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James Benning e o Comentário à Técnica em 13 Lakes (2004) e RR
(2007)
Por Luís Mendonça
I like walking, and I like the way you feel when you're in a landscape, the way you can
measure yourself against landscape, the way landscape puts you into a proper
perspective.
James Benning1
1. A técnica como "ritual da aparição"
O que procurarei, desde já, analisar em James Benning é a forma como a
tecnologia "se intromete" na paisagem não tanto num sentido "desfigurador" mas mais
como pura entrada em campo ou aparição que auto-comenta a ironia que assiste, hoje,
em tempos de desmaterialização do nosso mundo, a todo e qualquer indício da
passagem humana. Como se o seu cinema materializasse o acesso a um olhar da
Natureza sobre o mundo humano, dizendo-nos pela simples manifestação deste último
quão vão, impositivo, sobranceiro e até desprezível é o modo como se faz presente,
isto é, o modo como se "põe em cena". Um problema físico, metafísico ou um
problema puro de mise en scène?
1 Citação extraída da entrevista de Benning a Scott MacDonald no livro A Critical Cinema 5,
2006, p. 232.
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A resposta, que tentarei fundamentar, passa por dizer sim às duas hipóteses,
mas começando por dar especial atenção àquilo que talvez seja menos óbvio: os
filmes de paisagens de Benning respondem aos problemas do mundo tanto quanto
respondem aos problemas do cinema. E quando digo "respondem" digo "reagem", isto
é, não se limitam à fórmula das obras-postais com imagens bonitas de locais exóticos,
paraísos terrestres para consumo doméstico (o "sair de casa cá dentro" de todas as
salas de cinema deste mundo); não, digo "agem" e de forma continuada sobre a nossa
percepção do mundo. Trata-se menos de uma contemplação que de uma
contemplação, leia-se, um cinema que pela afirmação do projeto-paisagem (= de uma
paisagem projetada na tela) faz da contemplação sobre a mesma a fonte da sua ação
crítica (= política).
O fato de se apontar uma câmara para uma paisagem significa, no cinema do
americano, a produção de um sentido que invariavelmente desfecha num problema
inerente não ao fato-paisagem mas ao fato de "se estar a filmar uma paisagem", isto é,
ao "por quê" desse ato que, com a constituição de uma história do cinema e a
formação dos primeiros estudos fílmicos, foi roubando inocência às famosas
primeiras "vistas" do cinematógrafo dos irmãos Lumière, a quem Benning soube levar
à letra a ideia de um "olhar [que] passeia, se perde e se dissolve, em suma, se exerce
num campo" (Aumont, 2001: 43). É que, hoje, ninguém – nem mesmo os Lumière e
de nada lhes vale a morte – pode levar ao ecrã uma realidade tão imediata como uma
paisagem sem fugir às razões estéticas e, até, políticas desse ato. O fato de
continuarmos assombrados – e se calhar cada vez mais assombrados! – com L’arrivée
d’un train à la Ciotat à Estação de Ciotat explica parte da questão.
No que diz respeito à técnica, encontro boa parte destes problemas em 13
Lakes (2004), filme composto por uma série de planos com onze minutos de treze
lagos norte-americanos, dos quais destaco, para esta análise, aqueles onde "entram em
cena" os rios em trajetórias circulares (= Salton Sea); uma fila de carros numa ponte
sem fim, qual carreira de formigas, e um avião denunciado nos céus pelo som que
emite2 (= Lake Pontchartrain); e dois navios, um de carga (= Lake Superior) e outro
2 Como grande experimentador audio/visual que é, Benning também reserva um momento de
"corte" entre a imagem e o som no 6.º plano de 13 Lakes relativo ao Lake Okeechobee.
Ouvimos o barulho de um trem passando mas Benning não o mostra visualmente. Também no incrível penúltimo plano sobre o Crater Lake, se ouvem tiros ao longe, sem sabermos ao certo
de onde virão. O trabalho sobre o som em Benning, neste particular, faz-me lembrar um dos
mais inspirados aforismos de Robert Bresson (2000: 72) do seu Notas sobre o Cinematógrafo:
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de transporte de pessoas (= Lake Powell). Estes veículos normalmente interrompem
ou "entrecortam" a harmonia e placidez, antes da Natureza, do próprio plano.
Algo semelhante se passa na galeria de quadros atravessados pelos trens pós-
lumièrianos de RR, que rasgam a paisagem com o seu traço visual e sonoro – porque o
trem não é mais do que isso: um tracejado desenhado pelo homem sobre o espaço.
"(...) [Os meus] filmes", descreve James Benning em entrevista (MacDonald, 2006:
249), "estão muito mais envolvidos com a referência ao início do cinema, quando as
pessoas punham um rolo na câmara, fechavam-no e deixavam a câmara rodar
continuadamente, registrando o trem chegando na estação por quanto tempo o rolo
deixasse./ Os meus rolos são maiores que aqueles que os Lumière usavam, mas a ideia
é a mesma". A forma como algo aparece, o tal modo de se fazer presente, lembra a
história do "ritual de aparição vis-à-vis de desaparição" de Serge Daney. Convém
contextualizar, começando pelo princípio.
Em 1981, Serge Daney (2004: 91-93) escreve para o jornal Libération dois
"O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apitar de uma locomotiva
dá-nos a visão de toda uma estação".
Salton Sea Lake Superior
Lake Pontchartrain Lake Powell
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artigos que se viriam a tornar imprescindíveis a qualquer estudioso de televisão e
marketing político: no dia 21 de Maio, redigiu “Um Ritual da Desaparição”, dois dias
depois lança “Um Ritual da Aparição”.
O primeiro texto analisa a forma como Giscard D'Estaing se despediu em
direto dos franceses, dizendo "boa sorte França" e saindo de campo, deixando o
espectador "suspenso" num plano vazio e silencioso. Daney analisa esta ausência
como uma tentativa de Giscard encenar a sua partida, sendo que o resultado foi, para
o crítico francês, a perfeita demonstração do poder do fora de campo ou a expressão
sublime da ideia segunda a qual se ocupa o espaço imagi(n)ário da televisão ou do
cinema como se ocupa um território.
Em resposta à desaparição de Giscard, o vencedor das eleições de 1981,
François Miterrand, encena aquilo que Daney (2004: 93-95) vai chamar de "ritual da
aparição": um pequeno filme que anuncia – e enuncia – o começo do mandato de
Miterrand como presidente da França. Se Giscard optara por "marcar terreno" saindo
de campo, Miterrand opta por ser aquele herói que entra, determinado, em cada plano.
À medida que a narrativa avança – o homem anônimo com apenas flores nas mãos
visita o Panteão e deixa-as nos túmulos dos seus ídolos – vamos reconhecendo aquele
"homem da multidão" como "o próximo presidente da República".
De que modo interessa convocar o pensamento de Daney e, em particular, esta
distinção para o nosso trabalho de análise ao papel que a técnica ou a tecnologia
desempenha no cinema de Benning? Desde logo, interessa porque dificilmente
encontramos imagens que joguem melhor com a ideia, cara a Daney, de cine-postal
do que as do cineasta norte-americano. Não que sejam imagens bonitas ou recuerdos
de lugares memoráveis, mas por serem, tal como Daney afirmou, pre-textos para um
"andar/viajar com os olhos", seja para lugares distantes, seja, muito bazinianamente
em profundidade, dentro do próprio plano – e de novo, regressamos às "vistas" dos
Lumière, mas, sublinhe-se, com um redimensionamento do papel da paisagem...
Por outro lado, o fora de campo é trabalhado sonora e visualmente por
Benning como em nenhum outro cinema: a sua câmara estática, que parece "ganhar
raiz" sobre o lugar onde filma, alimenta-se, vive, da excitação dos limites erógenos do
frame, porque não sabemos nunca de onde e se "entrarão" em campo elementos novos
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e estranhos ao quadro, que tornem o postal ou o "slide de viagem"3 num verdadeiro e
inequívoco pedaço de cinema. Veja-se como em Sogobi ou no mais recente Ruhr, por
vezes, a estaticidade do que é filmado produz a ilusão equiparável a um freeze frame
"imposto" à imagem ou a um devir fotográfico do medium...
No seu Abecedário, chegado à letra "d", Deleuze fez associar o seu conceito
de desejo à ideia de paisagem. Depois de sentenciar que nunca se deseja alguém ou
algo mas sim um conjunto, o filósofo francês cita Proust para exemplificar: "não
desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher". O que se
passa em Benning é que o primeiro e mais concreto objeto de desejo não é a rapariga
mas a paisagem propriamente dita, contudo, com a paisagem vem também um
conjunto de coisas, seja a rapariga, seja, para o caso, e decerto menos airosamente, os
produtos mecânicos do homem. O desejo, como o quadro, é, para Deleuze, a
construção de um agenciamento de coisas e o que Benning desmonta (ou desconstrói)
é a ideia de "plano de conjunto" ao fazer deste não a sinalização de um "lugar da
ação" mas a acção propriamente dita.
Se outro realizador optaria por um grande plano sobre o veículo que atravessa
a paisagem – porque o deseja antes de qualquer outra coisa ou apesar de tudo o resto
– Benning não oscila minimamente e permanece com a mesma escala: o plano de
conjunto (imagem-percepção) é sempre um grande plano no seu cinema (imagem-
afecção), pelo que não podia haver close-ups neste cinema, apenas construções de
agenciamentos de "paisagens de paisagens" que envolverão, ocasionalmente, coisas
3 Em entrevista (MacDonald, 2006: 250), Benning conta que o processo de montagem dos
seus filmes se faz com recurso a fotos ou slides dos seus planos que este dispõe, como um texto, uns ao lado dos outros. A relação do cinema de Benning com a imagem fixa, a pintura e
a fotografia, levar-nos-ia muito longe, pelo que remetemos o leitor para o texto que Raymond
Bellour publicou na Trafic, na Primavera de 2010, intitulado «Smithson, Benning».
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que as atravessam tentando o estabelecimento de um lugar... Dito de outro modo: os
mais distraídos diriam que o cinema de Benning é uma coleção de establishing shots,
mas até estes reconheceriam, se pensassem duas vezes, que o que já está estabelecido
sempre é a paisagem, e o que se tenta, quase sempre sem sucesso, "estabelecer" é o
tracejado humano "narrativizante". "Não era tudo sobre trens", nota Bening numa
sessão Q&A a propósito de RR (disponível na edição em DVD do filme pela editora
Edition Filmmuseum), "podíamos olhar à volta do frame e começar a ver algo para
além disso... (...) O critério principal foi tentar arranjar o maior número de paisagens
diferentes que eu conseguisse".
Quando Benning, perguntado sobre os seus filmes, fala em obras
autobiográficas e políticas não estará longe da ideia de um cinema que constrói, antes
de mais, paisagens afetivas ou afetantes pelo simples fato heisenberguiano de se
apontar uma câmara para elas. O próprio acredita que a imagem transmite sempre
mais do que a imagem apenas: "(...) Eu penso que inconscientemente tudo o que se
investe na produção da imagem, de certo modo, acaba na própria imagem. Isto pode
ser um statement arrojado, mas eu não penso que o público consiga explicar os fatos
exatos; é uma coisa sutil" (MacDonald, 2006: 245). Há aqui como que uma tentativa
ou a esperança de instituir, com a cumplicidade nem que inconsciente do público, um
cinema que deseja e faz desejar a paisagem.
Ora, Benning na maior parte das vezes, faz como os Lumière em L’arrivée
d’un train à la Ciotat ou La sortie des usines Lumière – título que, aos nossos olhos
de hoje, ironiza a ideia de saída, já que nele tudo constitui uma "entrada em cena" –, a
saber: investe mais em mostrar a chegada (aparição) do que a partida (desaparição)
do objeto-máquina. Interessa-se mais pelos efeitos, diríamos retóricos ou discursivos,
da sua "entrada em campo" do que da sua "saída de campo".
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O espectador diz para si, exclamando, "ali está ele/ela, um(a)...!" quando esses
artefatos da civilização furam a placidez da paisagem, como que completamente
indiferentes a ela – a aquele mundo não tanto originário mas, mais que isso,
fundamentalmente original (o filme está "nele", o resto são meros "efeitos especiais").
Esses artefatos civilizacionais protagonizam, quase sempre, "aparições no espaço",
como se o fora de campo estivesse de visita, ou melhor, de passagem pelo campo das
imagens virgens, que responderão a eles com igual indiferença, mantendo-se enfim
imunes à sua passagem. Logo, pode haver presença e ausência de algo, mas não chega
a haver fantasma da ou, usando um termo de Daney referindo-se a Giscard, "eco" da
sua presença ausente ou ausência presente na paisagem, talvez porque já antes – e
sempre – o que aparece é, desta feita ao contrário dos Lumière onde tudo é o "trem
que aí vem", a própria paisagem.
Quando o barco ou o rio ou qualquer trem de RR desaparece no horizonte não
ficamos convencidos dos efeitos da sua passagem – é que a paisagem é soberana em
Benning, sempre. O que se passa é a satisfação pelo cinema, ação que se diria
redentora num sentido kracaueriano, de uma fantasia antiga do homem da locomotiva:
"com o desenvolvimento dos meios de transporte rápidos [como a locomotiva], o olho
será fantasiado como um órgão destinado a "engolir" paisagens, no próprio ritmo em
que esses transportes engolem quilômetros e minutos" (Aumont, 2001: 64 ). Ou é isso
ou é exatamente o contrário: não é o olho que engole as paisagens de Benning mas
são estas que engolem o olho. O próprio sentido anglófono de fuga, de land-(e)scape,
não se inscreve bem num cinema onde tudo "aparece" – e daí o seu milagre... –,
começando pela própria paisagem que nos aparece "cheia de mundo", apesar de
expurgada da nossa, enfim particularizada, mundanidade.
O que quero eu dizer com tudo isto? Talvez que Benning fale muito
concretamente de uma ocupação sempre-estrangeira de uma paisagem que se quer
salvaguardada na imagem; de uma ocupação que não se quer "normalizada", na
medida em que o objeto que aparece "passa" pela paisagem que é independente
daquele, porquanto quando aquele aparece esta já é toda ela presença. Benning torna
a paisagem sempre mais afirmativa (= desejável), logo, impede a respiração da
ausência fantasmática do objecto técnico que indicia mas não "confirma" – e este
"mas" é muito importante, como veremos no ponto seguinte – a presença humana. O
trem ou o barco pode ser "fantasmático" – porque a sua aparição digladia-se com a
aparição-já-feita-presença da paisagem – mas a sua ausência não deixa rastro – a
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presença da paisagem "vence" sempre as aparições não desejadas, menos desejáveis,
da técnica.
Qualquer um destes objetos, usando aqui uma imagem de Hannah Arendt, é
produtor do nosso mundo, ou seja, por resultar da técnica e ao permanecer no tempo,
produz o mundo do Homem, aquele ser que, ao contrário dos outros animais,
consegue pelo trabalho (e pela, não aqui desenvolvida, ação) acrescentar mundo ao
mundo que a Natureza, desde a nascença, lhe oferece. Quando se lê trabalho pode ler-
se técnica na passagem em que Arendt (2001: 20) escreve o seguinte: "O trabalho é a
atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não
necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie (...). O trabalho produz um
mundo “artificial” de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural."
A lógica da aparição é a que predomina, não a da desaparição, para que
Benning nos dê a ilusão de podermos olhar uma paisagem através do mundo anterior
à técnica, logo, anterior ao Homem. Na época do digital, da robótica, da muito
debatida desumanização do Homem pela técnica, Benning produz uma nuance
singular: faz-nos olhar com os olhos desse mundo anterior ao Homem – o da
Natureza, enfim – para esse mundo desumanizado pela ou que tende a ser só técnica.
O homem está sempre ausente porque o olhar de Benning é sempre um olhar que
comenta a presença do homem pela aparição não deste mas das máquinas que o fazem
representar na paisagem, como se elas – já na sua ausência – continuassem agora a
história do Progresso4.
Trata-se, portanto, de uma crítica ao Progresso e, nesse particular, a escolha do
trem como "segundo protagonista" de RR a seguir à paisagem é muito significativa, já
que a locomotiva foi, como mostra por exemplo Zygmunt Bauman em Liquid
Modernity, o primeiro medium industrial, isto é, mecânico e semiautomático, a
conceber sozinho toda uma nova concepção espaço-tempo. O cinema haveria de
mimar, como tenciono desenvolver no segundo ponto, a transformação perceptiva
operada pelo caminho de ferro – e tornar-se, talvez, na garantia técnica do "progresso
e da harmonia entre as nações" de, pelo menos, toda a primeira metade do século XX
4 Importaria, neste ponto, trazer à tona o filme de Allan Sekula e Noel Burch, The Forgotten
Space, que mostra o mundo como uma complexa rede de trânsito de mercadorias, onde o
elemento humano parece estar cada vez mais ausente. Igualmente interessante, ou até de modo mais significativo, seria realizar a comparação do cinema de Benning com o do seu
cineasta-irmão, o norte-americano Peter B. Hutton – deixo essa missão para futuros trabalhos.
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(até ao surgimento da televisão), equivalendo-se ao papel da locomotiva no século
XIX.
Benning incorpora nas suas imagens aparentemente inocentes de paisagens a
crítica que alimenta as formulações mais disfóricas sobre o papel crescente que a
técnica desempenha na nossa sociedade, de Baudelaire ou Benjamin a McLuhan ou a
Flusser, passando obviamente por Arendt. Por outras palavras, o cinema de Benning
faz testemunho de um homem reduzido à técnica, de um homem que despreza o
"mundo anterior" que o originou.
A crítica de Benning é tão concreta quanto isto, porque, não haja ilusões, a
contemplação não está imune ao exercício crítico, estético e político. Aliás, Benning
põe a contemplação ao serviço de uma crítica ao Progresso. Essa crítica faz-se em nós
a partir das suas imagens "puras" de aparições estrangeiras de navios e comboios onde
o homem se faz representar na paisagem, como que reduzido ao indício (ao index
diria Peirce) dessa passagem. Cinema de contemplação? Não, cinema por uma
contemplação do espectador-viajante.
2. O digital ou o suicídio como paisagem
Proponho começar por fixar a ideia segundo a qual o trem é a figura-síntese da
experiência cinematográfica. Em O Olho Interminável, Jacques Aumont traça um
interessante paralelismo entre a experiência pioneira das viagens de trem e os relatos
dos primeiros espectadores de cinema, que viam no novo medium uma forma de
“transporte” – para viagens – mais do que um meio expressivo de comunicação. Deste
modo, de "olho móvel e corpo imóvel" (Aumont, 2001: 55), o espectador do cinema e
o viajante da locomotiva se equiparavam. O trem "continua a ser o lugar prototípico",
escreve Aumont (2001: 54), "onde se elabora, em pleno século XIX, o espectador de
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massa, o viajante imóvel. Sentado, passivo, transportado, o passageiro (...) aprende
depressa a olhar desfilar um espetáculo enquadrado, a paisagem atravessada." Mais à
frente, o autor francês complementa esta ideia afirmando que tanto o sujeito do
cinema como o sujeito da estrada de ferro são "– Freud e Benjamin estão de acordo
sobre isso – (...) um "sujeito de massa", atormentado por um ser-de-espectador
anônimo e coletivo. (...) Em suma, [um e outro são] um sujeito neurótico, ou passível
de ser neurotizado, ou seja, moderno. E o cinema, reconhecido, fará da locomotiva
sua primeira estrela" (Aumont, 2001: 55).
Ainda que hoje não se discuta que o cinema não é um meio de transporte mas,
no limite, um meio de comunicação, nos primórdios da sua existência, o efeito das
imagens projetadas na grande tela para uma plateia de pessoas sentadas na sala escura
despertou nestas, antes de tudo, a ilusão de "estarem a andar de trem". Mesmo na
cabeça dos pioneiros do cinema, a confusão era patente. Os grandes panoramas do
século XVIII e XIX, sobretudo os "moving panoramas" americanos, onde uma
imagem que chegava a ter três milhas de comprimento era desenrolada à frente de
milhares de pessoas, combinavam a ideia de viagem associada à locomotiva com a
dimensão "dispositiva" ou estética do cinema (Aumont, 2001: 56-57). No seu artigo
“Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo”, André
Parente relembra um dos primeiros dispositivos cinematográficos testados nos
indefinidos primeiros anos da invenção dos Lumière. Inventado pelo norte-americano
William Keefe, os Hale's Tours eram salas de cinema sob a forma de um trem que,
conta Parente, seriam exploradas comercialmente por George Hale. "O edifício
principal simulava uma estação [de trem] (...), e os empregados, de uniforme,
introduziam os espectadores para "viagens" de meia hora, em salas de sessenta
lugares" (Parente, 2007: 18).
Na própria linguagem encontramos sinais curiosos deste paralelo, seja no
tracking shot inglês, seja no "passar um filme" em português (como a paisagem que
passa, veloz, ao nosso lado, do lado de lá da janela da cabine do trem) ou ainda,
complementarmente, na ideia de travelling associada ao movimento da câmara.
Estrada, paisagem e viagem. O cinema faz-se território em movimento um pouco
como o trem que "abria" geografias desconhecidas e as planificava, ou seja, "punha
em plano" num mapa. Não restam dúvidas de que o trem e o cinema estavam
destinados ao grande encontro na primeira projeção de imagens em movimento da
história.
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Com efeito, o trem, o meio de transporte de pessoas, é aquele que mcluhaniza
L’arrivée d’un train à la Ciotat dos Lumière: afinal, a experiência do cinema era uma
extensão fenomenológica da experiência das grandes viagens de trem – mais até, se
calhar, do que um desenvolvimento natural da fotografia. O cinema nasce com a
imagem do trem, que, por sua vez, como já aflorei, é o símbolo maior da modernidade
tecnológica e da política de ocupação territorial – os westerns americanos
encarregaram-se de traçar a genealogia da locomotiva a vapor, a propósito dos
processos de disputa e conquista do território ao inimigo índio.
Não espanta por isso que entendamos o trem como sendo algo mais do que
apenas "mais um" meio de transporte – de sight seeing. Cedo se percebeu que este é,
também e acima de tudo, um dispositivo de poder e não espanta por isso que também
vejamos no cinema – ou nos media fotográficos – um igual mecanismo de ocupação
do espaço, não-terrestre, do imaginário, assente nos trilhos infindáveis do
inconsciente5.
Posto isto, e dando sentido à máxima de Marshall McLuhan, no L’arrivée d’un
train à la Ciotat temos um bom exemplo de como o "meio é a mensagem": o cinema
auto-reflete-se na sua imagem primordial – o trem – para celebrar o seu próprio
nascimento. Como bom produto lacaniano da modernidade, o cinema nasce olhando-
5 A este propósito, no seu O Cinema ou o Homem Imaginário, Edgar Morin escreveu que o
inconsciente, esse conceito forjado pela psicanálise, que por sua vez, é uma desmontagem
quase mecânica dos processos da mente, funciona como uma espécie de cinema em miniatura
que temos na cabeça.
L'arrivée d'un train à la Ciotat (1895) de Auguste & Louis Lumière
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se ao espelho, fazendo desse gesto auto-referencial uma espécie de crítica para-
psicanalítica da modernidade. Só temos consciência disso hoje, ultrapassado que está
o trauma da imagem realista que pôs em movimento aquele como outros cenários
corriqueiros do dia-a-dia – a "monstruosidade do quotidiano e do banal" é, contudo,
assunto que ainda não está inteiramente dissecado e daí talvez o retorno de muitos
cineastas contemporâneos às coordenadas do cinema primitivo.
Assim sendo, L’arrivée d’un train à la Ciotat é talvez mais do que o seu título
aparentemente inocente possa dar a entender; o primeiro filme do cinematógrafo é a
chegada de um novo medium e a partida de um outro. O trem não acabava, mas o
cinema irrompia como meio de transporte ainda mais expressivo, um rival de peso,
porquanto tinha a capacidade de engolir todos os outros – um pouco como o que
acontece hoje com a convergência multimediática propiciada pelo digital, o cinema
vinha "totalizar a nossa experiência". Um novo meio de transporte, um novo meio de
comunicação, um novo instrumento de poder.
O que é que Benning e RR têm a ver com toda esta exposição? Tudo. Trata-se
de uma colagem de planos-sequência totalmente imóveis (a câmara é a primeira a
condenar o espectador à imobilidade do trem...), uns mais longos do que outros, que
começam com a entrada em cena de uma locomotiva e acabam com a sua saída do
"quadro"6. Os trens têm, contudo, uma dimensão (ainda) mais fantasmática que o trem
dos Lumière, visto que Benning privilegia os trens que transportam mercadorias em
contentores "anônimos", formas de diversas cores que desfilam, ordeiramente,
rasgando (e interrompendo) a beleza de (extra)ordinárias paisagens naturais – não foi
Godard que disse que, ao contrário de Méliès, os Lumière buscavam o extraordinário
no ordinário? Em RR, contudo, não há sinal de vida humana. Este trem de Benning,
desumanizado, "automático", infinito, põe em confronto, ou melhor dizendo, atualiza
a querela Lumière-Méliès, ao mesmo tempo que criticamente desatualiza o novo
mundo fantasmático do digital. Novo, escrevi, mas será nova a coisa nova que coloca
questões antigas?
6 Este não será o espaço para analisar a ironia profunda que perpassa parte – se não toda – a
obra do norte-americano. Em RR, ela atinge o delírio burlesco quando, já volvida quase uma
hora de filme, num plano "tirado" do topo de um monte sobre uma ponte férrea que atravessa
o rio, vemos uma luz ao longe. O espectador dirá "vem aí mais um trem, parecido ou igual
aos outros" – isto é, robusto, infindo e ruidoso. Mas não: a "montanha pare um rato" a meio do percurso quando nos apercebamos que o que nos "aparece" é um carrinho que circula
sobre o caminho de ferro. É o momento The General de RR – traço irónico que apenas afloro
neste análise, deixando o seu aprofundamento para "outras núpcias".
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No seu Theory of Film, Siegfried Kracauer sai em defesa da tendência realista
em contraponto com a tendência formativa, pondo em confronto dois planos que têm
como denominador comum a imagem do trem. Diz Kracauer (1997: 32) que “(…) o
trem em L’arrivée d’un train à la Ciotat é a coisa verdadeira, ao passo que o seu
correspondente em La voyage à travers l’impossible de Méliès é um trem de brincar
tão pouco realista quanto o cenário que este atravessa”. O trem de brincar de Méliès
não era considerado "the real thing", logo, seria uma mentira que não caberia ao
cinema perpetuar, porque o cinema servia para "iluminar" o nosso caminho em
direção ao real-absoluto (a verdade) e não encobri-lo de fantasias e ilusões humanas
(a ficção).
A maturidade da linguagem cinematográfica parecia depender do material de
que eram feitas as locomotivas "imagi(n)árias", mas olhando para os trens de Benning
parece que encontramos a síntese destas duas tendências: sim, os trens estiveram ali e,
sim, não são feitos de plástico ou papier maché; por outras palavras, são "the real
thing", mas, por outro lado, o que é que estes trens têm a ver com o trem dos Lumière,
o trem do século XIX, que transportava famílias para longe, espalhando a população
pelo território, ou que muito romanticamente separavam para sempre casais de
namorados – ele ia para a guerra e ela despedia-se dele, na Estação, dizendo adeus
La voyage à travers l'impossible (1905) de Georges Méliès
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com um lenço branco, ensopado em lágrimas, na mão? Os trens de Benning são
pesados, duros, mas também se pareceram com brinquedos tal como são "mostrados"
pela câmara. A pergunta "haverá alguém a conduzir esta máquina já totalmente
desumanizada e indiferente à vida natural que a envolve?" acentua a sua dimensão
perturbante e fantasmática, ao mesmo tempo que comenta ou se deixa comentar pela
envolvência – e até aqui vai a sutileza crítica de Benning.
Estes objetos-espaços sem vida lembram as salas de cinema em que centenas
de cadeiras vazias, por levantar, assistem – sem magia que as anime... – à projeção de
filmes... O trem e a sala de cinema apresentam-se, hoje, cada vez mais como "não-
lugares" remetidos ao esquecimento pela sobrelotação virtual do ciberespaço e pela
reinante cultura ultra-sedentária do on demand – do sofá e dos TV dinners. Contudo,
os bens – por exemplo, as coisas de que são feitos os sofás e os TV dinners –, esses,
RR (2007) de James Benning
15
têm de ser transportados de um lugar para outro tal como, defendem os "resistentes"
que se alimentam ainda de uma certa "ilusão romântica", as salas têm de continuar a
projectar viagens para cadeiras vazias. Já Daney, num memorável texto intitulado
«Por uma cine-demografia», localizava a crise do cinema no campo não da geografia
mas da demografia: "A crise das salas de cinema torna-se incontestável no dia em que
um limite é alcançado: tão poucas pessoas na sala quanto as personagens que estão no
filme".
Os tempos são mais favoráveis à experiência voyeurista e individual – de peep
show – do Cinetoscópio de Edison, por um lado, e à sobrelotação humana nos
primeiros filmes do cinematógrafo, por outro. Benning oferece a solução: para salas
vazias, projeta sobre a paisagem as primeiras evidências (do inglês evidence) do
suicídio da espécie humana. Landscape Suicides? Sim, mas mais que isso: "RR ou o
suicídio como paisagem ".
É desolador assistir a este suicídio não da mas na paisagem moderna, onde o
papier maché de Méliès nunca se pareceu tanto – ou parece-se mais, pela primeira
vez! – com o concreto "the real thing". RR põe-nos a pensar sobre onde estão, onde
param..., os objetos de desejo e de "disputa" filosófica caros aos cineastas/teóricos
primitivos e como podemos caracterizar a condição da imagem cinematográfica num
mundo onde a ideia de "lugar" ou de "pessoa" está cada vez mais abstratizada pelo
fenómeno do digital.
Bibliografia
ARENDT, Hannah, A Condição Humana (1958), Lisboa, Relógio D’Água, 2001.
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Luís Guilherme Jordão de Mendonça é licenciado em Comunicação Social (curso
pré-Bolonha) pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade
Técnica de Lisboa (ISCSP-UTL). É mestre em Ciências da Comunicação sob a
orientação do Prof. Dr. João Mário Grilo, na especialidade de cinema e televisão, pela
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Iniciou
há dois anos o curso de doutoramento, com o apoio da Fundação para a Ciência e
Tecnologia (FCT), na mesma área e na mesma faculdade, sob a orientação da Profa.
Dra. Margarida Medeiros. Organizou vários ciclos de cinema e debates e realizou o
curta-metragem Lugar/Vazio em 2010, filme mostrado no festival Panorama e
estreado na Cinemateca Portuguesa. Escreve regularmente no
blogue/newsletter CINEdrio e no site de cinema À pala de Walsh. No dia 14 de Maio
de 2012, fundou o grupo abîme com Francesco Giarrusso.