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a0cecab3-01f2-40fd-9e04-cf3f34d222a3 Sexta-feira | 17 Abril 2015 | publico.pt/culturaipsilon PETER BOETTCHER ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9133 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Kraftwerk A obra de arte total Concertos no Coliseu dos Recreios e na Casa da Música

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    A obra de arte totalConcertos no Coliseu dos Recreios e na Casa da Msica

  • 2 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    Uma noite de festa ilimitada num Coliseu em renovaoO Coliseu do Porto est a mudar. Tem nova imagem, novo nome, agora sem o do. Portanto, recomecemos. O Coliseu Porto est a mudar. A direco (tambm ela renovada) quer

    granjear novos pblicos para o espao, abri-lo cidade, atravs de uma estratgia concertada sob o signo da transversalidade: acolher mais espectculos e comear a ter programao

    prpria, evitando que o Coliseu funcione apenas como barriga de aluguer.O primeiro passo neste sentido acontece sbado 18 e chama-se FLIC: Festa Lotao Ilimitada

    Ficha TcnicaDirectora Brbara ReisEditores Vasco Cmara, Ins NadaisDesign Mark Porter, Simon EstersonDirectora de arte Snia MatosDesigners Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana SoaresE-mail: [email protected]

    Sumrio6: KraftwerkArte total

    10: Moon DuoO drogado alucinado que afi nal era sensato

    12: Tobias Jesso Jr.Um dos discos maisfalados dos primeiros meses de 2015

    13: SavanaRockers entusiasmados com a electricidade

    14: Miguel-MansoPoesia que no silencia o canto daquilo que obscuro

    17: Leonardo PaduraHereges o seu regresso ao policial com o detective Mario Conde

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    Em Junho, os amantes de msica antiga tero razes para se sentirem como reis. O Palcio Nacional de Sintra vai ser o cenrio de um novo ciclo de concertos de msica medieval e renascentista, com agrupamentos nacionais e internacionais especializados neste reportrio. Intitulado Reencontros - Memrias Musicais de um Palcio, este o nico ciclo em Portugal centrado na msica medieval e renascentista, reportrio que nos ltimos anos quase desapareceu ou est bem

    O Palcio Nacional de Sintra cenrio de novo ciclo de concertos de msica medieval e renascentista

    a Parques de Sintra - empresa responsvel pela gesto dos

    palcios e monumentos de Sintra e co-organizadora do evento, em parceira com o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal - refere que um dos objectivos preencher uma lacuna ao nvel da msica medieval e renascentista, dado que no existe nenhum ciclo nacional centrado neste tipo de

    Um programa de festas cem por cento nacional: do rockuduro dos Throes + The Shine, aos riffs apontados ao espao dos Black Bombaim, passando pelo nosso querido bardo B Fachada na foto

    Ouvir msica como um rei no Palcio Nacional de Sintra

    menos presente nas programaes dos festivais nacionais e nas temporadas da Gulbenkian (o Festival Internacional de Msica da Pvoa de Varzim ser dos poucos que continua a reservar espao para a msica antiga).Numa nota de divulgao do ciclo,

  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 3

    Mariana Duarte

    Vinte e cinco anos depois da estreia de Goodfellas, de Martin Scorsese, realizador e actores vo voltar a juntar-se para uma sesso especial em Nova Iorque, na sesso de encerramento do Tribeca Film Festival, a 25 de Abril, no Beacon Theater.Alm da projeco do filme, numa nova cpia digital e remasterizada em Ultra-HD, supervisionada pelo prprio Scorsese, realizador e membros do elenco (Robert De Niro, Joe Pesci, Ray Liotta.) iro conversar com Jon Stewart no final.Inspirado numa histria verdadeira, Goodfellas (Tudo Bons Rapazes) segue o trajecto ascenso e queda de um grupo de mafiosos ao longo de trs dcadas, centrando-se na figura de um jovem gangster (Ray Liotta) que mais tarde ir delatar os seus

    Os Goodfellas de Scorsese vo voltar a estar juntos, 25 anos depois

    parceiros e amigos para se salvar.Goodfellas tornou-se rapidamente um filme de culto, inspirando todas ou quase todas as abordagens do cinema e da televiso ao universo da mafia que vieram depois (talvez Os Sopranos nunca tivessem existido sem o filme de Scorsese). Foi tambm o filme que reabilitou o seu realizador, cuja ltima obra tinha sido o polmico A ltima Tentao de Cristo, que lhe valera ameaas e o obrigara a andar rodeado de guarda-costas.No incio de Maio, a Warner Bros. ir lanar uma edio especial do 25 aniversrio do filme em Blu-ray e DVD que incluir um novo documentrio, Scorseses Goodfellas, com entrevistas com Robert De Niro, Leonardo di Caprio, Harvey Keitel e Ray Liotta.

    THEESatisfaction em Julho na ZDB e no Milhes de Festa

    Em 2012, ouvimos e vimos em Abril desse ano, as THEESatisfaction passaram por Portugal para apresentar awE NaturalE, lbum de estreia que nos obrigou a prestar ateno dupla norte-americana. Em 2015, quando j deram sequncia ao pasmo inicial com o ptimo e recentemente editado EarthEE (o mesmo universo, agora expandido), descobrimos que vamos reecontr-las. A dupla formada na Universidade de Washington regressa a Portugal para dois concertos: dia 23 de Julho na Galeria Z Dos Bois, em Lisboa, a mesma sala em que se apresentaram h trs anos; dia 24 do mesmo ms no festival Milhes de Festa, em Barcelos.Quando ouvimos awE NaturalE em 2012, pasmmos: de onde vem este som aliengena, fuso inaudita de hip hop e de Prince, jazz csmico como explicado por Alice Coltrane, rimas e coros sobre produes sci-fi e batidas para aquecer seres com carne e sangue quente? Vinha de Stasia Irons e Catherine Harris-White, que num dia afortunado se encontraram na universidade, trocaram mixtapes de jazz e

    Buenos Aires em Lisboa: cinema argentino em Maio no So Jorge

    a mais nova das mostras de cinemas nacionais que j se tornaram hbito em Portugal, e esta vira-se para uma das cinematografias mais interessantes do cinema global: o AR - 1 Festival de Cinema Argentino decorre no So Jorge, em Lisboa, de 14 a 17 de Maio, numa organizao da associao luso-argentina Vaivem.Oito longas-metragens, entre fices e documentrios, e outras tantas curtas compem o

    La Princesa de Francia, de Matas Pieiro um dos ttulos em destaque

    programa desta primeira edio da mostra. cabea esto as duas entradas argentinas que estiveram a concurso em Locarno 2014 La Princesa de Francia, de Matas Pieiro, e Dos Disparos, filme-mosaico de humor seco do veterano Martn Rejtman (mostrado no Lisbon & Estoril 2014).Mas o AR mostra tambm o documentrio do veterano Edgardo Cozarinsky, Carta a un Padre, e a experincia formal de Alejo Moguillansky (cuja excelente estreia, Castro, esteve a concurso no IndieLisboa) em parceria com a artista sueca Fia-Stina Sandlund, El Escarabajo de Oro. O programa completo da mostra pode ser consultado em http:/arcinemargentino.com.

    reportrio.Os perodos que delimitam a programao do ciclo - Idade Mdia e Renascena - correspondem s pocas ureas do Palcio Nacional de Sintra. A proposta recriar o imaginrio sonoro que se poderia a ouvir quando era um lugar de eleio da famlia real portuguesa, salientam os organizadores. O ciclo ter lugar em trs espaos do palcio: a faustosa Sala dos Brases, com a sua cpula revestida de pinturas herldicas ornadas com talha dourada e as paredes revestidas de azulejos azuis e brancos; a Sala dos Cisnes; e o Ptio Central, com a sua azulejaria mourisca. Os concertos tero lugar s sextas-feiras e sbados. Os bilhetes j esto venda.

    gangsta rap, no esqueceram Stevie Wonder e Michael Jackson e desataram a fazer msica.As THEESatisfaction habitam hoje um lugar s seu. um dos privilgios concedidos s mentes mais criativas, que podem no saber onde querem chegar, mas sabem exactamente como caminhar at esse desconhecido. Em entrevista ao psilon quando do lanamento de EarthEE, diziam que o mundo est cheio de ritmos incomuns, padres inusitados, melodias inesperadas, mas que a maior parte das pessoas, sejam ouvintes ou compositores, ficam presas a solues fceis. Elas no querem alienar ningum. Querem que a msica chegue a todos, que seja aproveitada pelo maior nmero de pessoas. Mas nos seus prprios termos: recusando a criao a partir dos formatos pr-definidos vigentes, do-se ao luxo de experimentar tudo o que [lhes] apetecer. Pelo que ouvimos at agora, devem continuar a fazer precisamente isso. O que lhes acontecer. Como se confirmar, espera-se, nos dois concertos portugueses em Julho.

    Coliseu. A partir das 20h30, e at s trs da manh, o espao vai ser animado com uma srie de concertos e DJ sets espalhados pelas vrias salas, permitindo-nos coscuvilhar os cantos da casa (mais exactamente o Salo tico, o Salo Jardim, a Sala Principal e o trio).Passemos em revista o programa das festas, cem por cento nacional: h o rockuduro dos Throes + The Shine, em que a electricidade das guitarras torneada pela ginga rolia do kuduro; os riffs catedralescos apontados ao espao dos Black Bombaim, locomotiva do psicadelismo para trips intensas e que acabam bem; B Fachada, o nosso querido bardo, arteso de canes que esgravata a lusofonia para criar um vocabulrio s dele; os embaixadores do hip-hop portuense, Mind da Gap e Dealema (aproveitando o assunto, haver um festival de hip-hop no Coliseu, na reentre); sem esquecer Memria de Peixe, Les Crazy Coconuts e Legendary Tiger Man. Nos DJ sets, destaque para a electrnica orgnica e paisagista do produtor portuense LASERS e os chafurdanos eurodance dos Gin Party Soundsystem.O cartaz uma caixa de bolachas sortidas em msica, para juntar diferentes tribos e estilos de msica. um carto-de-visita para mostrar o que o Coliseu pode ser, diz Lus Salgado, programador deste evento e do Maus Hbitos a tempo inteiro, conhecido pelas suas festas de aniversrio de acesso pblico (lotadas, lotadssimas), autnticos festivais de boa msica portuguesa. O FLIC est em mos experientes e se tudo correr bem acontecer pelo menos uma vez por ano. Os bilhetes custam 18? e podem ser comprados nas bilheteiras do Coliseu e no Ticketline. Realizador e actores vo juntar-se no encerramento do Tribeca Film

    Festival, a 25 de Abril

    O reencontro, trs anos depois

    Mrio Lopes

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  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 5

    Em Janeiro a BBC transmitiu o documentrio Kraftwerk: Pop Art onde surge o histrico crtico de msica ingls Paul Morley a argumentar que o grupo alemo tornara-se

    mais influente do que os Beatles.No mesmo ms, o professor uni-

    versitrio alemo Uwe Schtte or-ganizou na Universidade Aston, na cidade inglesa de Birmingham, um simpsio volta da obra dos Kraf-twerk onde participaram mais de 150 acadmicos de todo o mundo. Ele prefere no entrar em compara-es subjectivas, mas sempre nos vai dizendo que ao nvel das trans-formaes que se operaram na m-sica popular a influncia dos Kraf-twerk enorme. incrvel como a sua msica, desenvolvida num tem-po e lugar especficos, conseguiu exceder todas as fronteiras.

    difcil imaginar um projecto to dominante na paisagem contempo-rnea, no s inspirando geraes de msicos, como contaminando o cinema (David Cronenberg) ou as artes plsticas (Matthew Barney). Nos ltimos anos apostaram ainda mais na relao entre msica e arte visual, e em retorno foram convida-dos para residncias e actuaes em alguns dos espaos mais icnicos da criao artstica, como o MoMA de Nova Iorque, a Tate Modern de Lon-dres, a Opera House de Sidney, a Fundao Louis Vuitton de Paris, o Akasaka Blitz de Tquio ou a Neue Nationalgalerie de Berlim.

    esse grupo, hoje constitudo pe-lo fundador Ralf Htter e por Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grie-ffenhagen, que se apresenta domin-go (Coliseu de Lisboa) e 2 feira (Ca-sa da Msica do Porto) em concertos

    em 3-D, sendo distribudo previa-mente aos espectadores culos. No a primeira vez em Portugal. Por c estiveram em 2004 no Coliseu de Lisboa e depois no Sudoeste.

    Na altura, em conversa com Ralf Htter este dizia-nos que iramos ver os Kraftwerk em verso computa-dor-porttil, depois de anos a re-converterem o material analgico para digital. Desta feita iremos ter o grupo em verso 3-D. Mais uma eta-pa de um projecto que tem sabido integrar as transformaes tecnol-gicas no vocabulrio pop. Um grupo sem idade, austero, misterioso, ger-mnico mas internacional.

    Uma nova AlemanhaNo final dos anos 1960 e incio dos 1970 personificaram, ao lado de ou-tras formaes alems como Can, Neu!, Tangerine Dream ou Faust, a emancipao e at a recusa no s do que restava ainda do traumtico passado nazi como das influncias anglo-americanas, criando um idio-ma prprio a partir do psicadelismo rock ou da electrnica experimental de Stockhausen. A sua msica sin-gular constituiu uma hiptese de superar o passado alemo e a ame-ricanizao da Europa, instituindo outra linguagem. Havia o desejo de construir uma nova sociedade. E a msica representava esse desejo.

    Um livro editado no final do ano passado (Future Days: Krautrock and the Building of Modern Germany) do jornalista e crtico ingls David Stubbs d conta disso. Havia vrias caractersticas que distinguiam es-sas formaes do vulgar cenrio pop-rock anglo-saxnico. Em pri-meiro lugar, mais do que a ideia cls-sica de cano, o que lhes interessa-

    va era a sua reconfigurao, a forma como vozes, letras e sons podiam fazer parte do mesmo traado sni-co sem hierarquizaes.

    Em vez da estrutura, a aposta na atmosfera; a liberdade criativa alia-da a uma absoluta disciplina tcnica. Msica ps-humana, procurando uma relao simbitica com as m-quinas, arriscando na repetio, nas texturas, no espao, na disciplina e na eficincia. Uma msica seca, sem afectaes, criada por verdadeiros colectivos, sem lderes, o que por um lado significava a rejeio do culto do ego do rock e parecia cons-tituir uma correco do fetichismo nazi da figura do lder.

    Na viso de David Stubbs grupos como os Kraftwerk tinham cons-

    Vtor Belanciano

    O que devemos aos alemesDomingo, em Lisboa, segunda-feira no Porto, haver espectculo audiovisual com efeitos tridimensionais por parte de um projecto que inspirou geraes. E que contribuiu para recriar e regenerar a identidade de um pas, a Alemanha. Eis o que devemos aos Kraftwerk...

    Os Kraftwerk merecem ser considerados arte, na medida em que se colocam a eles prprios, de ponto de vista conceptual, no centro do seu trabalho David StubbsPETER

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  • 6 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    cincia desse sentido identitrio da sua actividade. Reabilitaram o que significava ser alemo na Europa do ps-guerra. Constituram uma ma-nifestao da capacidade alem pa-ra a regenerao, recusando o fas-cismo ou a cultura pop americana, sinalizando um novo futuro domi-nado pela tecnologia. Uma viso alis partilhada por Uwe Schtte.

    A gerao dos membros funda-dores dos Kraftwerk sentia uma grande necessidade de forar uma identidade para si prpria, no sen-tido de perseguir um futuro mais luminoso - tendo em ateno os horrores do passado recente, diz-nos ele. Foi por isso que abraa-ram a promessa de um futuro me-lhor, ao mesmo tempo que rejeita-vam a cultura americana que havia ocupado o vazio criado pelo nazis-mo. Ou seja, de uma s vez, sen-tiam necessidade de rejeitar uma Amrica que de libertadora se transformara na fora imperialista que bombardeava civis vietnami-tas, ao mesmo tempo que tentavam religar-se com as tradies alemes do final do seculo XIX e incio do sculo XX, como a Bauhaus, o ex-pressionismo no cinema e at a no-o de obra de arte total desenvol-vida por Wagner.

    David Stubbs foca a sua ateno na influncia da Bauhaus, uma das maiores expresses do que foi o modernismo no design e na arqui-tectura. Eles so sempre vistos co-mo futuristas mas no creio que essa fosse a sua fora motriz - eles acreditam na relao serena, har-mnica e funcional entre homem e mquina, e tambm entre a arte e a vida quotidiana - que foi alis uma dos temas maiores das vanguardas

    do sculo XX. Nesse sentido aplica-ram os princpios da Bauhaus sua msica. Ao mesmo tempo vem-se a si prprios em conexo com a grande tradio da inovao cultu-ral alem - no por acaso que com-puseram um tema chamado Franz Schubert para o lbum Trans-Euro-pe Express. Ou seja, olharam tanto para o passado da grande Alemanha como projectaram o seu possvel futuro.

    Inicialmente grupos como os Kraf-twerk eram apenas um fenmeno de culto. A meio dos anos 1970, David Bowie, na sua fase mais criativa (o perodo de Berlim que originou os lbuns Low, Heroes e Lodger, grava-dos entre 1976 e 1979), foi um dos primeiros a sinalizar que estava a nas-cer uma nova Europa na Alemanha. Subitamente a nova msica alem, at a quase ridicularizada, tornou-se sedutora. O novo cnone. O presen-te e, principalmente, o futuro j no dependia da raiz americana do blues e do rock.

    ProfticosQuase tudo o que aconteceu de sig-nificativo a partir da segunda meta-de dos anos 1970 (Bowie, ps-punk, Talking Heads, Primal Scream, hip-hop, mestiagem, electrnica, New Order, reciclagem, tecno, house, electro, Daft Punk, Bjrk, The Knife, Kanye West) deve qualquer coisa aos alemes.

    Mas no foi apenas musicalmente que se revelaram frente do tempo, principalmente no perodo entre 1974 e 1981, quando lanaram Auto-bah (1974), Radio Activity (1975), Trans-Europe Express (1977), The Man Machine (1978) ou Computer World (1981). Nessa altura descarta-

    ram guitarras e bateria, subiram aos palcos numa atitude impassvel, aplicando vozes robticas, enquan-to operavam com maquinaria. Mais do que um grupo, revelavam-se um conceito.

    As auto-estradas, os transportes, o ambiente, os robs, os computa-dores, o consumismo e outros temas que remetem para as grandes mu-taes no Ocidente foram por eles fixados. Em algumas circunstncias at se revelaram profticos, consi-dera Uwe Schtte. incrvel como os seus lbuns conceptuais anteci-param um futuro que se viria a re-

    velar o nosso presente. Quando Computer World foi editado em Maio de 1981 a IBM ainda no tinha criado o computador pessoal que viria a revolucionar as nossas vidas e j eles cantavam i programme my home computer ou antecipavam a utiliza-o da tecnologia para propsitos de vigilncia pelos governos.

    Mas no apenas a tecnologia. O single The model (1978) assinalava o irromper da cultura de celebridades e o lbum Radio Activity (1975) espe-lhava preocupaes ambientais, antes de a ecologia ser tema obriga-trio na agenda poltica.

    A gerao dos Kraftwerk sentia necessidade de forar uma identidade para si, no sentido de perseguir um futuro mais luminoso - tendo em ateno os horrores do passado recente Uwe Schtte

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  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 7

    espectculos, defende Rui Maia, ou seja Mirror People, com lbum de estreia (Voyager) acabado de lanar. Algumas canes que conheo dos discos, quando so representadas visualmente, atravs de videoclipes, podem ganhar nova pertinncia. Da mesma maneira, ver os Kraftwerk sem imagens talvez resultasse, mas sem uma proximidade fsica ao grupo, o espectculo poderia tornar-se obviamente aborrecido.

    Evoluo e negaoA transposio da msica produzida por meios electrnicos para o palco foi desde sempre um problema, defende Lus Fernandes, msico de vrios projectos (The Astroboy, Quest, Peixe: Avio), programador do espao GNRation e um dos responsveis pelo festival de msica electrnica Semibreve.

    O formato concerto est associado a uma expectativa de performance e execuo da msica ao vivo, em tempo real. Pela natureza da msica electrnica, e pela forma como ela construda processualmente, muitas vezes difcil aproximar um concerto electrnico a um de pop, rock ou de msica erudita.

    Ou seja, os formatos de apresentao de msica ao vivo, no centro do mercado pelo menos, continuam a ser os mesmos h algumas dcadas. O que no significa ausncia de propostas arrojadas, como o caso dos msicos Ryoji Ikeda, Ryoichi Kurokawa ou AntiVJ, afirma Lus Fernandes, ou no domnio mais popular a colaborao de Joanie Lemercier (dos AntiVJ) com Jay-Z.

    A msica electrnica criou um corte que a maior parte das pessoas no sabe resolver, afirma por sua vez Feliciano, lembrando que casos como o msico portugus Rafael Toral - que encontrou uma forma de interagir com as mquinas electrnicas, repondo esse contnuo fsico entre a actividade fsica e o resultado sonoro - no existem muitos.

    Roupas uniformizadas, postura impassvel, vocalizaes robticas, animaes infogrficas, som electrnico cristalino e imagens de vertigem

    mas tambm de melancolia de um tempo indefinido. Nem passado, presente e futuro, tudo isso ao mesmo tempo.

    Desde os anos 1970, com modificaes tecnolgicas, como a presente aposta no 3-D, que assim que os alemes Kraftwerk se apresentam em palco, reactualizando a forma como expem ao vivo as suas canes mais conhecidas como The model, Autobahn, Radioactivity, Pocket calculator, Neon light, Trans-Europe Express, The robots ou Music non stop.

    Quando surgiram com este dispositivo diferenciavam-se de maneira bvia do padro estabelecido pela cultura rock, apostando numa performance multidimensional de som, luz e imagem. De alguma forma conseguiram diversificar a forma como a msica pop podia ser exposta para grandes plateias, qualquer coisa que no se tem visto muito nas ltimas dcadas.

    As evolues culturais e tecnolgicas das ltimas dcadas aconteceram a uma velocidade muito mais elevada do que em qualquer outra poca, da que seja impossvel manter essa sensao de constante inovao, analisa o msico, artista e editor Joo Paulo Feliciano, que nos ltimos anos tem concebido o design dos palcos e do espao do Primavera Sound.

    Existe a sensao de uniformizao, mas os casos singulares so sempre raros, com excepo de momentos em que a histria acelera. Quando os Kraftwerk apareceram e desenvolveram a sua linguagem isso aconteceu, mas so casos pontuais - o mesmo se aplicando a Laurie Anderson, Bjrk ou Einsturzende Neubauten, por exemplo, que em algumas ocasies apostaram em conceitos que acabaram por ter um efeito de contaminao.

    O desenvolvimento e o acesso facilitado tecnologia no s tem permitido que muito mais gente produza msica, como aposte na sua representao atravs das imagens. cada vez mais usual vermos em palco a msica associada s imagens, transformando a experincia dos

    No campo da msica electrnica, na relao entre som e imagem, desenham-se dois caminhos distintos. Por um lado a evoluo do formato, principalmente pela explorao da parte tcnica, e por outro a negao do formato, como o caso do Francisco Lopez, no domnio da msica mais experimental, que atravs dos seus concertos de olhos vendados, tenta remover qualquer estmulo visual que possa desviar as atenes do som, afirma Fernandes.

    Quem tem operado, seja no campo das artes plsticas ou da msica popular, sempre com recurso a imagens e som, o artista e msico angolano Nstio Mosquito que, independentemente dos formatos, diz que o principal ter alguma coisa para dizer.

    Os Kraftwerk procuram um grau de intencionalidade, em tudo o que fazem, impressionante, diz ele. Eu, como a maior parte de ns, vejo som. O som oferece-me uma narrativa cognitiva. No meu trabalho uso som, palavra e imagem, no fim de contas, para contradizer, enaltecer ou reafirmar uma determinada narrativa que uma desculpa para manipular aquilo que no controlo no mundo. O que quero oferecer com a minha msica neste momento um grau de

    3 DOs concertos em Portugal so espectculos em 3-D. Mais uma etapa de um projecto que tem sabido integrar as transformaes tecnolgicas no vocabulrio pop. Um grupo sem idade, austero, misterioso, germnico mas internacional

    PAULO PIMENTA

    The Knife, Bjork, Laurie Anderson: h casos em que a histria, no caso da expectativa gerada pela performance ao vivo, se acelera

    SUSANA VERA/ REUTERS

    NELSON GARRIDO

    Eu vejo o somHoje existe uma multiplicidade de dispositivos e de situaes onde a msica pode

    acontecer ao vivo. Mas momentos defi nidores de um antes e de um depois, como aquele

    intudo pelos Kraftwerk, so raros.

    intencionalidade sem jamais fingir ser, ou ter, algo que me parece ser nico nos Kraftwerk. Eu sou da remistura, da reinterpretao e da reconciliao com o que somos enquanto indivduos e com aquilo de tangvel que nos rodeia, talvez como todos aqueles a quem os Kraftwerk ainda inspiram.

    Na relao com as palavras, as imagens no podem ser ilustrativas, defende Nstio Mosquito. As imagens tm de oferecer dimenso narrativa e no apenas esttica, e isso por vezes pode significar contestar o que palavras ou os sons comunicam.

    Uma ideia semelhante defendida pelo msico Srgio Faria, que acaba de lanar dois lbuns, adoptando as designaes Die Von Brau e Dedication For Project 01. A relao entre msica e imagem pode ser perigosa, se as imagens em vez de amplificarem a mensagem do som a diminurem conceptualmente. Mas quando bem feito pode amplifica-la, complementando-a. Na sua viso nada se deve sobrepor ao facto de msica ser msica e imagem ser imagem, ou seja, ambas devem ser valorizadas por si s e nunca depender uma da outra. Deve existir um equilbrio.

    Claro que a possibilidade de inovar na forma como se apresenta msica ao vivo vai muito alm dessa relao com a imagem. Ainda o ano passado os suecos The Knife provocaram reaces desencontradas quando resolveram apostar num espectculo coreogrfico. O mesmo sucedendo com as coreografias desencadeadas no meio do pblico por Dan Deacon, ou com as suas propostas de interactividade, convidando a assistncia participao a partir de aplicaes para iPhones.

    Na verdade, hoje, existe uma multiplicidade de dispositivos e de situaes onde a msica pode acontecer e ser experienciada ao vivo. Mas momentos definidores de um antes e de um depois, como aquele que foi intudo pelos Kraftwerk, so muito raros. V.B.

  • 8 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    E existe ainda essa fixao nas bi-cicletas, tambm elas de regresso vida urbana das cidades nos nossos dias. Eles no eram muito crentes na aviao, preferiam andar nas su-as bicicletas, ri-se Stubbs. Do pon-to de vista ecolgico Ralf Htter foi sempre intransigente. Chegaram a ser criticados por Radio activity que na verdade um hino de louvor s rdios e nada tem a ver com for-as nucleares e acabaram mesmo por remisturar esse tema em 1991 introduzindo uma seco que aler-tava para os perigos de um desastre nuclear.

    Contrariamente ao que muitas vezes se pensa, nunca romantiza-ram a tecnologia. Pelo contrrio, afirma Uwe Schtte, revelaram sem-pre uma atitude reflexiva e por ve-zes irnica: na sua relao com a tecnologia expressaram preocupa-es acerca da histria da Alema-nha, na relao entre o homem e a mquina e o homem e a natureza. No h fetiche, embora tenham sido

    dos primeiros a mostrar que as di-versas dinmicas da msica popular so inseparveis da tecnologia.

    A partir dos anos 1990 o grupo foi optando por reactivar o seu repert-rio, mais do expandi-lo, funcionado sempre de forma disciplinada. O pro-dutor e msico portugus Fernando Abrantes, que fez parte da formao em 1991, recordava numa entrevista que lhe fizemos em 2003, que du-rante os concertos at a atitude em palco era imposta rigidamente. Havia um protocolo que todos tinham que seguir.

    A hibernao criativa do grupo terminou em 2003 quando foi edi-tado Tour de France Soundtracks, a que se seguiria o lbum ao vivo Mi-nimum-Maximum (2005), embora o regresso triunfal dos ltimos anos se deva ao lanamento de uma caixa (Der Katalog) que contm oito l-buns remasterizados.

    Por essa altura, o outro co-funda-dor que se conservou ao longo de quatro dcadas, Florian Schneider,

    acabou por abandonar o projecto. Poderia ter sido o fim. Mas no. Pe-lo contrrio, nos ltimos tempos, viram ser reafirmados os princpios que lhe granjearam fama, voltando a falar-se deles a propsito de como a msica pode ser representada vi-sualmente ou de como funcionam, detendo o controlo criativo sobre a totalidade da sua actividade.

    Eles sempre estiveram na dian-teira na forma como uniram msica pop e arte devido ao seu passado estudantil considera Uwe Schtte. O seu colaborador vital, Emil Schult, estudou com Joseph Beuys na mais importante escola de arte na Alemanha, em Dusseldrfia, per-to da vizinha Colnia, a cidade mais importante para galerias de arte, museus ou casas de leilo. Nesse sentido era inevitvel que activa-mente procurassem esse reconhe-cimento da obra de arte total.

    Desde o primeiro momento que Ralf Htter proclamou que, mais do que tocar canes, interessava-lhe criar em palco pinturas musicais, fundindo msica, performance e imagens.

    O facto de a partir de 2011 se con-centrarem mais na componente vi-sual tem a ver com a ausncia de msica nova, mas tambm porque voltaram a revisitar os conceitos re-tro-futuristas que sempre caracteri-zam o projecto, esse imaginrio h-brido, to nostlgico como hipermo-dernista, que parece capaz de criar uma suspenso temporal. Parece claro que o seu prximo lanamento dever ser um documentrio sobre os espectculos 3-D ou qualquer coi-sa parecida, prev Schtte.

    Numa entrevista recente, a islan-desa Bjrk, antecipando a retrospec-

    tiva do seu trabalho no MoMA de Nova Iorque, declarava que os Kraf-twerk constituam o exemplo supre-mo dessa ligao umbilical possvel entre som e imagem. E curiosamen-te, um outro artfice dessa relao, Bowie, tambm tem a sua retrospec-tiva a decorrer em Paris, depois de o ano passado ter estado em Lon-dres. Nada que surpreenda o ingls David Stubbs: Os Kraftwerk mere-cem ser considerados arte, na me-dida em que se colocam a eles pr-prios, de ponto de vista conceptual, no centro do seu trabalho, como a dupla Gilbert & George, por exem-plo que provavelmente at tero influenciado a forma como Ralf e Florian se auto-apresentavam nos primrdios, afirma ele.

    E voltamos ao incio, ao documen-trio da BBC, onde os Kraftwerk so apresentados como arte-pop. compreensvel que os alemes quei-ram chegar aos maiores templos da arte contempornea, at porque tocaram em galerias no incio do seu percurso, numa altura em que exis-tia uma relao natural entre espa-os de arte visuais e msica, recor-da David Stubbs. No entanto, hoje em dia so essencialmente os espa-os expositivos que se aproximam de projectos como os Kraftwerk. uma relao que serve os dois cam-pos, considera David Stubbs. Por um lado o universo da arte concep-tual moderna parece estar a neces-sitar de novos recursos e inspira-es, por outro um novo horizon-te que se abre msica e toda a gente fica feliz!

    Mais relevantes que os Beatles? No por a. Mas para muito boa gente a resposta no oferece dvi-das.

    Pinturas musicaisDesde o primeiro momento que o fundador Ralf Htter proclamou que, mais do que tocar canes, interessava-lhe criar em palco pinturas musicais

  • fundao carmona e costaEdifcio Soeiro Pereira Gomes (antigo edifcio da Bolsa Nova de Lisboa)Rua Soeiro Pereira Gomes, Lte 1- 6.A/C, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego / Bairro Santos) | Tel. + 351 217 803 003 / 4www.fundacaocarmonaecosta.pt

    Parque de estacionamento mais prximo: Hotel SanaMetro: Sete Rios / Praa de Espanha / Cidade Universitria | Autocarro: 31

    Graa Pereira CoutinhoA OUTRA MOCuradoria: Paulo Pires do Vale

    Exposio: at dia 2 de Maio de 2015Horrio: de quarta-feira a sbado, 15h 20h (excepto feriados)

    DE

    SIG

    N W

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    20

    15

    C I N E M AT E R 2 1 A S E X 2 4 2 1 H 3 0

    O PC I C L O S T O PO L LR O C K N R O

    Z P E D R OC U R A D O R I A D E Z

    O N T A P S )( X U T O S & P O N

    D I T R I O T M R I V O L IP E Q U E N O A U D I

    M S I C AR 2 1 A S E X 2 4 2 3 H 3 0T E R

    B A N D A S D OB AS T O P

    S U B - P A L C O T M R I V O L I

    P R E O N I C OC I N E M A + C O N C E R T O 2 , 5 0 E U R

    T E M P O R A D A 2 0 1 5

    T E R 2 1 A S B 2 5 A B R

    F O C OR O C K

    A L I B E R D A D E D O S O M

    T E A T R O M U N I C I P A LD O P O R T O

    W W W . T E A T R O M U N I C I P A L D O P O R T O . P T

    M S I C AS B 2 5 2 1 H 3 0

    A L I B E R D A D ED O S O M

    M A N E L C R U Z , E D U A R D O S I L V A , N I C O T R I C O T ,

    A N T N I O S E R G I N H O , A N A D E U S , A L E X A N D R E S O A R E S ,H E N R I Q U E F E R N A N D E S , M A R I A M N I C A , J O R G E Q U E I J O ,

    J O O P E D R O C O I M B R A , R I T A R E I S , J O R G E C O E L H O ,M I G U E L R A M O S , G U S T A V O C O S T A

    G R A N D E A U D I T R I O T M R I V O L I

    P R E O N I C O 2 , 5 0 E U R M / 6

    B I L H E T EB I L H E T EC O N J U N T O

    7,5E U R O S

    EXPOSIO

    FBRICA DE SANTO THYRSOHYRSO

    Esculturase Desenhos

    1963-2015

  • 10 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    alucinado

    Pensem em Shadow of the Sun como uma enciclopdia: tudo o que aprendemos sobre psicadelismo est l sintetizado. Se por sntese entendermos canes de sete minutos. Um rgo, uma guitarra e palavras incompreensveis: digam adeus ao crebro.

    O que um homem faz quan-do tem dois amores e no sabe de qual gosta mais? Vai pelo baixo ou pela au-sncia dele. Pelo menos no caso de Ripley Johnson:

    nuns dias ele o homem da guitarra nos Wooden Shjips; noutros o ho-mem da guitarra dos Moon Duo, cujo lbum mais recente, Shadow of the Sun, saiu h semanas e pode ser descrito como uma estranha agncia de turismo: por uma mdica quan-tia, tem-se direito a nove viagens que podem ir dos dois aos nove mi-nutos ao espao sideral, por entre nuvens prpura. No so precisos capacetes nem motores potentes: a coisa movida a um rgo e uma bateria, to simples quanto isto.

    Ora, regressando pertinente questo lanada no pargrafo ante-rior: como que Ripley decide entre os seus dois amores? No existe uma regra fcil, diz, mas se uma cano tem baixo, como no temos baixo nos Moon Duo, vai para os Wooden Shjips. Com toda a hones-tidade, os Moon Duo no precisam de baixo: alm da guitarra disfun-cional de Ripley, tm os rgos e sintetizadores neurticos de Sanae Yamada. mais do que suficiente para uma prazenteira viagem aci-dez do crebro.

    Os fs a imaginarem que se John-son tem duas bandas porque, aps muito ponderar, concluiu que pre-cisava de veculos diferentes para criaes diferentes e afinal to sim-ples quanto: se no tem baixo, vai para os Moon Duo. Valha a verdade, pouco importa quem edita o qu: uma cano como Free the skull, ter-ceiro tema de Shadow of the Sun, com os seus rgos repetitivos e gui-tarras em espiral rumo aos cus, seria um grande naco de psicadelis-mo fosse qual fosse o nome que lhe pusessem na capa.

    O prprio Ripley parece no se importar nada com o assunto. Ele est simplesmente feliz por poder fazer msica e ser uma pessoa fun-cional. Tendo a identificar-me com a histria dos acidentados do rocknroll, diz a dada altura. uma coisa que tenho desde cedo. Quando s novo e ouves msica e achas que ningum te entende

    bem, a arte a nica coisa que te entende.

    Estranhamente lcidoEsta seria a ltima coisa que espera-ramos ouvir de um tipo cujo mais recente lbum parece ter sido feito sob o efeito de toneladas de drogas. Eu no estava sempre drogado, replica Ripley, em tom de garoto acu-sado pelos pais de cometer uma mal-dade da qual s semi-responsvel: no partiu a loia da me, a loia da me que se ps no caminho da sua brincadeira. S estava drogado de vez em quando, continua, como se tivesse mesmo de justificar. Gosto de estar drogado, no me entendas mal, mas estar sbrio importante para fazer um disco.

    Nessa altura eu sentia-me um outsider, o que a tpica coisa ro-mntica de adolescente, continua Ripley, que, no contente com re-velar as suas angstias, prossegue: Estas coisas moldam a nossa ma-neira de ser, pela vida fora. Vamos l ponderar: o que esperamos das nossas estrelas do rock psicadlico e vanguardista? Um discurso anti-sistema, muita conversa sobre ener-gias, o cosmos, o karma. No com Ripley Johnson: o homem estra-nhamente lcido, demasiado hones-to, bastante auto-consciente. Pelo menos quando diz: De certo modo tenho muita sorte em viver nesta poca: podemos ter o nosso culto, alguns fs e levar uma vida normal. O mundo de malta como os 13th Flo-or Elevators [uma das grandes ban-das psicadlicas que o mundo co-nheceu] se calhar era mais puro: no vendiam discos, mas podiam fazer tudo o que quisessem. Ns, por outro lado, podemos ter uma carreira quase convencional. Um tipo como eu ter uma carreira a fa-zer a msica que fao isto na d-cada de 1990 seria impossvel.

    Queramos falar sobre aquele r-go fantstico de Free the skull, que pe todo o corpo a abanar, mas apa-nhmo-lo num dia em que estava particularmente dado reflexo, de modo que Ripley Johnson parecia estar menos interessado em promo-ver Shadow of the Sun do que em ponderar sobre como tudo isto aleatrio e como chegou aqui. O que

    O drogado

    que afinal era sensato

    Joo Bonifcio

    no tem nada de errado s que Shadow of the Sun de longe o disco mais pop que alguma vez ps c pa-ra fora e talvez fosse melhor para a sua carteira pr as pessoas a falarem de Slow down low, a stima faixa do disco, uma coisa a modos que gene-ticamente derivada dos Velvet Un-derground, e a ouvi-la, j agora, tendo em conta que o mais prxi-mo que alguma vez far de uma fai-xa pop.

    Ripley est em modo de recorda-o no ano que vem passa uma dcada desde que os Wooden Shjips comearam a lanar singles, se ca-lhar disso. Tivemos muita sorte, muita sorte mesmo, nunca esper-mos tanta ateno. Sabem aqueles momentos em que uma pessoa fica a olhar para o infinito? No temos certeza, j que falmos ao telefone, mas podamos jurar que ele estava a olhar para o infinito quando co-meou com esta conversa.

    Para teres ideia de como as coisas eram, diz ele, sem notar que o tipo que lhe faz perguntas mais velho (no rocknroll no apenas suposto que os seus praticantes morram cedo

    Os Moon Duo, alm da guitarra disfuncional de Ripley, tm os rgos e sintetizadores neurticos de Sanae Yamada

  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 11

    tambm se espera que quem es-creve sobre a coisa seja uma criana, o que no est muito longe da verda-de). Aparecemos no incio da poca em que surgiram os blogues e de re-pente havia imensa gente a ter opi-nio, fora da imprensa convencio-nal. Sempre que ouvirem algum usar a expresso imprensa conven-cional, fiquem a saber: essa pessoa consome rock psicadlico. O nosso sentido de negcio era tanto que ofe-recemos o primeiro disco de borla. E acho que foram os bloggers que comearam a falar de ns e que obri-garam alguns media mais convencio-nais a prestarem-nos ateno.@ Sem-pre romntico, Ripley conta que adora a ideia de se oferecer discos como se estes fossem uma fanzine de poesia, em que tiras fotocpias e j est, nem precisas de uma editora por trs.

    Na altura ele tinha uma espcie de premonio: Quando o primei-ro [e homnimo] disco dos Wooden Shjips saiu, ns achvamos que nin-gum ia ouvi-lo, mas que algum ia encontr-lo numa loja, 20 anos de-pois. Hoje toda a gente reedita dis-

    cos, mas na altura isso no aconte-cia, pelo que eu imaginei que o dis-co ia ficar perdido durante 20 anos, at que um dia algum o encontrava e falava dele como uma obra-prima que passara despercebida. Ou seja: que dissessem do trabalho de Ripley o mesmo que haviam dito acerca dos seus heris.

    Nos nove anos subsequentes hou-ve meia-dzia de discos dos Woo-den Shjips e os Moon Duo, que s surgiram em 2009, tambm deita-ram c para fora muita coisa. O que faz de Ripley Johnson o homem mais trabalhador da histria do psi-cadelismo.

    Acusao que ele se v obrigado a negar: S escrevo para discos, no escrevo todos os dias, comea por dizer. Depois a verso muda e afinal sempre que tem uma ideia musical grava no telefone o que acabam por ser esquissos udio. E quando hora de trabalhar em canes, re-ouve e desenvolve. Mais um bocadi-nho e chegamos a isto: s vezes h descanso, mas normalmente estou a trabalhar em discos. Acabo um dis-co, fao uma digresso, e comeo a compor outro. Quando acabo de promover um disco estou com von-tade de fazer outro. O que pratica-mente faz de Ripley um James Brown do psicadelismo.

    Convenhamos que isto d mau nome ao rocknroll. No fica bem a um tipo que faz canes para a mente se alienar admitir que tem de trabalhar na coisa. Mas ele, por esta altura, j no se importa muito com o que dizem: Com os Wooden Shjips as coisas so diferentes, por-que a banda tem um espectro mais restrito, muito menos pop. Nos Moon Duo podemos fazer tudo o que quisermos, porque ningum nos liga nenhuma.

    No bem assim: a enciclopdia de psicadelismo que constitui Sha-dow of the Sun tem deixado em baba muita gente com saudades dos tem-pos em que os Suicide faziam discos. Estes nomes ecoam ao longo do l-bum, mas Ripley diz que no h ne-nhuma tentativa de imitar: Somos msicos profissionais, mas no so-mos bons msicos. Se quisermos fazer um disco a soar a Bob Marley, vai soar a Moon Duo porque no sa-bemos tocar.

    Sendo assim, talvez em Shadow of the Sun os Moon Duo tenham tenta-do soar a Bob Marley porque o lbum lembra mais depressa os Stooges a fazerem jams com os Sil-ver Apples do que qualquer outra coisa. Ripley no quer saber. Este homem que confessa ligar mais ao som de uma voz do que s pala-vras que esta canta, razo pela qual tem vergonha das suas letras limi-ta-se a falar da sua felicidade: Te-nho 42 anos. Quantas pessoas co-meam a ter sucesso no fim dos seus trintas, incio dos quarentas? Enquanto puder, ele vai continuar a tentar mudar a percepo dos nossos crebros recorrendo a ins-trumentos. E, quem sabe, talvez dentro de 20 anos algum pegue em Shadow of the Sun e diga que foi uma obra-prima que no passou assim to despercebida.

    Somos msicos profissionais, mas no somos bons msicos. Se quisermos fazer um disco a soar a Bob Marley, vai soar a Moon Duo porque no sabemos tocar

  • 12 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    Quem o viu e quem o v. H trs anos, as coisas no corriam nada bem a Tobias Jesso Jr., um rapaz cana-diano perdido no frmito de Los Angeles. Falhou no amor, falhou na msica (a

    tentar escrever canes para artistas pop), falhou no sucesso que procu-rava em LA, qual sonho americano a ir por gua abaixo. Voltou para Vancouver, Canad, a sua terra na-tal, com os bolsos vazios e a auto-estima a rondar os cinco por cento. No meio disto tudo, soube tambm que a me tinha cancro. Drama, muito drama.

    Hoje, com 29 anos, a vida sorri-lhe. Estreou-se em disco no ms passado com Goon, um clssico fora do tempo alimentado a baladas ao piano que tresanda a anos 70, filho ilegtimo de um John Lennon (com a voz de Paul McCartney) arraado de Randy Newman, Harry Nilsson e Simon & Garfunkel. O lbum, edita-do pela True Panther Sounds (sub-sidiria da referncia indie Mata-dor), tem valido a Tobias um rol infindvel de encmios. O rapaz que no era ningum era at uma boa caricatura de um loser anda agora a aparecer em todo o lado.

    material para notcias cor-de-rosa, por causa da alegada relao amorosa com a diva pop Taylor Swift; tem midas que lhe escrevem TE AMO no Facebook, entre ou-tras declaraes de amor em vrias

    lnguas (boas cantigas e um belo conjunto de caracis, como resis-tir?); uma estrela indie que, pro-vavelmente, estar a jogar noutro campeonato em breve (e tem sido to requisitado que o psilon ficou um ms espera da entrevista com Tobias, entre adiamentos e cance-lamentos, antes de ter desistido).

    Goon um belo disco, sim, mas a intensiva campanha de marketing pr-lanamento tambm ajudou a germinar e a fixar o hype. Ainda em Fevereiro, Tobias apresentou ao vi-vo o single How Could You Babe no Tonight Show de Jimmy Fallon e, no prprio dia em que o lbum foi pos-to venda, tocou no programa de Conan OBrian. As reaces de amor e dio foram propagando-se pelas redes sociais. Uns dizem ser dema-siado bsica e enfadonha a forma como o msico respiga os manuais dos anos 60 e 70, declarando ainda pacincia limitada para versos de menino de coro como Could I ask you on a date?/ Weve never kissed before/ So we might be strange (The Wait) ou I can hardly breathe wi-thout you/ There is no future I want to see without you (Without You).

    Outros (pomos o dedo no ar) dei-xaram os seus coraes serem aman-sados por este de misto de ingenui-dade pueril e sinceridade sem filtros, num mundo em que mostrar senti-mentos de um modo to desprotegi-do est entre o foleiro e o fora de moda. J se sabe que ter um corao

    partido e uma propenso congnita para criar melodias simples, melflu-as e comoventes meio caminho andado para fazer boas canes. E, como dizia Paul McCartney em Silly Love Songs, Some people want to fill the world with silly love songs/ And whats wrong with that?.

    As primeiras demos e a reviravoltaMas afinal quem Tobias Jesso Jr.? um rapaz como tantos outros, que comeou a tocar guitarra acs-tica para tentar impressionar as midas, contou Pitchfork. Em 2005 ocupou o cargo de baixista nos The Sessions, uma espcie de Killers canadianos (como se no bastassem os originais), e acabou por ir parar a Los Angeles para to-car na banda de apoio de Melissa Cavatti, uma adolescente com pre-tenses de estrela pop. A partir da-qui foi sempre a descer: Cavatti voltou para a escola, Tobias ficou sem emprego, passou dois anos e meio a tentar escrever canes pa-ra artistas pop, mas sem sucesso, e entretanto a namorada mandou-o dar uma curva.

    Em 2012 regressou a Vancouver, convencido de que mais valia desis-tir da msica. Mas no conseguiu. Escreveu Just a Dream, a sua primei-ra cano ao piano, um prottipo de balada deliciosamente lo-fi que colocou no YouTube em 2013 e cujo desamparo emocional e tcnico so-

    prava em direco a uns Beatles ini-citicos dentro de uma cave mas tambm pureza desalinhada de Daniel Johnston (que se perdeu na verso mais asseada do disco, com instrumentao extra totalmente dispensvel).

    Com mais demos feitas, Tobias Jesso Jr. decidiu envi-las a Chet JR White, produtor e baixista dos de-funtos Girls White teve de parar o carro quando ouviu pela primeira vez Just a Dream, de to aturdido que ficou, contou ao site Conse-quence of Sound. A partir daqui foi sempre a subir: burburinho em cres-cendo na net, contrato com uma editora bem cotada, mais dois pro-dutores reconhecidos que se junta-ram festa Ariel Rechtshaid (Haim, Vampire Weekend, Usher) e Patrick Carney, baterista dos The Black Keys , e um tweet de Adele, no incio do ano, a aconselhar o vdeo de How Could You Babe, que resultou em mais de 2 mil partilhas.

    Num 2015 que parece estar a ser marcado pela quantidade de singer-songwriters em sintonia com a dca-da de 70 (Father John Misty, Matthew E. White, Jessica Pratt, Natalie Prass), Tobias Jesso Jr. destaca-se por uma desafectao e uma musicalidade rudimentar que condiz com a fragi-lidade das suas letras e voz. Vejamos o arranque triunfante do disco, Cant Stop Thinking About You: nota-se ime-diatamente que Tobias no um pro-dgio do piano (toca-o devagar, sem

    recorrer a muitos acordes), mas que consegue expelir harmonias com o pathos certo.

    A enorme How Could You Babe uma daquelas canes que John Len-non gostava de ter escrito, com todo o ressabiano txico tpico de ex-namorado abandonado e refro pi-co para entoar durante uma road trip solitria pela Califrnia. Without You naufrgio amoroso vertido em no-tas de piano pesarosas, um corao despedaado apresentado sem pu-dor (citando Taylor Swift, Heartbre-ak is the national anthem/ We sing it proudly), enquanto The Wait, gui-tarra, lembra a melancolia sacarina de Simon & Garfunkel. Crocodile Te-ars sai um pouco da narrativa domi-nante, com arranjos pomposos e tom teatral, muito Maxwells Silver Ham-mer dos Beatles. Hollywood, sobre a passagem infausta do msico por LA, com o piano a bater no fundo (tal como o seu estado de esprito), um dos melhores momentos do disco, que devia terminar na penltima cano, Leaving LA, lamento irides-cente com brisa Beach Boys.

    No sabemos o que vai acontecer com a msica e com a fama de To-bias Jesso Jr., mas, por agora, uma coisa certa: difcil ignor-lo. Por-que ele tem dois metros de altura e um disco cheio de boas canes l dentro.

    Ver crtica de discos pags. 28 e segs.

    Um corao partido, melodias certeiras e uma sinceridade desarmante. assim Goon, a estreia de Tobias Jesso Jr., um dos discos mais falados dos primeiros meses de 2015.

    Mariana Duarte

    Ele tem dois metros e canes altura

  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 13

    Demoraram trs anos a dar sequncia ao EP de estreia, mas trs anos no foram uma eternidade. Dreams To Be Awake obra de rockers entusiasmados com a electricidade e de exploradores com bata vestida no estdio. E muito bom.

    Em 2012 houve um EP, Auro-ra. Passaram trs anos. Con-siderando que se tratava da estreia dos Savanna, e con-siderando a velocidade a que as coisas se passam no

    mundo nesta segunda dcada do sculo XXI, trs anos so uma eter-nidade. Mas quando em Setembro do ano passado chegou um novo single, Fancy pants, seguido dois meses depois por um segundo, Go-ds we are, comeou a desenhar-se na nossa cabea a ideia que a che-gada de Dreams To Be Awake, o pri-meiro longa-durao, confirma.

    Trs anos no so tempo nenhum e 2015 o tempo certo para os Sa-vanna como seria, reconhea-se e elogie-se, qualquer outro. O rock enquanto experincia planante, a pop abrindo lugar ao sonho, a m-sica enquanto experincia de alqui-mistas do som s voltas com a ima-

    quase em final de conversa Tiago Vilhena.

    Perante ns, quatro msicos com um percurso comum. Comearam pelo punk e pelo hard-core, momen-to fundador, e com o esprito inde-pendente firmemente apreendido, foram-se abrindo a outros mundo. Aurora j era resultado disso: uma banda a carregar na distoro da guitarra e a criar canes enquanto longas digresses, paredes-meias entre memrias prog e mecnicas ps-rock. Os Savanna so agora ou-tra coisa. Os Pink Floyd solta numa tenda de circo (psicadlico), os Be-atles a partilharem uma boa dose de LSD com Wayne Coyne, dos Flaming Lips, groove digital contemporneo bem enxertado em cano pop de olhos no cosmos. Parentes dessa atraente famlia disfuncional que o psicadelismo dos nossos tempos, filiao que inclui MGMT, Tame Im-pala, Foxygen ou, um pouco atrs, Animal Collective. Mas, mundo vas-to aberto por 50 anos de Histria, no apreciam particularmente ver-se presos na definio.

    Acho que faz sentido falar do ro-ck psicadlico ao ouvir o nosso l-bum, mas a verdade que o rock psicadlico um gnero de h 50 anos e da at agora aconteceu mui-to mais, aponta Miguel Vilhena, tambm membro da banda de Moullinex (que ajudou nas misturas do lbum). O termo [psicadlico] pode definir o nosso disco pelas tex-turas, pela parte do trabalho de es-tdio e por o disco ter um lado meio frito, continua. O irmo Tiago agarra a deixa: Se o dissecarmos bem, o lbum um melting pot de vrios estilos, mas acho que conse-guimos integrar tudo de uma ma-neira coerente e, apesar de tanta fuso, flui bem com tanta esttica. difcil no concordar quando ou-vimos as camadas de sintetizadores que suportam Fancy pants, extra-dos de discos de electrnica ambien-tal, quando ouvimos sobre elas gui-tarras fuzz que fazem as delcias de qualquer garageiro, as harmonias vocais evanescentes e os rgos que os anos 1960 nos legaram como pa-trimnio da humanidade, e a seco rtmica propulsora que faz a ponte entre o space rock de antanho e o rock para pista de dana do presen-

    te tudo trabalhado com uma ele-gncia sonora e uma nitidez que impressiona.

    Essa parte de tripDreams To Be Awake nasceu de uma filtragem contnua. Como explicam, no escolheram demorar trs anos a gravar o sucessor do EP de estreia. Fizeram msica e mais msica e che-garam a um ponto em que j a ti-nham em quantidade suficiente pa-ra gravar dois lbuns. Quando co-mearam a compor mais, perceberam que melhor seria pr de lado o que j tinham feito e apro-veitar a nova vaga de inspirao. Depois do EP houve um chama-mento que era tambm um desafio: em vez de insistir na ideia de viagem e na explorao de texturas, tentar fazer canes com refres e estru-turas mais clssicas, sem perder es-sa parte de trip, diz Miguel Vilhena. Misso cumprida. E com uma hu-mildade quase em sentido contrrio ambiciosa sntese que a msica revela. Esta banda que mistura o gosto pela jam, pelo abandono rocknroll (preste-se ateno ao ru-mor elctrico no final do tema-ttu-lo), com a experimentao em est-dio (absorvamos nessa mesma can-o, antes daquele final, os sons que a povoam: as guitarras subaquti-cas, a sugesto de theremins, os ru-dos de origem incerta) trabalha com um objectivo simples: S que-remos criar msica que, caso fosse feita por outros, quisssemos ou-vir. Dito assim, parece muito sim-ples. Parece. uma iluso.

    Dreams To Be Awake cola melodias ao ouvinte incauto. Dreams To Be Awake uma requintada pea sni-ca sem vestgios de fragilidade. Os Savanna so rockers que vestem ba-ta como em laboratrio antiga ouvimos The lab, ou os Beatles de Abbey Road imaginados em investi-da prog-rock, e essa a imagem que se forma: How does it feel to be in the lab?, cantam.

    Uma coisa de que gosto muito , por vezes, no se perceber bem o que est a tocar. No se percebe se uma guitarra, um sintetizador, um rgo com mil efeitos, diz Miguel Vilhena. Isso mesmo. Com os Savan-na, a iluso a me da inveno. Sonhemos acordados.

    Mrio Lopes

    A iluso a me da invenommmmm

    SavannaDreams To Be AwakeNOS Discos

    ginao nesse laboratrio de ideias chamado estdio. Trs anos depois de os vermos pela primeira vez, Dre-ams To Be Awake o arranque a s-rio. Em grande.

    Miguel Vilhena, Tiago Vilhena, Pedro Castilho e Diogo Sousa parti-lham uma esplanada com o psilon numa manh de sol primaveril. A banda nasceu quando dois amigos de longa data, Miguel, vocalista e guitarrista, e Pedro, teclista, decidi-ram que era tempo de concretizar uma ideia de banda que germinava. Tiago, baixista, foi convocado por razes prticas ( irmo de Miguel e um tipo com talento). Diogo Sousa o novo baterista, chegado a meio da viagem. Pessoal entusiasmado com a msica que faz. Conseguir viver disto e aproveit-lo o mximo de tempo possvel o objectivo. Dos maiores medos que tenho chegar aos 30 e desistir da msica, dir

  • 14 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    Miguel-Manso publicou o seu primeiro livro em 2008: Contra a Manh Burra (Edio do Autor), e no mesmo ano, Quando Escreve Descala-se (Tra-

    ma).Estes livros, juntamente com trs

    outros (Santo Subito, Edio do Au-tor, 2010; Ensinar o Caminho ao Dia-bo; Um Lugar a Menos, Edio do Autor, 2012), formam a srie Carim-bos de Gent. O motivo tornou-se qua-se um aspecto da mitologia potica coeva. Os carimbos comprados pe-lo poeta na cidade belga forneceram a imagem da capa daqueles breves volumes, que garantiram a Miguel-Manso uma posio sobremaneira peculiar numa paisagem densamen-te povoada, e com incidncias fran-camente aliciantes, como a da poesia portuguesa de agora. Segui-ram-se Aqui Podia Viver Gente (Pri-meiro Passo, 2012), Tojo: Poemas Escolhidos (Relgio Dgua, 2013) e Supremo 16/70 (Artefacto, 2013). Agora, estreia-se na coleco de po-esia da Tinta-da-China, dirigida por Pedro Mexia, com o novo Persianas.

    Hugo Pinto Santos

    Perpetuar o incndio

    Persianas, que agora chega s livrarias, o culminar de um percurso invulgar na densamente povoada poesia portuguesa. A de Miguel-Manso tem esta misso: furar

    com as palavras at ao que no se v.

    Balada da Rua Damasceno Monteiro ardia de amor pela casanuma confuso de silncios oudizendo de outro modo afundava-se numa lquida recordao cardaca ocultos plen plvora fsforosa m reputao dos dedospaixo cartografada remotatoponmia dos enganos brao a brao crescia altoo incndio no interior do peitodeliberado ritual de lminas e pelea transparente certezada cicatriz mas ardia de amor pela casa soturnasilncio dando para o saguo luz muitssimoextinta por sobre a larga extenso destruda morrer, principalmente de amor, uma compendiosa tarefa domstica dentro do corao antigoserei breve

    in Contra a Manh Burra (2008)

    Um percurso que no arriscado considerar invulgar, que escolheu, primeiramente, uma via de certo risco, no legitimada por qualquer chancela, mas que atingiu um pata-mar que, sem qualquer exagero, se pode situar em lugar de realce. O poeta, que nasceu em Almeirim, vi-veu em Lisboa quase dez anos, mas reside, actualmente, na aldeia de Vale do Pereiro, freguesia de Vrzea do Cavaleiros, no concelho da Sert (Castelo Branco). Como j escrevera, em Carta do Vale do Pereiro (Quando Escreve Descala-se, terceira edio, Trama, 2011): em casa um dos quar-tos/ arde uma paisagem oca/ um sculo uma cadeira partida.

    Acabaram-se os carimbos? No, pararam. Pararam por vrios motivos. Por alguma preguia de tratar das coisas, de compor o livro e, depois, pior, de distribu-lo, que uma coisa um bocado chata. E ca-da vez mais difcil. E acomodei-me um bocadinho ao prazer de ser edi-tado. Que eu desconhecia. Mas no, creio que poderei voltar quando

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  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 15

    quiser. Tenho essa liberdade.No sei se sabe, mas Nuno Moura referiu-se a eles, dizendo que a cidade de Gent proibiu a venda de carimbos (Canto Nono, Douda Correria, 2013). No, no sabia. Eu conheo mais o primeiro canto, que foi uma enco-menda minha e do meu irmo para o filme da jangada [Bibliografia, rea-lizado em colaborao com Joo Manso]. Contava ir comprar mais uns carimbos a Gent, mas se est proibi-do j no posso ir, no ? Ele [Nuno Moura] um querido provocador.Qual a influncia que o lugar em que vive tem no tipo de poemas que l escreveu? Em geral, o stio onde estou partici-pa das coisas que escrevo. Mas par-ticipam tambm os stios aonde nunca fui, mas que de alguma forma preciso visitar, em texto. Tento retirar, de uns e de outros, aquilo que no est l, a parte que no se mostra. isso o que mais me inte-ressa. Neste sentido, escrever sobre stios, experimentados ou no, im-plicar o uso do mesmo grau de ve-racidade. Nunca menti sobre Ban-guecoque, onde nunca fui visto, ou sobre a ndia antes de l ter estado por duas vezes. Creio at que os po-emas sobre a ndia ainda no vivida so mais correctos do que os que escrevi depois de l ter estado. A maior parte dos poemas sobre a al-deia apareceram antes de ter ido para l. Tanto que j figuravam em colectneas anteriores. Este livro foi escrito na passagem de um lugar para outro, e s aparentemente biogrfico. S me interessam as pai-sagens interiores, e se escrevo sobre o que existe para furar com as pa-lavras at ao que no se v.Que relao estabelece entre este livro e os que antes publicou?Tenho sempre a inteno de me ar-riscar fora do que sei que resultou ou no resultou. Em geral, no te-nho medo de falhar, embora tenha, sim, muito medo de falhar. Aconte-ce que tenho falhado de forma co-rajosa ao longo destes nove ttulos. Tenho a impresso de que isso que os leitores procuram nos meus li-vros: assistir ao mesmo naufrgio, em diferentes embarcaes. Desde a jangada (a mais comum), ao barco de recreio. Desta vez, quis o embar-que num navio de cruzeiro, repleto de tudo o que j reuni: os recursos, os temas, as formas longas e as bre-ves, as figuras. Quando tombar des-ta vez, vai ser um espectculo deso-lador ver a tralha toda a boiar.Em Persianas, fala, a certa altura, de uma aula de magia. Refere-se infncia?A magia mais, enfim, imediata e menos ocultista do que parece. De

    qualquer maneira, uma coisa que se comea a entender, e com a qual se comea a lidar, na infncia. Na primeira infncia, mesmo. E a aprendizagem da magia tambm se faz no sono, dormindo. uma coisa que entra nesse territrio do so-nho.H pouco dizia, em comentrio marginal, que o poema que manda; as pessoas tentam controlar, mas o poema que decide. Um pouco como aquele lugar-comum dos ficcionistas que dizem que a histria se conta a si mesma. Isso tem alguma coisa a ver com estes versos, do novo livro: nenhum poema me pergunta// se est certo?Sim, ter a ver com isso. Talvez o livro, na primeira parte, recaia mui-to sobre a ideia de composio do poema. Que uma coisa que eu j tenho vindo a fazer, mas acho que esgotei neste livro. Alis, este livro to extenso, tambm, porque eu creio ter posto nele tudo o que j sei. E agora estou numa grande cri-se, que o nmero nove, tambm no tar, nos ensina, que o Eremita, que olha para trs, para o caminho j feito. um velho gasto do cami-nho percorrido, com uma candeia que aponta no para a frente, para o desconhecido, mas para o cami-nho j realizado. E o nmero nove simboliza, entre outras coisas, os nove meses de gestao e a grande crise de renascer. Acho que neste livro pus tudo o que sabia: auto-ironia, metapoema, a biografia. To-dos os recursos que fui descobrindo. O poema com ttulo, o poema sem ttulo. O poema curto, aforstico. O poema longo. Mas, especialmente nessa parte, o livro seguiu a cons-truo quase como de um livro de fico, do princpio ao fim. No completamente assim, mas eu fiz a ltima parte no final. E com essa estou mais confortvel. Estes poe-mas segundo o poema. Mas com quanto mais certezas vou para um poema, mais elas saem goradas.Falou da crise que o nove pode significar. E disse que viveria uma crise. Que crise essa? E que repercusses ela pode vir a ter no que escrever/publicar a seguir? O nove no tar o Eremita, um ve-lho gasto do caminho percorrido e que aponta a sua candeia no para a frente, para o desconhecido, mas para o caminho j realizado. o fim do ciclo da primeira sequncia de-cimal, antes do dez, que A Roda da Fortuna, abrindo passagem se-quncia seguinte. Acontece tambm que cumpri sete anos desde que pu-bliquei o primeiro livro e sabido que, de sete em sete anos, aquilo que foi aberto se encerra. A crise

    um desarranjo benquisto e o que vir estar certo, estar mais certo ainda.Que papel ter Ruy Belo na sua percepo da infncia?No tem muito. No o que mais guardo da leitura que fiz. Foi de rompante. Depois no terei voltado muitas vezes ao Ruy Belo. Ter tam-bm alguma coisa, mas no sei se devo muito ao Ruy Belo nesse as-pecto.Mas deve-lhe alguma coisa?As barbas.O poema longo no?Tambm. Eu lembro-me de que os primeiros poemas mais longos que escrevi foram a tentar copiar aque-la maneira de escrever. Mas no a partio dos versos, no as mins-culas. Tenho minsculas, mas quan-do vem um nome prprio uso mai-sculas. Tambm na partio do verso. O verso mais curto, tam-bm.Noutro comentrio marginal, referiu que era difcil estar no meio do incndio, creio ter percebido que, tambm, em relao infncia.No me lembro exactamente do con-texto em que o disse, mas entendo bem essa ideia da dor da travessia. Mas a minha tentativa agora perpe-tuar o incndio. A minha me teve uma vez um sonho, que foi o mais dramtico de todos, e de que ela ain-da se lembra e fala. Sonhou que era um helicptero. Mas o helicptero estava a arder. Estava em pleno voo, s que em chamas. E tinha um me-canismo dentro de si para apagar o prprio fogo. O fogo era o horror do sonho, aquilo que era preciso apagar. Pesquisas minhas mais recentes fize-ram-me voltar a essa conversa com a minha me. Ela lembrava-se bem do sonho. E a minha proposta foi a de que o fogo era a coisa boa. Havia que deixar o fogo. Entrando tambm um pouco por estas correntes que chegam da ndia, e destes gurus que foram beber ndia e voltaram. No tm de ser indianos. Eles falam mui-tas vezes do fogo, em que preciso arder at ficar apenas o essencial. Ento, o fogo, se o encararmos, as-sim. Os nossos medos tm de ser abraados. Eles no esto fora de ns, esto dentro de ns. E essa pro-posta j era intuda por mim h mui-to tempo, quando lhes disse [aos pais] que queria escrever poesia e ser poeta. A vida era para arder. uma tentativa de perpetuar um fogo que havia, que era a infncia. Quan-do ainda no estamos muito polu-dos.A escola no ensina nada de bom (cf. Persianas: uma escola onde/ j se sabe/ nada de bom se ensinar)?A escola uma coisa que faz parte do todo, e aprende-se em todas

    Depois de dez anos em Lisboa, Miguel-Manso mudou-se para a aldeia de Vale do Pereiro, concelho da Sert

  • 16 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    as coisas. Mesmo quando se desa-prende e quando se sofre. Mas a es-cola, como est, foi motivo de gran-des angstias. De violncias. Princi-palmente, na primeira escola. E depois, ao longo da vida, foi motivo de frustrao, de incmodo. A esco-la, como est, no funciona. Tinha de levar uma grande volta.Mas ento podia funcionar? Podia ser outra coisa?A escola podia funcionar menos mal. H quem estude e quem pense. Eu no tenho ideias para isso. Eu s me sinto, senti-me, a certa altura, vitimizado pela escola. Violncia. Enfim. Violncia fsica. Bater a uma criana na escola um crime. E a escola fomenta a competio, a competio entre colegas. Eu sem-pre vivi essa aberrao.H aqui alguns poemas que podem ser vistos como desenvolvimentos do tema do tempo. Qual o tempo do poema? O poema tem o seu prprio tempo? talvez um jogo de espelhos. Tem o tempo do leitor e tem o do autor. E cada um acede ao poema por en-costas diferentes do mesmo monte. S se tocam a. Se calhar, o poema o smbolo de alguma coisa que se queria atemporal. Eu sou muito in-teressado por essa ideia do instante puro e pela eternidade, que so a mesma coisa. E se calhar o poema queria ser esse ponto que no in-teligvel. S possvel apontar para esse espao, esse espao-tempo. No possvel falar de espao sem tempo, aparentemente.A indicao (marca Supremo calibre 16/ cmara 70) remete para o seu livro anterior, Supremo 16/70.Eu tive alguma dificuldade. No fa-zia sentido dar logo essa chave. Mas depois senti necessidade de que se entendesse [os nmeros referem-se ao calibre de munies e cmara da arma que o av utilizou quando se suicidou]. H ligaes entre esses dois livros, como h ligaes com livros ainda mais para trs.Num poema em que diz todo o planeta um carro alegrico// diz o stimo Arcano do Tar, est, realmente, a falar de tar?[Tira do bolso interior do casaco um baralho de tar, ou parte dele, como explicar.] o sete. O carro. Este aqui.O sete um carro alegrico? uma interpretao possvel.Quantas cartas so?Aqui so 22. So os arcanos maiores. Depois h as outras 56. So os arca-nos menores. Setenta e oito ao todo. Isto uma interpretao possvel. um teatrinho, um carro. Tem as rodas de lado, portanto no avana a no ser no prprio planeta, na ro-tao do planeta.

    Mas isso uma interpretao sua, ou resulta de uma subjectividade lida em algum lado? uma mistura das duas.Mas tambm pode intervir, como intrprete?Devo. Se no fosse assim, no seria uma coisa viva. Era uma coisa co-piada. E tar no assim. Deve-se intervir.Tendo em conta isso que diz, mas tambm versos como e cada um destes versos foi/ talvez lanado de l por um persistente e solitrio/ archeiro do debelado exrcito real, consegue descrever o tipo de espiritualidade destes poemas? H um tipo de espiritualidade para eles?S h uma espiritualidade. H vrias religies, mas s uma espiritualida-de. S h um esprito, s h um deus. H inmeras seitas e religies me-nos religies do que seitas que so uma interpretao de uma coisa que ter de ser igual para todos. Portan-to, no h espiritualidades.Este verso: divaga do nigredo ao rubedo e torna.Isto uma coisa alqumica, das fases

    da transmutao da matria, do ester-co ao ouro. Nigredo, albedo, rubedo. So fases. S que o que eu fao aqui voltar outra vez ao esterco, lama.Quando fala da doutrina arcana do poema, quer dizer que o poema sempre um arcano? A nica via para o poema o mistrio?Eu acho que h muitos acessos, mui-tos patamares diferentes. O poema no s uma coisa. Pode ser menos, pode ser mais do que isso. Posso querer menos ou mais, ou ele pode dar-me menos e mais. E ser legtimo e aproveitvel. Comunicvel. No posso dizer que seja s isso, que te-nha de ser assim sempre. Mas uma coisa que agora mais presente do que nos outros livros, em que o es-tava menos.no entendo a paisagem daquele/ que olha um trecho do mundo como se ele/ fora diversamente vasto. Quer dizer que o mundo um s?Visto do nosso patamar, no . muita coisa. Mas se fizssemos aque-le zoom out at muito longe, para l de muito longe, havamos de ter ou-tra ideia. Aqui, parece-nos bastante diverso, ao ponto de pensarmos que somos diferentes, quando somos a mesma coisa. Podemos pensar que, naquilo que no diviso, nesse nosso inconsciente colectivo, abre-se uma porta para qualquer coisa que comum. Aquelas pessoas ali no esto assim to distantes. S na ateno e na parte mental, na parte racional. Mas h outras coisas a acontecer. Nesse acaso, que uma lei que no sabemos, que apenas desconhecemos.Que noo do nosso tempo est na origem destes versos: menor persistncia ter este poema martelado/ agora mesmo na idade do tombo? aquela coisa da extino. Estamos agora no fio da navalha, constante-mente a desviar o olhar de uma coi-sa que bastante presente, e que a extino desta porcaria toda. E como este um livro com preten-ses csmicas, assim Terrence Malick no cinema, de grande dilo-go em cima das espirais, das nebu-losas e, depois, das coisas pequeni-

    nas da vida, do mais pequenino ao maior. A idade do tombo pega nas yugas do hindusmo [vastssimas unidades de tempo no sistema hin-du], nas eras. Estamos na era da decadncia.Essa questo das eras, medidas em milhares, em milhes de anos, lembra o poema A Falha do Tejo.Eu queria escrever um livro muito extenso, e ao mesmo tempo queria que se atravessasse uma coisa demo-rada, mas que no o fosse. Esse poe-ma guardado para o fim um dos que primeiro existiram, e volta a brincar com essa ideia: em termos geolgi-cos, milhes de anos no nada, um instante. Na verdade, h essa ero-so em cima das montanhas, em cima dos tempos, e ns no estamos no final do processo, estamos a meio de um processo que continuar sem ns e que, porventura, recomear. Este poema final retoma essa ideia de tem-po e de brevidade, de demora. Ponho os poetas ao barulho [Jaime Rocha e Carlos Alberto Machado] comigo e vamos pelo intestino abaixo [h um poema em que M-M fala de intesti-no/ do cano, a propsito da gua de um lavatrio].O que o gorila [cf. poema O Gorila Invisvel]?O gorila pode ser muita coisa. No uma coisa s. O gorila invisvel um exerccio que prova a nossa ce-gueira, a nossa ateno dirigida e a desateno para outra coisa que es-t nossa frente. usado como exemplo na psicologia. H vdeos que demonstram esta coisa muito simples. H duas equipas de trs pessoas, cada uma com um equipa-mento diferente, ou preto, ou bran-co. Pedem-nos que contemos quan-tas vezes os jogadores passam a bola entre si. Eles esto misturados, a passar a bola entre si, entre mem-bros da mesma equipa. Aquilo confuso. Tem de se estar atento. Pe-lo meio, passa um gajo vestido de gorila, bate no peito, ruge e sai. E ns no o vemos. Estamos to ob-cecados a contar o nmero de vezes, porque pensamos que o exerccio esse. Porque aquilo difcil. Por fim, dizemos: Dezasseis vezes. Mas viu o gorila? E este exerccio de ateno e de desateno o da lei-tura. Porque este um livro sobre a leitura e sobre o esquecimento. In-teressou-me a cegueira, que uma coisa que me acompanha de outros livros: Um Lugar a Menos, por exem-plo. Depois h outro vdeo. J se vai para ele a pensar Bom, j sei que tenho de ver o gorila. Mas no fim perguntam: Viu que a cortina atrs muda de cor e que um elemento de uma das equipas saiu?

    Ver crtica de livros pg. 24 e segs.

    Tenho a impresso de que isso que os leitores procuram: assistir ao mesmo naufrgio, em diferentes embarcaes. Quando tombar desta vez, vai ser um espectculo desolador ver a tralha toda a boiar

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  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 17

    A solido No mais recente romance de Leonardo Padura h um quadro de Rembrand em Cuba e um passado de culpa e mistrio. Hereges o seu regresso ao policial com o detective Mario Conde no centro de um enredo complexo sobre a solido da escolha individual.

    Isabel Lucas

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    Aquele foi o dia em que Da-niel Kaminsky perdeu a ingenuidade, o dom de acreditar. No entendia porque que aqueles ho-mens e aquelas mulheres

    simplesmente no se atiravam ao mar, tentando uma ltima carta-da. Quinze dias depois de terem sado de Hamburgo no transatlnti-co Saint Louis, convictos de que iam salvar-se da perseguio nazi e ao fim de seis dias no porto de Havana, 937 refugiados judeus entre eles os seus pais e a irm mais nova viam recusado o seu acolhimento em Cuba no que se revelou uma ma-nobra poltica traioeira. A alterna-tiva era regressar ao ponto de par-tida, ao extermnio quase certo.

    Entre uma morte e outra, Daniel, ento com nove anos, no percebia porque no escolhiam a que se lhe apresentava bvia, aquela que lhes dava a possibilidade de vida, por menor que fosse. No sabia que a escolha em se resignarem podia es-tar condicionada por um medo que ele ainda no conhecia e que impe-dia os homens de serem livres na sua escolha pessoal. O conflito nes-te romance o do indivduo peran-te as suas decises, afirma o escri-tor cubano Leonardo Padura sobre Hereges, o seu regresso ao policial e ao detective Mario Conde depois de uma pausa no gnero com o aplau-dido O Homem que Gostava de Ces (original de 2009 que a Porto

    mmmmm

    HeregesLeonardo PaduraTrad. Helena PittaPorto Editora

    do homem no momento da escolha

  • 18 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    Editora publicou em 2011), um ro-mance histrico centrado no assas-sino de Trotski, Ramn Mercader (1913-1978), e no fracasso de uma das grandes iluses do sculo XX. He-reges so os que ousam questionar a ortodoxia. Seja religiosa, poltica, social, de costumes ou ideologias, continua o escritor de 59 anos, na-tural de Havana, que escolheu viver em Cuba apesar de tudo.

    A conversa com Padura acontece em Lisboa e comea no ponto exac-to onde foi interrompida, faz seis anos, justamente no dia em que Fi-del Castro passou o poder ao seu irmo Raul e uma nova expectati-va surgia num perodo histrico que o escritor ento classificava de herege por lhe faltar crena, qual-quer tipo de crena, que algo que corta qualquer aco que no seja vazia. Vivemos entre expectativas, diz Leonardo Padura sobre os cuba-nos. Continuam. Depois de Castro, com Raul e agora com o anncio do reatar de relaes com o grande vi-zinho do lado.

    Nos ltimos cinco, seis anos, houve em Cuba uma srie de mu-danas, econmicas, sociais. No so grandes mudanas, mas so im-portantes em relao ao que se pas-sava. Havia como que uma imobili-zao da sociedade cubana e entrou-se num movimento diferente a partir de 2008. O processo no tem que ver com a macroeconomia, mas com solues de alguma abertura pequena empresa privada, possi-bilidade de viajar para o estrangeiro, s pessoas venderem e comprar as suas casas. Isso trouxe uma mobili-dade econmica maior. Mas as pes-soas esperam mais, porque quem beneficia com a possibilidade de viajar ao estrangeiro, de montar pe-quenos negcios ou vender as suas casas, quem j tem algo. A maioria da populao est em condies que no posso dizer que so de pobreza, mas so difceis. O governo de Raul Castro reconheceu que os salrios no chegam e estamos a falar de um pas onde 80 por cento das pessoas trabalha para o Estado. H uma so-

    luo que tarda. Por isso o anncio do reatar de relaes entre Cuba e os Estados Unidos criou muitas es-peranas que tambm no tero uma soluo imediata. As pessoas vivem entre dois extremos: ou no acreditam ou querem acreditar por-que precisam de acreditar.

    E como fica o escritor entre estas crenas? Um cubano tambm com nacionalidade espanhola, que nun-ca quis deixar a ilha. Ficar foi uma escolha muito individual, apesar dos riscos de estar numa ditadura e de escrever numa ditadura. Muitos es-critores saram. Ele ficou e tem tra-ado um retrato do pas sobretudo nos romances de Mario Conde, o detective que criou em 1991 e que lhe serve para, numa trama policial, falar da sociedade, da economia, poltica, cultura. Quando se lhe per-gunta acerca da sua esperana sobre o futuro de Cuba, o sorriso de Padu-ra podia ser como o de Mario Con-de, silencioso, a olhar em frente, mas menos desalentado. Ele est entre os da expectativa, mas E o

    Quando se lhe pergunta acerca da sua esperana sobre o futuro de Cuba, o sorriso de Padura podia ser como o de Mario Conde, silencioso, a olhar em frente, mas menos desalentado. Ele est entre os da expectativa, mas. E o sorriso volta, interrompido por um cigarro. At quando, a que custo? tudo

    Padura regressa ao policial com o detective Mario Conde. A

    personagem e o escritor tm a mesma idade, fazem 60 anos em

    2015. Os dois olham o mundo com ironia

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    sorriso volta, interrompido por um cigarro. At quando, a que custo? tudo.

    Plano humano e fi losfi coCom Hereges, Padura continua no territrio do romance histrico, mas com um enredo policial. Mario Con-de est mais velho, tem 54 anos. Continua a negociar livros antigos depois de ter deixado a polcia, mas o negcio no vai bem. Vive de bis-cates e da generosidade de amigos quando lhe aparece um homem, Elas Kaminsky, descendente dos judeus que viveram em Cuba. Vem atrs de um quadro de Rembrandt e, atravs desse quadro, da histria da famlia.

    O caso serve ao escritor para ex-plorar vrias geografias Cuba, Mia-mi, Amesterdo e vrios tempos que vo da II Guerra ditadura de Batista, o incio do perodo soviti-co, a crise de 90 quando Cuba ficou isolada, os ltimos dias da governa-o de Fidel, e o sculo XVII na en-

    to cidade mais rica da Europa, Amesterdo, com o apogeu da pin-tura. talvez o livro mais comple-xo de Mario Conde, refere, um emaranhado de cruzamentos hist-ricos pessoais, culturais que se or-ganiza volta do tema da liberdade individual. Esse o projecto poltico de Padura.

    No gosto de escrever sobre te-mas que estejam directamente vin-culados com a poltica. Em O Homem quem Gostava de Ces a poltica me-teu-se dentro do livro. Se estou a trabalhar um personagem como Trotski, teria de entrar. Mas neste caso decidi escrever um romance no qual o conflito fosse visto a partir do indivduo em relao s suas pr-prias decises e como essas decises entram em conflito quando chocam com a sociedade em que se vive. Mas tratei de fazer um plano humano e, de alguma maneira, filosfico.

    No incio da ideia havia um jovem cubano que decidia afastar-se das grandes massas e praticar alguma opo individual. A ideia evoluiu.

  • psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015 | 19

    Dei-me conta de que se escrevesse essa histria apenas centrada em Cuba, a leitura iria ser apenas pol-tica. Tudo o que sai de Cuba se l politicamente. Por isso comecei a procurar outros contextos, outros momentos histricos, outras perso-nagens, com um conflito similar e abri o espao do romance a perso-nagens to distintas como um judeu sefardita na poca de Rembrandt, um judeu que nasce na poca da II Guerra, e um jovem cubano de hoje que pertence a uma tribo urbana, tentando ver como nestas socieda-des, nas quais as pessoas gostam de uma grande liberdade, o facto de praticar essa liberdade se revelar um conflito que exige um preo que po-de ser muito alto.

    Cuba est l mas numa perspec-tiva que permite olh-la tanto a par-tir do interior como com o distan-ciamento de quem a descobre ou a sente como apenas parte de sua identidade, como Daniel Kaminsky, o rapaz que nasceu em Cracvia e que os pais enviaram para viver com o tio em Cuba, tinha ele oito anos, quando a Alemanha nazi comeava a perseguir os judeus. Eles tenta-riam juntar-se. Conseguiram lugar no Saint Louis e o que seria um vis-to de residncia em Cuba. chega-da os planos foram frustrados. O visto que compraram era afinal uma farsa e pediam-lhes muito dinheiro para ficar. No o tinham, mas tra-ziam um tesouro, um quadro de Rembrandt, um rosto de um judeu que se assemelhava ao de Cristo e que estava h trs sculos com a fa-mlia. Tero acenado com o quadro s autoridades de imigrao quando num momento em que a corrupo alastrava e depois disso mais nada se soube at que o quadro voltou a aparecer, num leilo, j no incio do sculo XXI. Esteve em Cuba, mas sai de l. Nesse lapso de tempo falta sa-ber tudo sobre o seu percurso onde parece ter havido um homicdio.

    Elas, o filho de Daniel, nascido em Miami, vem por isso ilha onde o pai dizia ter vivido os seus dias mais felizes. Estamos no presente deste romance: Cuba em 2007 e 2008. E Mario Conde surge a unir as pontas, do pas e das personagens que por ele passam num processo de avaliao e busca de identidade. Com cinquenta e quatro anos fei-tos, Conde sabia que era um para-digma daquela que, havia anos, ele e os amigos definiram como a gera-o escondida, os seres cada vez mais envelhecidos e derrotados que, sem conseguirem sair da sua toca, tinham evoludo (involudo, na rea-lidade), transformando-se na gera-o mais desencantada e fodida do novo pas que se ia configurando. Sem foras nem idade para se reci-clarem como negociantes de arte ou gerentes de empresas estrangeiras ou, pelo menos, como canalizadores ou doceiros, s lhes restava resistir como sobreviventes.

    A causa da gerao a gerao de Padura. Ele e Conde tm a mesma idade. Fazem 60 anos em 2015. Os dois olham o olham o mundo com ironia, mas em Conde

    h uma melancolia que vai bem com os habanos e com a perda do sonho, tinha levado sumio o seu sonho de escrever um romance onde con-tasse uma histria, obviamente des-pojada e comovente, como as que escreveu aquele filho da puta do Sa-linger, l-se no arranque, retrato breve do estado em que vamos en-contrar o detective que no aparecia desde Neblina do Passado (2006), quando estava a comear a comprar e vender livros antigos e ele achava que ia escrever um livro. Conde no chega a ser cnico. irnico e muito desencantado e isso produz uma grande tristeza face ao que vai vendo na sociedade. Mas tem um elemento que neste romance est sublinhado: a sua capacidade de en-tender. Como os velhos sbios, ele parte de um olhar crtico face a um grupo de jovens mas vai-se solidari-zando com eles at ao ponto de en-tender porque actuam e sentem de uma maneira que no a dele. um elemento muito importante no ro-mance: a mudana de pensamento, o modo como se fazem contgios. uma condio para a liberdade individual: a capacidade de ser na diferena e apesar da diferena. Ser-se o que se na sociedade, seja no sculo XVI ou agora. Isso implica solido, mas essencial.

    este o quadro para falar da he-resia tentado despir a palavra do preconceito e herege, neste contex-to, o que nega um dogma, que di-verge ou se afasta da linha oficial de opinio seguida por uma instituio, por uma organizao, por uma aca-demia. diz o Diccionario de la Real Academia de la Lengua Espaola, que citado quase como epgrafe e que acrescenta, em sublinhado aqui, o que se entende por estar herege em Cuba: estar muito difcil, espe-cialmente no aspeto poltico e eco-nmico. Ou, acrescentaria ao ler-se o romance, numa solido que pode ser extrema e se sente ao ler, por exemplo, a lpide do tio de Daniel num cemitrio asquenaz deixado ao abandono em Havana. Joseph Kaminsky. Acreditou no Sagrado. Violou a Lei. Morreu sem remor-sos.

    o acto de pensar distinto da ortoxia estabelecida, esclarece Le-onardo Padura antes de justificar o ttulo. Hereges porque h vrias as personagens que se afastam da or-todoxia e porque quer desconta-minar o termo de uma carga nega-tiva dada pelo pensamento catlico que sempre considerou o herege algum que cometia um grande pe-cado que tinha que ver com os dog-mas da Igreja Catlica. Acontece com a Bblia e com outros livros e outras religies. O Talmude o Coro. Eu gosto da palavra, do seu signi-ficado positivo. Muitas das conquis-tas da Humanidade deveram-se a atitudes hereges. Dizia-se que o mundo era plano e um herege que se chamava Cristvo Colombo veio provar que era redondo. um pou-co dessa maneira que assumo a pa-lavra e a converto a ttulo e trato de lhe dar o seu verdadeiro significa-do.

    Com a sua histria de 4 mil anos

    de perseguies e fugas, de vida em guetos, do livre arbtrio, do homem enquanto dono da deciso final en-tre o bem e o mal, os judeus dava-me um universo de possibilidades para falar do homem livre, mesmo sa-bendo que tocava em questes de-licadas. Estamos a viver 70 anos depois da guerra e h um papel am-bguo e polmico dos judeus na His-tria, a deciso de onde nos colo-carmos perante a Histria. Um ju-deu no o mesmo que o judasmo, e o judasmo no o mesmo que o sionismo. preciso fazer muitas dis-tines para poder entender desde o indivduo at aos comportamentos polticos de uma determinada co-munidade. Passa-se o mesmo com os cubanos. Entend-los desde a sua individualidade at sua colectivi-dade e creio que a h um paralelo possvel no romance. Tratei de no entrar na parte poltica da questo judaica a no ser quando isso era inevitvel. Quis v-la, sobretudo, nesse conflito que eles representam to bem, a prtica do livre arbtrio, ou a possibilidade que o homem tem de escolher e de exercitar a sua li-berdade individual um tema que j aparece na Bblia e uma questo filosfica que nos acompanha h quatro mil anos na cultura ociden-tal. No sei se ser da mesma forma na cultura chinesa, hindu ou japo-nesa, mas sei que na cultura judaico-crist um conflito que nos tem perseguido e nos continua a perse-guir.

    Diz Elas a Conde: A minha van-tagem ser um judeu da periferia, em todos os sentidos, algum que pertence e no pertence que sabe a Lei mas no a pratica, o que permi-te a Padura ir por uma perspectiva crtica, de distncia. Ele o herdei-ro da perda de inocncia de Daniel, o judeu que deixou de acreditar num Deus cruel que pedia todos os sacrifcios ao seu povo, incluindo o de os fazer recuar na deciso de se atirarem ao mar de Havana naquele dia 2 de Junho de 1939. Numa carta ao filho, Daniel escrevia que o as-pecto mais lamentvel de toda a historia judaica, e com o qual nunca estaria de acordo, estava relaciona-do com o que ele considerava um profundo sentido de obedincia, que tantas vezes evolura para a sub-misso como estratgia de sobrevi-vncia. Falava, evidentemente, da sua sempre polmica relao com o Deus de Abrao, mas sobretudo, daqueles episdios decorridos du-rante o Holocausto, em que tantos judeus assumiram o seu destino co-mo inapelvel.

    Daniel deixou de ser judeu e mais tarde voltou a fazer os votos porque queria sentir-se pertencer a algo. Deixar a sua solido. O tio Joseph foi sempre convicto da sua crena at ao dia em que deixou. Deixou? A solido da lpide dir isso ou outra coisa? No fcil contar a trama des-te livro sem a comprometer. H um quadro de Rembrandt em Cuba e a suspeita de um homicdio e uma ge-rao de hereges sem causa um pou-co semelhana da que James Dean protagonizou no filme de 1955, Fria de Viver.

  • 20 | psilon | Sexta-feira 17 Abril 2015

    Sara Carinhas um corpo. Mais do que uma voz, a ac-triz em Orlando um cor-po-depositrio de histrias, discursos sobre o tempo, sobre o gnero e sobre a

    beleza da androginia, temas que lhe interessam e se confundem em palco com o seu percurso. Estou a pr a Virginia Woolf vincadamente na minha histria, no meu papel como leitora, e a partilhar isso. Es-tou a imprimir tudo isto em mim, conta.

    exactamente esse lado de leito-ra que sobressai desta pea hbrida, a meio caminho entre o teatro e a dana, esticando-se ainda at ao ter-ritrio das canes, num somatrio de recursos que nos fazem pensar numa leitura a ganhar vida nossa frente. As imagens estimuladas por um livro e a forma como cada frase pode despertar memrias prprias e colar-se a um tronco de aconteci-mentos passados iguais, idnticos ou at de relao pouco explicvel, tudo isso fica habitualmente tranca-do na cabea de quem l, como uma experincia pessoal. Orlando torna essa experincia transmissvel, ain-da que codificada por uma cartogra-fia alheia que s actriz diz respeito e no espectador apenas poder pro-vocar a sua prpria camada de iden-tificaes e estimulao de mem-rias individuais.

    talvez por isso que Orlando a histria no aqui realmente con-tada, -nos sugerida se inicia com Sara Carinhas deitada sobre um lon-go canteiro instalado em cima de uma mesa. Cada sobre a terra, de onde acorda ou nasce para as hist-rias, est cercada de objectos que fazem daquele espao um jardim, uma casa, um caixo, uma mesa. Sara cala luvas no meio de cactos, livros e chvenas de ch para reme-xer na terra, nas memrias. E tudo o que faz, cada gesto, esconde um icebergue enorme que no vis-vel, diz o coregrafo Victor Hugo Pontes. Tudo parece extremamen-te frgil mas todas as opes esto sustentadas. No h nenhum gesto que seja aleatrio ou que exista ape-nas porque bonito. Tudo nasceu do estudo do texto e das imagens que nos suscitava.

    Foi pela leitura do texto, precisa-mente, que comeou h quase dois anos esta parceria entre Sara Cari-nhas e Victor Hugo Pontes. Depois de ter mergulhado a fundo na obra

    de Virginia Woolf para avanar com a sua primeira encenao, As Ondas, Carinhas sentiu que a pea, forte-mente literria, no a esgotava nem saciava, ficando a pairar como um assunto pendente entre as duas. Em primeiro lugar, queria reclamar a sua prpria experincia de lidar com as pal