josefo e a invencao da teocracia

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HVMANITAS- Vol. LH (2000) NUNO SIMõES RODRIGUES Universidade de Lisboa FLÁVIO JOSEFO Ε A «INVENÇÃO» DA TEOCRACIA Abstract: - The word «theocracy» was created by Flavius Josephus in his book Against Apion, written between 93 and 96 A. D. However, as we try to show in this essay, its «invention» can't be considered a total originality or a simple product of the fortune, since this kind of politicai theorization was a cornmon philosophical topos among several previous and contemporaneous authors, like Herodotus, Xenophon, Plato, Aristotle, Polybius, Cícero, Pliny, the Elder, and Philon of Alexandria, who gave a context to Josephus. Besides, the use of the term «theocratic» in connection to the history of Israel also seems not to be a pacific question in Josephus' work, mainly when we compare the Jewish Antiquities with the Against Apion. So, we try to understand the context of this «invention» and the reasons for these discrepancies. Apesar de o termo teocracia, criado por Flávio Josefo numa das suas obras, o Contra Apião (II, 165), se ter difundido amplamente no âmbito da filosofia e da ciência política, sendo frequentemente usado a nível historio- gráfico para caracterizar o sistema de organização política de algumas civili- zações, estados/instituições e/ou períodos históricos, não tem sido dos temas mais tratados na extensa bibliografia dos autores que se interessam por este historiador judeu do século I d. C. 1 Ε a propósito de um elogio de Moisés, que Josefo afirma ter sido a sua actuação como legislador um modelo de desempenho político para os povos, ao ter estabelecido um regime que o historiador caracteriza com uma palavra nova, a teocracia. Com este estudo, é nossa intenção demonstrar que a «invenção» da teocracia não é apenas produto de uma súbita inspiração lin- guística de Josefo; que se situa num contexto cultural bem definido. Preten- 1 Dos autores que abordaram a questão, são de destacar os trabalhos de G. Hõlscher, Die Ouellen des Josephus fúr die Zeit vom Exil bis zum jiidischen Kriege, Leipzig, 1904; Daniel R. Schwartz, «Josephus on the Jewish Constitutions and Community», Scripta Clássica Israelica VII, 1983-1984, pp. 30-52; Yehoshua Amir, «Θεοκρατία as a concept of politicai philosophy: Josephus' presentation of Moses 1 Politeia», Scripta Clássica Israelica VIII-IX, 1985-1988, pp. 83-105.

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Artigo do professor Nuno Simão Rodrigues acerca do termo "Teocracia" em Flávio Josefo.

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  • HVMANITAS- Vol. LH (2000)

    N U N O SIMES RODRIGUES Universidade de Lisboa

    FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA

    Abstract: - The word theocracy was created by Flavius Josephus in his book Against Apion, written between 93 and 96 A. D. However, as we try to show in this essay, its invention can't be considered a total originality or a simple product of the fortune, since this kind of politicai theorization was a cornmon philosophical topos among several previous and contemporaneous authors, like Herodotus, Xenophon, Plato, Aristotle, Polybius, Ccero, Pliny, the Elder, and Philon of Alexandria, who gave a context to Josephus. Besides, the use of the term theocratic in connection to the history of Israel also seems not to be a pacific question in Josephus' work, mainly when we compare the Jewish Antiquities with the Against Apion. So, we try to understand the context of this invention and the reasons for these discrepancies.

    Apesar de o termo teocracia, criado por Flvio Josefo numa das suas obras, o Contra Apio (II, 165), se ter difundido amplamente no mbito da filosofia e da cincia poltica, sendo frequentemente usado a nvel historio-grfico para caracterizar o sistema de organizao poltica de algumas civili-zaes, estados/instituies e/ou perodos histricos, no tem sido dos temas mais tratados na extensa bibliografia dos autores que se interessam por este historiador judeu do sculo I d. C.1

    a propsito de um elogio de Moiss, que Josefo afirma ter sido a sua actuao como legislador um modelo de desempenho poltico para os povos, ao ter estabelecido um regime que o historiador caracteriza com uma palavra nova, a teocracia. Com este estudo, nossa inteno demonstrar que a inveno da teocracia no apenas produto de uma sbita inspirao lin-gustica de Josefo; que se situa num contexto cultural bem definido. Preten-

    1 Dos autores que abordaram a questo, so de destacar os trabalhos de G.

    Hlscher, Die Ouellen des Josephus fr die Zeit vom Exil bis zum jiidischen Kriege, Leipzig, 1904; Daniel R. Schwartz, Josephus on the Jewish Constitutions and Community, Scripta Clssica Israelica VII, 1983-1984, pp. 30-52; Yehoshua Amir, as a concept of politicai philosophy: Josephus' presentation of Moses1 Politeia, Scripta Clssica Israelica VIII-IX, 1985-1988, pp. 83-105.

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    demos tambm mostrar que a classificao de Israel como estado teocrtico no linear em Josefo e que o ideal de teocracia no parece ser a nica pro-posta do historiador para a anlise do regime poltico do seu povo. finalmente, tentar perceber os condicionalismos da criao do termo de tanto sucesso e por que razo existe uma discrepncia na classificao feita por Flvio Josefo nos primeiros livros da sua obra e na que expe no Contra Apio.

    1. O contexto da teorizao poltica greco-romana

    No se pode, de forma alguma, dizer que a introduo do assunto na obra josfica seja uma originalidade ou uma novidade para a literatura antiga. Na verdade, o tema da politea era j, ao tempo de Josefo, um tpico usado quer por historiadores quer por tericos do pensamento greco-romano2. A inveno da poltica, da politologia e da histria institucional deve-se aos Gregos, como salientaram C. Moss, J. Bordes e M. Finley3, e Herdoto , ao que parece, o primeiro autor conhecido a introduzir a questo, no terceiro livro das suas Histrias. A propsito da histria dos Persas, despoletado um debate, onde trs personagens (Drio, Megabizo e Otanes) argumentam quanto s qualidades dos diversos regimes polticos, monarquia, oligarquia e democracia, suas vantagens e seus inconvenientes (III, 80-82). Cabe a Drio apresentar aquele que acabar por vencer, a monarquia, valorizando-se, no entanto, a democracia, ao se referir que Otanes, a personagem defensora deste regime, era, apesar de tudo, o mais livre dos Persas (III, 82). Os exege-tas de Herdoto salientaram j que as concepes subjacentes a estes discur-sos so, por certo, gregas e no persas, visto que os argumentos e as catego-rias neles usados o so tambm4. Parece estarmos perante o mesmo processo, quando Josefo enuncia a politea de Israel e dos Judeus.

    2 Etimologicamente, significa constituio ou forma de governo

    de uma polis ou cidade-estado, tudo o que diz respeito vida pblica de um Estado. Os Romanos consideraram respublica o termo latino equivalente. A definio de Maria Helena da Rocha Pereira, Introduo in Plato, A Repblica, 6" ed., Lisboa, F.C.G., 1990, p. XLVII. Deve ainda referir-se que, para os Gregos, o termo englobava diversas realidades da cincia poltica, como regime, constituio, governo e cidadania. Neste texto, trabalhamos o vocbulo enquanto sinnimo de regime. Cf. Aryeh Kasher, The Jews in Hellenistic andRoman Egypt, Ttibingen, 1985, p. 359.

    3 Claude Moss, Histoire d' une dmocratie: Athnes, Paris, 1971; Jacqueline

    Bordes, Politea dans lapense grecquejusqu' Aristote, Paris, 1982; Moses I. Finley, Politics in ancient World, London, 1983 e L' invention de la Politique, Paris, 1985.

    4 Sobre esta questo, ver J. A. S. Evans, Notes on the debate of the Persian

    Grandees in Herodotus 3, 80-82, QUCC, 1981, pp. 79-84, citado por Cristina

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 197

    Por vezes historiador, por vezes pedagogo, por vezes economista, por vezes simplesmente filsofo, Xenofonte no resiste a opinar tambm acerca do melhor dos regimes. Na Constituio dos Lacedemnios, o autor apresenta a defesa de uma ideia de poder assente na figura exclusiva do chefe que exerce a autoridade sobre os seus subordinados/sbditos5. Foi a experincia militar de Xenofonte que lhe deu a tendncia para considerar o problema fundamental do governo como o de garantir e manter a disciplina, de fazer com que o bom cidado seja um bom soldado ou um bom oficial. A forma de o fazer atravs da persuaso, havendo quem os guie, no quem os obrigue ou force obedincia, pois isso tirania. Com esta tese, Xenofonte evoca j a lei da seleco natural, visto que o mais fraco deve estar sujeito ao mais forte, sendo que este deve ser naturalmente fiel e capaz de inspirar a fideli-dade aos outros. O rei deve ser um modelo para cada um dos seus sbditos em matria de piedade, de disciplina pessoal, de atenes para com os outros e de integridade. Assim, o monarca ideal de Xenofonte aquele que possuir estas qualidades, identificando-se com a prpria lei e devendo rodear-se de pessoas com as mesmas caractersticas. Na Ciropedia, o autor far de Ciro a imagem ideal desse monarca.

    Alguns anos mais tarde, Plato volta ao problema, sendo o primeiro autor a sistematizar/reflectir, na Repblica e nas Leis, sobre as formas poss-veis e ideais de um regime poltico (e. g. Leis 712). Plato retoma a classifi-cao de Herdoto e Xenofonte, mas com novidades em relao a estes, pois prope um regime baseado numa ideia reguladora: o Bem. Para o pai do idealismo, o regime ideal a monarquia do rei-filsofo, um sistema que M. Prlot e G. Lescuyer apelidaram de sofiocracia, o poder do sbio6. Plato reconhece, para alm desta forma, a oligarquia, que pode degenerar em timo-cracia ou em plutocracia, e a democracia. A sofiocracia, por sua vez, pode tambm degenerar em tirania, considerada a pior forma de governo para o filsofo. Outra particularidade do pensamento poltico de Plato o facto de ele reconhecer um processo cclico nos regimes polticos, uma anaciclese (?). Isto , todas as sociedades passam pelas diversas formas de regime preconizadas, voltando a elas ininterruptamente, pois evoluem e trans-

    Abranches em Herdoto, Histrias- Livro 3, traduo, introduo e notas de Maria de Ftima Silva e Cristina Abranches, Lisboa, 1997, p. 111.

    5 Ideia sugerida por Diogo Freitas do Amaral em Histria das Ideias Polticas,

    vol. I, Coimbra, Almedina, p. 83. Na mesma obra pode igualmente encontrar-se uma sistematizao do pensamento poltico de Plato. Aristteles e Ccero, que tambm consultmos para a sntese desta introduo, pp. 85-150.

    6 Termo apresentado por Mareei Prlot e Georges Lescuyer em Histoire des

    Ides Politiques, 1 Ia ed., Paris, 1992, p. 50, a partir de ? e Kpcos.

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    formam-se consoante as circunstncias histricas, mas subordinadas lei do eterno retorno. De algum modo, esta tese reassume o esprito da evoluo das idades da concepo hesidica.

    Para Aristteles, um regime pode ser definido como a organizao da cidade no que se refere a diversas magistraturas e, sobretudo, s magistraturas supremas. O governo o elemento supremo em toda a cidade e o regime , de facto, esse governo {Pol. 1278b). Na Poltica, Aristteles divide os regimes polticos em sos e em insanos. A monarquia, a aristocracia e aquilo a que chama politea, por um lado; a tirania, a oligarquia e a democracia, por outro {Pol. 1279a). Tudo depende da quantidade de indivduos que controla as instituies e os rgos de deciso/soberania; bem como da moderao ou desmesura com que o fazem. A justa-medida grega, a eunoma (), a concepo que preside a estas definies e teorizaes. Para o Estagirita, a tirania uma monarquia regulamentada pelo interesse exclusivo do monarca, e assim sucessivamente em relao aos restantes regimes. Isto , a deficincia dos regimes at ento propostos que nenhum deles se ocupa do benefcio da comunidade em si mesma e enquanto um todo, mas de apenas uma parte dela. Pelo que, a soluo aristotlica acaba por ser de compromisso: a optimizao vem do aproveitamento dos vrios aspectos positivos de dois dos trs regi-mes, da oligarquia e da democracia7. A originalidade aristotlica est tambm na relativizao, visto que o filsofo afirma que o regime poltico no uma universalidade, mas que cada povo/comunidade deve optar pelo que mais lhe convier. O mestre de Alexandre destaca-se ainda de Plato ao apresentar a evoluo dos sistemas polticos de forma diferente: enquanto em Plato a evoluo se faz do positivo para o negativo, em Aristteles comea-se pelo regime que cronologicamente teria antecedido todos os outros, verificando-se posteriormente uma evoluo gradual positiva. Comea com a monarquia, passa oligarquia, tirania, democracia e termina com o que apenas designa como politea.

    Em Polbio, voltamos a encontrar o mesmo tema e o mesmo processo de apresentao, a propsito da histria de Roma (os historiadores referem-se aos regimes polticos como parte necessariamente integrante da histria dos Estados-tema dos seus livros). Para este historiador, tambm os regimes se sucedem uns aos outros num processo de anaciclese, o ciclo das constituies e a sua ordem natural, que se alteram e transformam para retor-nar ao ponto de origem (VI, 5-6, 10). Fazendo as distines j clssicas entre regimes, o historiador das guerras pnicas no aceita as seis propostas

    7 J Tucdides enunciara esta questo a propsito do governo dos cinco mil,

    VIII. 97.

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    tradicionais como as nicas possveis, nem sequer as melhores. Antes pelo contrrio; recebendo por certo influncia aristotlica, afirma dever consi-derar-se como ptimo o regime misto, o que integre as trs caractersticas, como prova o caso de Esparta. Polbio distingue tambm monarquia de tira-nia, referindo que aquela deve ser aceite apenas quando o regime escolhido livremente como tal e exercido atravs da razo e no atravs do medo ou da violncia (VI, 3-4). Para Polbio, a realeza deriva da monarquia, forma espontnea de governo, e degenera em tirania.

    Entre os latinos, um dos pensadores que reclamou a reflexo da cincia poltica foi Ccero. Este comea por aceitar as propostas gregas, reconhe-cendo a monarquia, a aristocracia e a democracia como os regimes possveis. Mas, para o pensador romano, nenhuma destas formas por si s a ideal. Todavia, pode retirar-se de cada uma delas o que de benfico existe para o governo da cidade. Pelo que, a melhor constituio poltica aquela que resulta da fuso harmoniosa destes trs tipos de governo salutar8. Ccero recupera assim a concepo eunmica de Aristteles. Onde est a novidade em relao ao Estagirita? O contributo provm dos trs regimes, como j propusera Polbio, e no apenas de dois; depois distribui as funes pblicas pelos rgos de governo correspondentes, consulado, senado e tribunais, colocando frente de cada um desses rgos indivduos provenientes dos diferentes grupos sociais. De algum modo, Ccero acabou por teorizar a legi-timao do sistema de principado que combateu at morte. Sistema que se preparara com Sula e com Jlio Csar e que se concretizou com Augusto. Isso porque esta proposta rene aspectos dictatoriais/monrquicos a sena-toriais/oligrquicos e a democrticos/republicanos (assembleias/comcios). Pode assim dizer-se que Ccero descreveu uma cidade que surge como uma platnica idealizao de Roma e que, por sua vez, servir de modelo ao principado de Augusto9. Ainda entre os latinos seria injusto no referir a importncia de Plnio, o Antigo, para a temtica em anlise, visto que este contemporneo de Josefo tambm dedicou as suas reflexes s formas de constituio poltica, nomeadamente figura do rex e s caractersticas do tirano10.

    8 ... statu esse optime constituam rem publicam quae ex tribus generibus illis...

    confusa modice..., Rep. II, 41. 9 Ideia enunciada por Eduard Meyer e Paul Friedlnder em Plato, vol. 3, New

    York, 1969, p. 140, citado por Maria Helena da Rocha Pereira, Introduo in Plato, A Repblica, &' ed., Lisboa, F. C. G., 1990, p. LI, nota. 128.

    10 Sobre Plnio, ver Francisco de Oliveira, Les ides politiques et morales de

    Pline Ancien, Coimbra, INIC, 1992, em especial as pp. 3-104 e Claude Nicolet, Les ides politiques Rome sons la Republique, Paris, 1964.

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    Tambm contemporneo de Josefo, Flon de Alexandria, que com o historiador partilhava o facto de ser judeu, abordou tambm esta questo. O interesse deste filsofo helenizado pelo tema da politea surge a propsito da crtica que faz do Pentateuco, o qual considera conter j a proposta de regime ideal para a comunidade dos homens. Para Flon, a oligarquia e a tirania so regimes inaceitveis; enquanto a monarquia, a aristocracia e, particularmente, a democracia so aceitveis. Todavia, a supremacia de Deus j enunciada na reflexo de Flon. A propsito de alguns costumes orientais, como o casamento incestuoso, por exemplo, que Moiss recusa adoptar para a sociedade de Israel, o filsofo refere que o legislador no podia aceitar tais leis estrangeiras como tolerveis e contrrias a uma politea irrepreensvel como se pretendia aquela. O melhor dos regimes (? ?), tambm chamado o regime sagrado (ep ), que j em Flon tem como protagonista a figura de Moiss, deriva do facto deste autor considerar Israel o povo adoptado por Deus e, como tal, governado directamente por ele".

    Sem contarmos com as obras desaparecidas, de outros autores que dis-cutiram este problema e a que Flvio Josefo poderia eventualmente ter tido acesso, h pelo menos sete nomes da literatura greco-latina, todos eles ante-riores ou contemporneos do nosso historiador, que apresentam e debatem a questo. Assim, parece estarmos perante um tema comum aos pensadores clssicos, dos quais encontramos reminiscncias em Josefo, a avaliar pela forma como este enuncia o problema. Avaliar e indagar a melhor politea um problema universal da filosofia poltica antiga12. Todos criticam algum regime, ao mesmo tempo que praticamente todos propem regimes e constituies ideiais e Josefo no foge a essa regra, recorrendo para isso a

    2. Dois regimes para um mesmo Estado

    A apresentao do regime poltico de Israel em Josefo faz-se de duas formas. A primeira nas Antiguidades Judaicas, compndio de histria de Israel terminado em 92-93 d. C, sem que no entanto exista qualquer livro ou

    11 Ideias expressas em textos como Spec. I, 51; III, 24, 167; IV, 55, 161-181,

    237; Fug 10; Agric. 46; Decai. 155; Virt, 180; Abr. 242; Confus. 108; Somn. I, 219; Deus 176.

    12 Cf. a obra clssica de T. A. Sinclair, A history of greek politicai thought,

    London, 1951, que nunca cita o nome de Josefo. Polbio tem sido considerado o autor que mais influenciou Josefo neste assunto, Shaye D. Cohen, Josephus, Jeremiah, and Polybius, History and TheorylX, 1982, pp. 366-381.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 201

    sequer pargrafo inteiramente dedicado a ele. A enunciao das opes pol-ticas faz-se ao longo da obra, a propsito da mudana de conjuntura poltica, de reinado ou de perodo histrico e isso , apesar de contextualizada na narrativa histrica do povo, uma novidade em relao aos autores anterior-mente citados, visto que no se dedica um espao propriamente dito ao tema; d-se antes oportunidade ao leitor/auditor de ele prprio sistematizar essas informaes e tirar essas concluses. assim possvel apresentar em sntese o pensamento de Josefo quanto evoluo poltica do Estado judeu ao longo da sua histria e enunciar as principais concluses relativas aos regimes pol-ticos por que se optou, que da se inferem. O perodo histrico que vai de Moiss a Josu caracterizado como uma aristocracia (), enquanto o perodo que decorre entre a morte de Josu e a instituio dos Juzes considerado uma anarquia (). O tempo dos Juzes consi-derado um retorno aristocracia e o dos reis, inaugurado com Saul, carac-terizado como uma realeza ()13. O perodo do cativeiro em Babi-lnia no merece, como bvio, um tipo de rtulo poltico por parte do histo-riador. O regime poltico de Israel aps o regresso do exlio em Babilnia, que ocorreu sob domnio persa, que coincide com a gnese do judasmo e que vai at ao perodo hasmoneu, significa para Josefo um retorno aristocracia. De Aristbulo I conquista de Jerusalm por Pompeio, Israel organizou-se novamente sob uma realeza. As reformas de Gabnio so consideradas uma posio poltica de natureza aristocrtica. Com Herodes e Arquelau volta-se realeza, apesar de Arquelau nunca ter sido rei oficialmente. Todavia, a atitude de Josefo coincide com uma norma de tratamento geral da literatura antiga em relao a esta personagem (M 2,22, por exemplo). Finalmente, o perodo que vai do exlio de Arquelau, em 6 d. C, destruio do Templo novamente considerado uma aristocracia^.

    No Contra Apio, que no um livro de histria, mas sim um tratado apologtico de defesa dos Judeus face aos seus acusadores helensticos e romanos, escrito entre 93 e 96 d. C, encontramos sim alguns pargrafos que no s sintetizam o regime poltico em enunciao filosfica, num espao propositadamente dedicado a isso, como se introduzem alteraes em relao s ideias insinuadas nas Antiguidades Judaicas. Isto , as posies apresen-tadas na primeira obra no so coincidentes com as fundamentadas na segunda. As questes so: quais a novidades e por que razo a diferena?

    13 Em Josefo, o termo aparece pela primeira e nica vez em AJ XX,

    229, a propsito do regime estabelecido pelos Juzes. Para definir o poder de um s, Josefo recorre sempre a .

    14 Sobre estas avaliaes, vide AJ VI, 36, 83-85, 268; XI, 111-112; XIII, 301;

    XIV, 91, 389; XV, 11; XX, 229, 241, 247, 251, 261; GJ\, 170.

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    A novidade assenta fundamentalmente na introduo de uma reflexo original sobre o regime poltico institudo por Moiss para os Hebreus/futuros Judeus, que Josefo no tinha feito nas Antiguidades, e na qual usa o neolo-gismo teocracia (), isto , o poder ou a. fora de Deus (CA II, 165). No primeiro caso no estamos perante uma sistematizao filosfica, nem sequer perante uma proposta poltica. Estamos sim perante uma anlise factolgica, a partir da qual se podem retirar algumas concluses. Mas esse um trabalho do leitor de Josefo e no do historiador. Nessa sistematizao, possvel perceber a teoria da anaciclese, j anteriormente enunciada por autores como Plato ou Polbio, patente no ciclo aristocracia-realeza--aristocracia-realeza-aristocracia, que se estabelece a partir da evoluo das conjunturas polticas de Israel. Enquanto em Plato a evoluo se faz pas-sando por vrios estados no sentido da decadncia, em Josefo alterna-se apenas entre dois estados, comeando pelo positivo. Esta enunciao est longe de nos parecer aleatria ou at mesmo afastada da prpria teoria bblica da histria de Israel. Josefo parece atribuir um certo sentido negativo realeza, de acordo com a filosofia deuteronomista da histria, e um sentido positivo aristocracia, na linha do esprito clssico que despreza a monarquia na sua forma totalitria ou tirnica15.

    A evidncia dessa posio est no tratamento do chamado testamento poltico de Samuel (1 Sm 8,11-21/A/ VI, 40-44), onde se enunciam as desvantagens da realeza, que coincidem de forma extraordinria com a caracterizao da tirania em quase todos os autores citados. Considerado um extracto deuteronomista, o discurso do profeta Samuel antes da uno de Saul um manifesto evidente de oposio monarquia como regime poltico em Israel. As razes apresentadas para essa oposio assentam nas relaes de subservincia, contra as quais o profeta alerta. Na sua perspectiva, a monarquia trar ao povo de Israel a opresso e a explorao dos jovens, que sero levados como servos para suprir as necessidades pessoais do rei, sendo usados como cocheiros, lavradores, recolectores, artesos, perfumistas, cozi-nheiras e padeiras, e a espoliao dos bens do povo16. Esta viso da monar-

    15 O Deuteronomista aplica a tese da alternncia entre rei bom/rei mau histria

    de Israel. Saul e David exemplificam essa ideia. O Saul de Josefo uma leitura pessoal original do escrito deuteronomista, dado que o historiador tem conscincia da forma injusta como se tratou esta figura, que considera trgica. Sobre esta questo, vide os nossos trabalhos Rei Saul segundo Flvio Josefo, Diss. Mestrado, Fac. Letras-Univ. Lisboa, 1996 e Saul Rei: heri trgico na historiografia de Israel, Cadmo 6/7, 1996-1997, pp. 89-122. Refira-se que Dionsio de Halicarnasso, em quem Josefo parece ter-se inspirado bastante, usa tambm o tema da decadncia dos regimes em Antiguidades Romanas III, 36; IV, 41, 80; X, 54; XI, 8.

    16 A mesma ideia expressa-se em Dt. 17,14-20.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 203

    quia, feita a posteriori no perodo ps-exlico, a partir da prpria experincia negativa da realeza na histria de Israel, aponta para o condicionamento da liberdade do povo, que contribuiu para denegrir a imagem do rei e o afas-tamento da monarquia como soluo poltica. Josefo manteve-a nas Antigui-dades, acrescentando significativamente no final a expresso indita supli-careis a Deus que se compadea de vs e que vos conceda uma rpida libertao dos rei. (AJ VI, 42) [o sublinhado nosso]. Isto , a referncia final est de acordo com as posies do historiador quanto ao regime ideal a seguir. De algum modo, esta viso da realeza coincide com o que o pensador grego entendia por tirania, e que em Josefo sintoma do afastamento dos homens em relao a Deus (AJV, 132-135). O mesmo regime que criticado negativamente e recusado por todos os autores acima referidos.

    assim que o encontramos logo em Herdoto que, no parecer de Otanes, se refere aos excessos de Cambises e afirma que a monarquia prejudicial, porque adultera os costumes dos antepassados, violenta as mulheres e at condena morte sem prvio julgamento (o termo hybris, $, aparece quatro vezes neste discurso contra a monarquia, dizendo-se que este regime era uma forma de a encorajar, III, 80); em Xenofonte, que apresenta um Licurgo que pretende abster-se de inspirar aos reis sentimentos tirnicos (XIV, 8); em Plato, para quem o tirano pior do que as pessoas que roubam, assaltam casas, vo s carteiras, tiram a roupa, saqueiam os templos, vendem como escravos pessoas livres (Rep. 575b); em Aristteles, que afirma que a tirania o governo de um s que exerce um poder desptico sobre a comunidade poltica (Pol. 1279b); em Polbio, que se refere ferocidade dos regimes monrquicos tirnicos (VI, 9); e at em Ccero, que considera tirano o rei que orienta o seu governo injustamente e a quem chama o mais monstruoso (taetrius, Rep. II, 48) e em Flon, para quem o bom prncipe, que se ope ao tirano, deve ter Deus como modelo (Spec. 186-188).

    Assim, o perodo correspondente promulgao das leis e da constituio de Israel, centrado nas figuras de Moiss e Josu e expresso por um regime aristocrtico, francamente um perodo positivo. Alis, a con-cepo que h-de predominar como base da apologia do sistema poltico dos Judeus para grego e romano verem. O mesmo se diga acerca dos perodos dos Juzes, do regresso do exlio, o tempo de Esdras e Neemias e da canonizao cultural de Israel, e do tempo do prprio Josefo. J o perodo dos reis de uma forma geral mal visto, como demonstram o discurso de Samuel antes da uno de Saul, o falhano do primeiro rei, as guerras de sucesso aps as mortes de David e Salomo ou figuras como Abiam, Nadab, Basa, Omeri, Acab, Acazias, Joro, Atlia, Jezabel, Joacaz, Jeroboo, Herodes e os

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    Hasmoneus. De qualquer modo, o relativo sucesso dos reinados de David, Salomo ou Josias entendido como um nvel aceitvel de piedade virtuosa; porm jamais o regime ideal.

    No segundo caso, estamos tanto perante uma anlise de cincia poltica, que vem no seguimento das de outros autores gregos, em relao a Estados ou comunidades como Atenas, Esparta, Cartago ou Roma, como perante uma proposta de regime ptimo, enunciada pelo princpio da teocracia. Negam-se, portanto, as ideias anteriores. Desapareceram as concepes de anaciclese e de alternncia positivo-negativo. A afirmao da excelncia da constituio judaica coincide assim com a tese apologtica da importncia da cultura judaica para a humanidade, contrariando a ideia que se difundia entre os no-Judeus, de que o contributo do povo de Israel para a felicidade dos Homens tinha sido nulo. a utilizao de tpicos greco-latinos, que Josefo insere na matria bblica, que lhe permite fazer a legitimao dessa apologia no mundo helenstico. Trata-se de uma tcnica retrica usual em toda a obra de Flvio Josefo, como os trabalhos de L. H. Feldman tm demonstrado ao longo dos ltimos anos17. Para melhor introduzir a sua mensagem a uma audincia greco-romana, ou pelo menos culturalmente grega, Josefo utiliza temas e termos da cultura clssica de modo a aproximar o contedo da sua mensagem dos seus auditores-objectivo. Aqui, h vrios aspectos a destacar.

    Em primeiro lugar, a evocao de outros regimes: uns confiaram a monarquias, outros a oligarquias e outros ainda ao povo o poder poltico. Tema que encontramos em alguns dos pensadores antes referenciados. Esparta um exemplo quase omnipresente em todos eles, desde Xenofonte, o que acaba por criar relaes de dependncia textual entre os autores18. So precisamente os casos de Esparta e de Creta, associados ao de Atenas, que Josefo recorda no Contra Apio quando se refere s formas de educao cvica das diversas cidades em questo {CA 172). Parece-nos que uma hiptese de dependncia maioritria de Aristteles na teorizao poltica de Josefo, fortificada pela aluso ao caso ateniense, ganha crdito com esta passagem.

    17 Um dos textos de L. H. Feldman que melhor sintetiza esta questo Use,

    authority and exegesis of Mikra in the writings of Josephus in Mikra: Text, Translation, Reading and Interpretation ofthe Hebrew Bible in Ancient Judaism and Early Christianity, J. Mulder e H. Sysling eds., Assen, 1988, pp. 455-518.

    18 O caso de Esparta, ou Lacedemnia, citado, por exemplo em Plato, Rep.

    452c, 544c, 599d; em Aristteles, Pol. 1275b, 1285a, 1294b; em Polbio VI 10, 49; em Ccero, Rep. XXIII, 42; e, claro, na obra de Xenofonte inteiramente dedicada a esse exemplo. Alm destes autores, houve outros, como Crtias, Dioscrides e Esfero que se ocuparam do caso de Esparta. O mesmo se passa com o caso de Creta.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 205

    Em segundo lugar, a construo da imagem do legislador judeu, que Josefo reintroduz depois da experincia de Flon, com o recurso a temas da filosofia platnica19. Nesta passagem, trata-se de aplicar ao legislador dos Judeus, Moiss, as virtudes cardiais, que surgiam j em Pndaro e em Esquilo, e que caracterizam o heri clssico do perodo helenstico. O libertador do Egipto e autor da constituio dos Judeus assim rotulado como um homem de piedade religiosa (?), de justia (), de temperana () e de firmeza (), acrescentando-se ainda a virtude da concrdia () 2 0. So estas virtudes que permitem fazer o contraste com as acusaes mais vulgares de que Moiss era alvo entre os defensores do anti-semitismo e que o historiador de Massada aqui recorda: No foi um feiticeiro, nem um impostor, como aqueles que nos insultam dizem injustamente (CA II, 161). Para Xenofonte, uma personalidade como esta identificava-se com o ideal de kalokagatha (), a perfeita honestidade e lealdade (X, 4). Tal como para Herdoto a tirania se define pela ausncia, no tirano, de qualidades de moderao e de prudncia, que fazem de um homem no um soberano caprichoso, mas um governante respeitado e respeitador das tradies21, tambm para Josefo isso precisamente o que Moiss no foi: Ele organizou todo o povo de modo a depender dele e, ao ach-lo dcil em todos os aspectos, no tirou proveito dessa situao para a sua ambio pessoal, mas nas circunstncias em que precisamente os chefes se apoderam do imp-rio absoluto e da tirania, e habituam os povos a viverem sem leis, Moiss, elevado a esse grau de poder, assumiu o contrrio... (CA II, 158-159).

    Com este tratamento, Josefo demonstra conhecer o suficiente da tra-dio clssica, que atribua a determinadas personagens-chave a misso de estabelecer regimes polticos. Licurgo de Esparta o caso mais paradigm-

    19 Sobre a possvel influncia de Flon en Josefo, vide W. C. van Unnik,

    Josephus' account of the story of Israels sin with alien women in the country of Midian (Num. 25:1 ff.) in Traveis in the world of the Old Testament, Assen, 1974, pp. 241-261 e H. W. Attridge, The Interpretation of Biblical History in the Antiquitates Iudaicae ofFlavius Josephus, Missoula, 1976, p. 141.

    20 CA II, 159, 170. Nesta passagem, Josefo utiliza o termo em vez

    do clssico , coragem, usado por Plato n' A Repblica, IV, 427e. Por outro lado, a evoca uma virtude romana de origem grega, a concrdia, que faria tambm todo o sentido aos ouvidos dos seus auditores de formao latina, substituindo de algum modo a sabedoria (), que est ausente.

    21 Cf. Dominique Colas, La grammaire politique de Occident. Sur criture

    constitutionnele in Xnophon, Constitution de Sparte- Aristote, Constitution d' Athnes, Paris, 1996, pp. 15-16. Este retrato de Moiss confirma o que Josefo traa do legislador bblico ao longo de/fJII, 224-230, 290; III, 65, 212-213; IV, 13, 42, 156-158,329-331.

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    tico. Mencionado por quase todos os tericos da poltica grega, aparece insinuado por Josefo. A partir do sculo IV a. C, Licurgo, considerado o melhor de todos os legisladores pela maioria dos Gregos, assim como o regime espartano um regime modelo, comeou a ser objecto de uma imensa literatura que durar at ao perodo imperial e cujo exemplo mais conhecido ser o de Plutarco, um contemporneo de Josefo22. O seu Licurgo o sbio e o legislador perfeito, homem de justia, de temperana, de paz e de amor, instrudo por Apolo Ptio. Uma vida que em tudo se assemelha do Moiss apresentado por Flvio Josefo. Este, por seu lado, aproveita a ocasio para introduzir na sua apologia a construo do seu prprio legislador. Trata-se do terceiro aspecto a destacar, relativamente ao mtodo usado pelo historiador: outros factores da construo da imagem do legislador judeu. As funes de fundador, que instituiu as melhores leis; de lder, por se encarregar de guiar as mirades de homens que saram do Egipto, atravessando com eles o deserto; de gestor altrusta, por ser considerado o mais precavido dos conselheiros e o mais consciente dos administradores e no tirar proveito da situao para sua ambio pessoal, o que de imediato o afasta das caractersticas de tirano enunciadas pelos predecessores de Josefo; e, claro, de heri, por vencer os seus inimigos e combater para salvar as suas mulheres (CA II, 157-159, 163). Assim se constitui Moiss como legislador ideal, digno de figurar ao lado, ou mesmo acima, de figuras paradigmticas como Minos, Licurgo, Slon, Drcon, Clstenes e Srvio Tlio.

    Em quarto lugar, citemos precisamente a enunciao de nomes da tradio clssica. raro Josefo recorrer a este mtodo. Ao longo dos retratos historiogrficos que traa nas suas obras, encontramos associaes de ideias ou de carcter entre as personagens bblicas e ou da histria de Israel com personagens da mitologia e ou histria clssica, no comparaes evidentes. Todavia, na exposio da politea moisaica, o esforo de Josefo por se integrar no mundo em que vive to grande, que no hesita em recorrer a nomes que sirvam como argumentos de autoridade entre Gregos e Romanos. assim que se menciona o caso de Minos, o rei mtico to elogiado pelos Gregos, considerado o legislador da politea cretense, e outros legisladores que se lhe seguiram, de onde se infere o j referido Licurgo. A tradio clssica dizia que Minos tinha sido o primeiro a governar os Cretenses com justia, dando-lhes leis para esse efeito, chegando a afirmar-se que era inspirado pelo prprio Zeus. Enquanto legislador, Minos era frequentemente posto em paralelo com Radamanto, seu irmo, tendo ambos assento no

    22 Plutarco, Licurgo, em particular os pargrafos 5-7, 29-31. Numa Pomplio, o

    primeiro organizador de Roma, imitar, segundo Plutarco, o de Esparta.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 207

    Inferno para julgar as almas dos mortos23. Com esta meno, Josefo apro-xima-se da cultura em que est inserido, como faz quando atribui determi-nadas caractersticas dos heris greco-romanos aos heris bblicos. Com a diferena de que agora nomeia declaradamente a personagem, demonstrando estar dentro da matria cultural grega, que aproveita para argumentar o seu prprio ponto de vista. O facto de apresentar uma figura conceituada no meio cultural dominante e de a fazer subordinar em importncia a Moiss, s pode ter como objectivo valorizar este ltimo face aos outros.

    Em quinto lugar, a utilizao de outras concepes filosficas greco-romanas implcitas, das quais se destaca o estoicismo. A formao estica de Josefo tem j sido muitas vezes referida e justificada. Apesar de no ser um bom filsofo, ao longo de toda a sua obra, o historiador insinua posies filosficas que se aproximam do pensamento estico, nomeadamente no que diz respeito ao problema de Deus. A exposio da politea judaica no Contra Apio, parece ser mais uma oportunidade para o autor introduzir as suas ideias no que respeita s questes metafsicas. Josefo comea assim por fazer uma crtica s formas tradicionais da religiosidade greco-romana, dizendo que uns atribuem as suas leis a Zeus, outros fazem-nas remontar a Apolo e ao seu orculo de Delfos, para que dessa forma consigam formas de autoridade legtima sobre o povo para quem legislam (CA II, 162). Do mesmo modo, tambm Moiss se apoiou no divino para estabelecer o regime, pois O nosso legislador no pousou o seu olhar em qualquer destes governos. A diferena est na essncia desse divino. O historiador usa thes (es), para designar Deus. Como j analismos anteriormente, a utilizao do termo aponta para uma neutralizao da figura divina, que ao mesmo tempo se conota com as concepes esticas da divindade24. A escolha dos exemplos de Zeus e Apolo deve-se ao facto de serem Minos e Licurgo os outros legisladores em comparao. No que respeita identificao da divindade, o historiador judeu abstracciona, como seu apangio, e atribui-lhe caractersticas que tambm so esticas, quando diz que Nada pode escapar o seu conhecimento, nem qualquer das nossas aces, nem qualquer dos nossos pensamentos ntimos, tratando-se de um Deus nico, no criado, eternamente imutvel, mais belo do que toda a forma mortal, reco-

    23 Od. XI, 568ss. Ccero cita tambm este exemplo, juntamente com os de

    Licurgo, Teseu, Drcon, Slon e Clstenes em Rep. II, 2. 24

    Cf. Rei Said segundo Flvio Josefo, pp. 226-228 e A. Schlatter, Wie sprach Josephus von Gott in Kleinere Schriften zn Flavius Josephus, Darmstadt, 1970, p. 71. Os tradutores ingleses de Josefo da edio Loeb usam a palavra deity para traduzir o Oes josfico.

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    nhecvel atravs do seu poder, mas irreconhecvel na sua essncia25. Estas palavras traduzem a mesma ideia de um Deus providncia, omnipresente, omnipotente e omnisciente, princpio bsico de todas as coisas, que se identi-fica com a natureza e com a prpria lei. Josefo partilha aqui com os esticos a concepo unitria e abstraccionista de Deus, que engloba todos os atributos do ser divino. O que filosoficamente considerado um estado superior, em relao personalizao mltipla e consequente fragmentao do divino, pela ausncia de absoluto, como seriam Apolo ou Zeus26. o prprio Josefo quem revela essa conexo, como j fizera quando se confessara prximo dos esticos (Vida 12), ao dizer que Pitgoras, Anaxgoras, Plato, os filsofos do prtico que vieram depois, todos eles, quase sem excepo, tiveram mani-festamente essa concepo da natureza divina (CA II, 168). A enunciao destas personalidades funciona tambm como argumento de autoridade perante o seu pblico, mostrando que afinal os Judeus tambm tm as mesmas posies do que os Gregos ou os Romanos sobre determinados aspectos fundamentais da vida e do pensamento. Mais, que os Judeus, em parte, superaram os outros, ao terem constitudo a sua religio e o seu regime poltico com base numa concepo de Deus totalitria e abrangente. aqui inicia a apologia para alm da igualdade. Trata-se j da crena na superio-ridade dos Judeus face aos outros povos, patente em afirmaes como quem instituiu as melhores leis e quem ensinou as normas mais justas sobre religio ou esta concepo de Deus foi a dos mais sbios entre os Gregos, que se inspiraram em ensinamentos dados pela primeira vez por Moiss (CA II, 168). O primado do legislador dos Judeus sobre todos os outros culmina a apologia.

    Assim, ao longo da enunciao da metodologia josfica, verificamos que tudo serve para demonstrar no s a importncia, como mesmo a superioridade da cultura judaica, desde que fundamente a posio do autor.

    25 Diz Josefo em CA II, 167: va ?

    , ? ? ? , , ? ' .

    26 Refira-se que, para alguns esticos, essa entidade identifica-se com Zeus,

    enquanto Deus absoluto. No entanto, partimos do princpio que a meno de Josefo a Zeus, neste contexto, est relacionada com a figura de Minos, pois este teria recebido do pai dos deuses, em Creta, a orientao legislativa, tal como Licurgo a teria recebido de Apolo, em Delfos. Trata-se, portanto, de duas referncias concretas, por relao s duas personagens citadas, que, como vimos, eram as tradicionalmente referidas em textos de cincia poltica. Sobre a metafsica estica, A. A. Long, Hellenistic Philosophy, London, 1974, p. 165.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 209

    3. A inveno da teocracia

    De onde vem a proposta da teocracia? De matria bblica, sem dvida. Ao longo das escrituras hebraicas, so vrios os textos que apontam para uma concepo teocrtica do poder poltico27. tambm essa ideia que est subjacente expresso ... que Eu no reine mais sobre eles. (1 Sm 8,7). Na sua maioria, estes so textos deuteronomistas, cuja elaborao data do perodo exlico ou ps-exlico, aps a falncia da monarquia. Essa posio flosfico-poltica a mesma que justificou a instalao de um regime aristocrtico em Israel, como o prprio historiador reconhece, cuja particularidade era o facto de o grupo dos aristoi ser constitudo pela casta sacerdotal de Israel, qual pertencia a famlia de Josefo, e que alguns entenderam como o aparelho executivo do regime supostamente teocrtico.

    Assim, o neologismo no surge tambm de um repentino influxo do historiador. De acordo com os textos hebraicos, j nas Antiguidades Judaicas (VI, 60), no texto parfrase do testamento poltico de Samuel, se usa a expresso basilea () divina para distinguir de nthrpou basilea ( ), realeza humana. Do mesmo modo, em VI, 61, l-se que, como governante, Deus o melhor de todos ( jioto). Mas, ao mesmo tempo, esta expresso tinha um carcter messinico, no conveniente para ser usado e no servindo para apresentar a politea moisaica a uma audincia helenizante. Foi este factor, aliado tradio historiogrfica e proftica de Israel e ao contexto da cincia poltica grega, que levou criao do neologismo, que resulta assim de uma reflexo lgica, de um trabalho de hermenutica bblica.

    Como se articula a posio demonstrada nas Antiguidades Judaicas com a que transparece no Contra Apiol De algum modo, o ideal teocrtico est j subjacente ao sistema aristocrtico enunciado, visto que para Josefo os aristoi devem governar, no por iniciativa prpria, mas por delegao divina. Trata-se do poder da lei com Deus como rei, como se sugere em Antiguidades IV, 223 e V, 135. O governo dos Juzes ou a prpria actuao de Moiss, por exemplo, comungam j, em parte, desse ideal teocrtico, pois

    27 Ex 15,18; Jz 8,23; ISm 8,6-7; 19-20; lRs 22,19; lCr 17,14; 2Cr 13,8; SI

    24,7-10; 47,3; 103,19; Is 6,1-5; 41,21; 43,15; Jr 10,7-10.

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    Deus quem governa atravs dos seus representantes na terra. Agora, coincide a teocracia josfica com o governo dos sacerdotes, na perspectiva aristotlica de grupo ou classe poltica que controla as instituies? Pensamos que essa no a ideia nem a perspectiva de Josefo, apesar de ser a realidade efectiva. Para o historiador, trata-se de Deus como chefe () da sociedade, como entidade suprema, expressa pela frase Deus basta como governante (AJW, 114, 223). Novidade josfica, que vai ao encontro de determi-nadas posies tericas greco-romanas, nomeadamente o estoicismo. Estamos perante uma soluo de compromisso, cuja percepo s possvel a partir de uma comparao das Antiguidades Judaicas com o Contra Apio. S assim percebemos como relaciona Josefo o seu afecto pela aristocracia com o impulso de inventar a teocracia. Avanaramos com a proposta de classificar a perspectiva josfica do regime de Israel como uma teocracia aristocrtica, em que eventualmente a aristocracia corresponderia imagem institucional real e a teocracia imagem institucional ideal ou utpica, algo semelhante Idade de Ouro de Hesodo que, desenvolvida, daria lugar teorizao messinica do Reino de Deus. O que por motivos bvios, Josefo no fez. Assim, esta teocracia permite-se aproximar mais de modelos executivos aristocrticos do que de modelos de poder absoluto, ou at mesmo de tiranias.

    Novidade terica dada por Israel, uma vez que que no h ainda teorizao em torno da cultura egpcia (onde o representante teocrtico no o grupo, mas o rei/fara), apesar dessa forma de governo se intuir j em determinadas actuaes polticas, mesmo em Roma e em reinados anteriores aos dos Flvios, como os de Augusto e Calgula, por exemplo28. O signifi-cativo ser entender a forma como convivem as realidades imperador e Deus/imprio romano e reino de Deus no esprito josfico. Ser o imperador um representante de Deus na terra ou substitui a funo divina? Nesse caso, deixar de haver teocracia aristocrtica para passar a existir uma teocracia monrquica, o que corresponde soluo imperial.

    Em concluso, aparentemente, Josefo parece recusar o sistema em que estava politicamente inserido, ao valorizar e elogiar como o melhor regime o de Israel. Acontece que a proposta do historiador acaba por se revelar um compromisso que permite a convivncia da utopia judaica, de natureza platnica, com a realidade poltica romana. Na esteira dos seus predeces-sores, recusa a tirania, como se infere pela sua posio que afirma que Moiss no foi ambicioso. Existe discurso messinico? No o cremos. Estamos

    28 Josefo usar tambm as categorias Oes e para se referir a

    Augusto, AJ XIX, 289.

  • FLVIO JOSEFO A INVENO DA TEOCRACIA 211

    perante a anlise e a avaliao de sistemas. A vitria atribuda ao caso de Israel corresponde ao esprito agnico clssico, em que a competitividade permite o aperfeioamento. Coube a Israel expressar esse aperfeioamento, historicamente atestado. Mas no se prope a abolio do sistema poltico em vigor. Em vez disso evoca-se simplesmente um exemplo modelar do passado que convive de forma pacfica com a realidade que provavelmente lhe chega atravs da integrao das comunidades judaicas na dispora romana. O que faz com que, de acordo com o esprito josfico, este no seja propriamente um texto de interveno em relao ao regime institudo. Da a apresentao do regime num contexto perfeitamente definvel, com referncias evidentes s exposies anteriores. Para o relativismo aristotlico, esta exposio/pro-posta de regime seria apenas mais uma forma de governar. Quanto ao esprito platnico, esse rev-se especialmente ao longo das Antiguidades Judaicas, onde Josefo reconhece em parte a tese da anaciclese aplicada aos regimes de Israel, que se alteram ao longo da Histria, de acordo com as conjunturas e as vicissitudes polticas, como j Polbio defendia. Alm disso, para Plato, o Bem a finalidade, o objecto supremo de todo o desgnio e de toda a aspirao, a causa criadora que sustenta o mundo. A ideia de Bem coincide com a ideia de Deus29. Do mesmo modo, em Josefo, Deus tambm se identifica com o Bem, pelo que s a teocracia pode ser o melhor dos regimes, aquele que gerido pelo Bem/Deus. Mas a tese da superioridade vai mais longe. Na cidade ideal de Plato, o rei-filsofo decide sozinho. Deus identi-fica-se com a ideia reguladora, mas Plato no o coloca nominalmente como base do regime. a que Josefo introduz a novidade com o Contra Apio: a presena nominal de Deus como elemento regulador da organizao do sistema poltico.

    Resta-nos lembrar que Josefo no um terico da poltica. Talvez advenham da as incongruncias e a falta de homogeneidade entre o que lemos nas Antiguidades Judaicas e no Contra Apio. Porqu ento a diferena?

    Primeiro, no podemos esquecer que o segundo texto uma apologia, onde o autor tem como objectivo definido demonstrar que os Judeus no esto ao nvel que alguns Gregos e Romanos os colocam e que, como tal, no so merecedores das acusaes de que so alvo. Portanto, Josefo tem de ser mais incisivo na sua definio, mais objectivo e muito menos ambguo. Da, uma afirmao clara e eficaz.

    29 O que leva Ernest Barker a afirmar que o ideal poltico de Plato no fundo

    uma teocracia, Greek politicai theory- lato and his predecessors, London, 1918, p. 304.

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    Depois, o Contra Apio , ao contrrio das Antiguidades Judaicas, um espao de reflexo mais alargado, logo mais propcio teorizao. Isto , a apologia a reflexo possvel depois da longa anlise que foram as Antiguidades Judaicas e a Guerra dos Judeus. verdade que h concepes que usou nessas obras que esto ausentes no Contra Apio. Mas talvez isso se deva ao facto de estarmos perante apenas o necessrio para uma exposio terico-poltica de base, que sustente uma prvia formulao historiogrfica, imprescindvel para a compreenso da evoluo do processo histrico, que serve ento como introduo a um texto mais elaborado, onde se encaixa um apurado debate intelectual, como aquele que encontramos na apologia.

    Finalmente, tendo sido a ltima obra a ser escrita, Contra Apio por isso a que teve mais oportunidades de teorizao, aquela onde tambm esto presentes mais leituras de natureza filosfica. Este texto permite situar o autor no ltimo estado evolutivo da sua maturao terica e, conse-quentemente, aquela em que se l a forma/proposta de Estado mais pura que Israel ter atingido e que funciona como ideal.

    Assim, a inveno da teocracia acaba por ser no uma negao da cincia poltica grega, mas o coroamento da mesma, uma perfeita sntese cultural, s plenamente entendida quando vista do prisma daquela, na qual est inserida e da qual depende, como se v pela contextualizao feita a partir das referncias aos autores implicados no processo. S usando as cate-gorias da cultura grega, poderia Josefo ser bem sucedido a passar essa mensagem. o que ele faz, ainda que tema violentar a lngua grega. De qualquer modo, se a violentou, f-lo eficazmente. A mensagem conveniente, perfeitamente josfica, que lhe permite defender a que considera cultura supostamente mais subtil e evoluda dos Judeus. Tomar outra posio seria entrar em rota de coliso com as foras da sociedade greco-romana antagnicas ao judasmo. O que, conhecendo o passado de Flvio Josefo, no seria plausvel que acontecesse.