nessa poca, no se eximia de teorizar sobre sua obra e suas prefe-rncias estticas, temos a configurao de uma campo bastante frtil em pro-dues e declaraes. Da mesma forma pela qual esse projeto deNuevo Cineassume contornos prprios na fala e na obra de cada cineasta, os rtulos econceitos divulgados e debatidos tambm ganham os sotaques peculiares de

    49

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    4/22

    cada pas. Nesse processo, se estabelecem as similaridades e as correspondn-cias que mencionamos no incio deste texto, verificveis, por exemplo, no pa-rentesco existente entre a defesa dos fotodocumentrios por Fernando Bir-ri, o cinema urgente de Santiago Alvarez, e o cinema popular de NelsonPereira dos Santos ou, num outro plano, entre o cinema novo glauberiano,

    o tercer cine de Fernando Solanas4 ou o cine imperfecto de Julio GarcaEspinosa5.

    Vejamos, ento,como se formam esses laos de identidade entre os cineas-tas e suas respectivas teorias sobre o cinema almejado para a Amrica Latina.

    No incio da dcada de sessenta, Glauber Rocha e Fernado Birri j anun-ciavam as duas principais tendncias que viriam a constituir o projeto doNue-vo Cine e ganhariam repercusso internacional: de um lado, o cinema quepretendia ser o retrato seco, nu e cru da realidade da Amrica Latina; de ou-tro, o cinema que tambm se dispunha a retrat-la, porm violentamente do

    ponto de vista esttico e sem compromissos firmados com o realismo clssi-co. Essas duas linhas, que se mesclariam no fim da dcada, tinham expressoe ressonncia equivalente no panorama da cinematografia brasileira. A expli-citao dessa polaridade de tendncias ocorre na Itlia, em 1965, quando pro-dues paradigmticas de cada um dos estilos as obras Vidas Secas, de Nel-son Pereira dos Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha so exibidas ao mundo, dividindo paixes e opinies6.

    De uma forma ou de outra, era ponto pacfico, entre os cineastas, e pre-ponderante a essa divergncia, a idia de que o cinema latino-americano de-

    veria ter cara prpria. Essa cara, hoje j no mais pensada em termos de uni-cidade, assim como a prpria construo do que seja a Amrica Latina(compreendida em sua unidade dentro da diversidade), era fervorosamenteperseguida nos anos sessenta e foi a liga responsvel pelos laos entre as di-ferentes opes estticas.

    Fernando Birri, partcipe entusiasmado dessa busca, afirmava no inciodaquela dcada: antes del neo-realismo, lo americano. E constatava, muitodepois, em meados dos anos oitenta, a permanncia candente dessa inquieta-o: Del barro al oro, de la esttica del hambre al hambre de una esttica sub-

    versiva, del fotograma a la vida, esta es la grande arte en cuyo horno estamosardiendo7. Tambm nos anos sessenta, e no muito distante da posio deBirri, Fernando Solanas preconizava para seu tercer cine, genuinamente la-tino-americano, a possibilidade da descolonizacin cultural8. Enquanto is-so,Glauber Rocha, em seu estilo messinico,redigia o roteiro deAmrica Nues-tra (primeira verso do que seria Terra em Transe, escrito entre janeiro de 1965e abril de 1966) profetizando que o futuro filme se converteria numa Hist-ria Prtica Ideolgica Revolucionria da Amrica Latina9.

    Se Amrica Latina, subverso, descolonizao e temas afins so re-

    492

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    5/22

    correntes na produo artstica e intelectual desses cineastas, por serem pecu-liares ao tom de denncia entoado de forma consonante apesar dos sota-ques locais , a receita da combinao esttica desses ingredientes sofre varia-es segundo as concepes ideolgicas pessoais, as polticas governamentaise as experincias e frustraes vividas ao longo de suas carreiras. Nesse ponto,

    chegamos ao momento em que laos so desfeitos e refeitos.Evitando o risco de reduzir ou simplificar a complexidade dessa teia m-

    vel de relaes que define o debate e o percurso dos cineastas na busca doNue-vo Cine, focaremos nossa anlise, a partir de agora, na trajetria daquele talvezconsiderado o mais polmico: Glauber Rocha. Centraremos nosso foco no pe-rodo de sua vida passado em Cuba, atuando no ICAIC, Instituto Cubano delArte e Indstria Cinematogrficos, em sua relao com Alfredo Guevara, dire-tor do instituto, e na ressonncia de sua obra junto aos cineastas desse pas.

    Apesar das atitudes polmicas e de sua turbulenta vida pessoal e profis-

    sional, no seria exagero afirmar que Glauber Rocha, ao lado de Carlos Mari-guella representante do Brasil na OLAS, Organizao Latino-americanade Solidariedade (1967), assassinado em 1969 foram algumas das perso-nalidades brasileiras mais admiradas em Cuba, no final dos anos sessenta.

    O cineasta brasileiro manteve, desde o incio da dcada de sessenta, in-tensa correspondncia com Alfredo Guevara, militante comunista nomeadodiretor do ICAIC, instituto fundado em 1959, logo aps a derrubada do go-verno de Fulgncio Batista por Fidel Castro e o Exrcito Rebelde. A amizadede ambos nascera em funo da proximidade entre a proposta de Glauber de

    constituio de um cinema latino-americano com identidade prpria, e osprojetos do ICAIC em divulgar o cinema cubano e utilizar esse meio comopropaganda da Revoluo.

    Na lei de criao do ICAIC, nm. 169, publicada oficialmente em20/3/1959 na Gaceta Oficial de la Repblica, constavam certos princpios deconscientizao poltica que viriam ao encontro, posteriormente, das aspira-es do Cinema Novo brasileiro, movimento localizado entre os anos 1962 e1967 e que teve Glauber Rocha como seu principal difusor, internacional-mente. Segundo essa lei, El cine debe constituir un llamado a la conciencia y

    contribuir a liquidar la ignorancia, a solucionar problemas o formular solu-ciones y plantear dramatica y contemporaneamente las grandes conflictos delhombre y de la humanidad.

    Nesse anos, o impacto causado no meio artstico pela ento recente Re-voluo cubana transparecia no discurso de Glauber, empolgado pelas idiase pela ao guerrilheira de Fidel Castro e Ernesto Che Guevara. Num artigopublicado em Salvador, no qual descreveu as filmagens de Barravento, o ci-neasta se dizia inspirado pelo lder revolucionrio ao compor sua propostaesttica de expor exageradamente a misria e acu-la como um gato no be-

    49

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    6/22

    co, tal como havia procedido Fidel em Sierra Maestra, junto aos campone-ses, fazendo o tumor explodir10.

    Atravs de suas cartas, Glauber informava Guevara das produes cine-matogrficas em andamento no Brasil, suas posies sobre a conjuntura pol-tica nacional e enviava artigos pessoais sobre seus projetos, filmes e festivais

    estrangeiros. Tambm esclarecia Guevara sobre as tumultuadas relaes entreo Cinema Novo e os cineastas filiados ao Partido Comunista, relatando as di-vergncias da esquerda brasileira e os dilemas entre experimentalismo e enga-jamento, no Brasil to intensamente vividos quanto em Cuba, apesar dos dife-rentes contextos polticos (implantao do regime militar brasileiro, a partirde 1964, e estruturao do regime socialista em Cuba, a partir de 1961). Emcontrapartida, Guevara fornecia filmes cubanos, revistas do ICAIC (Revistadel Cine Cubano), encomendava filmes brasileiros e pedia informaes sobrecertos cineastas que esttica e ideologicamente interessaria divulgar em Cuba.

    Nas cartas de Glauber a Guevara, podemos detectar a inteno do cineas-ta em convencer o diretor cubano a no se deixar cativar por cineastas e obrasbrasileiras que denunciassem a misria e o subdesenvolvimento de forma con-vencional ou apologtica, reiterando a esttica hollywoodiana ou colonia-lista, como ele costumava chamar, da qual tomava como exemplo o filme OPagador de Promessas de Anselmo Duarte, de 1962. ntida a inteno de Glau-ber em defender o Cinema Novo e atribuir sua obra pessoal o esprito ver-dadeiramente revolucionrio, do ponto de vista artstico e poltico, chamandoa ateno para o carter esteticamente conformista de certos cineastas engaja-

    dos. Estas divergncias nas quais o cineasta estava envolvido haviam se inten-sificado, no Brasil, a partir de uma polmica gerada pela repercusso do filmeO desafio, de Paulo Csar Saraceni, em 1965, e internacionalmente, como vi-mos, aps a mostra de filmes latino-americanos na Itlia, nesse mesmo ano,durante a qual filmes brasileiros dividiram apaixonadamente as opinies.

    Numa perspectiva mais ampla, a amizade entre Guevara e Glauber podeser inserida numa relao de proximidade entre os cinemas brasileiro e cuba-no que j vinha de certo tempo. Antes da Revoluo, Alfredo Guevara haviasido membro da Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, criada em 1951 por ar-

    tistas e intelectuais opositores ao governo de Fulgncio Batista, sob a direodo maestro Harold Gramatges, com a finalidade de debater as novidades docinema internacional, promover audies de msica contempornea ou dis-cutir questes estticas. Dessa sociedade, dissolvida em 1960, tambm faziamparte Leo Brouwer (maestro que posteriormente se tornou diretor do Grupode Experimentacin Sonora do ICAIC, voltado composio de trilhas sono-ras) e os cineastas Toms Gutirrez Alea, Santiago Alvarez e Julio Garca Es-pinosa. A presena do cinema latino-americano e o reconhecimento da pro-duo brasileira sempre figuraram nessa sociedade que, em 1954,havia elegido

    494

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    7/22

    O cangaceiro, de Lima Barreto, como um dos melhores filmes do ano. Antesde serem incorporados ao ICAIC, em 1959, vrios membros desse grupo fi-zeram parte da Seccin de Cine de la Divisin Cultural del Ejrcito Rebelde, on-de produziram diversos curtametragens documentando os primeiros feitosdo governo revolucionrio, tarefa que consistir numa das principais mis-

    ses do instituto.Quase dez anos depois, um evento internacional contribuiu para estrei-

    tar os laos entre o Brasil e o ICAIC: em 1963, alguns cineastas cubanos (den-tre eles Santiago Alvarez) viajaram ao Brasil para participar de um ato de so-lidariedade pr-Cuba, em Niteri, no Rio de Janeiro, organizado por artistas,intelectuais e membros do Partido Comunista Brasileiro, dentre os quais en-contravam-se figuras de renome como Luiz Carlos Prestes, Ferreira Gullar,Francisco Julio e Oscar Niemeyer.

    Ao contrapormos as cartas de Glauber a esse evento, cujo objetivo era

    estreitar relaes entre o Partido Comunista Brasileiro e o meio artstico-cul-tural cubano, podemos compreender a razo do empenho do cineasta baianoem atrair Alfredo Guevara para o Cinema Novo, uma vez que os canais insti-tucionais davam preferncia s produes reconhecidamente relacionadas aoPartido Comunista. Assim, pode-se dizer que incidia sobre o ICAIC, nesseincio dos anos sessenta, uma influncia brasileira proveniente de dois nichoscinematogrficos: o do PC e o grupo ligado ao Cinema Novo, mais heterodo-xo que o primeiro.

    No ICAIC, alm de Alfredo Guevara, os cineastas Toms Gutirrez Alea,

    conhecido como Titn, e Julio Garca Espinosa nutriram significativo con-tato com a obra e as idias do cineasta brasileiro ao longo da dcada de ses-senta. Aps a divulgao de Esttica da Fome, manifesto originalmente es-crito como comunicao para a V Rassegna del Cinema Latino-Americano,realizada em Gnova, em janeiro de 1965, no foram poucos os espaos dediscusso que se abriram em congressos e revistas para o debate desse mani-festo esttico e, por conseguinte, do prprio cinema latino-americano. Almde eventos promovidos na Itlia, os I e II Encuentros de Cineastas Latinoa-mericanos em Via del Mar, em 1967 e 1968, constituram importantes f-

    runs de debate.Encontramos em inmeras produes cinematogrficas cubanas do fi-

    nal da dcada de sessenta traos muito semelhantes aos dos filmes do Cine-ma Novo (cmera livre, enquadramento pouco convencional, montagem frag-mentria, narrativa alegrica, etc.), e existem diversos artigos e depoimentos,como a publicao pelo ICAIC de uma Revisin Crtica del Cine Brasilero,escrita por Glauber Rocha, que acompanham a repercusso de sua Estticada Fome no pas.

    Numa carta a Alfredo Guevara, em 1967, Glauber apresentou o projeto

    49

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    8/22

    de fazer um filme pico/didtico sobre a histria da luta armada na AmricaLatina, em memria do guerrilheiro Che Guevara (morto nesse ano) e em co-produo secreta com o ICAIC11. O projeto em questo, intituladoAmricaNuestra, nunca chegou a ser executado mas serviu de base ao roteiro de Terraem Transe, produzido nesse mesmo ano, e algumas das idias nele esboadas

    seriam aproveitadas posteriormente em Idade da Terra, lanado em 1979. Emtermo gerais, pode-se dizer que inmeras seqncias e at alguns persona-gens descritos no roteiro deAmrica Nuestra so muito semelhantes aos deTerra em Transe, que apresenta ainda alguns traos em comum com Deus e oDiabo na Terra do Sol, de 1964.

    Glauber assim o descreveu a Guevara, reiterando, ao final, a expressousada por Che:

    Amrica Nuestra no pretende ser una cinta didctica, pero s una manifestacin,

    una pelcula de agitacin, un discurso violento y tambin una prueba de que enel terreno de la cultura el hombre latino, libre de explotacin, es capaz de crear.[...] har una cinta radical violenta, divulgando abiertamente (y justificando) lacreacin de diferentes Vietnams12.

    O projeto de Glauber tambm se traduzia teoricamente: desse mesmoano data A Revoluo uma Esttica (Eztetyka em sua grafia original), ma-nifesto que complementou a famosa Esttica da Fome e que foi escrito sobinspirao dos discursos de Fidel Castro e trechos do livro O socialismo e ohomem em Cuba, de Che Guevara. Nele, o cineasta criticava o neo-realismoitaliano e defendia que O cinema tem de entrar no territrio da linguagemassim como a Amrica no territrio da Revoluo13.

    A repercusso da Revoluo cubana e a influncia dos discursos de Fidele Che se estendiam por todo o meio cinematogrfico na Amrica Latina. As-sim como Glauber j havia se apropriado da epgrafe Crear dos, tres...muchosVietnan es la consigna para propagandear seu roteiro deAmrica Nuestra, noano seguinte Fernando Solanas lanava La hora de los hornos (1968), produ-o referencial do Grupo Cine Liberacin e cujo ttulo emprestado de uma

    frase de Jos Mart, citada por Che em Mensaje a los pueblos del mundo atra-vs de la Tricontinental. Dizia a frase: Es la hora de los hornos y no se ha dever ms que luz14. Fernando Birri, outro cineasta argentino ligado ao Cine Li-beracin tambm mantinha fortes vnculos com Cuba: em 1967 escreve, co-produz e interpreta Sierra Maestra, defendendo uma guerra de guerrilhas ci-nematogrfica.

    preciso destacar que em Cuba, nesse perodo predominava, em termosde poltica cultural, uma orientao esttica voltada ao realismo socialista eao comprometimento do artista em ser, antes de tudo, um trabalhador a ser-

    496

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    9/22

    vio da Revoluo, devendo este assumir o compromisso de levar a conscien-tizao poltica s massas, atravs de obras didticas e de fcil compreensopelo grande pblico. A cobrana desse modelo de arte j havia sido feita noICAIC em 1961, aps a polmica proibio do documentrio P.M. sobre aboemia de Havana, filmado sob inspirao dofree cinema ingls e dirigido

    por Sab Cabrera Infante e Orlando Jimnez Leal. A proibio de sua exibi-o pelo Consejo Nacional de Cultura, endossada por Alfredo Guevara sob oargumento de que o filme no seguia princpios e parmetros desejveis auma obra realizada, direta ou indiretamente, sob os auspcios da Revoluo,culminou em debates, manifestos e na publicao de uma srie de discursosde Fidel Castro intitulada Palabras a los intelectuales e considerada, a partirde ento, a primeira formulao de uma poltica cultural que se definiria con-cretamente ao longo da dcada. Como entender, diante desse rigor esttico-ideolgico, a proximidade entre Guevara e Glauber, e a aceitao do carter

    alegrico de seu cinema pelo ICAIC, instituto submetido ao controle do Con-sejo Nacional de Cultura e, a partir de 1965, ao prprio Partido Comunistade Cuba, sob influncia direta do modelo sovitico?

    Para respondermos a essa questo necessrio considerar a postura re-lutante do governo de Fidel Castro em adotar integralmente a poltica cultu-ral sovitica, uma vez que se buscava um socialismo a la cubana. Pesava tam-bm o prestgio pessoal de Alfredo Guevara junto ao governo Fidel Castro(respeitabilidade garantida por sua atuao como militante revolucionrio) ea relativa autonomia que este garantia ao instituto, no qual atuava como uma

    espcie de mecenas. A autoridade indiscutvel de Guevara no meio cinemato-grfico lhe garantia uma flexibilidade institucional, que podia se manifestartanto no cumprimento de um dever caso da proibio de filmes comono direito a certas ousadias, como a criao, em 1969, de um grupo musicalpara a composio de trilhas sonoras, que tinha como proposta esttica o ex-perimentalismo. O aval para esse tipo de iniciativa estava na garantia, ao olhosdo governo, de que o propsito da mesma se inseria na defesa e na legitima-o da Revoluo cubana. Assim, pode-se afirmar que a fora do discursode Glauber, sempre antiimperialista, efusivo no elogio Revoluo e em seus

    propsitos emancipadores do cinema latino-americano, suplantou o forma-lismo existente na esttica de sua produo, atravessando a barreira da cen-sura arte no-convencional.

    Alm disso, vale lembrar a boa receptividade que o Cinema Novo tiverana URSS, nessa poca, fato que contribuiu ainda mais para sua boa repercus-so em Cuba e a difuso da fama de Glauber Rocha. marco do reconheci-mento russo da qualidade da produo brasileira desse perodo a realizao,entre 17 e 23/12/67, da I Semana de Cinema Brasileiro em Moscou, aps o su-cesso, no V Festival de Cinema de Moscou, dos filmesMenino de Engenho

    49

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    10/22

    (Walter Lima Jr., 1965), Deus e o Diabo na Terra do Sol(Glauber Rocha, 1964),Os fuzis (Ruy Guerra, 1963), dentre outros15.

    Indcios da repercusso da obra glauberiana em Cuba podem ser encon-trados em alguns filmes do perodo.Memorias del subdesarrollo (1968), deToms Gutirrez Alea, por exemplo, tem aspectos bastante semelhantes aos

    de Terra em Transe (maro/1967): ambos tm protagonistas em crise de iden-tidade, que refletem sobre a situao sociopoltica de seus pases, apresentamestrutura de colagem, narrativa no-linear, uso de planos pouco usuais e mo-nlogos, mistura de estilos diferentes de cinema, trilhas sonoras compostasde miscelnea de gneros, dentre outros aspectos que mereceriam uma anli-se mais demorada. Certa influncia das idias glauberianas em Gutirrez Aleaou, pelo menos, sua predisposio a experimentar novas linguagens, j po-diam ser sentidas nas Notas de trabajo publicadas em Cine Cubano nm.45/46, em agosto de 1967, nas quais descreve seu filme como un lenguajeabierto (...), un collage.

    O reconhecimento de Glauber, sob o crivo socialista, foi avalizado pelosdirigentes revolucionrios: Che Guevara, nessa poca, chegou a se declarar fde Deus e o Diabo na Terra do Sole comparou sua importncia para a culturalatino-americana com a de Dom Quixote, para a cultura hispnica16. Esse mes-mo filme serviu de inspirao para La primera carga al machete (Manuel Oc-tavio Gmez, 1969), fico montada maneira de documentrio, em que omsico Pablo Milans interpretou um cantador cego no papel de comenta-

    rista da histria, a exemplo do personagem cego Jlio do filme glauberiano.De forma semelhante, a produo cubana El hombre de Maisinic (ManuelPrez, 1973), muito elogiada pelo cineasta brasileiro17, apresenta traos con-dizentes com sua proposta, abraada pelo Cinema Novo, de criar uma esp-cie de gnero western terceiro-mundista.

    Nesse sentido, questes presentes na Esttica da Fome, como a inser-o da realidade brasileira no contexto latino-americano, so reiteradas emsua Teoria e prtica do cinema latino-americano, publicada em outubro de1967 na italianaAvanti!, em favor de filmes que fossem simultaneamente vio-

    lentos, picos e didticos. Tais idias influenciariam no s a cinematografiacubana, como boa parte da produo ensastica dos diretores que incorpo-ram as propostas glauberianas em seus projetos pessoais.

    Nos anos seguintes, a admirao pela obra de Glauber s veio a aumen-tar em Cuba e em toda a Amrica Latina aps a premiao de O Drago daMaldade contra o Santo Guerreiro (1969), agraciado com a Palma de Ouro noXXI Festival de Cannes. O cineasta encontrava-se no auge de sua fama e ins-pirava os cineastas latino-americanos a produzirem reflexes crticas sobresua obra. O resultado dessa interao viria tona por meio de publicaes

    498

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    11/22

    que, no caso dos cineastas cubanos, ocorreram de forma espaada entre osanos sessenta e oitenta.

    Julio Garca Espinosa dialogou com as idias glauberianas em Por uncine imperfecto escrito em 196918, texto no qual reitera a justificativa do ci-neasta brasileiro de que o cinema latino-americano no tinha que ser tecni-

    camente perfeito, uma vez que o conceito de perfeio havia sido herdadodas culturas colonizadoras19. No ano seguinte, escreveu En busca del cineperdido, propagandeando que el cine popular est en las potencialidades delcine atual como el hombre nuevo lo est en las potencialidades del hombrede hoy20. Posteriormente, no filme e no texto intitulados Instrucciones parahacer un film en un pas subdesarrollado (escrito em 1975, filmado em 1992),desenvolveu sua tese do cine imperfecto, mostrando solues prticas aosobstculos existentes s dificuldades da produo cinematogrfica em Cuba edefendendo o que chamou de nueva potica interesada, presente, a seu ver,

    no filme Terra em Transe.J Toms Gutirrez Alea, naquela poca consagrado como um dos mais

    respeitados cineastas cubanos, publicou nos anos oitenta uma teoria por elebatizada de Dialctica del Espectador. Apesar de afirmar que cabia ao cine-ma extrapolar a representao da realidade, concordando com a crtica glau-beriana ao neo-realismo italiano, Gutirrez Alea enfatizava a responsabilida-de do cineasta na tarefa da conscientizao poltica,numa perspectiva diferentedo posicionamento de Glauber. Dizia ele:

    O cinema deve cumprir sua funo social como espetculo em primeira instn-cia. Mas alm disso pode e deve cumprir uma funo de mobilizador daconscincia do espectador. Isso na medida em que um espetculo, um fato es-

    ttico que serve ao desfrute. O cinema mais eficaz enquanto obra de arte o tam-bm em sua funo mobilizadora21.

    Diferentemente de Gutirrez Alea, que partira das teorias de Glauber masdirecionara sua reflexo para defender um meio-termo entre o cinema pol-tico e o cinema-espetculo, acreditando ser funo inerente a essa arte a cria-

    o de uma nova realidade a partir da sua prpria irrealidade, Garca Espi-nosa, que viria a ser diretor do ICAIC e vice-ministro da Cultura, fazia umaleitura mais engajada da obra de Glauber, salientando o que nela havia decomprometimento com o carter de protesto, denncia e disposio revolu-cionria.

    O ano de 1969 foi marco do reconhecimento internacional do Novo Ci-nema Cubano, com a premiao em Moscou e em Veneza dos filme Luca(Humberto Sols, 1969), La primera caga al machete (Manuel Octavio G-mez, 1969),Memorias del subdesarrollo (Toms Gutirrez Alea, 1968) e os do-

    49

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    12/22

    cumentrios de Santiago Alvarez, todos com trilha sonora produzida peloGrupo de Experimentacin Sonora do ICAIC. Nesse mesmo ano ocorreu umepisdio que aproximou os laos entre o governo cubano e a ALN (Ao deLibertao Nacional), a organizao de esquerda brasileira mais acreditadaem Cuba: o seqestro do embaixador norte-americano no Brasil, que resul-

    tou na troca de sua vida pela libertao de quinze presos polticos, extradita-dos a Cuba.

    Interessa-nos aqui chamar a ateno para a relao formal de solidarie-dade poltica que se consolidou entre Brasil e Cuba, no final da dcada de se-tenta, e a relao informal, no campo cultural, marcada pela proximidadeexistente, muito antes disso, entre o ICAIC e o Cinema Novo. Atravs de con-tatos como o mantido durante anos entre Glauber e Guevara, chegaram a Cu-ba inmeros filmes brasileiros dos anos cinqenta e sessenta, assistidos porcineastas que, posteriormente, revelariam em seus trabalhos identificao com

    determinadas estticas e temticas.Tal identificao tambm se faria sentir na produo das trilhas sonoras

    dos filmes cubanos. Os filmes brasileiros dessa poca utilizavam abundante-mente msica popular em suas trilhas, e possvel que esse dado tenha sidouma fonte de inspirao para a constituio do Grupo de Experimentacin So-nora, por Alfredo Guevara, alm da principal motivao por ele apresentadaem seus depoimentos: uma viagem ao Brasil, em 1968, durante a qual tomoucontato com o Tropicalismo e toda a diversidade da MPB, estimulando-se acriar condies para o surgimento de um movimento semelhante, em Cuba.

    A maneira como Glauber Rocha montava suas trilhas sonoras era bas-tante admirada no ICAIC, uma vez que, apesar da forma multifacetada quefreqentemente estas assumiam ao serem compostas por inmeras colagensde trechos musicais, no perdiam certo carter pico ou contribuam to bempara a constituio do clima necessrio, que a eficcia extrapolava o forma-lismo esttico. A msica, nos filmes glauberianos, sempre desempenhou pa-pel fundamental, extrapolando a mera ilustrao ou o realce s imagens e in-teragindo equilibradamente, enquanto signo sonoro, com todos os outroselementos da linguagem cinematogrfica. Nesse sentido, Paulo Perdigo afir-

    ma, em relao trilha de Deus e o Diabo: todas as seqncias enfticas soportadoras de uma infra-estrutura despertada pela msica, tanto em justa-posio de som e imagem, quanto na subseqncia da ao dramtica e seueco musical22.

    Ao descrever a trilha sonora da cena da morte do protagonista PauloMartins, em Terra em Transe, Glauber explicitava sua inteno de misturarmsica e rudos vrios, procedimento que pouco se aproximava da orienta-o esttica em voga, oficialmente, em Cuba inserida nos parmetros do rea-lismo socialista. Receitava Glauber: Msica e metralhadoras, e em seguida

    500

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    13/22

    rudos de guerra. No uma cano ao estilo realismo socialista, no o sen-timento da Revoluo. algo mais duro e mais grave. Em seguida, comenta-va quanto essa trilha sonora, coincidentemente, se identificava com o discur-so de Che Guevara na Tricontinental, no qual afirmava que no lhe importavao lugar em que iria morrer, contanto que no replicar das metralhadoras ou-

    tros homens se levantem para entoar cantos fnebres e lanar novos gritos deguerra e de vitria23.

    Atravs desse comentrio e dessa conveniente associao, percebemos achave da frmula que agradava aos msicos e cineastas do ICAIC: a combi-nao, em alguns momentos quase paradoxal, entre liberdade criativa e men-sagem poltica. A utilizao, nas tilhas sonoras, de referncias musicais to di-versas, como o tom extremamente popular dos violeiros nordestinos em Deuse o Diabo, ou o peso erudito das msicas de Villa-Lobos, Bach, Carlos Gomese Verdi presentes em Terra em Transe serviram de modelo ao emergente Gru-

    po de Experimentacin Sonora cuja produo receberia, anos mais tarde, oselogios do prprio Glauber, acrescidos do comentrio de que o uso da msi-ca numa sociedade socialista era vital para que a coletivizao fosse entendi-da como um prazer24.

    Em Cuba, todas as ousadias estticas e excessos poderiam ser perdoadosou justificveis na medida em que o propsito de se defender a Revoluo eseus mitos fosse claramente verbalizado. Assim, a ambigidade ou o estiloapotetico presentes no discurso e na obra de Glauber eram tolerados em no-me da bandeira da arte revolucionria por ele empunhada e recomendada

    aos cineastas. Estes, segundo suas palavras, deveriam se abrir ao misticismolibertador latino-americano, j que a mais forte arma do revolucionrio oirracionalismo libertador25.

    Glauber Rocha passou a morar em Havana a partir de novembro de 1971,a convite do prprio Alfredo Guevara, que lhe ofereceu total apoio institu-cional e apadrinhou seu casamento com a jornalista cubana Maria Teresa So-pea, com quem viveria at setembro de 1973, inicialmente em Cuba e, apsdezembro de 1972, em Paris.

    A ida a Cuba se deu num momento em que o cineasta, compelido a dei-

    xar o Brasil dado o acirramento da represso poltica sob o governo Mdici,pretendia exilar-se num pas que lhe oferecesse mnimas condies de traba-lho. Apesar de tentativas de contato no Chile e na Europa, a opo pela ilhacaribenha se apresentou como alternativa atraente, conciliando um antigodesejo e a oportunidade de filmagem oferecida pelo ICAIC.

    A recepo do cineasta no poderia ter sido mais calorosa: sua chegadafoi acompanhada de uma mostra retrospectiva de suas obras e o lanamentode Der leone has sept cabezas (1970), filme que, no obstante seu tom tragic-mico (espantosamente carnavalesco para os parmetros da cinematografia

    50

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    14/22

    cubana), denunciava o colonialismo atravs da histria de Che Guevara aZumbi dos Palmares na frica (...) onde o Che ressuscitado pela mgica dosnegros (...)26 . Vale destacar que, apesar de ter sido elaborado tambm nesseano, no h meno sobre a exibio em Cuba, nessa ocasio, de Cabezas Cor-tadas, filme que d continuidade temtica da crtica ao autoritarismo, po-

    rm de forma mais apocalptica que o anterior.Alfredo Guevara, anos mais tarde, testemunhou:

    Glauber tinha Havana a seus ps. Cuba paparicava os intelectuais estrangeiros

    que apoiavam o regime. Serviam como embaixadores da causa libertria. E Glau-ber era o intelectual do Terceiro Mundo de maior prestgio internacional27.

    O cineasta, em carta escrita de Havana nessa poca, afirmou que faziamimenso sucesso os filmes Ganga Zumba (Cac Diegues, 1963); Barravento

    (1961) e Deus e o Diabo... (1964), de sua autoria, e declarou com o entusias-mo que lhe era peculiar: os filmes nossos todas as semanas na tela, nossasmsicas o dia inteiro no rdio28.

    A ressonncia internacional de suas idias era enorme, nessa poca, einmeros cineastas latino-americanos o citavam como um espcie de idelo-go doNuevo Cine Latinoamericano: numa entrevista realizada em Cuba, em1971, o cineasta chileno Miguel Littn, por exemplo, reiterava o slogan Umaidia na cabea, uma cmera na mo, conclamando os cineastas a seguiremessa proposta29.

    Em 1972, com a assessoria do bolsista brasileiro Marcos Medeiros, Glau-ber produziu, no ICAIC, Histria do Brasil, um documentrio preto-e-bran-co, inicialmente com sete horas de durao, montado a partir da colagens detrechos de 47 filmes brasileiros pertencentes ao acervo do instituto, com o ob-jetivo de sintetizar o caos brasileiro. A estrutura disforme dessa obra, orapica e didtica, ora alegrica, desagradou Alfredo Guevara, que retirou o no-me do ICAIC dos crditos finais do filme, marcando, em dezembro desse ano,o final da temporada de conciliao entre o cineasta e o governo de Fidel Cas-tro30. Devido a esse rompimento, Histria do Brasils viria a ser finalizado em

    1974, em Roma, onde foi abreviado para 158 minutos.Alm da provvel decepo de Guevara em relao ao filme, um outro

    agravante contribua para o rompimento entre o instituto cubano e o cineas-ta brasileiro: Glauber vinha difundindo, cada vez mais categoricamente, asidias que esto presentes em seu texto Esttica do Sonho. Enquanto em Es-ttica da Fome o cineasta constatava, em relao Amrica Latina, que nos-sa originalidade nossa fome e nossa maior misria que esta fome, sendosentida, no compreendida, defendendo uma esttica calcada na premissade que a mais nobre manifestao cultural da fome a violncia, em Est-

    502

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    15/22

    tica do Sonho o cineasta deixava de lado a violncia em favor da defesa dairracionalidade como sada libertria: quando o sonho irrompe na realidadeele se transforma numa mquina estranha quela realidade, uma mquinatremendamente libertadora31.

    Nas entrelinhas, Glauber reivindicava a autonomia da arte e afirmava seu

    papel de vanguarda, uma vez que o artista, em sua opinio, poderia criar umalinguagem que antecipasse a realidade, ao constatar que a arte marcha dian-te da poltica, seu poder mais forte e livre32. No difcil supor que taisidias, em Cuba, causavam grandes embaraos, principalmente se conside-rarmos os embates que eram travados entre a intelectualidade e o governo,nessa poca, e que haviam culminado em drsticas resolues divulgadas noCongreso de Educacin y Cultura, evento que representou a adoo definitivado modelo sovitico para o meio artstico-cultural, e o recrudescimento dacensura no pas33.

    O desencontro entre as idias glauberianas e o contexto cubano pode serparalelamente identificado, no universo pessoal do cineasta, ao desencontrontimo entre o artista, livre criador, e o intelectual atuante, socialmente ex-posto. Ismail Xavier, ao analisar brilhantemente a figura de Paulo Martins,nos expe a ambigidade desse personagem, imerso, como o Glauber quebusca respostas a seus anseios militantes de cineasta, num trajeto de oscila-es, atropelos e contradies na lida com o povo34. O dilema entre a no-identificao com a arte pedaggica e o propsito de atingir o grande pbli-co, permeado pelo herosmo trgico de quem, admirador de Che, acreditava

    na transformao mas j vislumbrava os descaminhos da revoluo institu-da, compem um quadro comparvel expresso do desengano identifica-da em Terra em Transe por Xavier.

    Desengano e desencanto so termos que poderiam definir o estado deesprito de Glauber em relao ao governo cubano, aps sua experincia deum ano na ilha. Ao mesmo tempo, o principal saldo artstico resultante dessatemporada tambm testemunha um descompasso, agora entre as idias e atela, uma vez que o filme semi-acabado Histria do Brasil, dentre todas asobras glauberianas, a mais narrativa, explicitamente marxista-dialtica e vol-

    tada viso retrospectiva do cinema brasileiro, bastante distante, portanto,do posicionamento explcito em Esttica do Sonho. Entretanto, como Glau-ber nunca deixou de ser plural, na vida e na arte, h que se destacar que o pe-rodo de trabalho no ICAIC tambm rendeu a montagem do filme Cncer,produzido no Brasil em 1968, cuja proposta era a pesquisa formal, o impro-viso, e segundo o cineasta, uma experincia tcnica quanto ao problema daresistncia do plano cinematogrfico direo35. Considerando as filmagensposteriores Der leone has sept cabezas e Cabezas Cortadas , verificamoscerta continuidade da proposta do experimentalismo esttico persistente em

    50

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    16/22

    Glauber, que se soma s declaraes e projetos a eles contemporneos, de visdidtico, menos esteticamente ousados, como Histria do Brasilou o prece-dente roteiro deAmrica Nuestra.

    Por essa amostra, notvel como a simples contraposio dos filmes eensaios nos possibilita constatar fortes descontinuidades entre ofazere open-

    sarcinema, aes cujos ritmos e cdigos perfazem, por vezes, trajetrias en-trelaadas e, paradoxalmente, semi- independentes. Ao analisar os polmicose contraditrios posicionamentos do cineasta brasileiro no decorrer de suavida, Joo Carlos Teixeira Gomes denominou de operacional a ideologia emGlauber, mostrando que por trs de seu racionalismo crtico transbordavamincontrolveis impulsos romnticos, nascidos do idealismo36, definio queconsideramos bastante pertinente e possvel de ser estendida a diversos ci-neastas latino-americanos, que no raramente compartilharam dessa ambi-gidade glauberiana.

    Para alm das muitas idias, projetos e angstias compartilhados, no sepode menosprezar as inmeras divergncias que tambm assomaram a essagerao de cineastas latino-americanos. O dilema da conciliao entre a pes-quisa esttica e o engajamento, nos mbitos artstico e pessoal, por vezes pro-vocou tenses derivadas de discordncias de fundo ideolgico, tal como vi-mos ocorrer na relao entre Guevara e Glauber. Nesse sentido, em maio de1972, Gutirrez Alea apresentaria num dos seminrios realizados pelo ICAICa comunicao Hora y momento del cine cubano, na qual alertava para oproblema do vedetismo no meio cinematogrfico. Considerando o contex-

    to de poca e certas antipatias que Glauber acumulava em torno de si, moti-vadas pelos privilgios que o governo cubano at ento lhe conferira, poss-vel supor que o texto fazia aluso ao cineasta brasileiro. Tempos depois, aoradicalizar seus experimentalismos em filmes extremamente alegricos e pou-co aplaudidos at mesmo pela crtica europia, costumeiramente mais gene-rosa com o cinema de autor, Glauber, sempre disposto a gerar polmica,chegou a declarar que sua busca por um cine mgico havia sido desenca-deada precisamente por alguns filmes cubanos, como Los das del agua, deManuel Octavio Gomez, feito a partir de roteiro de Julio Garca Espinosa, ou

    Una pelea cubana contra los demonios, do prprio Gutirrez Alea, produ-zidos em 1971.

    No perodo em questo, Cuba foi palco de tenses e rompimentos de di-versas ordens. O desencantamento de Alfredo Guevara com Glauber Rochafoi acompanhado, paralelamente, de um processo de separao entre o go-verno de Fidel Castro e setores da esquerda brasileira. Ao longo do ano de1972, determinados fatores foram gradativamente corroborando para o es-friamento da relao entre a ALN e o governo cubano. Alm dos desentendi-mentos que j ocorriam entre os brasileiros de diferentes agrupamentos ou

    504

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    17/22

    filiaes partidrias que recebiam treinamento guerrilheiro na ilha, o estrei-tamento das relaes com a URSS obrigou o governo cubano a extinguir aOLAS e a reatar relaes internacionais com os Partidos Comunistas, afas-tando-se de outras organizaes.

    Ainda que Glauber no tivesse ligaes formais com organizao de es-

    querda alguma, reiterando sempre sua independncia poltico-ideolgica, suaantipatia em relao ao Partido Comunista Brasileiro era notvel, e uma desuas companhias preferidas durante a temporada em Cuba havia sido ItobyAlves Correa, integrante da ALN e designado pelo ICAIC para prestar toda aassistncia ao cineasta. Glauber, segundo depoimentos, teria chegado a pro-pagandear a defesa da unio das esquerdas contra a ditadura37 e, mesmo quesua aproximao da ALN no tenha sido absolutamente um fator decisivo, possvel que o afastamento do governo cubano em relao a essa organizaotambm tenha contribudo para seu desencantamento e a conseqente deci-so de viver na Europa.

    Ao longo dos anos subseqentes, o cineasta passou a criticar cada vezmais diretamente o governo de Fidel Castro e seu posicionamento ideolgi-co, e no fim da dcada migrou do apoio incondicional revoluo cubana admirao pelos generais da abertura, sem nunca deixar de alardear sua in-dependncia poltica, como atestamos nesta veemente declarao:

    A preocupao dos intelectuais cubanos porque eles sabem que eu no sou te-

    leguiado. (...) Meu lder o general Geisel e agora o general Figueiredo, pontofinal. (...) Se quiserem gostar de meus filmes, gostem, se quiserem passar, pas-

    sem, agora no vou ser um elemento utilizado na poltica internacional cubana.

    Tenho srias crticas revoluo cubana. Respeito Fidel Castro, mas tenho crti-

    cas. Os cubanos sabem disso. (...) No tenho nenhum compromisso com Hava-

    na, estive em Cuba convidado pelo ICAIC porque o pblico gosta de meus fil-

    mes l, fui como cineasta38.

    A deciso da mudana para Paris, no final de 1972, marcou o fim de um

    casamento que, no entanto, continuaria mostrando seus frutos, atravs da ci-nematografia cubana da dcada de oitenta e das diversas revises e homena-gens ao cineasta, como a realizada pelo Festival del Nuevo Cine Latinoameri-cano de La Habana, nesse ano, ou a edio especial da revista Cine Cubanopublicada meses aps sua a morte, em agosto de 1981, organizada por Alfre-do Guevara. Lembrada por seus experimentalismo estticos e por suas aspi-raes libertrias, a obra de Glauber, mais de uma vez, serviu ao protesto con-tra o dogmatismo imposto s artes pelo governo cubano, como percebemosnessa comunicao de Humberto Sols, intitulada Alrededor de una drama-

    50

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    18/22

    turga cinematogrfica latinoamericana, e apresentada em dezembro de 1982no Festival del Nuevo Cine Latinoamericano de La Habana:

    (...) no puedo entender que se utilicen las frmulas de un cine cuyo resultadoslingusticos han surgido de las concepciones ms reaccionarias (...) sob pretexto

    de una operacin poltica de divulgacin . [...] Un filme como Dios y el Diabloen la Tierra del Solno fue un filme de gran pblico y, sin embargo, es una de lasobras claves de nuestra cinematografa.

    Assim como sua temporada na ilha, durante a qual Glauber ocupou umlugar social que oscilou entre o oficial e o marginal, atualmente sua obra tanto motivo de orgulho para o acervo da Cinemateca do ICAIC como refe-rncia simblica para a persistente batalha de jovens cineastas pela aberturademocrtica e a liberdade artstica incondicional.

    Finalizando, pudemos identificar, atravs da anlise da intensa relaoestabelecida entre o ICAIC e Glauber Rocha certos desdobramentos, que deuma forma ou de outra estiveram muito presentes no debate que envolveu oscineastas de toda a Amrica Latina, e que se relacionam indagao de comoestabelecer a combinao entre determinados projetos estticos e polticos.Vimos a ambigidade presente nessa relao ao verificarmos como um insti-tuto de cinema inserido numa poltica cultural governamental teorica-mente pouco aberta a formalismos estticos abriu portas para a propostaousada e visionria de um cineasta de vanguarda. O casamento entre enga-

    jamento e experimentalismo, presente nesse caso, esteve tambm, desde o in-cio, vinculado busca doNuevo Cine, tomando parte nos caminhos percor-ridos pelos cineastas em suas produes cinematogrficas e literrias, nas quaisa circulao intensa de propostas e conceitos exerceu papel fundamental.

    Da mesma forma em que houve limite para a conciliao entre o ICAICe os interesses de Glauber Rocha, limite esse que se imps atravs da radicali-zao (poltica e esttica) de ambos os lados, oNuevo Cine pulverizou-se, apsum perodo bastante efervescente, em projetos especficos, no final dos anossetenta, que carregaram, entretanto, algumas marcas do projeto inicial. As mu-

    danas no contexto poltico e a opo por novas perspectivas no neutraliza-ram completamente o debate mantido desde o incio dos anos sessenta, masrecolocaram problemas e questes. Assim, transformaes que so explcitasno pensamento de Glauber, ao longo de sua trajetria, se fazem sentir na an-lise da produo de Gutirrez Alea, e de forma latente se compararmos filmescomo Las doce sillas (1962) e Una pelea cubana contra los demonios (1971).

    Segundo o pesquisador de cinema Carlos Avellar, aps a predominnciado cinema-denncia nos idos dos anos sessenta, houve a incidncia da pro-posta de um cinema antropofgico para a Amrica Latina, com tendncia a

    506

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    19/22

    explorar o absurdo de forma alegrica. No Brasil, filmes comoMacunama(1969), de Joaquim Pedro de Andrade, ou Como era gostoso o meu francs(1971), de Nelson Pereira dos Santos, seriam exemplares dessa tendncia, quena Argentina teria representao em Fernando Birri com Org(filmado entre1967 e 1978), e em Cuba se manifestaria mais adiante em filmes como Los so-

    brevivientes, de Gutirrez Alea, em 1978.Independentemente das nuances que o cinema latino-americano adqui-

    riu, acreditamos que o interessante dessa emaranhada trajetria, impossvelde descrever inteiramente num artigo, tenha sido a interseco de idias, a so-breposio de propostas, as influncias recprocas e certos enlaces e desenla-ces, como o abordado no caso de Glauber e o cinema cubano, que formarama teia que at hoje o sustenta. Acompanhar cada fio dessa teia, cada cineastaem suas buscas coletivas e individuais , sem dvida alguma, uma tarefa cujo

    resultado nos revela muito das vicissitudes de uma Amrica Latina constru-da de confronto, utopia e desencontro.

    NOTAS

    1Estes artigos encontram-se analisados e parcialmente reproduzidos no livro de Jos Car-los Avellar, A ponte Clandestina teorias de cinema na Amrica Latina. So Paulo:EDUSP/Editora 34, 1995, que foca a produo ensastica e filmogrfica dos cineastas Fer-nando Birri, Glauber Rocha, Fernando Solanas, Julio Garca Espinosa, Jorge Sanjnes e To-ms Gutirrez Alea.

    2AVELLAR, J. C. Op. Cit., p.85. Sobre o Cinema Novo ver RAMOS, F. (org.).Mdulo 6.In Histria do Cinema Brasileiro. So Paulo: Crculo do Livro, 1987; BERNADET, J.C. Tra-

    jetria Crtica. So Paulo: Plis, 1978; e XAVIER, I.Alegorias do subdesenvolvimento. SoPaulo: Brasiliense, 1993.

    3Disse Glauber: Vamos fazer nossos filmes de qualquer jeito (...) com uma idia na cabe-a e uma cmera na mo para pegar o gesto verdadeiro do povo, em Arraial, Cinema No-vo e cmera na mo Supl. Dominical doJornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12/8/61.

    4 Hacia un tercer cine em Cine Cubano, nm. 56/57, maro/1969. Texto que acompanhouo lanamento de seu filme La hora de los hornos (1968), uma das principais obras vincula-das ao grupo Cine Liberacin e que defendia um cinema pensado a la medida del hom-bre nuevo, um cine-accin que tinha por objetivo promover a descolonizacin de lacultura. Cf: AVELLAR, J. C. La descolonizacin del gusto: Fernando Solanas, Octavio Ge-tino e hacia un terce cine. In op. cit. , pp. 115-173.

    5Esse conceito explicado por esse cineasta no artigo Por un cine imperfecto, em Hable-mos del Cine, nm. 55-56, Lima, set-dez/1970. Cf: AVELLAR, J. C.A cara sem trs orelhas:Jlio Garca Espinosa y el cine imperfecto. In op. cit., pp. 174-218.

    50

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    20/22

    6Segundo depoimento de Fernando Birri sobre a V Rassegna del Cinema Latino-America-no. In Apuntes sobre la Guerra de guerrillas del nuevo cine latino-americano. Ulisses,Roma, 1968. Apud AVELLAR. Op. cit. ,p.101.7Discurso de Fernando Birri ao receber o prmio Ordem Flix Varela do governo cubano,no encerramento do VII Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em

    16/12/1985. Granma, La Habana, em 17/12/85.8 Hacia un tercer cine, Cine Cubano, nm. 56-57, La Habana, maro/1969. Apud AVEL-LAR. Op. cit, p.118.9Carta a Alfredo Guevara datada de 3 de novembro de 1967. Cf.: BENTES, I. Glauber Ro-cha: cartas ao mundo. So Paulo: Cia das Letras, 1997, pp. 303-306.10 Experincia Barravento: confisso sem moldura. Dirio de Notcias de Salvador, 25-26/12/1960. Apud AVELLAR. Op.cit., p. 79. Sobre a admirao de Glauber por Che, a quemconsiderava o verdadeiro personagem moderno (...) o verdadeiro heri pico ver GO-

    MES, J. C. T. Glauber Rocha, esse vulco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 245.11Segundo a proposta de Glauber, ele prprio bancaria o custo quase total da produocom o dinheiro arrecadado da venda de Deus e o Diabo... e Terra em Transe para os EUA(30 mil dlares). O ICAIC faria a montagem e o som do filme que, por fim, seria lanadono Uruguai, visto que l no havia censura rgida, nessa poca. Cf.: PAIVA, M. Um filmeem memria de Che Guevara parte da reportagem especial A carta bomba de Glau-ber, caderno Mais, Folha de S. Paulo, 5/5/1996, p.6. Cf.: Carta de Glauber Rocha a AlfredoGuevara, datada de 1/8/67, escrita em Roma, In BENTES, I. Glauber Rocha: cartas ao mun-do, p. 291.12

    Carta a Alfredo Guevara , de 3/11/67, escrita em Paris. Apud AVELLAR. Op. cit. ,p .9 .13BENTES, I. Op. cit., p. 38. Nessa poca proliferavam em Cuba textos de dirigentes revo-lucionrios e artigos sobre a importncia da arte engajada e a perspectiva de se criar umestilo novo de realismo socialista em Cuba. Cf.: AGUIRRE, M. Realismo, realismo socia-lista y la posicin cubana. In ESCALONA, J.F. (org.). Esttica. Seleccin de Lecturas La Ha-bana: Editorial Pueblo y Educacin, 1987. Sobre o realismo socialista no cinema, sob umaperspectiva mais ampla, ver: FURHAMMAR, L. & ISAKSSON, F. Cinema e poltica. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1976.

    14CHE GUEVARA, Ernesto. Tricontinental. La Habana, abril/1967. La hora de los hornos foi

    produzido como uma seqncia de 26 curtametragens, filmados com equipamento ama-dor, com mais de 4 horas de durao. Suas exibies clandestinas pela Argentina eramacompanhadas de discusso com a platia, a partir da proposta de um cine-accin. Se-gundo Fernando Birri, esse filme havia sido feito sob regime militar,com la cmara enuna mano y una piedra en la outra. AVELLAR. Op. cit., pp. 159, 170.

    15MASSON, N.Cinema Brasileiro tem I Semana em Moscou Jornal do Brasil, 27/11/67.16RIDENTI, M. O fantasma da revoluo brasileira. So Paulo: Editora da UNESP, 1993, pp.105-106. Por outro lado, Che foi uma das figuras mais admiradas por Glauber e presenaconstante no cinema latino-americano dessa poca, como bem mapeou Maria do Rosrio

    508

    Mariana Martins Villaa

    Revista Brasileira de Histria, vol. 22, n 44

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    21/22

    Caetano no captulo Che no cinema de seu livro Cineastas latino-americanos: entrevistase filmes. So Paulo: Estao Liberdade, 1997, pp. 23-36.

    17Carta a Alfredo Guevara, escrita de Roma, em setembro de 1973. Apud BENTES, I. Op.cit., p. 465.

    18ESPINOSA, J. G. Por un cine imperfecto, escrito em 7/121969 e publicado na revistaHablemos del Cine, nm. 55/56, Lima, set-deciembre/1970. Apud AVELLAR. Op. cit., p 209.19Carta de Glauber Rocha a Alfredo Guevara, escrita de Paris em 3/11/67 e publicada emCine Cubano, nm. 101. Idem, p. 179.

    20En busca del cine perdido, Cine Cubano, nm. 69-70, maio-julho/1971. Idem, p. 186.

    21Esse texto de Alea foi divulgado pelo ICAIC em edio mimeografada, em 1980, publica-do em 1982 pela UNEAC na coleo Cuadernos de la revista Unin, e, em 1983, pela Fede-racin Editorial Mexicana. Apud AVELLAR. Op. cit., p. 312. Ver tambm OROZ, S. TomsGutierrez Alea, os filmes que no filmei. Rio de Janeiro: Anima, 1985.

    22PERDIGO, P. Ficha Filmogrfica in Glauber Rocha: Deus e o Diabo na Terra do Sol.Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965, p. 67; citado por GOMES, J. C. T. Op. cit, p.433.

    23Depoimento de Glauber citado no texto de Julio Garca Espinosa, intitulado Instruccio-nes para hacer un film en un pas subdesarrollado, apresentado em 1975 e publicado emHojas de cine, testimonios y documentos del nuevo cine lationamericano, vol. III. Edio daSecretaria de Educao Pblica, Universidad Autnoma Metropolitana e Fundacin Me-xicana de Cineastas, Mxico, 1988. Apud AVELLAR. Op. cit, p.37.

    24Carta de Glauber ao ICAIC, datada de 12 de maro de 1972, na qual apresenta ao insti-

    tuto, em doze laudas, opinies sobre o cinema latino-americano e um projeto de filma-gem. Comentada por GOMES, J. C. T. Op. cit., pp. 256-258. A transcrio da carta foi pu-blicada em SARNO, G. Glauber Rocha e o cinema latino-americano. Rio de Janeiro:CIEC/UFRJ Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, 1995, p. 95.

    25Entrevista de Glauber Rocha a Miguel Torres em 1970, para Cine Cubano, nm. 60/61/62.Apud AVELLAR. Op. cit., pp. 88, 90.

    26Glauber Rocha, citado por Raquel Gerber em Glauber Rocha e a experincia inacabadado Cinema Novo. In GERBER, R. (org.). Glauber Rocha. So Paulo: Paz e Terra, 1977, p.35.

    27Apud A carta-bomba de Glauber. Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 5/5/1996, p.7.

    28Carta de 1971, a Cac Diegues. BENTES, I. Op. cit., p. 49.

    29Cf.: Cuba Internacional, La Habana, julho/1971. Apud AVELLAR. Op. cit., p. 169.

    30PAIVA, M. A esquerda sucumbe. Folha de S. Paulo, 5/5/1996, p.7. Os problemas entreGlauber e o governo cubano tambm so comentados por Sylvie Pierre em seu livro Glau-ber Rocha. So Paulo: Papirus, 1996, p. 68.

    31Texto de apresentao do filme O leo de sete cabeas, julho/1970, divulgado no XVIIIFestival Internacional de Cine de San Sebstian e publicado apenas em 1981. AVELLAR.Op. Cit., p. 81. Para a contraposio das idias desse texto com as presentes em Esttica

    50

    Amrica Nuestra Glauber Rocha e o cinema cubano

    Dezembro de 2002

  • 8/8/2019 Glauber e o Cinema Cubano

    22/22

    da Fome, ver a anlise deste em XAVIER, I. Serto mar: Glauber Rocha e a Esttica da Fo-me. So Paulo: Brasiliense, 1983.32Entrevista a Jaime Saruski, da Prensa Latina, La Habana, 1972, publicada somente em12/2/85 na Folha de S. Paulo, sob o ttulo A ltima entrevista de Glauber em Cuba. AVEL-LAR. Op. cit, p. 114.

    33O Congresso foi realizado em La Habana, entre 23 e 30/4/1971, e nesse perodo foramadotadas medidas de represlia aos artistas e intelectuais como a autoconfisso, praticadaexemplarmente no chamado Caso Padilla, e a cassao generalizada conhecida como pa-rametraje. Cf: .: SERRANO, P. E. Cuatro dcadas de polticas culturales. In Revista His-

    pano-Cubana, nm. 4, Madrid, mayo-septiembre/1999, pp. 47-50.34XAVIER, I. O intelectual fora do centro. InAlegorias do Subdesenvolvimento. Cinema

    Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. So Paulo: Brasiliense, 1993, p. 63.35Apud CARDENAS, F & CAPRILES, R. Glauber: el transe de Amrica Latina Entre-vista do cineasta revista peruana Hablemos de Cine, nm. 47, maio-junho/1969, citada

    por PIERRE, S. Op. cit., p. 253. Ver comentrios sobre essa experincia radical de Glau-ber em XAVIER, I. Do Golpe Militar Ditadura: a resposta do cinema de autor. In XA-VIER, I et al. O desafio do cinema. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 23.36GOMES, J. C. T. Op. cit., p. 360.37Idem, p. 262. Sobre as relaes entre cineastas, artistas, intelectuais e as organizaes deesquerda brasileiras, ver Captulos II e III de RIDENTI, M. Em busca do povo brasileiro.Rio de Janeiro: Record, 2000.38Entrevista de Glauber Rocha a Maria do Rosrio Caetano e clison Tito noJornal de Bra-slia, 21 de janeiro de 1979, apud CAETANO, M.R. Cineastas latino-americanos: entrevistas

    e filmes. So Paulo: Estao Liberdade, 1997, p. 88.

    510

    Mariana Martins Villaa

    Artigo recebido em 05/2001 Aprovado em 10/2001