i-2- lessa - lukacs e o m todo
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I.4
LUKCS: O MTODO E SEU
FUNDAMENTO ONTOLGICO *
Srgio Lessa **
A discusso acerca do mtodo no interior do marxismo produziu uma vasta e
variada bibliografia. As mais diferentes vertentes e as mais diferentes correntes
polticas tendem a ver no mtodo o campo resolutivo ltimo de suas divergncias ou
confluncias. No raro temos o mtodo afirmado como um organon que seria a chave
da verdade, outras vezes o mtodo quase reduzido lgica formal-aristotlica: tal
como a fala possui uma gramtica, o pensamento teria nas leis lgicas o seu
compndio de regras que asseguraria sua formalizao correta, e portanto, a
veracidade do pensado. O argumento de autoridade, ao fim e ao cabo, termina sempre
surgindo neste contexto: o mtodo 'verdadeiro' seria a garantida da correo, ou da
veracidade, do conhecimento.
Foi assim que, com o passar do sculo XX, o mtodo vai se transformando em
a garantia da verdade. Contudo, no horizonte marxiano (se Lukcs estiver correto),
esta uma proposio rigorosamente inaceitvel. Por duas razes:
1) Por um lado, porque, se o real possui uma objetividade prpria, distinta da
conscincia, no h nenhuma razo para que o real (e no o mtodo) no seja o
critrio da verdade. Fazer o contrrio, deduzir a veracidade do conhecimento da esfera
metodolgica, produz dificuldades insuperveis. Antes de mais nada porque muitas
vezes do mesmo mtodo verdadeiro freqentemente decorrem afirmaes e
concluses muito distintas. Isto ocorre em todas as reas do conhecimento, contudo
* Publicado em Montao, C; Bastos, R. l. (orgs) Conhecimento e Sociedade ensaios
marxistas. Outras Expresses, So Paulo, 2013. **
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na poltica, dada s suas especificidades, muito grande a freqncia e a intensidade
com que propostas muito diferentes tm o mesmo solo metodolgico.
Em poucas palavras, como no processo de inteleco do real h muito mais
que os princpios metodolgicos, se adotarmos o mtodo como a pedra de toque do
conhecimento verdadeiro criaremos uma enorme confuso. E, com esta confuso, no
apenas a investigao do real prejudicada como ainda deixamos de encaminhar a
resoluo do que a reflexo metodolgica pode de fato solucionar as questes de
mtodo.
2) Alm de o real, e no o mtodo, ser o critrio da verdade, h ainda uma
segunda razo porque a proposio oposta incompatvel com o universo marxiano:
na enorme maioria das vezes termina por conduzir concepo segundo a qual o
objeto do conhecimento uma pura construo da subjetividade. Em sendo assim, o
que assumimos por realidade nada mais seria que uma imagem criada por ns, em
nosso prprio processo gnosiolgico: com isto estamos mais propriamente no campo
kantiano-fenomenolgico que no campo marxiano.
Se Lukcs estiver correto, repetimos, a esfera resolutiva do problema do
mtodo dada pela sua funo social1 e no, como se quer na maioria das vezes, pela
esfera lgico-dedutiva.
Gostaramos, desde j, de advertir o leitor para dois aspectos muito
importantes. O primeiro que este procedimento buscar a determinao da
particularidade dos complexos sociais em suas funes sociais tpico do ltimo
Lukcs, em especial de Para Uma Ontologia do Ser Social.2 Esta obra, por um lado,
no apenas ainda est em grande medida inexplorada, como de forma alguma pode
ser considerada consensual entre os marxistas. No podemos, aqui, nos deter sobre a
polmica que a cerca, mas assinalar este fato nos permite salientar que estamos
1 Funo social, aqui, num sentido em tudo distinto do funcionalismo, como o
desenvolvimento do texto deixar claro ao leitor. Aproveitaremos esta primeira nota para deixar
consignado nosso dbito para com Elisabete Borgianni, pela leitura cuidadosa e sugestes que
melhoraram em muito o texto.
2 Lukcs, G. Lukcs, G. Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Luchterhand Verlag,
1986. Lukcs, G. Prolegomena zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Prinzipienfragen einer
heute mglich gewordenen Ontologie. Luchterhand Verlag, 1986. H tradues italianas destas obras,
Per una Ontologia dellEssere Sociale, E. Riuniti, Roma, 1976-1981; e Prolegomini allOntologia
dellEssere Sociale. Questioni di principio di un'ontologia oggi divenuta possibile. Ed. Guerini e
Associati, Npoles, 1990. No Centro de Documentao Lukcs, da Universidade Federal de Alagoas
(Biblioteca Central, UFAL, Macei, Alagoas), podem ser obtidos os captulos desta obra j traduzidos
para o portugus.
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entrando em um terreno ainda pouco estudado e polmico.
Em segundo lugar que, no interior do prprio Lukcs maduro, h indcios
bastantes fortes de uma divergncia importante no tratamento que confere ao mtodo.
No 'Prefcio' Histria e Conscincia de Classe de 1967, ano em que j estava
envolvido na redao da Ontologia, as suas reafirmaes de algumas das teses
metodolgicas de juventude parecem ser incompatveis com suas teorizaes na
Ontologia.3 Novamente, contudo, algumas dificuldades se interpem para uma
resoluo conclusiva dessas questes: no h nenhum estudo resolutivo das mesmas
e, tal como Marx, Lukcs tambm no nos deixou nenhum tratado sistemtico acerca
do mtodo.
Tendo em mente estas duas ressalvas, o que nos propomos neste artigo um
objetivo muito delimitado: expor ao leitor no especialista o que seria o fundamento
ontolgico do mtodo em Marx, segundo o ltimo Lukcs.
1. A FUNO SOCIAL DO MTODO
O mtodo cumpre uma funo social muito especfica: frente ao
desconhecido, nos indica como procedermos para incorpor-lo, com a maior
eficincia possvel, ao j conhecido. Ao faz-lo, contudo, necessariamente ocorrem
dois fenmenos aparentemente paradoxais.
Por um lado, ao alargarmos o campo do conhecido, terminamos por produzir
uma nova fronteira com o desconhecido. Tal como o que conhecemos uma
produo histrico-social, o desconhecido a ser investigado tambm o ; ao menos no
sentido que s podemos nos dirigir ao desconhecido a partir daquilo que j
conhecemos. Esta relao entre o j conhecido e o ainda por ser conhecido no de
modo alguma necessariamente linear e contnua, as mais distintas relaes so aqui
possveis contudo, esta relao mais geral entre o conhecido como a base a partir do
3 Para ficarmos apenas no exemplo mais conhecido, a tese central de o ensaio 'O que o
marxismo ortodoxo', segundo a qual mesmo que a histria comprovasse serem falsas todas as
afirmaes e teses isoladas de Marx ainda assim a validade de seu mtodo permaneceria intocada,
dificilmente poderia ser validade no contexto de sua Ontologia. Neste ltimo escrito h elementos e
indicaes suficientes a partir da qual poder-se-ia argumentar que um procedimento metodolgico que
conduz a teses e afirmaes falsas, que conduz a um reflexo incorreto do real, no poderia ser um
procedimento metodolgico acertado, pois a validade do mtodo no reside nele prprio enquanto tal,
mas em sua capacidade de auxiliar na construo, pela subjetividade, de um reflexo correto do real.
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qual investigamos o desconhecido se mantm sempre vlida. Ao conhecermos algo,
portanto, terminamos tambm por sinalizar um novo desconhecido a ser investigado.
Conhecimento e desconhecido a ser investigado so plos distintos de uma mesma
processualidade, qual seja, a trajetria histrico-social da humanidade no sentido de
reproduzir na conscincia, de uma forma cada vez mais aproximada, as determinaes
do real.4
Nesta relao entre o j conhecido e o ainda desconhecido encontramos o
segundo paradoxo aparente: quando iniciamos a investigao de algo desconhecido,
jamais poderemos ter certeza a priori de quais procedimentos investigativos
(portanto, de qual mtodo) se revelar o mais adequado para conhec-lo. Podemos
fazer, com base no que j conhecemos, com base nas experincias com objetos que
nos parecem semelhantes, etc., previses e antecipaes de qual provavelmente ser o
mtodo mais adequado. Contudo, a certeza apenas poder vir a posteriori, aps o
conhecimento do objeto. Neste momento, contudo, em que o objeto j desvelado nos
permite ter certeza de qual o melhor mtodo para conhec-lo, o mtodo se torna
suprfluo: se conhecemos o objeto no tem cabimento investig-lo novamente.5
O mtodo, assim, exibe uma certa dimenso de particularidade: cada objeto
requer um mtodo particular para ser conhecido. Em outras palavras, a descoberta de
cada objeto implicar sempre em uma investigao que jamais ser idntica
nenhuma outra na mesma medida em que jamais haver dois entes exatamente
iguais. Contudo, como nenhum objeto existe fora de uma totalidade6, a relao
4 Um parnteses: afirmar a existncia do desconhecido em nada nos aproxima da tese kantiana
da incognoscibilidade da coisa em-si. De um lado temos a tese marxiana da absoluta historicidade do
objeto e do sujeito: como nossa relao com o real evolui incessantemente porque tanto os sujeitos
como o mundo objetivo so processualidades em constante transformao, inevitvel que sempre
tenhamos algo novo a conhecer. Por isso o conhecimento um processo de aproximao inesgotvel.
Tal postura, evidentemente, nada tem a ver com a afirmao kantiano-fenomenolgica de que a coisa
em-si, o ser-precisamente-assim existente, impossvel de ser conhecido. H uma absoluta antinomia
entre as duas teses.
5 Estas palavras devem ser tomadas com um certo cuidado pelo leitor. Pois, toda vez que
conhecemos algo novo, novas questes podem ser colocadas para todos os nossos conhecimentos
anteriores, de tal modo que jamais haver um objeto j totalmente conhecido. Ou, como a relao entre
o homem e seu ambiente absolutamente histrica, no h como ela, em qualquer de suas dimenses,
adquirir um carter esttico, definitivo.
6 Marx, nos Manuscritos de 1844, afirma que Um ser no objetivo um no ser (Ein
ungegestndliches Wesen ist ein Unwesen) Die Frhscriften, Alfred Krner Verlag, 1971, p. 274. H
uma traduo espanhola, da Alianza Editorial, Madrid, 1985, p. 195, que, contudo, traz a passagem de
forma um pouco diferente: Um ser no objetivo es um no-ser, un absurdo. Com o acrscimo, un
absurdo, ficamos sabendo do fato de o tradutor concordar com a tese marxiana, o que no pode de
deixar de nos alegrar. Mas, como h uma distncia entre o texto e o tradutor, acrscimos desse tipo so
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objetiva entre sua particularidade e a generalidade a qual pertence faz com que o
mtodo que se revelou adequado ao seu conhecimento contenha elementos comuns
aos procedimentos metodolgicos que se revelaro corretos para a compreenso de
outros objetos no futuro. Nesse sentido e medida possvel a elevao das
experincias investigativas passadas a uma tematizao genrica acerca do mtodo.
Ou seja, se o universal a universalidade de singulares, e os singulares apenas podem
ser singularidades de um universal a relao entre o mtodo adequado a cada ente
singular no pode deixar de ser uma particularizao do mtodo adequado
generalidade a qual pertence o ente em questo. E vice-versa.
Detenhamo-nos sobre esta questo, pois ela da maior importncia.
A totalidade de tudo que existe7 compe um complexo unitrio. O inorgnico
e a vida se articulam de vrias maneiras, de tal modo que sem o primeiro a ltima
impossvel. Do mesmo modo, natureza e mundo dos homens esto de tal forma
articulados que sem aquela a sociabilidade sequer poderia existir. E, ainda, no h
relao social, por mais singular, que no faa parte (mesmo que pelas mediaes
mais distantes) da histria da humanidade. Tudo o que existe faz parte de uma e
mesma totalidade.
Contudo, o carter de totalidade complexa consubstanciada pelo ser em nada
se ope afirmao da diferena entre os complexos singulares e universais. Pelo
contrrio, exatamente a sntese dessas diferenas que funda esta mesma totalidade
por ltimo unitria; o complexo apenas pode ser complexo se suas partes
constituintes, assim como as relaes entre as mesmas, forem distintas, diferentes
contraditrias. A totalidade s pode ser por ltimo unitria se for composta por
elementos singulares que sejam imediatamente diferentes entre si, contraditrios.
Esta constatao ontolgica se faz presente, na reflexo metodolgica, pelo
reconhecimento de que as determinaes e categorias comuns a um dado setor do real
ou, se nos referirmos mxima generalidade, totalidade enquanto tal possam ser
refletidas em procedimentos metodolgicos comuns s investigaes de seus objetos.
Assim, por exemplo, ao estudarmos a esfera da vida, teremos alguns procedimentos
metodolgicos peculiares biologia e que, de algum modo, provavelmente estaro
presentes na totalidade das investigaes nessa esfera. Contudo, pela mesma razo,
sempre para se lamentar.
7 Tudo o que existe nada mais que o ser em geral.
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tais procedimentos peculiares biologia sero muito distintos daqueles empregados
pela geologia. E, num provvel crescendo de diferenciao, sero por fim, quase8
inaplicveis a um evento social como a Revoluo Francesa.
Em outras palavras, se verdade que quanto mais tendente singularidade for
o objeto sob investigao, mais particular e especfico o mtodo requerido, o contrrio
tambm verdadeiro. Ou seja, quanto mais universal o objeto investigado, mais
genrica tende a ser a validade dos procedimentos metodolgicos empregados. Assim,
se verdade que podemos falar de metodologias especficas a cada uma das esferas
do real, tambm podemos falar de uma reflexo metodolgica a mais universal, que
trate dos procedimentos metodolgicos os mais universais os quais, portanto,
estaro presentes em todas as investigaes a serem realizadas.
Nesse preciso sentido e medida, se o carter peculiar do objeto que
determina a particularidade do mtodo a ele adequado (os objetos vivos e a biologia,
o ser mineral e a geologia, o ser social e a histria do mundo dos homens, etc.), so as
determinaes mais genricas do complexo composto por todo o existente as
determinaes mais gerais da totalidade de tudo o que existe que determinam a
metodologia no seu plano o mais universal. E, se o estudo das determinaes mais
genrico-universais do existente realizada pela ontologia, ento, neste nvel de mais
ampla universalidade, ser a ontologia o fundamento do mtodo. Ou, para dizer de
outro modo, se o inorgnico, a vida, assim como o ser social, so partcipes de uma
mesma totalidade, h elementos metodolgicos comuns a todos estes distintos
objetos. E, tanto em se tratando de objetos mais particulares ou do ser na sua
dimenso a mais universal, algo podemos afirmar: so as determinaes do objeto sob
investigao que determinaro, ao fim e ao cabo, quais os procedimentos
metodolgicos mais adequados para seu desvelamento. Em outras palavras, ser
sempre a esfera ontolgica (as determinaes mais gerais do objeto sob investigao)
que determinar a metodologia.
Aqui, qualquer fixao rgida terminaria por falsificar a concepo lukcsiana.
Tal como todo novo conhecimento do real em alguma medida modifica a relao do
homem com o seu ambiente, provoca do mesmo modo uma alterao na experincia
acumulada de investigao do real e, por esta mediao, uma necessria modificao
8 Quase, e no absolutamente, porque no plano da mxima generalidade certamente
haver elementos ontolgicos (e, portanto, metodolgicos) comuns aos dois exemplos.
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nas teorizaes acerca do mtodo.
J nesta primeira e mais superficial abordagem, o mtodo, assim como a
linguagem, a ideologia, etc. se revela como um dos complexos mais dinmicos do ser
social. Sua funo social, sistematizar as experincias de absoro do desconhecido
na esfera do j conhecido de modo a aumentar a eficincia de aquisio de novos
conhecimentos, faz com que necessariamente incorpore todas as novidades que se
apresentam na relao historicamente construda do homem com seu ambiente, em
todas as suas dimenses. Esta , possivelmente, uma das maiores fontes de
dificuldades para a sua tematizao terica: a rigidez das definies e conceitos
tericos termina por ser uma fonte a mais de problemas para o tratamento de
complexos sociais to fludos ( o que no significa que sejam indefinidos). Nenhuma
rigidez aqui admissvel, contudo, sem categorias tericas claramente definidas no
h cincia possvel. Veremos como Lukcs tenda dar conta deste enorme desafio,
sempre a partir de Marx.
2. MTODO E ONTOLOGIA9
H uma passagem em Para uma Ontologia ... em que Lukcs afirma:
Naturalmente no devemos esquecer que todo grau de ser, no seu todo
e nos detalhes, tem carter de complexo, o que quer dizer que as suas
categorias, mesmo as mais centrais e determinantes, podem ser
compreendidas adequadamente apenas do interior e a partir da
totalidade complexa do nvel de ser do qual se trata10
Vejamos o que temos aqui: uma afirmao ontolgica (todo grau de ser ...
tem carter de complexo) na qual se apoia uma afirmao metodolgica (suas
categorias ... podem ser compreendidas ... apenas no interior e a partir da totalidade).
Deixando de lado as conseqncias ontolgicas, o que nos interessa o fato de
Lukcs reclamar como apoio do seu procedimento metodolgico, uma afirmao
ontolgica a mais universal: dado o carter de complexo do ser, a totalidade
complexa o solo exclusivo (apenas) a partir do qual, e no qual, as categorias
9 Um tratamento mais circunstanciado de algumas das questes que sero aqui abordadas
pode ser encontrado em Lessa, S. Lukcs, ontologia e mtodo: em busca de um pesquisador(a)
interessado(a), Praia Vermelha, n.2, Ps-graduao em Servio Social, UFRJ, 1998.
10 Lukcs, G. Per una Ontologia ..., op. cit., vol. II*, pg. 11. Para evitar um excessivo nmero
de notas, indicaremos entre parnteses, no corpo do texto, a referncia ao nmero de pgina das
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podem ser compreendidas adequadamente. No mesmo sentido, Lukcs afirmar
mais a frente: /.../ o contexto total do complexo em questo sempre primrio em
relao aos seus prprios elementos.(57)
A prioridade metodolgica da categoria da totalidade , nessa medida,
ontologicamente fundada. Um argumento ontolgico o ser consubstancia uma
totalidade complexa o fundamento ltimo de seu argumento metodolgico :
apenas no interior e a partir da totalidade complexa as categorias /.../ podem ser
compreendidas adequadamente.
Algo anlogo encontramos em Para uma Ontologia... quando se trata de
fundamentar a abordagem gentica. Neste caso, inicia Lukcs por argumentar que a
totalidade complexa porque histrica. Seu desenvolvimento histrico se d no
sentido da gnese e desenvolvimento de categorias mediadoras que tornam cada vez
mais heterognea e complexa a estrutura originria do ser, s vezes por meio de
rupturas ontolgicas. (Pensemos nas passagens do ser inorgnico vida e,
posteriormente, na gnese do ser social). Como vimos, esta crescente diferenciao
ontolgica no implica no desaparecimento do carter de totalidade do ser, mas
apenas que sua unitariedade ltima se afirma pela mediao de complexos antes
inexistentes. O que ocorre, to somente (ainda que isto de modo algum seja pouco)
que, tal como os complexos, a unitariedade da totalidade tambm se desenvolve,
deixando de ser simples para ser crescentemente complexa.
Portanto, em Lukcs, a unitariedade ontolgica do ser, pressuposta na noo
de totalidade no se contrape, absolutamente, ao devir: essencialmente histrica11
.
Em suma: o carter unitrio da totalidade se afirma em todos os momentos do
seu desenvolvimento. Mas nunca se afirma exatamente da mesma forma. A crescente
complexificao da sua substncia aumenta e intensifica as mediaes que, por um
lado, a articulam em uma unitariedade ltima, e, por outro, possibilitam a gnese e o
desenvolvimento de categorias e complexos crescentemente diferenciados (tanto
internamente como entre si), categorias e complexos estes que elevam a um patamar
superior a unitariedade primria da totalidade em questo. Ser, totalidade e devir ao
citaes desse volume da Ontologia.
11 Precisamente neste sentido, no captulo dedicado a Marx de sua Ontologia, Lukcs afirma
que a substancialidade no uma relao esttico-estacionria de autoconservao que se contrape
em termos rgidos e exclusivos ao processo do devir, ela, pelo contrrio, se conserva na sua essncia,
mas processualmente, transformando-se no processo, renovando-se, participando do processo.(vol. I,
pg. 394)
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contrrio das ontologias tradicionais12 esto, em Lukcs, rigorosamente articulados:
o ser uma totalidade em desenvolvimento e, a histria, em sua acepo mais
genrica, o movimento do ser.
Segundo Lukcs, dessa moldura ontolgica decorrem alm do predomnio
da totalidade dois elementos metodolgicos fundamentais e intimamente
articulados: a abordagem gentica e a crtica radical das metodologias que deduzem o
real a partir de conceitos terico-sistemticos. Vamos a cada um desses elementos.
Se o carter de totalidade complexa do ser impe a prioridade metodolgica
da categoria da totalidade, sua historicidade igualmente impe a exigncia da
abordagem gentica. Esta significa
elucidar a estrutura originria que representa o ponto de partida para as formas
subseqentes, o seu fundamento insuprimvel, mas ao mesmo tempo tornar
visveis tambm as diferenas qualitativas que no curso de desenvolvimento
social posterior acompanham com espontnea inevitabilidade e necessariamente
modificam de maneira decisiva, at em relao a determinaes importantes, a
estrutura originria do fenmeno. (111-2)
Sucintamente, a abordagem gentica significa elucidar o fundamento
insuprimvel, a estrutura originria, das formas subseqentes de modo a,
concomitantemente, desvendar as diferenciaes qualitativas, no plano do real, que
operam no desdobramento do objeto sob investigao. Ou seja, no estudo de qualquer
categoria, seja ela mais genrica ou mais particular, aspecto decisivo a descoberta da
processualidade histrica que articula a sua gnese com a sua configurao presente.
Conhecer o objeto significa tambm conhecer o processo histrico que lhe
consubstancia e no apenas a sua forma presente, como se esta no possusse
histria.
A abordagem gentica lukcsiana o exato contraponto s metodologias que
propem a construo do real a partir de conceitos tericos a priori. Nos referimos
aqui a um amplo leque que se estende desde o neopositivismo mais radical, com sua
matematizao do real, ao idealismo de corte hegeliano, passando pelo marxismo
vulgar e por autores como Althusser, Bourdieu e Passeron. Em que pesem as
significativas diferenas entre estas correntes tericas, diferenas estas que no
desejamos velar de modo algum, no menos verdadeiro que estas diferenas no
esmaecem o fato de, em todas elas, o ponto de partida metodolgico ser uma deduo
12 Cf. Lessa, S. Lukcs: ontologia e historicidade. Rev. Trans/forma/ao, UNESP, vol. 19,
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do real a partir de conceitos tericos abstratamente construdos.13
A abordagem gentica, em contrapartida, implica na recusa de toda
'deduo lgica' da estrutura, do ordenamento das categorias /.../ partindo do seu
conceito geral considerado em abstrato.(90) Pois, ao se deduzir logicamente o
real(112), termina-se por substituir a gnese histrico-social das categorias por uma
hierarquia conceitual-sistemtica.(90) Perdido o acesso processualidade gentica e
histria que conduziu do mais simples ao complexo, as fases de desenvolvimento
no podem mais ser articuladas entre si pelas suas ligaes objetivas, ontolgicas.
Pelo contrrio, apenas podem ser articuladas a partir de um ponto de vista
valorativo arbitrariamente escolhido, de modo puramente ideal, e aplicado do
exterior sobre /.../ a processualidade histrico-real.(168) Com esse procedimento
tanto a essncia concreta como a sua interao concreta terminam
falsificadas.(90) O movimento histrico-concreto se converte no movimento lgico
das categorias, a histria substituda pela lgica e o movimento do real deixa de ser
apreendido pela conscincia para ser por ela deduzido.
Exatamente pelos mesmo motivos, continua o filsofo hngaro, devemos
recusar a ontologia materialista vulgar que entende as categorias mais complexas
como simples produtos mecnicos das [categorias] elementares, fundantes. Esta
deduo direta das formas mais desenvolvidas de suas formas primitivas cancela a
complexa articulao entre o passado e o presente, Pois, se verdade que o presente
tem seu fundamento no passado, no menos verdade que apenas enquanto campo de
inmeras possibilidades futuras pode ser o passado fundamento do presente. No h
nenhuma fatalidade histrica, nenhuma determinao direta que imponha, digamos, s
sociedades primitivas, uma nica e exclusiva direo de desenvolvimento histrico no
1996.
13 Sendo o mais breve possvel, o neopositivismo extrema a matematizao da realidade at
que as relaes matemticas passem a ser o prprio real, ou em outras palavras, o real passe a ser
expresso das relaes matemticas (cf. Lukcs, G. Neopositivismo in Per una Ontologia, op. cit.,
vol I, pp. 25 e ss. H traduo para o portugus pelo Prof. Mario Duayer (UFF)); o idealismo de corte
hegeliano com forte influncia (a histria tem suas ironias) sobre o marxismo vulgar pressupe uma
trajetria histrica j inscrita no seu incio, enquadrando o movimento ontolgico em uma estrutura
terica abstratamente deduzida e determinada (Lukcs, G. A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel,
trad. Carlos Nelson Coutinho, Ed. Cincias Humanas, So Paulo, 1979); Bourdieu e Passeron, em sua
conhecida anlise acerca da reproduo social, partem de um conceito a priori (o arbitrrio cultural e a
violncia simblica) para a construo do seu objeto de estudo (a reproduo social) (cf. Lessa, S.
Introduo e Concluso in Sociabilidade e Individuao, Edufal, 1995) e, por fim, Althusser,
pressupe o objeto do conhecimento como um construto da subjetividade (Althuser, L. De El Capital
a la filosofia de Marx in Para leer El Capital, Siglo XXI, 1969).
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11
sentido do capitalismo. Tanto assim que esta direo de desenvolvimento se
concretizou na histria de apenas algumas poucas formaes sociais e, se hoje o
capitalismo a formao social dominante em escala planetria, em nada altera este
fato.
Como no h nenhuma ligao imediata entre as formas mais simples e as
mais desenvolvidas de sociabilidade, substituir a complexa processualidade histrica,
com todas as suas mediaes, por uma seqncia de absoluta necessidade lgica, tal
como faz o marxismo vulgar impede /.../ a compreenso da especificidade das
categorias mais complexas e cria /.../ uma falsa hierarquia, que se pretende
ontolgica, segundo a qual somente s categorias elementares pode ser atribudo um
ser em sentido prprio.(90) Para sermos breves, impe a distino, tpica do
stalinismo, que faz da infra-estrutura social o verdadeiro ser, e da
superestrutura uma dimenso decorrente, causada pelo ser de sua base material.
Impe, em suma, uma distino do estatuto ontolgico entre a essncia (movimento
da tcnica) e o fenomnico (a esfera superestrutural) do mundo dos homens,
conduzindo ao economicismo o mais tosco.
Em todas estas vertentes, mutatis mutandis, o resultado semelhante: o
movimento histrico das categorias reais substitudo pelo movimento lgico das
categorias do conhecimento. Por esta rota rapidamente se chega ao idealismo14
.
Sumariemos nosso percurso at aqui: para Lukcs, o carter de totalidade
complexa do ser impe metodologicamente a prioridade da categoria da totalidade.
Sua historicidade requer a abordagem gentica. Fixemos este ponto: estes dois
requisitos metodolgicos fundamentais de Lukcs decorrem de suas categorias
ontolgicas centrais.
3. O PERCURSO DE IDA E VOLTA
Ao lado da abordagem gentica e do predomnio da totalidade, o terceiro dos
elementos metodolgicos decisivos assim exposto por Lukcs:
para deslindar a questo [ele se refere ao trabalho enquanto categoria
fundante do mundo dos homens] devemos nos referir novamente ao
14 Cf., por exemplo, a arguta crtica de E. Thompson a Althusser em A Misria da Teoria, Ed.
Zahar, 1981 e, tb., o indispensvel texto de Carlos Nelson Coutinho, infelizmente esgotado h dcadas,
O Estruturalismo e a Misria da Razo, Ed. Paz e Terra, 1972.
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12
mtodo das duas vias de Marx, j por ns analisado: primeiro,
decompor analtico-abstratamente o novo complexo de ser para poder,
com o fundamento assim obtido, retornar (ou seja, avanar at) ao
complexo do ser social, no s enquanto dado e portanto simplesmente
representado, mas agora tambm concebido na sua totalidade real. (11)
Ao contrrio dos anteriores, este argumento imediatamente metodolgico: a
investigao deve decompor de forma analtico-abstrata a representao do complexo
de ser e, com base nos elementos assim obtidos, avanar at o complexo do ser
social concebido na sua totalidade real (realen Totalitt). Veremos, contudo, que
tanto a necessidade quanto a forma deste movimento de ida e de volta so
fundamentadas pelas exigncias que o real coloca para ser desvelado pela
subjetividade.
Imaginemos um exemplo muito radical, ainda que de modo algum absurdo:
um investigador, em um dado momento de sua pesquisa, se depara com um resultado
inesperado, completamente desconhecido. Algo to indito quanto, digamos assim,
um metal capaz de se mover por si prprio.15
O primeiro momento desta relao com o novo desconhecido, ao lado da
sensao de surpresa, a constatao ontolgica de se estar frente a algo claramente
distinto de tudo o que temos ao nosso redor. Esse algo desconhecido j possui,
portanto, uma identidade prpria: ele diferente de tudo o que conhecemos, se
destaca enquanto o desconhecido no interior daquilo que conhecemos. Esta
identidade j nos possibilita um passo decisivo, qual seja, transform-lo em um objeto
de pesquisa especfico; nos permite singulariz-lo enquanto este desconhecido.
Contudo, esta identidade se afirma ainda, digamos assim, de maneira
essencialmente negativa: apenas sabemos que o objeto misterioso no se assemelha
com nada que conhecemos, podemos portanto identific-lo apenas pela afirmao de
15 O fato de termos optado por um exemplo da natureza inorgnica no possui, nesta
discusso mais genrica do mtodo, qualquer importncia. Para a investigao dos fundamentos
ontolgicos mais gerais da problemtica metodolgica, as diferenas entre as esferas ontolgicas
(inorgnica, vida e sociabilidade) ainda no so decisivas. Por isso, neste momento do texto em que
exploraremos o mtodo das duas vias, poderamos perfeitamente recorrer a exemplos da vida social
ou da vida biolgica. Ao optarmos pelo exemplo em questo, no pretendemos sugerir que haja uma
identidade ou distino absolutas entre a natureza e a sociabilidade, identidade e distino absolutas
das quais resultariam identidade ou distino (tambm absolutas) entre as suas metodologias
especficas. O fato de o mtodo das duas vias, por exemplo, se aplicar tanto natureza quanto ao ser
social no significa que, tal como querem alguns positivistas, o mtodo das cincias naturais possa ser
aplicvel s cincias humanas. Ou que, por outro lado, esta diferena entre as cincias humanas e as
naturais impea que haja elementos metodolgicos comuns entre as cincias da natureza e a cincia
social.
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que ele no nada do que j conhecemos. Afirmamos sua identidade pela sua relao
de negao com tudo o que conhecemos, e no pelas suas caractersticas imanentes.
Estas apenas podero ser afirmadas aps termos minimamente (e este minimamente
varia muito, caso a caso) conhecido o objeto.
a isto que Lukcs se refere quando, aps Marx, assinala que em todo
processo de conhecimento, Quer tomemos a prpria realidade imediatamente dada,
ou mesmo seus complexos parciais, o ponto de partida necessrio o conhecimento
imediato do real. Este conhecimento, por ser imediato, no pode seno produzir
uma representao catica do todo16. No porque o todo seja catico, mas porque
nossa representao do mesmo ainda imediata, carente de mediaes. S
conseguimos apreender o que ele no- (ele no nada do que conhecemos), mas
nada mais podemos afirmar do que ele no seu ser-precisamente-assim.
Como romper, neste momento, este impasse no processo do conhecimento?
S h uma sada possvel, tanto prtica quanto terica: encontrar alguma relao do
desconhecido com algo daquilo que j conhecemos. Ou seja, atravs de um
processo de analogia entre o desconhecido e o que j conhecemos, deveremos
iniciar comparaes buscando estabelecer caractersticas comuns. Por exemplo, o que
se move na enorme maioria das vezes possui vida. Nesse sentido podemos investigar
se este desconhecido possui algum metabolismo orgnico: respira, se alimenta,
transforma o meio ambiente no qual se encontra, tal como os animais e as plantas o
fazem? Vrias experincias podem ser divisadas neste momento, e as suas respostas
vo permitindo-nos acrescentar dados quilo que ainda desconhecido: no troca
nada com o meio ambiente, portando no deve ser um organismo biolgico de
qualquer espcie, etc.
Podemos iniciar ento, continuemos imaginando, uma outra srie de
investigaes: como ele se movimenta? Pelo deslocamento de suas molculas de um
lugar a outro do corpo, ou ento apenas pela alterao da relao entre as mesmas,
sem que se movimentem ao longo do corpo? De onde provm a energia para se
mover: h alguma fonte interna de energia (por exemplo, uma molcula radioativa
que produza energia) ou ele aproveita uma energia externa (o sol, o campo magntico
da Terra, etc.) para se mover?
Uma sria de experincias podero nos fornecer outra srie de informaes:
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parece haver uma fonte interna de energia, contudo no conseguimos estabelecer
aonde e como ela . Por outro lado, poderemos descobrir que no h nenhuma
interao com o campo magntico da Terra ou com o Sol ou outra fonte externa de
energia qualquer.
Nestas investigaes iniciais, estaramos na verdade dando um passo
extremamente importante do caminho de ida: com base no que j conhecemos,
estabelecemos relaes analgicas para descobrir como classificar o desconhecido
no interior do que j conhecemos. Ou seja, estamos tentando descobrir com que
parcela do real este desconhecido se relaciona, qual o seu lugar dentro da totalidade
do existente. J conseguimos, em nosso exemplo, dar alguns passos iniciais
significativos: ele no pertence esfera biolgica, portanto apenas poder ser um ente
inorgnico. Isto nos permitir prever, com razovel grau de certeza, que todos os seus
processos sero qumicos ou/e fsicos, mas jamais sero processos biolgicos (e, por
tabela, sociais, pois no h sociedade sem vida). por essa via que temos acesso
quilo que Marx, nos Grundrisse, denominou de elementos simples. Este o
momento mais inicial da investigao, e seus resultados so sempre parciais: o
mximo que conseguimos so informaes e dados que se referem a aspectos
especficos do objeto, e no temos ainda acesso sua totalidade seno como um todo
catico.
preciso salientar que a conquista de cada elemento simples permite no
apenas um novo questionamento, agora mais rico, aprofundado, mediado, dos
outros elementos simples j obtidos, como ainda possibilita colocar novas questes
e orient-las em um sentido mais preciso que as antigas. A descoberta que o
desconhecido no vivo, por exemplo, permite descartar uma enorme gama de
investigaes e orienta nossos esforos em uma direo muito mais precisa. A cada
novo elemento simples que conseguimos descobrir, mais avana nosso
conhecimento do objeto em questo, ainda que no possamos dizer o que ele de fato
: um metal, um gs que temperatura ambiente da Terra se solidifica, algo
completamente distinto de tudo isso? Ou ser apenas uma imagem halogrfica
misteriosamente produzida em nosso laboratrio?
Esta etapa do processo investigativo superada no momento em que, pela
articulao dos elementos simples j alcanados, h um salto qualitativo que
16 Marx, Grundrisse, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973, p. 21.
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possibilita que passemos a trabalhar diretamente com a representao do objeto
enquanto uma totalidade. Neste momento, os elementos simples so integrados em
um todo articulado e temos agora uma representao muito mais rica da poro do
real sob investigao. Este fato possibilita que nossa pesquisa se volte no apenas s
suas partes constitutivas enquanto tais, mas tambm s relaes que mantm entre si
e, tambm, articulao de todas elas em uma totalidade.
Esse momento, no nosso exemplo fantasioso, seria alcanado quando,
(continuemos a dar asas imaginao) descobrssemos que o desconhecido em
questo um corpo em um quarto estado da matria: o estado gelatinoso. Alm do
estado gasoso, lquido e slido teramos descoberto um quarto estado, intermedirio
entre o gasoso e o slido que chamaramos de gelatinoso! J sabemos agora o que o
nosso misterioso objeto: um metal em estado gelatinoso.
Esta descoberta possibilita dar um enorme salto no processo investigativo.
No apenas porque nossas aes sero muito mais precisamente dirigidas, mas porque
agora poderemos trabalhar no apenas com as qualidades isoladas do antes
desconhecido, mas tambm com a sua totalidade.
Este salto de qualidade o momento em que se inicia o caminho de volta:
com base nos elementos alcanados, se avana at ao objeto, agora concebido na
sua totalidade real(11), enquanto uma totalidade rica, feita de muitas determinaes
e relaes.17
Se, no momento da ida, o movimento decisivo era a decomposio do todo
catico nos seus elementos simples, de modo a investig-los enquanto determinaes
singulares, na volta trata-se de desvelar a relao desses elementos entre si e com a
totalidade da qual fazem parte. No apenas as partes, mas tambm as suas relaes,
adentram ao campo a ser investigado. Com isso, no apenas os elementos simples
podem ser explorados mais exaustivamente, revelando particularidades que s
poderiam ser captadas ao estudar as suas relaes com a totalidade, como ainda a
funo especfica que lhes cabe no interior do todo pode ser desvelada. O patamar da
investigao , na volta, qualitativamente distinto da ida: nesta, a totalidade s
poderia comparecer como um todo catico; naquela, a totalidade j um complexo
articulado de mltiplas determinaes: o universal concreto.
Ao trmino desse movimento representao catica do todo, anlise do
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16
objeto em seus elementos simples, a sntese destes no universal concreto temos
a reflexo muito mais acurada, na e pela conscincia, de um dado setor do real.
4. UM PROBLEMA DECISIVO: O QUE UMA ABSTRAO
RAZOVEL?
Vimos, at agora, as conexes mais gerais (a ida e a volta) pelas quais a
conscincia reflete o real. No examinamos, ainda, o por que de a subjetividade
operar desta forma; em poucas palavras, ainda no examinamos quais os fundamentos
ontolgicos que tornam imprescindvel o mtodo das duas vias. Veremos que, tal
como ocorre com a prioridade metodolgica da totalidade e com a abordagem
gentica, aqui tambm a ida e a volta so uma exigncia posta pelo real quando
de sua reflexo na forma de conhecimento.
Antes, porm, deveremos ao menos mencionar uma crtica que, por vezes, se
faz a Lukcs neste particular. Ela surgiu, h j algum tempo, no contexto do que
algumas vezes denominada teoria das abstraes18
, e tem importantes
conseqncias para o nosso tema. Tal problema, no fundo, se resume seguinte
questo: se o caminho de ida se inicia pela anlise que tem por mediao as
abstraes isoladoras, qual o critrio para determinar quais as abstraes que so e
as que no so pertinentes? Como distinguir entre a falsa e a verdadeira abstrao?
Nos Grundrisse Marx se refere a abstraes razoveis19
: pois bem, qual o
critrio dessa razoabilidade? A Lukcs no resta qualquer dvida: o critrio so as
determinaes do ser-precisamente-assim do objeto em questo. O que, por sua vez,
colocaria o seguinte problema: como podemos verificar a validade de nossas
abstraes isoladoras frente s determinaes ontolgicas do objeto em um estgio do
conhecimento (na ida) no qual estas determinaes ontolgicas ainda no so
conhecidas?
Entendamos o problema: segundo Lukcs, Marx conceberia o processo de
17 Marx, K. Grundrisse. Apud Lukcs, op. cit. vol. I, pg. 285.
18 A origem desta questo possivelmente se relaciona com um certo fetichismo da
particularidade, se podemos dizer assim, oriundo de uma leitura mais lgica do que ontolgica da
categoria da particularidade tal como Lukcs a discute em sua Esttica. Uma formulao mais recente
da teoria das abstraes pode ser encontrada em Chasin, J. Marx - Estatuto Ontolgico e resoluo
metodolgica in Teixeira, F. Pensando com Marx. Ed. Ensaio, S. Paulo, 1995.
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17
construo da representao do real na conscincia atravs de um percurso de ida e
de volta no qual, partindo-se da representao do objeto como um todo catico,
pela mediao das abstraes isoladoras chegaramos, num primeiro momento, aos
elementos simples e, destes, passaramos, no devido tempo, ao universal concreto
(a representao da totalidade do objeto). Os elementos simples abstratamente
obtidos seriam assim o material bsico, elementar, da constituio da representao
da totalidade. Como poderamos chegar a uma representao da totalidade
minimamente correta se os elementos simples dos quais partimos fossem absurdos?
E, do mesmo modo, como poderamos estar seguros da correo de nossas abstraes,
que forneceram os elementos simples, antes de termos acesso representao da
totalidade?
Bem examinadas as coisas, esta uma falsa questo.
Ela desloca o problema da relao conhecimento/objeto em-si (a esfera
ontolgica), para a esfera do processo de conhecimento enquanto tal (a esfera
gnosiolgica). A artimanha, para sermos breves, fazer desaparecer, no caminho de
ida, a totalidade do objeto sob investigao; quando, na verdade, esta totalidade est
o tempo todo presente, ainda que sob a forma de um todo catico, carente de
determinaes. No nosso exemplo, ao descobrir o novo objeto, o que temos que
fazer investigar este todo que se nos apresenta ainda como catico: se for uma
forma de vida, em dadas circunstncias se comportar desta forma, em outras, de
outras maneiras e assim sucessivamente. Poderemos, por esta via, determinar se ou
no um ser vivo, uma matria inorgnica, etc. Se for uma evento social, que no pode
ser investigado com experincias, teremos a histria como o campo resolutivo ltimo.
Em todos estes momentos, o todo catico permaneceu como referncia da
investigao e, embora tenha comparecido sob a forma primitiva e pouco determinada
do caos, nem por isso se fez menos presente. Em poucas palavras, se no incio da
ida, a totalidade do objeto se apresenta como carente de determinaes, isto no
significa que esta totalidade seja inexistente. Significa apenas que, na sua relao com
o objeto, o sujeito ainda no foi capaz de represent-la seno como uma totalidade
indefinida.
O falso problema da teoria das abstraes apenas faz sentido se
enrijecermos a relao entre a ida e a volta privando-a de todo carter dialtico.
19 Marx, K. Grundrisse, op. cit., p. 5.
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18
Se o processo de conhecimento fosse de tal ordem que apenas conhecssemos a
totalidade aps termos conhecido todos os elementos simples, no haveria qualquer
possibilidade de a totalidade estar presente no caminho de ida. Fazendo
desaparecer, deste modo, a totalidade no caminho de ida (repetimos: assumindo a
carncia de determinaes como sinnimo de inexistente), desaparece tambm
qualquer possibilidade de um referencial ontolgico para determinar a razoabilidade
das abstraes. Sem este referencial no h como se fugir deste falso problema que
conduz ao procedimento que Lukcs tanto criticou: substituir o real pelos modelos,
conceitos, etc. lgico-gnosiolgicos como critrio da razoabilidade das abstraes.
Todavia, no h, nem em Marx, nem em Lukcs, um abismo entre os dois
movimentos do conhecimento. Tanto a ida e a volta, quanto no interior de cada
uma delas, temos a constante referncia dos elementos simples totalidade, e desta de
volta queles. E, se nos momentos iniciais a totalidade representada de forma
catica, porque tambm os elementos simples no foram ainda suficientemente
explorados, sendo ainda carentes de determinaes, tal como a totalidade.20
Portanto, o caminho de ida e de volta desdobra uma intensa e complexa
relao entre a subjetividade e o objeto. Nesta relao a subjetividade comparece com
sua totalidade (intuio, raciocnio, emoes, conhecimentos, valores, concepo de
mundo, etc.), assim como o objeto, em todos os momentos do processo de reflexo do
real pela conscincia embora a forma deste comparecimento no seja de modo
algum nica. nesta complexa malha de relaes entre o real e a conscincia e
entre a ida e a volta que, se as abstraes forem completamente irrazoveis,
resultaro em absurdos que tero que ser, mais cedo ou mais tarde, descartados
porque incapazes de desvelar o objeto em questo.
O critrio da razoabilidade das abstraes tem, portanto, em Lukcs um
slido fundamento ontolgico: ser o real, no processo de sua apropriao pela
subjetividade, que dar a ltima palavra sobre quais as abstraes so ou no
razoveis.
Se, por um caminho inverso, procurarmos estabelecer um critrio lgico-
20 Com isso no queremos sugerir que a carncia de determinaes tenha exatamente o
mesmo peso em cada um dos casos. Embora carente de determinaes, os elementos singulares
podem ser singularizados ainda que de forma muito limitada antes de se constituir o universal
concreto. Nesta medida e sentido, os dois casos apresentam diferenas significativas que seria incorreto
velar.
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19
formal da razoabilidade das abstraes isoladoras, terminaremos na concepo do
mtodo que hoje predomina: ao fim e ao cabo, terminaremos por estabelecer um
critrio lgico-gnosiolgico para avaliar a veracidade do conhecimento, deslocando
(ou mesmo fazendo desaparecer) a funo decisiva neste plano exercida pela
objetividade. Ao assim proceder, enquanto marxistas camos em uma enorme
contradio j que a prioridade ontolgica da existncia sobre a conscincia se
converte, no plano metodolgico, na prioridade da subjetividade sobre o objeto, das
categorias do pensamento sobre o real. Na maior parte das vezes, com este
movimento se abandona o terreno marxiano e se aproxima (quando no se adere) a
posturas assumidamente kantianas ou fenomenolgicas.
Podemos perceber, agora, porque a questo da razoabilidade das abstraes
isoladoras se tornou to importante no debate metodolgico. Aparentemente ela
representaria a descoberta de uma lacuna na concepo marxiana. Se o todo catico
apenas pode ser conhecido atravs de sua decomposio pelas abstraes isoladoras
razoveis, e sendo estas os elementos simples a partir do qual todo o
conhecimento avanaria at o universal concreto, o passo seguinte indispensvel
seria determinar um critrio desta razoabilidade. Como Marx no deu este passo,
poderamos apressadamente concluir haver em Marx, e em Lukcs, uma lacuna que
impede a resoluo da questo.
Ledo engano. Marx no se deteve sobre um critrio de razoabilidade, aps
falar das abstraes razoveis, porque suas consideraes acerca do percurso da
ida e da volta j so tal critrio: parte-se do real e retorna-se a ele. No como
uma partida que significa abandonar o real e mergulhar num processo puramente
lgico-gnosiolgico, mas como incio de uma investigao que tem no real seu
horizonte permanente; volta-se, no a um real que se havia deixado para trs, mas a
um real que agora podemos compreender e investigar de um ponto de vista muito
mais global, genrico, universal. Por nunca ter abandonado o objeto como momento
predominante no processo gnosiolgico, Marx no teve a necessidade de estabelecer
critrios no-ontolgicos para a razoabilidade das abstraes. No h, por isso,
nenhuma lacuna neste particular; e nada justifica aqueles que querem completar
Marx acrescentando aqui elementos puramente lgico-formais.
5. O FUNDAMENTO ONTOLGICO DO CAMINHO DE IDA E
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20
DE VOLTA
Isto posto, podemos retornar questo deixada em aberto: por que o processo
de conhecimento opera este percurso de ida e volta?
Relembremos, pois decisivo para Lukcs: tanto a abordagem gentica quanto
a prioridade metodolgica da totalidade so decorrncias de elementos basilares de
sua ontologia, quais sejam, a historicidade do ser e seu carter de totalidade
complexa.
Com o mtodo das duas vias ocorre algo semelhante. No movimento de
desvelamento do real, ele se impe como o procedimento tpico da subjetividade
no por qualquer necessidade lgico-abstrata, nem devido qualquer natureza da
razo humana (a la Kant) , mas sim como uma necessidade a ela imposta pelo real.
Vejamos como isto se d.
Todo e qualquer objeto sempre uma sntese de mltiplas determinaes.
Dentre as determinaes ontolgicas absolutamente necessrias, duas so as decisivas
para o nosso problema:
1) no h objeto que no consubstancie uma sntese entre as determinaes
universais e as singulares. Tomemos como exemplo a relao indivduo/humanidade.
O primeiro apenas pode existir como parte singular (porque jamais haver dois
indivduos exatamente iguais) de uma totalidade (a humanidade); esta, por sua vez,
apenas pode ser a universalidade de singulares (no h humanidade sem indivduos),
pois sem a sntese dos singulares no seria possvel nenhuma universalidade.
Certamente, temos ainda que levar em considerao que entre o singular e o universal
podem se desdobrar uma srie de mediaes que compem a esfera da particularidade
(a classe social, p. ex.). Assim, todo indivduo portador, tal como todos os
indivduos com os quais compartilha sua existncia, de determinaes comuns: um
homem da sociedade primitiva, ou da sociedade feudal, etc. Sua singularidade
enquanto indivduo apenas pode ser construda dentro destas determinaes
particulares da sua poca, porm no universais toda histria da humanidade.
Assim, um senhor feudal apenas poderia existir na Idade Mdia, porque apenas ali
ocorreram as mediaes entre indivduo e humanidade que tornaram possvel, no
passado, a existncia de senhores feudais.
Relao anloga se desdobra na esfera da vida e no ser inorgnico. Tambm
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21
neles a singularidade, a particularidade e a universalidade so dimenses objetivas,
efetivamente existentes do real e tambm na natureza apenas podem existir como
determinaes dialticas, ou seja, s existem em relao entre si e no podem ter
existncia real separadamente uma da outra. Para sermos breves: no h
universalidade que no seja a sntese de singulares; no h singularidade que no seja
partcipe de um universal e, na enorme maioria das vezes, entre os dois plos se
desdobram mediaes reais que constituem a esfera da particularidade.
2) a segunda relao ontolgica absolutamente necessria a que se desdobra
entre a essncia e o fenmeno. Para o problema que agora investigamos, o decisivo
que, na acepo lukcsiana, so ambas categorias igualmente histricas. A essncia
o campo de possibilidades de consubstanciao do fenomnico e, este, a mediao
pela qual a essncia se particulariza em cada momento do processo histrico. Sem a
mediao dos fenmenos a essncia no poderia desdobrar sua imanente
processualidade; por sua vez, sem as determinaes essenciais o fenmeno no teria o
que particularizar. Temos aqui uma ruptura fundamental com todas as concepes
ontolgicas que, da Grcia a Hegel, mutatis mutandis, concebiam a essncia como a
esfera da permanncia, do eterno, e o fenomnico como o campo do efmero, da
historicidade. Ainda que um tema fascinante, no poderemos agora tratar desta
ruptura e da revoluo que Marx, segundo Lukcs, introduziu neste campo.21
O que agora nos importa que essncia e fenmeno, tal como as esferas
universais e singulares, so determinaes inerentes ao ser de todo e qualquer objeto
em seu em-si. As mltiplas determinaes a que Marx se refere dizem respeito,
necessariamente, tambm a essas categorias ontolgicas. Nada pode existir que no
desdobre, no seu ser-precisamente-assim, estas determinaes ontolgicas as mais
gerais.
Isto posto, podemos compreender porque o reflexo do real pela conscincia,
mesmo em sua etapa menos determinada, o todo catico, sempre portador de uma
dada articulao entre as esfera da essncia e do fenmeno, do essencial e do singular,
de tal modo que, ao decomp-lo em seus elementos simples temos o acesso s suas
21 Para uma discusso desta questo, do ponto de vista da ontologia tradicional
imprescindvel Gilson, E. L'tre et l'essence, Ed. Vrin, Paris. Tratamos destas questes em Trabalho
e Ser Social, EDUFAL, Macei, 1997; A Ontologia de Lukcs: retorno ontologia tradicional? in
Antunes, R. e Rego, W. (orgs.) Lukcs um Galileu no sculo XX. Ed. Boitempo, S. Paulo, 1996;
Lukcs: ontologia e historicidade, Rev. Trans/forma/ao, UNESP, vol. 19, 1996.
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determinaes fenomnicas, essncias, universais, singulares, etc.
Sendo extremamente breve: no podemos conhecer a essncia sem
apreendermos os fenmenos que a particularizam; no podemos compreender tais
fenmenos seno na relao que mantm com a essencialidade da qual fazem parte. E
no podemos conhec-los isoladamente um do outro porque, no real, eles compe um
sntese: o objeto que procuramos conhecer sempre uma sntese dialtica entre estes
dois nveis de determinaes ontolgicas. O mesmo em relao ao universal/singular.
Este o fundamento ontolgico do mtodo das duas vias: s podemos
conhecer algo se formos capazes de reproduzir, na conscincia, suas mltiplas
determinaes. O objeto, no aspecto que nos interessa, compe um todo sinttico de
determinaes universais, singulares, particulares, essenciais e fenomnicas22
. este
todo sinttico que, num primeiro momento, se apresenta como uma representao
catica. Como este todo efetivamente composto por partes, podemos, na esfera da
subjetividade, decomp-lo em seus elementos simples (a ida). Contudo, como
seus elementos simples apenas existem enquanto tais como partcipes da totalidade
composta pelo objeto, a partir dos elementos simples podemos sintetizar, na
subjetividade, a totalidade complexa que o objeto de fato . Sendo assim, podemos
realizar o caminho de volta que nos conduz ao universal concreto, que nada mais
que a totalidade do objeto elevada representao na conscincia.
Portanto, o percurso de ida e volta, ao articular universalidade (totalidade)
e singularidade (elementos simples), essncia e fenmeno na conscincia, o reflexo,
no plano do mtodo, do fato de todos os entes apenas existirem enquanto complexos
ontolgicos. Em outras palavras, reflexo do fato de o real ser a sntese de mltiplas
determinaes.
Portanto, se a prioridade ontolgica da totalidade o fundamento da
prioridade metodolgica da totalidade frente aos seus complexos parciais; se a
historicidade do ser o fundamento ontolgico da necessidade metodolgica da
abordagem gentica; o carter de totalidade complexa do real o fundamento
ontolgico da necessidade do mtodo das duas vias. Tal como nos casos anteriores,
tambm aqui a esfera ontolgica o fundamento da metodologia.
22 Uma advertncia: no h nenhuma relao necessria entre o essencial e o universal; so
planos de determinaes ontolgicas distintas.
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6. UMA LTIMA OBSERVAO
A esta altura no deve haver a menor dvida que toda esta articulao entre
mtodo e ontologia tm por fundamento a possibilidade de efetivamente conhecermos
o real enquanto tal. Se o conhecimento do mundo objetivo, tal como queria Kant e
hoje querem Habermas (de A Teoria do Agir Comunicativo23
) e os fenomenlogos,
um falsa proposio filosfica, ento nada disto faria qualquer sentido.
A nossa grande dificuldade, aqui, que o fundamento ontolgico do processo
de conhecimento distinto do fundamento ontolgico do mtodo. Para sermos muito
sintticos, os fundamentos ontolgicos do mtodo se referem algumas
determinaes mais genricas do ser (o seu carter de totalidade complexa, sua
historicidade, o predomnio da totalidade frente aos seus complexos particulares,
etc.); j o fundamento ontolgico do processo de conhecimento se radica na praxis
social e, dentro dela, mais especificamente no trabalho enquanto a categoria fundante
do mundo dos homens. Uma anlise da categoria trabalho e sua relao com o reflexo
do real pela conscincia um tpico que requer muito mais que um artigo para ser
introdutoriamente explorado. Por outro lado, se no fornecermos ao leitor algumas
indicaes, receamos que todo o artigo se assemelhe a um castelo sem alicerces: um
belo sonho, porm sem base real.
Neste sentido apresentaremos, antes de concluirmos este artigo, algumas
indicaes para possibilitar ao leitor ao menos divisar do que se trata. Ao mesmo
tempo, contamos com uma certa generosidade dos leitores para relevarem as lacunas
inevitveis em uma exposio to sinttica de um processo to complexo e rico de
mediaes.
Para Marx, segundo Lukcs:
1) a produo do conhecimento parte integrante do desenvolvimento
histrico do mundo dos homens. Compe, portanto, uma relao historicamente
construda entre o sujeito e o objeto, na qual ambos os plos (o sujeito e o objeto) so
processualidades histricas. Segue-se, como conseqncia imediata, que no h
possibilidade de qualquer conhecimento absoluto em uma relao na qual os dois
23 Para uma contraposio entre Habermas e Lukcs neste campo, cf. Lessa, S. Trabalho e
Ser Social, op. cit., em especial Cap. VI e, tb., Habermas e a centralidade do mundo da vida,
Servio Social e Sociedade, ano XV, n46, dez 1994; A centralidade ontolgica do trabalho em
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24
plos se encontram em constante desenvolvimento histrico.
2) Reconhecer o carter histrico tanto do sujeito como do objeto no implica,
de modo algum, na afirmao da identidade da histria de cada um. O mundo
objetivo, seja ele pura natureza ou criao humana, portador de determinaes
ontolgico-histricas distintas das do sujeito. De tal modo que a natureza pode existir
sem os homens e, ainda, em outro extremo, as criaes humanas podem sobreviver
aos seus prprios criadores. Os museus so imagens vivas desse fato: objetos que
sobreviveram s suas civilizaes. No h, portanto, nem identidade sujeito-objeto,
como queria Hegel, nem identidade entre as leis e categorias que predominam na
natureza e no mundo dos homens, como querem alguns positivistas.
3) Nesta relao sujeito-objeto se radica a produo do conhecimento. E ela
possvel pelo que a praxis social tem de mais peculiar: a relao entre a teleologia e a
causalidade que se desdobra no interior do trabalho, tal como definido por Marx,
ainda que no apenas, na famosa passagem de O Capital na qual compara o pior
arquiteto melhor abelha.24
Talvez pudssemos sumariar assim os traos mais gerais da relao teleologia-
causalidade na esfera da praxis: como resultado das necessidades postas pelo real e
percebidas pelo sujeito (pois o real pode pr uma necessidade objetiva que no seja
percebida pelo sujeito, com vastas conseqncias conforme o caso), este escolhe, em
sua conscincia, qual das alternativas julga a mais adequada para atender
necessidade tal como ele a percebeu. Tanto a sua capacidade de percepo, como
tambm as possibilidades que ele tem sua disposio para resolver o problema, so
predominantemente determinadas pelas relaes sociais em que est imerso.
Uma vez escolhida qual alternativa a ser objetivada, comea o processo de
transformao do real no sentido de se construir na realidade o projeto idealizado.
Neste processo de transformao do real, o conhecimento vai sendo testado na
prtica. De tal modo que, se se tentar transformar a gua em machado, perceber-se-
rapidamente que o que se conhece da gua no verdadeiro, e que as suas
propriedades objetivas impossibilitam que venha a ser transformada em um machado.
Neste processo, novos conhecimentos vo sendo adquiridos, outros velho vo sendo
reafirmados, corrigidos ou abandonados; e, no menos importante, conforme avana
Lukcs, Servio Social e Sociedade, Ed. Cortez, n52, 1996.
24 Marx, K. O Capital, Livro I, Cap. 5,1.
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este processo, sempre articulado com o desenvolvimento das capacidades humanas
em transformar o seu ambiente, se desenvolvem tambm as questes que, nos
apoiando no conhecido, dirigimos ao desconhecido. Assim, toda a relao
gnosiolgica se altera (ainda que, na maioria das vezes, de forma quase
imperceptvel) a cada processo de objetivao. Ao construir o mundo dos homens, ao
transformar o real, o homem tambm transforma o conhecimento que tem do mundo
objetivo. Mais uma vez, a extrema brevidade do nosso resumo no deve levar o leitor
a imaginar que para Marx e Lukcs tenhamos aqui qualquer relao de necessidade
linear, mecnica ou imediata.
4) Neste preciso sentido, a relao entre teleologia e causalidade peculiar
praxis humana (cuja forma mais primitiva o trabalho, entendido, na tradio
marxiana, como o intercmbio orgnico do homem com a natureza) que funda o
processo de conhecimento. Contudo, medida em que as sociedades vo se
desenvolvendo, este tambm vai se tornando cada vez mais complexo. Assim que,
de forma cada vez mais intensa, outros complexos sociais como a ideologia, os
valores, as lutas de classe, etc., terminam interferindo tanto na escolha das alternativas
a serem objetivadas, como tambm nas questes que sero imediatamente dirigidas ao
desconhecido para serem investigadas. por isso que todo processo de conhecimento,
seja ele qual for, sempre 'comprometido' com alguma concepo de mundo no h
nada de neutro nesta esfera. Se isto por vezes compromete a validade do
conhecimento produzido (por exemplo, a tecnologia de fabricao de armas
atmicas), ou mesmo a sua veracidade (por exemplo, as teorias fascistas da raa
superior ou ento o darwnismo social), no resta a menor dvida que, por si s, este
comprometimento no suficiente para tornar o conhecimento falso. O fato de um
antibitico ter sido fabricado visando o lucro no significa que seu efeito seja mera
iluso, ou que a cincia nele empregada seja falsa.
Estes so, com a brevidade a mais extrema, repetimos, os pontos fundamentais
da tese lukcsiana-marxiana: afirma o trabalho como a determinao fundante da
produo do conhecimento e, ao mesmo tempo, recusa peremptoriamente a reduo
desta processualidade apenas ao processo de trabalho. Fundada pelo trabalho, a esfera
gnosiolgica, com o desenvolvimento do mundo dos homens, termina por sofrer
influncias e a receber determinaes de complexos sociais to distintos do trabalho
quanto a ideologia, a luta de classes, os interesses econmicos, os valores morais,
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26
ticos, estticos, etc., etc.
com base nesta concepo da relao entre homem e natureza, entre a
subjetividade e a objetividade, que Lukcs articula as suas reflexes acerca do mtodo
em Marx. A esfera do conhecimento fundada pelo trabalho e, de modo genrico e no
sentido o mais amplo, tem nele o momento predominante (bergreifendes Moment)
do seu desenvolvimento. A questo metodolgica se relaciona com todo esse
complexo e no poderia existir fora dele. Contudo, os fundamentos ontolgicos das
necessidades a serem atendidas pelos procedimentos metodolgicos so outros que
no o trabalho, como argumentamos acima.
Isto posto, podemos passar diretamente concluso.
7. CONCLUSO
O que particulariza a concepo metodolgica de Lukcs ter na ontologia
seu fundamento ltimo. O solo resolutivo, no plano da teoria, a totalidade real
(realen Totalitt). O ser, enquanto objeto, impe subjetividade procedimentos para
o desvelamento de seus nexos. Para que a subjetividade possa colher as
determinaes do real sob a forma de teoria, necessrio que ultrapasse a
imediaticidade das representaes meramente dadas e que, por meio de abstraes
isoladoras decomponha analiticamente o real e, em seguida, opere a sntese que
conduz ao universal concreto.
Este procedimento analtico-abstrato tem o seu complemento necessrio na
prioridade da totalidade e na abordagem gentica. O caminho de volta pressupe
uma cooperao permanente entre o procedimento histrico (gentico) e o
procedimento abstrato-sistematizante, que elucida as leis e as tendncias.25
No h pois, em Lukcs, um abismo entre mtodo e ontologia. Os
procedimentos metodolgicos, tendo em vista orientar a postura do sujeito
cognoscente frente ao desconhecido, se apoiam na sistematizao das determinaes
ontolgicas mais gerais alcanadas a cada momento histrico. O conhecimento j
adquirido do ser em geral o fundamento das indicaes metodolgicas para o
mergulho no desconhecido.
25 Lukcs, G. Per una Ontologia..., op. cit., vol. I, p. 286.
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Este fornecer indicaes, todavia, nada tem de neutro: permeado pelas
disputas no interior da sociedade e, na sociabilidade contempornea, acima de tudo
pela luta de classes. A ideologia na acepo lukcsiana de conjunto de concepes
que permitem aos diferentes grupos e classes sociais se organizarem para a disputa da
direo da sociedade26
joga aqui um papel importante, assim como a moral e a tica.
A discusso desta relao entre ontologia, cincia, tica e moral, todavia, nos
conduziria para alm dos limites propostos para este artigo. Por isso, nos limitaremos
a estas indicaes as mais gerais apenas para salientar o quanto, para Lukcs, as
consideraes metodolgicas so fundadas na ontologia. E o so de tal modo que o
complexo problemtico da metodologia, longe de compor um campo isolado, apenas
tm existncia concreta em intrnseca determinao reflexiva tanto com a ontologia,
como com a ideologia e, por meio dela, com a poltica, a filosofia, a moral, a tica,
etc. Que isto representa a mais radical ruptura concebvel com o positivismo e o
marxismo vulgar, bem como com pensadores contemporneos como Althusser e
Habermas, algo que no requer maior demonstrao ainda que a explorao dos
meandros desta ruptura, caso a caso, seja um objeto de investigao da maior
relevncia e em larga medida ainda inexplorado.
26 Sobre a categoria da Ideologia em Lukcs cf. a competente dissertao de mestrado de
Gilmasa Macedo, Trabalho e Servio Social, UFPE, 1998. Tambm, Vaisman, E. A ideologia e sua
determinao ontolgica, Ensaio, 17/18, S. Paulo, 1989.