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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais Pensadores, escritores e militantes no diálogo com o poder

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Dos intelectuais na políticaà política dos intelectuaisPensadores, escritores e militantes

no diálogo com o poder

Flavio M. HeinzOrganizador

Dos intelectuais na políticaà política dos intelectuaisPensadores, escritores e militantes

no diálogo com o poder

2015

OI OSE D I T O R A

© Dos autores – [email protected]

Editoração: Oikos

Revisão: Luís M. Sander

Capa: Juliana Nascimento

Arte-final: Jair de Oliveira Carlos

Impressão: Rotermund S. A.

Conselho Editorial (Editora Oikos):Antonio Sidekum (Ed. Nova Harmonia)Arthur Blasio Rambo (IHSL)Avelino da Rosa Oliveira (UFPEL)Danilo Streck (UNISINOS)Elcio Cecchetti (UFSC e UNOCHAPECÓ)Ivoni R. Reimer (PUC Goiás)Luís H. Dreher (UFJF)Marluza Harres (UNISINOS)Martin N. Dreher (IHSL – MHVSL)Oneide Bobsin (Faculdades EST)Raul Fornet-Betancourt (Uni-Bremen e Uni-Aachen/Alemanha)Rosileny A. dos Santos Schwantes (UNINOVE)

Editora Oikos Ltda.Rua Paraná, 240 – B. ScharlauCaixa Postal 108193121-970 São Leopoldo/RSTel.: (51) [email protected]

Dos intelectuais na política à política dos intelectuais: pensadores,escritores e militantes no diálogo com o poder / OrganizadorFlavio M. Heinz. – São Leopoldo: Oikos, 2015.

170 p.; 16 x 23cm.

ISBN 978-85-7843-459-5

1. Intelectualismo. 2. Política – Poder. I. Heinz, Flavio M.

CDU 165.63

I61

Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

Esta publicação apresenta resultados parciais de pesquisas desenvolvidas no âmbitodo projeto PROCAD-NF/CAPES “Composição e recomposição de grupos dirigentesno Nordeste e no Sul do Brasil: uma abordagem comparativa e interdisciplinar”, reu-nindo equipes do PPGH-PUCRS, PPGS-UFS e PPGCP-UFPR.

Sumário

Sobre autoras e autores ......................................................................... 7

Apresentação ....................................................................................... 9

Auguste Comte................................................................................... 17Mary Pickering

A conversão de olhares: os intelectuais comunistas frente ao desafio .... 39Eduard Esteban Moreno Trujillo

Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão ..................... 67Marisângela Martins

As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais donacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966 ................................ 89

Juan Manuel Padrón

Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicaçãoe inserção sociopolítica a partir da atuação deJoaquim Francisco de Assis Brasil e João Capistrano de Abreu(década de 1880) .............................................................................. 111

Tassiana Maria Parcianello Saccol

Dom Chimango e a torre de marfim: a literatura de Homero Pratese a política oligárquica da Primeira República (1890-1927) ................ 133

Cássia Daiane Macedo da Silveira

Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução ................153Jefferson Teles Martins

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Sobre autoras e autores

Cássia Silveira é graduada e Mestre em História pela Universidade Federaldo Rio Grande do Sul e Doutora em História Social pela UniversidadeEstadual de Campinas. Atualmente é docente no curso de Licenciaturaem História na Universidade Federal do Pampa. Atua na área de Históriado Brasil Republicano, com especial interesse em história da imprensa,história da literatura e as relações entre os intelectuais e a política.

Eduard Esteban Moreno é graduado em Ciências Sociais pela UniversidadPedagógica Nacional (Colômbia, 2009) e Mestre em História pela Univer-sidad de los Andes (Colômbia, 2011). Foi pesquisador do Centro de Investi-gación y Estudios Sociales, CIES (Colômbia, 2010-2012), em temas de His-tória Intelectual, História Política e Movimentos Sociais. Na atualidadecursa o Doutorado em História na Pontifícia Universidade Católica doRio Grande do Sul e desenvolve pesquisas sobre a história das ideias deesquerda na América Latina desde uma perspectiva comparada.

Flavio M. Heinz é Doutor em História e Sociologia do Mundo Contempo-râneo pela Université de Paris-Ouest, Nanterre. Atualmente, é professor visi-tante do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universida-de Federal do Paraná e coordena o Laboratório de História Comparadado Cone Sul. É autor de Les fazendeiros à l’heure syndicale: représentationprofessionnelle, intérêts agraires et politique au Brésil, 1945-1967 (Septentrion/ANRT, 1998) e organizador, entre outros, de Por outra história das elites(Editora FGV, 2006) e Experiências nacionais, temas transversais: subsídios parauma história comparada da América Latina (Editora Oikos, 2009), Históriasocial de elites (2011) e Poder, instituições e elites: 7 ensaios de comparação ehistória (2012).

Jefferson Teles Martins é Licenciado e Bacharel em História pela Uni-versidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre e doutorando emHistória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul(PUCRS), pesquisa temas relacionados à história social dos intelectuais.Em 2013, participou de estágio doutoral no Lateinamerika Institut da FreieUniversität Berlin (FUB).

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Sobre autoras e autores

Juan Manuel Padrón é Doutor pela Universid del Centro de la Provincia deBuenos Aires (UNICEN), de Tandil, Argentina. Atualmente é docente epesquisador na Faculdade de Arte – UNICEN, e membro do Centro Inter-disciplinario de Estudios Políticos, Sociales y Jurídicos (CIEP – FCH/FD –UNICEN) e do Centro de Estudios de Teatro y Consumos Culturales (TECC– Faculdade de Arte – UNICEN). É um dos coordenadores de Ensayossobre vanguardias, censuras y representaciones artísticas en la Argentina recien-te (UNICEN, 2010).

Marisângela Martins é Doutora em História pela Universidade Federaldo Rio Grande do Sul (UFRGS), instituição e área nas quais concluiuMestrado no ano de 2007 e formou-se no curso de Licenciatura Plenaem 2004. Atualmente, é Técnica em Assuntos Educacionais no Institutode Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Dedica-se ao estudo dosintelectuais, especialmente os intelectuais comunistas, e das possíveisarticulações entre política e literatura. É coautora do “Dicionário Ilus-trado da Esquerda Gaúcha” (Evangraf, 2008) e autora de “À esquerdade seu tempo: escritores e Partido Comunista do Brasil (Porto Alegre/1927-1957)” (tese, UFRGS, 2012).

Mary Pickering é professora da San José State University, Califórnia, ondeleciona metodologia, historiografia e história intelectual e cultural da Eu-ropa moderna. É titular de um DEA pelo Instituto de Estudos Políticos deParis (Sciences Po) e doutora pela Universidade de Harvard. Biógrafa deAuguste Comte, Pickering é autora da obra monumental Auguste Comte:an intellectual biography (3 volumes, Cambridge University Press, 1993-2009).

Tassiana Maria Parcianello Saccol é Licenciada e Bacharel em Históriapela Universidade Federal de Santa Maria (2010) e Mestre em Históriapela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013).Dedica-se à pesquisa da história política no Brasil da segunda metadedo século XIX até a Primeira República, com ênfase nas instituiçõespolítico-partidárias e na trajetória de seus líderes. Também se interessapela história dos intelectuais e história da imprensa. Atualmente é dou-toranda em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran-de do Sul, onde desenvolve o seguinte projeto: De líderes históricos a oposi-tores: a atuação dos dissidentes do Partido Republicano Rio-grandensena Primeira República (1889-1923).

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Apresentação

O presente volume reúne artigos dedicados à análise das relaçõesdos intelectuais, nas mais diversas e generosas acepções do termo, com omundo da política. Seria excessivo aqui retomar toda a literatura dedica-da ao tema intelectuais & política. Muito se discorreu sobre a dupla expe-riência, de sedução e vertigem, que caracterizou o engajamento políticode escritores, artistas, jornalistas e profissionais universitários, e grandesautores produziram sínteses relevantes sobre o tema. Na perspectiva dahistória social, que é a que anima o grupo de pesquisadores à origem des-te volume, um nome incontornável seria o de Christophe Charle, em umaobra definitiva, Naissance des “intellectuels”, 1800-1900, ou, para citar auto-res brasileiros, os trabalhos igualmente incontornáveis de Sergio Miceli eAngela Alonso. Mas reconhecemos que qualquer tentativa de “fechar” otema a partir de uma ou outra reivindicação de autoridade acadêmicaseria, neste caso, inútil. Com efeito, os intelectuais foram, desde muitocedo, apaixonados pela política e pela possibilidade de discutir essa pai-xão com o público. Assim, muita tinta foi e segue sendo derramada, pelosatores e por seus biógrafos e historiadores, na tentativa de se explicitar anatureza íntima dessa relação.

Nossa pretensão é mais modesta. Buscamos recuperar exemplos depesquisa que restituam a complexidade da relação, suas zonas de sombra,suas contradições, não explicá-la cabal e definitivamente. Para fazê-lo, oaporte da história, a análise empírica fina dos atores e de suas negociaçõescotidianas com o poder – e com outros atores, tendo a perspectiva do podere o Estado como panos de fundo –, revela-se fundamental. E na perspectivahistórica, duas dimensões devem ser observadas: primeiro, as condiçõessociais de emergência dos ‘intelectuais’ como grupo, suas caraterísticas ge-rais e diferenciação em relação a outros grupos preexistentes ou emergen-tes; segundo, os momentos de inflexão – notadamente as crises políticas –,em relação aos quais tomadas de posição serviram para mapear posições,

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Apresentação

para identificar proximidades e afastamentos, para reunir/separar/rearranjarseus membros.

Em relação às condições sociais de emergência dos intelectuais, éoportuno lembrar a perfeita síntese de Christophe Prochasson: “O gruposocial formado pelos intelectuais – cuja designação e conceituação moder-nas aparecem progressivamente nos anos 90 do século XIX – se constituinas últimas décadas do século XIX, ao mesmo tempo como produção social(resultado de um reforço de categorias médias, de um lado, e dos efeitos damassificação da cultura, de outro) e como produção política ligada à apari-ção de um sistema republicano-democrático no qual o saber está associadoà política (as classes dirigentes devem ser classes instruídas, sendo o Estadoaquele que promove o ensino das massas e que ergue o Panteão dos “gran-des homens” – que por vezes se confunde com o Panteão real – no qualescritores, pensadores e cientistas são maioria)”. Identificando no casoDreyfus o momento de entrada do termo intelectual no vocabulário políti-co e social francês, Prochasson sustenta que, naquela ocasião, as “minoriascultas se definiram como um contrapoder frente ao Estado, do qual passa-ram a denunciar as derivas, a infidelidade aos próprios princípios que elemesmo instituíra e o chamaram à ordem, por diferentes meios, sendo omais importante deles a imprensa”.1

Desde a conjuntura que marcou o aparecimento da figura do “inte-lectual” na sua mais duradoura representação contemporânea, aquela as-sociada ao Émile Zola de J’accuse, o termo intelectual tem se prestado atoda espécie de tráfico de sentidos e de desejos. Homem de ideias e convic-ções, fustigador da injustiça perpetrada pelo poder, espécie de consciênciada sociedade e da nação, crítico social, o intelectual responde, é verdade, acerto senso comum sobre as características que o termo recobre. Contudo,como bem mostrou Christophe Charle, na sua análise das disputas entredreyfusards e anti-dreyfusards, o engajamento político de homens de letras,publicistas, profissionais ligados ao mundo da cultura, em geral, obedecia

1 PROCHASSON, Christophe. Sobre el concepto de intelectual. Historia contemporânea, v. II, n.27, p. 803, 2003.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

primordialmente a uma lógica de disputa (e reprodução) de posições, e re-afirmação de solidariedades, presentes no campo artístico e literário, e nasuniversidades. O acirramento de posições frontalmente opostas no casoDreyfus levaria à consolidação de um sentido novo para o termo, como“profissionais do intelecto que, em nome de sua especificidade social, rei-vindicam um poder de tipo especial”2.

O propósito desse volume é ir além do senso comum mencionado noparágrafo acima. E quando reafirmamos a necessidade de irmos além dosclichês usuais, não o fazemos como uma ressalva apenas à possível percep-ção equivocada do grande público, mas também aos usos que os própriosintelectuais fazem desses clichês. Com efeito, os usos sociais da posição deintelectual não podem ser percebidos, apenas, desde uma perspectiva exter-nalista, sociologicamente ingênua, que ignora a instrumentalização perpe-trada e os ganhos simbólicos e políticos auferidos pelos atores em questão.Trata-se aqui, e fizemos questão dizê-lo no título deste volume – “dos inte-lectuais na política à política dos intelectuais” –, de nos interessarmos peladimensão da atuação dos intelectuais no espaço político, é certo, mas, igual-mente, de reconhecer suas estratégias de posicionamento, as percepçõesque são as suas, não apenas sobre os temas em debate, mas sobre o lugarque ocupam no espaço dos intelectuais, sobre como preferem ser represen-tados e percebidos pelo público. Constituiria um truísmo sociológico asse-verar que o intelectual é uma personagem ambígua ou multifacetada. Umavez que todos os indivíduos recobrem uma gama imensa de característicasnão redutíveis tão somente à sua imagem exterior, é de se imaginar que aboa pesquisa “revele” não o novo, mas aquilo que já se poderia imaginar láestar, aquilo que se mantinha coberto pelo manto espesso da representaçãoconsagrada do intelectual dreyfusard.

2 CHARLE, Christophe. Nascimentos dos intelectuais contemporâneos (1860-1898). História daEducação, Pelotas, n. 14, p. 141-156, set. 2003, p. 15.

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Apresentação

Os textos

O primeiro dos textos aqui reunidos traz à luz o itinerário de Augus-to Comte, filósofo, cientista, reformador, um autor que dificilmente se en-caixaria, à primeira vista, no modelo bem-sucedido e popularizado de inte-lectual dos últimos anos do século XIX. Não obstante, pareceu-nos interes-sante trazer aos leitores este depoimento da biógrafa de Augusto Comte,Mary Pickering, apresentado no formato de uma conferência ministradana Maison de Auguste Comte, em Paris, em janeiro de 2010. Nele, Picke-ring refaz, de forma necessariamente sintética, o longo percurso de sua in-vestigação sobre o autor do Sistema de Filosofia Positiva, apontando carac-terísticas pessoais do biografado que não apenas influenciariam sua obraescrita, mas que, igualmente, contribuiriam para a atração de novos discí-pulos e chegariam a afetar seriamente a continuidade de seu círculo próxi-mo de relações.

O texto de Pickering é especialmente interessante por cotejar, de for-ma clara e objetiva, a produção da obra com o conjunto de questões e cir-cunstâncias históricas às quais o autor estivera exposto ao longo de sualonga atividade intelectual. A autora demonstra (em verdade, um trabalhointensivo de demonstração se encontra nos 3 volumes de sua magistral bio-grafia do fundador do Positivismo) que adesões, filiações e solidariedadesnão são produto apenas do enorme fascínio intelectual exercido por Comtee sua obra, mas são também a resultante de esforços de aproximação ehierarquização nas relações que o próprio Comte mantinha com seus se-guidores.

O segundo texto, de Eduard Moreno, a Conversão de olhares: os intelec-tuais comunistas frente ao desafio, trata das circunstâncias específicas enfren-tadas por intelectuais comunistas colombianos na conjuntura de retraçãoglobal de ideais comunistas ou socialistas, particularmente o impacto doprocesso de liberalização associado à chegada ao poder, na União Soviéti-ca, de Mikhail Gorbachev, e à consolidação da Perestroika, após 1985. Oautor analisa estratégias e possibilidades de atuação/reconversão dos inte-lectuais comunistas na Colômbia – marcados, é preciso frisar, não apenaspelo impacto global da crise do modelo soviético, mas igualmente pela con-

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

turbada experiência do ativismo comunista no país –, na formulação deuma categoria, a de intelectual-funcionário. Para Moreno, a distinção entre ascategorias de intelectual e intelectual-funcionário se impunha, visto que o“processo corresponde[ria] às contradições encontradas entre as teorias quetentam explicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes,aquelas pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias,sonhos e mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspon-dia à história que se pretendia contar”. (MORENO TRUJILLO, p. 61-62)

Poderia se advogar que é próprio das categorias consagradas de aná-lise do mundo social, e em particular desses atores de inserção no espaçopúblico que são os “intelectuais”, que seu conteúdo descritivo não abarquetoda a complexidade das relações ali supostamente contidas. De fato, osprocessos de nomeação e classificação dos grupos sociais, tema caro, porexemplo, à história social dos grupos profissionais, encontra nos intelec-tuais ‘militantes’ de esquerda um desafio particular. Esse desafio também éenfrentado por Marisângela Martins em Os intelectuais comunistas no Brasil:uma breve reflexão.Para a autora, “a expressão ‘intelectual comunista’ evocauma determinada imagem de contornos mais ou menos imprecisos”. Mar-tins propõe um panorama historiográfico muito instigante sobre o lugardos intelectuais comunistas no âmbito do partido e no espaço dos intelec-tuais, mostrando, a todo momento, a tensão em se combinar o problema dadesconfiança face à origem de classe, não operária, dos intelectuais e suadedicação ao partido. Embora com recorte temporal distinto (aqui se tratade privilegiar as primeiras décadas de atuação do Partido Comunista, até oinício da década de 1950), o texto serve de contraponto interessante àquelede Moreno e mostra dificuldades e angústias de indivíduos envolvidos emdiferentes áreas de produção da cultura (mas também de outros profissio-nais de nível universitário absorvidos circunstancialmente sob a designa-ção de intelectuais) em corresponder às expectativas das instâncias autori-zadas do partido acerca da legitimidade de seu engajamento.

O texto seguinte, As usinas do anticomunismo castrense. Os intelectuais donacionalismo de direita na Argentina, 1955-1966, de Juan Manuel Padrón, tam-bém explora o tema do engajamento político dos intelectuais, mas agora noextremo oposto do espectro político: os intelectuais anticomunistas e sua

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Apresentação

recepção nos meios militares, através da análise de dois casos exemplaresde intelectuais nacionalistas de direita argentinos, Jordán Bruno Genta eJulio Meinvielle. Para Padrón, a fragilidade do encaminhamento da ques-tão do peronismo no período pós-Perón, o ambiente da Guerra Fria e aautonomia de movimento das Forças Armadas garantiram as circunstânci-as favoráveis à recepção da retórica anticomunista no meio. Ainda que, notocante às duas últimas circunstâncias, não haja exclusividade do caso ar-gentino, e que se possa encontrar outros exemplos – notadamente sul-ame-ricanos, mas não apenas – de aproximação entre intelectuais anticomunis-tas e meio castrense, o autor sugere certa originalidade na ação dos doisintelectuais argentinos analisados: o ideal anticomunista articulado a um“conjunto de conceitos que visavam centralmente desprestigiar a demo-cracia e reclamar para as Forças Armadas um papel central em sua des-truição”; a cobrança crítica de maior “zelo antidemocrático ou anticomu-nista” na ação dos militares; e, finalmente, no longo prazo, a evidência desua contribuição “nada desprezível no reforço de um pensamento autori-tário, intolerante e violento dentro d[as] [...] Forças Armadas”. (PADRÓN,p. 107-108)

Os próximos três textos apresentam uma análise em redução de escala,passando-se do quadro nacional de atuação dos intelectuais a um quadroregional. Com efeito, os três trabalhos discorrem sobre situações às quaisestiveram confrontados homens de letras do Rio Grande do Sul, da últimadécada do período monárquico às décadas que seguem à revolução de1930. Em Escritos de propaganda republicana: estratégias de publicação e inser-ção sociopolítica a partir da atuação de Joaquim Francisco de Assis Brasil e JoãoCapistrano de Abreu (década de 1880), Tassiana Saccol mostra a relação deAssis Brasil, então jovem liderança republicana do Rio Grande do Sul, eCapistrano de Abreu e sua decisiva influência na publicação de dois livrosdo primeiro, A República Federal, com grande repercussão à época, e Históriada República Rio-grandense. A autora mostra como Assis Brasil soube utilizar-se da amizade com Capistrano de Abreu para ter acesso a espaços de notabi-lidade literária e política e, assim, obter certo reconhecimento nacional comouma das lideranças intelectuais do movimento republicano, um resultadoque se poderia supor improvável fossem outras as condições de produção e

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

circulação de suas obras. A presença de Capistrano na Corte, sua posiçãona Biblioteca Nacional e, sobretudo, a abertura de seu círculo de relações aAssis Brasil foram funcionais à sua ascensão no plano nacional.

Segue-se o trabalho de Cássia Silveira, Dom Chimango e a torre de mar-fim: a literatura de Homero Prates e a política oligárquica da Primeira República(1890-1927), destacando a atuação literária de Homero Prates, autor queoscilaria entre distintas formas de expressão artística segundo o público einserção desejados e que usaria a temática regionalista para posicionar-sepoliticamente no contexto local. Como bem resume a autora, o escritor“transitava por suas redes e ‘jogava’ com as variadas posições e identidadesque ocupava no espaço social. [...] Quando pretendia apresentar-se como‘artista’, recorria à escrita que considerava mais ‘universal’ e, portanto, su-perior enquanto arte; quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opi-nião ou tornar um dado ponto de vista ‘oficial’, comunicando-se com umpúblico mais amplo e transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva,recorria a outro modo de escrita, ‘inferior’ na sua escala da arte, mas compossibilidades mais pragmáticas de interlocução”. (SILVEIRA, p. 149-150)

Last but not least, encerra este volume o texto de Jefferson Teles Mar-tins, Intelectuais em luta: a polêmica História da Grande Revolução, incursão doautor em uma das mais longevas polêmicas que mobilizaram os intelectu-ais ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, destavez em torno da interpretação da Guerra Farroupilha, no início dos anos1930. Essa polêmica colocou em posições antagônicas Alfredo Varella, au-tor da obra citada no título, e Souza Docca e terminaria por atrair a adesãode outros homens de letras e historiadores do estado, como Walter Spal-ding. O que Martins nos mostra com detalhes é a riqueza dos embates querecobriam a polêmica, como aquele, central no período, entre lusitanistas,apoiadores de uma visão da “preponderância da influência lusitana na for-mação histórica do Rio Grande do Sul”, e platinistas (de Varella), que des-tacavam os fortes vínculos da história do Rio Grande do Sul com o Prata,de viés separatista ou autonomista. Mas não é apenas a matriz historiográ-fica e a legitimidade desta ou daquela interpretação histórica que estão emjogo, mas também, como bem mostra o autor, há uma dimensão políticacontemporânea na questão. Com efeito, a polêmica recobre também a opo-

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sição entre defensores de um autonomismo regional (grupos e liderançaspolíticas regionais ligadas ao antigo sistema político da Primeira Repúbli-ca, gravemente feridos no processo iniciado pela Revolução de 30) e alinha-dos, no texto, à interpetação varelliana, e o grande campo de vitoriosos ereconvertidos (locais ou nacionais) à centralização política brasileira daépoca, solidários à crítica de Souza Docca.

Por fim, uma palavra sobre o livro em perspectiva ampla. Este é, comefeito, o terceiro e último de uma série que, ao longo dos últimos anos,buscou situar ao público acadêmico a ambição que orienta os trabalhos doLaboratório de História Comparada do Cone Sul, a saber, a de produziruma história social de elites, intelectuais e grupos profissionais que sejametodologicamente clara e cujos resultados sejam escrutináveis, amplian-do a possibilidade de comparação dos casos em estudo com aqueles deoutros grupos de pesquisa, nacionais e internacionais, e assegurando a aber-tura para a rotinização do diálogo e de práticas interdisciplinares concretas,notadamente com a Sociologia e a Ciência Política. Para fazê-lo, publica-mos, em 2011, a obra coletiva “História Social de Elites”, reunindo bonsexemplos da opção metodológica fundadora de nosso coletivo de pesquisa,a prosopografia; em 2012, foi a vez da coletânea “Poder, Instituições e Eli-tes – 7 ensaios de comparação e história”, que retomou a importância dadimensão comparativa em nosso trabalho. Superado esse momento de ‘ins-crição do perfil metodológico’ do nosso grupo no meio profissional, esteúltimo livro vem trazer à apreciação da área um tema de pesquisa caro aosnossos pesquisadores e colaboradores eventuais: a relação dos intelectuais– nas suas mais variadas formas e modos de apreensão – com a política e opoder. Com este livro, concluímos, portanto, a presente série. A agenda depesquisa do LabConeSul permanece nas suas linhas de força – a prosopo-grafia, a comparação, o estudo das elites e das profissões –, mas avança emdireção ao estabelecimento de novos vínculos e parcerias institucionais, alémde uma ampliação na sua rede nacional e internacional de pesquisadores.

Flavio M. Heinz

Apresentação

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Auguste Comte1

Mary Pickering

Comecei a escrever a biografia de Auguste Comte há 30 anos, quan-do aluna de doutorado na Universidade Harvard. Meu orientador era espe-cialista em história da ciência e me incitou vivamente a escrever a primeirabiografia daquele que havia sido seu fundador. Enquanto historiadora daFrança do século XIX, aceitei o desafio. Depois de ler, ao longo de váriosanos, as obras de Comte que haviam sido publicadas, fui a Paris para pes-quisar, pois Harvard havia organizado tudo de modo a que eu pudesse meinscrever no DEA2 da Sciences Po.3 Pouco depois de minha chegada, em1983, fui visitar Henri Gouhier, que, nos anos 1930, havia escrito três volu-mes sobre a juventude de Comte. Com um brilho no olhar, esse adorávelintelectual desejou-me boa sorte em meu projeto, que consistia em escreverum estudo sobre toda a vida de Comte. Imagino que soubesse que essetrabalho levaria décadas para ser concluído.

Passei três magníficos anos na Maison d’Auguste Comte, onde fuicalorosamente recebida por Isabel Pratas-Frescata, Gilda Anderson, Traja-no Carneiro e, mais recentemente, Aurélia Giusti e Bruno Gentil. Aurélia eo Sr. Gentil, que hoje dirigem o museu e a Association Internationale Au-guste Comte, foram muito simpáticos e me deram todo o seu apoio. Soumuito grata a eles. Aprendi muito com o grande número de especialistasque realizaram estudos extraordinários sobre Comte. Também devo muitoa eles.

Durante os anos em que frequentei a Maison d’Auguste Comte, estu-dei principalmente as cartas de Comte e a correspondência entre os positi-vistas, e explorei documentos não indexados. Certo dia, descobri dentro de

1 Esse texto é a versão escrita de uma apresentação oral da autora na Maison d’Auguste Comte,em Paris, em 14/01/2010. Tradução de Julia da Rosa Simões. (N.T.)

2 DEA (Diplôme d’études approfondies): diploma francês de estudos superiores avançados. (N.T.)3 Institut d’Études Politiques de Paris. (N.T.)

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uma caixa que pertencera a positivistas do século XX três traduções dasobras de Kant, Herder e Hegel. Elas haviam sido enviadas a Comte por umamigo, Gustave d’Eichthal, nos anos 1820, e eram consideradas perdidasdesde sua morte. Utilizei esses manuscritos para demonstrar, pela primeiravez, a possibilidade de uma influência da filosofia alemã sobre o positivis-mo. Também descobri que discípulos de Comte haviam destruído certosmateriais, como algumas cartas da esposa que poderiam fazê-lo parecermenos perfeito. Eu estava decidida a procurar em toda parte documentossobre ele e seu movimento. Explorei outros arquivos em Paris e em Lyon.Percorri de ponta a ponta bibliotecas da Inglaterra e dos Estados Unidos.

Por outro lado, li textos de inúmeras fontes secundárias. Ao longodos últimos 30 anos, assistimos ao desenvolvimento da história do proleta-riado, da história das mulheres, da teoria das raças, da história cultural, dopós-colonialismo, da biografia pós-moderna e, mais recentemente, da his-tória das religiões. Esses domínios da história influenciaram a maneira comque abordei a vida e as ideias desse homem fascinante.

Minha biografia de Comte refaz as interconexões entre sua evoluçãopessoal e sua trajetória intelectual, enfatizando seu desenvolvimento en-quanto pensador e a continuidade de sua filosofia. Ao mesmo tempo, pro-curo situar seu desenvolvimento pessoal e intelectual no contexto do perío-do pós-revolucionário. O ponto mais importante no pós-Revolução Fran-cesa dizia respeito ao problema dos fundamentos e dos fins do poder. Asquestões de legitimidade levariam às controvérsias ideológicas que forma-ram o pensamento de Comte. Essas controvérsias eram constantes, vistoque ao longo de toda a sua vida, de 1798 a 1857, os franceses não consegui-ram estabelecer um governo estável. A meu ver, as ideias de Comte emergi-ram da interação entre as crises do mundo exterior à sua volta e as queexistiam em seu próprio mundo interior. No fundo, o positivismo foi tantouma resposta à Revolução Francesa quanto à própria luta de Comte contraa doença mental. Ele buscava a integração, a harmonia e a unidade, carac-terísticas que faltavam tanto à sociedade em geral quanto em sua própriavida. Nascido em Montpellier, numa região devastada pela guerra civil,uma guerra civil que era reproduzida em sua família, cujas crenças monar-quistas e católicas ele detestava, Comte procurou criar um novo sistemasocial que daria à França a paz e a estabilidade que esta desejava. Ele pas-sou a vida tentando concluir o trabalho da Revolução.

PICKERING, M. • Auguste Comte

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Derivado de minha tese de doutorado, o primeiro volume de minhabiografia de Comte foi publicado em 1993. Esse volume abrange o períodoque vai do nascimento de Comte, em 1798, ao ano de 1842, quando termi-nou o Curso de filosofia positiva. No Curso, Comte afirmava que a teoria sem-pre precede a prática e que a reconstrução do mundo pós-revolucionário sópoderia ser concretizada depois que o método científico ou “positivo” fosseestendido ao estudo da política e da sociedade, último baluarte dos teólo-gos e dos filósofos metafísicos. Adotar o método científico significava ligaras leis científicas à observação dos fenômenos concretos, particularmenteevitando as especulações que eram invariavelmente teológicas ou metafísi-cas. Ele cunhou o termo “sociologia” em 1839 para se referir à sua novaciência da sociedade. O termo “filosofia positiva” ou “positivismo”, quetalvez venha de Saint-Simon e dos saint-simonianos, referia-se ao conjuntodo sistema de conhecimentos, baseado no método científico. O segundo e oterceiro volumes de minha biografia sobre Comte foram publicados em se-tembro de 2009. O segundo volume cobre os anos de 1842 a 1852. Abordaa resposta de Comte à Revolução de 1848 e sua estreita relação com Clotil-de de Vaux. O terceiro volume cobre os cinco últimos anos de sua vida, de1852 a 1857, e se concentra em sua segunda obra-prima, o Sistema de políticapositiva, e outros livros importantes como Síntese subjetiva.

Os dois últimos volumes de minha biografia de Comte cobrem o pe-ríodo de 15 anos que compreende os mais controvertidos de seu desenvol-vimento, sua chamada segunda fase. Em 1847, Comte conseguiu transfor-mar em religião, a Religião da Humanidade, seu sistema filosófico baseadonas ciências. Ele continuou sendo um ardente defensor da sociologia, novocampo de estudos, mas acrescentou uma sétima ciência, a moral, à hierar-quia positivista das ciências. Cultivando o “altruísmo”, palavra que cunhouem 1850, a moral se focaria no indivíduo. Em 1847, Comte alterou seusistema científico para que este se tornasse uma religião, demonstrandoque todas as ciências, assim como todas as nossas atividades e todos osnossos sentimentos, deveriam futuramente ser dirigidos à sociedade, o su-jeito da sociologia. A religião positivista englobava tanto um sistema co-mum de crenças quanto os processos ritualísticos e socializantes que esti-mulavam as emoções do povo, unindo-o em torno da veneração da socie-dade, isto é, da Humanidade, e que honravam as personalidades que contri-buíam para a melhoria do bem-estar do homem. Assim, durante a Revolu-

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ção de 1848, quando os clubes conheceram grande proliferação, Comtefundou o movimento positivista, ou melhor, a Sociedade Positivista, paraacelerar a transição à era positivista da história, quando esta religião flores-ceria.

Com frequência essa fase de religião na vida de Comte é vista comouma contradição ao chamado período científico anterior. Um dos princi-pais argumentos de minha biografia é que não houve uma ruptura súbitana trajetória de Comte depois que ele concluiu o Curso e depois de suarelação não consumada com Clotilde de Vaux, ao contrário do que em ge-ral dizem os especialistas. Tratava-se apenas de uma “nova fase do positi-vismo”, como ele mesmo havia observado em 1847.4

As raízes dessa Religião da Humanidade eram claramente perceptí-veis em seus escritos de juventude que preconizavam um novo poder espiri-tual para substituir o poder temporal, bem como um novo sistema moral eintelectual. Em 1826, Comte escreveu um artigo intitulado “Consideraçõessobre o poder espiritual”, no qual declarava: “O dogmatismo é o estadonormal da inteligência humana, aquele ao qual ela se inclina, por sua natu-reza, de maneira contínua e em todos os gêneros, mesmo quando mais pa-rece afastar-se dele”. Tanto os céticos quanto os revolucionários dão uma“forma dogmática” a suas “ideias críticas”.5 Desde o início, Comte procu-rou fornecer a seus contemporâneos um sistema de crenças que satisfizesseseus desejos ardentes de certeza e que os unisse como os adeptos de umcredo. Esse sistema obteria certa legitimidade se fundamentado em princí-pios que pudessem ser demonstrados. Ele seria mais influente se tivesseuma base institucional num novo poder espiritual. No Curso, Comte se refe-re especificamente à necessidade de criar uma “Igreja positiva”.6 Em suaobra, ele também frisava ter compreendido desde o início a importânciados sentimentos associados à religião. Desde a juventude, considerava as

4 Carta de Comte a Henri de Tholouze, 18 de dezembro de 1847. In: Auguste Comte: Correspon-dance générale et confessions. Org. de Paulo E. de Berrêdo Carneiro, Pierre Arnaud, Paul Arbous-se-Bastide e Angèle Kremer-Marietti. Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales,1973-90, 8 v. v. 4, p. 130.

5 COMTE, Auguste. Considérations sur le pouvoir spirituel. In: Système de politique positive ou Traitéde sociologie instituant la religion de l’Humanité.(Paris, 1851-1854. 5. ed., idêntica à 1ª edição.Paris: Au Siège de la Société Positiviste, 1929, 4 v. v. 4, Appendice, p. 202-203.

6 COMTE, Auguste. Physique sociale: Cours de philosophie positive, leçons 46 à 60. Org. de Jean-PaulEnthoven. Paris: Hermann, 1975, p. 696.

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emoções como o motor da existência. Elas estimulavam o intelecto e da-vam-lhe uma direção moral. Ele escreveu, no Curso, que “o amor universal[...] certamente é mais importante que a própria inteligência, na economiausual de nossa existência, individual ou social, porque o amor utiliza demaneira espontânea, para proveito de cada um, até as menores faculdadesmentais; ao passo que o egoísmo desnatura ou paralisa as mais eminentesdisposições – a partir de então muito mais perturbadoras que eficazes – àreal felicidade, seja privada ou pública”.7 O Sistema nada mais fazia quecolocar em obra o programa que Comte havia formulado no início dosanos 1820.

Além disso, Comte não traiu seu primeiro programa, pois desde oinício de sua carreira afirmava que nunca havia confiado no modelo depensamento moral e neutro, “positivista” ou “científico”, que hoje está li-gado a seu nome. Ele rejeitava as estatísticas e o empirismo e suas coleçõesinúteis e simplistas de fatos e números. Para ele, o poder da razão era limi-tado. Escreveu que “o espírito humano [...] [estava] muito mais apto a ima-ginar do que a raciocinar”.8 Para observar um fato qualquer, o espírito pre-cisava imaginar uma hipótese provisória. Em sua opinião, o espírito erafraco e nunca poderia compreender a realidade e a verdade absoluta. Eraparticularmente impossível ter uma compreensão total e objetiva da reali-dade social, que era extremamente complexa e próxima de nós.

Insistindo na necessidade de fazer juízos de valor, continuou atribuin-do a seu sistema filosófico uma missão prática e política, a de concluir aRevolução Francesa e criar um novo sistema social baseado na justiça paratodos. Desde o início foi motivado pelas reformas sociais e pelo ativismopolítico. Nunca glorificou as ciências em si, mas considerava-as uma ferra-menta capaz de melhorar o bem-estar social. Recorreu a elas para criar anova atitude mental requerida pela sociedade industrial moderna em viasde emergir. O positivismo desencadearia uma revolução intelectual que le-varia a uma ordem moral marcada pelo acordo geral dos indivíduos pormeio da simpatia e, a seguir, a uma transformação política que daria inícioa uma nova era positivista de acordo geral e de harmonia social. Apesar de

7 Ibid., p. 362.8 COMTE, Auguste. Philosophie première: Cours de philosophie positive, leçons 1 à 45. Ed. de Mi-

chel Serres, François Dagognet, Allal Sinaceur. Paris: Hermann, 1975, p. 99.

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os críticos terem zombado dos positivistas, criticando sua preocupação ex-clusiva com fatos insignificantes e a manutenção do status quo, Comte era afavor das grandes teorias capazes de lançar uma revolução intelectual e moralde grande alcance.

Embora seja comum pensar que aqueles que controlariam a socieda-de positiva de Comte seriam os cientistas, demonstrei que Comte não con-fiava neles. A especialização os deixava com mentes estreitas e indiferentesaos problemas da sociedade em geral. Reagindo contra os cientistas, eleafirmava que os filósofos positivos, homens que haviam sido formados emtodas as ciências e, consequentemente, com um conhecimento mais geral,possuíam os pontos de vista mais diferentes possíveis e as afinidades maisdiversas. Eles deveriam substituir o clero tradicional e guiar a nova socieda-de positivista, conduzindo sua energia rumo a um objetivo comum, o aper-feiçoamento da humanidade. No entanto, Comte avisou para nunca dar-mos a eles o poder em si, pois tentariam exercer um controle total. Comteera a favor de um sistema de separação dos poderes. Os filósofos positivos,que formariam o poder espiritual, seriam fiscalizados pelos industriais, queconstituiriam o poder temporal. Mas Comte criticava muito os industriais,pois a especialização deles exigida, como a dos cientistas, levava ao orgu-lho e ao egoísmo. Eles tampouco conseguiam focar sua atenção no bem-estar do povo. Como Marx, Comte afirmava que a assustadora luta de clas-ses não era causada pelos operários, mas pela “incapacidade política”, pela“incúria social” e, principalmente, pelo “egoísmo cego dos empreendedo-res”.9 Ele esperava, portanto, que os operários constituíssem o poder tem-poral até que os industriais fossem reabilitados. Estava a dois dedos de pre-conizar a famosa ditadura do proletariado de Marx.

Comte se encontrava numa situação paradoxal, da qual tinha cons-ciência. Ele recomendava uma filosofia social baseada nas ciências, masalimentava uma profunda desconfiança da capacidade do espírito puramentecientífico de regenerar o mundo político e social. Além disso, a legitimida-de de suas ideias antielitistas que davam prioridade às necessidades do con-junto da comunidade só poderia ser obtida se ele fizesse parte do grupoelitista dos cientistas. Apesar de tudo, sua filosofia generalista, que destaca-

9 COMTE, Physique sociale, p. 620.

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va a importância do método científico, não satisfazia os padrões da especia-lização que os novos profissionais do século XIX exigiam. Conforme reve-lado pelos documentos dos arquivos da École Polytechnique, os cientistasnão o prezavam nem profissional nem pessoalmente. A decepção de Comteé perceptível na frase que conclui o Curso, que condenava “o cego ou mal-intencionado impulso dos preconceitos e das paixões próprios de nosso de-plorável regime científico”.10 O Curso de filosofia positiva, aparentemente umaobra científica, tinha como objetivo limitar o espírito científico da idademoderna, cuja especialização, egoísmo e indiferença social causavam umprejuízo moral incomensurável.

A meu ver, Comte adotou uma terminologia religiosa tradicional emparte por razões pragmáticas. Após o declínio das práticas religiosas resul-tante da Revolução, as ideias religiosas tinham se tornado aceitáveis e cor-rentes no início dos anos 1840. Os românticos enfatizavam a importânciado espiritual. Novas ordens religiosas e escolas privadas proliferaram graçasà Lei Falloux, de 1850, que permitiu a liberdade de educação. Na sequênciade uma aparição da Virgem Maria em 1846,11 a noção de Imaculada Con-ceição tornou-se dogma em 1854. Impacientes para ajudar a classe operá-ria e as mulheres, muitos socialistas tentaram restabelecer o cristianismo deuma nova forma, mais igualitária. Não se sentindo à vontade com o agnos-ticismo, o ateísmo e o ceticismo, Comte queria fazer parte dessa escaladado fervor religioso, com a audácia que lhe era característica. Ele insistia nofato de não ser necessário que a razão e a ciência fossem antitéticas à reli-gião. No segundo volume do Sistema, chegou a dizer que “Nossa natureza,individual ou coletiva, torna-se, então, mais e mais religiosa”.12 Como jus-tificou esse comentário notável? Através do lamarckismo. Comte afirmavaque o aspecto fundamental do desenvolvimento humano era o fato de que,por meio do exercício, as características únicas da espécie humana – a inte-ligência e a sociabilidade – se tornavam dominantes, tanto no indivíduoquanto na sociedade. Assim, as pessoas se tornavam não apenas mais racio-nais, como mais altruístas, mais ligadas aos outros, em suma, mais religiosas.Ele acreditava que a essência da religião residia na capacidade de estabele-

10 Ibid., p. 791.11 Aparição da Nossa Senhora de La Salette (nos Alpes franceses) a duas crianças. (N.T.)12 Système, v. 2, p. 19.

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cer laços entre os indivíduos. Criticado por ter dado o nome de religião aseu sistema moral, Comte explicou em 1849 que havia “ousado unir [...] onome [religião] à coisa [positivismo] a fim de logo instituir uma concorrên-cia declarada com todos os outros sistemas”.13 Ele queria uma batalha doutri-nal bem definida contra o catolicismo e as versões esquerdistas do cristianis-mo, uma batalha que aceleraria o triunfo do positivismo e o início de umanova ordem. Preocupado com o crescente ceticismo do período pós-revo-lucionário, decidiu formular uma síntese para fornecer a seus contempo-râneos ideias e crenças novas e homogêneas, isto é, uma nova fé que pudes-se aproximá-los. Somente se fosse ao mesmo tempo emocional e racional éque essa síntese unificadora poderia levar à concordância geral no domíniosocial, necessária para destruir o materialismo e o egoísmo da sociedadeindustrial moderna. Ela precisava ser atraente tanto para a esquerda quan-to para a direita, a fim de elevar-se acima dos problemas deixados pelaRevolução Francesa e criar a harmonia.

No Sistema de política positiva, Comte imaginou uma cultura religiosatotalmente nova, que permitiria unir a sociedade. Ele admitia que, nos no-vos tempos, a ação política utilizasse a religião, a educação e as artes paraformar sentimentos, crenças e representações. Tendo vivido sob os reina-dos de Napoleão I e de Napoleão III, que fizeram uso da iconografia parapopularizar seus regimes, ele compreendia a importância da cultura visualpara reforçar as mensagens sociais e políticas. Nesse sentido, mandou pin-tar seu retrato e encomendou um busto de Antoine Etex para imortalizarsua imagem, concebeu bandeiras positivistas nas quais uma jovem mãe re-presentava a Humanidade, desenhou plantas dos Templos da Humanida-de, imprimiu seu próprio esquema do espírito humano e adotou o verdecomo cor do positivismo. As pessoas se aproximariam umas das outras porcrenças comuns, mas os laços emocionais, cultivados por imagens específi-cas e referências visuais, também contavam muito.

Ao apresentar uma visão de conjunto da Religião da Humanidade,Comte almejava sobretudo reviver o concreto, a intensa espontaneidadeemocional e as predisposições poéticas do primeiríssimo estágio da vidareligiosa, o fetichismo. Apesar de ser conhecido como um apóstolo do pro-

13 COMTE, Quatrième confession annuelle, 31 de maio de 1849. In: Correspondance générale, v. 5,p. 22.

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gresso, Comte paradoxalmente temia os efeitos da ciência e do pensamentoabstrato, que tornavam as pessoas orgulhosas e egoístas, e estava convenci-do de que o Ocidente precisava de uma injeção de religião primitiva paracontinuar seu avanço. Ele foi um dos primeiros pensadores a celebrar ofetichismo, que associava à raça negra. Para ele, “os humildes pensadoresda África central” eram mais racionais sobre a natureza humana e a socie-dade do que os “magníficos doutores germânicos” e suas “verborragiaspomposas”. Comte dizia que “A tocante lógica do mais simples dos negrosé [...] mais sábia que nossa aridez acadêmica que, sob o pretexto empíricode uma imparcialidade sempre impossível, consagra diariamente a descon-fiança e o receio”.14 Ao contrário dos homens modernos, os adoradores defetiches cultivavam seus afetos mais valiosos por meio da veneração, daconfiança e da adoração de todos os seres. Eles admiravam o que era con-creto e útil e respeitavam o mundo natural. Comte tentou reproduzir essetipo de veneração incentivando o povo a se devotar à Humanidade, o “Gran-de Ser”, e a respeitar a Terra, o “Grande Fetiche”. Em vez de celebrar asmaravilhas da indústria, enfatizou a importância da humildade e da mo-déstia demonstrando que todos os povos estavam ligados uns aos outros e àTerra. Quando modificavam a Terra, as pessoas deveriam aprender os be-nefícios morais da cooperação social. Se elas se conformassem com maisinteligência às leis da Terra, tornar-se-iam menos egoístas e mais felizes.Em suma, o positivismo incorporaria o fetichismo. Paradoxalmente, o es-tágio mais avançado da civilização representaria um retorno às origens.Comte foi de fato um dos primeiros adeptos da ecologia.

Condenando o racismo, a escravidão e o imperialismo, julgando queestes dividiam a humanidade em vez de uni-la, Comte lançaria um desafioaos estereótipos raciais ao afirmar que um dia “algum pensador negro”poderia estudar suas obras e dar-lhe seu apoio.15 Apesar de ter adotado umaposição essencialista segundo a qual os brancos eram inteligentes, os ne-gros eram emotivos e os “amarelos” eram ativos e pragmáticos, ele nãopensava que as diferenças raciais fossem imutáveis ou totalmente determi-nantes. Uma pessoa negra podia ser emotiva acima de tudo, mas igualmen-te inteligente e ativa. Comte afirmava que as diferentes raças se pareceriam

14 Système, v. 3, p. 99, 121, 155.15 Ibid., p. 156.

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cada vez mais à medida que desenvolvessem partes diferentes de seu cére-bro, graças às mudanças no meio ambiente. Na era positivista, elas seriamobrigadas a utilizar e, consequentemente, desenvolver todas as suas capaci-dades. Ele foi um dos poucos pensadores a louvar os casais de etnias dife-rentes, afirmando que os casamentos mistos envolviam a partilha das ca-racterísticas associadas a cada raça.

Na esperança de acabar com o militarismo e as guerras, Comte dese-java disseminar o sentimento de nossa humanidade comum, ou sociabili-dade, pelo mundo inteiro. Foi um dos poucos pensadores do século XIX apromover o cosmopolitismo e a cultura da sociabilidade aos quais os filóso-fos do século XVIII davam grande valor. Oposto ao nacionalismo extremode seus semelhantes europeus, condenou o envolvimento da Inglaterra naGuerra do Ópio contra a China, sua recusa de ceder Gibraltar e seu trata-mento à Índia. Em sua opinião, essas iniciativas imperialistas estavam liga-das a interesses industriais. Também condenava a invasão francesa da Ar-gélia, que, como insistiu repetidamente, devia ser devolvida aos árabes.Criticava a criação de um império por Napoleão I e Napoleão III. Para ele,a opressão interna sempre iria de par com a opressão externa. Alguns deseus discípulos, que acreditavam na missão dos franceses no plano da civi-lização, ressentiram-se de seu anti-imperialismo. Para opor-se ao naciona-lismo e às ambições imperialistas, e principalmente para reduzir a ameaçade guerra, Comte preconizava que todas as nações fossem divididas empequenas repúblicas, onde a sociabilidade seria mais fácil de cultivar e ondea lealdade das pessoas seria espontânea e voluntária. A França seria dividi-da em 17 dessas pequenas repúblicas.

A capital desse sistema republicano universal seria Constantinopla, acidade que, para Comte, melhor uniria o Leste e o Oeste. Como seus con-temporâneos franceses, ele era fascinado pelo Oriente. Dentro de seu obje-tivo de mostrar o profundo respeito do positivismo pela história como umtodo e uma generosa avaliação das outras religiões, ele frequentemente lou-vava Maomé e o Islã. Acreditava que os muçulmanos estavam madurospara uma conversão positivista, pois sua fé era tolerante e simples. Eles sepreocupavam com as necessidades da comunidade e tinham sido preserva-dos das influências anarquistas dos especialistas em metafísica e dos legis-ladores. Comte chegou inclusive a expressar a esperança de que os argeli-nos convertessem os franceses ao Islã, em vez de os franceses os transfor-marem em católicos.

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Na era positivista por vir, as 500 repúblicas do mundo inteiro seriamcaracterizadas internamente pela harmonia entre os principais grupos: osindustriais regenerados, que constituiriam o poder temporal, e os filósofos,as mulheres e os operários positivistas, que representariam as componentesdo poder espiritual. Os filósofos positivistas, que encarnariam a razão,seriam ajudados sobretudo pelas mulheres, que personificavam os senti-mentos, e os operários, que representavam a atividade. Ao contrário daburguesia masculina no poder, as mulheres e os operários escapariam àcultura artificial e materialista da época. Comte recorria cada vez mais aoapoio deles, pois havia sido repelido pelos cientistas de seu tempo.

A partir de 1851, Comte passou a convocar ainda mais as mulheres,após ter percebido que seria impossível tirar os operários do socialismo.Alguns intelectuais acusam Comte de ser um “falocrata”.16 No entanto,tendo lido Uma defesa dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft, tendose tornado amigo da intelectual inglesa Sarah Austin, tendo ouvido JohnStuart Mill e conhecido o notável trabalho de sua tradutora, Harriet Marti-neau, Comte deu às mulheres uma identidade positiva. Ele afirmava que,na qualidade de peritas em matéria de emoções, elas seriam os agentes moraisque poderiam unificar uma sociedade cada vez mais fragmentada. Após aRevolução de 1848, ele expressou seu temor de que o problema da anarquianão seria resolvido “enquanto a revolução não tiver se tornado feminina”.17

Tinha medo de que, sem o suporte feminino, seu próprio movimento refor-mista se visse desacreditado. Aliás, uma razão pela qual ele enfatizava aReligião da Humanidade é o fato de querer agradar às mulheres, que asso-ciava à religião. Seu Catecismo positivista, que consistia num diálogo entreuma mulher e um sacerdote positivista, dirigia-se especialmente ao públicofeminino. Além disso, ele incentivava as mulheres a formar a opinião públi-ca retomando os salões e a escapar à dominação dos homens exercendo umcontrole sobre o próprio corpo e tendo filhos sem qualquer participaçãomasculina. E como elas eram dotadas da melhor característica humana, asociabilidade, ele insistia para que as mulheres representassem a própriaHumanidade. Nos templos positivistas, a Humanidade seria sempre repre-

16 KOFMAN, Sarah. Aberrations: Le Devenir-Femme d’Auguste Comte. Paris: Aubier Flammarion,1978, p. 233.

17 Carta de Comte a Georges Audiffrent, 7 de junho de 1851. In: CG, v. 6, p. 108.

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sentada por uma mulher acompanhada do filho. Essa audaciosa substitui-ção do Deus Pai no sistema positivista reflete a convicção de Comte de queas mulheres ocupariam a “primeira posição da sociedade normal” do futu-ro.18 O papel delas ilustra o objetivo de Comte, que era colocar os sentimen-tos empáticos no centro da vida pública a fim de criar uma sociedade maiscompassiva e mais harmoniosa.

A visão de Comte quanto a uma sociedade futura caracterizada pelaharmonia não era apenas uma reação ao caos de seu tempo, mas tambémuma resposta ao caos que existia dentro dele. Ao longo de toda a vida, Comteprecisou lutar contra a psicose maníaco-depressiva. Ele sofria crises de exci-tação que se alternavam com ondas de profunda depressão. As piores crisesocorreram em 1826, 1838 e entre 1845 e 1846. Demonstrei o quanto essadoença o tornou rebelde, paranoico e delirante. Ele lutava todos os dias parater boa saúde. Comia refeições simples, dormia entre sete e oito horas pornoite, eliminava o café e demais estimulantes, e dava longas caminhadas to-dos os dias, para se cansar fisicamente. Intelectualmente, a fim de evitar oestresse, retirou-se cada vez mais em seu mundo pessoal, recusando-se, em1838, a ler o que quer que fosse, exceto poesia. Ele afirmava que esse regimede higiene cerebral seria a única maneira de manter sua pureza enquantogênio e reformador moral. Na verdade, a loucura era uma doença comumnos homens criativos do século XIX. Até mesmo John Stuart Mill teve umadepressão nervosa. Mas sustento que Comte se retirou do mundo contempo-râneo literário e intelectual para preservar seu frágil ego dos ataques dos crí-ticos. Qualquer tipo de controvérsia, ou mesmo um esforço intelectual inten-so e emoções violentas, constituíam uma ameaça a seu bem-estar mental, eele organizou sua vida de modo a evitar esses perigos. Mesmo assim, o quemais caracterizou suas relações com os outros foi o conflito, que em geralresultava em rompimento. Seu temperamento apresentava outro grande pa-radoxo que considero fascinante: o fundador da sociologia – a ciência que seespecializou no estudo das relações sociais – era um homem que não se sen-tia à vontade nas associações humanas mais elementares. Ele tinha a impres-são de ser um estrangeiro na sociedade que era o objeto de seu estudo. Váriosexemplos explicativos permitirão elucidar a psique de Comte.

18 Carta de Comte a Harriet Martineau, 29 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7,p. 160.

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Apesar de Comte reivindicar o respeito da família por se distanciarda filosofia do amor livre dos saint-simonianos, ele estava em constantedesacordo com os membros de sua própria família. Comte acusava a irmãde conspirar para deserdá-lo. Seus pais não gostavam de seus ataques con-tra a religião, de seu republicanismo e de sua escolha profissional. Em 1838,Comte disse ao pai que desejava romper toda comunicação com a família.Seu pai ficou completamente aturdido. Quase dez anos se passaram antesque eles retomassem a troca de correspondência. Esta manteve-se fria.

Comte conheceu uma pessoa capaz de preencher temporariamente opapel de pai: Henri de Saint-Simon. Ao contrário de Henri Gouhier, queminimizava a importância de sua influência, penso que Saint-Simon deu àreflexão de Comte um certo direcionamento filosófico. Ao longo do Impé-rio napoleônico, Saint-Simon havia sustentado que a criação de um novosistema unificado de conhecimentos científicos, centrado no estudo da so-ciedade, daria início a uma nova era em que os industriais substituiriam oslíderes militares no poder temporal ou secular, e os cientistas tomariam olugar do clero no poder espiritual. Quando Comte começou a trabalharpara Saint-Simon, esse filósofo que começava a envelhecer se voltava para aorganização prática e industrial da sociedade. Mas Comte retomou a mis-são inicial de Saint-Simon, a fundação do sistema científico, isto é, a filoso-fia positiva, bem como a ciência da sociedade. Fiel ao conceito de Saint-Simon que preconizava que a teoria deveria preceder a prática, Comte de-senvolveu as ideias espalhadas ao acaso no conjunto dos escritos irregula-res de seu mestre. Contudo, depois de trabalhar em estreita colaboraçãocom Saint-Simon no jornalismo ao longo de sete anos, com frequência ex-pressando sua afeição por ele, um dia Comte decidiu que não queria maisrelacionar-se com ele. Acreditava que Saint-Simon estivesse roubando suasideias. Em suas últimas obras, portanto, chamou Saint-Simon de “charla-tão superficial e depravado”.19

Outro mestre foi o célebre cientista Blainville, que Saint-Simon lhehavia apresentado. Comte jantava uma vez por mês na casa de Blainville.Em 1850, porém, quando Blainville não pôde mais ajudá-lo financeiramente

19 Carta de Comte a George Frederick Holmes, 18 de setembro de 1852. In: Correspondance géné-rale, v. 6, p. 378.

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e passou a manifestar suas tendências religiosas em obras científicas, Comtese virou contra ele. Falou duramente de Blainville no discurso durante asexéquias deste, declarando que sua morte por ataque cardíaco, sozinho den-tro de um trem, havia sido adequada, pois ele era egoísta. Muitos foram osque pensaram que Comte havia sido cruel ao tratar dessa maneira um ami-go íntimo.

Vários outros amigos próximos romperiam relações com Comte.Fisher e Émile Tabarié, amigos de infância, foram rejeitados depois de su-postamente terem criticado a esposa de Comte. O melhor amigo de Comte,Pierre Valat, sugeriu-lhe que tentasse escrever com mais clareza e concen-trar-se na epistemologia. Comte respondeu-lhe, furioso, dizendo que já ha-via passado da “idade da discussão”.20 A amizade de 30 anos chegou aofim. Gustave d’Eichthal, amigo e primeiro discípulo, também recomendoua Comte ser menos abstrato. Sentiu-se distante de Comte com a respostaque recebeu e desistiu da relação. Conhecidos importantes como FrançoisGuizot e os intelectuais ingleses George Grote, Sarah Austin e HarrietMartineau se afastaram. Jules Michelet levou uma patada quando visitouComte pela primeira vez. Colegas de trabalho, dentre os quais alguns ve-lhos amigos, como Duhamel, acabaram dispensando-o da École Polytech-nique. Todos estavam cansados do egoísmo, da paranoia e da beligerânciade Comte.

Problemas similares prejudicaram sua importante relação com JohnStuart Mill, que lhe escreveu em novembro de 1841 para dizer o quantosuas ideias haviam tido um impacto profundo em seu próprio desenvolvi-mento intelectual. Mill se uniu a Comte naquilo que ambos consideraramcomo o início de uma aliança dos intelectuais mais avançados da época.Dois anos depois, no entanto, Mill começou a mudar de opinião a respeitodo positivismo quando ouviu falar de um ponto de vista de Comte, quedeclarava que a vida conjugal estava baseada nas desigualdades sexuais eque as mulheres não eram tão inteligentes quanto os homens, conformedemonstrado pelo tamanho do cérebro. Mill afirmava que a maioria dasdefasagens entre homens e mulheres poderia ser minimizada se as mulhe-res recebessem uma educação melhor. A amante de Mill, que mais tarde se

20 Carta de Comte a Pierre Valat, 17 de setembro. In: Correspondance générale, v. 2, p. 86.

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tornaria sua mulher, a feminista Harriet Taylor, acusou-o de agir covarde-mente para com Comte. Ela escreveu: “A raiz seca que é esse homem nãorepresenta um adversário de valor”.21 Mill sentiu vergonha. A amizade aca-bou em 1847, depois de Comte ter insultado Mill e seus amigos, atacando-os por não lhe darem mais suporte financeiro. Mill concluiu: “[Comte] éum homem que só podemos servir dizendo sempre o mesmo que ele”.22

Alguém concordava com Mill: a mulher de Comte, Caroline Massin.Tentei reabilitá-la em sua relação com o marido e estudei sua correspon-dência, revista e publicada em 2006 pelo Sr. Gentil. Ex-diretora de bibliote-ca, Caroline Massin era uma mulher inteligente e cheia de espírito que aju-dou Comte a se recuperar da crise de loucura de 1826. Ela lhe deu todos ostipos de conselhos para sua saúde, seu trabalho e sua maneira pouco diplo-mática de tratar as pessoas, especialmente os colegas. Quando Comte serecusou a ouvi-la, agindo como se ela não existisse, ela o abandonou, em1842, acusando-o de ser um tirano. Anos depois, escreveu a Comte umacarta pungente que resumia suas dificuldades: “Sempre fui-lhe muito devo-tada, mas não era submissa. Com menos devotamento verdadeiro e maissubmissão, as coisas teriam ido melhor entre nós. Quantas vezes você nofundo teve razão, mas me pedia para ceder em nome de sua autoridade, e eume erguia à sua frente enquanto deveria me submeter. Submissa mesmo as-sim, eis o que eu não soube ser. Mas mesmo assim o amei, veja bem”.23

Furioso por ter sido deixado, Comte puniu-a numa de suas últimasobras, chamando-a de prostituta. A alegação foi perpetuada pelos discípu-los de Comte, que a detestavam porque ela desejava contestar seu testamen-to. Mas a acusação é muito discutível. Era uma atitude típica da época: asmulheres eram vistas ou como anjos do lar ou como tentadoras fatais. Comoo espírito independente de Caroline Massin não combinava com o primei-ro tipo, Comte colocou-a sob o segundo.

21 Harriet Taylor, nota a John Stuart Mill, sem data, Mill-Taylor, GB 0097, v. 2, item 327, fólio723, 723v, 724, 724v, British Library of Political and Economic Science, London School ofEconomics. Ver também HAYEK, F. A. John Stuart Mill and Harriet Taylor: Their Corresponden-ce and Subsequent Marriage. London: Routledge and Kegan Paul, 1951, p. 114-115.

22 Carta de J. S. Mill a Mrs. Sarah Austin, 18 de janeiro de 1845. In: ROSS, Janet. Three Generationsof Englishwomen: Memoirs and Correspondence of Mrs. John Taylor, Mrs. Sarah Austin, andLady Duff Gordon. London: John Murray, 1888, 2 v., v. 1, p. 200.

23 Carta de Caroline Massin a Auguste Comte, 17 de janeiro de 1850. COMTE, Auguste; MASSIN,Caroline. Correspondance inédite: l’histoire de Caroline Massin, épouse d’Auguste Comte à tra-vers leur correspondance. Org. de Pascaline Gentil. Paris: L’Harmattan, 2006, p. 250.

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A pessoa que correspondia ao primeiro tipo, para Comte, era Clotil-de de Vaux. Como Caroline Massin, era muito mais forte, inteligente eindependente do que os biógrafos de Comte a descrevem. Quando conhe-ceu Clotilde de Vaux, em 1845, essa mulher de 30 anos vivia na miséria,totalmente responsável pela família depois de ter sido abandonada pelomarido. O que a tornava fascinante era o fato de ser uma jornalista e ro-mancista promissora que, como muitas mulheres do século XIX, tentavaganhar a vida e se realizar através de seus escritos. Paralisada pelo amor deseus pais, bem como pelo amor exigente e possessivo dos homens, ela tinhasede de “liberdade”: “Há momentos em que sinto vontade de morrer semlaços, tanto sofri por causa deles”.24 Ela almejava sobretudo ter a liberdadede se entregar a quem quisesse, quando e se quisesse.

Comte cortejou-a deliberadamente para desenvolver sentimentos que,segundo ele, estavam diminuídos devido às más relações que mantinha comsua família e sua mulher. Ele estava a ponto de escrever o Sistema que trata-va do lado emocional da existência humana, e pensava precisar de maisprofundidade nesse aspecto.

Rejeitando as aspiração jornalísticas de Clotilde de Vaux, sentia difi-culdade em respeitar seu desejo, que consistia em limitar suas discussões aquestões intelectuais interessantes. Ele exasperou-a ao insistir que sabia oque seria melhor para seus interesses e ao afirmar que a achava moralmentesuperior. Ela respondeu: “Ainda não encontrei a perfeição, nem nos outrosnem em mim. Há grandes úlceras no fundo de cada ventre humano. Restasaber como escondê-las”.25 De fato, Clotilde de Vaux recusava a Comtevenerá-la. Tal adoração lhe parecia não apenas artificial, como restritiva.Mesmo que os positivistas celebrassem seu amor por ele, na verdade Clotil-de de Vaux não era tocada pelos estratagemas de Comte. Ela resistia a seusavanços sexuais e o mantinha à distância, vendo nele apenas um amigo. Noentanto, foi cada vez mais obrigada a contar com sua boa vontade e seusrecursos financeiros quando começou a perder a batalha que travava contraa tuberculose. Em abril de 1846, morreu em seu quarto. Comte estava a seulado e não permitiu que os pais dela entrassem. Queria ser o único a reco-

24 Clotilde de Vaux à Comte, 5 de dezembro e 12 de dezembro de 1845. In: Correspondance généra-le, v. 3, p. 221, p. 235.

25 Carta de Clotilde de Vaux a Comte, 25 de maio de 1845. In: Correspondance générale, v. 3, p. 24.

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lher seu último suspiro. Incapaz de dominá-la completamente quando elaestava viva, passou a exercer seu poder sobre ela transformando-a na mu-lher perfeita, submissa e pura, tudo o que sua esposa, pretensamente detes-tável, não era. Refletindo a lógica binária intrínseca da identidade sexualda época, ele transformou Clotilde de Vaux num anjo que inspirava suaprópria bondade, enquanto sua esposa, Caroline Massin, era um demônioque ameaçava seu trabalho. A veneração de Comte por Clotilde de Vauxchegou a fazer parte de sua Religião da Humanidade. Silenciada pela mor-te, ela não podia mais objetar à própria canonização. De fato, representa-ções de mulheres mortas abundam nas artes e na literatura de meados doséculo XIX, pois elas permitiam aos homens se sentirem triunfantes sobreos aspectos ameaçadores da feminilidade.

Não partilho da opinião de John Stuart Mill, nem da de RaymondAron, que afirmavam que Clotilde de Vaux foi a causa do declínio intelec-tual de Comte e que ela mudou a direção de suas ideias. Clotilde de Vauxreforçou a importância crescente que ele atribuía aos sentimentos e fez re-nascer o interesse de Comte pela “questão da mulher”, silenciado pela acri-moniosa relação com Caroline Massin. A aliança entre as mulheres e osfilósofos positivistas, que ele já havia promovido no último volume do Cur-so, tornou-se o centro de sua doutrina.

Esses episódios da vida pessoal de Comte demonstram as dificulda-des que ele teve para de fato estabelecer relações pessoais normais. Ele in-sistia tanto na necessidade de uma harmonia total que, para alcançá-la,sacrificou a família, em primeiro lugar, depois a mulher e, a seguir, umamigo depois do outro. É como se tivesse aplicado sua higiene cerebral aseu círculo social. Sentindo uma necessidade absoluta de harmonia perfei-ta na própria vida, prescreveu a mesma coisa para a sociedade. O tipo desociedade que imaginava não seria formada por grupos de facções confli-tantes ou concorrentes, mas por um regime supervisionado por um poderespiritual encarregado de exercer o controle, que educaria as pessoas e asinspiraria a entrar em acordo sobre o conjunto de opiniões.

Indiferente às necessidades dos outros, Comte encontrou certa grati-ficação num amor abstrato pela Humanidade, que lhe permitia evitar asdificuldades inerentes às relações pessoais. Ele se vangloriava de ser a únicapessoa capaz de compreender as ideias gerais e, ao mesmo tempo, dar pro-vas de altruísmo. Ao fim da vida, reivindicou ser “mais completo que qual-

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quer um dos personagens que, até o momento, ocuparam a cena revolucio-nária”. Afirmando ser um modelo de virtude, dizia ser o fundador legítimode uma sociedade e de uma religião, igualmente novas.

Graças à autoconfiança e à inteligência superior de Comte, tantoquanto à doutrina aprofundada que dava prioridade ao bem-estar da comu-nidade e previa um futuro harmonioso, ele granjeou um pequeno númerode adeptos da esquerda e também da direita, na França, na Inglaterra, nosEstados Unidos e na América Latina. Alguns admiravam suas ideias es-querdistas. Quando a Revolução de 1848 se desencadeou, Comte tentouincitar os operários a se afastarem do socialismo e fundou a Sociedade Po-sitivista para lançar um movimento positivista. Seu manifesto, o Discursosobre o conjunto do positivismo, condenava o extremismo político, especial-mente o de direita, preconizava a incorporação dos proletários à sociedadeatravés da melhoria de suas perspectivas de emprego e educação, e apresen-tava uma visão geral da ideia de um triunvirato positivista dirigente, saídoinicialmente da classe operária. Ele dizia que apesar do positivismo nãoprocurar abolir a propriedade privada, ele absorvia e reforçava os princípiosbásicos do comunismo, no sentido de que aceitava o fato de que a comuni-dade deveria intervir para “subordinar [a propriedade] às necessidades so-ciais”.26 Comte também apoiava os operários que reivindicavam o direitode trabalhar, uma melhor educação e uma república em que detivessemmais poder. Invocou esquerdistas renomados como Proudhon, Blanqui eBarbès, pedindo seu apoio.

Contudo, temendo que os revolucionários se tornassem violentosdemais e anarquistas, por um breve período de tempo apoiou o regime deditadura de Luís Napoleão, que esperava converter ao positivismo, o queseria a primeira etapa para obter os favores do país inteiro. Em dado mo-mento, chegou inclusive a sugerir-lhe que designasse como sucessor, pre-tendente legítimo, o conde de Chambord. Em 1855, Comte escreveu umApelo aos conservadores, para convencê-los a unir-se aos positivistas contra aesquerda. Comte queria uma aliança com os jesuítas e dirigiu-se aos aristo-cratas ingleses, ao czar da Rússia e aos dirigentes turcos.

O crescente conservadorismo de Comte lhe custou o apoio dos es-querdistas. Seus discípulos ficaram horrorizados ao descobrir que ele havia

26 Système, v. 1, p. 155.

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perdido não apenas Mill, como também seu adepto francês mais importan-te, Émile Littré. Ambos haviam dado certa legitimidade ao movimento gra-ças ao renome de que gozavam. Charles Robin e George Henry Lewes eramoutros adeptos que também desertariam.

Mas Comte ainda tinha cerca de 50 discípulos fiéis na Sociedade Po-sitivista. Havia uns 15 operários, mas a maioria era formada por homensjovens de classe média que vinham de Paris e da província. Eram escritores,estudantes e médicos.

As pessoas se filiavam ao movimento por um número variado demotivos, pois liam de maneiras diferentes sua doutrina rica e complexa. Apolítica era uma razão pela qual muitos aderiram a seu movimento. Algunso consideravam um humanista ou um republicano que se interessava peloshomens do povo. Outros estavam convencidos de que o positivismo era umbaluarte contra a Revolução.

Muitos ficavam fascinados pelo sistema científico de Comte enquan-to síntese do saber erudito. Esse sistema parecia explicar as ciências, numaépoca sedenta por categorização, e explicava a orientação da história, queadquiria então estatuto científico. A nova ciência da sociologia parecia for-necer uma maneira racional de absorver os problemas aparentemente inso-lúveis do modernismo.

Alguns adeptos não se interessavam pelos aspectos científicos do po-sitivismo, mas manifestavam muito entusiasmo pela Religião da Humani-dade elaborada por Comte. Esta oferecia ritos e dogmas suficientes parasubstituir o cristianismo junto a pessoas que haviam abandonado sua fétradicional com grande dificuldade, ou às que nunca tinham adotado umareligião. A eliminação de Deus por Comte e o sólido sistema moral basea-do nos fatos e na transparência pareciam estar livres da hipocrisia e agrada-vam aos céticos religiosos que agora podiam se orgulhar de si mesmos e desua sinceridade. Muitos agnósticos e ateus sentiam a necessidade de acredi-tar em alguma coisa coerente, abstrata e abrangente. Graças ao estrito siste-ma moral de Comte, também podiam trabalhar para seu próprio aperfei-çoamento e receber honrarias, como os crentes. Graças a seu elaborado siste-ma de rememoração, eles podiam alcançar a imortalidade. Também podiamutilizar sua doutrina para atacar as igrejas tradicionais.

Algumas pessoas se sentiam atraídas pelo positivismo devido à per-sonalidade de Comte. Ele permitia que membros da Sociedade Positivista

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se aproximassem uns dos outros e ficassem orgulhosos de pertencer a ummovimento exclusivo que construía uma nova era. Eles admiravam nãoapenas sua visão audaciosa, mas também seu dogmatismo e, acima de tudo,seu notável senso de certeza. Comte lhes dizia no que deveriam acreditar.

Um professor de Lyon, jornalista republicano, Charles Maynard, foium exemplo típico. Apreciava o positivismo porque este eliminava suas ilu-sões, trazia uma certa clareza à sua visão de mundo e o impedia de tentarencontrar uma solução a questões que não podiam ser respondidas. O posi-tivismo oferecia “uma solução racional ao problema social”. Ele escreveu aComte em 1853:

Meus olhos, como os de São Paulo, se livraram de suas vendas, a luz se fezem meu espírito, e agora sei onde está a verdade. Graças ao senhor gozodessa tranquilidade perfeita que sempre acompanha uma convicção sincera,e tenho à minha frente um objetivo magnífico que é preciso alcançar. Obri-gado, mil vezes obrigado, por ter-me devolvido essa vida do coração sem aqual a outra não é nada. Permita contar-me entre os que o admiram e amam.27

Muitos discípulos amavam Comte. Mesmo os que não eram discípu-los se viam tocados por sua filosofia. Harriet Martineau sempre choravaquando traduzia o Curso, pois este parecia eliminar todas as dúvidas e refle-tia a “profunda simpatia humana” de Comte.28

Fica claro que a solicitude de Comte em ouvir os problemas dos soli-tários e isolados o ajudou a convertê-los. Esses discípulos contavam a Comtecoisas pessoais espantosas. Muitos buscavam os conselhos de Comte paraencontrar uma mulher. Outros tinham relações e perguntavam se deviamcasar com suas amantes. Outros confessavam que frequentavam prostitutase que recorriam à masturbação para aliviar seus desejos sexuais. HenryEdger, de Nova York, contou a Comte suas aventuras sexuais, que o desmo-ralizavam e davam-lhe “uma dor surda e profunda [...] nos testículos”.29

Em resposta, Comte disse-lhe com a maior honestidade que havia sofridoproblemas idênticos e que os havia resolvido apenas evitando qualquer es-timulante. A aceitação de Comte do papel de sacerdote que recebia confis-

27 Carta de Charles Maynard a Comte, 3 de junho de 1853. Archives de la Maison d’AugusteComte.

28 MARTINEAU, Harriet. Autobiography. Org. de Marian Weston Chapman. Boston: James R. Os-good, 1877, 2 v., v. 2, p. 71-82, 90.

29 Carta de Henry Edger a Comte, 22 de junho de 1857. Archives de la Maison d’Auguste Comte.

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sões e dava a absolvição era um grande conforto para homens que se senti-am afastados da autoridade religiosa tradicional. Eles o consideravam osalvador, aquele que os havia tirado das profundezas do desespero, nãoapenas intelectual, como também psicológico. Sua própria candura, suasmanifestações de vulnerabilidade e sua tendência natural às emoções co-moviam muitos leitores que temiam que seu desenvolvimento emocionalfosse freado pela profissão, pela religião ou pelo papel que desempenhavamenquanto homens e mulheres. Se o suposto defensor da racionalidade po-dia se lamentar de suas perdas pessoais no prefácio de seus livros e em suascartas, eles sentiam que também podiam expressar suas angústias.

Dada a diversidade dos discípulos em toda a Europa e nas Américas,não surpreende que tenha havido tensões entre eles e com Comte. Os discí-pulos se tornaram ciumentos uns dos outros, e a rivalidade para reter suaatenção prejudicou o movimento, contrariando Comte profundamente. Àsvezes, os discípulos tinham objeções quanto aos aspectos da doutrina deComte, sua maneira de tratar as pessoas, como a esposa, e sua política.Comte raramente dava ouvidos e com frequência respondia com insultos.Acusou Pierre Lafitte, por exemplo, que era um discípulo muito próximo,de ser preguiçoso e fraco. Comte era menos paciente com os discípulos quenão lhe davam dinheiro para satisfazer suas necessidades ou que não acei-tavam totalmente sua religião. Eles eram, retomando suas próprias pala-vras, “positivistas incompletos”.30 Comte era de fato o sumo pontífice.

Em 1857, Comte começou a sofrer de um inchaço no estômago. Suador física era agravada por seus distúrbios emocionais. Ficou furioso comum discípulo, Célestin de Blignières, que publicou um livro sobre o positi-vismo sem sua permissão. Queria constantemente ocupar uma posição decontrole. Sua arrogância contribuiu para uma morte dolorosa: quando fi-cou doente, recusou a ajuda dos médicos, mesmo dos que eram positivis-tas. Em setembro, morreu de câncer no estômago. Depois de sua morte, osdiscípulos se digladiaram com sua esposa por décadas a respeito do testa-mento. Apesar de toda essa confusão que se assemelhava a um drama, opositivismo se tornou uma força significativa no campo acadêmico – espe-cialmente na filosofia, na sociologia e na historiografia – e no político, não

30 Carta de Comte a Henry Dix Hutton, 27 de dezembro de 1853. In: Correspondance générale, v. 7,p. 156.

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apenas na França como no mundo inteiro. Continuou tendo muitos senti-dos diferentes, como durante a vida de Comte. Conforme sugerido pelagrande especialista em Comte Annie Petit, houve e ainda há muitos positi-vismos.

Meu trabalho demonstrou que também havia muitos Comte: o enge-nheiro, o reformador social, o amante frustrado, o poeta inspirado, o mora-lista rigoroso, o médico, o papa e o devotado reformador religioso. Indiví-duo teatral, ele gostava de expor suas diferentes personalidades, comovários de seus contemporâneos românticos. Ele amava o melodrama, queutilizou para analisar sua própria vida. O segredo para escrever essa biogra-fia consistiu em não apenas permitir que essas múltiplas personalidades semostrassem, como também em assinalar o que havia de constante nos bas-tidores.

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A conversão de olhares:os intelectuais comunistas frente ao desafio

Eduard Esteban Moreno Trujillo

“O inventamos, o perecemos compañero!”

(Jaime Caycedo1, 2011).

O intelectual é filho de seu tempo e só pode ser entendido como pro-duto das forças sociais, econômicas, culturais e políticas sob as quais age.Nesta perspectiva, o seguinte texto tem como propósito expor o processode configuração do intelectual comunista da Colômbia e seu papel comofuncionário-intelectual, no marco da crise que originou a queda do socialis-mo real e do reexame da teoria marxista-leninista das décadas de oitenta enoventa do século XX, além de salientar as características que condiciona-ram seu agir no seio do partido e da sociedade.

Para a realização de tal propósito, sugiro a categoria de intelectual-funcionário. Isto tem como objetivo ir além dos clássicos olhares sobre ointelectual comunista como mero reprodutor acrítico do catecismo socia-lista2. Pelo contrário, o que se pretende é distinguir a imbricada contradiçãoinserida no sujeito intelectual como uma constante em seu longo processode formação3, e que eu chamo de conversão de olhares. Esta contradiçãotem seu fundamento na distinção entre o intelectual como sujeito crítico eobjetivo, que utiliza as ideias para denunciar desapaixonadamente o poder,

1 Intelectual e secretário-geral do PCC.2 Para o caso colombiano ver os trabalhos de Sánchez (1995); Pizarro (1991); Meschkat (2009);

Medina (2007); Delgado (2007, 2009). Na mesma linha, para o caso da América Latina, otexto do mexicano Jorge Castañeda (1994).

3 Ao falar do processo, não faço referência a um processo que tenha um caminho demarcado eum fim último. Só pretendo enfatizar a constante reconstrução e reelaboração da figura dointelectual e também observar uma virada nas formas de leitura de mundo por parte dos inte-lectuais, mudança que corresponde à rotura de seu campo.

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e aquele sujeito membro do partido político fechado, que segue incondicio-nalmente as ordens do aparelho.

Dessa maneira, distinguem-se dois momentos que moldaram a figu-ra do intelectual comunista na Colômbia durante as décadas propostas –ainda que se possa falar de diferentes características num mesmo períodode tempo: um primeiro período de contradição guiado pelo “seguidismo”silencioso, que se pode localizar entre 1985 e 1990, e um segundo momen-to, que tenho chamado de ressignificação e que tem seu ponto de partida naassimilação do debate sobre a crise no seio do marxismo-leninismo e seestende até o final do século.

1. O intelectual-funcionário

No marco de uma história intelectual, assumir o intelectual comoprotagonista pode ser óbvio e até parece absurdo formular uma dúvida so-bre isso. No entanto, quando o historiador sai do mundo das representa-ções e enfrenta as fontes (sejam quais são), as categorias saltam ao rosto ese tornam mais complexas do que se imaginava. Neste ponto, a categoriade intelectual (como qualquer outra) fica carregada de ambiguidade, e fa-zer uma história sobre o intelectual torna-se problemático.

Neste contexto, pretendo propor uma leitura do intelectual confron-tado com os fatos, contrastar aquela “objetividade” que comumente se atri-bui ao intelectual com seu agir subjetivo na história. Além disso, com o fimde enriquecer a leitura sobre o intelectual, um ser que a priori é extrema-mente ambíguo4, este é colocado num campo altamente politizado (o co-munismo) e num período de plena ruptura para tal campo (a perestroika).Por outro lado, o intelectual imerso nas lógicas da doutrina comunista, alémde ser um sujeito construído socioculturalmente (ZERMEÑO, 2003, p. 781-782) e estar dotado de uma representação de tipo político, adere a um ima-ginário que preestabelece suas percepções sobre o mundo, afastando-o de

4 É importante advertir, seguindo Michael Löwy, que um intelectual é um ser singular e difícil, jáque “el intelectual puede ser reclutado en todas las clases y capas de la sociedad; puede seraristócrata (Tolstoi), industrial (Owen), profesor (Hegel) o artesano (Proudhon). En otros tér-minos: los intelectuales no son una clase sino una categoría social; igual que los burócratas ylos militares se definen por relación con lo político, así los intelectuales se sitúan por su relacióncon la superestructura ideológica” (LÖWY, 1978, p. 17).

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uma capacidade de crítica total5. Mas será que este posicionamento frente aum imaginário que permitiu ao intelectual comunista agir, tanto dentro domundo das ideias como no mundo da ação, distancia-o do ser intelectualcomo sujeito crítico? Uma possível resposta será desenvolvida nas seguin-tes linhas.

Para entender as formas de agir do intelectual comunista da Colôm-bia nas décadas de oitenta e noventa, ele deve ser assumido sob quatro pers-pectivas. Primeiro, como um sujeito mergulhado numa lógica global de umimaginário; segundo, como um sujeito homogeneizador de ideias com re-lação à sua organicidade frente a um bloco histórico particular; terceiro, comoum sujeito que responde a um conjunto de condições do espaço social emque se encontra; e por último, deve-se assumi-lo como um sujeito compro-metido com uma cosmovisão de mundo particular.

Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme (2009), ao falar dointelectual comunista inserido num imaginário global, faz-se referência aque o comunismo aparece para o intelectual como a revelação dos meiosnecessários para alcançar um “estado ideal” de desenvolvimento humano.Nesse estado se sobrepõe uma série de crenças que consistem no caminhocorreto, nos meios necessários e em uma única narração correta, que levarão ahumanidade à construção de um mundo ideal, um mundo sem classes. Nãoobstante, a aquisição dos meios para a mudança só se pode constituir se ointelectual assume uma função determinada dentro da maquinaria do par-tido. Assim o diz Lênin e assim se enfatizou no seio do partido:

[...] es necesario que los intelectuales repitan menos lo que ya nosotros sabe-mos y que nos den más de lo que todavía no sabemos por nuestra experien-cia fabril y “económica”, o sea: conocimientos políticos. Estos conocimien-tos vosotros, los intelectuales, podéis adquirirlos solos y tenéis el deber deproporcionárnoslo cien y mil veces más [...] debéis ofrecérnoslo no sólo en

5 Para este texto relaciono imaginário com ideologia, já que aquele me permite compreender asformas como os intelectuais-funcionários do PCC aderem às lógicas de um aparato doutrinalque em numerosas situações os levou a justificar o injustificável. Assim, concordo com o histo-riador chileno Alfredo Riquelme quando diz que “[e]l uso de este concepto en la historiografíase origina en el reconocimiento de que la vida de los individuos y los colectivos en la sociedadno se limita a las realidades materiales o tangibles, sino que comprende representaciones de símismos que desbordan el límite puesto por la interacción entre la experiencia y la argumenta-ción racional. El imaginario alude, de esta manera, a un vasto y complejo conjunto de repre-sentaciones que se constituyen en las esferas, no solo de las ideologías, sino también de lacultura y las mentalidades […]” (RIQUELME, 2009, p. 42).

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forma de razonamientos [...] sino indispensablemente en forma de denunciasvivas de todo cuanto nuestro gobierno y nuestras clases dominantes hacen[...] (LENIN, 1961, p. 103).

Assim, o intelectual comunista colombiano é entendido em sua posi-ção como funcionário, devido à sua assimilação ao comunismo, apresenta-do na forma de verdades irrefutáveis. Assim lembra o intelectual e funcio-nário do Partido Comunista Colombiano (PCC) Carlos Lozano ao referir-se às lógicas de agir dos comunistas:

[…] estaba esa idea de que todo ya estaba dicho, de que todo estaba ya ago-tado, que simplemente había una especie de recetario, y que tocaba mirarque se podía coger de ahí, que nos orientaba más de lo que Marx o Leninescribieron en sus libros […].6

Ao aceitar que tudo já estava dito na teoria, o intelectual ficou condi-cionado, e isto o levou a assumir e justificar posições que na prática nãoeram coerentes com seus discursos, embora reconhecesse suas funções comoquadro do partido. Afinal, o importante era que a maquinaria do centralis-mo “democrático” funcionasse.

O enquadramento do intelectual comunista dentro de um imaginárioglobal leva-me a pensar nele também como um homogeneizador de ideias.Segundo o intelectual italiano Antonio Gramsci, todos os homens podemser intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de intelectual(GRAMSCI, 1967). Isso quer dizer que, num determinado grupo social oubloco histórico, alguns sujeitos são chamados a dar coerência às ideias quehomogeneízam e delimitam a atuação do grupo. Isto significa que, além deserem portadores das características que os relacionam à atividade intelec-tual7, aquilo que me permite identificar os intelectuais do PCC como inte-lectuais-funcionários é seu papel dentro do processo de homogeneizaçãodas ideias comunistas na Colômbia8. Assim, os intelectuais têm a função deconfigurar as formas culturais e ideológicas que dão unidade ao grupo co-

6 Entrevista com Carlos Lozano, 31 de março de 2011.7 Neste aspecto é importante sublinhar que os intelectuais-funcionários aos quais se faz referên-

cia neste trabalho se identificam por serem docentes universitários, pesquisadores e escritores,representando o que Gramsci chama de trabalho intelectual.

8 Deve-se esclarecer que com esta afirmação não pretendo reduzir o complexo campo do comu-nismo colombiano à opinião dos comunistas afiliados ao PCC. No entanto, não é de meuinteresse debater neste curto texto as múltiplas posições que a esquerda em geral tinha sobre ocomunismo como ideologia. Para aprofundar-se neste debate, pode-se ver o trabalho do profes-sor Archila (2009) sobre a história das esquerdas na Colômbia.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

munista, condição necessária para exercer hegemonia sobre outro gruposocial.

Deste modo, os intelectuais não foram uma classe alheia à massasocial, pelo contrário, constituíram-se na sua relação orgânica com a classesocial que representaram ou pretenderam representar. Por conseguinte, ocaráter orgânico dos intelectuais que outorga homogeneidade a um gruposocial foi uma ferramenta fundamental para caracterizar os intelectuais doPCC. Porquanto, o desafio para os sujeitos desta história foi procurar ahomogeneidade do grupo a partir da perda de seu principal referente.

Abordar o intelectual como sujeito histórico permite-me enfatizar suasubjetividade em contraposição à objetividade que pretendiam ter, já queos protagonistas desta história, além de estar imbuídos dos marcos da ideo-logia, também foram afetados pelo conjunto de condições do espaço socialdentro do qual se desenvolveram. O intelectual é uma construção socialque corresponde à sua época (ALBA, 1976) e, neste sentido, não pode sertratado como um extraterrestre, pelo contrário, deve ser enquadrado sob aslógicas de todos os seus condicionamentos materiais, impostos pela con-cretização do momento histórico.

O intelectual também está determinado pelas lógicas que compõemseu campo intelectual, construído pelas forças de detenção de certo capitalsimbólico. Isto é, finalmente, aquilo que permitiu aos intelectuais apresen-tar “interesses particulares” como “interesses universais, comuns ao con-junto do grupo [que representam]” (BOURDIEU, 2002, p. 10). Nesta pers-pectiva, e entendendo que o campo “es el producto de un proceso histórico[y por lo mismo], este sistema no puede disociarse de las condiciones histó-ricas y sociales de su integración [...]” (BOURDIEU, 1967, p. 145), é neces-sário localizar o intelectual comunista no seu contexto sociopolítico, com ofim de ir além das simples lógicas do condicionamento ideológico. Comisto quero afirmar a importância que teve o contexto de violência e repres-são no condicionamento das leituras feitas pelos intelectuais do partido, eque apresentarei mais adiante.

O último elemento que quero salientar no âmago do ser intelectual éa concepção que Edward Said propõe em seu texto Representaciones del inte-lectual (1996). No texto, Said fala sobre um intelectual comprometido, aqueleque, sendo estrangeiro em seu próprio território e em sua solidão construí-da pela força de seu ofício, é capaz de dizer a verdade ao poder, constituin-

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do-se num sujeito duro, eloquente9, imensamente corajoso e aguerrido(1996). Pontualmente, o que me interessa na proposta de Said é o caráter decompromisso que o intelectual adquire para revelar as contradições do mun-do. Aqui quero relacionar o compromisso com a função, pois esta função dointelectual, no caso do intelectual comunista, levou-o à escolha do cumpri-mento de seu trabalho dentro da organização partidária, aquilo que lhepermitiria encarnar o apparatchik, já que, num primeiro momento, ele é oaparelho (partido) feito homem (BOURDIEU, 2002). É sua função revelaro mundo aos demais homens, para que assumam suas responsabilidades(SARTRE, 1969). Com isto, a contradição do intelectual-funcionário seagravou ainda mais.

O intelectual-funcionário é, então, um sujeito carregado de subjetivi-dade, multiplicidade e imerso num processo de configuração histórica (vergráfico1)10. Assim, proponho a construção de um marco flexível para inter-pretar o intelectual do PCC nas contradições próprias do contexto que teveque viver, e os conflitos ontológicos que teve que enfrentar entre sua funçãodentro de um aparato burocrático e sua capacidade de ler criticamente omundo.

9 Visto desde a distância, tanto espacial como temporal, a eloquência (assumida também comocoerência) não pode ser atribuída ao intelectual comunista. Mas como romper então os juízosde valor e estudar o sujeito ou o ser do intelectual na sua forma concreta de existência e repre-sentação dentro da sua realidade? Deve-se então admitir, pelo menos nos limites desta propos-ta, que dentro do mundo vivido pelo intelectual comunista ele se assumiu como um sujeitoeloquente.

10 O gráfico permite construir uma imagem do campo dos intelectuais comunistas e, a partir daí,conhecer as correlações de força em que se desloca o intelectual /intelectual-funcionário. Além disso,permite detonar as miradas simplistas sobre um processo de aceitação e transformação intelectual,colocando os sujeitos de estudo no espaço onde se constroem as regras de seu campo.

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Em suma, o intelectual-funcionário foi condicionado por três lugaresinterconectados de enunciação que corresponderam: 1) à sua materialida-de, isto é, à sua concretização como um sujeito histórico, permeado peloseu contexto social, político e econômico; 2) ao seu caráter orgânico, ouseja, à sua intencionalidade de dar coerência a um grupo social determina-do11; 3) ao seu compromisso com um projeto de sociedade que, bem oumal, tem configurado sua cosmovisão.

2. O contexto

Entre 1985 e 1986, abriu-se para os intelectuais do PCC, e para aesquerda em geral, um período de expectativas marcado por dois fatos queafetaram diretamente seu campo de ação. Por um lado, no nível nacional, esob o abrigo das conversações de paz entre a guerrilha e o governo da Co-lômbia, as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC-EP)12 decidi-ram criar um partido político de esquerda, a Unión Patriótica (UP)13, quepossibilitou a convergência política de um amplo setor da esquerda nacio-nal. Entretanto, no plano internacional, os olhos do mundo comunista vi-ram chegar ao poder do influente Partido Comunista da União Soviética(PCUS) o “moço” Mikhail Gorbachev, em 11 de março de 1985, figuraparadigmática que foi considerada pelos divulgadores do PCC como um“gran organizador […] con una excelente capacidad política”14.

Com isto, pode-se pensar que o intelectual-funcionário do PCC seviu mergulhado num contexto no qual devia responder a dois fenômenosideológicos complexos. No plano local os intelectuais-funcionários acha-vam uma possibilidade de participação política. E no plano global deviamtentar interpretar um fenômeno que demarcava uma transição no seio docomunismo mundial15. Isso era, segundo o intelectual-funcionário, dar acara à “juventud del socialismo”16, tanto no nível local como no global.

11 Neste caso, corresponde à militância do partido comunista.12 Para uma historia das FARC-EP ver Arenas (1982); Pizarro (1991; 2011); Ferro & Ramon

(2002); Pécaut (2008).13 Ver Buenaventura (1985); Campos (2003); Dudley (2008).14 Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985.15 Segundo o historiador chileno Alfredo Riquelme, não se trata simplesmente de considerar as rela-

ções dos intelectuais do PC com a URSS como um fator de incidência exterior, e sim de entendercada dimensão da história nacional durante esse período, imbricada em outras histórias.

16 Semanario Voz, p. 13, 14 mar. 1985. Grifo meu.

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2.1 A relação FARC-UP-PCC como contexto interno

O pano de fundo no qual os intelectuais-funcionários do partido cons-tituem a conversão de seus olhares frente à sua concepção do mundo cons-titui-se por dois fenômenos contraditórios. Por um lado, vivia-se um perío-do de aumento significativo da violência, e, por outro, iniciava-se um pro-cesso de paz que, como veremos, nascia morto.

Ao iniciar a década de oitenta, os esforços do país se centraram numprocesso de paz com as guerrilhas. Este esforço se constituía numa urgên-cia, devido ao recrudescimento da violência e ao descontentamento social(PÉCAUT, 2006); no entanto os diálogos de paz, segundo o historiadorMauricio Archila (2009, p. 85), estiveram destinados ao fracasso:

[...] no solo porque se desarrollaban en medio de la guerra, manteniendocada parte una agenda oculta para fortalecerse militarmente, sino porque seagigantaba el paramilitarismo, alimentado ahora por instituciones como lascooperativas Convivir, por los lazos con sectores de las Fuerzas Armadas ylas elites regionales, y especialmente por la financiación del narcotráfico,que salpica también a la insurgencia en forma creciente.

Assim, no âmago do PCC objetivou-se o agravamento da crise, como fim de fazer aumentar as perspectivas de transformação que operavamsob o processo de paz. Na declaração política do XIV congresso, realizadoem novembro de 1984, exprimia-se que:

La nueva situación que apunta en el país significa una profundización de lalucha de clases y una ruptura del inmovilismo político. Es un resultado, enprimer término, de los acuerdos de cese de fuego iniciados con el pacto deLa Uribe, entre la Comisión de Paz y las FARC-EP, seguido por los acuerdosdel gobierno con el M-19, el EPL y el ADO. Pero es también la consecuenciade las múltiples luchas de los trabajadores, el pueblo y las corrientesprogresistas, en los más variados frentes del combate popular, en un momentoen que la crisis económica debilita la capacidad de maniobra de la oligarquíay pone en movimiento a grandes masas populares que se empobrecen díatras día.17

A nova situação a que se refere o PCC converge na crença que tinhaa esquerda radical de que as condições objetivas para a revolução estavamse apresentando (PÉCAUT, 2006; DELGADO, 2007). Este pensamentoconjurado pelos intelectuais-funcionários18 permite estabelecer uma rela-

17 “Declaración Politica del CC del PC” p. 1. Revista Puntos de Vista, n. 16, 1985.18 Aqui se pode observar que a dialética entre o funcionário e o intelectual é superada pelo fun-

cionário. O objetivo era homogeneizar a posição do Partido de qualquer modo.

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ção entre as guerrilhas e os partidos de esquerda radical, que o historiadorDaniel Pécaut definiu como a “Constelación FARC-Unión Patriótica-Par-tido Comunista”. Esta constelação se baseou na premissa de que

[t]anto la UP como el Partido Comunista estaban convencidos de que habíallegado la hora de “profundos cambios democráticos” y que la coyuntura[era] “prerevolucionaria”. Los activistas de los dos grupos canalizaron losmovimientos de protesta; esto no les impidió incitar a los sectores popularesa “insurgir” contra el ascenso del “fascismo” (PÉCAUT, 2006, p. 359).

Esta relação formou o cenário sobre o qual se apresentaram os dife-rentes níveis de interpretação, tanto da realidade colombiana como do pa-pel desempenhado pelo PCC dentro dela. Este cenário foi determinado peloavanço das guerrilhas, que tiveram suas causas no crescimento das tensõessociais, na insuficiência das políticas públicas, na disponibilidade de jovenssem perspectivas, assim como na acumulação de recursos por parte dasguerrilhas, graças ao novo controle do cultivo da planta de coca (PÉCAUT,2006). Além disso, houve uma crescente fidelidade da população ao pro-cesso guerrilheiro, devido ao estabelecimento de proteção por parte da guer-rilha e à construção de uma ordem que substituiu as carências do Estado elimitou as pressões de militares e narcotraficantes sobre algumas regiões.

Finalmente, no tocante às expectativas abertas pelo processo de paz eas atuações da guerrilha no seio da esquerda, apresentou-se, como já men-cionei, a construção da U.P. Este novo partido político foi

una propuesta política [...], ideada por Jacobo Arenas19, surgida de los anhe-los de paz y de los acuerdos logrados en 1984 por el gobierno con las FARC,[propuesta que] fue víctima de la más feroz campaña criminal contra la direc-ción de un grupo político jamás vivida en Colombia (MORENO, 2001, p. 42).

Deste modo, as estratégias da extrema esquerda e das guerrilhas en-traram num processo que Pécaut chamou “la modernización de las reacio-nes” e que se concretizou porque as reações tanto das FARC como da U.P secentraram na realização de atos de protesto “frecuentemente muy pacífi-cos”. Foram atos dentro dos quais se observou uma manifestação de auto-ridade dos dirigentes e intelectuais comunistas (PÉCOUT, 2006, p. 358-

19 Foi um guerrilheiro colombiano, liderança ideológica das FARC-EP, e uma de suas principaisfiguras durante as décadas de oitenta e noventa. Antes de integrar as FARC, Arenas foi mili-tante ativo do PCC, e suas posições sempre estiveram contra a tendência intelectual do PC.

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359) e nos quais se delineou, estrategicamente, sua antiga proposta de com-binação das formas de luta20.

O papel dos intelectuais-funcionários consistiu em articular três obje-tivos históricos: a autodefesa das massas contra a violência reacionária, acombinação de todas as formas de luta e a transformação da autodefesa emluta guerrilheira. Esses objetivos reforçaram a dualidade do intelectual co-munista frente à luta democrática e à luta armada (PIZARRO, 1991; DUD-LEY, 2008; DELGADO, 2009).

No interior do partido, os intelectuais confrontavam a sua dualidade:a crítica ao partido a partir de sua postura como intelectuais ou a aceitaçãomuda das contradições como funcionários, como quadros absorvidos pelopartido. A crise explodiu. Gilberto Vieira21 saiu da secretaria geral do parti-do em 1991 após um longo período de luta e liderança, mas sua saída foi olimite da contradição que há anos se vivia no interior do PCC. Por um lado,agravou-se o enfrentamento interno dos intelectuais-funcionários, entre ospartidários da glasnost e da perestroika e os setores ortodoxos. Além disso, acrise se fortaleceu pelo “aire renovador que impuso desde la Unión Patrió-tica gente con mentalidad abierta como Bernardo Jaramillo22 y José Ante-quera23” 24.

Num discurso pronunciado por Álvaro Delgado durante o XVI Con-gresso do partido, realizado em agosto de 1991, o intelectual advertia que“[e]l partido está acabando. Actuando más por defecto de los atropelladoscambios en el mundo del socialismo que bajo una convicción sincera de

20 A combinação de todas as formas de luta foi contemplada pela primeira vez no PCC duranteseu Congresso nº 11 em dezembro de 1971. Neste congresso se começou a considerar a lutaarmada como algo inevitável e necessário para a revolução colombiana (DELGADO, 2008),mas, com o passar do tempo, esta estratégia foi se convertendo numa doutrina que tinha vidaprópria, “[...] en un credo que no podía ser cuestionado bajo ninguna circunstancia” (DUD-LEY, 2008, p. 59). Também se deve observar que esta estratégia pretendia harmonizar as pers-pectivas da luta armada com as lutas politicas e sociais que aconteciam no país, embora tam-bém pretendesse dar uma resposta à pugna sobre as vias da revolução encarnada na cisãochino-soviética dos anos 60.

21 Intelectual e secretário do PCC entre 1947 e 1991.22 Liderança das lutas agrárias do país, militou no PCC e foi presidente da Unión Patriótica. Foi

assassinado por grupos de extrema direita em 22 de março de 1990.23 Reconhecido intelectual das Juventudes Comunistas de Colombia (JUCO) e, por um curto perío-

do, secretário do PCC. Também foi dirigente nacional da Unión Patriótica. Foi assassinado porgrupos de extrema direita em 03 de março de 1989.

24 El Tiempo, 24 nov. 1991. Citado ap. MORENO, 2001, p. 19-48.

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renovación y reencuentro con los colombianos […]”25. Esta crise tambémfoi precedida pela saída de mais de 30 intelectuais-funcionários do partido;assim apresenta o jornal El Tiempo em 24 de novembro de 1991: “a la luz dela lectura de los documentos de renuncia y de las reacciones aparecidas en‘Voz’, son las revelaciones de guerra sucia interna que se estaba viviendodentro del PCC”.26

Finalmente, deve-se falar da violência que permeou todo o períodode estudo e estourou o campo intelectual dos comunistas na Colômbia.Não precisando aprofundar-se muito nos dados para entender a magnitudeda situação, basta dizer que por volta de 1993 as forças de direita do paístinham exterminado “7 congresistas, 13 diputados, 11 alcaldes, 69 conceja-les y alrededor de 3.000 dirigentes y militantes de base”27 que tinham rela-ção com a esquerda. Nesse cenário, as palavras de Jaime Caycedo28 cobramcrucial relevância: “como pensar teóricamente en lo que pasaba cuandotodos los días teníamos que enterrar a un camarada[?]”.29

Desta maneira se constitui o conjunto de circunstâncias internas nasquais se desenvolveram as lutas pela imposição de sentido, protagonizadaspelos funcionários-intelectuais do PCC. Além disso, neste marco se desen-volveu a luta interior do ser intelectual da qual se falou no primeiro trechodeste texto. Agora apresentarei o contexto global, representado no desafioque a interpretação da queda do mundo comunista pelos intelectuais dopartido implicou, que é outro fenômeno que expõe a dualidade entre ofuncionário e o intelectual.

2.2 Perestroika: a ruptura no nível global

A perestroika é o ponto de não retorno no qual as construções teóricasdos funcionários-intelectuais do PCC são condicionadas pela necessidadedos questionamentos. A queda do “socialismo real” foi um acontecimentoque causou impacto no campo intelectual no todo mundo, chegando-se

25 Discurso de Álvaro Delgado no 16º Congresso do PCC (p. 4 e 5).26 El Tiempo, 24 nov. 1991.27 Corporación para la Defensa y Promoción de los Derechos Humanos REINICIAR, n. 1, p. 4, fev. 2005.28 Secretário-geral do PCC, docente da Universidade Nacional da Colômbia e vereador de Bogo-

tá. Foi vítima de diversos atentados, durante a década de 80 esteve perto da morte, fato peloqual teve que sair do país. Em 1994 assumiu a secretaria geral do PCC, depois do assassinatodo intelectual-funcionário Manuel Cepeda Vargas, que era o secretário.

29 Entrevista com o intelectual Jaime Caycedo Turriago, 19 de abril de 2011.

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inclusive a propor o fim das ideologias e o fracasso total do marxismo-leninismo como cosmovisão válida para a interpretação da realidade social.No interior do PCC, este acontecimento provocou um ambiente de ceticis-mo que caracterizou a saída atomizada, mas significativa, de funcionários-intelectuais do seu interior30.

Mas que foi a perestroika? E que significou para a conversão de olha-res do intelectual comunista? A perestroika foi concebida como um conjuntode reformas aplicadas na União Soviética entre 1985 e 1992. Esta reformatinha por objetivo a liquidação do sistema burocrático-autoritário, para cons-truir um organismo social baseado na democracia e autogoverno (GOR-BACHEV, 1993). Evidentemente o plano falhou. Em pouco tempo, as polí-ticas de reforma que pretendiam combater o estancamento econômico e oextremo burocratismo levaram à destruição de todo o sistema socialista.

Aliás, este processo de destruição foi reforçado pelo crescente desejosocial de reformas imediatas, principalmente nos países satélites do PCUS,desejo que, nas décadas anteriores, refletiu-se nos protestos da Hungria(1956), na greve dos operários industriais da Polônia (1956) e na primaverade Praga de 1968 (SERVICE, 2009; HOBSAWM, 1995). Assim, o impulsoacumulado de uma necessidade urgente de mudança, além de uma cegacompetição armamentista contra o Ocidente, levou a URSS a desmoronarfrente aos olhos atônitos do mundo. O intelectual comunista Jose Arizala31

expressou em lacônicas palavras o sentimento da contradição intelectual:“Hoy sabemos que […] las promesas no se cumplieron. Algo más. Que lascosas marchaban hacia un colapso de los gobiernos de los países del Esteaún más dramático del que hemos sido testigos” (ARIZALA, 2007, p. 240).

A perestroika instaurou o ponto de inflexão no qual a teoria marxistafoi posta à prova em relação à prática real de seu agir. Configurando-se

30 Segundo Delgado, “[l]a desbandada intelectual de los años 90 fue la segunda más grave en lavida del partido, después de la que se presentó como efecto del ascenso de la violencia políticadesde mediados de los años 40 hasta la implantación del frente nacional en 1962. Pero a dife-rencia de la primera, en la de fines del siglo pasado el resorte no fue propiamente el agravami-ento del fenómeno represivo gubernamental sino el copamiento de las filas partidarias por laintolerancia política y la decapitación de las delgadas normas democráticas que presidian lavida interna del partido” (DELGADO, 2009, p. 60). Note-se que neste ponto já são dois osfatos que levaram à saída de militantes do seio do PC.

31 Durante a conjuntura, ele se encontrava na zona do bloco soviético como representante dopartido no jornal internacional (ARIZALA, 2007).

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como uma reforma necessária e intensa em nível econômico e social, aperestroika tentou solucionar as fortes contradições entre os níveis estrutu-rais e superestruturais que se acumularam na sociedade soviética duranteas décadas de setenta e oitenta. Segundo o historiador soviético Kiva Mai-danik, a perestroika era uma superação das debilidades, defeitos e deforma-ções, que permitiu encarnar em toda a sua amplitude os ideais de Marx eLenin (HARNECKER, 1987).

Não é de meu interesse mergulhar aqui no já longo debate sobre aqueda do socialismo real32. A referencia só será utilizada para marcar o fatocomo “divisor de águas” da figura do intelectual-funcionário. Já que, de-pois de tal acontecimento, o mundo dos “camaradas” corre atrás deles,parafraseando um grafito nos muros da Sorbonne durante as mobilizaçõesde 196833. Ainda que esta referência seja anedótica, pode-se lê-la como apremonição da queda, declarada nos muros e lemas da revolução do “siste-ma mundo” de 1968 (WALLERSTEIN, 1989).

Em termos gerais, pode-se dizer que a atitude do PCC e da esquerdanacional frente ao processo de transformação do mundo socialista foi simi-lar à atitude do resto da esquerda na América Latina. O mexicano JorgeCastañeda (1994) oferece um panorama amplo ao afirmar que a esquerdalatino-americana não soube como responder ao derrubamento do socialis-mo. A princípio, os partidos comunistas tradicionais reagiram de um jeitoformal e simplista. Constantemente insistiu-se que as mudanças do mundosocialista não implicavam mais que uma prova adicional da vitalidade dosocialismo e de sua capacidade de renovação. O peso dos funcionários fezseu trabalho na coerção da crítica do intelectual.

Segundo o historiador colombiano Mauricio Archila, todo o proces-so de derrubamento do sistema socialista ocasionou, em primeira instân-cia, que os partidos comunistas foram duramente criticados, somando-se aisto que “la centralidad y el universalismo de la clase obrera se relegaran alpasado” (2009, p. 81). Neste contexto, apareceram no horizonte novosmovimentos sociais que agenciaram, sob suas numerosas formas de ação, adescentralização das lutas contra o capitalismo tardio, deixando em evi-

32 Algumas referências sobre este tema foram trabalhadas na minha dissertação (MORENO,2011, p. 26-70). Também se pode estudar a seguinte bibliografia: Fazio (1992); Gorbachev(1987, 1993); Harnecker (1987); Poch-De-Feliu (2003); Ferro (1990).

33 Grafito aparecido nos muros da Universidade de Sorbonne na França em 1968.

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dência o estancamento do PCC, perceptível de há vários anos (PIZARRO,1991, p. 24).

Neste cenário, a ruptura se fez evidente. O mundo muda vertiginosa-mente, e o que antes parecia uma verdade revelada hoje é só uma recorda-ção. O sólido se desmancha no ar, e a velocidade se apropria dos ritmos dotempo. Os intelectuais-funcionários têm que assumir sua realidade, sua cri-se. A sua batalha interior de transformação está em seu ponto culminante.

3. A contradição34, a crise, a reconstrução da esperança

A transgressão das análises da realidade pela defesa apaixonada daideologia é uma constante contradição dos funcionários-intelectuais. Aque-les sujeitos que tiveram que justificar a validade do comunismo, contra oserros de seu ponto de referência, entraram numa etapa em que as contradi-ções de anos de silêncio saíram à luz.

Um exemplo histórico que oferece luzes sobre o conflito latente entreo intelectual e seu papel como funcionário se apresenta na experiência vivi-da pelo intelectual e militante do PCC Nicolas Buenaventura, que no anode 1992 escreveu o livro ¿Que pasó, Camarada?35. Desse texto é interessanteum episódio em particular. Buenaventura conta que, durante a década deoitenta, foi chamado a participar de uma assembleia sindical como repre-sentante do PCC. Nessa assembleia, um grupo de operários empenhou-seem fazer uma resolução de protesto contra o PCUS pelo confinamento empresídio do cientista russo Andrei Sakharov, que em 22 de janeiro de 1980foi levado à cadeia por seus protestos públicos contra a invasão soviética doAfeganistão em 1979. A ese respeito diz Buenaventura: “[…] la misión míaera sencillamente detener esa resolución” (1992, p. 29).

Como intelectual e funcionário do PCC, Buenaventura confessa queassumiu a tarefa de elaboração de um discurso “persuasivo”, que permitiudissuadir este grupo de operários. Com este fim, construiu toda uma disser-tação a respeito da diferença entre democracia capitalista e democraciaoperária, que finalizou da seguinte maneira:

34 Neste caso, a contradição não pretende gerar uma imagem idílica e oposta entre aquele inte-lectual do qual Julien Benda (2008) sentia saudade e o intelectual apolítico cooptado pelopartido. Só se pretende sublinhar a existência de uma contradição dentro de um mesmo ser.

35 Neste texto, o intelectual (que militou no PCC por mais de 40 anos) fala de sua experiência eexprime diversas críticas ao partido.

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Yo pregunto a ustedes, compañeros, les pregunto. ¿Es que acaso le vamos apermitir nosotros a esta minoría que llore, que chille? ¿Es que vamos a tole-rarle que se pasee con carteles frente a la fábrica protestando contra la huel-ga? […] ¡Yo pienso que no!, compañeros. Y estoy seguro de que ustedespiensan igual, -añadí-. Y por eso digo: ¡No! En la democracia socialista no.Allí manda la mayoría, una mayoría real, difícilmente construida y estructu-rada, a menudo con mucha sangre y sacrificio. Pero ¡la minoría no!, no pro-testa, no llora, no chilla. No tienen ese derecho.

Comencé a insistir sobre la tesis de Lenin en el sentido de que con el gobier-no obrero las cosas van en serio. Que allí no hay juegos. Y ello por unarazón, porque la democracia allí es verdad o sea que es el gobierno de lamayoría. Fue así como se enterró el proyecto de resolución de la asambleasindical a favor de la excarcelación de Sájarov en la URSS (BUENAVEN-TURA, 1992, p. 34-35).

Reafirmam-se todas as peripécias dos intelectuais comunistas paracobrir os erros do regime soviético. Mas esta experiência exposta pelo Bue-naventura não finaliza aqui. A contradição estava por chegar. O mesmointelectual termina seu relato da seguinte forma:

[…] la noticia de la libertad de Sájarov ordenada por el jefe del gobierno yprimer secretario del partido soviético Mijaíl Gorbachov […] me impactódemasiado [sic] por una circunstancia casual. Se encontraba conmigo, cu-ando la escuchamos, en reunión de partido, a través de un noticiero televisa-do, el camarada dirigente obrero que me había acompañado a la “asambleasindical” mencionada y que me había apoyado y felicitado mucho, enton-ces, por la “claridad” y la eficacia de mi “intervención” en ese momento[…] concluida la noticia, los dos, él y yo, nos miramos a los ojos. Éramosiguales, igualmente honrados. Pero no había nada qué argumentar. Esto noestaba en el orden del día, había que concluir la reunión (BUENAVENTU-RA, 1992, p. 35; grifo meu).

Trata-se de contradições obstinadas, no entanto esclarecedoras da faltade coerência que inundou o campo intelectual do comunismo colombiano.Os intelectuais-funcionários, como disse o professor Buenaventura, foramficando sozinhos em um caminho cheio de meias-verdades e mentiras de-fendidas com firmeza. Era uma solidão cadavérica que se introduziu entreos ossos de um partido e de sujeitos que, devagar, assistiram à dissolução deseu sonho. Dali em diante tiveram que repensar o caminho andado, masdesta vez com os olhos bem abertos.

Contudo, como as contradições podem constituir o campo intelectual?Como as forças que impulsionam as cosmovisões dos intelectuais, ou seja, asformas em que os condicionamentos objetivos (violência social e queda dosocialismo real) e subjetivos (sua capacidade de crítica e análise dos contex-

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tos dentro do PC) mexem nas regras do jogo e determinam o que o intelec-tual pode ou não pode falar ou fazer? Assim se estrutura a transformaçãosilenciosa de um campo inteiro.

Outra comprovação das contradições que constituem o campo podeser vista no acompanhamento de um espaço particular no PCC. Os inte-lectuais-funcionários agiram dentro do Centro de Estúdios e InvestigacionesSociales (CEIS), que se configurou como um projeto com sucesso desde adécada de setenta, pois esteve dirigido ao fomento do estudo da realidadenacional, baseado nas necessidades criadas pelo devir da luta política (DEL-GADO, 2009). Entre as décadas de setenta e oitenta, o CEIS se constituiuno espaço a partir do qual os intelectuais operaram em apoio à crítica pú-blica ao Estado e à homogeneidade ideológica do PCC. Por esta razão, aoacompanhar a trajetória deste centro, podem-se evidenciar as característi-cas do contexto intelectual do comunismo na Colômbia e a lógica de de-senvolvimento da sua luta interior frente à ruptura ideológica representadapela queda do socialismo real.

Do mesmo modo como a contradição rachou o sujeito intelectual,ela também desestabilizou o CEIS. No meio da década de oitenta, o CEISe o jornal Margen Izquierda36 deixaram de existir devido a três elementosfundamentais. Primeiro pelo difícil contexto de segurança para a esquerdacolombiana, no marco do aumento da violência interna. Segundo, o CEISse transformou num foco de crítica e autocrítica ao socialismo real. De talmodo lembra-o Carlos Lozano numa entrevista:

[…] me acuerdo que el CEIS estuvo a punto de que lo clausurara el partidoporque en un curso se le hicieron algunas críticas a la república democráticaalemana y había unos alemanes que habían invitado, y entonces los cogióNicolás Buenaventura y les metió un regaño a esos pobres alemanes, y ladirección iba a acabar con el CEIS por eso.37

O terceiro fato que levou ao fechamento do CEIS foi, como afirmaÁlvaro Delgado (2009), a determinação do partido de afirmar seu compro-misso com a luta armada, como via para a revolução social, incentivando,assim, o desmantelamento do núcleo de intelectuais orgânicos que dirigiamo CEIS e eram opostos a tal caminho. Sob esta forma, expõe-se uma posi-ção enviesada e retrógrada que caracteriza o PCC e que se complementa

36 Órgão de difusão do partido.37 Entrevista, 31 de março de 2011.

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com uma posição que não tolerava dúvidas públicas sobre o processo daesquerda no nível global (ARCHILA, 2009).

Assim, o CEIS se constituiu numa força centrífuga que depurou ocampo intelectual e exigiu uma tomada de posição. O PC, a violência dedireita e o deslocamento da reflexão esmagaram o CEIS e fecharam o cam-po de ação intelectual. E, nesse contexto, a esquerda viveu um lento processode aceitação da crise e de câmbio geracional, que quebrou os antigos olharesortodoxos, embora ainda não tenham sido esquecidos por completo.

3.1 A crise

Em 1980, o jornal mexicano Dialética publicou uma entrevista comos filósofos franceses George Labica e Etienne Balibar, na qual disseram:

[…] El primer problema [que se quería] plantear es si [ellos] piensan queexiste verdaderamente una crisis del marxismo, y si existe, cuáles son lospuntos, digamos las causas básicas de la crisis, o cómo abordan [ellos] elproblema.38

Nessa entrevista, os filósofos fizeram uma série de afirmações queratificaram a evidente existência de uma crise no interior do marxismo,entendendo que esta se achava “no coração da teoria”39.

Faço referência a esta publicação com o fim de acentuar a tardançacom que foi assumido o debate da crise no âmago da intelectualidade co-munista. Só dez anos depois (1990) esta entrevista será citada num apare-lho de difusão comunista na Colômbia40. Com isto não pretendo dizer quenos círculos intelectuais do PCC não houvesse um conhecimento prévio detal debate, mas o que se consegue ver é que foi só na década de noventa queos intelectuais do PCC assumiram a crise e começaram a introduzi-la emseus próprios debates. São duas as perguntas pertinentes ao fenômeno decrise dentro do campo da intelectualidade comunista. Em primeiro lugar,cabe perguntar pelas razões da tardança com que foi assumido o debate dacrise. E, em segundo, é importante questionar a forma como foi assumidoesse debate, ou seja, as posições construídas pelos intelectuais-funcionáriosna sua virada.

38 Dialéctica, n. 8, p. 113, jun. 1980. Grifo meu.39 Ibid.40 Ver: Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 1-3, abr. 1990.

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A primeira questão só pode ser entendida ao se examinar as condi-ções sociais em que viveram os comunistas em geral na década de noventana Colômbia. Deve-se, então, fazer referência à perseguição e ao extermí-nio de que foram vitimas, e a que fiz referência anteriormente. A violênciacontra a militância de esquerda gerou um progressivo adiamento do debateteórico.

A segunda questão sobre a posição dos intelectuais frente à crise podeser respondida ao se acompanhar os textos escritos nas suas publicações41.Para eles, “[e]l marxismo [solo] entraría en crisis cuando ya no pueda decirnada sobre los problemas que agobian al hombre contemporáneo”42. Nestesentido, o marxismo ainda era válido, já que as condições de contradiçãosocial nas que vive a sociedade são claras e evidentes. Já nas reflexões feitaspelo intelectual comunista Gilberto Vieira entre 1993 e 1995, o funcionáriodo PCC afirmava:

Consideramos que […] lo que ha fracasado no es la teoría marxista-leninistasino su deformación; y de allí se desprende una enorme cantidad de leccio-nes y de enseñanzas que es necesario profundizar en un estudio colectivoque tenga en cuenta los principios esenciales del marxismo (cit. ap. FAJAR-DO, 2005, p. 209).

Na mesma linha, podem-se encontrar artigos em que os intelectuais-funcionários faziam referência a uma crise do socialismo como prática. Porexemplo, no mesmo ano o intelectual Nelson Fajardo43 escreveu um artigointitulado Aproximaciones hacia una crítica sobre la crisis teórica y práctica delsocialismo, em que expõe como propósito:

[…] elaborar algunos planteamientos en torno a la actual discusión sobre lasperspectivas de la teoría clásica del cambio revolucionario, la forma comoeste avanzó y se distorsionó en su implementación práctica, generando laactual crisis que requiere en la perspectiva de la reconstrucción del proyectotransformador.44

Assim, o papel dos intelectuais do partido, consciente ou inconscien-temente, visou à procura de uma nova racionalidade que lhes permitissepensar um modelo superior de socialismo45. No mesmo sentido, nos escri-

41 Neste ponto só me interessarei pelos escritos das pessoas que ainda são militantes ativos.42 Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 23, abr. 1990.43 Professor universitário e dirigente nacional do PCC.44 Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 50, abr. 1990.45 Ibid., p. 58.

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tos do professor Sergio de Zubiria Samper46, intelectual e membro do Co-mitê Central do PCC, encontram-se ideias que tentam ir além da crise. Ointelectual pretende fazer o resgate do marxismo como teoria possível eviável para a leitura crítica da realidade, a partir das propostas da escola deFrankfurt:

Reflexiones expresas sobre el marxismo hoy y el concepto de crisis han sidoelaboradas por Marcuse y Habermas. Textos invaluables en esta tarea son “Ladialéctica marxista” (1936), “El marxismo soviético” (1958) del primero, y“Problemas de legitimación del capitalismo tardío’ (1973), “La reconstruc-ción del materialismo histórico” (1976) del segundo.

Marcuse dedica su esfuerzo a elaborar una crítica inmanente del marxismosoviético en sus tendencias leninistas, estalinistas y postestalinistas,desarrollando sus consecuencias ideológicas y sociológicas; mientrasHabermas reflexiona sobre las nociones de crisis y reconstrucción en lasciencias sociales […].47

Fica em evidência uma multiplicidade de fatores que incidiram naapropriação de um discurso por parte do conjunto de intelectuais-funcio-nários comunistas. Em primeiro lugar, a relativa dilatação de tal discursodevido às precárias condições do debate interno. Em segundo lugar, a posi-ção a partir da qual os intelectuais-funcionários defenderam o terreno emque eles se desenvolvem, ou seja, o plano das ideias48; assim, assumiramque a crise se encontra só no cenário da prática. Mas também se faz eviden-te uma nova maturidade intelectual caracterizada pelas análises críticas sobrea experiência. Uma mostra disto se encontra nas referências à teoria clássi-ca que Vieira deixara antes de morrer:

[…] los clásicos del marxismo concibieron su teoría como una guía para laacción y no como un dogma de fe; actitud, esta última, que condujo a ladogmatización y esquematización del marxismo y del leninismo por partede amplios sectores del movimiento comunista mundial, con graves defor-maciones para la teoría como [para] la práctica socialista (cit. ap. FAJAR-DO, 2005, p. 209).

Portanto, pode-se reconstruir o curso de desenvolvimento do pensa-mento comunista em geral, e dos intelectuais-funcionários em particular,

46 Professor universitário e reconhecido filósofo.47 Ibid., p. 22. Grifo meu.48 Aqui não me interessa entrar no debate da distinção entre a teoria e a prática e a forma em que

os intelectuais comunistas assumem tal relação, devido a que, em última análise, o intelectualé um sujeito que trabalha no campo das ideais.

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sempre marcado por uma experiência frustrada pela fragmentação, e que,além disso, contribuiu para a formação de um sujeito particular, um inte-lectual filho de seu tempo e das condições de leitura que lhe permitiram suarealidade, seus medos e suas angústias. Esta atitude é encarnada em umafrase do intelectual Jaime Caycedo: “o inventamos o perecemos, compañe-ro […] y esa es la función de la intelectualidad comunista, reinventar lasposibilidades de cambio” 49.

3.2 A reconstrução

Progressivamente se discute o caráter de reconstrução que exige olabor dos intelectuais no campo comunista. Essa reconstrução envolveu areleitura teórica a partir do prisma pluridimensional da teoria marxista-leninista, que foi tirada do sagrado, para introduzi-la (na imaginação pró-pria da utopia) em uma realidade concreta, determinada pelos ventos daperestroika, pela violência da conjuntura nacional e pelas profundas contra-dições do comunismo local e global. Este foi, pois, o contexto em que seapresenta a conversão de olhares no interior do sujeito intelectual.

La reflexión nos llevaría a la necesidad de la formulación de una teoría de lacrisis de la teoría marxista; entendiendo el fenómeno de crisis tanto en susentido destructivo y de degradación, como de la posibilidad de construccióny/o reconstrucción de opciones que mantengan la coherencia entre loselementos sobrevivientes y los nuevos que se han insertado en la estructurafundamental de la propuesta.50

Sob esta perspectiva, as contribuições e releituras partiam da percep-ção que os intelectuais e funcionários do partido tinham de suas experiênciasda URSS e do labor que eles mesmos, como mobilizadores de ideias, preten-deram levar para o futuro do partido. Já se romperam os laços, e agora sóresta a “solidão” de uma luta que olha o nacional sem nenhum referenteidílico de verdade no estrangeiro, e é só dentro deste campo que se poderáentender a labor dos intelectuais do PCC.

No hay duda que el hecho más aleccionador de esta época es el derrumbe delo que se llamó el campo socialista en Europa; esto nos obliga a un estudiomás profundo en primer lugar de la realidad contemporánea, y en segundolugar de los fundamentos del marxismo y el leninismo. Para nosotros debe

49 Entrevista, 19 de abril de 2011.50 Taller: Revista Teórica de Convergencia, n. 2, p. 25, abr. 1990.

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ser claro que el derrumbe del campo socialista en Europa no significó nimucho menos el fin de las ideologías, ni el fin del socialismo científico, delmarxismo-leninismo (FAJARDO, 2005, p. 187).

Portanto, as reflexões que os intelectuais comunistas têm realizadoa respeito da experiência histórica da URSS abriram-se. Na atualidadetêm surgido uma serie de reinterpretações da experiência soviética no seiodos intelectuais, que têm enriquecido a visão de tal experiência. Por exem-plo, para o professor Jaime Caycedo, uma leitura poderia radicar na reva-lorização:

Hay muchas cosas que hay que revalorizar, yo hago un cuerpo de cosas,cuando uno analiza la relación entre las experiencias socialistas […] a partirde los textos de los utopistas del siglo XIX, sobre todo los utopistas socialis-tas (particularmente Saint Simon, Charles Fourier) que le daban cierto senti-do a la opción de ciertas reformas profundas a partir de sus ensayos incipi-entes de otras formas de organizar el mundo. Cuando uno ve en la URSS eltema de la cooperativización de los campesinos en el campo, de las granjasde estado y […] como de alguna manera el socialismo temprano se guiomucho por la utopía, postulando las bases de reflexión sobre experimentosposibles […] entonces a mí me parece que esas experiencias están por reva-lorizarse contra los propios teóricos y analistas.51

Nesta análise é importante valorizar o espaço que o intelectual-funcionário dá à imaginação. Hoje este aspecto faz parte do pensamentodos intelectuais comunistas, devido a que, para a maior parte deles, a imagi-nação é uma função importante da teoria marxista, até o ponto de dizer que

[no están] de acuerdo con ciertas actitudes, que tienden a lo que hemos lla-mado en algún momento, una especie de dogmatismo, de dogmatismo ilus-trado, que piensa que la autenticidad del marxismo se encuentra en el for-malismo de ciertas categorías que hacen parte del cuerpo de doctrina, peroese cuerpo de doctrina también está en desarrollo, está en creación a partirde sus cimientos básicos como una guía para la construcción de nuevas co-sas, y no anquilosarse en lo que dijeron los clásicos.52

Daí que o labor dos intelectuais-funcionários seja reinventar-se a cadadia com as ferramentas que brinda o marxismo e sua complexa multiplici-dade, temendo que, se isto não acontecesse, [e]l PCC corre el riesgo deanularse, de achatarse, si solo se atiene a hacer una repetición tipo cotorradel pasado, de las consignas de siempre”53. Depois da queda do socialismo

51 Entrevista, 19 de abril de 2011.52 Ibid.53 Ibid.

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real, só restou aos intelectuais a defesa imaginativa das “contribuciones delmarxismo y del leninismo [y] ante todo de su método de investigación cien-tífica de la realidad” (FAJARDO, 2005, p. 215).

Finalmente, o período que os funcionários-intelectuais viveram entre1990 e 1992, com relação aos acontecimentos da URSS, teve duas caracte-rísticas identificáveis. Primeiro, a aceitação do debate da crise dentro domarxismo, debate no qual os intelectuais assumiram a defesa da teoria e acrítica aos erros cometidos. A segunda etapa foi a inserção da criatividaderevolucionária no discurso teórico usado pelos intelectuais. Essa era a rei-vindicação imaginativa de uma teoria que ainda tem muito que dizer a res-peito da sociedade e suas contradições.

Sob a convergência de dois fenômenos que transformaram a realida-de social, tanto no nível local como no global, segue-se o nascimento deuma nova sociedade de reinterpretação e a recomposição dos funcioná-rios comunistas. Essa recomposição pode chegar mais perto daquilo queGramsci chamou intelectual orgânico, e também do infatigável rebelde deSaid, e concorda com uma nova visão da esquerda que, segundo Archila, “noparece estar por la dictadura del proletariado, y más bien, en un retorno a sutradición libertaria, asume la defensa de la democracia mientras rechaza elautoritarismo. Pero no se trata de cualquier democracia” (2009, p. 22). Esteaspecto foi muito mais forte ao iniciar a década de noventa e se evidencia nosdebates dos intelectuais em torno da relação socialismo-democracia:

Nosotros desde los años noventa para acá hemos tratado de discutir sobreestos temas en medio de debates, algunos que dicen –No, que al socialismono se le puede poner apellido […] el socialismo es eso y punto– nosotroshemos abordado el tema del socialismo humanista […] creo que hacia elprograma próximo hay compañeros que hablan del socialismo democráticoy humanista, bueno, todo eso se puede discutir en la idea de ver realmentecual es el concepto más adecuado, y no por su estética o su belleza semánti-ca, sino por su calidad, por el fondo del problema. […] Yo tengo claro quelos caminos al socialismo son distintos, y creo que eso es algo que sí se ganócon el derrumbe soviético, y fue el entender que el socialismo es diverso, queel socialismo no es un patrimonio de nadie […].54

De tal modo, no período final da perestroika os olhares dos intelectuais-funcionários tiveram um giro de reinterpretação que permitiu à ruptura deuma serie de pressupostos teóricos. As lutas no terreno das ideias já não se

54 Entrevista com o intelectual Carlos Lozano, 31 de março de 2011.

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livraram só contra a “classe hegemônica”, mas também contra a rigidezdos próprios camaradas. Nas palavras de Carlos Lozano:

[…] alguna vez [escribí] un texto que fue muy polémico, que se llama Elmarxismo, ideología en construcción, y había compañeros que me decían no,¿pero cómo así que en construcción? Si el marxismo existe y está ahí […] yyo decía todo lo contrario, que no […] incluso una vez unos compañeros dela juventud me criticaban eso, yo les decía –mire ustedes están jóvenes ytienen mucho tiempo por delante, investiguen, estudien, porque ustedes pu-eden aportarle mucho a esto, quien ha dicho que las leyes de la dialéctica,por ejemplo solo son tres, entonces porque Marx lo dijo son tres, no, ojalauno de ustedes descubra la cuarta, y la quinta, eso es posible, porque hoyestamos viviendo otras épocas, Marx no era adivino para pensar que estascosas iban a cambiar tanto, que el mundo iba a cambiar a tantas velocidades,tantos años después–. Entonces hay cosas nuevas, hay nuevos elementos enla vida que tienen que interpretarse desde el punto de vista marxista, porsupuesto, pero con un criterio creador, no girando como hacían los alqui-mistas que se encerraban a descubrir la piedra filosofal y nunca les apareció,no nosotros nunca la vamos a descubrir, nunca así.55

No horizonte dos intelectuais colombianos se pode distinguir umaserie de fatos que tentaram fazer frente ao dogmatismo56 e alinhamentosinternacionais, para se aproximar da sociedade colombiana. Foi esta a me-lhor forma de dar uma resposta criativa à crescente crise das esquerdasmundiais (ARCHILA, 2009).

4. À maneira de conclusão

A história faz-se nesta luta, neste combate obscuro em que os postos mol-dam de modo mais ou menos completo os seus ocupantes que se esforçampor se apropriar deles; em que os agentes modificam de maneira mais oumenos completa os postos, trabalhando-os à sua medida (Pierre Bourdieu,2002, p. 103).

Na leitura destas páginas o leitor pôde perceber um irritante jogo depalavras entre as categorias de intelectual e intelectual-funcionário. Esse pro-cesso corresponde às contradições encontradas entre as teorias que tentamexplicar o intelectual e as práticas dos intelectuais vivos, existentes, aquelas

55 Ibid.56 Devo aclarar que seria ingênuo pensar que esse dogmatismo terminou completamente. Pode-

se dizer que a contradição continuou no campo dos intelectuais comunistas; por isto, não sepode falar de um intelectual livre de contradições, a menos que ele seja tirado do campo que oconstitui, neste caso o PC.

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pessoas que encarnam as ideias e são movidas por paixões, utopias, sonhose mentiras. Daí que a categoria de intelectual sozinha não correspondia àhistória que se pretendia contar.

Deste modo, e como resumo, a intenção do texto é expor o campo dointelectual comunista da Colômbia entre 1985 e 1992. Daí que, sob a con-vergência crítica entre os contextos locais e os globais, definiu-se que asformas de agir dos intelectuais correspondiam às sutis regras impostas peloseu campo, que, num primeiro momento, propunha uma escolha entre areafirmação acrítica dos seus princípios e a ruptura aberta com seu passadomilitante, ou seja, o resgate do clérigo. Porém, o campo reconstruiu suasregras de jogo a partir da crise e, respondendo às condições histórico-sociaisque tornaram possível sua existência, levou a que os intelectuais procuras-sem novas formas de justificar seu ser aceitando a ruptura, embora semdesconhecer seu passado.

Quero, então, insistir que não foi minha intenção reconstruir umaimagem idílica de um intelectual comprometido, crítico e heroico, e tampou-co defender as estridências, contradições e/ou birras dos intelectuais comu-nistas. O que pretendo é apresentar uma forma particular de olhar a figurado intelectual, partindo de sua confrontação com as condições históricasde sua atuação. Além disso, quero transgredir os maniqueísmos, tanto deesquerda como de direita, e expor as rupturas históricas e sociais de umcampo, olhar a nudez das categorias mergulhadas nas condições de seufazer.

Este texto pode finalizar dizendo aquilo que já é “lugar comum” nosestudos sobre o intelectual: “o intelectual é um ser ambíguo”. Mas que sen-tido pode ter aquela afirmação? As categorias correspondem a uma realida-de concreta, e o campo intelectual só pode construir seu sistema enunciativoa partir de sua realidade. Trata-se de uma realidade que, para o caso dosprotagonistas desta história, esteve repleta de contradição, acumulação depoderes de interpretação do mundo e a contundência da morte. Só assim sepode definir a “ambiguidade” como a pugna pela apropriação de uma cos-movisão do mundo.

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Os intelectuais comunistas no Brasil:uma breve reflexão

Marisângela Martins

Os intelectuais atuantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) com-põem um grupo que se tornou objeto de estudo há pouco tempo no país.1

De um modo geral, pesquisas desenvolvidas na área da história e da socio-logia voltam-se para militantes de destaque, escritores e historiadores – comoGraciliano Ramos, Jorge Amado e Caio Prado Júnior – radicados no eixoRio-São Paulo (centro da produção editorial brasileira e palco das disputasem torno da definição das sucessivas linhas políticas adotadas pelo Parti-do). Esses estudos, via de regra, exploram a relação entre as imposiçõespartidárias e a liberdade de criação e de teorização sobre a revolução, aspolíticas da organização direcionadas para a cultura e os escritores e o rea-lismo socialista.

A exemplo do que ocorre com o termo “intelectual”, a expressão“intelectual comunista” evoca uma determinada imagem de contornos maisou menos imprecisos. A rigor, somente a dissertação de Mestrado de AnaPaula Palamartchuk (1997) se propôs a enfrentar essa problemática. Numaanálise indutiva, a autora tentou retirar do exame da experiência dos atoreshistóricos escolhidos os significados de ser intelectual. A historiadora enfa-tizou a relação entre os intelectuais – em especial os escritores –, suas pro-duções e sua opção política, procurando analisar o(s) significado(s) queeles atribuíram à denominação “intelectual comunista”. Palamartchuk par-tiu da fundação do Grupo Clarté, na década de 1920, e estendeu sua análi-se a meados da década de 1940, concluindo que ser “intelectual comunis-

1 Para os objetivos desse texto, concentramos nossa análise na época do “Partidão” (de 1922 a1962). No início da década de 1960, o PCB, criado no início dos anos 1920, sofreu uma cisão,dando origem ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), dirigido por Luís Carlos Prestes, e aoPartido Comunista do Brasil (PCdoB), sob a liderança de João Amazonas, Maurício Gabrois ePedro Pomar, dirigentes do alto escalão do até então PCB.

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ta” abarcava várias maneiras de ser, sobretudo no que dizia respeito aograu e aos tipos de envolvimento, às visões de mundo e às formas de contri-buição às necessidades do Partido. No caso de Caio Prado Júnior, por exem-plo, a autonomia intelectual chocou-se com a disciplina partidária. Já As-trojildo Pereira foi um legítimo “intelectual de partido”, submetendo-sedisciplinarmente ao núcleo dirigente, interpretando a situação do país deacordo com as orientações da Internacional Comunista (IC), cumprindotarefas e fazendo autocríticas.

Ainda que o grupo estudado por Palamartchuk evidenciasse modosde ser distintos, uma pergunta na direção inversa permanece: que atributosuniam militantes com diferentes maneiras de ser sob uma mesma denomi-nação, a de “intelectual comunista”? Não temos a pretensão de ofereceruma resposta completa, absoluta e definitiva nesse texto. Convidamos oleitor a nos acompanhar num breve exercício de reflexão acerca dos possí-veis contornos dessa expressão, baseando-nos, para tanto, em um excertodatado de 1945.

Após amargar décadas de clandestinidade, o PCB emergiu do EstadoNovo em condição legal, e seus militantes empenharam-se para colocarseus representantes nas casas legislativas de todo o país. Em Porto Alegre,parte da campanha às eleições de dezembro de 1945 foi veiculada na revis-ta Libertação, da qual extraímos o trecho que segue:

O Partido Comunista é o partido da classe proletária e do povo. E do seio doproletariado é de onde tem saído a maioria de seus dirigentes. Ninguémmelhor, pois, do que os trabalhadores para compreenderem os problemas desua classe, as suas necessidades e as suas aspirações. [...] O trabalhador, aofalar de suas necessidades, sentidas todos os dias, está falando por toda asua classe e por todo o povo. Por isso, ele é o mais credenciado para estar àfrente do Partido do proletariado e do povo, o Partido Comunista. Mas opovo tem encontrado outros amigos. Elementos de outras camadas sociais,que tiveram recursos para estudar e que compreenderam as necessidadesdo povo e se [sic] resolveram lutar por elas. Poucos, é certo. E por isto dig-nos de toda a admiração. [...] são homens que colocam o seu saber, mani-festado através da imprensa, da literatura, da ciência e das artes, paradefender os interesses do proletariado e do povo. São sábios e são heróis,também.

A participação dos intelectuais honestos na direção do Partido Comunistaé o justo prêmio que recebem da classe proletária, pela sua dedicação eamor à causa do povo (Os Dirigentes Comunistas no Rio Grande do Sul.Libertação, Porto Alegre, n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945. Grifosnossos).

MARTINS, M. • Os intelectuais comunistas no Brasil: uma breve reflexão

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O objetivo do artigo era apresentar os dirigentes dos comitês estaduale municipal do PCB, e, no trecho em destaque, justificava-se a presença deintelectuais entre eles. Primeiramente, o autor deixa claro um recorte declasse: o intelectual não provinha da classe desfavorecida trabalhadora, masde camadas sociais com recursos suficientes para garantir sua liberdade emrelação à necessidade econômica. Não obstante sua origem de classe, osintelectuais foram reconhecidos como legítimos representantes do povo,como pessoas honradas e confiáveis, porque haviam dado provas de suashonestas intenções. A ideia que se insinuava aqui, e que se estendeu commais força ao longo da década seguinte, era a de que o intelectual, “por suaorigem não proletária”, havia aderido e colaborava com uma luta que nãoera sua por estar ciente da exploração do operariado e por solidarizar-secom ele (GARCIA, 1999, p. 128). Essa visão condescendente em relaçãoao militante intelectual, porém, não era unânime, nem antiga, entre os co-munistas.

A fundação do PCB teve quase nenhuma repercussão entre os inte-lectuais, e, no fim da década de 1920, os poucos que nele atuavam passa-ram pelo traumático processo de “proletarização” (conhecido no Brasil tam-bém como a política do “obreirismo”), orientado por novas diretrizes docomunismo soviético. A III Internacional havia abandonado as esperançasna formação de uma frente única, passando a apostar na tática revolucio-nária da “classe contra classe”. Na União Soviética (URSS), defendeu-seque, para melhor combater a burguesia e as classes médias, os dirigentescomunistas não deveriam ser oriundos desses segmentos, mas exclusiva-mente do proletariado.

A historiadora Dulce Pandolfi (1995, p. 100-101, grifos nossos) rela-ta que, no Brasil, inicialmente, a proletarização teve um sentido romântico,como relembrou Leôncio Basbaum, dirigente comunista na época:

Proletarizar-se significava, segundo alguns, abandonar hábitos burgueses,só fumar cigarros baratos, andar malvestido. A própria gravata passou aser um sinal de tendência pequeno-burguesa. E [...] até tomar banho diárioera um resquício pequeno-burguês capaz de afetar a ideologia proletária doPartido.

Nesse sentido inicial, a origem de classe do militante intelectual evi-denciava não apenas uma posição nas relações de produção, mas tambémum modo de viver a ela associado e que passou a ser repudiado no interiorda organização. Condenou-se o burguês e seu estilo de vida, obrigando os

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militantes de origem não proletária a abandoná-lo e a adotarem o modo devida considerado próprio das parcelas humildes. O relato de Basbaum reve-la-nos que os “hábitos burgueses” eram associados ao consumo de itenscaros e a um certo cuidado com o corpo, sinais distintivos de uma classebeneficiada materialmente, cujo esbanjamento era uma afronta à parcelaconsiderável da população que pautava seu consumo pela privação. Os in-telectuais deveriam fazer escolhas razoáveis, de acordo com as imposiçõesdas condições de vida dos trabalhadores. No processo de proletarização, aprivação dos bens necessários foi tornada virtude. Era preciso se adaptar ànecessidade, aceitá-la.

Dentro de pouco tempo, o romantismo cedeu lugar a uma orienta-ção radical. Os intelectuais, julgados e condenados por sua origem de clas-se, ou foram substituídos em suas funções dirigentes, ou foram expulsos, oucaíram no ostracismo, ou receberam árduas tarefas (impostas com o objeti-vo de proletarizá-los) (PANDOLFI, 1995, p. 101). A adoção de tais proce-dimentos gerou o afastamento desses militantes da direção do PCB (inclu-sive daqueles que ali militavam desde sua criação), considerados de origempequeno-burguesa – logo, inimigos da classe trabalhadora –, e sua substi-tuição por operários, mesmo que estes não tivessem capacidade teórica oudisponibilidade para tal.2 Foi assim que, na interpretação que Jorge Ferrei-ra (2002, p. 82) oferece desse episódio, o estigma de “intelectual” ou de“pequeno-burguês” começou a se impor no horizonte político e cultural doPCB. O termo “pequeno-burguês” – que evocava uma postura egoísta, vai-dosa e individualista, própria da classe burguesa – passou a ser usado entreos militantes de origem humilde como um insulto àqueles acusados de sedesviarem do perfil do “verdadeiro revolucionário” – solidário, modesto,reservado, corajoso e constante nas emoções (FERREIRA, 2002, p. 75-78).3

De acordo com Palamartchuk (1997, p. 52), a noção de “intelectual”apareceu no PCB no fim dos anos 1920, com a expulsão do alfaiate Joa-quim Barbosa – membro da direção partidária – e seus companheiros de

2 O caso mais grave e sempre destacado é o da expulsão de Astrojildo Pereira, secretário-geral daorganização, que acabou vítima da política que ele mesmo havia implementado.

3 Narrativas romanceadas do processo de proletarização podem ser apreciadas em Parque indus-trial, publicado por Pagu sob o pseudônimo de Mara Lobo em 1932, e em Caminho de pedras, deRaquel de Queiroz, publicado em 1937. Para outros relatos historiográficos e memorialísticos,conferir CARONE, 1982, p. 9; PERALVA, 1962, p. 233-242; SEGATTO, 1981, p. 36-37; VI-NHAS, 1982, p. 17.

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opinião, tachados pejorativamente de “intelectuais pequeno-burgueses”.Paradoxalmente, a despeito do afastamento de vários militantes sob essaacusação, outros intelectuais que poderiam facilmente ser classificados comotais aderiram ao Partido, como Oswald de Andrade, Pagu e Tarsila doAmaral. E, na década seguinte, sob sistemática propaganda da UniãoSoviética e da Internacional Comunista (IC), generalizou-se mundialmen-te a simpatia de diversos escritores e artistas pelo comunismo (PALAMAR-TCHUK, 1997, p. 53 e 56).

No Brasil, algumas condições favoreceram a confluência entre inte-lectuais e Partido Comunista: o desencanto com os caminhos tomados pelogoverno Vargas após o movimento de 1930, o ingresso de Luís Carlos Pres-tes e de inúmeros tenentes no PCB e o surgimento da Aliança NacionalLibertadora (ANL). A repressão desencadeada aos levantes de novembrode 1935 e o golpe do Estado Novo dois anos depois arrefeceram as adesões,porém não as impediram completamente. Alguns proeminentes nomes dacultura brasileira aderiram ao comunismo nesse período: Caio Prado Jú-nior, Dalcídio Jurandir, Dyonélio Machado, Graciliano Ramos, Jorge Ama-do, Raquel de Queiroz, Vitor Márcio Konder, entre outros.

É provável que a transigência em relação aos militantes intelectuaisobservada na citação extraída da revista Libertação estivesse relacionada àrecente virada tática do PCB. A partir da Conferência da Mantiqueira, rea-lizada em 1943, a organização defendeu – não sem alguma resistência – aUnião Nacional, que consistia, basicamente, na defesa da aliança entre pro-letariado, camponeses e burguesia nacional, inclusive com o governo Var-gas, em prol da democracia. Talvez também aquela postura tolerante tives-se como motivação o reconhecimento do suporte dado pelos intelectuaisao Partido durante o Estado Novo, período em que a ação comunista ficoualtamente comprometida pela repressão. Nesse contexto, a rede de relaçõessociais – em cujas pontas poderiam se encontrar pessoas importantes domundo editorial e da política com influência nos espaços de decisão, bemcomo sobre as regras e os loci de reconhecimento e de consagração –, anotoriedade e o prestígio desses comunistas constituíram-se em recursospossíveis de lhes conferir “imunidade intelectual”, uma prerrogativa prati-camente inexistente para os militantes de origem humilde. (PALAMAR-TCHUK, 1997, p. 97; 2003, p. 164). No Rio Grande do Sul, por exemplo, areestruturação do PCB foi planejada ainda na clandestinidade, tendo à frente

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o professor universitário Otto Alcides Ohlweiller, secretário-geral da orga-nização no estado nos anos finais da ditadura estado-novista, cargo queentregou ao companheiro metalúrgico Abílio Fernandes em meados de 1945(Os dirigentes comunistas no Rio Grande do Sul. Libertação, Porto Alegre,n. 15, p. 12-15, 18, 20 e 29, 28 jun. 1945). Ainda que fosse sofisticado teóri-co do materialismo histórico e dedicado militante, Ohlweiller provinha defamília de classe média, era diplomado em Química Industrial e docenteda Escola de Engenharia da, então, Universidade de Porto Alegre. Estava,assim, longe de preencher os requisitos do revolucionário-modelo, mas dis-punha dos recursos necessários para manter-se em liberdade e reorganizara seção gaúcha do PCB naquele momento.

Devido a sua “condenável” origem de classe, os intelectuais relacio-navam-se com personalidades importantes e influentes: escritores, editores,jornalistas, diplomatas, homens do mundo dos negócios e do mundo dapolítica. A vida pública dessas pessoas encerrava sociabilidades próprias aoestilo de vida das classes dominantes, como rodas literárias, chás, jantares,banquetes, exposições, saraus e concertos.4 Eram práticas sociais que exigi-am o domínio de códigos específicos, de determinados saberes, posturas ecomportamentos possíveis de serem incorporados, sobretudo, na educaçãoformal e/ou no próprio convívio com os membros da elite. Tais práticasencontravam terreno propício em livrarias, editoras, redações de jornais erevistas, institutos de pesquisa, associações (culturais, profissionais, etc.),cafés, confeitarias, clubes e salões.5

A historiadora Mônica Velloso (1996) identificou a existência de es-paços e de práticas constitutivas de um “microcosmo intelectual” no Rio deJaneiro desde o fim do século XIX, situados, principalmente, na Rua doOuvidor, onde ficavam a Confeitaria Colombo e o Café Papagaio. Nessetradicional logradouro, instalou-se a Livraria José Olympio Editora em 1934,cujo proprietário, exímio cultivador da “arte da amizade” (SORÁ, 2004),

4 Sociabilidades são entendidas aqui no sentido de espaços e de comportamentos, formais einformais, por meio dos quais um grupo se movimenta, expressa suas ideias e estabelece ecultiva vínculos, construindo e reforçando distinções sociais.

5 O circuito de sociabilidades da intelectualidade brasileira foi mapeado e analisado pelas histo-riadoras Ângela de Castro Gomes (1993; 1999) e Monica Pimenta Velloso (1996). Para umareflexão sobre os cafés como manifestações culturais tipicamente europeias apropriadas e res-semantizadas no sul brasileiro, conferir Lewgoy, 2009.

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acabou por concentrar a edição dos livros considerados indispensáveis parasentir e pensar o país em fins dos anos 1930. Quem queria ser visto e ver osescritores consagrados – cujas obras eram consideradas “autenticamentebrasileiras” – frequentava a livraria de José Olympio (SORÁ, 2004, p. 1).De acordo com Sorá (2004, p. 11-12), a identidade do grupo de autores docatálogo de Olympio foi reforçada no contexto de crescente intervenção erepressão cultural por parte do Estado, quando a casa, por manter boasrelações com o círculo político de Vargas, passou a ser refúgio de diversosintelectuais comunistas. Por ocasião da prisão de parte de seus escritores,José Olympio interveio em seu favor, reforçando os laços de confiança de-les para consigo. O poder do editor se expressava na extensão e na força dosvínculos que havia tecido com autores, políticos de variadas tendências ecom elites sociais (SORÁ, 2006, p. 14). A Livraria José Olympio era o por-to seguro de Jorge Amado e de outros intelectuais de esquerda, que se láreuniam frequentemente (PALAMARTCHUK, 2003, p. 236).

A partir da década de 1930, São Paulo e Rio de Janeiro – as duas cida-des mais importantes na constituição de um campo de produção cultural noBrasil – atraíam e concentravam escritores e artistas das diversas regiões dopaís. A produção intelectual estava em franco desenvolvimento, sendo látambém que se localizavam as principais instituições de ensino superior.De acordo com Sergio Miceli (2001, p. 156-157), no contexto editorial dosanos 1930 e 1940, a Companhia Editora Nacional, a Livraria José OlympioEditora e a Livraria do Globo, de Porto Alegre, eram as principais investi-doras na publicação de obras de ficção, nacionais e estrangeiras, emboracada uma delas aplicasse seus recursos a partir de estratégias diferentes.

Em São Paulo, a Editora Brasiliense, de propriedade de Caio PradoJúnior, aglutinava parte da intelectualidade paulistana de esquerda (IUMAT-TI, 1998, p. 64-65). Já na capital gaúcha, José Bertaso, proprietário da Li-vraria, Editora e Revista do Globo – frequentadas por um grupo seleto defamosos intelectuais e de personalidades políticas – e seu filho Henriquecumpriram papel semelhante a José Olympio. Eles inventavam projetos paraajudar pessoas em precária situação financeira, cultivando estreitos laçosde lealdade com os escritores ligados à casa, e editavam textos de conheci-dos comunistas – como Dyonélio Machado, Ivan Pedro de Martins e LilaRipoll. Teve importância capital para a proximidade entre comunistas e ogrupo da Globo, sobretudo ao longo do Estado Novo, a presença do jorna-

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lista Justino Martins na direção da revista, um comunista talentoso do qualo Velho Bertaso não abria mão. Ele soube perceber o saldo positivo queteria no balanço entre os possíveis prejuízos decorrentes do estigma de seuscolaboradores e os largos lucros econômicos e simbólicos que o trabalho dojovem revisteiro lhe rendia, preferindo conceder amplo espaço para Justinoe seus companheiros.

No Rio, além da casa de José Olympio, os escritores comunistas eramabrigados pela Editora Ariel, bem como pelas revistas Dom Casmurro, Bole-tim de Ariel e Revista Acadêmica (PALAMARTCHUK, 1997, p. 71; 2003, p.211-212), encontravam-se nos bares Vermelhinho e Amarelinho, e entre ossalões mais frequentados por eles estava a residência de Álvaro e EugêniaMoreyra. Em Porto Alegre, por sua vez, a Livraria do Globo, assim comoas redações dos jornais Correio do Povo e Diário de Notícias, o footing na tradi-cional Rua da Praia, as sessões de cinema e de teatro, os clubes (como oJocotó), as confeitarias (Rocco), as casas de chá e os cafés (Rex, Nacionaletc.) constituíram um circuito de espaço de sociabilidades refinadas, dirigi-do para educar a sensibilidade, instituindo, assim, o estilo de vida da elite(BRUM, 2009, p. 197-210).

Fosse no eixo Rio-São Paulo, fosse na capital gaúcha, esses espaçosinformais de circulação e de apropriação de capital social, político, culturale simbólico revelavam-se locais de trânsito intenso de intelectuais e suasideias, de aprendizagem, de debate, de fortes conflitos e também de cons-trução de importantes vínculos de amizade. É possível afirmar que, até ofim da Segunda Guerra Mundial, intelectuais comunistas e não comunistaspartilhavam esses espaços. Ainda que nos pareçam fortuitos, esses encon-tros configuravam-se práticas sociais que funcionavam como instâncias deconsagração pelas quais escritores já reconhecidos e poderosos homens dapolítica contribuíam para a definição da pauta dos problemas legítimos edos princípios organizadores da produção cultural brasileira. Uma vez de-finidos e oficializados tais critérios, esses homens deles se apropriavam,impondo estilos e visões de mundo, legitimando sua produção e seu lugarno polo dominante da esfera cultural. Tratava-se, portanto, de territóriosnos quais e de comportamentos pelos quais, fundamentados na dinâmicade trocas características do mundo da cultura e do mundo da política, eramincorporadas disposições e estabelecidas e/ou consolidadas relações pro-mitentes. Os intelectuais comunistas puderam fazer uso do potencial des-

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ses diferentes tipos de capital em sua militância, a qual também ofereciaum circuito de sociabilidades próprio do Partido. Comentaremos esses as-pectos adiante.

Em segundo lugar, a citação da revista Libertação exibida noinício desse texto apresenta um recorte de gênero. Os intelectuais eramhomens. É possível que esse entendimento tenha raízes no sentido que, his-toricamente, o termo “intelectual” foi ganhando. A figura do intelectualesteve por muito tempo associada ao mundo público, universo predomi-nantemente masculino. De acordo com Benito Bisso Schmidt (2006, p. 24),os códigos de gênero dominantes na sociedade brasileira nas décadas de1940 e 1950 aproximavam as mulheres do campo dos sentimentos e as ali-javam do terreno da razão –, poderíamos dizer, do intelecto – consideradopróprio dos homens.

Mencionamos anteriormente algumas artistas e escritoras ligadas aoPCB que poderíamos classificar como intelectuais sob os critérios da pro-dução de bens culturais e do engajamento político. Na década de 1950, a“frente intelectual” do Partido abrigava reconhecidas poetisas, como LilaRipoll, que, conforme Eliane Garcia (1999, p. 83), embora atuasse tambémna “frente feminina”, tinha sua imagem comumente associada à “frenteintelectual”. As mulheres, entretanto, eram minoria entre os militantes ti-dos como intelectuais; sua atuação era alvo de discriminação dentro e forado Partido; e as lutas próprias da condição feminina (igualdade de direitoscivis entre homens e mulheres, o divórcio etc.) não eram discutidas e assu-midas como bandeiras da organização (GARCIA, 1999, p. 102).

Consoante Jorge Ferreira (2002, p. 131), as imagens da mulher revo-lucionária que os comunistas procuravam construir, ainda que remetessemàs virtudes da honestidade, da abnegação e do sacrifício, não excluíam cer-ta hierarquia entre os sexos, reproduzindo, em alguma medida, as mesmasopressões e discriminações que eles denunciavam. Na visão dos comunis-tas, homens e mulheres eram portadores de diferenças inatas, as quais deter-minavam a existência de papéis sociais naturalmente distintos (MOTTA, 1997,p. 79).

Em terceiro lugar, no excerto problematizado subentendia-se um en-tendimento a respeito do que caracterizaria os intelectuais comunistas par-tindo de uma oposição que situava, de um lado, os proletários e, do outro, aspessoas portadoras de saberes específicos. Essa visão apresentava elementos

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ainda recorrentes de uma tradição mais antiga, que estabelecia a distinçãoentre o trabalho manual – aquele cujo resultado dependia do emprego deenergia física – e o trabalho intelectual – aquele cujo produto resultava de umdeterminado esforço de reflexão –, aproximando deste indivíduos que desen-volviam atividades ligadas à inteligência, à criação, ao intelecto.

Esse recorte funcionalista observável no artigo comunista reverbera-va uma concepção difundida mais amplamente na sociedade brasileira.Podemos tomar como exemplo a União dos Trabalhadores Intelectuais(UTI), criada em 1945 no Rio de Janeiro e da qual poderiam participarcategorias de trabalhadores, assalariados ou não, ligados ao trabalho nãomanual, como médicos, engenheiros, advogados, jornalistas, escritores, ar-tistas etc. O objetivo da UTI – em cuja criação tomaram parte alguns co-nhecidos intelectuais comunistas, como Astrojildo Pereira e Álvaro Mo-reyra – era aumentar a participação desses segmentos no processo de de-mocratização do país (BUONICORE, 2004). Tratava-se de uma entidadefundada claramente na divisão do trabalho.

Relacionada a ela, é possível identificar na citação extraída da revistaLibertação menção aos intelectuais como aqueles que se distinguiam pelainstrução. Segundo pesquisa realizada por Garcia (1999, p. 108), a “frenteintelectual” do PCB, criada na segunda metade dos anos 1940, era compos-ta por militantes que produziam textos literários, esculpiam, pintavam, en-cenavam e dançavam, mas também por aqueles cuja ocupação/profissãonão estava diretamente ligada a atividades culturais, como engenheiros,arquitetos, advogados, médicos e funcionários públicos, quer dizer, indiví-duos com curso superior. Nesse sentido, a distinção baseada na polarizaçãotrabalho manual versus trabalho intelectual e no nível de instrução alargavaas fronteiras no interior das quais os militantes poderiam ser classificadoscomo intelectuais.

A instrução e o capital de relações sociais de que dispunham, decor-rentes de sua origem social, eram os principais critérios pelos quais eramdistinguidos, no plano das representações, os militantes intelectuais, alémde se constituírem no parâmetro pelo qual sua prática militante era defini-da e distribuídas as tarefas que lhes competiriam. Em alguns casos, presu-mia-se que a origem de classe e o acesso a um alto nível de escolarização ea determinadas formas de sociabilidade os capacitassem para determina-das funções/atividades/tarefas.

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Mesmo atravessando o século XX em condição ilegal, os militantescomunistas brasileiros colocaram inúmeros periódicos em circulação e de-senvolveram ações culturais e educativas que funcionaram como frentes deatuação legal em plena clandestinidade. Rubim (1986, p. 35-36) destaca adécada de 1940 como o período de auge da imprensa do Partido, quandoforam criados os jornais – de caráter informativo e combativo – e as revistas– dedicadas às artes, à ciência e às letras. Trabalhavam ou colaboravam nosimpressos intelectuais nacionalmente conhecidos, como Alina Paim e Jor-ge Amado (O Momento, de Salvador), Dalcídio Jurandir e Álvaro Moreyra(Tribuna Popular e Problemas, do Rio de Janeiro), Caio Prado Júnior e Afon-so Schmidt (Hoje e Fundamentos, de São Paulo) e Lila Ripoll (Horizonte, dePorto Alegre) (RUBIM, 1986, p. 38-45). Cabia a muitos intelectuais a tare-fa de editar e escrever na imprensa do Partido, além de dirigir ligas/socie-dades/centros/associações/clubes e de participar de suas atividades, orga-nizando e/ou apresentando palestras, horas de arte, conferências, seminá-rios, sabatinas, concertos, etc.6

Para além de um suposto e exclusivo caráter “ornamental” (RODRI-GUES, 1996, p. 412) atribuído pelo PCB à atuação dos intelectuais nessesespaços e nessas ações, é oportuno afirmar que estes colocavam mais quesua imagem a serviço da causa revolucionária. O prestígio acumulado nomundo da produção científica e cultural, o capital de relações sociais, in-corporado nos lugares de sociabilidade próprios desses meios, e sobre osquais já comentamos, bem como o conhecimento adquirido na formação –fosse na educação formal, fosse na busca autodidata – constituíram-se re-

6 Na década de 1920, de acordo com Rubim (1986, p. 201), destacaram-se os centros de culturaproletária, de caráter político-cultural. Em Porto Alegre, criou-se a Liga Pró-México Antiim-perialista, presidida pelo escritor comunista Jorge Bahlis. No decênio seguinte, já com contin-gente maior de intelectuais no Partido, formaram-se o Clube de Cultura Moderna, no Rio, oCentro de Cultura Moderna Aparício Cora de Almeida, em Porto Alegre, e, ainda no EstadoNovo, formaram-se a já mencionada UTI e o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha.Com sede na capital gaúcha, o Clube de Cultura Popular Euclides da Cunha funcionou, pelomenos, até a segunda metade dos anos 1950 e foi dirigido, na maior parte desse intervalo, porJorge Bahlis. A entidade contava com uma ampla estrutura e um influente corpo de colabora-dores, como as poetisas Beatriz Bandeira e Lila Ripoll, a jornalista Gilda Marinho, os roman-cistas Cyro Martins e Dyonélio Machado. Comunistas oriundos de outros estados – como Ál-varo Moreyra, Dalcídio Jurandir e Jorge Amado –, quando em visita ao Rio Grande do Sul,costumavam dispensar parte de seu tempo e de seu conhecimento para ações culturais no Clu-be. Mas a entidade também recebia a colaboração de não comunistas bastante populares, comoLupicínio Rodrigues (Diário de Notícias, Porto Alegre, p. 4, 11 set. 1945).

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cursos extremamente úteis dos quais comunistas intelectuais lançaram mãopara o trabalho militante nos periódicos e a promoção das ações culturaisno interior do Partido (para não falar da importância de suas boas relaçõescom grandes fazendeiros e industriais na arrecadação de fundos para a or-ganização). Eles emprestavam sua imagem para dar maior visibilidade adeterminadas atividades, solicitavam colaborações e favores a amigos nãocomunistas e abordavam os assuntos que tinham propriedade, contribuin-do, à sua maneira, para os objetivos da agremiação.

É possível argumentar, em outro sentido, que militantes não intelec-tuais tinham suas imagens igualmente exploradas pelo Partido. Eram reco-nhecimentos conquistados por meio de investimentos em meios com regrasdistintas das do mundo da literatura. Na hora de “puxar uma greve”, deorganizar um comício ou de concorrer a um cargo eletivo, não era qualquermilitante que o fazia, mas aquele com projeção no seu campo de atuação eescolhido pela direção partidária, alguém cuja influência se estendesse numamplo raio de ação, por conta de capital simbólico acumulado ao demons-trar combatividade, comprometimento com as reivindicações da classe esolidariedade. Esse bem simbólico, construído mediante regras diferentesdas do meio intelectual, fazia com que um líder operário tivesse seu prestí-gio e sua notabilidade usados em proveito do Partido tanto quanto um es-critor consagrado, demonstrando que o PCB servia-se de um e outro nassuas tentativas de estabelecer ligações com os diferentes setores sociais.

Ainda sobre essa questão, Marcelo Ridenti (2010, p. 61) afirma quesão inúmeros os depoimentos que atestam a condição “ornamental” à qualos intelectuais eram relegados no interior da organização, mas havia con-trapartidas que os mantinham na órbita partidária. Se a boa imagem de quegozavam os escritores se constituía em valioso recurso aproveitado peloPartido Comunista, por outro lado, este oferecia canais para que seus mili-tantes intelectuais tornassem pública sua produção. Para Marcelo Camur-ça (1998), junto com o encantamento diante da causa, a busca pelo status –que a notoriedade do movimento comunista conferia – foram as principaismotivações para a adesão de intelectuais ao PCB. Mas, no estudo que reali-zou considerando o contexto da década de 1950 (marcada pela Guerra Fria,pelo alinhamento do governo brasileiro com os americanos e pelo alija-mento dos intelectuais comunistas dos principais espaços de produção e dedivulgação cultural no Brasil), Ridenti afirmou que essa relação entre artis-

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tas e intelectuais e o PCB “não caberia numa equação simples, como a quesupõe que a militância comunista de intelectuais e artistas fazia parte deum desejo de transformar seu saber em poder. Tampouco seria adequado,no outro extremo, supor que houvesse mera manipulação dos intelectuaispelos dirigentes do PCB.” Para o sociólogo, não se tratava “de uso indevidoe despótico da arte e do pensamento social para fins que lhes seriam alheios,mas de uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agen-tes envolvidos, implicando ainda uma dimensão utópica que não se reduzao cálculo racional” (RIDENTI, 2010, p. 57).7 Se essa relação de vantagense prejuízos implicava uma dimensão que não se reduzia ao cínico cálculoracional, como acertadamente observou Ridenti, os pesos da balança nemsempre foram equilibrados. Houve casos em que, a despeito de todos osrecursos empregados para a causa partidária, o estigma decorrente de sercomunista foi nefasto para a carreira de determinados intelectuais (MAR-TINS, 2012).

Em quarto lugar, o excerto da revista Libertação demonstra-nos queintelectuais comunistas eram aqueles que usavam seu saber e sua compe-tência para defender os interesses do proletariado. O compromisso comquestões alheias ao seu suposto campo de interesses (o literário, o artístico,o científico), como tem apontado a farta produção acadêmica, tinha raízeshistóricas mais longínquas. De acordo com François Dosse (2003, p. 20, 21e 63), por exemplo, desde o Iluminismo, pelo menos, é possível observar aaproximação da “figura do intelectual” à defesa de princípios de verdade (aerudição visaria a discriminar o verdadeiro do falso) e de justiça (oposiçãoà arbitrariedade do poder). O episódio paradigmático do engajamento dointelectual nesse sentido (no caso, um escritor), extrapolando os limites doque poderia lhe dizer respeito, foi protagonizado por Émile Zola na Paris

7 Além das atividades culturais decorrentes da definição de políticas oficiais do PCB, os intelec-tuais participavam de um conjunto de ações que extrapolavam o terreno do intelecto. Muitosdeles adentravam territórios populares, envolvendo-se na organização de blocos carnavalescos,como a poetisa Beatriz Bandeira e o advogado Marino dos Santos (GARCIA, 1999, p. 130-131), e de churrascos populares (Correio do Povo, Porto Alegre, p. 10, 22 nov. 1946). Em outroscasos, o dia a dia da militância invadia o âmbito do privado, como o episódio em que o roman-cista Dyonélio Machado foi padrinho de casamento de Serafina (filha da operária Julieta Batis-tioli), cuja cerimônia foi celebrada na residência da camarada Maria Crespo (Entrevista comSerafina realizada por Maria Luiza Martini). A participação nessas esferas aponta para o esta-belecimento de vínculos de outras naturezas e para formas de convivência extrapartidáriasainda inexploradas pela historiografia.

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do fim do século XIX (o Caso Dreyfus). No Brasil, o historiador NicolauSevcenko observou a questão da função social do intelectual nas obras deEuclides da Cunha e de Lima Barreto. Ambos os autores apresentavamdivergências no que dizia respeito à ciência, à civilização e à raça, mascompartilhavam a rejeição das elites vitoriosas, de modo que sua formaçãopositivista e, em decorrência dela, um credo inabalável num humanismocosmopolita repercutiram em sua produção literária, tornada um instru-mento de ação pública – “literatura como missão” (SEVCENKO, 2003, p.142-143, 146-149 e 152).

De acordo com Palamartchuk, após a Proclamação da República,surgiu a ideia do atraso cultural no Brasil atrelada a propostas de moder-nização do país que perseguiam o modelo da Europa. Os intelectuais doperíodo esforçaram-se para forjar uma nação europeizada, objetivo que per-maneceu vivo na década de 1920, quando comunistas, como AstrojildoPereira, também assumiram para si a responsabilidade de elaborar propos-tas de modernização da nação, tendo como referencial modernizador aURSS e a construção do socialismo como meta, necessitando, para tanto,conscientizar os trabalhadores (PALAMARTCHHUK, 1997, p. 97; 2003,p. 48). Quer dizer, a “vocação messiânica” (RUBIM, 1998, p. 350) do in-telectual brasileiro como portador de uma consciência iluminada e respon-sável pela realização de um projeto de nação transcendia o Partido.

Na tradição marxista, o compromisso histórico do intelectual com averdade e a justiça traduzia-se no dever de esclarecer o povo, fazendo-odespertar para a luta revolucionária. Segundo Daniel Aarão Reis Filho, asopiniões em relação aos intelectuais dividiam os comunistas brasileiros.Alguns os elogiavam, dando seguimento às reflexões de Marx – o qual ha-via reservado um papel importante para esse grupo no movimento, o defazer brotar a consciência socialista através da investigação teórica. Outros,contudo, hostilizavam-nos, devido à sua origem burguesa (na maioria doscasos), modo de proceder originado do processo de proletarização comen-tado anteriormente (REIS FILHO, 1990, p. 143-147). Na visão de KarlKautsky, contemporâneo de Marx, como os intelectuais não tinham inte-resse na exploração capitalista e possuíam o monopólio do saber numa so-ciedade dividida claramente em trabalho manual e trabalho intelectual, elesdeveriam ser considerados aliados dos trabalhadores. A socialdemocraciaalemã, portanto, deveria tirá-los da influência da burguesia (BOBBIO, 1996,

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p. 122). Essa tese foi adotada por Lênin (1902, p. 40) em Que fazer?, obra emque oferecia uma interpretação do marxismo para a ação. O líder russodefendia que os operários tinham a experiência prática das fábricas, caben-do aos intelectuais, portadores da ciência, ensinar-lhes seus conhecimentospolíticos.8 Na época de Stálin, porém, a monopolização daquilo que se acre-ditava ser a verdadeira interpretação da obra de Marx e de Lênin limitoudrasticamente as possibilidades de se questionar as orientações vindas deMoscou, e a política da proletarização preconizada por ele, mesmo que revis-ta posteriormente, deixou marcas profundas no imaginário comunista.

É possível afirmar que o papel dos intelectuais no PCB e na revolu-ção brasileira tornou-se objeto de maiores discussões no fim do Estado Novo.Naquele contexto, a função social de homens e mulheres dedicados à pro-dução de bens culturais no Brasil passou a ser problematizada de formaorganizada por meio da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), cria-da em 1942, e dos congressos de abrangência nacional promovidos por essaentidade. Os comunistas inseriram-se no debate, que evoluiu de momentosde influência até o controle total do PCB sobre a Associação e o conse-quente abandono desta por parte dos escritores não comunistas.

O I Congresso Brasileiro de Escritores, ocorrido em janeiro de 1945,marcou um momento da história brasileira em que o discurso político este-ve explicitamente vinculado às questões relevantes para a profissionaliza-ção do escritor (LIMA, 2010). Neles, as atuações dos participantes vincula-dos ao PCB – sobretudo no tocante aos temas políticos – afinaram-se àsorientações de Pedro Pomar, dirigente comunista com o qual os congressis-tas comunistas encontravam-se diariamente para receber orientações (AMA-DO, 1992, p. 20). O objetivo era trabalhar no sentido de assegurar que aposição política do evento fosse a mais próxima possível à resolução daConferência da Mantiqueira. Por isso, em suas participações, os comunis-tas defenderam o retorno da democracia, além de ajudarem a traçar o perfildo povo brasileiro (CAVALCANTE, 1986, p. 102-108).

De modo geral, os congressistas atribuíram-se o papel de “guias” deum povo inculto e ignorante, um povo que – de acordo com a interpretação

8 Nessa obra, Lênin reconhecia que a consciência socialista não havia surgido espontaneamenteno seio da classe do proletariado, mas havia sido importada de intelectuais burgueses, comoMarx, Engels e os pensadores da social-democracia na Rússia (p. 16 e 20).

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de Berenice Cavalcante para o episódio –, relegado ao abandono, à pobre-za, à fome e à doença, era destituído das condições de participação porforça da ignorância. O intelectual – homem de cultura no sentido de frutode reflexão que não se produzia no meio popular – era visto como detentorde um saber que deveria ser difundido, popularizado, promovendo a cons-cientização das massas através da elevação do seu nível cultural (CAVAL-CANTE, 1986, p. 106 e 108). Nesse sentido, o intelectual neutro fugiria dasua missão de ser intérprete da comunidade nacional. Para os comunistasDyonélio Machado e Juvenal Jacinto, dois dos delegados gaúchos e comu-nistas presentes no congresso, sendo os intelectuais os “líderes natos dopovo”, a “camada superior da sociedade”, seu papel era o de promover odebate sobre os problemas e o de mobilizar a população (Serão fascistas osescritores gaúchos? Revista do Globo, Porto Alegre, ano XVI, n. 362, p. 28-31 e 59, 06 maio 1944).9

Essa autopercepção dos escritores como condutores do processo deconscientização do povo e os demais assuntos amplamente debatidos nodecorrer do congresso foram resumidos na Declaração de Princípios, lidasolenemente pelo romancista Dyonélio Machado:

Os escritores brasileiros, conscientes de suas responsabilidades na inter-pretação e defesa das aspirações do povo brasileiro, e considerando neces-sária uma definição do seu pensamento e de sua atitude em relação às ques-tões políticas básicas do Brasil, neste momento histórico, declaram e ado-tam os seguintes princípios:

Primeiro – A legalidade democrática como garantia da completa liberdadede expressão do pensamento, da liberdade de culto, da segurança contra otemor da violência e do direito a uma existência digna.

Segundo – O sistema de governo eleito pelo povo mediante sufrágio univer-sal, direto e secreto.

Terceiro – Só o pleno exercício da soberania popular em todas as naçõestorna possível a paz e a cooperação internacionais, assim como a indepen-dência econômica dos povos.

CONCLUSÃO – O Congresso considera urgente a necessidade de ajustar-se a organização política do Brasil aos princípios aqui enunciados, que sãoaqueles pelos quais se batem as forças armadas do Brasil e das Nações Uni-das (LIMA, 2010, p. 209. Grifos nossos).

9 A enquete foi promovida pela Revista do Globo alguns meses antes do encontro, evidenciandoque os temas nele em questão estavam sendo debatidos na imprensa com relativa antecedência.

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Somente com a queda da ditadura varguista e seus mecanismos cer-ceadores da liberdade de expressão é que os escritores, os tradutores e osjornalistas teriam assegurada a plenitude de condições para suas ativida-des. O documento selou o evento que, em seu próprio desenrolar, começoua ser construído como marco de uma nova fase na vida cultural e políticado país (PALAMARTCHUK, 2003, p. 308-309).10 No fim daquela décadae na seguinte, a “missão” do intelectual comunista ganhou traços mais níti-dos na organização. É possível vislumbrar seus contornos, principalmente,no compromisso do PCB com a campanha mundial pela paz e na adoçãodo realismo socialista como corrente estética oficial do Partido.

Segundo estudo de Jayme Fernandes Ribeiro, acreditava-se numapossível “ação direta” do imperialismo norte-americano contra a UniãoSoviética e, por essa razão, em reunião do Kominform de novembro de1949, a “luta pela paz” foi definida como tarefa central do movimento co-munista, à qual deveriam subordinar-se todas as outras tarefas e objetivos.Com o Apelo de Estocolmo, lançado em março de 1950 pelo Comitê Mun-dial dos Partidários da Paz, teve início a Campanha pela Proibição dasArmas Atômicas. O objetivo era reunir assinaturas em diversos países eenviá-las à Organização das Nações Unidas (ONU), manifestando a posi-ção de milhões de pessoas em favor da paz (RIBEIRO, 2008, p. 262-263). Odocumento mobilizou comunistas em todo o mundo contra as armas atô-micas. Eles eram chamados “combatentes da paz”.

Os comunistas brasileiros lançaram mão de diversas estratégias paralograr o maior número possível de assinaturas: comícios-relâmpago, festas,festivais, concurso, palestras, dramatizações sobre os efeitos da bomba atô-mica, distribuição de panfletos, matérias jornalísticas na imprensa partidá-ria etc. (RIBEIRO, 2007, p. 64). No Rio Grande do Sul, a poetisa Lila Ripo-ll atuou intensamente na campanha, organizando e participando de con-gressos, compondo a direção do Movimento Estadual dos Partidários daPaz, escrevendo poesias (BALBUENO, 2005, p. 117, 125 e 142). Na dire-ção da revista Horizonte, a poetisa divulgou o Apelo de Estocolmo e convi-dou intelectuais “das mais variadas tendências políticas” para participar da

10 Os encontros subsequentes foram marcados pelo crescente domínio do PCB sobre a ABDE.Para maiores informações sobre as disputas políticas no seio da entidade, conferir: AMADO,1992; CAVALCANTE, 1986; LIMA, 2010; RUBIM, 1986.

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campanha, procurando convencê-los de que poderiam “dar um poderosoauxílio”, “colhendo assinaturas de personalidades” (o que aumentaria anotoriedade da campanha e lhe conferiria credibilidade) e “usando sua artepara a propaganda da Paz” (Intensificar a luta pela paz. Horizonte, PortoAlegre, n. 7, p. 187, jul.1951). Podemos situar o trabalho pela campanha noperiódico entre as estratégias usadas por Lila e seus companheiros parasensibilizar os leitores e lograr suas assinaturas no documento.

Naquele contexto – em que a Guerra Fria e o retorno à clandestini-dade motivaram a radicalização da linha política do PCB – a literatura nãoera considerada atividade acessória, mas uma tarefa política prática da maiorimportância, porque estava inserida no movimento revolucionário. Consi-derava-se que a chamada “arte revolucionária” – a literatura, a gravura e asdemais formas de expressão artística – deveria atuar sobre o desenvolvi-mento da revolução, inspirando-se nela e, ao mesmo tempo, servindo-lhede instrumento para o alcance de seus objetivos. Dessa forma, a classe ope-rária tinha um de seus importantes instrumentos de luta na “arte de van-guarda”, a qual tinha o dever de ir contra “a arte velha, burguesa, degene-rescente”, que não refletia a “abnegação e o sacrifício das grandes massaspopulares” e não servia à causa do povo (Participemos da luta heroica dopovo brasileiro. Horizonte, Porto Alegre, n. 7, p. 189-190, jul. 1951). A cria-ção realista – difundida em revistas e em livros editados pelo Partido – de-veria fixar tipicamente os temas e os personagens populares brasileiros nãosó pelo comprometimento em mostrar a verdade, mas pelo compromissocom a transformação ideológica e com a educação dos trabalhadores nosprincípios do socialismo.

Essa concepção de arte fazia-se tanto mais necessária diante do im-perialismo. Argumentava-se que, desprovido de autonomia cultural, umpovo tornava-se incapaz de pensar por si, aceitando passivamente imposi-ções externas (O cosmopolitismo e as tarefas atuais da literatura. Horizonte,Porto Alegre, ano II, n. 8, p. 230, set. 1952). Por isso crescia a responsabili-dade dos escritores, cuja “tarefa” era criar uma literatura que não se satisfi-zesse apenas em expressar a situação de miséria e de opressão em que seencontrava o país, mas que indicasse ao povo brasileiro a solução revolucio-nária de seus problemas. Para tanto, fazia-se necessária íntima ligação coma população, com seu folclore e com seu passado cultural, e essa aproxima-ção poderia ser conquistada observando o método do realismo socialista.

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A arte era uma arma de luta naquele estágio da revolução mundial que ointelectual comunista tinha a capacidade e o dever de operar.

Os intelectuais, de um modo geral, concordavam com a política arbi-trada pelo Partido (MORAES, 1994, p. 91). No terreno das artes plásticas,os clubes de gravura – impulsionados em todo o país pelo PCB nos anos1950 – são um exemplo de como a organização se serviu da arte para agita-ção e propaganda (RIDENTI, 2010, p. 69). Para o gravurista Carlos Scliar,que atuava no Clube dos Amigos da Gravura de Porto Alegre junto a VascoPrado e Danúbio Gonçalves, a defesa do realismo socialista se justificavapor ser uma arte que “mexia com a cabeça das pessoas”, e só alguém comconsciência poderia modificar a realidade social (apud MORAES, 1994, p.176, n. 125).

Parece ter sido na produção literária que a adoção de uma culturaproletária exigiu maiores sacrifícios e gerou decepções. Num relato ressen-tido, Osvaldo Peralva (1962, p. 238) conta-nos que Alina Paim e DalcídioJurandir, aceitando levar as teses do realismo socialista às últimas consequ-ências, dispuseram-se a viver algum tempo no cenário em que se desenrola-ram as histórias que iriam ser transformadas em romances. Partilharamtodas as privações que a realidade impunha a seus personagens e, ao entre-garem os originais para a direção, a fim de os terem publicados pela editorado Partido, foram duramente criticados e humilhados pelos dirigentes, quechegaram a questionar se os referidos camaradas eram “realmente roman-cistas”.

Ao compararmos esse episódio com a citação reproduzida da revistaLibertação no início desse texto, constataremos duas visões diametralmenteopostas em relação aos intelectuais. Enquanto naquela eles foram exalta-dos, nesse foi-lhes negada até a condição de escritores, evidenciando ummenosprezo que compunha uma tradição anti-intelectual com raízes anti-gas na cultura partidária (FERREIRA, 2002, p. 189).

Ora elogiados e úteis, ora desprezados e não confiáveis, os intelectuaisnão escaparam das exigências impostas a todo militante comunista. Comoos camaradas operários, eles também foram submetidos ao “massacre detarefas” e chamados a comprometer a própria existência em prol da revolu-ção. Mas eles carregavam consigo algo que os diferenciava dos trabalhado-res e que, para o bem ou para o mal, estava na base do que unia, sob adenominação de “intelectual comunista”, mulheres e homens com trajetó-

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rias as mais diversas e diferentes maneiras de se adaptar ao dia a dia damilitância: a origem social.

A julgar por sua origem de classe, e pelas distinções sociais e recursos(capacidade de criação, saberes, relações etc.) possíveis de serem incorpo-rados em trajetórias que ela determinava, os intelectuais comunistas tinhamum lugar e um papel no interior do PCB. A potencialidade da sua contri-buição para a revolução ou os problemas que poderiam acarretar ao Parti-do, suas qualidades e seus vícios, eram interpretados à luz da bagagem socialque traziam consigo e de tudo o que era, pejorativamente ou não, associadoa ela. Intelectual comunista, assim, era o substantivo que dava nome a umgrupo específico de militantes e o adjetivo com o qual se (des)qualificavaalguém que apresentasse comportamento considerado típico daqueles oriun-dos das classes abastadas, expandindo as fronteiras do que poderia ser com-preendido pela expressão.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

As usinas do anticomunismo castrenseOs intelectuais do nacionalismo de direita

na Argentina, 1955-1966

Juan Manuel Padrón

Introdução

Nos anos 60, especialmente depois do triunfo da Revolução Cubana,o anticomunismo passou a ocupar um lugar central para as elites latino-americanas que se sentiam ameaçadas pela expansão do modelo cubano.Essas elites encontraram ao menos quatro aliados em sua cruzada contra o“perigo vermelho”: um exterior, as potências ocidentais, particularmenteos Estados Unidos, e três internos, os intelectuais de direita, as cúpulas daIgreja Católica e das Forças Armadas. Embora o peso desses atores fossedessemelhante em cada país latino-americano, é inegável que eles foramfundamentais para a difusão de um anticomunismo muitas vezes radicali-zado e violento, que alimentou, nas décadas posteriores, as ditaduras maissangrentas que a América Latina tinha experimentado.

Neste trabalho, busco uma primeira aproximação à relação que seestabeleceu entre dois desses atores: os intelectuais de direita e as ForçasArmadas. Para isso, irei me concentrar no caso da Argentina do iníciodos anos 60. Além disso, e pensando no campo intelectual, esse recortecorresponderá ao que chamaremos de “intelectuais do nacionalismo dedireita”, um subgrupo que, como mostrarei na primeira parte deste en-saio, constituía um universo bem definido, ainda que heterogêneo em suacomposição, que, embora compartilhasse o anticomunismo com o restan-te dos intelectuais de direita, bebia de uma tradição alheia (e crítica) àliberal. Nesse sentido, irei me concentrar em duas figuras desse universo,cuja obra se articulou, já antes dos anos 60, na denúncia do comunismo ede seus efeitos destrutivos sobre a Nação: Jordán Bruno Genta e JulioMeinvielle.

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Entendo que a história dos intelectuais, ou história intelectual, per-mite mais de uma abordagem. Nos últimos 30 anos, ela passou por umamplo desenvolvimento. A renovação historiográfica ocorrida nesse mes-mo período, com a revalorização do político como campo autônomo e re-conhecido da pesquisa, revitalizou e redefiniu outros espaços para a análisehistórica. A tradicional história das ideias, embora não tenha declinado emsua significação dentro do campo historiográfico, deixou um lugar signifi-cativo para outras formas de abordar o estudo dos intelectuais. Nesse senti-do, optarei, de uma maneira eclética, por uma análise que, nas palavras deCarlos Altamirano, “comunique a história política, a história das elites cul-turais e a análise histórica da literatura das ideias”, que não reduza essahistória intelectual a “ser história puramente intrínseca das obras e dos pro-cessos ideológicos, nem se contente com referências sinóticas e impressio-nistas à sociedade e à vida política” (ALTAMIRANO, 2005).

Quanto à organização deste trabalho, esboço duas grandes seções. Aprimeira apresenta os intelectuais do nacionalismo de direita na Argentinano período compreendido entre dois golpes de Estado, de 1955 a 1966, emque expomos de maneira geral como esse universo estava organizado inter-namente e quais foram suas principais posturas políticas e ideológicas. Asegunda se concentra nas figuras de Genta e Meinvielle, em suas ideias enas redes que construíram para alcançar com sua pregação anticomunistao ator que consideravam a última barreira contra o avanço comunista, asForças Armadas.

Os intelectuais do nacionalismo de direitaentre duas “revoluções”

O nacionalismo de direita era, em inícios dos anos 60, um conjuntoheterogêneo de agrupações, intelectuais e projetos jornalísticos. Muitas ve-zes, ele foi apresentado erroneamente como um setor estático, cujas ideiase práticas não pareciam ter variado significativamente desde os anos 20 e sótinha adotado uma linguagem mais “popular” para se aproximar das mas-sas peronistas (ROCK, 1993, p. 190-192).

Em seu interior, podem-se diferenciar ao menos dois subgrupos: oprimeiro é uma corrente de intelectuais nacionalistas que compartilhavamcertas ideias básicas sobre a sociedade e a política: respeito e defesa das

PADRÓN, J. M. • As usinas do anticomunismo castrense

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hierarquias, apoio a modelos corporativistas de organização política e so-cial, apego ao revisionismo histórico, um catolicismo militante, oposição aliberais e setores de esquerda, um antissemitismo muitas vezes disfarçadode antissionismo e um nacionalismo econômico radical; o segundo é com-posto por um sem-número de organizações juvenis nacionalistas organiza-das como verdadeiros grupos de choque, em que não só apareciam os tra-ços antes mencionados para os setores intelectuais, mas em que a violên-cia, como prática política, ocupava um lugar central; essas organizaçõesconcebiam a revolução como motor da mudança política e social, aindaque a partir de uma perspectiva alheia e oposta à tradição de esquerda(LVOVICH, 2006).

Sua história remontava a fins dos anos 20, mas, em termos imedia-tos, a experiência peronista tinha marcado a fogo seu posicionamento polí-tico e ideológico. Durante os governos peronistas, os nacionalistas assumi-ram uma atitude ambígua frente ao novo fenômeno político. Sem dúvida,foram participantes ativos dos governos instaurados em 1943, ocupandoespaços secundários dentro das administrações dos presidentes Ramírez eFarrell1. Não obstante toda a reserva que mostravam frente ao próprioJuan Domingo Perón, seu apoio foi evidente nas eleições de 1946, e mui-to poucos desses intelectuais podiam negar que Perón era o “mal menor”,especialmente ante a coalizão de radicais, socialistas e comunistas que en-frentava (WALTER, 2001, p. 262-264).

Nos anos posteriores, esse apoio inicial condicionado passaria, lentamas inexoravelmente, a transformar-se em hostilidade aberta. Em princí-pio, os nacionalistas creram descobrir no peronismo lemas que lhes erampróprios, particularmente em relação ao que chamavam de “justiça social”.Entretanto, esse uso de slogans e ideias alheias por parte de Perón não foiacompanhado de espaço algum para as aspirações políticas dos nacionalis-tas. Os veículos de imprensa destes últimos começaram lentamente a min-guar, e grande parte das organizações existentes nos anos anteriores se dis-solveu ou ficou vinculada ao próprio peronismo, como foi o caso da Alian-

1 Uma vez ocorrido o golpe de junho de 1943, embora a participação dos nacionalistas nele fossemarginal, aprovaram a nova gestão, e algumas de suas figuras passaram a ocupar lugares den-tro da administração, em especial no campo educacional, ou nas administrações provinciais(NAVARRO GERASSI, 1968, p. 179-182).

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ça Libertadora Nacionalista. Mais tarde, vários conflitos avivaram o res-sentimento para com o governo. Embora reconhecessem certos êxitos napolítica econômica e na política externa, o que não deixava de incomodaresses setores era o pragmatismo de Perón, especialmente no tema da políti-ca social e na busca de apoio entre os setores operários (WALTER, 2001, p.266). Também os incomodava o papel assumido por Eva Duarte, esposa dePerón, dentro do governo, e frente a ela demonstravam, em muitos casos,simplesmente desprezo. Este se devia a que a relação entre Perón e a jovematriz, segundo matrimônio do coronel, “ia contra as grandiloquentes nor-mas morais pregadas pelos nacionalistas como elementos essenciais da sal-vação nacional e espiritual” (WALTER, 2001, p. 262).

A aproximação do governo de setores que os nacionalistas não viamcom bons olhos avivou essa antipatia para com os integrantes do governo,em especial quando um desses grupos foi a própria comunidade judaica2.Em termos gerais, como expressou um reconhecido sacerdote nacionalistacatólico, o presbítero Julio Meinvielle, o peronismo, preocupado que estavaem solucionar as questões materiais, tinha sido incapaz de dar à ordemestatal e política verdadeiros valores nacionalistas e católicos. Entretanto,se houve uma questão que acabou rompendo os frágeis laços que podiamexistir entre o nacionalismo e o peronismo foi o conflito entre o Estadoperonista e a Igreja Católica. Desde o início dos anos 50, primeiro a criseeconômica e depois a morte da esposa de Perón implicaram mudanças radi-cais de direção nas políticas do governo. O gasto público excessivo, a buscade apoio econômico nos Estados Unidos e a crise moral que os nacionalistasacreditavam descobrir no governo foram os prolegômenos para os aconteci-mentos e enfrentamentos que ocorreriam a partir de 1954. Perón avançounuma série de medidas que contrariavam a Igreja Católica e o pensamentonacionalista (lei do divórcio civil, legalização do exercício da prostituição,abolição do ensino religioso), fazendo com que esses setores se voltassemnaturalmente para a vasta oposição que estava se formando contra ele.

2 A partir de fevereiro de 1947, o governo de Perón começou a se aproximar de alguns setores dacomunidade judaica que tinham se reunido na Organização Israelita Argentina (OIA); estaconcorria com a Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA) pela representaçãodos judeus perante o governo, ainda que a partir de uma posição partidária que a DAIA nãotinha. De modo geral, as relações do governo peronista com a comunidade judaica argentinaforam boas, embora nesta última nunca tenha desaparecido inteiramente o temor de uma pos-sível atitude antissemita por parte do peronismo (veja REIN, 2001, p. 57-138).

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

A participação dos nacionalistas no golpe de setembro de 1955 foimuito importante. Eles fizeram isso, sobretudo, como católicos, junto comseus antigos inimigos ideológicos e agora eventuais aliados: radicais, socia-listas e comunistas. Ainda assim, uniram-se atrás da rebelião do generalLonardi, e, com o triunfo deste, muitos obtiveram postos de relevância nanova administração3. Entretanto, esse fato, somado à política conciliadoraimplementada pelo novo governo, acabou desencadeando a queda do pró-prio Lonardi e dos nacionalistas que lhe eram próximos e sua substituiçãopor uma nova administração de perfil liberal, encabeçada pelo general Pe-dro Eugenio Aramburu e pelo almirante Isaac Francisco Rojas.

Embora fosse errôneo considerar o setor nacionalista como homogê-neo e inclusive estabelecer uma relação direta entre ele e os setores lonar-distas, é certo que a queda de Lonardi significou um fracasso para os nacio-nalistas, que tiveram de abandonar o governo e passaram a engrossar asfileiras da oposição. Era mais uma derrota, como aquela que tinham vividocom “a hora da espada” em 1930, ou com a “revolução restauradora” em1943, e uma nova frustração de seu intento de acionar as lideranças cas-trenses nas quais depositavam todas as suas esperanças4.

Ainda assim, o nacionalismo sobreviveu à crise de novembro de 1955,mas o fez radicalizando uma de suas características centrais, a tendência àdivisão. Entre 1955 e 1958, quando houve nova eleição para presidente,foram vários os empreendimentos políticos e jornalísticos levados a cabopelos nacionalistas (veja Quadro 1).

Essa fragmentação se expressou cabalmente na impossibilidade dearticular uma proposta política única e com certo apoio. Esse fracasso temmúltiplas explicações possíveis. Por um lado, os nacionalistas sofreram,

3 Entre os intelectuais nacionalistas católicos do novo governo de Lonardi devem ser destacadosMario Amadeo, ministro de Relações Exteriores; Juan Carlos Goyeneche, chefe da Secretariade Imprensa; Luis María de Pardo Pablo, ministro do Interior após a renúncia do liberal Eduar-do Busso, e Clemente Villada Achával, secretário assessor do presidente (SPINELLI, 2005).

4 Os golpes de Estado de setembro de 1930, que derrubou o governo radical de Hipólito Iri-goyen, e o de junho de 1943, que acabou com o governo do conservador Ramón Castillo, foramapoiados pelos nacionalistas, e muitos intelectuais e políticos provenientes de suas fileiras ocu-param postos secundários nas administrações governamentais. Entretanto, em ambos os casoseles abandonaram o governo: no primeiro caso, por causa do fracasso da reforma corporativis-ta que se propunha o general Uriburu, cabeça da revolução; no segundo, por causa do abando-no da postura neutralista na Segunda Guerra Mundial, percebida como uma traição da tradi-ção argentina (cf. DOLKART, 2001; ECHEVERRÍA, 2009, WALTER, 2001).

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depois da queda de Perón, uma mudança significativa em suas posturasideológicas, com escassa referência no passado dos próprios participantes,o que, muitas vezes, podia ser interpretado como simples oportunismo.Como destacava nessa época o socialista Oscar Troncoso,

se esmeraban en demostrar que ellos representaban una nueva corriente dentrode su ideario; procuraban usar un lenguaje más mesurado que el que erahabitual en sus antecesores; muestran actitudes algo circunspectas y opinio-nes más contemporizadoras […] Como principal síntoma de su evolución ode su revisionismo de las ideas nacionalistas, manifiestan a través de su hojasu amor por la libertad y su profundo respeto por las garantías individuales[…] frente al nacionalismo de otrora, tipo Legión Cívica o Alianza, militari-zado, agresivo, intolerante, criminal y rabiosamente totalitario, ellos se pre-sentan con un nacionalismo pintado con los colores de nuestra bandera,versión despojada de aquellos vicios… (1957, p. 72-73).

Quadro 1

Partidos e publicações nacionalistas destacadas5 (1955-1958)

Partido Publicação Referências Ano dePolítico surgimento

Azul y Blanco Azul y Blanco Marcelo Sánchez Sorondo, Ricardo Curuchet, 1956Máximo Etchecopar, Carlos Ibarguren, JuanCarlos Goyeneche, Mario Amadeo, Mariano

Montemayor, Alberto Tedín, Santiago de Estrada.

Bandera Popular Gral. Justo León Bengoa. 1956

Combate Jordán Bruno Genta, Gustavo Martínez 1955Zubiria (Hugo Wast), Carlos Alberto Felici.

Cruzada Cosme Beccar Varela, Jorge Labanca, 1956Juan Carlos Clausen.

Mayoría Tulio Jacobella. 1957

PartidoLaborista

Cristiano Gral. Carlos E. Velazco, Bonifacio Lastra. 1955

Partido Social Horacio Godoy, Francisco Arias Pellerano. 1956Demócrata

Presencia Pbro. Julio Meinvielle. 1949

Revolución Luis Cerrutti Costas 1956Nacional

5 Nesse grupo foram incluídos alguns partidos e jornais de orientação católica nacionalista.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Partido Publicação Referências Ano dePolítico surgimento

Unión Popular ? 1956?DemócrataCristiana

Unión Unión, Mario Amadeo, Emilio Mignone, Horacio 1955Federal Media Hora Storni, Eduardo Enrique Ariotti,

Clemente Villada Achával.

Unión Cívica Horacio Naya. 1942Nacionalista

Unión La Voz Julio Irazusta, Rodolfo Irazusta. 1955Republicana Republicana,

UniónRepublicana

Fonte: Elaboração própria a partir de Rock (1993), Zuleta Álvarez (1975), Navarro Geras-si (1968), Beccar Varela (1970), Fares (2007), Caponnetto (1999), Melón Pirro (2002).

Em segundo lugar, depois do golpe de setembro, eles mostraram umaatitude vacilante frente à revalorização de alguns aspectos do peronismo.Enquanto que, imediatamente após setembro, e em consonância com a po-lítica conciliadora de Lonardi, alguns nacionalistas resgatavam a influên-cia de sua doutrina nos aspectos mais destacados do peronismo, em mea-dos de 1956 muitos denunciavam isso como um verdadeiro “saque” (SPI-NELLI, 2005, p. 232). Frente às massas peronistas, que logo se mostrarammais fiéis ao líder exilado do que todos os atores políticos poderiam prever,atacar o regime passado ou denunciar o oportunismo de seu líder não en-controu uma resposta favorável nesses setores. Quando tentaram reeditarum “peronismo sem Perón”, elogiando os aspectos positivos do regime pas-sado, em especial o “sentido social” de sua política, e criticando com dure-za as posturas do antiperonismo mais radical, encontraram poucos interlo-cutores dentro do campo dos vencidos, para não falar de adesão popular.

A candidatura de Frondizi às eleições presidenciais de 1958 consti-tuiu um novo golpe para os nacionalistas. Ele tinha conseguido construiruma ampla aliança de apoio à sua candidatura, e uma parte dos intelectuaisnacionalistas tinha se somado a ela6. Entretanto, uma parte importante de-

6 Amadeo foi premiado por Frondizi com o cargo de Embaixador argentino nas Nações Unidas(cf. ZULETA ÁLVAREZ, 1975, p. 552-553). Já Raúl Puigbó e Mariano Montemayor passa-ram a fazer parte da equipe da revista Qué!, dirigida por Rogelio Frigerio, abordando a grande

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les abandonou o governo, concentrando seus ataques na figura do presi-dente, que considerava gestor de um plano para o triunfo comunista nopaís, acompanhado pelos setores liberais maçons e pelos tecnocratas liga-dos aos organismos financeiros internacionais.

Os intelectuais nacionalistas sobreviveram a essas experiências refu-giados em diferentes empresas jornalísticas, ou em agrupações, centros deestudos ou ateneus políticos cujo impacto na política cotidiana ficou muitolimitado7. A partir desses espaços, incitavam os militares a decidir-se a to-mar o poder, e, quando isso aconteceu, exigiam uma verdadeira “revoluçãonacional”, e mais tarde uma ditadura. O vislumbre de reconstrução de umaordem democrática, a convocação de eleições e a crise das Forças Arma-das, que entre 1962 e 1963 chegou ao extremo de um enfrentamento arma-do, por causa de posições em confronto em torno do papel dos militares navida política, implicou um golpe profundo para os projetos e as ideias dosintelectuais nacionalistas8. Ainda assim, sua pregação contra a democracianão se deteve, e eles participaram da destruição do governo de Arturo Illia,candidato da UCR do Povo, que tinha conseguido chegar ao governo coma prescrição do peronismo.

Não é de estranhar, então, que a chegada de Onganía ao poder tenhasido aclamada pelos nacionalistas. Entretanto, essa adesão inicial foi se di-luindo lentamente. O primeiro aspecto perturbador do novo governo foisua composição. Embora vários nacionalistas houvessem se somado a ele,também havia uma presença importante de representantes dos setores libe-

possibilidade que o país tinha de sair do estancamento político y econômico, por meio de umapolítica de industrialização de base (cf. BERAZA, 2005, p. 120).

7 Em inícios dos anos 60 só sobreviviam ainda dois partidos nacionalistas, a União Federal e aUnião Cívica Nacionalista, que, ao participar de eleições, tiveram um apoio ínfimo. Em 1963,surgiu o Ateneu da República, um agrupamento de intelectuais nacionalistas que tiveram seumomento de reconhecimento no início da Revolução Argentina, em 1966. Só os setores maisreacionários das Forças Armadas, as agrupações antissemitas e filofascistas que atuaram atémeados da década de 60 e os grupos católicos integristas foram receptivos a suas ideias.

8 Depois da derrubada de Frondizi, em março de 1962, e durante o governo de seu sucessor JoséMaría Guido, entre setembro de 1962 e abril de 1963, dois setores das Forças Armadas, os“azuis” e os “colorados”, enfrentaram-se, chegando inclusive a um confronto armado. O pri-meiro se identificava com os setores “legalistas”, partidários da entrega do governo aos civis; osegundo representava os setores mais duros do antiperonismo e exigia um governo duro queevitasse o retorno do peronismo ao poder. A confrontação terminou com um acordo, referen-dado pelo chamado Comunicado 200, em que se chegava a dois acordos básicos: convocareleições e manter a proscrição do peronismo (cf. POTASH, 1981; ROUQUIE, 1998).

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

rais. As esperanças de que o “onganiato” acabasse para sempre com osmales da democracia liberal se chocaram com a realidade: a esperada revo-lução nacional foi traída por um governo que se voltou para os tecnocratasliberais.

Durante esses anos, foram vários os temas que marcaram a agendade reflexão e ação dos intelectuais nacionalistas. Contudo, uma temática seimpôs às outras, em especial depois do triunfo da Revolução Cubana e desua passagem para a esfera soviética. Essa temática foi a “ameaça comunis-ta”, que, no plano local, articulou três temas fundamentais: identificar osresponsáveis pela infiltração comunista; atuar no sentido de evitar que asmassas peronistas, proscritas politicamente, se voltassem para as opçõespolíticas de esquerda; e conscientizar as Forças Armadas de seu papel cen-tral na defesa da tradição ocidental, hispana e católica, frente ao avanço docomunismo. Nessa tarefa se destacaram duas figuras do nacionalismo dedireita: Jordán Bruno Genta e o presbítero Julio Meinvielle.

Jordán Bruno Genta, apologeta da guerracontrarrevolucionária

Jordán Bruno Genta nasceu em 1909, no seio de uma família de imi-grantes. Escritor e professor de filosofia e letras, incursionou no jornalismoe, durante sua vida, escreveu diversos livros de ampla difusão nos círculospróximos do nacionalismo católico. Em 1943, foi designado interventor daUniversidade Nacional do Litoral pelo governo surgido com o golpe mili-tar de 4 de junho de 1943, posto que teve de abandonar imediatamente porcausa da resistência do movimento estudantil à sua gestão, que tinha secaracterizado pela tentativa de limitar o cogoverno universitário e a liber-dade acadêmica. Em confronto com o peronismo, refugiou-se nas aulasprivadas de filosofia e política que dava.

Com a queda do governo peronista em 1955, ele começou a editarCombate, uma publicação quinzenal que se manteria até o ano de 1967 e setornaria órgão de expressão do núcleo de seguidores que Gente tinha nasaulas que ministrava. Os temas abordados nessa publicação estavam orga-nizados em torno de certos tópicos centrais: o anticomunismo, o antissemi-tismo, a denúncia da democracia liberal, o ataque à maçonaria e a defesadas Forças Armadas como reservatórios morais e políticos da Pátria. Em

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sua definição inicial, apresentavam-se como “católicos nacionalistas e hie-rárquicos”, inimigos de uma democracia liberal que julgavam ter introduzi-do “a rebelião do pessoal subalterno” e a “total descristianização da socie-dade argentina”9.

No plano político, embora tenha mantido durante toda a sua existên-cia um discurso fortemente antiperonista, isso não implicou de maneira al-guma seu apoio aos governos que mantiveram a proscrição do peronismo ede seu líder. Tanto o governo da Revolução Libertadora quanto as presidên-cias de Frondizi (1958-1962), Guido (1962-1963) e Illia (1963-1966) foramalvo dos ataques de Genta através de sua publicação, esgrimindo em todos oscasos como argumentos fundamentais o papel das “forças mencheviques”que, por sua vez, cada governo desdobrava, abrindo a porta ao comunismona Argentina. Essa pregação se radicalizou depois de 1959, com o êxito daRevolução Cubana, sua passagem para a esfera comunista e a rápida percep-ção de que o fenômeno se repetiria no resto da América Latina.

Nesse contexto, interessa-me destacar quais foram os tópicos cen-trais desse discurso anticomunista e seu nexo com as Forças Armadas nodevir político argentino. Se nos detemos nos primeiros números de Comba-te, em sua apresentação elas ocupavam um lugar apenas marginal, e só sefazia referência a elas quando se denunciava um espírito de rebelião socialque, caso não fosse combatido, afetaria diretamente a hierarquia castren-se10. Haveria que esperar até o número 5 da publicação, em fevereiro de1956, para encontrar uma referência mais extensa ao papel das Forças Ar-madas na recente revolução que derrubara Perón, a qual estaria sendo to-mada pelos políticos tradicionais que ameaçavam a integridade dos jovensmilitares que tinham levado adiante essa revolução mesmo contra seus su-periores “corrompidos até a medula”11. A partir desse momento passariama ocupar maior espaço os apelos dirigidos às Forças Armadas para queacabassem com o papel que os partidos políticos tradicionais tinham nogoverno da Revolução Libertadora, em especial os socialistas e radicais12.

9 Nuestra definición. Combate, ano 1, n. 1, p. 2, 8 dez. 1955.10 Ibid.11 ¿Por qué la revolución no anda. Combate, ano 1, n. 5, p. 2, 9 fev. 1956.12 O governo da Revolução Libertadora era formado por um Poder Executivo, ocupado pelo

general Aramburu e pelo almirante Rojas, e pela Junta Consultiva, que fazia as vezes de PoderLegislativo e era formada por representantes dos partidos políticos opositores ao peronismoderrubado.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

As ligações de Genta e do grupo reunido em torno de Combate comcertos setores das Forças Armadas começaram a se estreitar nesses anos.Em meados de 1956, a publicação denunciou a detenção do então vigáriogeral da Aeronáutica Militar, o presbítero Eliseo Melchiori. Este era umvelho conhecido de Genta, com o qual tinha compartilhado seu antipero-nismo e suas críticas ao governo de Aramburu. Uma vez libertado e recolo-cado em seu lugar de vigário geral, Melchiori aproximou Genta da Aero-náutica, onde começou a ser uma referência entre os oficiais antiperonistasmais recalcitrantes. Entre eles se encontrava o Comodoro Agustín Héctorde la Vega, que em setembro de 1957 estava encarregado da chefatura decadetes da Escola de aviação Militar de Córdoba13.

Paralelamente, a partir da publicação se reforçou o discurso a favor deum maior compromisso dos militares com o governo revolucionário, o qual,segundo a denúncia dela, tinha caído nas mãos de certos setores das ForçasArmadas afins ao liberalismo, defensores de uma saída democrática e alia-dos dos velhos políticos. A democracia continuava ocupando um lugar cen-tral na lista de alvos dos ataques de Genta e seus seguidores, e o anticomunis-mo era um tópico secundário, ainda que nada desprezível, nesse discurso.

Em inícios de 1958, já confirmada a vitória do candidato da UCRIntransigente, Arturo Frondizi, nas eleições presidenciais, Combate dariamaior espaço ao “perigo comunista”, publicando uma série de notas quedenunciavam os nexos entre o processo democrático aberto com as eleiçõese o desenvolvimento de uma guerra revolucionária que terminaria com ainstauração de um regime comunista no país. Frondizi era apresentado comoo candidato da maçonaria, aliado do peronismo, do Partido Comunista edo judaísmo internacional, e o futuro era imaginado como devastador:

Por ahora, la coincidencia de la extrema izquierda se ha producido en lasurnas; pero más allá de Perón o de Frondizi, sea que este último pueda cum-plir o deje de cumplir sus compromisos peronistas, lo cierto es que el cegetis-mo bolchevique del proletariado fabril y campesino, conjugado con el laicis-mo escolar, la coeducación, el divorcio y la reforma universitaria, van a pre-cipitar la descomposición moral y material de la Patria.14

Os chamados dirigidos às Forças Armadas, como reservatórios dosvalores morais católicos e patrióticos, começaram a multiplicar-se na publi-

13 De la Vega tinha participado ativamente dos bombardeios da Praça de Maio em junho de1955, sublevando uma parte dos pilotos da Base de Morón (cf. FERRARI, 2009, p. 214-215).

14 La extrema izquierda en el poder. Combate, ano 3, n. 49, p. 1, 29 mar. 1958.

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cação. Paralelamente, Genta começou a fazer conferências em diferentesespaços ligados ao nacionalismo, como a livraria Huemul, de seu cunhadoAntonio Rego, que se centravam na relação entre o comunismo e o mundocontemporâneo, denunciando especialmente a infiltração comunista nogoverno e no âmbito educacional. Além disso, incentivava-se com maiorvigor a alternativa ditatorial frente a uma democracia responsável pelo avan-ço comunista. Nesse sentido, recuperavam-se os ensinamentos do intelec-tual hispânico Donoso Cortés, para o qual “quando a legalidade basta parasalvar a sociedade, a legalidade; quando não basta, a ditadura”15.

O tom pessimista foi mantido durante todo o período, particularmentefrente ao papel passivo, quando não cúmplice, que se atribuía às ForçasArmadas e à Igreja Católica, nesse processo de um caminho inexorávelrumo à instauração da “ditadura do proletariado” na Argentina. Isso nãoimpediu que Jordán Bruno Genta aprofundasse os laços que tinha estabele-cido com alguns setores militares. Assim, em inícios dos anos 60, a ForçaAérea, através do secretário de Aeronáutica, brigadeiro Jorge Rojas Sil-veyra, encarregou Genta de redigir uma série de textos que seriam distribu-ídos entre os membros da força em forma de folhetos. O tema desses textosera a “guerra contrarrevolucionária”, e logo o primeiro folheto chegou àsmãos de seus destinatários. A denúncia do conteúdo “falangista” da publi-cação por parte da imprensa de esquerda e o forte debate público que seiniciou em torno do tema levaram Rojas Silveyra a retirar os folhetos decirculação e a proibir sua difusão entre os oficiais. A reação de Genta nãose fez esperar, e ele logo atacou Rojas Silveyra dizendo que este estava aserviço da maçonaria16. Pouco tempo depois, as conferências foram publi-cadas em formato de livro com o título Guerra contrarrevolucionária.

O texto tinha um destinatário claro: os membros das Forças Arma-das. Não era um texto publicado solitariamente17, mas se inscrevia num

15 Frente al desorden: LA DICTADURA. Combate, ano 3, n. 63, p. 4, 11 dez. 1958.16 As denúncias partiram de Afirmación, semanário socialista dirigido por Américo Ghioldi, e

encontraram eco na imprensa nacional, que estava sensibilizada frente a uma onda de antisse-mitismo que assolava o país desde o sequestro e julgamento de Eichmann. O ataque de Gentapode ser visto em “La masonería en la Fuerza Aérea”, ano 7, n. 109, p. 1-3, 21 jun. 1962. AIgreja Católica aprovou o texto do folheto em junho de 1962.

17 Nesses anos seriam publicados Guerra revolucionaria comunista (1962), do coronel Osiris Ville-gas, Democracia y comunismo (1962), do coronel Abraham Granillo Fernández, e Paredón deAmérica (1964), de Armando Alonso Piñeiro.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

clima de época que via nas Forças Armadas a última contenção frente aoavanço comunista. Ainda assim, ele pode ser interpretado como todo umprograma que pensava a Argentina sob um duplo aspecto: a partir de uma“doutrina positiva”, que apresentava “os princípios, valores e instituiçõesfundamentais que devem ser afirmados, servidos e defendidos em todos osterrenos teóricos e práticos”, e de uma “doutrina negativa”, desencadeadapelo comunismo através da guerra revolucionária, e fundamentada numaestratégia, numa tática e nas armas da dialética (GENTA, 1964, p. 11).

O livro tratava de temas tão diversos como a educação universitária eseu papel central na difusão do comunismo, ou o papel fundamental dareligião católica como freio à mentalidade liberal e marxista que se impu-nha a partir dos governos latino-americanos. Mas o eixo fundamental consis-tia em compreender a realidade de uma Pátria que ele considerava ameaçada“pelo pluralismo, pela subversão e pela anarquia no aspecto espiritual, alémda prostração material [...] configuram um paralítico ao qual só falta o socorevolucionário para sua derrubada definitiva” (Genta, 1964, p. 125). Frentea essa realidade, a única solução possível era a “unidade de doutrina”, fun-damentalmente dentro das Forças Armadas. Essa unidade deveria estarfundamentada na destruição da democracia liberal e do sufrágio universal,antessala direta do comunismo18. Era fundamental “a doutrinação do mili-tar argentino na política da Verdade que ele deve conhecer, amar e serviraté a morte”, sobre a base da doutrina católica hierárquica (GENTA, 1964,p. 239).

Embora o livro de Genta tenha tido uma ampla circulação, o êxito desua pregação anticomunista no seio das Forças Armadas foi escasso. O caosem que os chefes militares se debatiam, alimentado pelo problema insolú-vel do período, ou seja, “o que fazer com o peronismo”, eclipsou as concla-mações de Genta a acabar com o regime democrático. Ainda assim, suasligações com figuras como o brigadeiro Cayo Antonio Alsina, comandanteda Força Aérea entre 1962 e 1964, ou com o chefe do Estado Maior dessaforça, Gilberto Hidalgo Oliva, permitiram-lhe manter laços concretos com

18 Como alternativa, Genta propunha a necessidade de uma república corporativista, com umPoder Legislativo composto por uma Câmara de Deputados das Corporações e de um Senadoou Conselho Supremo das Corporações, por um Poder Executivo encabeçado por um presi-dente de uma República corporativa, representativa e federal, eleito pelos governadores (GEN-TA, 1964, p. 223-225).

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a Aeronáutica. Tanto Alsina quanto Oliva participaram ativamente das ten-tativas de levante ocorridas dentro da força durante a primeira metade dosanos 60 e foram expoentes claros do antiperonismo mais radicalizado, fiel,nesse sentido, ao lema de Genta de que, na Argentina, o peronismo era aforça destinada a ser o “cavalo de Troia” do comunismo.

Entretanto, as tentativas de formar uma organização política quepudesse canalizar as ideias de Genta se organizou em torno do já mencio-nado Comodoro De la Vega, que, em 1964, tinha se tornado chefe da re-centemente criada Legião Nacionalista Contrarrevolucionária19. Ela pre-tendia canalizar a militância de jovens nacionalistas desencantados com asorganizações nacionalistas contemporâneas, juntando esforços com os gru-pos afins a Genta dentro das Forças Armadas20. Combate se tornou o porta-voz da nova organização, que se apresentava disposta “a servir em Cristo àPátria, que corre perigo iminente de ser desintegrada pela guerra revolucio-nária e submetida ao terror castro-comunista; empenhamo-nos na defesa erecuperação do ser”21.

A organização estava ligada ao círculo intelectual aglutinado em tor-no de Genta, que se reunia na livraria Huemul, de propriedade do primeirodiretor de Combate, o livreiro Antonio Rego. Seus primeiros membros pro-vinham em sua maioria da Aeronáutica e de uma cisão da Guarda Restau-radora Nacionalista, que tinha se apartado da organização por causa dediferenças em relação ao lugar que ela dava ao peronismo em suas reivindi-cações políticas22. Logo a organização começou a se expandir por todo opaís, embora essa expansão carecesse do impulso necessário para consoli-dá-la em todo o território. Como recordaria anos depois um de seus mem-bros, o fato de sua atuação ficar reduzida ao âmbito da Força Aérea e denão consolidar seu desenvolvimento com militância civil fez com que, em1967, tanto a LNC quanto Combate desaparecessem da cena local (CAPON-NETTO, 1999).

19 Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964.20 Em 1964, as organizações juvenis do nacionalismo, o Movimento Nacionalista Tacuara e a

Guarda Restauradora Nacionalista, encontravam-se em plena crise e num processo de desin-tegração que terminaria com seu desaparecimento virtual da cena política argentina (cf. GUT-MAN, 2003, LVOVICH, 2006).

21 Acta de fundación. Combate, ano 9, n. 123, p. 1, maio 1964.22 Desse grupo provinham Silvio Pestalardo, Ernesto Sylvie (secretário da LNC), Mario Capon-

netto (genro de Genta), Héctor Torre, Héctor Marone e Floribel Medina (Aclaración. Comba-te, ano 9, n. 122, abr. 1964).

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Genta continuaria sendo um intelectual de renome nos círculos nacio-nalistas, ainda que sua capacidade de ser uma referência no plano intelec-tual ficasse restrita a alguns núcleos das Forças Armadas, em especial daAeronáutica. Mesmo assim, sua relevância dentro da direita autoritária an-ticomunista ainda era importante em 1974, quando um comando do Exér-cito Revolucionário do Povo, organização armada de esquerda, pôs fim àsua vida num atentado.

Julio Meinvielle, a dialética comunistae o fim das Forças Armadas

Dentro dos setores católicos nacionalistas, uma das figuras mais im-portantes foi o presbítero Julio Meinvielle, que, através de uma série depublicações político-culturais que editou a partir dos anos 40, tornou-seporta-voz dos setores católicos integristas. Ele nasceu em 1905 e estudouno Seminário Pontifício de Buenos Aires, ordenando-se presbítero em 1930.Era doutor em Filosofia e em Teologia, colaborador ativo de diversas publi-cações católicas e nacionalistas a partir dos anos 30, e pároco na bairro deVersalles, na cidade de Buenos Aires.

Com base num tomismo cerrado, para Meinvielle todo o materialtinha de estar submetido ao espiritual. Além disso, a política, a economia eas concepções de Estado e a sociedade só podiam ser entendidas na medidaem que estivessem subordinadas à teologia. Confrontou-se com os nacio-nalistas que tinham uma noção do Estado fora da ordem teológica, criti-cando as posturas profanas desses setores e declarando abertamente que oúnico nacionalismo viável era aquele com bases doutrinárias firmes funda-mentadas na teologia católica (ZANATTA, 1996, p. 49). Seu principal ini-migo eram os judeus, que encarnavam todas as características anticristãs nahistória: eram responsáveis pela morte de Cristo, pela modernidade e porsuas ideias e especialmente por ser sustentadores e difusores da tríade libe-ralismo-marxismo-democracia, que atentava contra a ordem hierárquicaideal do cristianismo.

A experiência peronista também marcou a pregação desse sacerdote,que, desde 1944, vinha alertando sobre os perigos das políticas de aberturae reforma social que Perón pretendia encarar a partir da Secretaria de Tra-balho. Abordou isso em sucessivas publicações, embora apoiasse tibiamen-

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te sua candidatura e alguns aspectos de seu governo23. Elas se transforma-ram em verdadeiros espaços de reunião para os nacionalistas, que tinhamficado marginalizados (ou automarginalizados) de toda atividade políticasob o governo de Perón. O caso da revista Presencia é singular nesse sentido,pois ela se tornou um dos poucos espaços de difusão do pensamento nacio-nalista desde que passou a sair em 1949. Suspensa dois anos depois, reapa-receu com a queda do peronismo e foi reeditada com breves intermitênciasaté setembro de 1961, quando, por decisão do cardeal Caggiano, máximaautoridade eclesiástica argentina, foi fechada24.

Meinvielle era um profundo anticomunista, convicto de que a demo-cracia liberal era o passo anterior à instauração de um regime marxista.Nesse sentido, a partir de Presencia denunciava os limites da legitimidadeque todo povo tem de eleger suas próprias instituições. Segundo sua visão,esse princípio liberal se apoiava na ideia duvidosa de que todo povo é capazde dar a si mesmo as melhores instituições. Essa visão, que levava direta-mente a perguntar-se sobre a própria legalidade da democracia, sustentava-se em denunciar uma verdadeira política dialética implementada pelo go-verno argentino, em que a própria repressão de todo “extremismo” quefosse contra a democracia estava impregnada de filocomunismo ou de açãopró-comunista25, ou escondia, atrás de uma linguagem que buscava a har-monia e o desenvolvimento econômico “cristão”, o germe da desagregaçãosocial, antessala do comunismo26.

Frente a essa realidade, eram poucos os atores políticos ou sociaisque, para Meinvielle, podiam exercer a função de diques para o comunis-mo. Descartados os partidos políticos tradicionais, restavam duas alternati-vas possíveis. O peronismo, que antes tinha sido avaliado pelo próprioMeinvielle como um freio para o avanço comunista, dificilmente podia cum-prir essa função no início dos anos 60. As razões eram três: primeiro, o

23 Meinvielle foi editor de quatro publicações a partir de 1944: Nuestro Tiempo (jun. 1944 – maio1945); Balcón (maio 1946 – nov. 1946), Presencia (dez. 1948 – jul. 1951), Diálogos (1954).

24 A razão foi um artigo escrito pelo próprio Meinvielle sobre o presidente Arturo Frondizi, cujotítulo era “¿Puede ser presidente de la Argentina un agente comunista?”. Presencia, ano 13, n.87, 8 set.1961.

25 La ley de defensa de la democracia, instrumento del desarrollo comunista. Presencia, ano 13,n. 86, 26 ago. 1961.

26 La política de austeridad no hace sino desarrollar el comunismo. Presencia, ano 13, n. 84, 28jul. 1961.

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clima argentino e latino-americano era propício para o comunismo; segun-do, porque o comunismo tinha conseguido “infeccionar” as organizaçõessindicais; terceiro, era difícil que o peronista se opusesse a uma revoluçãoque tomasse um caráter nacional populista27. A outra eram as Forças Ar-madas.

Como boa parte dos nacionalistas de direita na Argentina, Meinviel-le mantinha canais de comunicação com membros das Forças Armadas.Entretanto, diferentemente de Jordán Bruno Genta, esses canais eram mui-to mais frouxos e lhe permitiam portar-se com maior liberdade na hora deopinar sobre os militares e seu papel frente ao comunismo. Sem dúvida,Presencia tinha entre seu público dileto certos setores das Forças Armadas,em especial aqueles mais profundamente antiperonistas e convencidos deque a única saída política era a instauração de um regime militar autoritá-rio. Ainda assim, o presbítero não poupou esforços para denunciar a infil-tração comunista entre os próprios militares.

Entre 1960 e 1963, ele proferiu uma série de conferências no país queversavam sobre o avanço do comunismo, que mais tarde foram publicadaspela livraria Huemul, algumas delas com caráter privado28. Nelas, apresenta-va como se dava o avanço do comunismo na Argentina e dedicava especialatenção a mostrar como a “guerra revolucionária” levada adiante peloscomunistas afetava diretamente as Forças Armadas. O governo de Frondi-zi, e em particular de alguns de seus colaboradores mais próximos, comoRogelio Frigerio, era apresentado como um dos grandes responsáveis pordesenvolver uma “dialética da ação” tendente a instaurar um regime comu-nista no país. A díade universidade leiga – célula frondizista-comunista eramos eixos em torno dos quais se articulava o avanço marxista. A solução paraessa dialética da ação consistia em melhorar as condições das classes traba-lhadoras e em reorganizar o Estado, sendo que esta última solução visava

27 Añatuya, prueba piloto del camino al comunismo en el país. Presencia, ano 13, n. 82, 23 jun.1961.

28 As conferências, publicadas oportunamente, foram as seguintes [títulos no original]: “La dia-léctica de la acción” (1960, Córdoba); “La dialéctica comunista y el 18 de marzo” (1962,Buenos Aires); “La guerra revolucionaria en la Argentina” (1962, Concordia); “La dialécticacomunista y el peligro de destrucción de las FF.AA” (1962, Buenos Aires); “La reciente crisismilitar y el Aparato Frondizista-Comunista”, com o pseudônimo de Federico Bracht (1962,Buenos Aires); “La economía argentina en la guerra revolucionaria” (1962, Buenos Aires); “ElComunicado 200, factor automático de avance del mencheviquismo al bolcheviquismo” (1963);“Toma bolchevique del poder a través de generales nasseristas” (1963, Curuzu Cuatia).

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retomar o controle das universidades e intensificar a repressão do comunis-mo, evitando a repressão indiscricionária dos setores operários peronistas(MEINVIELLE, 1960).

Entretanto, essa luta contra o comunismo se mostrava mais difícil doque nunca. Em princípio, Meinvielle reconhecia que o peronismo não eraalheio a esse processo, em especial os setores sindicais, que eram apresenta-dos como cúmplices diretos do plano de instauração comunista com a mul-tiplicação de conflitos operários e políticos dentro do país29. Que lugar ocu-pavam as Forças Armadas frente a essa realidade? Em primeiro lugar, eramvítimas dessas mesmas contradições que os setores castro-comunistas de-nunciados por Meinvielle estavam aprofundando, já que, segundo ele, elasacabavam encerradas numa lógica repressiva que lhes alienava o reconheci-mento popular, ou seja, o apoio das massas peronistas (MEINVIELLE,1962c).

Meinveille percebia o eixo da crise militar na luta entre “azuis” e“colorados”, ou seja, entre as facções legalistas e aquelas dispostas a instau-rar uma ditadura para deter o peronismo. Mas, em seu ataque às altas esfe-ras militares, esgrimia uma explicação tão ousada quanto ridícula, se sepensa em sua denúncia contra alguns dos setores azuis que saíram vitorio-sos das crises de 1962-63, que eram acusados diretamente de ser os veículosda infiltração comunista na Argentina. Meinville os chamou de “generaisnasseristas”, e eles representavam os setores que, aliados ao frondizismo,estavam aprofundando as contradições que acabariam com o triunfo docastro-comunismo no país (MEINVIELLE, 1963).

As reações das Forças Armadas não se fizeram esperar. Depois daconferência na província de Corrientes, onde ele moveu seu ataque aos se-tores azuis do Exército, o comandante em chefe dessa arma, general JuanCarlos Onganía, solicitou que se iniciassem ações legais contra o presbíte-ro, enquanto que a Igreja ameaçou Meinvielle de inabilitá-lo em suas fun-ções sacerdotais se não parasse com sua pregação. Ele teve de limitar seusataques, embora não tenha deixado de publicar seus ataques contra tudoque cheirasse a comunismo, muitas vezes sob o pseudônimo de FedericoBracht.

29 Assim, a vitória do peronismo nas urnas em março de 1962, a anulação das eleições e a derru-bada de Frondizi faziam parte desse complexo plano comunista para aprofundar as contradi-ções na Argentina (MEINVIELLE, 1962a, p. 7-10).

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À guisa de conclusão

Em março de 1976, quando ocorreu o golpe de Estado que instaurouuma das ditaduras mais violentas e sangrentas da América Latina, as For-ças Armadas argentinas tinham uma longa tradição de formação doutriná-ria e prática no campo da luta contra o comunismo. Nessa tradição se ins-crevem as doutrinas e ideias que se disseminaram a partir dos intelectuaisdo nacionalismo de direita.

Isso foi possível, em primeiro lugar, porque existiram canais formaise informais que permitiram a intelectuais como Genta ou Meinvielle teracesso aos círculos militares para difundir suas ideias. Em segundo lugar,porque a partir desses setores do nacionalismo existiu uma convicção clarae direta de que o único espaço onde sua mensagem podia ser ouvida eramas Forças Armadas, e, mesmo quando esses setores foram minoritários navida política argentina, seu êxito na propagação de suas ideias autoritáriasreflete a existência de estratégias bem-sucedidas de acesso a esses espaços.Por último, sua mensagem era contundente, mesmo que muitas vezes sebaseasse em leituras descabidas sobre a realidade argentina, mas que en-contravam nos setores mais tradicionais e autoritários das Forças Armadaso eco necessário para que esses discursos se tornassem parte constitutiva daideologia militar.

Sem dúvida, é impossível não pensar que o êxito de intelectuais comoGenta ou Meinvielle se apoiou na fraqueza de um Estado democrático in-capaz de reprimir um discurso que atacava seus alicerces liberais. É certoque essa incapacidade tinha sua história e que a irresolução do problemaperonista, o clima da Guerra Fria e a autonomia em que se moviam asForças Armadas deixaram pouco espaço para que governos democráticosfracos atuassem em favor da ordem legal.

Quis deter-me em dois casos que, por seus percursos e suas posturas,são paradigmáticos das ligações entre os intelectuais nacionalistas e os mi-litares. Tanto Genta quanto Meinvielle esgrimiam um discurso e práticasque tinham aspectos originais. Em primeiro lugar, articulavam sua ideiaanticomunista em torno de um conjunto de conceitos que visavam central-mente desprestigiar a democracia e reclamar para as Forças Armadas umpapel central em sua destruição. Em segundo lugar, nenhum dos dois hesi-tou em dirigir suas diatribes aos próprios militares, quando entendiam queo zelo antidemocrático ou anticomunista era fraco demais, tudo isso ao

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custo de esgrimir, como no caso de Meinveille, as mais aloucadas teoriassobre as implicações de generais ou coronéis nos mais diversos complôscomunistas. Por último, seu impacto dentro dos círculos militares pode serinterpretado, no curto prazo, como escassamente relevante, já que tantoGenta quanto Meinvielle tiveram de buscar apoios concretos fora das For-ças Armadas ou foram censurados por causa de suas denúncias ousadas.Ainda assim, no prazo mais longo, formaram um elemento nada desprezí-vel no reforço de um pensamento autoritário, intolerante e violento dentrodessas mesmas Forças Armadas.

Fontes

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Escritos de propaganda republicana:estratégias de publicação e inserção sociopolítica

a partir da atuação de Joaquim Francisco deAssis Brasil e João Capistrano de Abreu

(década de 1880)

Tassiana Maria Parcianello Saccol

Este ensaio apresenta algumas reflexões sobre a atuação do rio-gran-dense Joaquim Francisco de Assis Brasil na propaganda republicana noinício dos anos 1880. Nosso objetivo é analisar alguns dos investimentosrealizados por este agente na escrita de ensaios políticos, bem como na suapublicação e divulgação, numa época em que um mercado editorial bemestabelecido estava longe de se constituir. Neste sentido, o percurso traçadopor Assis Brasil contava com uma estratégia que acreditamos ter sido reali-zada por diversos escritores e propagandistas da época e que era fundamen-tal no sentido de facilitar a circulação dos opúsculos: a mobilização deamigos influentes dentro do incipiente meio editorial – no caso aqui anali-sado, Capistrano de Abreu. Tal atitude colaborou para que o propagandis-ta tivesse seu nome reconhecido pelos seus pares como um dos principaisdivulgadores das ideias republicanas em fins do século XIX.1

1 Joaquim Francisco de Assis Brasil nasceu no município de São Gabriel, no ano de 1857. Seuenvolvimento com a política data de fins da década de 1870, quando ingressou na Faculdade deDireito de São Paulo. Nesta instituição, estreitou laços com vários jovens que, assim como ele,também propagandeavam a República. De volta ao Rio Grande, Assis Brasil participou dafundação do Partido Republicano Rio-Grandense (1882), juntamente com Júlio de Castilhos,Borges de Medeiros, José Gomes Pinheiro Machado, Venâncio Ayres, Fernando Abbott, Ra-miro Barcellos, Demétrio Ribeiro, dentre outros, muitos deles também egressos da Faculdadede Direito. Como principais líderes do PRR ao longo da década de 1880, este grupo assumiu opapel de divulgar as ideias republicanas e federativas na província, fazendo-o por meio deconferências públicas, mas, principalmente, através do jornal oficial do partido, A Federação,criado em 1884, onde escreviam artigos de doutrinação política. Para mais informações sobrea trajetória de Assis Brasil, ver Aita (2006).

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A partir da década de 1870 e, com mais força, na década seguinte, asideias republicanas e federativas – além de outras, como a secularizaçãodas instituições e a abolição da escravidão – passaram a ser defendidas comgrande entusiasmo por vários grupos sociais e, principalmente, por algunsmembros das elites provinciais brasileiras. Estas ideias encontravam umimportante espaço de recepção e propagação nos liceus e academias doImpério, onde jovens estudantes entravam em contato com a produção teó-rica estrangeira, ainda que a sua divulgação não se restringisse somente aestes espaços (ALONSO, 2002; SCHWARCZ, 1993).

Assis Brasil foi um dos membros da elite rio-grandense que ingressouna Faculdade de Direito de São Paulo e, a partir daí, começou a se familia-rizar com as novas ideias e se envolver mais diretamente com a política.Sabe-se que a passagem pelas academias imperiais tinha grande importân-cia no processo de socialização dos jovens que ingressavam nos quadrospolíticos do Brasil (CARVALHO, 2003). Se a frequência a essas instituiçõescolaborava para a socialização dos moços que ingressariam nos partidosLiberal e Conservador, elas também foram um espaço de contato impor-tante para os membros da geração de 1870, ou seja, dos indivíduos que guar-davam um significativo descontentamento para com a conjuntura monár-quica e assumiriam – pelo menos boa parte deles – posições de poder im-portantes na Primeira República, através dos partidos republicanos.2

Os investimentos de Assis Brasil se concentraram na divulgação dasideias republicanas e federativas, juntamente com alguns colegas e contem-porâneos de Faculdade. A contestação das principais bases do Império porparte dos jovens integrantes da geração de 1870 se materializava de diversasformas, dentre elas, produzindo obras doutrinárias, jornais acadêmicos,formando clubes, agremiações e organizando conferências públicas. É im-

2 Angela Alonso define a geração de 1870 como um movimento (intelectual e político) de con-testação às principais instituições e valores do período monárquico. Dele faziam parte váriosgrupos em nível nacional que propunham reformas profundas tanto para o Estado quanto paraa sociedade brasileira, em todos os seus aspectos. O fim da escravidão, a secularização dasinstituições, o liberalismo econômico e a descentralização político-administrativa eram algu-mas das principais reivindicações levadas a cabo pelos membros deste movimento. A grandemaioria dos grupos ainda fazia a defesa de um novo regime de governo, o republicano. Dentreos principais membros da geração de 1870, obtiveram destaque Silva Jardim, Sílvio Romero,Tobias Barreto, Joaquim Nabuco, os irmãos Alberto e Campos Salles, Aníbal Falcão, Júlio deCastilhos e Assis Brasil, dentre outros (ALONSO, 2002).

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portante ressaltar que o próprio ambiente da Faculdade de Direito tornavaestas práticas comuns. Sérgio Adorno destacou a importância das ativida-des realizadas fora do contexto das relações didáticas estabelecidas entre oscorpos docente e discente naquela instituição. Para o autor, era no ambien-te extraensino, onde se reuniam a militância política, o jornalismo, a litera-tura e a advocacia, que os jovens estreavam na cena política (ADORNO,1988, p. 92).

O ambiente acadêmico facilitava a formação de laços de amizadeentre os moços de várias províncias que ali estudavam. Além disso, a passa-gem por estas instituições e o período de residência naqueles centros urba-nos possibilitavam o contato com os egressos de turmas anteriores, ou mes-mo jornalistas envolvidos com a propaganda republicana. A vida nestascapitais tinha sua peculiar agitação: eram inúmeros os espaços de sociabili-dade – cafés, livrarias, bibliotecas, clubes de discussão – e grandes as possi-bilidades de encontros, casuais ou não, entre os propagandistas, tanto osmoços recém-estreantes no cenário político, como também aqueles maisexperientes. No caso de Assis Brasil, foi a sua passagem pela Faculdade deDireito que permitiu que o mesmo criasse laços com João Capistrano deAbreu, vínculo este intensamente mobilizado para a publicação de seuslivros de propaganda política.3

Os quatro anos (1878-1882) em que Assis Brasil esteve na Faculdadee residiu em São Paulo foram de intenso investimento na propaganda repu-blicana. De início, fez o movimento que a maioria dos estudantes fazianaquele tempo. Passou a participar do clube republicano acadêmico, bemcomo de alguns jornais de propaganda vinculados ao mesmo. Depois, pas-sou a prestar colaborações eventuais em jornais de maior circulação e tam-bém a realizar algumas conferências públicas (AITA, 2002). Seu investi-mento mais decisivo, e que o ajudou a adquirir notabilidade e prestígio

3 João Capistrano de Abreu foi um historiador, nascido no Ceará no ano de 1853. Seus primeirosestudos foram feitos em rápidas passagens por várias escolas. Em 1869, ingressou na Faculda-de de Direito do Recife, onde conheceu Silvio Romero e Tobias Barreto, entretanto, não che-gou a se formar. No ano de 1875, passou a residir no Rio de Janeiro, onde trabalhou na Tipo-grafia Garnier e, logo depois, como bibliotecário da Biblioteca Nacional (1879-1883). Deixou aBiblioteca para tornar-se lente do Colégio Pedro II. Durante a década de 1880, e quando aindaera um positivista fervoroso, colaborou para a Gazeta de Notícias, onde propagandeava a Repú-blica. Escreveu vários livros no âmbito da História (RODRIGUES, 1977).

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entre seus pares, foi a publicação de seu primeiro ensaio político, A Repúbli-ca Federal (1881).4 Vejamos, a partir de agora, como isto se deu.

I

Após ter acumulado razoável experiência com as letras, escrevendodurante dois ou três anos para periódicos diversos, Assis Brasil decidiu-sepela escrita e publicação de um livro de divulgação das ideias republicanas.Assim como ele, vários outros propagandistas realizavam o mesmo proce-dimento. Daí que inúmeras obras que propunham reformas de cunho polí-tico foram publicadas ao longo dos anos 1880.

Angela Alonso analisou grande parte da produção intelectual dosmembros da geração de 1870, destacando que os livros faziam parte de umaestratégia de propaganda e persuasão deste grupo. Para a autora, a maiorpreocupação destes jovens era o adensamento do debate público em tornodos temas teóricos (questão religiosa, centralização política, abolição daescravidão e imigração), especialmente nos termos de Comte e Spencer.Daí que, conforme Alonso, “os livros não eram obras teóricas que visassemà formulação de sistemas filosóficos próprios”; pelo contrário, “eram escri-tas em poucos meses por gente muito jovem, recém-formada ou ainda nosbancos das faculdades, muitas vezes compilando simplesmente artigos an-tes saídos em jornais estudantis” (ALONSO, 1999, p. 13-14).

Participar efetivamente de jornais de propaganda era o primeiro pas-so a ser dado por aqueles que desejavam se inserir no debate político daépoca. Assis Brasil assinara vários artigos em jornais acadêmicos e mesmoem periódicos de maior circulação. A atividade constante colaborava paraque, pouco a pouco, o nome do autor fosse se tornando conhecido entre ospares, mas também entre o círculo de leitores da época. Cumprida estaetapa, um bom investimento para os que quisessem se manter no debatepolítico era a publicação de ensaios de maior fôlego. A publicação de umlivro, se comparado aos periódicos, exigia um esforço mais individualizado

4 A versão utilizada para análise é Assis Brasil (1998). A República Federal tratava de três temasrelacionados: a primeira parte contemplava as formas de governo, onde era ressaltada a superi-oridade da República e sua oportunidade no Brasil. Uma segunda parte era dedicada à federa-ção, evidenciando a inclinação do Brasil para esse sistema administrativo, e um último itemtrazia a defesa do sufrágio universal como forma de viabilizar a democracia.

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por parte de seu autor, seja em termos financeiros, seja no que dizia respei-to ao investimento intelectual empregado. Entretanto, mesmo no caso doslivros, seus autores não dispensavam algum auxílio externo. Mais do queisso, era bastante comum que os jovens escritores mobilizassem pessoasmais experientes ou melhor posicionadas no campo das letras, a fim defacilitar a publicação e a circulação de suas obras.

Assis Brasil valeu-se do fato de residir em São Paulo para investir emsua publicação. Provavelmente tentar fazê-lo residindo no Rio Grande difi-cultaria muito o processo. Mas ainda que residindo em uma das capitaisculturais da época, o percurso para se publicar um livro encontrava algu-mas dificuldades.5 Logo, acionar um amigo que contasse com certa experi-ência nesse sentido e já conhecesse os procedimentos a serem realizados seapresentava como uma importante estratégia. Nesse sentido, os vínculossociais estabelecidos na Faculdade e a partir dela foram de grande utilida-de. Na academia, Assis Brasil criou laços com o carioca Valentim Maga-lhães, com quem, inclusive, dividia alguns trabalhos jornalísticos, onde de-fendiam as causas republicana e abolicionista. O vínculo criado com Ma-galhães possibilitou o contato entre Assis Brasil e Capistrano de Abreu. Aamizade travada entre eles traria inúmeras vantagens ao rio-grandense. Defato, a mobilização do amigo Capistrano de Abreu colaborou não só para apublicação dos dois principais opúsculos de Assis Brasil, mas também abriu-lhe espaço para outras atividades intelectuais, conforme veremos a seguir.

De fato, numa sociedade onde as relações interpessoais eram extre-mamente importantes, os laços existentes entre os agentes eram mobiliza-dos com muita frequência, e visando a consecução de diversos objetivos.Vários autores têm demonstrado a importância de se levar em conta oscircuitos de relacionamento em que os agentes históricos estavam inseridose a partir dos quais produziam suas ações.6 No emaranhado de ligaçõespessoais que os agentes estavam envolvidos – e que inclui laços de parentes-co, relações de amizade e mesmo relações verticais – interessam-nos, emespecial, os vínculos de amizade. José María Imízcoz caracterizou estes

5 A respeito destas dificuldades, veja-se, por exemplo, os trabalhos de Morel; Barros (2003) eCavenaghi (2011).

6 Vejam-se os estudos sobre redes de relações que partiram de investigações acerca de comunida-des do Antigo Regime, em especial, os trabalhos de Mitchell (1974); Imízcoz (2004); Bertrand(1999); Moutoukias (2000).

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laços como “um vínculo social especialmente operativo, uma relação deconfiança e reciprocidade, que dava lugar a um intercâmbio de favores eserviços” (IMÍZCOZ, 2010, p. 32).

Conforme já mencionamos, após o pedido de auxílio por parte deAssis Brasil, Capistrano de Abreu teve colaboração fundamental na publi-cação dos livros do rio-grandense. A ajuda que o cearense concedeu aoamigo pode ser vista a partir da correspondência que ambos trocaram. In-felizmente, só tivemos acesso às cartas enviadas por Capistrano a Assis Brasil.Provavelmente as missivas escritas pelo rio-grandense ao amigo tambémtivessem importantes informações qualitativas que enriqueceriam nossaanálise. Mesmo assim, cremos que o conjunto de cartas que nos está dispo-nível contém dados importantes a respeito da relação travada entre AssisBrasil e Capistrano e, especialmente, de como este laço foi mobilizado peloprimeiro, em momentos-chave ao longo da propaganda republicana.

Sendo assim, em uma das primeiras cartas do conjunto analisado,Capistrano de Abreu já faz referência ao fato de ter lido as provas do livroque Assis Brasil pretendia publicar – A República Federal. Do mesmo modo,é possível perceber que o mesmo objetivava expor ao seu círculo de amigosa produção do rio-grandense. Escreveu ele:

Assis Brasil,Já ontem lhe escrevi dando-lhe notícia de sua comissão; escrevo-lhe, porém,novamente, para responder a sua carta de 10.Começo desde logo retirando o oferecimento que fiz de rever as provas.Venha, venha. Não tenha medo do meio, não tenha medo de nada. Há deconservar-se refratário; há de com sua presença concorrer para elevar e pu-rificar.Vou comunicar sua vinda provável a Patrocínio. Quer isto dizer que V. há defazer uma conferência; apronte-se, pois, desde logo. [...]Outras cousas que não posso deixar de lhe pedir. Traga as Chispas e a cole-ção dos jornais em que tem colaborado para a Biblioteca. Traga os docu-mentos para a Exposição. Apronte-se também para tomar parte nas confe-rências de História do Brasil. O questionário está quase pronto, e entre asquestões algumas existem que V. tratará proficientemente [...].7

A partir da leitura do fragmento acima, é possível tecer alguns co-mentários. Em um primeiro momento, percebe-se o interesse de Capistra-no pelos escritos de propaganda de Assis Brasil, tanto é que solicitava ao

7 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 12 de março de 1881. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 73.

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amigo que trouxesse exemplares de tudo quanto já havia produzido – inclu-sive de seu primeiro livro de poemas revolucionários e anticlericais (Chis-pas) – para expor na Biblioteca Nacional, seu local de trabalho, provavel-mente, para divulgá-los ao seu círculo de amigos e frequentadores da insti-tuição.8 Por outro lado, Capistrano mencionou ter lido as primeiras provasdo livro que Assis Brasil desejava publicar, procurando tranquilizar o mes-mo em relação à sua primeira investida naquele meio.

Além disso, a missiva sugere a importância de Capistrano como pon-to de contato de Assis Brasil com outros republicanos, tais como José doPatrocínio, afamado jornalista e abolicionista da época. De fato, Capistra-no parece ter iniciado o amigo em meio ao núcleo de propagandistas queatuavam no Rio de Janeiro, abrindo brechas em um espaço onde o próprioAssis Brasil parecia ter algum receio de se colocar. Não obstante, o fato deCapistrano ser empregado da Biblioteca Nacional permitia a organizaçãode algumas publicações e eventos, como as conferências das quais convidouAssis Brasil a fazer parte. Portanto, a própria posição ocupada por Capistra-no na instituição permitia que, pouco a pouco, o mesmo pudesse introduzirAssis Brasil no espaço de debates políticos da capital do Império.

Mas tratemos de forma mais aprofundada da publicação do livro.Capistrano era um homem letrado e bem-relacionado. Além dos conheci-mentos acerca do meio editorial e dos contatos que o cargo ocupado naBiblioteca lhe proporcionavam, o mesmo havia acumulado certa experiên-cia, fruto de trabalhos anteriores, quando foi funcionário da TipografiaGarnier. Logo, Capistrano reunia vários atributos capazes de facilitar ou,pelo menos, agilizar a publicação do livro de Assis Brasil. De fato, ele nãomediu esforços em relação àquele pedido de auxílio. Na correspondênciatrocada, percebe-se que Capistrano se encarregou pessoalmente de entrarem contato com as principais tipografias do Rio de Janeiro, verificando oscustos da publicação. Feito isso, escreveu ao amigo, opinando a respeito dadecisão a ser tomada:

Deixei cair a alma aos pés... quando soube que Leuzinger, que eu julgava sero mais caro de todos, é exatamente o mais barato.Um meu colega, que com ele falou, disse que ele fará a impressão por 35$ -incluindo a brochura. À vista disso, nem é bom pensar nos outros dois, que,inferiores como artistas, só levam-lhe vantagem por serem mais careiros.

8 O livro referido é Assis Brasil (1877).

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[...] A vista disso, tendo-lhe submetido as propostas das três melhores tipo-grafias, fico à espera de sua decisão.9

A escolha da tipografia era uma decisão bastante importante, não sóem função do custo final da publicação, mas principalmente pelo prestígioda mesma, que agregava certo diferencial positivo ao livro. Não é à toa queCapistrano enviou ao amigo as propostas daquelas que considerava as trêsmelhores tipografias da cidade e que exaltou as qualidades de Leuzingercomo artista, em detrimento dos outros dois tipógrafos que ele mesmo ha-via procurado. Portanto, após entrar em contato com aquelas que conside-rava as melhores tipografias, Capistrano apontou para o amigo a melhordecisão a ser tomada, ainda que ao final da missiva afirme aguardar a deci-são de Assis Brasil.10

Mas se Capistrano teve influência sobre esta importante decisão, tam-bém fez várias sugestões, auxiliando o amigo a respeito de detalhes maispráticos, tais como a escolha do tipo de folha e brochura a serem utilizadosno livro. Embora estas questões pareçam, em um primeiro momento, semimportância, através das palavras de Capistrano é possível perceber o quan-to Assis Brasil não possuía entendimento delas, o que tornava ainda maisimportante o seu auxílio, inclusive nestes detalhes. Disse Capistrano aoamigo:

[...] o tipo de papel escolhido para A República Federal tem todas as qualida-des, menos uma: servir para ela. É muito grande e feita com ele a impressãonão teria o chic e o fini que V. deseja como artista.À vista disso, resolvi sustar a impressão até receber resposta sua. Leuzingertem muito bons e elegantes tipos, excetuando os dois que V. exige.Se faz questão do elzevier, passemos para o Lombaerts, que o tem. Se não,

9 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 15 de março de 1881. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 74.

10 A Casa Leuzinger, propriedade do suíço George Leuzinger, funcionava como oficina de gra-vura, tipografia, litografia e ateliê fotográfico. O estabelecimento de Leuzinger teve grandeimportância como casa editorial, tendo publicado, entre outros, o Catálogo da Exposição deHistória do Brasil, organizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, entre 1881 e 1882.A Casa imprimiu livros de muitos autores, dentre eles Alfredo Taunay, Joaquim Nabuco e opróprio Capistrano de Abreu. Além dos livros, também produziu inúmeras revistas e jornaisilustrados. Leuzinger participou de quatro edições da Exposição Nacional, no Rio de Janeiro,e das Exposições Universais de Viena, em 1873, de Antuérpia, em 1885, e de Paris, em 1867 e1887. Portanto, trata-se de uma instituição que já contava com prestígio considerável a épocada publicação do livro de Assis Brasil. Para mais informações sobre a Casa Leuzinger, verBorges (2004).

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fiquemos mesmo no Leuzinger, que lhe imprimiria melhor do que qualqueroutro e, principalmente, com mais brevidade e barateza.11

A leitura do fragmento aponta para as intervenções sem muitos ro-deios de Capistrano de Abreu. Na verdade, ele parecia se sentir bastante àvontade não só para expressar suas opiniões, mas também para interferirnas decisões a serem tomadas. Tal pode ser visto não só no que dizia respei-to à escolha do papel a ser utilizado na publicação, mas também no que sereferia ao acabamento do livro e ao número dos exemplares especiais aserem encomendados, conforme se vê no trecho a seguir:

Em sua última carta, mandou-me amostra do papel que prefere para os nú-meros especiais. Não escolhi, porém, daquele, porque no Leuzinger há su-periores. O número de exemplares especiais V. não fixou precisamente; porisso contratei com Leuzinger que seriam cinquenta.12

Como se vê, o acompanhamento da publicação do livro por parte deCapistrano de Abreu foi constante. Várias decisões relativas ao conjunto daobra, fossem elas de maior ou menor complexidade, contaram com a opi-nião de Capistrano, quando ele mesmo não as tomou sozinho. É bem ver-dade que, a partir da leitura das cartas, é possível concluir que havia umarelativa demora na comunicação, agravada pelo próprio fato de algumasmissivas terem se perdido, o que talvez tenha influenciado para que Capis-trano tomasse algumas decisões sem ouvir as opiniões de Assis Brasil. Poroutro lado, é possível depreender da leitura da correspondência a existên-cia de uma relação de intimidade e confiança entre ambos. Não é coinci-dência que Capistrano se mostrasse bastante seguro ao expressar suas opi-niões e informar ao amigo as decisões tomadas, ainda que elas contrarias-sem as intenções primeiras do autor da publicação. Lembre-se ainda que aexperiência de Capistrano em questões editoriais certamente contribuía paraa confiança que Assis Brasil depositava nele, bem como para o grau deliberdade que exercia na tomada de decisões a respeito da incumbência querecebera.

Mas Capistrano não se limitou a opinar sobre os aspectos externosreferentes à publicação do livro. Em uma das missivas enviadas, o mesmosugere o fragmento de um ensaio que poderia servir como epígrafe à obra

11 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 06 de abril de 1881. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 75.

12 Ibid., p. 75-76.

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de Assis Brasil: “Encontro agora em Michelet o seguinte trecho, que podeservir de epígrafe a República Federal, e que por isso copio”.13 Além disso, orepublicano cearense se dera ao trabalho de revisar as provas e as primeiraspáginas impressas do livro: “Como me prometera, hoje, deu-me Leuzingeras primeiras provas. Lendo-as ligeiramente, antes como amador do que comorevisor, reconheci que no geral estão limpas. À vista disso não continuei arevisão, e dora em diante não exigirei mais duas provas de paquet”.14 Logo,percebe-se que o cearense realizou ações bastante diversas no que se refereao acompanhamento da publicação.

Em outra missiva, Capistrano expõe sua opinião pessoal a respeitodo conteúdo do livro, enfatizando a sua não concordância com algumasdas ideias veiculadas pelo autor:

Agora outro ponto. Pela primeira vez li hoje a República Federal e, franca-mente, gostei muito. O prólogo está como uma de suas grandes poesias, como mesmo sopro vasto, inspiração concentrada e soído metálico. Quanto aocorpo, existem entre nós divergências que ainda não posso calcular até ondeirão; mas devo reconhecer que V. argumenta com lucidez, com elevação ecalor, que torna simpáticas suas ideias e muito, mesmo muito interessante aleitura.15

Capistrano de Abreu era adepto da leitura e doutrina positivista, aopasso que Assis Brasil guardava certas ressalvas à mesma. Este último che-gara a declarar-se, em certo momento, inclinado a aceitar o método, masnão a doutrina do filósofo francês.16 Daí o cearense apontar as divergênciasque dizia não saber até onde iriam, pois ambos idealizavam a República esua instauração no Brasil de formas diferenciadas. De fato, em meio aoturbilhão de novas ideias que circulavam em fins do século XIX, é possíveldetectar a existência de pontos de debate compartilhados pela maioria dospropagandistas. Por outro lado, também existiam algumas divergências entreeles. Exemplo disso é que a maioria dos membros da geração de 1870 concor-dava a respeito da necessidade de se instalar uma República, mas discorda-va quanto à forma que o novo regime deveria assumir.17 Mesmo assim, tal

13 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de março de 1881. In: ibid., p. 72.14 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: ibid., p. 78.15 Ibid., p. 79.16 Manifesto de 1891 – Assis Brasil aos seus concidadãos. In: BROSSARD (org.), 1989, p. 44.17 Também a questão abolicionista era vista sob múltiplos pontos de vista. Sobre as especificida-

des, convergências e divergências entre os diferentes grupos da geração de 1870, ver Alonso(2002).

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era o descontentamento com a Monarquia que estas divergências eramminimizadas em prol de uma solidariedade que beneficiava a todos os pro-pagandistas e incluía o auxílio na circulação dos livros de divulgação destasnovas ideias – pelo menos enquanto a hora decisiva de se pensar o modelorepublicano a ser instalado não chegasse.

Tamanha era a importância das solidariedades que existiam entre ospropagandistas e se traduziam em ações práticas tais como o auxílio deCapistrano de Abreu na publicação do opúsculo de Assis Brasil que, emuma das missivas enviadas, Capistrano procurou tranquilizar o amigo quantoà concretização do mesmo. Explique-se: ao mesmo tempo em que prestavaesse favor ao amigo, Capistrano esteve envolvido com o seu noivado e casa-mento, o que parece ter causado certa preocupação a Assis Brasil quanto aoandamento da publicação. Tentando acalmá-lo, Capistrano pontuou: “[...]já vê, portanto, que não há perigo de que, no meio de um noivado que jápassou, esqueça-me de sua incumbência. Ao contrário, há probabilidadede que quantas incumbências me forem cometidas sejam melhor executa-das, porque duplicaram os órgãos”.18

A incumbência que Assis Brasil havia dado a Capistrano de Abreuparece ter sido muito bem desempenhada. Dada a lume no ano de 1881, ARepública Federal foi muito bem recebida pela crítica – vários jornais tece-ram inúmeros elogios à obra e ao seu autor –, tornando-se referência entre oslivros de propaganda republicana e circulando por vários espaços sociais. Orepublicano mineiro Lúcio de Mendonça se referiu ao livro como “umabela obra, de traços largos e vigorosos, e tão claros e firmes que maravilhamum escritor de tão poucos anos”. Além disso, sustentou que o livro de AssisBrasil, “[...] magnificamente escrito, magnificamente impresso, pode, commuita justiça, contar-se entre os melhores de nossa escassa literatura cientí-fica”.19 Em outra oportunidade, referiu-se a Assis Brasil como “um dos maisesforçados lutadores da causa republicana e, um dos nomes mais respeita-dos da nossa política militante”.20 Já o jornal A Província de São Paulo, edita-do por Rangel Pestana e Américo de Campos, considerou o livro “umaimportantíssima obra de doutrina política que haverá de trazer muita glória

18 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 11 de abril de 1881. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 77.

19 Jornal O Colombo, 26.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.20 Jornal O Colombo, 08.11.1882. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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ao seu autor”. Para o editorial, “a argumentação vigorosa, a linguagemcorrente e o estilo simples, mas elegante, imprimem no dizer do Sr. AssisBrasil um toque convincente que lhe abrirá largo caminho para a conquistado povo em favor da ideia que defende e evangeliza”.21

Como se vê, o livro circulou por vários espaços sociais, tendo sidoelogiado por alguns dos líderes republicanos das províncias de São Paulo eMinas Gerais.22 Tamanho foi o sucesso do livro que o mesmo era indicadocomo leitura obrigatória na Academia Militar do Rio de Janeiro23 e, emSão Paulo, o Partido Republicano chegara a subsidiar e distribuir gratuita-mente uma segunda edição da obra aos seus filiados.24 Além disso, o livrode Assis Brasil teve influência na construção da obra de Alberto Salles,Política Republicana (1882), publicada um ano depois e que continha váriosaspectos semelhantes ao livro do rio-grandense.25 Portanto, temos indíciosde que o livro circulou por alguns espaços onde o movimento republicanofoi bastante expressivo: as províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e MinasGerais (BOEHRER, 1950).

No Rio Grande do Sul, terra natal de Assis Brasil, o livro foi lidopelos seus correligionários da fronteira, já que os clubes republicanos locaisadotaram como meta distribuí-lo aos seus sócios.26 Mesmo em terras dealém-mar, o livro se tornou conhecido: A República Federal foi alvo de mui-tos comentários entre os republicanos de Lisboa, tendo sido resenhada emuma revista de grande circulação.27 Ou seja, a obra de Assis Brasil alcançougrande notabilidade entre os republicanos, fosse entre aqueles que atuavamem prol da propaganda em nível local, participando dos clubes, fosse entreas figuras de maior expressão política na época, que costumavam participar

21 Jornal A Província de São Paulo, 08.07.1881. Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.22 Para mais informações a respeito da circulação do livro e os comentários realizados por outros

jornalistas, ver Saccol (2013).23 CASTRO, 1995, p. 81.24 ALONSO, 2002, p. 223.25 Para mais informações sobre as proximidades entre estas duas obras, ver Mello (2010).26 Livro de Actas do Clube Republicano de São Gabriel. Museu João Pedro Nunes (São Gabriel).

Sessão de 15 de dezembro de 1885.27 MATTOS, Júlio de. A República Federal, por Assis Brasil. O Positivismo: Revista de Filosofia,

ano 3, n. 6, p. 438, ago./set. 1881. Acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa. Júlio de Mattosera cunhado de Theophilo Braga, um dos principais propagandistas republicanos de Lisboa,com quem dividia a direção da Revista. Para mais informações sobre a circulação do livro deAssis Brasil entre os republicanos portugueses, ver Saccol (2013).

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de periódicos diversos e, portanto, tinham influência sobre o círculo de lei-tores.

Neste sentido, o auxílio e a amizade de Capistrano – estrategicamen-te bem posicionado no incipiente mercado editorial da Corte – foram fun-damentais para o alcance e o sucesso da obra. Leitor atento, ele enxergouas capacitades intelectuais do jovem rio-grandense e ofereceu um voto deconfiança ao mesmo, “apadrinhando” a sua publicação. A colaboração deCapistrano de Abreu foi tão essencial a ponto de ele ser mobilizado maisuma vez, agora para prestar auxílio na publicação do segundo livro domesmo autor.

II

Publicada A República Federal, os laços sociais com Capistrano deAbreu foram acionados novamente, desta vez para auxiliar na publicaçãode outro livro de Assis Brasil: História da República Rio-Grandense.28 O livroseria uma edição comemorativa ao 47º aniversário da Revolução Farroupi-lha, lançada sob encomenda do Club Vinte de Setembro, agremiação que reu-nia os estudantes rio-grandenses da Faculdade de Direito de São Paulo.29 Anova obra consistia em uma espécie de resposta política a uma publicaçãoanterior, o livro de Tristão de Alencar Araripe, Guerra Civil no Rio Grande doSul (1881).30 Neste volume, o ex-presidente da província do Rio Grande doSul oferecia a sua visão sobre os acontecimentos da Revolução Farroupi-lha, visão esta que os rio-grandenses consideravam distorcida. No novo pro-jeto levado a cabo por Assis Brasil, o amigo Capistrano de Abreu tambémassumiu papel importante, fazendo circular algumas informações referen-tes ao livro de Araripe, bem como, mais uma vez, auxiliando na publicaçãoe circulação do livro-resposta, escrito por Assis Brasil.

28 A versão que utilizamos para análise é Assis Brasil (1981).29 O livro, como seu próprio título sugere, tinha como objetivo principal narrar os principais

fatos da Revolução Farroupilha (1835-1845). Seu autor aborda as principais causas que defla-graram o movimento, aponta alguns dos principais fatos políticos e militares ocorridos duran-te a Revolução e encerra sua narrativa com a instauração da República Rio-Grandense, noano de 1836. Uma análise da construção do livro História da República Rio-Grandense, bemcomo do uso político do mesmo no sentido de legitimar o PRR a partir de uma identificaçãodos membros deste partido com os ideais expressos pelos farrapos na Revolução de 1835, podeser vista em Grijó (2010).

30 Araripe (1881).

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A ação de Capistrano, ao fazer circular informações sobre a publica-ção de Araripe foi bastante importante, na medida em que Assis Brasil pôdevaler-se delas no preparo de seu próprio livro. Disse Capistrano a AssisBrasil em umas missivas enviadas: “Tenho que dar-lhe uma notícia: o livrodo Araripe sobre a Guerra dos Farrapos está pronto até o fim do mês. Que-ro ver se consigo que V. seja a primeira pessoa de São Paulo que o leia”.31

As informações privilegiadas eram fruto de um contato pessoal nutrido entreambos: “Disse-me ele ontem, no bonde, que sabe que os rio-grandensesnão hão de gostar muito do seu livro; mas que não se preocupa com isto,porque, no meio de reclamações interessadas, hão de vir clamores justos etalvez documentos curiosos, que tragam a luz e a verdade”.32

Em outra oportunidade, Capistrano sinaliza cumprir com o prometi-do, conforme escreve na missiva: “Foi hoje publicado o livro do Araripe. Seele tiver mandado para a Gazeta, hoje mesmo lhe enviarei o exemplar queprometi, se não, irei a casa dele, e amanhã mandarei”.33 Portanto, Capistra-no de Abreu exerceu novamente um importante auxílio, buscando as infor-mações referentes ao livro de Araripe e repassando-as com extrema rapideza Assis Brasil, que tanto interesse demonstrava nelas.

Como Capistrano previra, os rio-grandenses não gostaram do livrode Araripe, tanto é que no prefácio da obra de Assis Brasil, publicada noano seguinte, o autor pontuava que o escrito de Araripe era uma constru-ção de elementos que estavam desconexos, e que tal era a sua discordânciacom as ideias do autor e mesmo quanto à exatidão de alguns fatos, “ [...]que devo confessar que no seu livro bebi a inspiração de escrever o meu”.34

De tal modo, o processo de verificação de dados e informações sobre aRevolução para a escrita do livro de Assis Brasil ganhava maior importân-cia. De fato, numa década em que a preocupação com o método era umaconstante, a busca por fontes, documentos e depoimentos de pessoas quetestemunharam os fatos era importante para a escrita da história, especial-mente para a escrita da história de uma revolução “difamada” por publica-ção anterior.

31 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 20 de abril de 1881. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 79.

32 Ibid., p. 79.33 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80.34 ASSIS BRASIL, 1998, p. 22-85.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Júlio de Castilhos, amigo e companheiro do Club Republicano Rio-Grandense, foi acionado no sentido de entrar em contato com indivíduosque pudessem dispor de documentos úteis para a escrita do livro de AssisBrasil. Em correspondência escrita a Apolinário Porto Alegre35, Castilhosexpressou o desapontamento dos rio-grandenses para com o livro de Arari-pe, apontando que a obra encomendada pelo Clube tinha como finalidade“[...] rememorar a Revolução de 1835, restabelecendo ao mesmo tempo averdade dos sucessos que tão adulterados têm sido (como acabou de sê-loem uma memória do Conselheiro Alencar Araripe)”.36 Em outro fragmen-to da carta, Castilhos faz o pedido de auxílio ao velho professor, falandoem nome do Clube e, em especial, em nome do amigo Assis Brasil:

Mas para escrever um livro de tal natureza precisamos de bases seguras ediretoras, como documentos, dados, informações etc. É exatamente isso oque venho lhe pedir.Com meus companheiros, espero – fora supérfluo acrescentar – que o distin-to correligionário não se recusará a auxiliar-nos o mais que lhe for possível,fornecendo-nos para aquele fim tudo o que puder obter, principalmente so-bre os sucessos da revolução de 1835.Tomo a liberdade de lembrar que na biblioteca ou na coleção da Revista doParthenon, há, segundo estou informado, muitos e preciosos documentossobre o mesmo movimento revolucionário. Se não for possível enviar-nos ooriginal, ainda mesmo com a condição de prontamente devolver, rogo-lhe oespecial obséquio de enviar-nos, ao menos, a cópia.Contamos com o seu apoio e, portanto, com a sua indispensável coadjuva-ção.37

É possível perceber que a busca por documentos que tornassem evi-dente uma nova versão dos fatos da guerra se tornou bastante importantedentro do processo de construção do livro. Capistrano de Abreu tambémparticipou desta empreitada, ajudando Assis Brasil a verificar alguns fatosda Revolução, contatando conhecidos no Rio de Janeiro, dentre eles o pro-fessor Antônio Alves Pereira Coruja. Disse ele: “Está aqui o Coruja, com

35 Apolinário Porto Alegre nasceu no Rio Grande do Sul, no ano de 1844. Em 1861, ingressouna Faculdade de Direito de São Paulo, entretanto, não concluiu o curso em função do faleci-mento de seu pai. Retornando ao Rio Grande, passou a trabalhar como professor particular ea divulgar a causa republicana através da imprensa. Fundou e dirigiu dois estabelecimentos deensino em Porto Alegre e foi um dos membros fundadores e mais atuantes da Sociedade Par-thenon Literário (1868-1880) (fonte: MARTINS, 1978, p. 452).

36 Correspondência de Júlio de Castilhos a Apolinário Porto Alegre. São Paulo, 28 de maio de1881 (APA-056 – Arquivo Pessoal Apolinário Porto Alegre – IHGRGS).

37 Ibid.

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quem conversei sobre o caso do Vicente Ferrer. Diz ele que ocorreu emPorto Alegre, que foram-lhe cortadas as orelhas e que Marques Alfaiate asteve em seu poder [...]”.38 Em outra oportunidade, afirmou Capistrano:“Estive ontem conversando sobre a Revolução com o major Fausto de Sou-sa. Disse-me ele que na restauração de Porto Alegre, Manuel Marques nãopassou de instrumento e que os documentos comprobatórios desta asser-ção estão no Arquivo Público”.39 Ou seja, Capistrano de Abreu não só fezcircular as informações a respeito do livro de Araripe, como também pes-quisou informações e testemunhos da época para auxiliar Assis Brasil emsua empreitada, seja através da coleta de depoimentos orais, seja da indica-ção de documentos comprobatórios (e seu local de guarda) – que poderiamcolaborar para conferir um caráter mais científico à obra do jovem propa-gandista.

O conjunto de cartas trocadas entre Capistrano de Abreu e Assis Bra-sil e que trata da publicação de História da República Rio-Grandense é muitomenos numeroso se comparado ao número de missivas que versam sobre aeditoração de A República Federal. Ainda assim, depreende-se pela leituradas mesmas que Capistrano prestou o mesmo tipo de auxílio concedidoanteriormente. A carta que aponta para uma ação diferenciada realizadapor Capistrano sugere seu importante papel na divulgação do livro e natentativa de fazer circular, através da imprensa, informações e comentáriossobre o texto recém-publicado. Para isso, distribuiu pessoalmente algunsexemplares a pessoas influentes, livrarias e jornais de maior prestígio naCorte. Em suas palavras:

Acabo de chegar da casa do Leuzinger, donde trouxe 10 exemplares paradistribuir pelos jornais. Já entreguei o do Globo; vou entregar ao Araripe Jr.o dele, que servirá ao mesmo tempo para a Gazeta da Tarde; o que assimeconomizei darei ao Teixeira de Melo. Os outros distribuirei amanhã. Dei-xei um na vitrine da Faro e Lino para ser exposto: amanhã somente é queserá exposto à venda. [...]

38 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil. 19 de setembro de 1882. In: RODRI-GUES (org.), 1977, p. 82. Dias depois, nova missiva trazia informações importantes: “Poruma casualidade encontrei-me com Carlos Jansen, que era muito amigo de Berlink, e traba-lhou com ele no Cruzeiro. Perguntei-lhe pela casa da viúva e pela biografia do Duque de Caxi-as”. Em outro trecho, na mesma carta dizia: “Relativamente a Cunha, nada lhe posso dizeragora. Vou falar com o Paz, que se deve dar com ele, ou com o Bocayuva. Do que houver denovo lhe darei notícia” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 28 de setem-bro de 1882. In: ibid., p. 82).

39 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de setembro de 1882. In: ibid., p. 81.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Penso que o livro será bem vendido, não só porque foram muito apreciadosos extratos que deu A Gazeta, como, porque o preço torna-o muito acessível.[...] Se suceder, porém, o contrário, pois tudo é possível neste inverossímilRio de Janeiro, é melhor, passado certo tempo, levantar o preço.40

No auge da propaganda republicana, o objetivo daqueles que escreviamlivros e artigos em periódicos não era o de obter lucro com tais publicações,mas sim fazê-las circular, veiculando as ideias e valores defendidos. Nestesentido, algumas práticas eram comuns e necessárias, à medida que se obje-tivasse uma circulação mínima das obras recém-publicadas em um espaçoque o próprio Capistrano considerava imprevisível. Além de estabelecerum preço de venda acessível, o envio de exemplares a alguns jornalistasnotáveis, especialmente àqueles com os quais se nutria uma relação amisto-sa, constituía-se em importante estratégia. Através de comentários elogio-sos nas páginas de seus periódicos, esses jornalistas poderiam agregar certovalor simbólico ao livro, aumentando a curiosidade do público leitor a seurespeito. Conhecer essas “regras” era um passo importante a todos aquelesque quisessem investir na escrita e divulgação de livros, tal como Assis Bra-sil o fez. Inexperiente nesses assuntos, mas agindo de forma pragmática,mobilizou os laços existentes com o amigo Capistrano, aproveitando-se doconhecimento prático e das próprias relações pessoais com jornalistas quenão ele, mas o amigo possuía.

É necessário ressaltar que Capistrano de Abreu, talvez o contato demaior importância e também o que mais vezes foi acionado pelo rio-gran-dense, era apenas um dos tantos indivíduos que integravam uma rede derelações maiores, da qual Assis Brasil fazia parte. Tal rede social era forma-da por republicanos de várias partes do Brasil e era constantemente mobili-zada no sentido de propagandear as novas ideias e fazer circular os escritospolíticos de seus membros. Logo, através dela, as novas ideias eram divul-gadas com maior rapidez, especialmente dentro de um contexto onde osrepublicanos se constituíam como minorias políticas e precisavam valer-sede diferentes estratégias para ganhar visibilidade e atrair outras pessoas paraas hostes republicanas.41

40 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 05 de maio de 1881. In: ibid., p. 80.41 Para mais informações a respeito, ver Saccol (2013).

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Considerações finais

Como se viu, os dois livros de Assis Brasil foram alvo de constanteselogios por parte de afamados jornalistas da época, que escreviam em al-guns dos periódicos de maior circulação daqueles anos. Esses comentárioscolaboraram para que Assis Brasil se tornasse um nome bastante reconhe-cido pelos pares republicanos. Sua República Federal foi considerada um dosmelhores livros de propaganda na época e seu autor, um dos talentos maisbrilhantes daquela geração. Tamanho foi o sucesso do livro entre os repu-blicanos e, possivelmente, entre o círculo de leitores da época, que a Repú-blica Federal chegou a ser reimpressa seis vezes ao longo da década de 1880.42

Esse indicativo aponta que, de alguma forma, para além da capacidadeintelectual do autor, o percurso seguido pelo mesmo visando publicar efazer circular seus opúsculos foi, no mínimo, eficaz.

Não é certo que existisse um percurso adequado e que garantisse osucesso no que se referia às publicações. Entretanto, os passos seguidospor Assis Brasil, e que combinaram a busca de auxílio de um amigo expe-riente no ainda incipiente meio editorial, a escolha de uma tipografia derenome e alcance considerável, o cuidado com o acabamento da obra, adistribuição do livro a pessoas influentes e periódicos de grande circula-ção, parecem ter sido um bom investimento por parte do autor. Na reali-zação de todas estas etapas Capistrano de Abreu teve papel fundamental,e, de modo geral, é possível dizer que, sem a sua colaboração, o processode publicação dos livros de Assis Brasil teria sido muito mais tortuoso.Capistrano conhecia os meandros do círculo editorial e, isto, sem dúvida,foi de grande valia.

Contudo, é preciso considerar que ambos tinham interesse em divul-gar as ideias republicanas e isso, muito provavelmente, colaborou para aconcretização deste auxílio.43 Por outro lado, a relação pessoal cultivadaentre os dois não pode ser minimizada, pois a correspondência por eles

42 ALONSO, 2002, p. 223.43 Mesmo na semana em que ocorreu seu casamento, os assuntos políticos não foram deixados

de lado, conforme atesta Capistrano: “Mesmo o grande e gravíssimo momento não me impe-diria de, mesmo esta semana, prestar à República toda a atenção de que é digna e de que soucapaz” (Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 29 de março de 1881. In:RODRIGUES [org.], 1977, p. 75).

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trocada também é permeada por detalhes de seus encontros e de indícios daamizade que existia entre eles. Exemplo disso é que, próximo ao dia deformatura de Assis Brasil, Capistrano escreveu ressentido ao amigo, ex-pressando o quanto gostaria de participar daquele momento, ainda que nãopudesse fazê-lo: “Estava esperando tirar a sorte grande para ir assistir à suaformatura. Vã esperança. Sinto pelo que perco”.44

A relação de amizade entre Capistrano de Abreu e Assis Brasil per-durou por vários anos e o laço existente entre ambos foi mobilizado váriasoutras vezes, gerando inúmeras trocas. No que se refere ao mundo das le-tras, Capistrano convidaria Assis Brasil para participar de vários outros pro-jetos. Ainda em 1882, o bibliotecário cearense avisava ao amigo que Ubal-dino do Amaral estava com a ideia de publicar anualmente alguns livrossobre a História do Brasil e perguntava se ele não gostaria de escrever ahistória da Revolução do Rio Grande, insistindo mesmo para que aceitasseo convite: “[...] Responda depressa e responda sim”.45 Já em 1893, sendoum dos organizadores da coleção intitulada Monografias Brasileiras, queobjetivava preparar o centenário do descobrimento do Brasil, ainda na pro-cura de escritores para alguns volumes, Capistrano atribuiu a tarefa de redi-gir um deles ao amigo: “Já vê que V. não pode deixar de escrever o volume,e ditatorialmente já o inscrevi entre os colaboradores cujos volumes pode-mos garantir”.46 Capistrano visitou o amigo algumas vezes já no Rio Gran-de, tendo se hospedado em sua casa. Quando da morte de seu filho, já noperíodo republicano, “desorientado, refugiou-se em Pedras Altas”, onderecebeu todo o apoio da família de Assis Brasil, que o ajudou a atravessaraquele momento difícil.

Portanto, a amizade iniciada em princípios da década de 1880 perdu-rou vários anos e foi essencial para a publicação dos escritos de propagandaque consagraram o jovem republicano Assis Brasil, abrindo outras portasao mesmo, sobretudo na política. Capistrano estava posicionado no cora-ção político do Império e, por que não dizer, no centro de atuação dosletrados brasileiros. Participava de jornais importantes, possuía inúmeros

44 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 19 de novembro de 1882. In: ibid.,p. 83.

45 Ibid., p. 83.46 Correspondência de Capistrano de Abreu a Assis Brasil, 23 de janeiro de 1893. In: ibid., p. 84.

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contatos, além de um cargo importante na Biblioteca Nacional e, posterior-mente, no Colégio Pedro II, onde foi professor. Sem dúvida, esta posiçãocentral ocupada por Capistrano foi de grande auxílio para um recém-che-gado de uma província distante e que tinha anseios de se posicionar nointerior do grupo que ficou conhecido como geração de 1870. Capistranorealizou inúmeras ações, por exemplo, convidando o amigo para participarde conferências e eventos, objetivando inseri-lo no espaço de debates daCorte, Corte esta que, anos depois, seria o palco de uma conspiração repu-blicana e militar, insuflada parcialmente por jovens e letrados como AssisBrasil e Capistrano de Abreu.

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Dom Chimango e a torre de marfim:a literatura de Homero Prates e a política

oligárquica da Primeira República (1890-1927)

Cássia Daiane Macedo da Silveira

Política e literatura sempre mantiveram relação estreita na históriado Brasil. A historiografia sobre o começo da República no Brasil costumadividir em “fases” a atuação dos intelectuais, inclusive daqueles mais pro-priamente ligados às atividades literárias. A partir da periodização usual,nos últimos anos da Monarquia, houve engajamento tanto em prol do fimda escravidão quanto pelo advento do novo regime republicano: os intelec-tuais brasileiros teriam se envolvido diretamente nessas lutas políticas(ALONSO, 2002; COELHO NETTO, s/d; PEREIRA, 1994). Logo nosprimeiros anos da República, contudo, uma boa parte da intelectualidadebrasileira, em particular aquela ligada à produção literária, teria se “desilu-dido” com o rumo político tomado pelo regime outrora tão vigorosamentedefendido e teria decidido se retirar para uma “torre de marfim” ou aceita-do render-se aos gostos “levianos” das elites, produzindo uma literaturasem vinculação com a realidade social de seu tempo. Algumas raras ocor-rências de escritores que mantiveram vivos seus laços com a realidade cir-cundante recaíram em profundo isolamento, como seriam os casos de LimaBarreto e de Euclides da Cunha (SEVCENKO, 1983). A década de 1920,com o crescente nacionalismo desenvolvido após a Primeira Guerra Mun-dial, finalmente teria, pouco a pouco, trazido um retorno ao engajamentoperdido no decurso das três primeiras décadas republicanas (PÉCAULT,1990).

Por outro lado, matizando o rigor de periodizações como esta, al-guns historiadores e críticos já mostraram o quão políticas foram associa-ções literárias tão importantes quanto a Academia Brasileira de Letras (RO-DRIGUES, 2003). Olavo Bilac, “príncipe dos poetas brasileiros” e princi-pal poeta parnasiano do país, que talvez poderia ser considerado um sím-

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bolo da fase em que os escritores decidiram afastar-se do mundo, escreven-do “longe do estéril turbilhão da rua” (BILAC, 2002), engajou-se na lutarepublicana durante o fim da Monarquia, pelo alistamento militar obriga-tório no ano de 1916 e, em literatura, escreveu poemas satíricos de cunhopolítico utilizando pseudônimos. Bilac diferenciava uma literatura “séria”,sua produção como escritor parnasiano, a qual assinava com seu verdadei-ro nome, e uma literatura “menor”, na qual a intervenção política seriapossível e na qual utilizava pseudônimos, visando “preservar a respeitabili-dade e o prestígio do estilo ‘sério’, sujeito a rígidos preceitos estéticos” (JU-NIOR, 2007, p. 28). Durante as primeiras décadas da República, assim, osescritores procuraram alegar a separação rigorosa entre a literatura que pro-duziam e a política. Utilizo o verbo alegar conscientemente, já que descon-fio da possibilidade de separação rígida entre literatura e política no Brasil,sobretudo num período permeado por conflitos como foi a Primeira Repú-blica.

Contudo, é preciso questionar: toda e qualquer literatura pode se re-lacionar com a política? Existem gêneros literários mais “propensos” a ex-pressar opiniões políticas? Essas não são questões simples, nem são ques-tões que possam ser encerradas com o estudo de um ou de outro caso parti-cular. Entretanto, pretendo, neste texto, refletir sobre as possibilidades deintervenção política suscitadas pela literatura, relacionadas à própria per-cepção dos gêneros literários pelos escritores. No caso específico que aquianalisarei, meu objetivo é compreender como o escritor gaúcho HomeroPrates (1890-1957) percebia as possibilidades de vinculação entre estética epolítica quando selecionava os gêneros com os quais pretendia se expressar.Ao mesmo tempo, pretendo apresentar ao leitor os modos pelos quais osdiferentes níveis de relações interpessoais estabelecidas pelo autor influen-ciavam nas suas decisões, fossem estéticas ou fossem políticas. Nesse senti-do, a ideia de “redes”, que vem sendo muito utilizada no estudo de intelec-tuais, será indispensável.1 Com o intuito de operacionalizar tal ideia, o que

1 O historiador francês Jean-François Sirinelli (1986; 1988; 2003) tornou popular a noção de“sociabilidade” para o estudo dos intelectuais, que pode ser entendida tanto por meio da ideiade “rede” – que visaria dar inteligibilidade às relações estabelecidas entre os intelectuais –quanto por meio da ideia de “microclimas” – que comporiam a “atmosfera” de um grupo ougeração de intelectuais. No Brasil, Ângela de Castro Gomes (1999) e Monica Pimenta Velloso(1996) se valeram de tal ideia a fim de estudar a modernidade carioca.

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pretendo é “reconstituir grupos sociais a partir das relações que ligam osindivíduos”. Proponho, assim, que as articulações travadas entre HomeroPrates e outros intelectuais, bem como as relações dele com seus familiares,podem ser um meio de esclarecimento do “horizonte social dos atores”,oferecendo oportunidade para conhecer o contexto em que o escritor efeti-vamente se movia, suas lutas (estéticas e políticas), seus interesses e suasestratégias. As redes, assim, podem ser uma forma de “nos interrogarmossobre a experiência dos indivíduos e, portanto, sobre as modalidades deconstrução da identidade social” (CERUTTI, 1998, p. 183).

I. Grupos de escritores, disposições herdadas

Homero Menna Barreto Prates da Silva começou sua atividade lite-rária no ano de 1908, com a publicação do seu livro Poemas bárbaros.2 Tam-bém naquele mesmo ano, sua identidade enquanto literato se estruturavanas reuniões que ele e os amigos faziam, todas as noites, numa praça dacidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul: a Praça da Misericórdia.Foi nessa praça que Homero Prates, Álvaro Moreyra, Felipe d’Oliveira,Antonius Barreto, Francisco Barreto, Carlos de Azevedo e Eduardo Gui-maraens – o grupo dos sete3 – consolidaram uma amizade que se estenderiaao longo de suas vidas e que influenciaria de modo definitivo seus futurosna literatura. Do grupo dos sete, restaram cinco4, dos quais apenas quatroorientaram seus desejos de estetas para a palavra escrita5: Eduardo, Felipe,Álvaro e Homero. Na literatura dos quatro, alguns aspectos comuns se so-bressaem: o interesse por temáticas mórbidas, pela morte, pela doença, pelo

2 Walter Spalding (1973, p. 254) contesta a existência deste volume, alegando que nunca ne-nhum exemplar do mesmo foi localizado. Para este autor, a afirmação da existência da referidaobra não passaria de mero engano. Se concordarmos com a posição de Spalding, o primeirolivro de Homero Prates teria sido As horas coroadas de rosas e de espinhos, de 1912, publicado noRio de Janeiro pela Tipografia Progresso.

3 A amizade dos sete jovens foi registrada em 1909, por Eduardo Guimaraens (Doc. no. 2332,AML, P. I. Pasta Eduardo Guimarães, Fundação Casa de Rui Barbosa), em poema em queregistrou o interesse de cada um dos amigos, e os seus próprios, pela arte e pela literatura.Posteriormente, foi novamente registrado por Mansueto Bernardi (1944, p. 14), que os desig-nou como “grupo da Praça da Misericórdia”.

4 Não localizei registros vinculados à atividade artística a respeito de Carlos de Azevedo ou deFrancisco Barreto na idade adulta.

5 Antonius Barreto era ilustrador.

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fim, pelo ocaso, pelo crepúsculo, pelo azul e pelo roxo, pelo outono. Nadefesa de uma ideia de sucessão de gerações literárias, pode-se dizer que ogrupo da Praça da Misericórdia era tributário, principalmente, de dois ou-tros conjuntos de escritores brasileiros com os quais mantiveram estreitasrelações, um em Porto Alegre, outro no Rio de Janeiro.

Em Porto Alegre, os amigos da Praça da Misericórdia assimilaram olegado de um grupo boêmio composto por alguns escritores ligados ao jor-nal Correio do Povo6, como era o caso de Zeferino Brazil, Marcello Gama ePedro Velho. Fosse pelo tipo de literatura que escreviam, que provocavauma ruptura no modo de escrita literária até então vigente no estado, tra-zendo para seus livros elementos caros a Baudelaire e a Edgar Allan Poe,fosse pela “invenção de uma arte de viver”– já que então os artistas tambémpassariam a se definir pelo estilo de vida (BOURDIEU, 1996, p. 73) –, osboêmios gaúchos forneceram um primeiro horizonte de possibilidades es-téticas aos mais novos, que recém tentavam se integrar ao espaço de produ-ção literária. Na Capital Federal, o grupo da Praça da Misericórdia se inse-riu, no início da década de 1910, nas rodas literárias organizadas em tornoda revista Fon-Fon! 7, tendo como ponto de referência a figura emblemáticado simbolista Mario Pederneiras. A ideia de um “projeto” de integração aogrupo literário de Mario Pederneiras, quando os gaúchos da Praça da Mi-sericórdia se transferiram para o Rio de Janeiro, transparece na correspon-dência de Álvaro Moreyra a um amigo não identificado, que comenta estarapaixonado: “Já havia escrito umas palavras para o Felipe, quando recebi acarta... Amas? Louvado sejas! E deve ser linda... Que pena não chamar-seOdette e não ser da prole fon-fônica...” (Porto Alegre, 04/11/1909. Corres-pondência de Felipe d’Oliveira. Arquivo de Felipe d’Oliveira. BibliotecaMunicipal Henrique Bastide, Santa Maria). Odette era o nome de uma dasfilhas de Alexandre Gasparoni, diretor da revista Fon-Fon!. A irmã de Odet-te, Stella, efetivamente casou-se, em 1915, com João Daudt de Oliveira,irmão mais velho de Felipe d’Oliveira (O Paiz, 10/07/1915, p. 5).

6 O jornal Correio do Povo foi fundado em Porto Alegre, no ano de 1895, por Francisco VieiraCaldas Júnior, que tencionava pôr em circulação um jornal “imparcial”, que produzisse umjornalismo moderno, sem vinculação partidária. Sob o comando da família Caldas, o periódicopermaneceu até o ano de 1984, quando o filho de Francisco, Breno, o vendeu. Sob outra admi-nistração, o Correio do Povo circula até os dias de hoje (CALDAS, 1987).

7 A revista Fon-Fon!, de Alexandre Gasparoni, foi fundada em 1907 e teve papel preponderante nadifusão da modernidade no Rio de Janeiro do começo da República (VELLOSO, 2010, p. 50).

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Homero Prates e seus amigos, assim, constituíram, na juventude, apartir de referências trazidas por gerações anteriores de escritores com quemtomaram contato, uma forma de escrita que era própria do seu grupo, queconstituía um projeto particular de ingresso no mundo literário brasileiro,vinculado a uma estética bastante específica. Apesar de cada um deles pos-suir uma característica própria enquanto escritor, não é enquanto “gênio”,enquanto individualidade criadora que me interessam. É na construção deuma estética própria do grupo que fenômenos sociais mais amplos podemser observados. Nas palavras de Raymond Williams (1999, p. 140), “exis-tem grupos culturais muito importantes que têm em comum um corpo depráticas ou um ethos que os distinguem, ao invés de princípios ou objetivosdefinidos em um manifesto”. Assim, é preciso apreender as práticas unifi-cadoras do grupo – a pertença a uma revista, a um jornal, o encontro coti-diano em uma praça ou residência e mesmo as escolhas estéticas que osdefinem, elementos que, ao mesmo tempo, marcam escolhas intelectuais econstituem solidariedades, estreitam vínculos, constituem laços de admira-ção e solidificam amizades. Esses espaços conformam estruturas de sociabili-dade que nos permitem compreender a significação social e cultural de gru-pos de escritores, músicos e artistas por meio da identificação de seus valo-res comuns. É nesse sentido que o conjunto de temáticas eleitas pelo grupona composição de suas obras poéticas – o azul e o roxo, as olheiras, a enfer-midade, o outono, a folha que cai, o corpo que pende sem vida, a melanco-lia cotidiana, o abismo – ganha significação especial. Elas não marcamapenas a adesão a uma estética específica – simbolista, parnasiana, penum-brista, pós-simbolista e que tais –, mas marcam especialmente o conjuntode valores compartilhados pelo grupo, suas vinculações sociais mais am-plas, seu modo de compreender e perceber a realidade. O grupo do qualfazia parte Homero Prates carregou tais valores ao longo de toda a suaprodução literária, confirmando a força das suas solidariedades de origem.

As relações que constituíram tais solidariedades formadas na juven-tude são, contudo, apenas uma parte da ampla rede de Homero Prates.Uma parte importante, sem dúvida, que marcou sua existência e a de seusamigos. Mas apenas uma parte. Além de amigo de Felipe d’Oliveira, Álva-ro Moreyra e Eduardo Guimaraens, Homero Prates também era um mem-bro, pelo lado materno, do tradicional clã dos Menna Barreto, fração dasoligarquias regionais gaúchas, iniciado provavelmente com João de Deus

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Menna Barreto (FIGUEIREDO, 1984, p. 223). Em 1846, João de DeusMenna Barreto recebeu o título de Visconde de São Gabriel, com honras degrandeza, por meio de Carta Imperial. Seu filho, João Propício MennaBarreto, também militar, recebeu do governo imperial, por sua vez, o títulode Barão de São Gabriel, após a guerra contra o Uruguai, iniciada em 1864.Já do lado paterno, Homero Prates descendia de uma família de ricos cria-dores de gado nas cidades de São Gabriel e de Cruz Alta, no Rio Grandedo Sul. Quando da morte do avô de Homero, João Raymundo da Silva, noano de 1899, este deixou um inventário de quase 900 reses, além de mais de300 outros animais entre bois, éguas, burros, mulas e cavalos, distribuídosnas propriedades das cidades citadas. Além de alguns imóveis urbanos, JoãoRaymundo deixou 1 légua de sesmaria no Lajeado, 43 quadras quadradas“de terras situadas em vários pontos dos terrenos onde se acham as cháca-ras existentes no lugar denominado Bom Fim, entre os campos da ‘casabranca’, a estrada que de São Gabriel vai a São Sepé e as margens direita[sic] do rio Taquari e as quedas do arroio Mudadomo” (Inventário de JoãoRaymundo da Silva. Comarca de São Gabriel, 1900, Arquivo Público doEstado do Rio Grande do Sul/APERS). No município de Cruz Alta, eledeixou 2 léguas de sesmaria “na fazenda denominada do Cadeado, entre aserra deste nome, a estrada que vai de Cruz Alta a São Borja e o rio Ijuizi-nho”, além de 1.838.817 braças quadradas “de terras de matos de culturana serra denominada do Cadeado, no fundo da fazenda acima descrita, asquais constituem a metade das terras ali medidas e legitimadas, com áreatotal de 3.677.634 braças quadradas” (Inventário de João Raymundo daSilva. Comarca de São Gabriel, 1900, APERS).8

Homero Prates, ao mesmo tempo em que constituía, com os amigosda Praça da Misericórdia, uma estética própria, que lhes conferisse identi-dade enquanto escritores, também seguia outros rumos menos artísticos,mas bastante condizentes com as disposições herdadas de sua família. Em1912, concluiu a Faculdade de Direito de Porto Alegre e seguiu para a Ca-

8 Considerando as análises de Thiago Araújo (2008, p. 42) para a mesma região, no períodocompreendido entre os anos de 1834 e 1879, os rebanhos de João Raymundo da Silva sãobastante expressivos. No período estudado por Araújo, os proprietários que possuíam mais de500 reses correspondiam a pouco mais de 10% do montante dos inventários analisados. Mes-mo levando em conta os mais de 20 anos entre o período estudado por Araújo e o falecimentode João Raymundo, trata-se, sem dúvida, de um criador com um número considerável de pos-ses. Agradeço ao autor pelas referências e pelo auxílio na análise desta fonte.

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pital Federal.9 Após um período vivendo com os amigos no Rio de Janeiro,colaborando com a revista Fon-Fon!, Homero retornou ao Rio Grande doSul a fim de atuar como juiz distrital na cidade de Dom Pedrito, entre osanos de 1913 e 1915. Sua participação nas “rodas simbolistas” da Capitalfoi interrompida por uma chamada à sua “verdadeira” profissão. A litera-tura que escrevia com os companheiros era uma parte importante da suavida, mas a carreira no Direito precisava também ser alavancada. Entre1916 e 1918, Homero Prates transferiu-se novamente para o centro do paíse atuou como advogado na cidade de São Paulo. Não tenho mais informa-ções sobre esse período a não ser aquelas obtidas por meio de suas publica-ções na revista Panóplia: mensário de arte, ciência e literatura, daquela cidade.O fato de Homero ter se tornado colaborador (e, por certo período de tem-po, também diretor) da revista literária paulista, contudo, nos adverte parao modo como ele investia paralelamente nas duas atividades: a artística e ajurídica, a primeira mais vinculada a suas adesões estéticas juvenis, ligadas,ainda, ao grupo da Praça da Misericórdia, a última mais vinculada às dis-posições assumidas pelo lugar social que ocupava como parte de um setordas oligarquias gaúchas.

Suas duas atividades, contudo, embora conduzidas de modo parale-lo, por meio de espaços distintos de atuação (as revistas literárias ou asinstituições jurídicas), também se entrelaçavam por meios menos explíci-tos. As reuniões literárias das quais participava sempre contavam com apresença de indivíduos importantes não apenas na esfera de atuação maisespecificamente literária. Em sarau na casa de D. Gaby Coelho Netto, es-posa do ilustre escritor maranhense Henrique Coelho Netto, Homero pôdeencontrar não apenas outros escritores, como Alcides Maya e Mario Peder-neiras, mas também a Baronesa de Werther, filha do Barão de Rio Branco(O Paiz, 17/06/1913, p. 3). No almoço em homenagem ao escritor Elísiode Carvalho, Homero Prates esteve na companhia de seus amigos ÁlvaroMoreyra e Felipe d’Oliveira, mas também do embaixador francês A. Con-ty, além de vários senadores, deputados e ministros (O Paiz, 13/08/1921, p.5). Os locais de reunião para homens e mulheres pertencentes às elites, emgeral, contavam com a presença de homens de letras. Por outro lado, os

9 Luiz Alberto Grijó (2005) apresenta as estreitas vinculações entre os indivíduos formados naFaculdade de Direito de Porto Alegre, no período entre 1904 e 1937, e a atividade política.

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contatos feitos em um sarau literário serviam tanto ao Homero Prates es-critor, quanto ao Homero Prates membro da importante família gaúcha.Ele poderia, assim, acionar tais contatos tanto diante da necessidade deobter editor para um de seus livros, quanto diante da vontade de defenderalgum interesse de sua família. Por meios indiretos, o fato de Homero Pra-tes se apresentar como escritor, como poeta, lhe possibilitava ingressar emcírculos capazes de ampliar significativamente sua rede de relações maisespecificamente políticas. Isso significa que ele poderia tirar destas relaçõesmuitas vantagens, se assim desejasse; mas não significa, necessariamente,que sua literatura tratasse de assuntos caros aos interesses de sua família oudas redes que estabelecia.

Sérgio Miceli (2001, p. 23) argumenta que a rede de relações dos es-critores da Primeira República – que ele denomina de “anatolianos”, emreferência à influência do escritor francês Anatole France – é um de seusmais importantes trunfos. Em seu estudo, Miceli constata que tais escrito-res são, em geral, os “parentes pobres” das oligarquias condutoras do jogopolítico brasileiro. Já não contariam mais com os mesmos recursos econô-micos, além de possuírem uma série de desvantagens – como a gagueira oua morte prematura do pai – responsáveis pelo afastamento de suas possibi-lidades de atuação política mais direta, no seio das oligarquias das quaisfazem parte. As boas relações mantidas pela família, bem como a formaçãocultural orientada para o domínio de uma cultura europeia, elitizada, seriamos últimos resquícios de sua participação entre as classes dominantes, capa-zes de serem utilizados na reconversão que operam a fim de ingressar nosmundos da literatura. Não é exatamente o que se verifica na trajetória deHomero Prates; apesar de eu não ser capaz de demonstrar nenhum vestígiode decadência econômica em sua família, a conjuntura específica do RioGrande do Sul no decorrer da Primeira República talvez seja capaz de ex-plicar seu modo de atuação.

Como vimos, Homero Prates pertencia a um importante clã das oli-garquias gaúchas do período, a família Menna Barreto. Não é de hoje aconstatação de que os conflitos no interior das classes dominantes no de-curso da Primeira República não podem ser pensados unicamente em ter-mos de conflitos entre oligarquias de regiões diferentes, por acesso ao po-der. É preciso levar em consideração, também, os conflitos internos a umamesma oligarquia, que não se constitui, embora possa aparentar, em um

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todo homogêneo, harmônico e coeso (PERISSINOTTO, 1997, p. 41).10

Nesse sentido, o período da Primeira República no Rio Grande do Sul podeser pensado como repleto de incidentes capazes de demarcar a existênciade tais conflitos intraoligárquicos: as duas guerras civis – a Guerra CivilFederalista (1893-1895)11 e a Guerra Civil de 1923 (1923-1925)12 – e as elei-ções de 1906 – quando Borges de Medeiros assume a chefia do estado e asoposições vão às urnas através de Fernando Abbott – são exemplos contun-dentes do que quero dizer (WASSERMAN, 2004; ANTONACCI, 1979).A família de Homero Menna Barreto Prates da Silva destacou-se especial-mente na conjuntura entre 1921 e 1923, que levou à Guerra Civil de 1923,e é sobre este episódio que pretendo me deter.

Já vimos que, enquanto literato, Homero Prates compartilhava deuma série de valores com um grupo de amigos de juventude, com quem semanteve unido ao longo da vida e por meio do qual conquistou uma sériede posições no mundo literário da Capital Federal, como o posto de cola-borador na revista Fon-Fon!. A escrita de poesias que mantiveram a marcade seu grupo foi uma constante na vida do escritor. De um modo geral,uma característica marcante da literatura poética produzida por seu grupoé a aproximação com correntes estéticas que afirmavam a busca por umaarte literária devedora de satisfações apenas a si mesma, sem vínculos coma política, recusando a lógica econômica na produção e na valorização daarte. Homero Prates escrevia poesias sobre ametistas, opalas e outras pe-dras preciosas; violetas e o Outono também estavam no rol de temas men-cionados: “Não! não a quero! Não! que, em seu brilho, a Desgraça / Dor-me num leito em flor de violetas; e acesa / Em púrpuras, de Outono ainfinita tristeza, / No áureo esquife do Poente, às mãos das Tardes, pas-sa...” (PRATES, 1912). De caráter intimista, a literatura poética desenvol-vida por Homero Prates ao longo da vida (muito de acordo com os valores

10 Para uma revisão ampla da política oligárquica da Primeira República, ver o trabalho de Clau-dia Viscardi (2012).

11 Guerra civil que opôs as tropas federalistas gaúchas ao governo de Júlio de Castilhos, no RioGrande do Sul, então um dos principais aliados do presidente Floriano Peixoto (FLORES,2008).

12 Também conhecida como “Revolução Assisista” ou “Revolução de 1923” (1923-1925), foi aguerra travada entre os maragatos, união de toda a oposição, e o exército de Borges Medeiros.A luta foi travada em decorrência da posse no quinto mandato consecutivo do presidente doestado do Rio Grande do Sul.

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de seu grupo de amigos) não tinha espaço para tematizar a realidade maisimediata que o cercava. Sobre isso, aliás, o autor discorreu em artigo intitu-lado “Arte regional”, publicado na revista Panóplia, em 1918. No texto emquestão, ele defendia que a arte é “universal” e “sagrada” e não devia tratarde assuntos comezinhos de caráter nacional, regional ou local. Para Prates,a literatura produzida segundo princípios de nacionalismo ou regionalis-mo não seria digna de chamar-se arte, concluindo que, ao ler algum livrobrasileiro produzido “nesse gênero (o que só faço por um ingente esforçopatriótico) a tirada de um preto a falar errado ou de um caboclo sentimentala dizer tolices no seu linguajar grosseiro – ainda que nas circunstânciasmais trágicas ou, melhor, precisamente nessas ocasiões patéticas – em lugarde me comover, como razoavelmente pretendeu o autor, sinto uma emoçãoàs avessas: fico vermelho e envergonhado (sei lá por quê) e fecho logo ovolume...” (PRATES, 1918, p. 5; grifos no original). Diante dos estreitoslaços que uniam Prates a uma fração das oligarquias gaúchas, seria possívelao escritor se manter fechado em uma torre de marfim, sem tratar, em suaescrita, das disputas por poder que marcaram sua família durante a Primei-ra República? De que estratégias poderia o escritor se valer a fim de contor-nar as regras que se tentava estabelecer para a produção literária do perío-do, mantendo-a tão distanciada do mundo concreto quanto possível?

II. Regionalismo como arte?

É por meio de uma publicação de 1927, na qual Prates mudou tem-porariamente o rumo de seu estilo, que pretendo compreender estas ques-tões. Trata-se – ironicamente, como podemos pensar após ler seus comen-tários sobre arte nacional, regional ou local – do poema satírico regionalHistória de Dom Chimango, impresso no Rio de Janeiro, onde então residia(PRATES, 1927). Tal obra já havia sido concluída no começo de 1925, como fim da Guerra Civil de 1923 no Rio Grande do Sul. Prates inspirara-se nomédico e político gaúcho Ramiro Barcelos13, que, anos antes, sob o pseudô-nimo de Amaro Juvenal, publicara longo poema satirizando Borges de

13 Ramiro Barcelos pertenceu aos quadros do antigo Partido Liberal, mas tornou-se republicanoainda sob o regime monárquico, conformando a “plêiade histórica da propaganda” no estado.Foi jornalista do periódico republicano A Federação desde sua fundação, em 1884 (PORTOALEGRE, s. d.).

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Medeiros, então presidente do estado do Rio Grande do Sul, apelidando-ode Antonio Chimango – este, aliás, o título de seu popular poema. Maisuma vez, agora com Prates empunhando a pena, Borges sofria ferinos ata-ques, desta vez com o mote da sua quinta eleição consecutiva na presidên-cia do estado – o que o levaria a 30 anos no poder – e da guerra que maisuma vez dividiu o Rio Grande do Sul em maragatos e chimangos. A partirde agora, analiso a referida obra de Homero Prates em diversos aspectos,enfocando como o próprio eixo narrativo do qual se valeu, compartilhadopor muitos outros escritos gauchescos, proporcionou ao autor tratar de algoque à sua produção poética, em geral, não era permitido.

Na década de 1920, o ambiente cultural no Rio Grande do Sul aindaera limitado. Foi a partir de 1922-23, contudo, que os intelectuais gaúchoscomeçaram a repensar as antigas gerações de escritores que viam com pes-simismo a história do estado. Nesta época, foi refundado o Instituto Histó-rico e Geográfico do Rio Grande do Sul – que já havia existido no séculoXIX – , onde passaram a se reunir intelectuais interessados em escreveruma história gaúcha vinculada ao conceito de nacionalidade, com o objeti-vo de apresentar e integrar o estado ao restante do país. Já nos últimos anosda década de 1920, este período de otimismo entre os intelectuais tornara-se um imenso esforço político por parte do Rio Grande do Sul a fim dealçar-se a liderança nacional (GUTFREIND, 1992). Esse clima de otimis-mo e fortes expectativas em parte fora criado pela Guerra Civil de 1923,que conformou uma atmosfera propícia a se pensar o Rio Grande do Sulcomo estado promissor, com uma missão histórica fundamental no Brasil.

Foi esse ambiente de entusiasmo geral entre os intelectuais gaúchosque contribuiu para uma transformação na literatura regionalista gauches-ca. Ao menos até 1930, há, em todas as obras desse gênero, um tema co-mum: a valorização do gaúcho-herói. Entretanto, tal temática poderia apa-recer de duas formas: no primeiro caso, comum nas obras escritas mais nocomeço do século, o herói está agonizante em função das transformaçõesocorridas com a modernização do estado – é o caso do poema satírico An-tonio Chimango, de Ramiro Barcelos, e da obra regionalista de Alcides Maya.No segundo caso, porém, surgido a partir da segunda metade da década de1920, há a persistência do herói, seu renascimento, sua resistência, apesarde todas as transformações sociais, diante de qualquer infortúnio (LEITE,1978). É o caso da obra de Homero Prates.

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Historia de Dom Chimango inicia com uma dedicatória que já indicaqual posicionamento o autor tem diante da situação instituída pela GuerraCivil de 1923. Prates pede desculpas a seu “tio Lauterio” (este é o nome dopersonagem principal da obra de Barcelos, o homem que conta o “caso” arespeito de Antonio Chimango) se o imita neste livro, mas lembra-o de queele mesmo sugeriu que alguém terminasse de contar a história do Chiman-go, já que em 1915 ela ainda estaria inacabada: “Porém, si estou bem lem-brado, / Tu mesmo é que imaginaste, / Quando um dia o terminaste, /Que um outro – o que agora faço – / Viesse emendar o laço / No ponto emque o rebentaste (PRATES, 1927, p. 9). Desta forma, Homero Prates secoloca como tributário de uma certa tradição não apenas literária, mas tam-bém política. Ele é o continuador da obra e da crítica de Ramiro Barcelos,falecido em 1916. Com seu trabalho literário, faz uma crítica política que,ao mesmo tempo, institui um modelo de gaúcho – bem como seu contra-modelo, o anti-herói.

No caso em questão, Homero Prates parece querer criar uma distân-cia entre o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) daquele momento,do qual Borges era o representante máximo, e o PRR do passado, fundado,entre outros, por Ramiro Barcelos. Nesse sentido, Prates pretendeu insti-tuir uma tradição republicana rio-grandense que não estivesse ligada aonome de Borges de Medeiros e à qual ele próprio se vincularia. Para tanto,como já foi dito, colocou-se como tributário de Ramiro Barcelos tanto lite-rária quanto politicamente. Mas não só: também colocou-se como tributá-rio de Júlio Prates de Castilhos, um dos mais importantes chefes do PRR,falecido no início do século XX, primo do pai de Homero, e de quem Bor-ges de Medeiros fora o braço direito: “ - Quem ia assim continuar / Ahistoria do tio Lauterio / Era um tal de João Valério / Cria do CoronelPrates” (PRATES, 1927, p. 20). Homero Prates configurou, assim, umapossível cisão entre o PRR de fins do Império e começo da República e oPRR da década de 1920, recaindo a responsabilidade sobre o péssimo esta-do das coisas no Rio Grande do Sul sobre Borges de Medeiros.

Ligia Chiappini Moraes Leite afirma que, na narrativa regionalistagauchesca, a estrutura comum é dada por dois paradigmas, seguindo umalógica binária: o do herói, que comportaria certos atributos-padrão, e o doanti-herói, que comportaria atributos contrários àquele. Entre os atributosdo herói estariam os atributos físicos da virilidade e valentia, e os morais da

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honra, lealdade, bondade, franqueza, pureza e desprendimento. Já entre osatributos do anti-herói estariam os atributos físicos da impotência, da co-vardia, e os morais da falta de honra, da traição, da maldade, da dissimula-ção, da corrupção e da ambição (LEITE, 1978).14 Os atributos do herói são“eminentemente telúricos, mesmo que o telurismo não venha marcado dire-tamente neles” (LEITE, 1978, p. 59), podendo aparecer numa íntima relaçãodo homem com a natureza, conhecendo seus segredos; numa íntima relaçãodo homem com os animais; ou aproximando a paisagem do homem, partici-pando, também ela, das aventuras do herói. A autora localiza, ainda, a estru-tura básica dos textos gauchescos: sua fábula é marcada por um herói, porta-dor das qualidades do herói telúrico, que em certo momento se torna vítimade algum dano, em geral cometido pelo anti-herói. A partir daí, o herói pre-cisa vencer o desafio de limpar sua honra ferida, cobrando do adversário aafronta que lhe foi feita. Herói e anti-herói se envolvem em uma luta, ouduelo, culminando, em geral, na vitória do herói (LEITE, 1978).

Utilizando-se desse modelo narrativo típico da literatura regionalistagauchesca, Homero Prates contou a história da relação do povo gaúchocom o governo de Borges de Medeiros. Segundo Homero Prates, foi quan-do Borges de Medeiros se considerou automaticamente reeleito para o go-verno do estado que o povo gaúcho tomou sua atitude como “um desafo-ro”, fazendo o anti-herói – Borges de Medeiros – criar o dano contra oherói – o povo gaúcho. Muito embora, em certo sentido, o povo gaúchocomo um todo possa ser entendido como o herói da narrativa de HomeroPrates15, há ainda uma série de personagens heróicos, que, contudo, sãopessoas de carne e osso, a saber, os líderes da guerra civil de 1923: “MasD’Chimango que tinha / A faca e o queijo na mão / Ficou fula e fez pres-são / Pra que o povo sossegasse / E o sono não lhe tirasse / Com barulhosde galpão. / Ninguém lhe deu importância / E escolheram pra o tal pleito

14 A autora coloca virilidade e valentia e seus opostos como atributos físicos porque eles se mani-festam de forma física, em gestos e ações. Seu estudo é realizado com base em textos regiona-listas em prosa, ao contrário do texto de Prates aqui analisado, que é um poema. Entretanto,pude verificar a permanência do mesmo esquema encontrado pela autora.

15 Ao povo gaúcho é atribuída a qualidade da valentia, típica do herói regionalista. Entretanto,em certo momento do poema de Prates, o povo gaúcho é cantado como tendo se convertidoem “boi de canga” pelo regime de Borges de Medeiros, perdendo o atributo de herói e assu-mindo o atributo do anti-herói, tornando-se quase como o “herói degradado” que Ligia Chia-ppini (1978, p. 78) caracteriza: um indivíduo que foi heróico, mas, em decorrência principal-mente de circunstâncias do meio, perde os atributos do herói.

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/ Um gaúcho de respeito / Com Brasil no sobrenome [Assis Brasil] / Quetendo a Pátria no nome / Sentia-a também no peito” (PRATES, 1927, p.60-61).

Joaquim Francisco de Assis Brasil, oponente de Borges de Medeiros,era configurado não só como herói, em oposição a Borges, mas tambémcomo homem que afirmava sua nacionalidade brasileira, estratégia políticaimportante aos rio-grandenses no período. Apesar desta inclinação patrió-tica, a construção de Assis Brasil como herói passa principalmente pelaafirmação de suas qualidades gauchescas, as características típicas do ho-mem do pampa: “Homem guapo como há poucos / Entre os nossos patri-otas, / Que usa bombachas e botas / Mas fez figura na estranja / E agoratem uma granja / Lá pras bandas de Pelotas. / Este, sim, é que podia /Transformar aquela estância / Sem relho nem arrogância, / Só com capri-cho e com zelo / Nalguma granja modelo. / Assim pensei desde a infân-cia” (PRATES, 1927, p. 61).

Contrapondo-se a essas características atribuídas a Assis Brasil, Bor-ges de Medeiros era narrado como “um guasca16 que nunca soube / o quefoi vestir bombacha” (PRATES, 1927, p. 26), retirando de Borges as carac-terísticas que marcariam sua identidade como gaúcho e concluindo, assim,a oposição herói X anti-herói. Tal dualidade, instituída por meio dos versosde Homero Prates, não é aleatória. Ela expressa uma posição política clara,estabelecendo dois lados em confronto e propondo a adesão a um deles,bem como uma chave de leitura capaz de explicar a situação política do RioGrande do Sul. Ao redigir seu poema satírico, Homero Prates tomou posi-ção neste embate, posição bastante condizente com aquela manifestada pe-los seus familiares que ainda residiam no Rio Grande do Sul: a família dePrates tinha raízes profundas entre os pecuaristas que fizeram oposição aBorges.

Segundo Maria Antonieta Antonacci, a conjuntura entre 1921 e 1923conformou o ápice da luta no interior da classe dominante gaúcha (ANTO-NACCI, 1979, p. 231). Após um período de euforia econômica para a pe-

16 Guasca: denominação dada aos rio-grandenses pelos filhos de outros estados, pelo fato de queneste, em vista da predominância da indústria pastoril e da carência de outros materiais, haversido generalizado o emprego do couro para as mais diversas finalidades. Tira, correia, cordade couro cru, isto é, não curtido. Doravante, os significados de termos regionais que informoem nota foram extraídos do mesmo dicionário (NUNES e NUNES, 2007).

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cuária do Rio Grande do Sul, proporcionado por ocasião da eclosão doprimeiro conflito mundial, entre 1914 e 191817, sucedeu-se uma brusca para-lisação econômica. Os produtores, então, recorreram ao governo estadualobjetivando obter investimentos públicos que favorecessem seus negócios,como a redução de tarifas ferroviárias, elevação da taxa de importação, quedirimisse a concorrência platina, a redução de impostos, entre outros (AN-TONACCI, 1979, p. 233). A rejeição de tais medidas pelo governo de Bor-ges de Medeiros propiciou a eclosão da oposição explícita por parte dasfrações oligárquicas alijadas do poder, no interior das quais a família Men-na Barreto se destacou compondo uma “dissidência republicana” – partede uma mesma tradição dissidente da qual já havia feito parte Ramiro Bar-celos (ANTONACCI, 1979, p. 236; 1981, p. 75).

Tal fração republicana da oposição chegou a lançar um “manifestodos estancieiros”, encabeçado por outro dos irmãos de Homero, João Ray-mundo da Silva Neto, em que esta categoria apoiava, ainda em 1922, antesda eclosão da Guerra Civil, a candidatura de Joaquim Francisco de AssisBrasil contra Borges de Medeiros, procurando suplantá-lo nas urnas:

Publicamos na respectiva seção o manifesto-apelo dos estancieiros gaúchospara que apoiem a candidatura Assis Brasil, oposta à candidatura Borges deMedeiros.É uma disputa que dará ao povo sul-rio-grandense, de tão belas tradiçõesdemocráticas, ensejo para se pronunciar sobre a ação do governo que têmtido.O que convém assinalar nesse manifesto, além do valor político, é a formalapidar em que vazou o primeiro dos seus signatários, o Dr. João Raimundoda Silva, uma das inteligências mais lúcidas do Brasil de hoje, irmão donosso companheiro e crítico literário desta folha, Homero Prates.O manifesto é de castilhistas que ora divergem do Sr. Borges de Medeiros,resolvendo combater a sua reeleição. E não há dúvida que encontraram paralançar esse documento uma figura excepcionalmente brilhante (O Paiz, 29/10/1922, p. 4).

É possível, agora, compreender melhor algumas das posições trazi-das por Prates em seu História de Dom Chimango. O apoio, circunstancial, àliderança de Assis Brasil contra o governo Borges se dava por parte de es-

17 O Rio Grande do Sul tinha sua economia voltada, sobretudo, para o mercado interno, com avenda de carne para os demais estados da federação, de modo que a Primeira Guerra Mundialproporcionou a perda da concorrência que o estado sofria por parte de países como Uruguai eArgentina e o consequente incremento em sua economia.

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tancieiros autodenominados “castilhistas”, justificando a afirmação de queo narrador do “caso”, João Valério, seria “cria do coronel Prates”, confor-me vimos. Não foi só por meio da literatura, porém, que Prates fez oposi-ção a Borges. Valeu-se também do espaço que conseguiu no jornal O Paiz,do Rio de Janeiro – obtido por meio das relações mais propriamente “lite-rárias” que estabeleceu naquela cidade, já que era o responsável pela colu-na “Notas literárias” – para defender a posição que era sua e de sua família:

Tenhamos fé no futuro do Rio Grande do Sul. Cerremos fileiras em torno dafigura de Assis Brasil, que por si só vale um programa. Está lançada a ideianova do “Partido dos Fazendeiros”, únicos e legítimos senhores daquelaterra heroica e lendária. Já a agitou em um vibrante e lapidar manifesto-apelo aos estancieiros gaúchos – entre outras figuras de responsabilidade einteligência – um dos mais nobres espíritos do meu tempo, João Raymundoda Silva Neto. [...] Não confundamos esse movimento libertário do Rio Gran-de do Sul com as triviais agitações populares, sem significação, de todos osdias. Cerca-o alguma coisa de místico e de sagrado que lhe põe em torno umesplendor de auréola: a salvação, a liberdade, a saúde, a alegria do povo rio-grandense (O Paiz, 28/10/1922, p. 3).

Homero Prates, assumindo a posição dos pecuaristas, lança, inclusi-ve, a ideia de constituição de um “Partido dos Fazendeiros”, tomando ocuidado de distanciar o movimento criado pelos estancieiros gaúchos das“triviais agitações populares” que ocorriam no mesmo período – lembre-mos da afirmação do movimento operário ao longo de toda a PrimeiraRepública e das marcantes greves gerais que se sucederam à Primeira Guer-ra Mundial, bem como da fundação do PCB, no mesmo ano em que osestancieiros também tentavam se organizar partidariamente.

Homero Prates, assim, a despeito de sua adesão aos princípios deuma “arte pela arte” – considerada, por ele, “sagrada” e “universal” – nãodeixou de expressar, em versos, a opinião política que fazia jus ao lugarsocial que ocupava. Entretanto, valeu-se de outra orientação estética, dis-tinta daquela da qual se utilizava para redigir seus poemas “artísticos”. Aocontrário de Olavo Bilac, não dividiu sua obra entre seus pseudônimos eseu nome verdadeiro, criando, assim, uma hierarquia interna à sua própriaprodução; mas, assinalando uma diferença evidente, optou por um estilomarcadamente regionalista quando tratou de oficializar, por assim dizer,uma certa leitura da Guerra Civil de 1923 – aquela partilhada por sua famí-lia e por parte da fração oligárquica dissidente do Rio Grande do Sul. Talestilo, considerado pelo próprio autor como “inferior”, hierarquicamente

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abaixo da “verdadeira” arte, não era pensado por Prates como digno defigurar entre as obras de “valor universal”. Constituía-se, assim, numa estra-tégia de ação política direta, que visava conformar um ponto de vista clarosobre o passado de lutas recente do Rio Grande do Sul. Nesse sentido, umpoema nem sempre é apenas um poema; ele pode ser um modo estratégicode expressar uma opinião, de criar sentimentos, de alimentar adesões ourivalidades. Em última instância, o episódio protagonizado por HomeroPrates que aqui analisei nos adverte de que nem toda literatura, enquantoobra de caráter ficcional, era pensada por seus produtores como obra dearte, e não pode ser estudada exclusivamente enquanto tal; é preciso, por-tanto, devolver às obras os sentidos que tiveram no contexto de sua produ-ção, por meio da compreensão de suas vinculações sociais ocultas, de suasredes de interlocução e do espaço dos possíveis aberto aos seus autores.

Por outro lado, o episódio estudado também nos chama a atençãopara as formas de adesão a lógicas construídas por grupos sociais às vezesmuito diversos. Se Homero Prates assumiu integralmente os modos de es-crita – e os valores – de seu grupo de amigos, produzindo uma literaturaque se queria alheia aos eventos sociais mais imediatos e que almejava ouniversal, sem render-se à narrativa de eventos cotidianos, ou utilizar-se deum linguajar mais próximo do coloquial, isso não significa, necessariamente,que não aderia a outros conjuntos de valores, por vezes contraditórios emrelação a estes. Homero Prates nos lembra que os indivíduos não se pau-tam por um único sistema de valores, ou por um simples conjunto de regraspartilhadas por um grupo social. Como integrante de mais de uma “comu-nidade” – ele era parte de uma família de pecuaristas, com uma posiçãoespecífica no jogo político local e nacional, mas também era um escritorligado a um certo grupo de autores e a uma certa tradição estética, porexemplo –, Homero Prates transitava por suas redes e “jogava” com as va-riadas posições e identidades que ocupava no espaço social. E jogava, tam-bém, com as possibilidades de escrita que sua época lhe legava. Cada modode escrita, contudo, ocupava, no conjunto de sua obra, uma certa posiçãomais ou menos coerente com as posições similares que ele próprio ocupavasocialmente. Quando pretendia apresentar-se como “artista”, recorria àescrita que considerava mais “universal” e, portanto, superior enquanto arte;quando, ao contrário, pretendia manifestar uma opinião ou tornar um dadoponto de vista “oficial”, comunicando-se com um público mais amplo e

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transmitindo a ele uma ideia de forma mais objetiva, recorria a outro modode escrita, “inferior” na sua escala da arte, mas com possibilidades maispragmáticas de interlocução. Cada modo de escrita atendia a um públicodiferente; assim como o autor, sua obra tinha de ser capaz de transitar pordiferentes grupos sociais.

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Dos intelectuais na política à política dos intelectuais

Intelectuais em luta:a polêmica História da Grande Revolução1

Jefferson Teles Martins

Este artigo visa analisar uma das mais importantes polêmicas quedividiram as opiniões e posições dentro do Instituto Histórico e Geográficodo Rio Grande do Sul, a fim de revelar os mecanismos de coesão e afasta-mentos, arranjos, concessões e constrangimentos intelectuais envolvidos emtal disputa. Sem esquecer o teor ideológico das posições intelectuais assu-midas, procurar-se-á destacar que esta luta era, também, por posições “ob-jetivas” (sociais e simbólicas) na esfera intelectual. Como uma luta que, porvezes, assumia uma forma implacável e pessoal, implicava a mobilizaçãodo máximo de recursos (sociais e intelectuais) no aniquilamento da opi-nião divergente.

As polêmicas e conflitos entre intelectuais permitem entrever certasregras que mediavam o embate, tal como nos “duelos” da “sociedade decorte”. O concurso entre os litigantes assumia caráter público, mobilizandoopiniões a favor e contra um lado e outro através da imprensa. A aborda-gem deste artigo está norteada pela percepção da “polêmica” como partedo conjunto de expressões intelectuais encenadas socialmente e, em quepese o conteúdo que era propriamente objeto da disputa, ela enfeixava umconjunto de repertórios “cênicos” previsíveis ou esperados, dentro de cer-tos limites (às vezes extrapolados). Em suma, a polêmica era um elementoatinente ao habitus intelectual da época. Em torno (ou dentro) das polêmi-cas podiam estar envolvidos atributos de engajamento ideológico, ou mes-mo a propensão para a radicalização das opiniões, mas, principalmente, apolêmica fazia parte do jogo social que proporcionava visibilidade e no-toriedade dentro do universo “acadêmico” restrito da época. Como em todo

1 Conferência proferida na Sessão Ordinária do 93º aniversário do Instituto Histórico do RioGrande do Sul, na sua sede, em 5 de agosto de 2013.

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“jogo”, alguns jogadores dominavam mais estas regras e as manejavam commaior destreza social, “encenavam” o jogo com naturalidade e, assim, con-seguiam tirar o máximo proveito da disputa.

Um “duelo” entre historiadores

Um dos maiores conflitos que ocorreu no interior do meio intelectualrio-grandense se passou na década de 1930, às vésperas do centenário far-roupilha, e envolveu duas figuras de proa da historiografia gaúcha: de umlado, Alfredo Varella, diplomata e historiador, reconhecido e operoso naprodução histórica rio-grandense desde o final do século XIX, membrocorrespondente do IHGRGS; e, de outro, Souza Docca, historiador e mili-tar, que se destacou no início da década de 1920 com os seus escritos sobrea Guerra do Paraguai. O primeiro, expoente máximo das teses platinistas,defensor do separatismo dos farrapos e da influência platina na formaçãorio-grandense. O segundo, lusitanista inveterado, aguerrido defensor da ide-ologia federalista dos farrapos, ferrenho inimigo das teses “varellianas”,fundador e destacado membro e organizador do Instituto Histórico e Geo-gráfico do Rio Grande do Sul. Muito embora os dois contendores não resi-dissem no Rio Grande do Sul e boa parte da disputa tenha se dado atravésda imprensa do Rio de Janeiro, o que estava em jogo eram as posições inte-lectuais e simbólicas na esfera intelectual rio-grandense, que se relaciona-vam com os principais motes da historiografia sulina: platinismo e lusita-nismo.2 Esta polêmica é importante porque sintetiza as lutas entre as duasprincipais vertentes ideológicas e historiográficas do Rio Grande do Sul, apartir de 1920, e, pelo grau de aprofundamento da divergência, revela osalinhamentos e tomadas de posição da elite intelectual gaúcha.

Em 1933, Alfredo Varella lançou a “obra de tomo e peso” chamadaA História da Grande Revolução, que o governo do Estado mandou editar, sobos auspícios do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul. A dupla oficiali-zação da obra provocou uma renhida reação dos historiadores membros doInstituto que não apenas não esposavam as ideias contidas na obra, mas

2 Ieda Gutfreind (1992) apontou duas matrizes ideológicas principais na historiografia rio-gran-dense: a matriz platina e a lusitana. Entretanto, esta mesma autora reconheceu a existência deoutras clivagens e “divisão interna em nível de IHGRGS” (p. 108), entre elas, por exemplo, “acontinuidade dos ressentimentos entre positivistas e católicos no interior do Instituto” (p. 114).

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eram seus inimigos declarados. Tratava-se da interpretação que AlfredoVarella fazia da Revolução Farroupilha realçando o seu caráter “seccionis-ta” ou separatista, que desagradava a maior parte dos membros do IHGRGS.A chancela dupla de A Grande Revolução gerou constrangimentos aos histo-riadores gaúchos empenhados, desde 1920, em negar não apenas o caráter“seccionista” da Revolução Farroupilha, mas todas as teses que ressaltas-sem a identificação do Rio Grande com o Prata, para, em contraposição,assentar como matriz histórica legítima a tese do “federalismo” dos farra-pos – como princípio de unidade – e a preponderância da influência lusita-na na formação histórica do Rio Grande do Sul (GUTFREIND,1992;NEDEL, 1999).

Naquele mesmo ano, Alfredo Varella esteve no Rio Grande do Sulem visita ao interventor federal, general Flores da Cunha, enquanto eclo-diam as crises políticas do período, e recebeu deste a oferta de patrocíniopara a edição da obra comemorativa ao centenário farrapo. Flores da Cu-nha havia recém criado um novo partido – Partido Republicano Libertador– constituído por dissidentes do Partido Libertador, do Partido Republica-no Rio-Grandense e outros aliados que haviam rompido com a Frente ÚnicaGaúcha (FUG) e apoiado Getúlio Vargas na Revolução Constitucionalis-ta. No plano estadual, o PRL iniciou seus trabalhos sob forte oposição daFUG. No plano nacional, a efêmera aliança entre Vargas e Flores logo deusinais de fraqueza e vieram à tona os conflitos entre ambos, relacionados atemas como a descentralização do poder e a autonomia dos estados. Se-gundo Alzira Abreu, “Flores da Cunha instruiu a bancada de seu partidopara que defendesse a fórmula federativa, resistindo à centralização e aoaumento das tarifas, destinado a fortalecer a renda nacional às custas dosestados” (ABREU, p. 2551). A publicação da obra de Alfredo Varella apa-receu como uma oportunidade de Flores da Cunha demonstrar as suas qua-lidades de “alto patriotismo” e, ao mesmo tempo, mobilizar ganhos políti-cos em torno da comemoração daquele que era considerado o maior even-to da história gaúcha. Toda a comemoração do centenário recebeu amploapoio e investimento do governo do Estado. Além disso, o conteúdo daobra de Alfredo Varella ia ao encontro da posição de Flores que, então,defendia a “fórmula federativa” como princípio de descentralização.

Os originais da referida obra foram entregues ao presidente do Insti-tuto Histórico, o desembargador Florêncio de Abreu, que, após leitura e

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revisão, não viu óbice à publicação, e passou a responsabilidade da impres-são à Livraria do Globo. Entretanto, os demais membros só tomaram co-nhecimento do conteúdo propriamente dito de A História da Grande Revolu-ção após o trabalho já estar pronto, na rua.

Varella, hospedado no Grande Hotel Schimidt, em Porto Alegre, acom-panhou pessoalmente, durante quase três meses, todo o processo de ediçãoda obra, indo diariamente às oficinas da Livraria do Globo. Inicialmente, osecretário do Instituto – Dr. Eduardo Duarte – recebeu a notícia da publica-ção com grande expectativa. Em janeiro daquele ano, anunciou por cartaao amigo Souza Docca: “A publicação do Varela está autorizada (ou apro-vada) pelo interventor”. E augurava: “Espero que seja um furo que o Insti-tuto vai dar”.3 Em abril, a expectativa ainda era grande e bastante positiva:“O General Flores autorizou, como te disse, o financiamento da obra, noque teve um gesto de alto patriotismo. E o Instituto levou um tento”. Infor-mava ao confrade e amigo Souza Docca que, então, “a obra do dr. Varella[...] está com o quinto volume da composição, o que quer dizer que osquatro primeiros estão prontos, impressos, faltando a página de errata, queestou ultimando”. Eduardo Duarte, a esta altura, expressava muita admira-ção pelo trabalho e pelo esforço pessoal de Alfredo Varella: “É um trabalhoformidável, como tudo o que sai das mãos daquele homenzinho”.4 Em maio,Duarte prestava mais esclarecimentos a Souza Docca, agora, sobre a con-clusão da publicação. Dizia: “A obra de Varela, (este segue para aí [Rio deJaneiro]) já está entregue ao Instituto”. O trabalho fora finalizado em “seisvolumes, 3194 páginas de texto”. O secretário do Instituto mandou ofícioao interventor solicitando permissão para “oferecer uma coleção a cadaum dos sócios efetivos do Instituto; e aos correspondentes com 50% deabatimento”. Justificava-se: “É que a impressão saiu salgada: 72:391$800!”.Ao ver o livro pronto, Eduardo Duarte, que conhecia de perto o difícil tra-balho de edição, atestou: “É de fato, um homem que parece não conhecer ocansaço. O trabalho que teve nestes últimos três meses foi extenuante, ape-sar de fortemente auxiliado”. E pôde folgar com o resultado: “Quando vitudo pronto, respirei a pleno pulmões. Deo Gratias!”.

3 Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 9-1-1933.4 Eduardo Duarte a Souza Docca, Porto Alegre, 19-4-1933.

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Até então, a visão simpática de Eduardo Duarte sobre Varella nãohavia esmaecido, e ele chegou a aconselhar Souza Docca a estreitar rela-ções com o velho historiador: “Varela é um tipo gentil e te aprecia. Por quenão te aproximas desse belo espírito? Faze-o, meu bom amigo, pois sãomomentos agradáveis que se passa em tão bela companhia”. Revelou aDocca: “Por mais de uma vez estiveste em foco em nossas palestras comVarela”. Mas repetiu, sempre diligente, ao amigo o juízo restritivo emitidopor Varella sobre o historiador-coronel: “Esse moço tem muito talento eamor à pesquisa...”, dissera o velho historiador platinista, porém acrescen-tara: “mas, muito tem errado... fácil seria vencê-lo; não quero, entretanto,pois eu também errei muito. Há de reconhecer seus erros, um dia, e emen-dar-se-á”.

Naquele ano, Eduardo Duarte foi para o Rio de Janeiro, com as diá-rias pessoais pagas pelo governo do Estado, com o fito de controlar as pu-blicações de O Processo dos Farrapos, obra realizada e anotada por AurélioPorto, feita a expensas do Arquivo Nacional. Tal motivo oportunizou queDuarte e D. Mimosa, sua esposa, ficassem na Capital Federal, de agosto aoutubro. Portanto, neste período cessam as correspondências fiéis entre osconfrades Duarte e Docca, pois puderam trocar impressões pessoalmentesobre a obra de Varella. Já em outubro, num tom bem distinto das impres-sões que Duarte alimentara sobre Varella, começou a polêmica através daspáginas do Jornal do Comércio (Rio). Em 12 de outubro de 1933, Souza Doccafez o primeiro ataque a Varella classificando a obra A Grande Revolução decheia de “inexatidões”, “divagações”, “embaraçadoras de uma boa leitu-ra”, “máculas, em suma, que fazem dos seis tomos um intrincado cipoal”.O que seguiu foi o fogo cerrado de 18 artigos enviados por Alfredo Varelladesde Lisboa, e publicados pelo mesmo jornal, em defesa de suas teses e, aomesmo tempo, de ataque ao tenente-coronel Souza Docca.

Antes disso, houve troca de correspondências entre os antagonistas.Em uma delas, Varella evoca princípios da justa cavalheiresca. Dizia Vare-lla, chamando o adversário para a luta: “A grei a que pertencemos, cujasmelhores tradições fixei com escrupuloso amor à verdade, observou emtodo tempo fidalgas regras, nos choques pessoais. Cavalleria rusticana, maslídima, pura cavalaria, invariavelmente”. Com alusão direta aos antigosduelos afirmava: “O gaúcho de boa lei, ao arrancar da cintura o instrumen-to de morte, para agredir, achava indigno de si valer-se da arma, contra um

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ser inerme. Antes de ajustar a mira, bradava, generoso, ao adversário: ‘Tirea sua pistola’”. Justificava essa reminiscência para advertir o tenente-coro-nel: “V. Exa. me sai a caminho quando me faltam agora todos os meios dedefesa ou ataque”, alegando, assim, que estava em desvantagem para oembate, já que “dispõe-me o meu contendor de todas as minhas obras, paraespiolhar o que lhe convenha, a fim de que logre melhor êxito a sua emprei-tada”. Por seu turno, dizia: “ao passo que me não posso aproveitar de ne-nhuma das suas já numerosas produções”. Por fim, “na esperança de quese queira medir comigo em boa liça”, solicitava ao oponente: “me mande,sem demora, os seus vários trabalhos; que infelizmente não se acham nomercado, razão por que o importuno”, ao passo que, também, se compro-metia em arcar com todos os custos da remessa.5 Travada a pugna por car-ta, veio o contra-ataque público. De 29 de outubro de 1933 a 20 de maio de1934, em 18 artigos, Varella empregou sua verve áspera e erudita para desa-fiar o tenente-coronel a apontar as falhas no seu trabalho: “Justifique, naarena, que não é um embusteiro farfalhoso, enumerando, repito, as minhas‘inexatidões’ e ‘divagações’. O mais é chover no molhado ou escapar-se dorinhedeiro (sic), como galo maltrido (sic) e cacarejador.”6

No quinto artigo (e um dos mais longos), de 18 de fevereiro de 1934,Varella expôs o seu método de pesquisa histórica para contrastá-lo com ode Souza Docca, que, segundo ele, abordou o “mais complicado tema” dosdomínios da historiografia sulina “com a superficialidade ou leviandade deum escolar novato nos Liceus”. Ele, ao revés, procedeu “conforme a liçãodos veteranos”.

Segundo Varella, ele observou os seguintes passos:a) fixação da “tradição oral”: percorrendo de “de Torres a Uruguaia-

na, do Rio Pardo a Santa Vitória”, cenário da Revolução Farrapa, e ouvin-do “aos mais notados, como aos mais humildes, da grei heroica ainda so-brevivente”, dizia Varella: “excogitei, com uma pia de devoção, o que per-sistiu de inequívoco, nítido assaz, na memória de uns e outros”.

b) o trabalho heurístico: consistindo na pesquisa em arquivos públi-cos e privados, entre os quais o Arquivo Público, a Biblioteca Nacional,“todos os papéis soltos” do Itamarati, as coleções oficiais de Montevidéu,

5 Varella a Souza Docca, 5-10-1933.6 Jornal do Comércio, 31-12-1933.

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Lisboa, Sevilha, Bolonha e os “tombos privados” do Marquês do Lavradio,Condes da Migueira e de Tarouca;

c) revisão bibliográfica – explicava Varella, “percorri, um a um, todosos [livros] de história que abraçam o campo da evolução austrina”, entre osquais o historiador incluiu os “descritivos de viagens”, e ainda acrescia:“refresquei minhas noções de uma sólida filosofia”.

O trabalho final resultaria na obra em seis volumes, assim divididos:1º) os antecedentes mais amplos, a “etiologia” ou “origens”, incluin-

do os “coeficientes morais, intelectivos” que teriam predisposto os habitan-tes da província sulina a “adotar o programa separatista”;

2º) as causas ocasionais que aceleraram a marcha revolucionária;3º) a descrição ampla da Revolução;4º) o papel da “natureza” como “moto que esteve a bipartir o Brasil”;5º) o idealismo dos farrapos;6º) a Revolução inserida no contexto platinoNo quinto volume da obra, Varella resume e defende de forma paten-

te a ideia do separatismo político dentro do programa dos farroupilhas.Este é o ponto fundamental de divergência entre Souza Docca e Varella.Para este, a contradita suscitada “em duas escassas, magras, sofisticantes,desalinhavadas colunas do Jornal do Comércio” faziam de Souza Docca “umimpagabilíssimo desfiador de novelas imperialistas, mais que sediças”.7

A abordagem da “metodologia” de pesquisa indica que estava emjogo não apenas o embate ideológico do lusitanismo e do platinismo, mastambém os elementos simbólicos que distinguiam o fazer história e o serhistoriador naquele momento. Portanto, a disputa que subjaz ao confrontodas visões e teses sobre “republicanismo”, “federalismo” e “separatismo”dos farrapos é a luta pela definição de quem é o historiador mais autêntico,mais balizado, por conseguinte, mais “verdadeiro”.

As acusações recíprocas de que um e outro historiador não procedi-am com ética ao abordar os temas históricos chamam a atenção para osaspectos simbólicos da disputa que dizem respeito à prática e representaçãodo ofício do historiador, portanto à luta pela detenção dos atributos simbó-licos que distinguem o “verdadeiro” historiador. Souza Docca acusava aodefensor da tese separatista de “pôr de parte o que desconvém” ao seu “pre-

7 Jornal do Comércio, 18-02-1933.

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dileto argumento”, ao passo que Varella rebatia: “Vai ficar demonstrado àsociedade, com a máxima superabundância, que o tenente-coronel é quemse mostra useiro e vezeiro em ‘sonegações’”.

No seu 15º artigo, Varella procurou expor publicamente a “improbi-dade” historiográfica de seu “detrator”. Docca havia destacado MarcianoRibeiro como preparador intelectual do movimento farroupilha em oposi-ção à primazia do concurso de Livio Zambeccari, realçado por Varella. Emcontrapartida, Alfredo Varella pediu ao seu oponente, em 31 de dezembrode 1933: “Faça o obséquio de trasladar na maneira mais ampla que lhe forpossível, o que lhe consta de Marciano Ribeiro, como preparador intelectualdo Movimento Farroupilha, destacando mormente quanto supere o seuconcurso ao de Zambeccari”. Quatro meses depois, Varella queixou-se dafalta de resposta: “Fugiu de responder: bem sabe por quê!”. E adiu a se-guinte explicação pelo silêncio do rival: “Transparente eu deixaria, 1º quese serve de fazenda alheia; 2º que avança proposições descabeladas sem ternem sombra de razão para justifica-las; 3º que ousa falar do que totalmentedesconhece, por estudo próprio” (grifos meus). A acusação de citação inde-vida da fonte também se refere a outro personagem da Revolução Farrou-pilha, Pedro Vieira, em relação ao qual Varella teria feito nova interrogati-va a respeito da fonte utilizada, mas que Docca “também se esquivou deresponder, ciente por demais da lição a que se ia sujeitar”. Por fim, assimresumiu o caso de citação indevida:

Se, vem a debate, exibiria eu prova de que cita com uma vergonhosa impro-bidade. Verbi gratia, à página 67, do “Brasil no Prata”, alude a Pedro Vieira,o herói americano que teve berço no Rio Grande. Tudo o que dele mencionafoi tirado de “Revoluções Cisplatinas”, I, 108 [de Varella]. Mas como nãolhe quadrava confessar onde fora aprender, como também lhe pareceu van-tajoso inculcar-se autor do bom informe, estampa que se acha este no Arqui-vo de Almeida. Isto é, em arquivo que nunca viu e passou inteirinho à minhapropriedade! (grifo no original).8

À medida que a polêmica avançava, o tom das investidas se tornavamais veemente e agressivo. Igualmente, iam-se formando grupos de solida-riedade de ambos os lados. Em defesa de Varella acorreram, em menor

8 Em O Solar Brasílico, obra publicada postumamente, Varella insiste na acusação: “Docca pordemais sabe, quanto seus comparsas, quem ‘churrasqueia’ de contínuo a minha custa: sabem pordemais quem pratica seguido, em minha ‘invernada’, o mais estranho abigeato!” (VARELLA,1950, p. 60).

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número, intelectuais de sua geração e do centro do país, entre os quais des-tacou-se o historiador Basílio de Magalhães, que chegou a travar acirradacontrovérsia com Souza Docca, no Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro e, também, pelo Jornal do Comércio. Basílio de Magalhães proferiu noIHGB uma conferência sobre o tema da Revolução Farroupilha, discutin-do o caráter do “idealismo farrapo”, se separatista ou não. Nela, Basílio deMagalhães sustentou que negar a existência da ideia separatista “seria omesmo que negar a luz do sol”. Para ele, “foram os fatos supervenientesque levaram ao coração e ao cérebro dos responsáveis pela República dePiratini o arrependimento da separação”. Amparando-se em Alfredo Vare-lla, Assis Brasil, Tristão de Alencar Araripe e Pandiá Calógeras, sustentouque as ideias separatistas “só haviam praticamente desaparecido em 1845”.Arrematou a tese esposada dizendo:

Até 1843, pelo menos, se houve qualquer manifestação, individual ou coleti-va, contra a separação do Rio Grande do Sul, entre os próprios “farrapos”,não passou ela de palavras, das quais destoavam todos os atos do governo edo Novo Estado, que além de haver decretado e executado o confisco dosbens dos súditos brasileiros, ali residentes, que não aderiram ao regime re-publicano (cfe. Araripe, loc. cit., 199-200), chegou a aceitar ou mesmo anga-riar a cooperação de estrangeiros, e, finalmente a entabular ou firmar pactosdiplomáticos de natureza político-militar com os vizinhos do Uruguai e daArgentina.

Do lado de Souza Docca foi maior a solidariedade. A polêmica emquestão ensejou a aproximação entre Luiz Felipe Castilhos de Goycocheae Souza Docca. Goycochea disse, por carta, que havia muito procuravaestreitar as relações com Souza Docca, tendo “esse desejo acentuado ulti-mamente com a leitura dos seus lapidares estudos no JORNAL DO CO-MÉRCIO, em resposta a asserções dos drs. Alfredo Varella e Basílio deMagalhães”.9 Castilhos de Goycochea já tinha entrado em contato com oIHGRGS, através de Eduardo Duarte, e feito pedido veemente para queessa agremiação emitisse parecer público, desautorizando a tese separatistadefendida por Varella em A História da Grande Revolução, uma vez que estaobra foi publicada sob os auspícios do IHGRGS. A ideia de escrever aoInstituto surgiu-lhe após ler artigo de Souza Docca, no Jornal do Comércio,rebatendo as afirmativas de Alfredo Varella.10 Solicitou ao secretário do

9 Castilhos de Goycochea a Souza Docca, 2 de dezembro de 1934.10 Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 267, 1934.

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Instituto e diretor do Arquivo Histórico do Museu do Estado, EduardoDuarte, “encabeçar um movimento no seio do Instituto Histórico no senti-do de desautorizar a tese defendida pelo dr. Varela”. Deste “movimento”resultou o parecer oficial do Instituto assinado pelos consócios Othelo Rosae Darcy Azambuja, que, embora, reconhecendo o “indiscutível valor”11 daobra, concluiu:

a) O “Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul”, patrocinan-do a “História da Grande Revolução”, do dr. Alfredo Varela, ateve-se exclu-sivamente ao mérito da obra, sem dar a sua solidariedade intelectual às idei-as preferidas pelo autor;

b) No tocante ao separatismo dos revolucionários rio-grandenses de 1835,em manifestações anteriores e inequívocas havia o Instituto afirmado o seupensamento, contestando-o e negando-o, o que envolve também a recusa dainfluência platina no movimento farroupilha, nas condições e na amplitudecom que a admite o conspícuo historiador, dr. Alfredo Varela (sic).

Esta mesma refrega aproximou, momentaneamente, Souza Docca eWalter Spalding, jovem professor e historiador, recém-ingressado nas filei-ras do IHGRGS. Ambos já haviam divergido em outras searas do estudohistórico. Souza Docca empreendera o trabalho de “reabilitação histórica”de Bento Manoel12, mas, para Walter Spalding, o Brigadeiro sorocabanocontinuava a ter um papel pouco louvável entre os “heróis” farrapos. Emcarta de 2 de fevereiro de 1934, Spalding responde a Docca sobre outradivergência de opinião histórica entre ambos. Trata-se da apreciação de umestudo de Spalding sobre a “influência das estâncias na formação do RioGrande”. Assim resumiu Spalding a sua posição: “Origem espanhola doRio Grande do Sul. Este é o ponto capital, digo melhor: o ponto de discor-dância completa entre os nossos modos de ver”. Para Spalding, naqueleestudo, a “origem” do Rio Grande do Sul era espanhola, pois remontava àocupação jesuítica (espanhóis), de 1626 até 1759, contudo, negava inteira-mente o concurso da “influência” espanhola na formação rio-grandense:“Nego, e sempre negarei a influência espanhola no nosso Rio Grande” (grifono original). E asseverava que “entre origem e influência há um abismo”.

11 Os autores do parecer reconheceram que seria praticada “injustiça notória” se negassem ao“extenso trabalho, copiosamente documentado”, “o lugar que inquestionavelmente lhe com-pete entre os estudos de história rio-grandense” (Revista do IHGRGS, IV trimestre, p. 271, 1934).

12 Os esforços de Docca no sentido da reabilitação de Bento Manoel vinham desde uma publica-ção no Almanaque da Globo, de 1923.

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Assim resumia a sua tese, que conciliava a ideia da presença primitiva dosjesuítas espanhóis e a negação de sua influência:

Viviam os jesuítas somente entre os indígenas que se foram, na quase totali-dade, para além Uruguai, depois de extinta a grande Ordem.A influência, portanto, era somente sobre os silvícolas e em nada atingiu aformação do Rio Grande propriamente dita, que, depois da entrada de Joãode Magalhães e Silva Pais, mais tarde, ficou puramente português.13

Spalding, portanto, estava numa posição delicada no limite entre asteses platinista e lusitanista; por isso, mereceu a “amável” redarguição dozeloso defensor lusitanista, a quem teve de prestar seus esclarecimentos. Aposição de Spalding, que gerava certa dubiedade em seu discurso, expõe adificuldade dos intelectuais rio-grandenses em conciliar a “opção” ideolo-gizada e consciente da historiografia sulina pelo lusitanismo e o estudoempírico e social que situava o Rio Grande do Sul em um eixo histórico-geográfico muito próximo ao Prata. A complexidade desta situação criava,por exemplo, “explicações” históricas pouco sólidas e, ao mesmo tempo,inaceitáveis a um lusitanista inveterado como Souza Docca. Após sua defe-sa, o jovem historiador porto-alegrense justificou ter-se detido num único edelicado ponto do “questionário” que Docca lhe endereçara: “Não respon-di sua carta tópico por tópico porque, como disse no início desta, estou deacordo com a maioria de seus pontos de vista...”. O alinhamento contraVarella, única opção “possível” dentro do ambiente historiográfico gaúchoda época, apareceu em um dos parágrafos finais da missiva, em que Spal-ding emite enfático juízo condenatório, mais voltado contra a figura pesso-al e as “intenções” de Alfredo Varella do que às suas teses, apontando quenaquele cenário intelectual, de fraca institucionalidade, as posições intelec-tuais eram bastante influenciadas pelo critério pessoal:

Recebi os seus trabalhos sobre a famigerada Historia do Dr. Varela, homemdouto, não resta dúvida, mas massudo e parcial, e tão parcial que chega aser falsário. O sr. ainda não disse tudo sobre a História da Grande Revolu-ção, pois Varela afirma que toda a influência farrapa foi uruguaia e queBento Gonçalves foi o que foi graças ao seu convívio com os caudilhos uru-guaios!!! Aliás, Varela procura glórias para a Pátria de seus antepassados...de passado duvidoso (V. Remembranças)14 (grifo meu).

13 Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934.14 Walter Spalding a Souza Docca, Porto Alegre, 2 de fevereiro de 1934.

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Pela missiva seguinte de Spalding a Docca observa-se que as diver-gências entre ambos quanto à avaliação da personalidade de Bento Manoele sobre a questão da origem espanhola do Rio Grande permaneceram inal-teradas. Escusando-se por “não poder concordar” com Docca sobre a ques-tão de Bento Manoel, Spalding rogou ao “ilustre amigo”: “Espero, porém,que o sr. não me queira mal por isso e nem veja nessas minhas contraditasmá vontade ou prevenção”.15 E ainda reiterou sua posição sobre a “origemespanhola” do Rio Grande. Por outro lado, a esta altura Spalding já haviaentrado diretamente na “luta” pública contra Varella, depois da publicaçãodo seu artigo intitulado “Separatismo e castelhanismo”, pelo Correio do Povo.Embora não tenha mencionado intencionalmente o nome de Varella, dizSpalding: “só para não lhe dar o prazer de ler o seu nome”, acrescenta que“para ver que era tudo sobre ele e o sr. Basílio de Magalhães faltaria, ape-nas, acrescentar a fotografia de ambos”.16 Assim pôde minimizar as diver-gências com Souza Docca: “Creio que toda nossa questão [da origem ouinfluência] é simplesmente de interpretação de palavras”, ao passo que re-alçou o que “realmente” importava e os aproximava: “mas, e graças a Deus,estamos de acordo em uma cousa: na negação da ‘vareliana’ influênciaespanhola Rio Grande. Isso é o essencial para nós, brasileiros e rio-gran-denses.” E amenizou: “O resto são minúcias que nada prejudicam”.17 So-

15 Em artigo do Correio do Povo, o professor Walter Spalding, utilizando uma carta do Barão deCaxias, procurou demonstrar que “o que norteou o guerreiro da espada de dois gumes” – umaalusão às repetidas trocas de lado de Bento Manoel entre legalistas e farroupilhas – “foi não sóa sua desbragada ambição, mas também o orgulho e a vaidade”. Fazendo referência a SouzaDocca e seu projeto de reabilitação de Bento Manoel, Spalding afirmou que o trabalho deDocca, “um dos nossos maiores historiógrafos, não definiu ainda ‘in totum’ a personalidadecomplexa de Bento Manoel Ribeiro” (Correio do Povo, 6 de julho de 1934, p. 3).

16 Walter Spalding, Porto Alegre, 4 de dezembro de 1934. Walter Spalding recebeu réplica ríspi-da e irônica em O Solar Brasílico, de Alfredo Varella, como no trecho a seguir, em que o autor,referindo-se a Docca e Spalding, diz: “um de seus devotos, Walter Spalding, “spirito gentile”,num requinte de benevolência, que Lucifer (sic) invejaria, indagou mui dulçoroso (sic), não hámuito, na imprensa diária, se de fato possuo os documentos que cito” (VARELLA, 1950, p. 57).

17 A relação entre Souza Docca e Walter Spalding esteve marcada pelas constantes divergênciasao longo dos anos 1930 e 1940. A assimetria também esteve presente nesta relação. De umlado, o historiador estabelecido e reconhecido nacionalmente como referência em estudos rio-grandenses e das questões do Prata. De outro, o jovem professor e historiador, residente nacapital gaúcha, que, embora discordasse e contendesse com o “mestre”, recebia lições e ques-tionamentos particulares com o fim de ser instruído, mais do que abatido. Os “manuais dehistória” que Spalding recebia em forma de cartas de Docca serviam para ser “ensinado pormeio delas”. Entretanto, Spalding muitas vezes mostrou-se refratário aos ensinos do amigo:“sempre há um ‘mas’ a atrapalhar as cousas”. Aos questionamentos de Docca, nem sempre

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bre estas “minúcias”, Spalding e Docca continuaram a discutir, por cartas,até que arrefeceram as forças e os argumentos do jovem historiador, queveio a resignar e pedir que o debate fosse encerrado, assim justificando-se:

[...] a questão da “origem” do Rio Grande. Vejo que, querendo ser maisexplícito, fui ainda mais infeliz, jogando o assunto no terreno da geologia...Francamente: estou convencido de que me não sei exprimir, de que não seimais escrever. Culpa, talvez, de meu bestunto demasiado cheio de tanta cousadivergente e antagônica que, no fim, querendo eu dizer uma cousa, digooutra. Situação perigosa. Quanto ao que me diz sobre a nossa amigável e,para mim, preciosa contenda, tem toda a razão: foi, realmente, eu quem,indiretamente, a provocou e, por isso, foi que, também, solicitei-lhe deixá-lano pé que ficou.18

Esta “pequena” contenda entre Docca e Spalding, sem que chegas-sem a consenso, mostra as contradições internas do grupo lusitanista e oquão frágil era o arranjo intelectual em torno do dogma historiográfico poreles defendido. Entretanto, podiam ser vistos de fora como um grupo coe-so. A despeito da confissão de fé e da postura iconoclasta de Spalding, cer-rando fila ao lado do historiador-coronel, permaneceriam inúmeros pontosde divergência e irreconciabilidades no discurso historiográfico de ambos,ao longo de vários anos.

Por outro lado, os ânimos de Souza Docca e Alfredo Varella nãoarrefeceram, e a controvérsia suscitada em 1933 estendeu-se, e agravou-se,pelos anos seguintes, chegando até o centenário da Revolução Farroupilha,quando saiu do terreno das ideias e das páginas dos jornais para assumirlances mais imprevistos e menos prováveis. Em 1934, Alfredo Varella fezpublicar um livro, chamado Res Avita, que sintetizava as teses contidas naHistória da Grande Revolução e dava resposta às críticas de seu arquirrivalSouza Docca. Quando chegou o ano de 1935, Varella pretendeu que o seuRes Avita fosse apresentado na Exposição Farroupilha, no mês de setembro,

Spalding conseguia responder satisfatoriamente. Às vezes, Spalding justificava-se de formaindulgente consigo mesmo, citando “erros” de outros historiadores para atenuar os seus pró-prios, pois, dizia, “quem erra, erra em boa companhia”. Ou, mesmo admitindo o erro, nãodeixava de minimizá-los: “basta um pequeno cochilo para se cair em erros”. Mas aceitava areprimenda, em alguns casos: “[...] fico satisfeitíssimo quando me corrigem, estando eu emerro, e especialmente quando a correção parte de um mestre como Souza Docca”. Já emoutras situações, quando não voltava atrás em seus pontos de vista, atribuía as divergências à“questão, não raro, de palavras ou interpretação”.

18 Walter Spalding a Souza Docca, 4 de dezembro de 1934.

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em Porto Alegre. Entretanto, segundo ficou registrado por Varella em OSolar Brasílico, as cópias remetidas do centro do país para Porto Alegre teriamsido escondidas para que não fossem exibidas na Exposição. Os responsá-veis pelo suposto sumiço das cópias, de acordo com Varella, foram algunsmembros do próprio Instituto Histórico, interessados em ocultar os traba-lhos do historiador dissidente. Assim resumiu a ação da qual teria sido víti-ma, em carta a Darcy Azambuja19:

Como Res Avita representava e representa uma sincera oblação em pátriosaltares, no recente jubileu setembrino, expedi a tempo um caixote direito aosul, com um centenar de tomos para venda e mais oito para oferta gratuita;acompanhando os mesmos um rol de instruções e um modelo para anún-cios. Pois nem estes feitos, nem os livros postos em mostruário, na fase dagrande concorrência à exposição de nossa magna Centúria. Apertado, cer-radíssimo, intransponível cordão profilático, em volta de minhas irreveren-tes “heterodoxias”!Quem o responsável, Exmo., pela nova interdição? É jurista e de nomeada.[...] O traiçoeiro golpe me foi vibrado, é mais que evidente, por quem imagi-nou obter com ele subterrâneas, inconfessáveis, quanto miserandas, torpesvantagens, já para o agaloado chefe dessa camorra literária, já para seuscomparsas, na indecente, iníqua societas sceleris!Tinha eu notícia de que pessoa qualificada, no seio do Instituto, vivia a in-quirir, no estabelecimento supra, se já chegada ou não, a obra em anúncios,do paladino incorrupto da verdade. Tanto perguntou, que alfim (sic) se lhedeu conta de que estava intramuros a malsinada publicação. Reativou-se anegra conjura. Seus principais galopins saíram a campo, determinadíssimosa impedir que corresse, ao menos enquanto a frequência de visitantes a Por-to Alegre desse aso a maior procura. [...] pois bem, que havia de cavilar ogrupo dos maffiosi preditos, egrégio conterrâneo e confrade? Subtraíram-nosde onde eu os coloquei em pessoa, declarando-se aos interessados, que re-clamavam o que lhes pertencia, por dádiva minha; declarando-se com bron-zea (sic) face, que tais volumes INEXISTIAM na fazenda expedida, tambémrecebida. INEXISTIAM... e por último foram entregues nas últimas sema-nas de dezembro, quando era de esperar que o fossem pelo meio de setem-bro – o mês consagrado à celebração do 2º jubileu farrapo!!! (VARELLA,

1950, p. 55, 56).

Este episódio traz à baila, dentro dos conflitos intelectuais, a utiliza-ção do boicote como estratégia para silenciar inimigos ou negar-lhes visibi-

19 Esta carta foi escrita para justificar a razão dos temores de Varella de ser vítima de complô,pois, como queria receber o aval de que a doação dos arquivos históricos particulares (dosquais era proprietário) ao Arquivo Histórico do RS teria destino apropriado, ele escreveu aDarcy Azambuja, que na época era presidente do secretariado do Estado, para obter as garan-tias do bom destino da doação.

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lidade e reconhecimento. Varella não seria o único a queixar-se de ter sidovítima de tal expediente no meio intelectual rio-grandense. Poucos anosdepois, em 1940, era Walter Spalding que se queixaria a Souza Docca deser alvo de “boicotagem”. Por ocasião da publicação de seu livro A invasãoparaguaia, Spalding solicitou a Docca que este falasse com o ministro daGuerra para que apoiasse a sua “modesta contribuição às glórias de nossoExército” recomendando-o aos oficiais e adquirindo alguns exemplares paraas bibliotecas militares do Rio de Janeiro. O apelo ao influente amigo mili-tar residente fora da paróquia rio-grandense justificava-se, porque “nestanossa Porto Alegre a ‘boicotagem’ é um fato. Quem não pertence à paneli-nha, quem não convive com a turma do elogio mútuo – nada conseguirá”.E complementava a denúncia: “Meus livros nunca são expostos: escondem-nos”(grifos meus). Spalding percebia a “prevenção” contra ele pelo “verdadeirodesastre de livraria que foi meu livro anterior ‘A Revolução Farroupilha’”,ao passo que “no Centro e no Norte, ao contrário: foi bem recebido”.20 Estaqueixa de Spalding lembra muito a denúncia de Varella de que teria sofridoboicote cinco anos antes.

Outro fator importante a ser destacado neste episódio é a visibilidadeque toda a discussão em torno das teses defendidas por Varella e Doccateve no centro do país, de sorte que a maior parte do debate ocorreu no Riode Janeiro e não no Rio Grande do Sul.21 Entre os motivos que podem expli-car esta centralização do debate, além do fato de que um dos principais anta-gonistas morava no Rio de Janeiro, está a disputa pela descrição de uma“história legítima” e, também, pela afirmação de quem era o “porta-voz legí-timo” da história do Rio Grande do Sul. Portanto, era um debate voltado, emparte, aos historiadores e intelectuais do centro do país, e tinha como móvelos atributos simbólicos que definiam quem era o “verdadeiro” historiador,consequentemente, aquele que produzia a “verdadeira” história.22 Assim, não

20 Walter Spalding a Souza Docca, 16 de agosto de 1940.21 Com a aproximação do centenário farroupilha, a imprensa do Rio de Janeiro e São Paulo

publicou diversos artigos de intelectuais e historiadores que retomaram a discussão das tesesseparatistas e federalistas da Revolução Farroupilha, destacando os pontos de vista de Doccae Varella, entre os quais Roberto Piragibe da Fonseca (pelo Jornal da Manhã) e Plínio Barreto(Estado de S. Paulo).

22 Souza Docca inaugurou, em setembro de 1932, uma série de conferências no IHGB, proferi-das sempre no mesmo mês, até 1935, evidentemente, destacando o caráter republicano e fede-ralista da Revolução de 1835.

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foi difícil a disputa extrapolar os limites da discussão histórica e rumar parao âmbito pessoal.

Vale, também, ressaltar que a disputa envolveu, ao mesmo tempo,aspectos geracionais e ideológicos, que ajudam a explicar o desequilíbriona correlação de forças que permitiu aos contendores dispor da mobiliza-ção de diferentes e desiguais recursos sociais a seu favor. Alfredo Varellarepresentava a “velha geração” intelectual rio-grandense, que defendia a“ultrapassada” autonomia do governo estadual frente ao poder central, emvoga nos primeiros anos do regime castilhista-borgista. Souza Docca, emcontrapartida, identificava-se com o momento histórico coetâneo, de apro-ximação entre os estados e o poder central, acentuado desde a subida deGetúlio Vargas ao poder, em 1930. Esta condição favoreceu Souza Docca,que contou com a adesão de historiadores e intelectuais do centro do país ede Porto Alegre. Implícita está aí, também, a oposição do curso das trajetó-rias sociais dos intelectuais envolvidos. Varella vinha numa curva socialdescendente, enquanto que a trajetória social de Souza Docca estava emfranca ascensão. Varella defendia uma ordem política ultrapassada e refra-tária à vigente no plano nacional. Varella, em carta pessoal a Osvaldo Ara-nha – depois publicada na íntegra na imprensa –, fez críticas claras ao go-verno instaurado em 1930, e à “Junta primitiva” e à tendência “a cercearainda mais a nossa já minguadíssima descentralização”, e deixou clara asua defesa do “programa federativo”, pelo qual classificava aquela tendên-cia de “DISPENSÁVEL, PERIGOSA, UMA ENÉRGICA REGÊNCIANO CENTRO DO PAÍS”.23 Havia caído no ostracismo relativo e perdido aposição privilegiada de estreita relação (política) com o governo rio-gran-dense de que havia gozado no período de afirmação do castilhismo, da qualauferiu ganhos políticos e econômicos.24 Entretanto, teve a oportunidadede lançar a sua nova obra sob o patrocínio do governo do Estado pela afini-dade ideológica com o interventor federal no Rio Grande do Sul, que, iso-lado, naquele momento, defendia a “fórmula federativa” e fazia resistênciaà centralização do governo federal. A circulação social em sentido descen-dente de Varella o levou, no final da carreira, à estratégia de investimentosimbólico na esfera intelectual, representada pelo lançamento de A Históriada Grande Revolução, sua obra-prima. Apesar da franca oposição e hostil

23 Jornal do Comércio, 11-03-1934, p. 8.

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recepção da obra pelos pares rio-grandenses, pode-se dizer que a estratégiade Varella foi relativamente bem-sucedida, do ponto de vista simbólico,pois o trouxe de volta ao jogo e ele, apesar de tudo, teve o valor da obrareconhecido.25

Por outro lado, pela ótica dos recursos sociais auferidos, os maioresdividendos foram de Souza Docca, que contou com a adesão e solidarie-dade de muitos e jovens intelectuais e recebeu largo reconhecimento, nãotanto pela qualidade das pesquisas realizadas, mas, sobretudo, por enun-ciar o que aqueles intelectuais queriam (ou deviam) dizer, só que paraisso, não desfrutavam da posição institucional e da visibilidade de SouzaDocca. No fundo, tratava-se do “único discurso aceitável” para aquelageração. Portanto, havia certa “inexorabilidade” na adesão ao discursodo qual Docca era porta-voz, e que foi sendo construído como único dis-curso legítimo, ao longo da década de 1920, com o concurso fundamentaldo próprio Docca.26

Fontes

Fundo Eduardo Duarte – Arquivo do IHGRGS.

Fundo Souza Docca – Arquivo do IHGRGS.

Fundo Walter Spalding – Arquivo do IHGRGS.

24 Em janeiro de 1897, Alfredo Varella recebeu a concessão para explorar linhas telefônicas queligam Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Bagé e Jaguarão pelo período de 24 anos, mesmoano da publicação de sua obra de estreia em História, Rio Grande do Sul: descrição física, históricae econômica. Já nos anos 1930, Varella queixava-se, às vezes, de não receber o salário de diplo-mata aposentado.

25 Na enquete realizada por Carlos Reverbel, na década de 1950, entre 44 intelectuais rio-gran-denses, A História da Grande Revolução, de Varella, ficou em 3º lugar entre as Obras Fundamen-tais da Bibliografia Rio-Grandense. Curiosamente, nenhum dos livros de Souza Docca figurouentre os 10 mais citados ou apreciados.

26 O posicionamento de Basílio de Magalhães ajuda a perceber o gradiente geracional envolvidono conflito. Magalhães, ao findar sua argumentação contra assertivas de Souza Docca a res-peito do papel atribuído a Zambeccari na Revolução Farroupilha, marca sua posição ao ladode Alfredo Varella e Assis Brasil: “[...] prefiro continuar em erro com os velhos e eruditíssimosgenerais da história gaúcha a acertar com o meu jovem e gratuito crítico, totalmente desajuda-do de provas que liquidem e pacifiquem a controvérsia por ele criada” (Conferência proferidano IHGB, Jornal do Comércio, 4 de novembro de 1934). Em 1934, Basílio de Magalhães tinha60 anos e Alfredo Varella, 70 anos. Do outro lado, Souza Docca contava 50 anos, WalterSpalding, 33 anos e Castilhos de Goycochea, 43.

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