i-2- lessa - lukacs e o m todo

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1 I.4 LUKÁCS: O MÉTODO E SEU FUNDAMENTO ONTOLÓGICO * Sérgio Lessa ** A discussão acerca do método no interior do marxismo produziu uma vasta e variada bibliografia. As mais diferentes vertentes e as mais diferentes correntes políticas tendem a ver no método o campo resolutivo último de suas divergências ou confluências. Não raro temos o método afirmado como um organon que seria a chave da verdade, outras vezes o método quase é reduzido à lógica formal-aristotélica: tal como a fala possui uma gramática, o pensamento teria nas leis lógicas o seu compêndio de regras que asseguraria sua formalização correta, e portanto, a veracidade do pensado. O argumento de autoridade, ao fim e ao cabo, termina sempre surgindo neste contexto: o método 'verdadeiro' seria a garantida da correção, ou da veracidade, do conhecimento. Foi assim que, com o passar do século XX, o método vai se transformando em a garantia da verdade. Contudo, no horizonte marxiano (se Lukács estiver correto), esta é uma proposição rigorosamente inaceitável. Por duas razões: 1) Por um lado, porque, se o real possui uma objetividade própria, distinta da consciência, não há nenhuma razão para que o real (e não o método) não seja o critério da verdade. Fazer o contrário, deduzir a veracidade do conhecimento da esfera metodológica, produz dificuldades insuperáveis. Antes de mais nada porque muitas vezes do mesmo método verdadeirofreqüentemente decorrem afirmações e conclusões muito distintas. Isto ocorre em todas as áreas do conhecimento, contudo * Publicado em Montaño, C; Bastos, R. l. (orgs) Conhecimento e Sociedade ensaios marxistas. Outras Expressões, São Paulo, 2013. **

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  • 1

    I.4

    LUKCS: O MTODO E SEU

    FUNDAMENTO ONTOLGICO *

    Srgio Lessa **

    A discusso acerca do mtodo no interior do marxismo produziu uma vasta e

    variada bibliografia. As mais diferentes vertentes e as mais diferentes correntes

    polticas tendem a ver no mtodo o campo resolutivo ltimo de suas divergncias ou

    confluncias. No raro temos o mtodo afirmado como um organon que seria a chave

    da verdade, outras vezes o mtodo quase reduzido lgica formal-aristotlica: tal

    como a fala possui uma gramtica, o pensamento teria nas leis lgicas o seu

    compndio de regras que asseguraria sua formalizao correta, e portanto, a

    veracidade do pensado. O argumento de autoridade, ao fim e ao cabo, termina sempre

    surgindo neste contexto: o mtodo 'verdadeiro' seria a garantida da correo, ou da

    veracidade, do conhecimento.

    Foi assim que, com o passar do sculo XX, o mtodo vai se transformando em

    a garantia da verdade. Contudo, no horizonte marxiano (se Lukcs estiver correto),

    esta uma proposio rigorosamente inaceitvel. Por duas razes:

    1) Por um lado, porque, se o real possui uma objetividade prpria, distinta da

    conscincia, no h nenhuma razo para que o real (e no o mtodo) no seja o

    critrio da verdade. Fazer o contrrio, deduzir a veracidade do conhecimento da esfera

    metodolgica, produz dificuldades insuperveis. Antes de mais nada porque muitas

    vezes do mesmo mtodo verdadeiro freqentemente decorrem afirmaes e

    concluses muito distintas. Isto ocorre em todas as reas do conhecimento, contudo

    * Publicado em Montao, C; Bastos, R. l. (orgs) Conhecimento e Sociedade ensaios

    marxistas. Outras Expresses, So Paulo, 2013. **

  • 2

    na poltica, dada s suas especificidades, muito grande a freqncia e a intensidade

    com que propostas muito diferentes tm o mesmo solo metodolgico.

    Em poucas palavras, como no processo de inteleco do real h muito mais

    que os princpios metodolgicos, se adotarmos o mtodo como a pedra de toque do

    conhecimento verdadeiro criaremos uma enorme confuso. E, com esta confuso, no

    apenas a investigao do real prejudicada como ainda deixamos de encaminhar a

    resoluo do que a reflexo metodolgica pode de fato solucionar as questes de

    mtodo.

    2) Alm de o real, e no o mtodo, ser o critrio da verdade, h ainda uma

    segunda razo porque a proposio oposta incompatvel com o universo marxiano:

    na enorme maioria das vezes termina por conduzir concepo segundo a qual o

    objeto do conhecimento uma pura construo da subjetividade. Em sendo assim, o

    que assumimos por realidade nada mais seria que uma imagem criada por ns, em

    nosso prprio processo gnosiolgico: com isto estamos mais propriamente no campo

    kantiano-fenomenolgico que no campo marxiano.

    Se Lukcs estiver correto, repetimos, a esfera resolutiva do problema do

    mtodo dada pela sua funo social1 e no, como se quer na maioria das vezes, pela

    esfera lgico-dedutiva.

    Gostaramos, desde j, de advertir o leitor para dois aspectos muito

    importantes. O primeiro que este procedimento buscar a determinao da

    particularidade dos complexos sociais em suas funes sociais tpico do ltimo

    Lukcs, em especial de Para Uma Ontologia do Ser Social.2 Esta obra, por um lado,

    no apenas ainda est em grande medida inexplorada, como de forma alguma pode

    ser considerada consensual entre os marxistas. No podemos, aqui, nos deter sobre a

    polmica que a cerca, mas assinalar este fato nos permite salientar que estamos

    1 Funo social, aqui, num sentido em tudo distinto do funcionalismo, como o

    desenvolvimento do texto deixar claro ao leitor. Aproveitaremos esta primeira nota para deixar

    consignado nosso dbito para com Elisabete Borgianni, pela leitura cuidadosa e sugestes que

    melhoraram em muito o texto.

    2 Lukcs, G. Lukcs, G. Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Luchterhand Verlag,

    1986. Lukcs, G. Prolegomena zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. Prinzipienfragen einer

    heute mglich gewordenen Ontologie. Luchterhand Verlag, 1986. H tradues italianas destas obras,

    Per una Ontologia dellEssere Sociale, E. Riuniti, Roma, 1976-1981; e Prolegomini allOntologia

    dellEssere Sociale. Questioni di principio di un'ontologia oggi divenuta possibile. Ed. Guerini e

    Associati, Npoles, 1990. No Centro de Documentao Lukcs, da Universidade Federal de Alagoas

    (Biblioteca Central, UFAL, Macei, Alagoas), podem ser obtidos os captulos desta obra j traduzidos

    para o portugus.

  • 3

    entrando em um terreno ainda pouco estudado e polmico.

    Em segundo lugar que, no interior do prprio Lukcs maduro, h indcios

    bastantes fortes de uma divergncia importante no tratamento que confere ao mtodo.

    No 'Prefcio' Histria e Conscincia de Classe de 1967, ano em que j estava

    envolvido na redao da Ontologia, as suas reafirmaes de algumas das teses

    metodolgicas de juventude parecem ser incompatveis com suas teorizaes na

    Ontologia.3 Novamente, contudo, algumas dificuldades se interpem para uma

    resoluo conclusiva dessas questes: no h nenhum estudo resolutivo das mesmas

    e, tal como Marx, Lukcs tambm no nos deixou nenhum tratado sistemtico acerca

    do mtodo.

    Tendo em mente estas duas ressalvas, o que nos propomos neste artigo um

    objetivo muito delimitado: expor ao leitor no especialista o que seria o fundamento

    ontolgico do mtodo em Marx, segundo o ltimo Lukcs.

    1. A FUNO SOCIAL DO MTODO

    O mtodo cumpre uma funo social muito especfica: frente ao

    desconhecido, nos indica como procedermos para incorpor-lo, com a maior

    eficincia possvel, ao j conhecido. Ao faz-lo, contudo, necessariamente ocorrem

    dois fenmenos aparentemente paradoxais.

    Por um lado, ao alargarmos o campo do conhecido, terminamos por produzir

    uma nova fronteira com o desconhecido. Tal como o que conhecemos uma

    produo histrico-social, o desconhecido a ser investigado tambm o ; ao menos no

    sentido que s podemos nos dirigir ao desconhecido a partir daquilo que j

    conhecemos. Esta relao entre o j conhecido e o ainda por ser conhecido no de

    modo alguma necessariamente linear e contnua, as mais distintas relaes so aqui

    possveis contudo, esta relao mais geral entre o conhecido como a base a partir do

    3 Para ficarmos apenas no exemplo mais conhecido, a tese central de o ensaio 'O que o

    marxismo ortodoxo', segundo a qual mesmo que a histria comprovasse serem falsas todas as

    afirmaes e teses isoladas de Marx ainda assim a validade de seu mtodo permaneceria intocada,

    dificilmente poderia ser validade no contexto de sua Ontologia. Neste ltimo escrito h elementos e

    indicaes suficientes a partir da qual poder-se-ia argumentar que um procedimento metodolgico que

    conduz a teses e afirmaes falsas, que conduz a um reflexo incorreto do real, no poderia ser um

    procedimento metodolgico acertado, pois a validade do mtodo no reside nele prprio enquanto tal,

    mas em sua capacidade de auxiliar na construo, pela subjetividade, de um reflexo correto do real.

  • 4

    qual investigamos o desconhecido se mantm sempre vlida. Ao conhecermos algo,

    portanto, terminamos tambm por sinalizar um novo desconhecido a ser investigado.

    Conhecimento e desconhecido a ser investigado so plos distintos de uma mesma

    processualidade, qual seja, a trajetria histrico-social da humanidade no sentido de

    reproduzir na conscincia, de uma forma cada vez mais aproximada, as determinaes

    do real.4

    Nesta relao entre o j conhecido e o ainda desconhecido encontramos o

    segundo paradoxo aparente: quando iniciamos a investigao de algo desconhecido,

    jamais poderemos ter certeza a priori de quais procedimentos investigativos

    (portanto, de qual mtodo) se revelar o mais adequado para conhec-lo. Podemos

    fazer, com base no que j conhecemos, com base nas experincias com objetos que

    nos parecem semelhantes, etc., previses e antecipaes de qual provavelmente ser o

    mtodo mais adequado. Contudo, a certeza apenas poder vir a posteriori, aps o

    conhecimento do objeto. Neste momento, contudo, em que o objeto j desvelado nos

    permite ter certeza de qual o melhor mtodo para conhec-lo, o mtodo se torna

    suprfluo: se conhecemos o objeto no tem cabimento investig-lo novamente.5

    O mtodo, assim, exibe uma certa dimenso de particularidade: cada objeto

    requer um mtodo particular para ser conhecido. Em outras palavras, a descoberta de

    cada objeto implicar sempre em uma investigao que jamais ser idntica

    nenhuma outra na mesma medida em que jamais haver dois entes exatamente

    iguais. Contudo, como nenhum objeto existe fora de uma totalidade6, a relao

    4 Um parnteses: afirmar a existncia do desconhecido em nada nos aproxima da tese kantiana

    da incognoscibilidade da coisa em-si. De um lado temos a tese marxiana da absoluta historicidade do

    objeto e do sujeito: como nossa relao com o real evolui incessantemente porque tanto os sujeitos

    como o mundo objetivo so processualidades em constante transformao, inevitvel que sempre

    tenhamos algo novo a conhecer. Por isso o conhecimento um processo de aproximao inesgotvel.

    Tal postura, evidentemente, nada tem a ver com a afirmao kantiano-fenomenolgica de que a coisa

    em-si, o ser-precisamente-assim existente, impossvel de ser conhecido. H uma absoluta antinomia

    entre as duas teses.

    5 Estas palavras devem ser tomadas com um certo cuidado pelo leitor. Pois, toda vez que

    conhecemos algo novo, novas questes podem ser colocadas para todos os nossos conhecimentos

    anteriores, de tal modo que jamais haver um objeto j totalmente conhecido. Ou, como a relao entre

    o homem e seu ambiente absolutamente histrica, no h como ela, em qualquer de suas dimenses,

    adquirir um carter esttico, definitivo.

    6 Marx, nos Manuscritos de 1844, afirma que Um ser no objetivo um no ser (Ein

    ungegestndliches Wesen ist ein Unwesen) Die Frhscriften, Alfred Krner Verlag, 1971, p. 274. H

    uma traduo espanhola, da Alianza Editorial, Madrid, 1985, p. 195, que, contudo, traz a passagem de

    forma um pouco diferente: Um ser no objetivo es um no-ser, un absurdo. Com o acrscimo, un

    absurdo, ficamos sabendo do fato de o tradutor concordar com a tese marxiana, o que no pode de

    deixar de nos alegrar. Mas, como h uma distncia entre o texto e o tradutor, acrscimos desse tipo so

  • 5

    objetiva entre sua particularidade e a generalidade a qual pertence faz com que o

    mtodo que se revelou adequado ao seu conhecimento contenha elementos comuns

    aos procedimentos metodolgicos que se revelaro corretos para a compreenso de

    outros objetos no futuro. Nesse sentido e medida possvel a elevao das

    experincias investigativas passadas a uma tematizao genrica acerca do mtodo.

    Ou seja, se o universal a universalidade de singulares, e os singulares apenas podem

    ser singularidades de um universal a relao entre o mtodo adequado a cada ente

    singular no pode deixar de ser uma particularizao do mtodo adequado

    generalidade a qual pertence o ente em questo. E vice-versa.

    Detenhamo-nos sobre esta questo, pois ela da maior importncia.

    A totalidade de tudo que existe7 compe um complexo unitrio. O inorgnico

    e a vida se articulam de vrias maneiras, de tal modo que sem o primeiro a ltima

    impossvel. Do mesmo modo, natureza e mundo dos homens esto de tal forma

    articulados que sem aquela a sociabilidade sequer poderia existir. E, ainda, no h

    relao social, por mais singular, que no faa parte (mesmo que pelas mediaes

    mais distantes) da histria da humanidade. Tudo o que existe faz parte de uma e

    mesma totalidade.

    Contudo, o carter de totalidade complexa consubstanciada pelo ser em nada

    se ope afirmao da diferena entre os complexos singulares e universais. Pelo

    contrrio, exatamente a sntese dessas diferenas que funda esta mesma totalidade

    por ltimo unitria; o complexo apenas pode ser complexo se suas partes

    constituintes, assim como as relaes entre as mesmas, forem distintas, diferentes

    contraditrias. A totalidade s pode ser por ltimo unitria se for composta por

    elementos singulares que sejam imediatamente diferentes entre si, contraditrios.

    Esta constatao ontolgica se faz presente, na reflexo metodolgica, pelo

    reconhecimento de que as determinaes e categorias comuns a um dado setor do real

    ou, se nos referirmos mxima generalidade, totalidade enquanto tal possam ser

    refletidas em procedimentos metodolgicos comuns s investigaes de seus objetos.

    Assim, por exemplo, ao estudarmos a esfera da vida, teremos alguns procedimentos

    metodolgicos peculiares biologia e que, de algum modo, provavelmente estaro

    presentes na totalidade das investigaes nessa esfera. Contudo, pela mesma razo,

    sempre para se lamentar.

    7 Tudo o que existe nada mais que o ser em geral.

  • 6

    tais procedimentos peculiares biologia sero muito distintos daqueles empregados

    pela geologia. E, num provvel crescendo de diferenciao, sero por fim, quase8

    inaplicveis a um evento social como a Revoluo Francesa.

    Em outras palavras, se verdade que quanto mais tendente singularidade for

    o objeto sob investigao, mais particular e especfico o mtodo requerido, o contrrio

    tambm verdadeiro. Ou seja, quanto mais universal o objeto investigado, mais

    genrica tende a ser a validade dos procedimentos metodolgicos empregados. Assim,

    se verdade que podemos falar de metodologias especficas a cada uma das esferas

    do real, tambm podemos falar de uma reflexo metodolgica a mais universal, que

    trate dos procedimentos metodolgicos os mais universais os quais, portanto,

    estaro presentes em todas as investigaes a serem realizadas.

    Nesse preciso sentido e medida, se o carter peculiar do objeto que

    determina a particularidade do mtodo a ele adequado (os objetos vivos e a biologia,

    o ser mineral e a geologia, o ser social e a histria do mundo dos homens, etc.), so as

    determinaes mais genricas do complexo composto por todo o existente as

    determinaes mais gerais da totalidade de tudo o que existe que determinam a

    metodologia no seu plano o mais universal. E, se o estudo das determinaes mais

    genrico-universais do existente realizada pela ontologia, ento, neste nvel de mais

    ampla universalidade, ser a ontologia o fundamento do mtodo. Ou, para dizer de

    outro modo, se o inorgnico, a vida, assim como o ser social, so partcipes de uma

    mesma totalidade, h elementos metodolgicos comuns a todos estes distintos

    objetos. E, tanto em se tratando de objetos mais particulares ou do ser na sua

    dimenso a mais universal, algo podemos afirmar: so as determinaes do objeto sob

    investigao que determinaro, ao fim e ao cabo, quais os procedimentos

    metodolgicos mais adequados para seu desvelamento. Em outras palavras, ser

    sempre a esfera ontolgica (as determinaes mais gerais do objeto sob investigao)

    que determinar a metodologia.

    Aqui, qualquer fixao rgida terminaria por falsificar a concepo lukcsiana.

    Tal como todo novo conhecimento do real em alguma medida modifica a relao do

    homem com o seu ambiente, provoca do mesmo modo uma alterao na experincia

    acumulada de investigao do real e, por esta mediao, uma necessria modificao

    8 Quase, e no absolutamente, porque no plano da mxima generalidade certamente

    haver elementos ontolgicos (e, portanto, metodolgicos) comuns aos dois exemplos.

  • 7

    nas teorizaes acerca do mtodo.

    J nesta primeira e mais superficial abordagem, o mtodo, assim como a

    linguagem, a ideologia, etc. se revela como um dos complexos mais dinmicos do ser

    social. Sua funo social, sistematizar as experincias de absoro do desconhecido

    na esfera do j conhecido de modo a aumentar a eficincia de aquisio de novos

    conhecimentos, faz com que necessariamente incorpore todas as novidades que se

    apresentam na relao historicamente construda do homem com seu ambiente, em

    todas as suas dimenses. Esta , possivelmente, uma das maiores fontes de

    dificuldades para a sua tematizao terica: a rigidez das definies e conceitos

    tericos termina por ser uma fonte a mais de problemas para o tratamento de

    complexos sociais to fludos ( o que no significa que sejam indefinidos). Nenhuma

    rigidez aqui admissvel, contudo, sem categorias tericas claramente definidas no

    h cincia possvel. Veremos como Lukcs tenda dar conta deste enorme desafio,

    sempre a partir de Marx.

    2. MTODO E ONTOLOGIA9

    H uma passagem em Para uma Ontologia ... em que Lukcs afirma:

    Naturalmente no devemos esquecer que todo grau de ser, no seu todo

    e nos detalhes, tem carter de complexo, o que quer dizer que as suas

    categorias, mesmo as mais centrais e determinantes, podem ser

    compreendidas adequadamente apenas do interior e a partir da

    totalidade complexa do nvel de ser do qual se trata10

    Vejamos o que temos aqui: uma afirmao ontolgica (todo grau de ser ...

    tem carter de complexo) na qual se apoia uma afirmao metodolgica (suas

    categorias ... podem ser compreendidas ... apenas no interior e a partir da totalidade).

    Deixando de lado as conseqncias ontolgicas, o que nos interessa o fato de

    Lukcs reclamar como apoio do seu procedimento metodolgico, uma afirmao

    ontolgica a mais universal: dado o carter de complexo do ser, a totalidade

    complexa o solo exclusivo (apenas) a partir do qual, e no qual, as categorias

    9 Um tratamento mais circunstanciado de algumas das questes que sero aqui abordadas

    pode ser encontrado em Lessa, S. Lukcs, ontologia e mtodo: em busca de um pesquisador(a)

    interessado(a), Praia Vermelha, n.2, Ps-graduao em Servio Social, UFRJ, 1998.

    10 Lukcs, G. Per una Ontologia ..., op. cit., vol. II*, pg. 11. Para evitar um excessivo nmero

    de notas, indicaremos entre parnteses, no corpo do texto, a referncia ao nmero de pgina das

  • 8

    podem ser compreendidas adequadamente. No mesmo sentido, Lukcs afirmar

    mais a frente: /.../ o contexto total do complexo em questo sempre primrio em

    relao aos seus prprios elementos.(57)

    A prioridade metodolgica da categoria da totalidade , nessa medida,

    ontologicamente fundada. Um argumento ontolgico o ser consubstancia uma

    totalidade complexa o fundamento ltimo de seu argumento metodolgico :

    apenas no interior e a partir da totalidade complexa as categorias /.../ podem ser

    compreendidas adequadamente.

    Algo anlogo encontramos em Para uma Ontologia... quando se trata de

    fundamentar a abordagem gentica. Neste caso, inicia Lukcs por argumentar que a

    totalidade complexa porque histrica. Seu desenvolvimento histrico se d no

    sentido da gnese e desenvolvimento de categorias mediadoras que tornam cada vez

    mais heterognea e complexa a estrutura originria do ser, s vezes por meio de

    rupturas ontolgicas. (Pensemos nas passagens do ser inorgnico vida e,

    posteriormente, na gnese do ser social). Como vimos, esta crescente diferenciao

    ontolgica no implica no desaparecimento do carter de totalidade do ser, mas

    apenas que sua unitariedade ltima se afirma pela mediao de complexos antes

    inexistentes. O que ocorre, to somente (ainda que isto de modo algum seja pouco)

    que, tal como os complexos, a unitariedade da totalidade tambm se desenvolve,

    deixando de ser simples para ser crescentemente complexa.

    Portanto, em Lukcs, a unitariedade ontolgica do ser, pressuposta na noo

    de totalidade no se contrape, absolutamente, ao devir: essencialmente histrica11

    .

    Em suma: o carter unitrio da totalidade se afirma em todos os momentos do

    seu desenvolvimento. Mas nunca se afirma exatamente da mesma forma. A crescente

    complexificao da sua substncia aumenta e intensifica as mediaes que, por um

    lado, a articulam em uma unitariedade ltima, e, por outro, possibilitam a gnese e o

    desenvolvimento de categorias e complexos crescentemente diferenciados (tanto

    internamente como entre si), categorias e complexos estes que elevam a um patamar

    superior a unitariedade primria da totalidade em questo. Ser, totalidade e devir ao

    citaes desse volume da Ontologia.

    11 Precisamente neste sentido, no captulo dedicado a Marx de sua Ontologia, Lukcs afirma

    que a substancialidade no uma relao esttico-estacionria de autoconservao que se contrape

    em termos rgidos e exclusivos ao processo do devir, ela, pelo contrrio, se conserva na sua essncia,

    mas processualmente, transformando-se no processo, renovando-se, participando do processo.(vol. I,

    pg. 394)

  • 9

    contrrio das ontologias tradicionais12 esto, em Lukcs, rigorosamente articulados:

    o ser uma totalidade em desenvolvimento e, a histria, em sua acepo mais

    genrica, o movimento do ser.

    Segundo Lukcs, dessa moldura ontolgica decorrem alm do predomnio

    da totalidade dois elementos metodolgicos fundamentais e intimamente

    articulados: a abordagem gentica e a crtica radical das metodologias que deduzem o

    real a partir de conceitos terico-sistemticos. Vamos a cada um desses elementos.

    Se o carter de totalidade complexa do ser impe a prioridade metodolgica

    da categoria da totalidade, sua historicidade igualmente impe a exigncia da

    abordagem gentica. Esta significa

    elucidar a estrutura originria que representa o ponto de partida para as formas

    subseqentes, o seu fundamento insuprimvel, mas ao mesmo tempo tornar

    visveis tambm as diferenas qualitativas que no curso de desenvolvimento

    social posterior acompanham com espontnea inevitabilidade e necessariamente

    modificam de maneira decisiva, at em relao a determinaes importantes, a

    estrutura originria do fenmeno. (111-2)

    Sucintamente, a abordagem gentica significa elucidar o fundamento

    insuprimvel, a estrutura originria, das formas subseqentes de modo a,

    concomitantemente, desvendar as diferenciaes qualitativas, no plano do real, que

    operam no desdobramento do objeto sob investigao. Ou seja, no estudo de qualquer

    categoria, seja ela mais genrica ou mais particular, aspecto decisivo a descoberta da

    processualidade histrica que articula a sua gnese com a sua configurao presente.

    Conhecer o objeto significa tambm conhecer o processo histrico que lhe

    consubstancia e no apenas a sua forma presente, como se esta no possusse

    histria.

    A abordagem gentica lukcsiana o exato contraponto s metodologias que

    propem a construo do real a partir de conceitos tericos a priori. Nos referimos

    aqui a um amplo leque que se estende desde o neopositivismo mais radical, com sua

    matematizao do real, ao idealismo de corte hegeliano, passando pelo marxismo

    vulgar e por autores como Althusser, Bourdieu e Passeron. Em que pesem as

    significativas diferenas entre estas correntes tericas, diferenas estas que no

    desejamos velar de modo algum, no menos verdadeiro que estas diferenas no

    esmaecem o fato de, em todas elas, o ponto de partida metodolgico ser uma deduo

    12 Cf. Lessa, S. Lukcs: ontologia e historicidade. Rev. Trans/forma/ao, UNESP, vol. 19,

  • 10

    do real a partir de conceitos tericos abstratamente construdos.13

    A abordagem gentica, em contrapartida, implica na recusa de toda

    'deduo lgica' da estrutura, do ordenamento das categorias /.../ partindo do seu

    conceito geral considerado em abstrato.(90) Pois, ao se deduzir logicamente o

    real(112), termina-se por substituir a gnese histrico-social das categorias por uma

    hierarquia conceitual-sistemtica.(90) Perdido o acesso processualidade gentica e

    histria que conduziu do mais simples ao complexo, as fases de desenvolvimento

    no podem mais ser articuladas entre si pelas suas ligaes objetivas, ontolgicas.

    Pelo contrrio, apenas podem ser articuladas a partir de um ponto de vista

    valorativo arbitrariamente escolhido, de modo puramente ideal, e aplicado do

    exterior sobre /.../ a processualidade histrico-real.(168) Com esse procedimento

    tanto a essncia concreta como a sua interao concreta terminam

    falsificadas.(90) O movimento histrico-concreto se converte no movimento lgico

    das categorias, a histria substituda pela lgica e o movimento do real deixa de ser

    apreendido pela conscincia para ser por ela deduzido.

    Exatamente pelos mesmo motivos, continua o filsofo hngaro, devemos

    recusar a ontologia materialista vulgar que entende as categorias mais complexas

    como simples produtos mecnicos das [categorias] elementares, fundantes. Esta

    deduo direta das formas mais desenvolvidas de suas formas primitivas cancela a

    complexa articulao entre o passado e o presente, Pois, se verdade que o presente

    tem seu fundamento no passado, no menos verdade que apenas enquanto campo de

    inmeras possibilidades futuras pode ser o passado fundamento do presente. No h

    nenhuma fatalidade histrica, nenhuma determinao direta que imponha, digamos, s

    sociedades primitivas, uma nica e exclusiva direo de desenvolvimento histrico no

    1996.

    13 Sendo o mais breve possvel, o neopositivismo extrema a matematizao da realidade at

    que as relaes matemticas passem a ser o prprio real, ou em outras palavras, o real passe a ser

    expresso das relaes matemticas (cf. Lukcs, G. Neopositivismo in Per una Ontologia, op. cit.,

    vol I, pp. 25 e ss. H traduo para o portugus pelo Prof. Mario Duayer (UFF)); o idealismo de corte

    hegeliano com forte influncia (a histria tem suas ironias) sobre o marxismo vulgar pressupe uma

    trajetria histrica j inscrita no seu incio, enquadrando o movimento ontolgico em uma estrutura

    terica abstratamente deduzida e determinada (Lukcs, G. A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel,

    trad. Carlos Nelson Coutinho, Ed. Cincias Humanas, So Paulo, 1979); Bourdieu e Passeron, em sua

    conhecida anlise acerca da reproduo social, partem de um conceito a priori (o arbitrrio cultural e a

    violncia simblica) para a construo do seu objeto de estudo (a reproduo social) (cf. Lessa, S.

    Introduo e Concluso in Sociabilidade e Individuao, Edufal, 1995) e, por fim, Althusser,

    pressupe o objeto do conhecimento como um construto da subjetividade (Althuser, L. De El Capital

    a la filosofia de Marx in Para leer El Capital, Siglo XXI, 1969).

  • 11

    sentido do capitalismo. Tanto assim que esta direo de desenvolvimento se

    concretizou na histria de apenas algumas poucas formaes sociais e, se hoje o

    capitalismo a formao social dominante em escala planetria, em nada altera este

    fato.

    Como no h nenhuma ligao imediata entre as formas mais simples e as

    mais desenvolvidas de sociabilidade, substituir a complexa processualidade histrica,

    com todas as suas mediaes, por uma seqncia de absoluta necessidade lgica, tal

    como faz o marxismo vulgar impede /.../ a compreenso da especificidade das

    categorias mais complexas e cria /.../ uma falsa hierarquia, que se pretende

    ontolgica, segundo a qual somente s categorias elementares pode ser atribudo um

    ser em sentido prprio.(90) Para sermos breves, impe a distino, tpica do

    stalinismo, que faz da infra-estrutura social o verdadeiro ser, e da

    superestrutura uma dimenso decorrente, causada pelo ser de sua base material.

    Impe, em suma, uma distino do estatuto ontolgico entre a essncia (movimento

    da tcnica) e o fenomnico (a esfera superestrutural) do mundo dos homens,

    conduzindo ao economicismo o mais tosco.

    Em todas estas vertentes, mutatis mutandis, o resultado semelhante: o

    movimento histrico das categorias reais substitudo pelo movimento lgico das

    categorias do conhecimento. Por esta rota rapidamente se chega ao idealismo14

    .

    Sumariemos nosso percurso at aqui: para Lukcs, o carter de totalidade

    complexa do ser impe metodologicamente a prioridade da categoria da totalidade.

    Sua historicidade requer a abordagem gentica. Fixemos este ponto: estes dois

    requisitos metodolgicos fundamentais de Lukcs decorrem de suas categorias

    ontolgicas centrais.

    3. O PERCURSO DE IDA E VOLTA

    Ao lado da abordagem gentica e do predomnio da totalidade, o terceiro dos

    elementos metodolgicos decisivos assim exposto por Lukcs:

    para deslindar a questo [ele se refere ao trabalho enquanto categoria

    fundante do mundo dos homens] devemos nos referir novamente ao

    14 Cf., por exemplo, a arguta crtica de E. Thompson a Althusser em A Misria da Teoria, Ed.

    Zahar, 1981 e, tb., o indispensvel texto de Carlos Nelson Coutinho, infelizmente esgotado h dcadas,

    O Estruturalismo e a Misria da Razo, Ed. Paz e Terra, 1972.

  • 12

    mtodo das duas vias de Marx, j por ns analisado: primeiro,

    decompor analtico-abstratamente o novo complexo de ser para poder,

    com o fundamento assim obtido, retornar (ou seja, avanar at) ao

    complexo do ser social, no s enquanto dado e portanto simplesmente

    representado, mas agora tambm concebido na sua totalidade real. (11)

    Ao contrrio dos anteriores, este argumento imediatamente metodolgico: a

    investigao deve decompor de forma analtico-abstrata a representao do complexo

    de ser e, com base nos elementos assim obtidos, avanar at o complexo do ser

    social concebido na sua totalidade real (realen Totalitt). Veremos, contudo, que

    tanto a necessidade quanto a forma deste movimento de ida e de volta so

    fundamentadas pelas exigncias que o real coloca para ser desvelado pela

    subjetividade.

    Imaginemos um exemplo muito radical, ainda que de modo algum absurdo:

    um investigador, em um dado momento de sua pesquisa, se depara com um resultado

    inesperado, completamente desconhecido. Algo to indito quanto, digamos assim,

    um metal capaz de se mover por si prprio.15

    O primeiro momento desta relao com o novo desconhecido, ao lado da

    sensao de surpresa, a constatao ontolgica de se estar frente a algo claramente

    distinto de tudo o que temos ao nosso redor. Esse algo desconhecido j possui,

    portanto, uma identidade prpria: ele diferente de tudo o que conhecemos, se

    destaca enquanto o desconhecido no interior daquilo que conhecemos. Esta

    identidade j nos possibilita um passo decisivo, qual seja, transform-lo em um objeto

    de pesquisa especfico; nos permite singulariz-lo enquanto este desconhecido.

    Contudo, esta identidade se afirma ainda, digamos assim, de maneira

    essencialmente negativa: apenas sabemos que o objeto misterioso no se assemelha

    com nada que conhecemos, podemos portanto identific-lo apenas pela afirmao de

    15 O fato de termos optado por um exemplo da natureza inorgnica no possui, nesta

    discusso mais genrica do mtodo, qualquer importncia. Para a investigao dos fundamentos

    ontolgicos mais gerais da problemtica metodolgica, as diferenas entre as esferas ontolgicas

    (inorgnica, vida e sociabilidade) ainda no so decisivas. Por isso, neste momento do texto em que

    exploraremos o mtodo das duas vias, poderamos perfeitamente recorrer a exemplos da vida social

    ou da vida biolgica. Ao optarmos pelo exemplo em questo, no pretendemos sugerir que haja uma

    identidade ou distino absolutas entre a natureza e a sociabilidade, identidade e distino absolutas

    das quais resultariam identidade ou distino (tambm absolutas) entre as suas metodologias

    especficas. O fato de o mtodo das duas vias, por exemplo, se aplicar tanto natureza quanto ao ser

    social no significa que, tal como querem alguns positivistas, o mtodo das cincias naturais possa ser

    aplicvel s cincias humanas. Ou que, por outro lado, esta diferena entre as cincias humanas e as

    naturais impea que haja elementos metodolgicos comuns entre as cincias da natureza e a cincia

    social.

  • 13

    que ele no nada do que j conhecemos. Afirmamos sua identidade pela sua relao

    de negao com tudo o que conhecemos, e no pelas suas caractersticas imanentes.

    Estas apenas podero ser afirmadas aps termos minimamente (e este minimamente

    varia muito, caso a caso) conhecido o objeto.

    a isto que Lukcs se refere quando, aps Marx, assinala que em todo

    processo de conhecimento, Quer tomemos a prpria realidade imediatamente dada,

    ou mesmo seus complexos parciais, o ponto de partida necessrio o conhecimento

    imediato do real. Este conhecimento, por ser imediato, no pode seno produzir

    uma representao catica do todo16. No porque o todo seja catico, mas porque

    nossa representao do mesmo ainda imediata, carente de mediaes. S

    conseguimos apreender o que ele no- (ele no nada do que conhecemos), mas

    nada mais podemos afirmar do que ele no seu ser-precisamente-assim.

    Como romper, neste momento, este impasse no processo do conhecimento?

    S h uma sada possvel, tanto prtica quanto terica: encontrar alguma relao do

    desconhecido com algo daquilo que j conhecemos. Ou seja, atravs de um

    processo de analogia entre o desconhecido e o que j conhecemos, deveremos

    iniciar comparaes buscando estabelecer caractersticas comuns. Por exemplo, o que

    se move na enorme maioria das vezes possui vida. Nesse sentido podemos investigar

    se este desconhecido possui algum metabolismo orgnico: respira, se alimenta,

    transforma o meio ambiente no qual se encontra, tal como os animais e as plantas o

    fazem? Vrias experincias podem ser divisadas neste momento, e as suas respostas

    vo permitindo-nos acrescentar dados quilo que ainda desconhecido: no troca

    nada com o meio ambiente, portando no deve ser um organismo biolgico de

    qualquer espcie, etc.

    Podemos iniciar ento, continuemos imaginando, uma outra srie de

    investigaes: como ele se movimenta? Pelo deslocamento de suas molculas de um

    lugar a outro do corpo, ou ento apenas pela alterao da relao entre as mesmas,

    sem que se movimentem ao longo do corpo? De onde provm a energia para se

    mover: h alguma fonte interna de energia (por exemplo, uma molcula radioativa

    que produza energia) ou ele aproveita uma energia externa (o sol, o campo magntico

    da Terra, etc.) para se mover?

    Uma sria de experincias podero nos fornecer outra srie de informaes:

  • 14

    parece haver uma fonte interna de energia, contudo no conseguimos estabelecer

    aonde e como ela . Por outro lado, poderemos descobrir que no h nenhuma

    interao com o campo magntico da Terra ou com o Sol ou outra fonte externa de

    energia qualquer.

    Nestas investigaes iniciais, estaramos na verdade dando um passo

    extremamente importante do caminho de ida: com base no que j conhecemos,

    estabelecemos relaes analgicas para descobrir como classificar o desconhecido

    no interior do que j conhecemos. Ou seja, estamos tentando descobrir com que

    parcela do real este desconhecido se relaciona, qual o seu lugar dentro da totalidade

    do existente. J conseguimos, em nosso exemplo, dar alguns passos iniciais

    significativos: ele no pertence esfera biolgica, portanto apenas poder ser um ente

    inorgnico. Isto nos permitir prever, com razovel grau de certeza, que todos os seus

    processos sero qumicos ou/e fsicos, mas jamais sero processos biolgicos (e, por

    tabela, sociais, pois no h sociedade sem vida). por essa via que temos acesso

    quilo que Marx, nos Grundrisse, denominou de elementos simples. Este o

    momento mais inicial da investigao, e seus resultados so sempre parciais: o

    mximo que conseguimos so informaes e dados que se referem a aspectos

    especficos do objeto, e no temos ainda acesso sua totalidade seno como um todo

    catico.

    preciso salientar que a conquista de cada elemento simples permite no

    apenas um novo questionamento, agora mais rico, aprofundado, mediado, dos

    outros elementos simples j obtidos, como ainda possibilita colocar novas questes

    e orient-las em um sentido mais preciso que as antigas. A descoberta que o

    desconhecido no vivo, por exemplo, permite descartar uma enorme gama de

    investigaes e orienta nossos esforos em uma direo muito mais precisa. A cada

    novo elemento simples que conseguimos descobrir, mais avana nosso

    conhecimento do objeto em questo, ainda que no possamos dizer o que ele de fato

    : um metal, um gs que temperatura ambiente da Terra se solidifica, algo

    completamente distinto de tudo isso? Ou ser apenas uma imagem halogrfica

    misteriosamente produzida em nosso laboratrio?

    Esta etapa do processo investigativo superada no momento em que, pela

    articulao dos elementos simples j alcanados, h um salto qualitativo que

    16 Marx, Grundrisse, Siglo XXI, Buenos Aires, 1973, p. 21.

  • 15

    possibilita que passemos a trabalhar diretamente com a representao do objeto

    enquanto uma totalidade. Neste momento, os elementos simples so integrados em

    um todo articulado e temos agora uma representao muito mais rica da poro do

    real sob investigao. Este fato possibilita que nossa pesquisa se volte no apenas s

    suas partes constitutivas enquanto tais, mas tambm s relaes que mantm entre si

    e, tambm, articulao de todas elas em uma totalidade.

    Esse momento, no nosso exemplo fantasioso, seria alcanado quando,

    (continuemos a dar asas imaginao) descobrssemos que o desconhecido em

    questo um corpo em um quarto estado da matria: o estado gelatinoso. Alm do

    estado gasoso, lquido e slido teramos descoberto um quarto estado, intermedirio

    entre o gasoso e o slido que chamaramos de gelatinoso! J sabemos agora o que o

    nosso misterioso objeto: um metal em estado gelatinoso.

    Esta descoberta possibilita dar um enorme salto no processo investigativo.

    No apenas porque nossas aes sero muito mais precisamente dirigidas, mas porque

    agora poderemos trabalhar no apenas com as qualidades isoladas do antes

    desconhecido, mas tambm com a sua totalidade.

    Este salto de qualidade o momento em que se inicia o caminho de volta:

    com base nos elementos alcanados, se avana at ao objeto, agora concebido na

    sua totalidade real(11), enquanto uma totalidade rica, feita de muitas determinaes

    e relaes.17

    Se, no momento da ida, o movimento decisivo era a decomposio do todo

    catico nos seus elementos simples, de modo a investig-los enquanto determinaes

    singulares, na volta trata-se de desvelar a relao desses elementos entre si e com a

    totalidade da qual fazem parte. No apenas as partes, mas tambm as suas relaes,

    adentram ao campo a ser investigado. Com isso, no apenas os elementos simples

    podem ser explorados mais exaustivamente, revelando particularidades que s

    poderiam ser captadas ao estudar as suas relaes com a totalidade, como ainda a

    funo especfica que lhes cabe no interior do todo pode ser desvelada. O patamar da

    investigao , na volta, qualitativamente distinto da ida: nesta, a totalidade s

    poderia comparecer como um todo catico; naquela, a totalidade j um complexo

    articulado de mltiplas determinaes: o universal concreto.

    Ao trmino desse movimento representao catica do todo, anlise do

  • 16

    objeto em seus elementos simples, a sntese destes no universal concreto temos

    a reflexo muito mais acurada, na e pela conscincia, de um dado setor do real.

    4. UM PROBLEMA DECISIVO: O QUE UMA ABSTRAO

    RAZOVEL?

    Vimos, at agora, as conexes mais gerais (a ida e a volta) pelas quais a

    conscincia reflete o real. No examinamos, ainda, o por que de a subjetividade

    operar desta forma; em poucas palavras, ainda no examinamos quais os fundamentos

    ontolgicos que tornam imprescindvel o mtodo das duas vias. Veremos que, tal

    como ocorre com a prioridade metodolgica da totalidade e com a abordagem

    gentica, aqui tambm a ida e a volta so uma exigncia posta pelo real quando

    de sua reflexo na forma de conhecimento.

    Antes, porm, deveremos ao menos mencionar uma crtica que, por vezes, se

    faz a Lukcs neste particular. Ela surgiu, h j algum tempo, no contexto do que

    algumas vezes denominada teoria das abstraes18

    , e tem importantes

    conseqncias para o nosso tema. Tal problema, no fundo, se resume seguinte

    questo: se o caminho de ida se inicia pela anlise que tem por mediao as

    abstraes isoladoras, qual o critrio para determinar quais as abstraes que so e

    as que no so pertinentes? Como distinguir entre a falsa e a verdadeira abstrao?

    Nos Grundrisse Marx se refere a abstraes razoveis19

    : pois bem, qual o

    critrio dessa razoabilidade? A Lukcs no resta qualquer dvida: o critrio so as

    determinaes do ser-precisamente-assim do objeto em questo. O que, por sua vez,

    colocaria o seguinte problema: como podemos verificar a validade de nossas

    abstraes isoladoras frente s determinaes ontolgicas do objeto em um estgio do

    conhecimento (na ida) no qual estas determinaes ontolgicas ainda no so

    conhecidas?

    Entendamos o problema: segundo Lukcs, Marx conceberia o processo de

    17 Marx, K. Grundrisse. Apud Lukcs, op. cit. vol. I, pg. 285.

    18 A origem desta questo possivelmente se relaciona com um certo fetichismo da

    particularidade, se podemos dizer assim, oriundo de uma leitura mais lgica do que ontolgica da

    categoria da particularidade tal como Lukcs a discute em sua Esttica. Uma formulao mais recente

    da teoria das abstraes pode ser encontrada em Chasin, J. Marx - Estatuto Ontolgico e resoluo

    metodolgica in Teixeira, F. Pensando com Marx. Ed. Ensaio, S. Paulo, 1995.

  • 17

    construo da representao do real na conscincia atravs de um percurso de ida e

    de volta no qual, partindo-se da representao do objeto como um todo catico,

    pela mediao das abstraes isoladoras chegaramos, num primeiro momento, aos

    elementos simples e, destes, passaramos, no devido tempo, ao universal concreto

    (a representao da totalidade do objeto). Os elementos simples abstratamente

    obtidos seriam assim o material bsico, elementar, da constituio da representao

    da totalidade. Como poderamos chegar a uma representao da totalidade

    minimamente correta se os elementos simples dos quais partimos fossem absurdos?

    E, do mesmo modo, como poderamos estar seguros da correo de nossas abstraes,

    que forneceram os elementos simples, antes de termos acesso representao da

    totalidade?

    Bem examinadas as coisas, esta uma falsa questo.

    Ela desloca o problema da relao conhecimento/objeto em-si (a esfera

    ontolgica), para a esfera do processo de conhecimento enquanto tal (a esfera

    gnosiolgica). A artimanha, para sermos breves, fazer desaparecer, no caminho de

    ida, a totalidade do objeto sob investigao; quando, na verdade, esta totalidade est

    o tempo todo presente, ainda que sob a forma de um todo catico, carente de

    determinaes. No nosso exemplo, ao descobrir o novo objeto, o que temos que

    fazer investigar este todo que se nos apresenta ainda como catico: se for uma

    forma de vida, em dadas circunstncias se comportar desta forma, em outras, de

    outras maneiras e assim sucessivamente. Poderemos, por esta via, determinar se ou

    no um ser vivo, uma matria inorgnica, etc. Se for uma evento social, que no pode

    ser investigado com experincias, teremos a histria como o campo resolutivo ltimo.

    Em todos estes momentos, o todo catico permaneceu como referncia da

    investigao e, embora tenha comparecido sob a forma primitiva e pouco determinada

    do caos, nem por isso se fez menos presente. Em poucas palavras, se no incio da

    ida, a totalidade do objeto se apresenta como carente de determinaes, isto no

    significa que esta totalidade seja inexistente. Significa apenas que, na sua relao com

    o objeto, o sujeito ainda no foi capaz de represent-la seno como uma totalidade

    indefinida.

    O falso problema da teoria das abstraes apenas faz sentido se

    enrijecermos a relao entre a ida e a volta privando-a de todo carter dialtico.

    19 Marx, K. Grundrisse, op. cit., p. 5.

  • 18

    Se o processo de conhecimento fosse de tal ordem que apenas conhecssemos a

    totalidade aps termos conhecido todos os elementos simples, no haveria qualquer

    possibilidade de a totalidade estar presente no caminho de ida. Fazendo

    desaparecer, deste modo, a totalidade no caminho de ida (repetimos: assumindo a

    carncia de determinaes como sinnimo de inexistente), desaparece tambm

    qualquer possibilidade de um referencial ontolgico para determinar a razoabilidade

    das abstraes. Sem este referencial no h como se fugir deste falso problema que

    conduz ao procedimento que Lukcs tanto criticou: substituir o real pelos modelos,

    conceitos, etc. lgico-gnosiolgicos como critrio da razoabilidade das abstraes.

    Todavia, no h, nem em Marx, nem em Lukcs, um abismo entre os dois

    movimentos do conhecimento. Tanto a ida e a volta, quanto no interior de cada

    uma delas, temos a constante referncia dos elementos simples totalidade, e desta de

    volta queles. E, se nos momentos iniciais a totalidade representada de forma

    catica, porque tambm os elementos simples no foram ainda suficientemente

    explorados, sendo ainda carentes de determinaes, tal como a totalidade.20

    Portanto, o caminho de ida e de volta desdobra uma intensa e complexa

    relao entre a subjetividade e o objeto. Nesta relao a subjetividade comparece com

    sua totalidade (intuio, raciocnio, emoes, conhecimentos, valores, concepo de

    mundo, etc.), assim como o objeto, em todos os momentos do processo de reflexo do

    real pela conscincia embora a forma deste comparecimento no seja de modo

    algum nica. nesta complexa malha de relaes entre o real e a conscincia e

    entre a ida e a volta que, se as abstraes forem completamente irrazoveis,

    resultaro em absurdos que tero que ser, mais cedo ou mais tarde, descartados

    porque incapazes de desvelar o objeto em questo.

    O critrio da razoabilidade das abstraes tem, portanto, em Lukcs um

    slido fundamento ontolgico: ser o real, no processo de sua apropriao pela

    subjetividade, que dar a ltima palavra sobre quais as abstraes so ou no

    razoveis.

    Se, por um caminho inverso, procurarmos estabelecer um critrio lgico-

    20 Com isso no queremos sugerir que a carncia de determinaes tenha exatamente o

    mesmo peso em cada um dos casos. Embora carente de determinaes, os elementos singulares

    podem ser singularizados ainda que de forma muito limitada antes de se constituir o universal

    concreto. Nesta medida e sentido, os dois casos apresentam diferenas significativas que seria incorreto

    velar.

  • 19

    formal da razoabilidade das abstraes isoladoras, terminaremos na concepo do

    mtodo que hoje predomina: ao fim e ao cabo, terminaremos por estabelecer um

    critrio lgico-gnosiolgico para avaliar a veracidade do conhecimento, deslocando

    (ou mesmo fazendo desaparecer) a funo decisiva neste plano exercida pela

    objetividade. Ao assim proceder, enquanto marxistas camos em uma enorme

    contradio j que a prioridade ontolgica da existncia sobre a conscincia se

    converte, no plano metodolgico, na prioridade da subjetividade sobre o objeto, das

    categorias do pensamento sobre o real. Na maior parte das vezes, com este

    movimento se abandona o terreno marxiano e se aproxima (quando no se adere) a

    posturas assumidamente kantianas ou fenomenolgicas.

    Podemos perceber, agora, porque a questo da razoabilidade das abstraes

    isoladoras se tornou to importante no debate metodolgico. Aparentemente ela

    representaria a descoberta de uma lacuna na concepo marxiana. Se o todo catico

    apenas pode ser conhecido atravs de sua decomposio pelas abstraes isoladoras

    razoveis, e sendo estas os elementos simples a partir do qual todo o

    conhecimento avanaria at o universal concreto, o passo seguinte indispensvel

    seria determinar um critrio desta razoabilidade. Como Marx no deu este passo,

    poderamos apressadamente concluir haver em Marx, e em Lukcs, uma lacuna que

    impede a resoluo da questo.

    Ledo engano. Marx no se deteve sobre um critrio de razoabilidade, aps

    falar das abstraes razoveis, porque suas consideraes acerca do percurso da

    ida e da volta j so tal critrio: parte-se do real e retorna-se a ele. No como

    uma partida que significa abandonar o real e mergulhar num processo puramente

    lgico-gnosiolgico, mas como incio de uma investigao que tem no real seu

    horizonte permanente; volta-se, no a um real que se havia deixado para trs, mas a

    um real que agora podemos compreender e investigar de um ponto de vista muito

    mais global, genrico, universal. Por nunca ter abandonado o objeto como momento

    predominante no processo gnosiolgico, Marx no teve a necessidade de estabelecer

    critrios no-ontolgicos para a razoabilidade das abstraes. No h, por isso,

    nenhuma lacuna neste particular; e nada justifica aqueles que querem completar

    Marx acrescentando aqui elementos puramente lgico-formais.

    5. O FUNDAMENTO ONTOLGICO DO CAMINHO DE IDA E

  • 20

    DE VOLTA

    Isto posto, podemos retornar questo deixada em aberto: por que o processo

    de conhecimento opera este percurso de ida e volta?

    Relembremos, pois decisivo para Lukcs: tanto a abordagem gentica quanto

    a prioridade metodolgica da totalidade so decorrncias de elementos basilares de

    sua ontologia, quais sejam, a historicidade do ser e seu carter de totalidade

    complexa.

    Com o mtodo das duas vias ocorre algo semelhante. No movimento de

    desvelamento do real, ele se impe como o procedimento tpico da subjetividade

    no por qualquer necessidade lgico-abstrata, nem devido qualquer natureza da

    razo humana (a la Kant) , mas sim como uma necessidade a ela imposta pelo real.

    Vejamos como isto se d.

    Todo e qualquer objeto sempre uma sntese de mltiplas determinaes.

    Dentre as determinaes ontolgicas absolutamente necessrias, duas so as decisivas

    para o nosso problema:

    1) no h objeto que no consubstancie uma sntese entre as determinaes

    universais e as singulares. Tomemos como exemplo a relao indivduo/humanidade.

    O primeiro apenas pode existir como parte singular (porque jamais haver dois

    indivduos exatamente iguais) de uma totalidade (a humanidade); esta, por sua vez,

    apenas pode ser a universalidade de singulares (no h humanidade sem indivduos),

    pois sem a sntese dos singulares no seria possvel nenhuma universalidade.

    Certamente, temos ainda que levar em considerao que entre o singular e o universal

    podem se desdobrar uma srie de mediaes que compem a esfera da particularidade

    (a classe social, p. ex.). Assim, todo indivduo portador, tal como todos os

    indivduos com os quais compartilha sua existncia, de determinaes comuns: um

    homem da sociedade primitiva, ou da sociedade feudal, etc. Sua singularidade

    enquanto indivduo apenas pode ser construda dentro destas determinaes

    particulares da sua poca, porm no universais toda histria da humanidade.

    Assim, um senhor feudal apenas poderia existir na Idade Mdia, porque apenas ali

    ocorreram as mediaes entre indivduo e humanidade que tornaram possvel, no

    passado, a existncia de senhores feudais.

    Relao anloga se desdobra na esfera da vida e no ser inorgnico. Tambm

  • 21

    neles a singularidade, a particularidade e a universalidade so dimenses objetivas,

    efetivamente existentes do real e tambm na natureza apenas podem existir como

    determinaes dialticas, ou seja, s existem em relao entre si e no podem ter

    existncia real separadamente uma da outra. Para sermos breves: no h

    universalidade que no seja a sntese de singulares; no h singularidade que no seja

    partcipe de um universal e, na enorme maioria das vezes, entre os dois plos se

    desdobram mediaes reais que constituem a esfera da particularidade.

    2) a segunda relao ontolgica absolutamente necessria a que se desdobra

    entre a essncia e o fenmeno. Para o problema que agora investigamos, o decisivo

    que, na acepo lukcsiana, so ambas categorias igualmente histricas. A essncia

    o campo de possibilidades de consubstanciao do fenomnico e, este, a mediao

    pela qual a essncia se particulariza em cada momento do processo histrico. Sem a

    mediao dos fenmenos a essncia no poderia desdobrar sua imanente

    processualidade; por sua vez, sem as determinaes essenciais o fenmeno no teria o

    que particularizar. Temos aqui uma ruptura fundamental com todas as concepes

    ontolgicas que, da Grcia a Hegel, mutatis mutandis, concebiam a essncia como a

    esfera da permanncia, do eterno, e o fenomnico como o campo do efmero, da

    historicidade. Ainda que um tema fascinante, no poderemos agora tratar desta

    ruptura e da revoluo que Marx, segundo Lukcs, introduziu neste campo.21

    O que agora nos importa que essncia e fenmeno, tal como as esferas

    universais e singulares, so determinaes inerentes ao ser de todo e qualquer objeto

    em seu em-si. As mltiplas determinaes a que Marx se refere dizem respeito,

    necessariamente, tambm a essas categorias ontolgicas. Nada pode existir que no

    desdobre, no seu ser-precisamente-assim, estas determinaes ontolgicas as mais

    gerais.

    Isto posto, podemos compreender porque o reflexo do real pela conscincia,

    mesmo em sua etapa menos determinada, o todo catico, sempre portador de uma

    dada articulao entre as esfera da essncia e do fenmeno, do essencial e do singular,

    de tal modo que, ao decomp-lo em seus elementos simples temos o acesso s suas

    21 Para uma discusso desta questo, do ponto de vista da ontologia tradicional

    imprescindvel Gilson, E. L'tre et l'essence, Ed. Vrin, Paris. Tratamos destas questes em Trabalho

    e Ser Social, EDUFAL, Macei, 1997; A Ontologia de Lukcs: retorno ontologia tradicional? in

    Antunes, R. e Rego, W. (orgs.) Lukcs um Galileu no sculo XX. Ed. Boitempo, S. Paulo, 1996;

    Lukcs: ontologia e historicidade, Rev. Trans/forma/ao, UNESP, vol. 19, 1996.

  • 22

    determinaes fenomnicas, essncias, universais, singulares, etc.

    Sendo extremamente breve: no podemos conhecer a essncia sem

    apreendermos os fenmenos que a particularizam; no podemos compreender tais

    fenmenos seno na relao que mantm com a essencialidade da qual fazem parte. E

    no podemos conhec-los isoladamente um do outro porque, no real, eles compe um

    sntese: o objeto que procuramos conhecer sempre uma sntese dialtica entre estes

    dois nveis de determinaes ontolgicas. O mesmo em relao ao universal/singular.

    Este o fundamento ontolgico do mtodo das duas vias: s podemos

    conhecer algo se formos capazes de reproduzir, na conscincia, suas mltiplas

    determinaes. O objeto, no aspecto que nos interessa, compe um todo sinttico de

    determinaes universais, singulares, particulares, essenciais e fenomnicas22

    . este

    todo sinttico que, num primeiro momento, se apresenta como uma representao

    catica. Como este todo efetivamente composto por partes, podemos, na esfera da

    subjetividade, decomp-lo em seus elementos simples (a ida). Contudo, como

    seus elementos simples apenas existem enquanto tais como partcipes da totalidade

    composta pelo objeto, a partir dos elementos simples podemos sintetizar, na

    subjetividade, a totalidade complexa que o objeto de fato . Sendo assim, podemos

    realizar o caminho de volta que nos conduz ao universal concreto, que nada mais

    que a totalidade do objeto elevada representao na conscincia.

    Portanto, o percurso de ida e volta, ao articular universalidade (totalidade)

    e singularidade (elementos simples), essncia e fenmeno na conscincia, o reflexo,

    no plano do mtodo, do fato de todos os entes apenas existirem enquanto complexos

    ontolgicos. Em outras palavras, reflexo do fato de o real ser a sntese de mltiplas

    determinaes.

    Portanto, se a prioridade ontolgica da totalidade o fundamento da

    prioridade metodolgica da totalidade frente aos seus complexos parciais; se a

    historicidade do ser o fundamento ontolgico da necessidade metodolgica da

    abordagem gentica; o carter de totalidade complexa do real o fundamento

    ontolgico da necessidade do mtodo das duas vias. Tal como nos casos anteriores,

    tambm aqui a esfera ontolgica o fundamento da metodologia.

    22 Uma advertncia: no h nenhuma relao necessria entre o essencial e o universal; so

    planos de determinaes ontolgicas distintas.

  • 23

    6. UMA LTIMA OBSERVAO

    A esta altura no deve haver a menor dvida que toda esta articulao entre

    mtodo e ontologia tm por fundamento a possibilidade de efetivamente conhecermos

    o real enquanto tal. Se o conhecimento do mundo objetivo, tal como queria Kant e

    hoje querem Habermas (de A Teoria do Agir Comunicativo23

    ) e os fenomenlogos,

    um falsa proposio filosfica, ento nada disto faria qualquer sentido.

    A nossa grande dificuldade, aqui, que o fundamento ontolgico do processo

    de conhecimento distinto do fundamento ontolgico do mtodo. Para sermos muito

    sintticos, os fundamentos ontolgicos do mtodo se referem algumas

    determinaes mais genricas do ser (o seu carter de totalidade complexa, sua

    historicidade, o predomnio da totalidade frente aos seus complexos particulares,

    etc.); j o fundamento ontolgico do processo de conhecimento se radica na praxis

    social e, dentro dela, mais especificamente no trabalho enquanto a categoria fundante

    do mundo dos homens. Uma anlise da categoria trabalho e sua relao com o reflexo

    do real pela conscincia um tpico que requer muito mais que um artigo para ser

    introdutoriamente explorado. Por outro lado, se no fornecermos ao leitor algumas

    indicaes, receamos que todo o artigo se assemelhe a um castelo sem alicerces: um

    belo sonho, porm sem base real.

    Neste sentido apresentaremos, antes de concluirmos este artigo, algumas

    indicaes para possibilitar ao leitor ao menos divisar do que se trata. Ao mesmo

    tempo, contamos com uma certa generosidade dos leitores para relevarem as lacunas

    inevitveis em uma exposio to sinttica de um processo to complexo e rico de

    mediaes.

    Para Marx, segundo Lukcs:

    1) a produo do conhecimento parte integrante do desenvolvimento

    histrico do mundo dos homens. Compe, portanto, uma relao historicamente

    construda entre o sujeito e o objeto, na qual ambos os plos (o sujeito e o objeto) so

    processualidades histricas. Segue-se, como conseqncia imediata, que no h

    possibilidade de qualquer conhecimento absoluto em uma relao na qual os dois

    23 Para uma contraposio entre Habermas e Lukcs neste campo, cf. Lessa, S. Trabalho e

    Ser Social, op. cit., em especial Cap. VI e, tb., Habermas e a centralidade do mundo da vida,

    Servio Social e Sociedade, ano XV, n46, dez 1994; A centralidade ontolgica do trabalho em

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    plos se encontram em constante desenvolvimento histrico.

    2) Reconhecer o carter histrico tanto do sujeito como do objeto no implica,

    de modo algum, na afirmao da identidade da histria de cada um. O mundo

    objetivo, seja ele pura natureza ou criao humana, portador de determinaes

    ontolgico-histricas distintas das do sujeito. De tal modo que a natureza pode existir

    sem os homens e, ainda, em outro extremo, as criaes humanas podem sobreviver

    aos seus prprios criadores. Os museus so imagens vivas desse fato: objetos que

    sobreviveram s suas civilizaes. No h, portanto, nem identidade sujeito-objeto,

    como queria Hegel, nem identidade entre as leis e categorias que predominam na

    natureza e no mundo dos homens, como querem alguns positivistas.

    3) Nesta relao sujeito-objeto se radica a produo do conhecimento. E ela

    possvel pelo que a praxis social tem de mais peculiar: a relao entre a teleologia e a

    causalidade que se desdobra no interior do trabalho, tal como definido por Marx,

    ainda que no apenas, na famosa passagem de O Capital na qual compara o pior

    arquiteto melhor abelha.24

    Talvez pudssemos sumariar assim os traos mais gerais da relao teleologia-

    causalidade na esfera da praxis: como resultado das necessidades postas pelo real e

    percebidas pelo sujeito (pois o real pode pr uma necessidade objetiva que no seja

    percebida pelo sujeito, com vastas conseqncias conforme o caso), este escolhe, em

    sua conscincia, qual das alternativas julga a mais adequada para atender

    necessidade tal como ele a percebeu. Tanto a sua capacidade de percepo, como

    tambm as possibilidades que ele tem sua disposio para resolver o problema, so

    predominantemente determinadas pelas relaes sociais em que est imerso.

    Uma vez escolhida qual alternativa a ser objetivada, comea o processo de

    transformao do real no sentido de se construir na realidade o projeto idealizado.

    Neste processo de transformao do real, o conhecimento vai sendo testado na

    prtica. De tal modo que, se se tentar transformar a gua em machado, perceber-se-

    rapidamente que o que se conhece da gua no verdadeiro, e que as suas

    propriedades objetivas impossibilitam que venha a ser transformada em um machado.

    Neste processo, novos conhecimentos vo sendo adquiridos, outros velho vo sendo

    reafirmados, corrigidos ou abandonados; e, no menos importante, conforme avana

    Lukcs, Servio Social e Sociedade, Ed. Cortez, n52, 1996.

    24 Marx, K. O Capital, Livro I, Cap. 5,1.

  • 25

    este processo, sempre articulado com o desenvolvimento das capacidades humanas

    em transformar o seu ambiente, se desenvolvem tambm as questes que, nos

    apoiando no conhecido, dirigimos ao desconhecido. Assim, toda a relao

    gnosiolgica se altera (ainda que, na maioria das vezes, de forma quase

    imperceptvel) a cada processo de objetivao. Ao construir o mundo dos homens, ao

    transformar o real, o homem tambm transforma o conhecimento que tem do mundo

    objetivo. Mais uma vez, a extrema brevidade do nosso resumo no deve levar o leitor

    a imaginar que para Marx e Lukcs tenhamos aqui qualquer relao de necessidade

    linear, mecnica ou imediata.

    4) Neste preciso sentido, a relao entre teleologia e causalidade peculiar

    praxis humana (cuja forma mais primitiva o trabalho, entendido, na tradio

    marxiana, como o intercmbio orgnico do homem com a natureza) que funda o

    processo de conhecimento. Contudo, medida em que as sociedades vo se

    desenvolvendo, este tambm vai se tornando cada vez mais complexo. Assim que,

    de forma cada vez mais intensa, outros complexos sociais como a ideologia, os

    valores, as lutas de classe, etc., terminam interferindo tanto na escolha das alternativas

    a serem objetivadas, como tambm nas questes que sero imediatamente dirigidas ao

    desconhecido para serem investigadas. por isso que todo processo de conhecimento,

    seja ele qual for, sempre 'comprometido' com alguma concepo de mundo no h

    nada de neutro nesta esfera. Se isto por vezes compromete a validade do

    conhecimento produzido (por exemplo, a tecnologia de fabricao de armas

    atmicas), ou mesmo a sua veracidade (por exemplo, as teorias fascistas da raa

    superior ou ento o darwnismo social), no resta a menor dvida que, por si s, este

    comprometimento no suficiente para tornar o conhecimento falso. O fato de um

    antibitico ter sido fabricado visando o lucro no significa que seu efeito seja mera

    iluso, ou que a cincia nele empregada seja falsa.

    Estes so, com a brevidade a mais extrema, repetimos, os pontos fundamentais

    da tese lukcsiana-marxiana: afirma o trabalho como a determinao fundante da

    produo do conhecimento e, ao mesmo tempo, recusa peremptoriamente a reduo

    desta processualidade apenas ao processo de trabalho. Fundada pelo trabalho, a esfera

    gnosiolgica, com o desenvolvimento do mundo dos homens, termina por sofrer

    influncias e a receber determinaes de complexos sociais to distintos do trabalho

    quanto a ideologia, a luta de classes, os interesses econmicos, os valores morais,

  • 26

    ticos, estticos, etc., etc.

    com base nesta concepo da relao entre homem e natureza, entre a

    subjetividade e a objetividade, que Lukcs articula as suas reflexes acerca do mtodo

    em Marx. A esfera do conhecimento fundada pelo trabalho e, de modo genrico e no

    sentido o mais amplo, tem nele o momento predominante (bergreifendes Moment)

    do seu desenvolvimento. A questo metodolgica se relaciona com todo esse

    complexo e no poderia existir fora dele. Contudo, os fundamentos ontolgicos das

    necessidades a serem atendidas pelos procedimentos metodolgicos so outros que

    no o trabalho, como argumentamos acima.

    Isto posto, podemos passar diretamente concluso.

    7. CONCLUSO

    O que particulariza a concepo metodolgica de Lukcs ter na ontologia

    seu fundamento ltimo. O solo resolutivo, no plano da teoria, a totalidade real

    (realen Totalitt). O ser, enquanto objeto, impe subjetividade procedimentos para

    o desvelamento de seus nexos. Para que a subjetividade possa colher as

    determinaes do real sob a forma de teoria, necessrio que ultrapasse a

    imediaticidade das representaes meramente dadas e que, por meio de abstraes

    isoladoras decomponha analiticamente o real e, em seguida, opere a sntese que

    conduz ao universal concreto.

    Este procedimento analtico-abstrato tem o seu complemento necessrio na

    prioridade da totalidade e na abordagem gentica. O caminho de volta pressupe

    uma cooperao permanente entre o procedimento histrico (gentico) e o

    procedimento abstrato-sistematizante, que elucida as leis e as tendncias.25

    No h pois, em Lukcs, um abismo entre mtodo e ontologia. Os

    procedimentos metodolgicos, tendo em vista orientar a postura do sujeito

    cognoscente frente ao desconhecido, se apoiam na sistematizao das determinaes

    ontolgicas mais gerais alcanadas a cada momento histrico. O conhecimento j

    adquirido do ser em geral o fundamento das indicaes metodolgicas para o

    mergulho no desconhecido.

    25 Lukcs, G. Per una Ontologia..., op. cit., vol. I, p. 286.

  • 27

    Este fornecer indicaes, todavia, nada tem de neutro: permeado pelas

    disputas no interior da sociedade e, na sociabilidade contempornea, acima de tudo

    pela luta de classes. A ideologia na acepo lukcsiana de conjunto de concepes

    que permitem aos diferentes grupos e classes sociais se organizarem para a disputa da

    direo da sociedade26

    joga aqui um papel importante, assim como a moral e a tica.

    A discusso desta relao entre ontologia, cincia, tica e moral, todavia, nos

    conduziria para alm dos limites propostos para este artigo. Por isso, nos limitaremos

    a estas indicaes as mais gerais apenas para salientar o quanto, para Lukcs, as

    consideraes metodolgicas so fundadas na ontologia. E o so de tal modo que o

    complexo problemtico da metodologia, longe de compor um campo isolado, apenas

    tm existncia concreta em intrnseca determinao reflexiva tanto com a ontologia,

    como com a ideologia e, por meio dela, com a poltica, a filosofia, a moral, a tica,

    etc. Que isto representa a mais radical ruptura concebvel com o positivismo e o

    marxismo vulgar, bem como com pensadores contemporneos como Althusser e

    Habermas, algo que no requer maior demonstrao ainda que a explorao dos

    meandros desta ruptura, caso a caso, seja um objeto de investigao da maior

    relevncia e em larga medida ainda inexplorado.

    26 Sobre a categoria da Ideologia em Lukcs cf. a competente dissertao de mestrado de

    Gilmasa Macedo, Trabalho e Servio Social, UFPE, 1998. Tambm, Vaisman, E. A ideologia e sua

    determinao ontolgica, Ensaio, 17/18, S. Paulo, 1989.