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O SANGUE DA DEUSA Kara Dalkey I – GOA http://groups.google.com/group/digitalsource

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Page 1: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O SANGUE DA DEUSA

Kara Dalkey

I – GOA

http://groups.google.com/group/digitalsource

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Título original:

Goa quinto. Blood of the Goddess

© 1996, by Kara Dalkey

Travessa do Noronha, 29- 1º - 1250-170 Lisboa

Telefone: 21 397 87 56 - Fax: 21 395 10 26

Apartado 2657 - 1117 Lisboa Codex - Portugal

Tradução: Cristina Rodriguez e Artur Guerra

Revisão: Frederico Sequeira

Capa: Estúdios Planeta.

Ilustração de Richard Bober

Composição, impressão e acabamento: Grafitexto, Lisboa

Depósito legal nº 164790/01

ISBN 972-731-112-1

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”Não, não, tem asas como um morcego enorme!” O quinto homem

sábio tentou rodear a barriga com os braços e exclamou, ”Deve ser um cavalo

com uma grande cilha!” O sexto, que colocara a mão na ampla testa do elefante,

disse: ”Não, irmãos, estamos enganados. Isto não é um animal, mas uma

parede!” Ao sétimo homem cego haviam-lhe dado os testículos para agarrar e

disse: ”Estais todos enganados. Isto são apenas cabaças num saco de couro.”

Algumas versões deste conto terminam com os sete homens cegos a

lutar uns com os outros até à morte por causa das suas discórdias. Mas o

monge budista escolheu concluí-lo de uma outra maneira: ele disse que os cegos

ficaram tão perplexos com as suas respostas divergentes que não conseguiam

acreditar que fosse o mesmo animal. Por isso cada um dos homens manteve a

mão na parte em que primeiro tocara, deslizando a outra mão ao longo do corpo

do elefante até que encontrava a mão do outro. Ao fazerem isto, os homens

cegos descobriram que embora cada parte fosse diferente, juntas formavam

uma só coisa. E apesar de mesmo assim não serem capazes de apreender a

forma completa da criatura, os cegos tiveram a possibilidade de concordar que

devia ser realmente uma criatura maravilhosa. Eu não falo apenas para encher

o ar com a minha respiração, ou para vos ajudar a passar o tempo com

vacuidades agradáveis. Gostaria que se lembrassem desta história na

continuação da vossa jornada. Só se vê um lado da montanha de cada vez.

Vede tudo o que puderdes, mas sabendo que nunca é Tudo. Que possais

caminhar na sombra da Vontade Divina, estranho.

GANDHARVA

Músico da corte do Sultão Ibrahim Adilshah II

1

1 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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Capítulo I

CARVALHO: A mais possante das árvores, a mais real e santa. Os antigos

consideravam-na a primeira de todas as árvores. Mesmo agora, existem alguns

que vertem o sangue de animais sacrificados nas raízes do carvalho para obter

as suas bênçãos. A madeira de carvalho é considerada a materialização da

força e da resistência, e é muitas vezes queimada em fogueiras sagradas. Os

seus galhos são usados para juntar ervas medicinais. Um barco construído da

árvore conhecida como carvalho-vermelho, contudo, dá azar e encontrará o

infortúnio...

SETEMBRO DE 1597, ILHAS AMINDIVI, MAR LACCADIVE

Thomas Chinnery ergueu o olhar ao som da trovoada distante. Não

havia nuvens a escurecer o céu opressivo de safira por sobre os mastros de

The Bear’s Whelp. Soprou na tinta molhada da carta que estivera a escrever e

pôs-se de pé. Da amurada do navio, podia ver a linha de palmeiras da costa da

pequena ilha onde haviam ancorado. Não viu qualquer homem com pistola. O

navio companheiro do seu, The Bear, estava fundeado a ocidente, mas o som

viera de leste e norte.

— A escrever outra missiva à tua namorada, Tom? - ouviu ele atrás

de si e estremeceu. O escocês, Andrew Lockheart, era um comerciante de lã,

companheiro do senhor Bathwick, considerado um viajante experimentado e

com fama de tratante. Também parecia estranhamente determinado a

pressionar a sua amizade com Thomas.

- Na verdade, não estou, senhor. É um relatório para o meu amo, o

boticário Geoffrey Coulter de Londres. De onde veio aquele rugido?

Os lábios de Lockheart rodeados de barba negra esticaram-se num

sorriso manhoso.

- Pois eu penso que era uma dama rica a gritar: ”Levai-me e serei

vossa.”

- Senhor, falais por enigmas.

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- Achas que sim? Olha para o cimo das árvores longínquas, Tom,

onde ela acena com o lenço para captar os teus olhos.

Thomas fixou o olhar para onde apontava o escocês e viu a ponta de

um mastro, que arvorava um pendão com as cores de Portugal, a mover-se

para sul na direção da ponta da ilha.

- Minha Nossa Senhora - murmurou ele -, outra vez, não. Um

marinheiro na enxárcia do Whelp gritou:

- Um galeão! Não, dois! A avançarem com força!

Os homens já corriam pela costa, abandonando as provisões que

eventualmente tinham recolhido. Saltaram para os esquifes que estavam na

praia e remaram como demônios de volta aos seus navios. O capitão Benjamin

Wood apareceu na coberta da proa, com o cabelo ruivo ondulando ao vento.

- Homens às velas! O Bom Deus manda-nos algo ao nosso engodo.

Se aproveitarmos a brisa, apanharemos a caça lusitana. Levantar âncora! Às

velas!

- Os homens ainda mal recuperaram do nosso último encontro -

suspirou Thomas.

- A cobiça é um remédio muito potente, meu rapaz, e dá vida às

pernas de muitos homens. A propósito disso, talvez tenhas de ir para baixo. As

tuas poções e ervas terão sem dúvida mais utilidade lá.

- Não, os nossos homens disponíveis são poucos. Pedirei ao

contramestre uma espada e entregarei os meus braços à luta.

Lockheart franziu o sobrolho:

- Muito bem dito, rapaz. Mas não te devias poupar para o trabalho

do teu amo?

- Se formos derrotados por falta de homens - disse Thomas -, terei

poucas oportunidades de faturar para o meu amo.

- É verdade. Mas a Dama da Fortuna sorri. Os navios lá de longe

não têm grande capacidade para nos enfrentar. E o capitão Wood tem um

plano engenhoso.

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- Como sabeis isso?

- Porque fui eu que lho dei. - Com uma piscadela de olho, Lockheart

atravessou o convés para ajudar nas cordas. Thomas foi para a escotilha entre

os mastros, onde um rapaz puxava espadas de um compartimento em baixo.

Mesmo os marinheiros que se arrastavam fracos de escorbuto se levantavam

para distribuir as armas e as canecas de cerveja.

O navegador colocou-se na roda do leme e puxou-a para bombordo.

A vela mestra desenrolou-se com um craque pesado e virou para apanhar a

brisa de norte. Lentamente, o Whelp avançou para mar aberto. O Bear, alguns

comprimentos atrás, afastou-se da ilha num ângulo mais para sul.

Thomas emborcou a sua caneca cheia de cerveja amarga de uma só

vez. É bálsamo dado antes da ferida. Remédio para entorpecer os sentidos

para aquilo que se deve seguir. Ele podia ouvir as ordens constantes de

tiroteio a serem gritadas abaixo do convés, e o ribombar e o estrondo das

colubrinas a serem preparadas. As pequenas bombardas e peças de artilharia

do convés principal estavam a ser carregadas com o pouco que restava de

munições. Thomas trocou a caneca de cerveja por um cutelo e uma grande

pistola escalavrada e foi-se encostar à amurada.

Os senhores Allen e Bromefield, os mercadores encarregados da

viagem, passaram por Thomas com os rostos ensombrados pela irritação.

Ouviu-os discutir com o capitão Wood, que não tinha nada a ver com aquilo.

“É verdade”, pensou Thomas, “nunca pensei vir a tornar-me mais pirata que

boticário. Se eu tivesse querido que a pilhagem fosse o meu modo de vida,

teria sido aprendiz do almirante Raleigh”.

Quando o Whelp surgiu da parte de trás da ilha, Thomas teve a sua

primeira visão da presa. Seguindo o vento, à procura de um campo mais

aberto, apareceu um pequeno galeão ostentosamente dourado de umas trinta

toneladas. No entanto, assomava-se por detrás dele a maior carraca

portuguesa que Thomas alguma vez vira; mais de cem pés de comprimento e

mil toneladas, com um mastro principal mais alto que qualquer árvore

natural, e com os lados brilhantes de canhões.

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“Estamos feitos”, pensou Thomas.

A um grito vindo de baixo, as quatro vigias de canhões do Whelp

saudaram os recém-chegados com vozes tonitruantes. Através do fumo acre,

Thomas viu aparecer um corte numa vela do galeão e fendas na madeira do

bojo mesmo por cima da linha de água. A tripulação do galeão estava

espantada com o aparecimento do Whelp, e correram pelas cobertas como

formigas assustadas.

- Apanhámo-los a dormir a sesta - disse Nathan, o aprendiz de

carpinteiro do navio.

- É o que parece - disse Thomas. - E poderá ser isso que nos salve. -

O Whelp estava a passar a leste do galeão e a enorme carraca também virou

na mesma direção, como se quisesse colocar-se entre o galeão e o Whelp.

- Este é rico - disse Nathan, com os olhos ainda no galeão. - Um

mercador particular, talvez com rubis e esmeraldas para as suas senhoras em

Lisboa.

- Sim - murmurou Thomas -, e uma escolta poderosa para o

guardar. - Ele via que metade das dezesseis vigias de canhões da carraca

estavam preparadas e equipadas e, enquanto ele observava, mais vigias se iam

abrindo.

A bombordo da popa do Whelp disparou um último tiro para o

galeão que passava. A tripulação aprontou as velas para dar outra

oportunidade às colubrinas de dispararem. Como uma montanha nascida da

água, a carraca aproximou-se, elevando-se acima deles.

Os canhões do Whelp dispararam outra vez e, por boa pontaria ou

sorte, uma das balas partiu o mastro da vela do traquete da carraca, fazendo

cair pano e corda sobre a coberta. Ouviram-se gritos de júbilo dos marinheiros

ingleses.

Mas quando a carraca passou à popa, as suas colubrinas

responderam. Choveu tiro de canhão e Thomas atirou-se para a coberta. O

navio oscilou e um fumo acre rodopiou à sua volta.

- Estou ferido! - gemeu Nathan.

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- Maldito sejais, capitão Wood - resmungou Thomas enquanto

rastejava para junto de Nathan. A camisa do rapaz mostrava um rasgão

sangrento. - Fique quieto, Nate, senão vais rasgar a ferida.

- Ainda estou bom para lutar. - O rapaz recuou para se sentar. -

Não vou desistir da minha parte da pilhagem.

- Há coisas mais valiosas do que ouro e rubis - disse Thomas,

rasgando a camisa do rapaz para fazer uma ligadura.

Ouviu-se outro lançamento, mas não da carraca nem do Whelp.

Thomas espreitou por cima da amurada e percebeu qual fora o ”plano

matreiro” de Lockheart. O Bear, por detrás e para sul, estava agora bem

posicionado para apresentar o costado à carraca.

A tripulação do Whelp estava a lutar com as cordas das velas a fim

de se restabelecer novamente. A carraca e o galeão ficariam presos entre os

dois navios ingleses mais pequenos e mais rápidos. Uma bela armadilha, não

há dúvida, pensou Thomas, se nós não formos afundados primeiro.

Um tiro da coberta da proa arrancou o gurupés do Bear e parte do

castelo da proa superior. Dois elegantes pequenos canhões de bronze do

castelo da popa vomitaram fogo... e a carraca portuguesa perdeu o seu mastro

de mezena.

- Estão a disparar contra a sua própria escolta! - disse Nathan,

segurando-se de lado. - Endoideceram?

- Ou será que percebemos mal a sua relação? - cismou Thomas. -

Não sei. - Lockheart apareceu na direção do cotovelo direito de Thomas,

observando a cena. - Não me digais, senhor - disse-lhe Thomas -, que a

loucura do galeão fazia também parte do vosso plano matreiro.

A boca do escocês torceu-se num sorriso pesaroso:

- O bom Deus ajuda aqueles que se ajudam a si mesmos, está

escrito.

Do outro lado da água, a tripulação do galeão e da carraca gritavam

uns para os outros. A carraca apertou as suas velas e carreou, passando pela

proa do atrapalhado Bear.

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- Vai-se embora! - disse Nathan.

- Deixando a sua carga, se assim o era, para trás - disse Thomas -,

mas que covardia horrorosa.

- Eu apostava - disse Lockheart - que a carraca não era protetora

mas perseguidora. Vedes as cicatrizes na filigrana do galeão? Até parece que a

carraca lhe acertou um tiro ou dois antes de nós.

- Quereis dizer, senhor - disse Nathan -, que fomos a salvação de

alguém?

O elegante canhão de bronze do galeão disparou outra vez, com as

balas a arrancarem uma parte da amurada perto do sítio onde eles se

agachavam.

- Sim - disse Lockheart, ousando erguer mais uma vez a cabeça. - E

está tão grato como um tigre libertado da sua armadilha.

O Whelp e o Bear dispararam em conjunto contra o galeão,

causando uma barafunda de mastros, cordame e velas. Nenhum dos navios

ingleses estava em condições de perseguir a carraca fugitiva, por isso

fecharam-se sobre o galeão desafortunado. A tripulação do Whelp atirou

cordas de atracagem e içou-se lá para dentro. A tripulação do galeão, muitos

deles árabes de turbante e hindus de pele escura, olhavam silenciosamente no

meio da confusão de panos, madeira e cordas.

- Achas que consegues ir para lá lutar, Nathan? - disse Thomas.

- Como os melhores - replicou o rapaz.

- Bravo moço! - disse Lockheart. - E tu, Tom?

Os anos passados na loja do mestre Coulter a misturar ungüentos

malcheirosos e poções não tinham preparado Thomas para carnificinas corpo

a corpo. Mas haviam-lhe ensinado a levar a cabo tarefas desagradáveis.

- Se tiver de ser.

Lockheart deu-lhe uma pancada no ombro com uma mão larga.

- Então que os Fados sejam amáveis contigo.

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- Rendeis-vos? - gritou o capitão Wood para o galeão cativo -, ou

fazemos a abordagem e sereis obrigados a isso pela força?

Um grito não terreno elevou-se de muçulmanos e hindus. Os

marinheiros portugueses cortaram as cordas de atracagem com as suas facas.

As pranchas de abordagem foram atiradas do Whelp para as

amuradas do galeão e os marinheiros ingleses treparam-nas.

Thomas murmurou juras entrecortadas com a respiração e

avançou, com a pistola na mão esquerda e o cutelo na direita.

Quando se escondeu debaixo de uma vela caída, uma faca curva

surgiu em frente da sua garganta. Ele atirou-a com o cutelo e atirou-se para

diante, mas o inimigo desaparecera. Thomas deu consigo em pé no meio de

um emaranhado que parecia uma floresta imobilizada pelo nevoeiro. Os

mastros estavam derrubados como se fossem árvores caídas e as cordas

subiam pelos seus tornozelos como videiras. O pó da pólvora ardia-lhe nos

olhos. As sombras de homens nas velas confundiam-lhe a visão. Os gritos e

gemidos rodeavam-no. Aqui e ali uma bala de pistola assobiou passando por

ele como uma abelha zangada.

Um muçulmano saltou para a frente dele, com a espada pronta e os

olhos brilhantes. Thomas recuou, erguendo o cutelo quando o seu opositor

desferiu a arma. Thomas repeliu o ataque do mouro, mas tropeçou e caiu para

trás sobre uma massa de cordas e velame. O mouro sorriu e saltou para mais

perto a fim de se aproveitar da queda de Thomas. Este ergueu a sua pistola.

Houve um grito que se sobrepôs aos outros. Foi seguido de uma

longa declaração numa língua que Thomas não compreendeu. Seguiu-se um

silêncio profundo. O muçulmano baixou a espada com o sobrolho carregado e

afastou-se.

O capitão Wood, algures atrás dele, gritou:

- Desistam, homens! Eles renderam-se!

Thomas suspirou profundamente com alívio e espreitou por um

rasgão na vela ao seu lado.

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Os marinheiros portugueses e os muçulmanos estavam a depositar

as armas no convés, olhando para o castelo da proa. Os hindus pressionavam

as testas contra o convés em oração. Thomas enfiou mais o pescoço e viu, no

castelo da proa, uma mulher alta e elegante. Vestia um sari de seda carmim

com fios dourados que brilhavam. A sua pele era castanho-clara, mas os olhos

eram espantosamente azuis.

Eis aqui uma rara maravilha. Será que este navio é dela e que ela

consegue comandar estes homens? Será que é a filha de um mercador rico? E

porque é que a carraca a perseguia?

A mulher fez uma vênia ao capitão Wood e falou com ele, tendo

como intérprete um dos marinheiros hindus. Embora o capitão anuísse com a

cabeça, de queixo na mão, parecia ter dificuldade em compreender. Alguns

minutos depois, o capitão despediu o intérprete com a mão e ele próprio

acompanhou a senhora até ao Whelp.

Com a sua partida, um feitiço invisível quebrou-se no convés do

galeão, e os homens começaram a mexer-se e a falar outra vez. De ombros

caídos, a tripulação do galeão dividiu-se; alguns para tentar a sorte

alcançando a segurança nos dois pequenos esquifes do galeão (principalmente

os portugueses orgulhosos e os muçulmanos), outros escolheram velejar com

o Whelp e o Bear. Entretanto, os marinheiros ingleses abriram as escotilhas

que davam para o porão do galeão e começaram a pilhagem.

Thomas saiu do seu ninho de cordame e seguiu para o castelo de

popa. “Também poderei procurar a minha justa parte. O mestre Coulter há-de

querer algum lucro desta infeliz viagem”. Pelo menos não entraria muito em

competição com os outros marinheiros, pois que buscava não era ouro nem

sedas.

À medida que se aproximava do castelo da popa, Thomas sentiu

uns puxões nas suas calças. Um hindu com o cabelo negro atado ajoelhou-se

à sua frente, pedindo algo desesperadamente na sua língua macia e líquida.

Alguns homens da tripulação do Whelp surgiram da porta do tombadilho,

carregando arcas de madeira e jarros que cheiravam a resinas aromáticas e a

especiarias. O hindu fazia gestos na sua direção à medida que falava.

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- O que queres, homem? - disse Thomas. - Eu não posso impedi-los.

Lockheart apareceu à porta com um braçado de sedas coloridas e

panos de chita.

- Sabeis, senhor, o que este gentio está a dizer? - perguntou

Thomas.

Sem parar, Lockheart respondeu:

- Ele diz para tirares o que quiseres da maldita carga lá em baixo.

Ficam melhor livres dela.

Thomas olhou para as costas largas do escocês. Às vezes gostaria

que ele não gozasse tanto. Embora seja possível que o hindu não tenha amor

nenhum a quem servia. Thomas disse algumas palavras que esperou

pudessem acalmar o homem e entrou pela porta. Foi descendo por umas

escadas apertadas até à parte de baixo do convés. Virou e entrou num

corredor cheio de marinheiros a passar, cada um deles com os braços e os

bolsos carregados. Na penumbra, Thomas viu uma passagem livre que levava

mais longe à proa e dirigiu-se para lá.

- Não precisais de vos dar ao trabalho de ir nessa direção - gritou

um marinheiro. - Já rebuscamos. Está vazio.

Thomas aquiesceu, mas mesmo assim continuou, preferindo o

corredor tranqüilo à rapina da multidão na passagem principal. Continuou

passando pelo leme e descobriu que o corredor acabava numa janela de vitral

à popa. Mesmo por debaixo dele ficariam os alojamentos principais do capitão

ou do proprietário do navio. As instalações da tripulação deviam ser mais à

frente e o armazenamento na plataforma por baixo. Thomas encostou-se à

janela, observando o caminho por onde viera.

À medida que os seus olhos se ajustavam à luz, reparou numa

porta à sua direita, com emblemas entalhados de caça e uma orla de rosas de

oito pétalas. Thomas carregou no cabo do puxador de marfim e abriu a porta.

Levava a um quarto que continha uma mesa comprida e várias cadeiras

pesadas de carvalho trabalhado e couro. Em cima da mesa encontravam-se

algumas taças, mas o quarto estava desocupado.

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Thomas entrou, fechando a porta atrás de si, agradecido por ter

alguns momentos de paz. Afundou-se pesadamente numa das cadeiras e

fechou os olhos.

Ouviu o arrastar de outra cadeira contra o chão e levantou-se outra

vez, com os olhos bem abertos. Não havia mais ninguém no quarto. Será que

este navio está assombrado pelas sombras daqueles que foram despachados

muito recentemente? Voltou a ouvir-se o arrastar, mas agora conseguia

localizar o som por detrás de uma parede à sua esquerda. Mas ali devia ser a

casa do leme. Uma olhadela pelo quarto disse-lhe que este era mais pequeno

do que o comprimento do corredor lá fora.

A parede à sua esquerda tinha um lambril profundamente

trabalhado mais uma vez representando cenas de caça. Reparou num pássaro

que parecia estar mais saliente que os ramos e as folhas à sua volta. Tirando a

pistola da cinta, Thomas aproximou-se silenciosamente da parede. Deu uma

volta ao pássaro como se fosse um puxador e a porta abriu-se para dentro.

Suavemente, entrou.

Era uma salinha pequena, onde um homem elegantemente vestido

estava sentado a uma secretária. Vestia uma casaca de veludo preto, mangas

debruadas a dourado e um rufo largo de linho fino e duro, debruado a renda.

Tinha uma barba preta limpa e pontiaguda e olhos pretos que pareciam

cansados, mas sem medo. Na sua mão direita tinha uma pena de escrever e a

sua mão esquerda repousava na tampa de uma caixa de madeira.

- Deixai isso como está - disse Thomas, acenando com a pistola

para a caixa. Receou que o outro também tivesse uma arma. Esperou que o

homem o compreendesse.

O homem de barbas retirou lentamente a mão e sorriu com os

lábios apertados. Disse qualquer coisa em português que podia muito bem ser

uma desculpa educada. Thomas desejou que Lockheart estivesse por perto; o

escocês parecia conhecer qualquer idioma da Terra.

- Levantai-vos daí. Devagar - fez o gesto com a pistola. O homem

barbudo pousou o aparo e levantou-se. Começou a andar à volta da mesa, na

direção de Thomas, que levantou a pistola, esperando não ter de matar um

homem desarmado.

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- Ei, bom trabalho, Tom! - Sully, o contramestre, apareceu na porta

que ficava por trás. - Vejo que capturaste o nosso feiticeiro.

- Feiticeiro? - A palavra, segundo a experiência de Thomas, podia

querer dizer muita coisa desde um homem que convocava demônios até ao

astrólogo de Sua Majestade, ou mesmo até alguém que tivesse uma afeição

demasiado grande por gatos. Mesmo os boticários como o seu mestre, Geoffrey

Coulter, eram por vezes acusados de feitiçaria por clientes e homens do clero.

- Sim, soubemos que ele é procurado pelos inquisidores de Goa. Era

por isso que a carraca os perseguia.

Thomas não via nada na pequena salinha que sugerisse as artes

obscuras.

- Então este barco é dele?

- Sim, por isso o capitão Wood quer que ele seja tratado com

respeito.

- Então e a senhora que parou a luta?

- Bem, agora pode haver muitas perguntas à espera de resposta,

não é? Este tinha alguma coisa de valor? Mapas ou diários de bordo, por

acaso?

- Nós tínhamos acabado de nos conhecer.

- Pois, aposto que ele não te daria isso a ti. Tiro-te o sujeito das

mãos ou queres a glória de seres tu próprio a trazê-lo?

- Podeis levá-lo. Eu vou procurar um pouco mais.

- Então, boa caça. Vinde, senhor, conhecer a hospitalidade do

capitão Wood.

O feiticeiro português olhou fixamente para o contramestre e

murmurou palavras frias e precisas.

- As vossas maldições não têm efeito em mim, senhor disse Sully. -

Sou um marinheiro inglês e já ouvi as piores maldições possíveis. Vamos lá.

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Thomas desviou-se e permitiu que o contramestre escoltasse

firmemente o cavalheiro. Assim que eles se foram embora, Thomas foi até à

secretária e esquadrinhou-a. Ao lado da pena caída havia uma folha de

pergaminho. Só tinha algumas palavras escritas, mas Thomas não reconheceu

a língua. Voltou-se para a caixa de madeira.

Era do comprimento da sua mão e da largura da sua palma, feita de

madeira escura. No cimo tinha desenhos geométricos esculpidos. Thomas

empurrou o gancho de latão da abertura e abriu a caixa.

No interior, dentro de um revestimento de seda preta e dourada

encontrava-se uma garrafa rolhada de vidro iridescente. No interior da tampa

da caixa havia um papel dobrado. Ao tirá-lo, Thomas viu que o interior da

tampa tinha duas serpentes esculpidas em torno de um bastão - um caduceu.

Thomas abriu o papel dobrado e viu várias linhas escritas. A parte de cima era

em grego e Thomas abençoou a sua educação, pois sabia lê-lo. ”A mordedura

de uma serpente para aquele que respira. Uma pele de serpente para aquele

que não respira.” Uma adivinha ou talvez uma maldição, pensou Thomas. As

outras linhas já não conseguia ler, embora tenha reconhecido a segunda como

sendo árabe. Dobrou o papel e voltou a pô-lo debaixo da tampa da caixa. Será

que isto é uma poção mágica? Uma droga? Curativa ou venenosa? Thomas

fechou a caixa e pô-la dentro da sua casaca. Se for um remédio, aprenderei

com ele. Outros poderão escolher a sua parte da pilhagem de hoje. Esta será a

minha.

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Capítulo II

PILRITEIRO: Esta pequena árvore espinhosa tem flores

pálidas no auge do Verão e bagas vermelhas no Outono. Diz-se que

a Coroa de Espinhos de Nosso Senhor era feita dos ramos desta

árvore, e é por isso creditada como tendo muito poder contra a

bruxaria. Ter pilriteiro em casa protege dos fantasmas e do raio do

trovão, no entanto também se diz que o pilriteiro em casa traz azar

e morte...

SETEMBRO DE 1597, COLÓNIA PORTUGUESA DE GOA

O padre António Gonsção, Enviado Especial do Conselho Supremo

do Grande Inquisidor de Lisboa, estava de pé junto de uma janela da Santa

Casa. Para seu alívio, a paisagem à sua frente não ondulava como o mar.

Por debaixo da janela ficava a Praça da Catedral, uma praça ampla

como a de qualquer cidade européia. Do outro lado da praça erguia-se a

Catedral de Santa Catarina, cuja fachada era embelezada com esculturas de

santos e as suas duas torres quadradas subiam modestamente em direção ao

céu. Dois golfinhos de pedra, gêmeos, jorravam água alegremente na fonte da

praça. Para oeste ficava a Misericórdia, o hospital dirigido pelos Jesuítas. O

resto da praça era rodeado por casas avarandadas de dois andares com

telhados de telha vermelha. À distância, belas terras com pomares e jardins

alindavam as encostas. Na aparência, a vista podia ser quase a de um porto

próspero em Portugal. Não fossem certas diferenças; diferenças que

perturbavam Gonsção.

A praça estava cheia de gente; mestiços fidalgos, que vestiam

veludos e rendas, passeando com um rapaz atrás para transportar a espada,

outro para transportar um guarda-sol, e ainda outro trazendo uma almofada.

Os senhores nobres faziam vênias uns aos outros, tirando os chapéus com

gestos grandiosos e alargados. Isto tinha tanto de cortesia como de

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competição, pois era considerado rival o homem cuja vênia não fosse

suficientemente baixa, ou sugerisse troça. As senhoras seguiam em

palanquins dourados transportados por escravos com peles de coloração não

ibérica. Muçulmanos, judeus, homens de olhos oblíquos da longínqua China,

persas, hindus, juntamente com todo o tipo de europeus, passavam lá em

baixo, subindo e descendo a Rua Direita, indo e vindo debaixo da pedra negra

do arco de vice-reis que se virava para o rio Mandovi.

O ar transcendia ao cheiro de flores tropicais, aves coloridas

guinchavam cantos desconhecidos. Era tudo demasiado luminoso, demasiado

variado, demasiado vivo; os sentidos de Gonsção sentiram-se sob ataque.

Recordou uma mulher, a filha de um vizinho da rua onde vivera em

Lisboa. Quando rapaz, admirara o seu cabelo cor de mel-escuro e o seu rosto

doce. Mas anos mais tarde ela foi trazida perante ele para julgamento, vestida

com um roupão de seda vermelha e roxa, acusada de prostituição e feitiçaria.

Goa fazia-lhe lembrar essa mulher; a beleza pintada com devassidão, a

corrupção a minar debaixo de tudo.

Os colonos portugueses de Goa tinham sido incentivados a casarem

com as nativas, na esperança de produzirem conversões em massa. Mas em

vez disso, a Verdadeira Fé conseguira apenas apropriar-se precariamente das

almas de Goa, de tal modo eram enganadores o ambiente e as influências

estrangeiras. A heresia e o paganismo andavam sempre à superfície como

sereias das profundidades. Só a Santa Casa, a sagrada Inquisição, permanecia

como um baluarte perante as marés que de outro modo engoliriam os fiéis. E

mesmo essa santa instituição, ao que parecia a Gonsção, sofria de algumas

fendas. E eu sou enviado para fortalecer os seus pilares. Estive demasiado

tempo no mar, murmurou com um sorriso interior. Até os meus pensamentos

cheiram a peixe.

Ouviu passos que se aproximavam e voltou-se da janela. Era

Domine Rui Sadrinho, o inquisidor-mor. Era alto e muito magro, talvez com

40 anos. O rosto acima da sua barba preta bem aparada era salpicado e

manchado com cicatrizes de alguma antiga pestilência. Gonsção inclinou a

cabeça na sua direção.

- Domine.

Page 18: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Bom dia, padre. Espero que tenhais recuperado da vossa longa

viagem. As vossas acomodações são satisfatórias?

- São muito confortáveis, obrigado. E estou contente por poder

afirmar que o chão parou de balançar quando caminho. Mas dizei-me, Domine

- Gonsção puxou o colarinho do seu pesado hábito branco de dominicano -,

aqui é sempre assim tão quente?

- Na verdade, padre. Sempre.

- Mesmo quando chove?

- Especialmente quando chove. Então fica quente e úmido.

- E à noite?

- Então é quente e escuro, padre.

- E os mosquitos, Domine...

- Também estão sempre conosco. O Diabo está muito ocupado nesta

parte do mundo. As pestes e as pestilências abundam aqui.

“Tal como está escrito na vossa cara”, pensou Gonsção, e depois

censurou-se.

- Pois assim me disseram. Mas porquê assumir que é o trabalho do

Demônio? Uma praga poderá ser um ato de Deus.

O inquisidor-mor olhou espantado, depois desconfiado:

- De certeza que Nosso Senhor é mais piedoso do que isso. “Não,

não estou a tentar armar-vos ciladas”, pensou Gonsção, por enquanto. Tentou

fazer um sorriso desarmante.

- Apenas uma meditação vulgar, Domine. Suportarei este clima com

paciência, se tiver de ser.

- Penso que descobrireis que a nossa Santa Casa tem confortos

melhorados para oferecer, padre. Este edifício, faço notar, era o palácio do

Page 19: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Adilshah de Goa, antes de as nossas gentes chegarem. Guardamos alguma da

sua mobília... estão na ala residencial. Esta câmara era o seu salão do trono.

A Mesa do Santo Ofício na verdade ainda retinha alguma

semelhança com a majestade anterior. O vestíbulo comprido e de teto alto era

ladeado por falsos arcos decorados com arabescos e tapeçarias delicadas em

faixas de cor azul e amarelo-limão. Dominando a parede de leste havia um

enorme crucifixo de madeira. Um estrado com degraus enchia o centro do

vestíbulo. No estrado havia uma mesa longa rodeada de cadeirões forrados de

brocado de seda vermelho. Numa das pontas da mesa via-se um simples

banco de dobrar.

- Posso pedir que vos acompanhem numa volta pelo edifício, se

assim desejardes - prosseguiu Sadrinho.

- Obrigado, mas não estou aqui em viagem de prazer, Domine, e as

tarefas que me estão destinadas pesam terrivelmente. Gostaria de começar os

meus inquéritos o mais depressa possível. O grande inquisidor Albrecht tem

uma grande preocupação pelos vossos problemas aqui. A vossa carta tocou-o

profundamente.

Sadrinho olhou para o chão.

- Alegra-nos saber que o grande inquisidor se preocupa com um

posto tão distante da Santa Casa.

- As ovelhas mais afastadas do rebanho são aquelas pelas quais o

pastor tem de ter mais cuidado, não é assim?

Mais uma vez o inquisidor-mor pareceu desconfiado.

- Não nos surpreendeu que ele fosse tão generoso ao ponto de nos

mandar um enviado especial para... nos ajudar.

Ah. Então a vossa carta era apenas uma lista de desculpas e não

um pedido de auxílio? Desde que o governador Manuel Coutinho voltara

vergonhosamente para Lisboa, o grande inquisidor andava preocupado com as

relações entre a Santa Casa e o governo colonial de Goa.

Sadrinho suspirou:

Page 20: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- No passado, os governadores tiveram a tendência para não nos

prestar atenção.

Gonsção aquiesceu em simpatia:

- A riqueza e o poder cegam os homens para os pensamentos da fé.

- A feitiçaria e os ritos demoníacos são mais do que cegueiras,

padre.

- É verdade. A feitiçaria é uma acusação séria. O fato de primeiro

Coutinho e agora, este ano, o vice-rei Albuquerque terem sido mandados para

a pátria acusados dessa prática perturbaram muito o grande inquisidor.

- É o ambiente deste lugar, padre. Faz nascer heresia que nem

moscas em fruta podre. Mas a vossa chegada é na hora certa. Descobrimos

alguns dos que estão envolvidos na cabala pagã que corrompeu Coutinho.

- Ah, excelente. Que espécie de homens compõem esta cabala?

- Um era um médico muçulmano chamado Zalambur. Infelizmente

foi encontrado morto, envenenado, antes de o podermos interrogar.

Suspeitamos que se tenha suicidado. Mas temos a sua amante como nossa

convidada aqui. Vamos entrevistá-la outra vez esta noite, se estiverdes

interessado em assistir.

Ele oferece isto como se fosse um entretenimento.

- Isso poderá vir a ser bastante... informativo, Domine. Houve

outras pessoas envolvidas?

- Sim. Um alquimista e feiticeiro português chamado Bernardo de

Cartago. Tentou fugir de Goa por barco, mas penso que nos vá ser devolvido

em breve. E há outra pessoa que talvez esteja com ele; uma mulher que é a

mais misteriosa do círculo, mas talvez a mais influente. Conhecemo-la como

Aditi, embora já tenha ouvido referenciá-la como Manasadasa, que significa

Servidora da Deusa Serpente.

- Um título de mau presságio. Sadrinho abanou a cabeça:

- Para os hindus não. Eles consideram a serpente como um símbolo

de sabedoria e imortalidade.

Page 21: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Nosso Senhor uma vez também disse ”Sejam espertos como

serpentes”, mas não me parece que Ele quisesse que as adorássemos ou

servíssemos.

- Foi? - disse o inquisidor com um olhar fascinado.

- Está nas Escrituras, Domine. Evangelho de São Mateus.

Certamente que estais recordados dos vossos estudos religiosos. Reparo que

tendes algum conhecimento das crenças nativas.

Meio encolhendo os ombros, o inquisidor disse:

- No nosso trabalho, uma pessoa vai aprendendo coisas. Quanto à

mulher, é o nome Aditi que nos traz preocupados. É o nome de uma deusa dos

céus hindu, mas tem também a conotação de libertação. Há rumores de que

esta mulher tem o apoio dos Maratas.

- Maratas? Quem são esses?

Os olhos do inquisidor abriram-se mais:

- Ah, mas eu esqueço-me que sois novo nesta região e não

conheceis as suas políticas. Os Maratas encontram-se entre as famílias

hindus mais ricas e mais nobres daqui. São de uma casta guerreira superior,

e a sua cooperação é crucial para o domínio de Portugal sobre Goa, no entanto

sabe-se que eles têm fortes ligações às famílias governantes de Bijapur.

- Estou a ver. Então estas corrupções podem significar para eles

mais do que a simples difusão de práticas demoníacas.

- Gonsção confirmou com a cabeça:

- Fizestes um bom progresso nisto, Domine. O grande inquisidor irá

ficar satisfeito. Dizei-me, como vão as relações com o vosso novo governador,

Dom Francisco da Gama? Ele honra o nome do seu ilustre avô?

- Não fez nada que o manchasse. E respeita a Santa Casa.

- Fico satisfeito por saber isso.

Page 22: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Por favor, perdoem-me, senhores - chamou um jovem rapaz de

pele escura junto à porta do outro lado do vestíbulo, com uma pronúncia de

português com uma tônica musical. Chegaram Sua Excelência o arcebispo

Aleixo de Meneses e o capitão Pedro Ortiz e solicitam a vossa audiência.

Sadrinho disse ao rapaz:

- Muito bem. Iremos recebê-los.

O rapaz fez uma vênia baixa e saiu.

- O tempo foi na verdade o preciso - disse Gonsção. - Eu esperava

encontrar-me brevemente com o arcebispo de Meneses.

- E o capitão Ortiz deve ter boas notícias para nós em relação ao

assunto que estivemos a discutir. Vinde sentar-vos enquanto esperamos os

nossos visitantes. - Sadrinho fez um gesto na direção das cadeiras vermelhas

sobre o estrado.

Gonsção subiu a plataforma e instalou-se numa das cadeiras. Em

cima da mesa havia um sino de prata e dois livros. Um era um missal de capa

de couro, o outro era um volume pequeno com capa de pergaminho.

Gonsção pegou lentamente no livrinho e examinou-o. Leu o título

pintado na lombada, depois voltou-se para o inquisidor Sadrinho, permitindo

que a sua consternação se visse.

- Este livro, Domine. Porque é que está aqui?

- Qual? Ah. Os Lusíadas. Ó Irmão Timóteo deve tê-lo deixado aí. É

novo e por vezes distraído.

Gonsção abriu a capa e olhou para a primeira página. Reparou na

data ali escrita em números romanos.

- Domine, esta publicação é a original, de 1572. Sadrinho franziu o

sobrolho.

- Sim? E então?

- Conheceis esta obra?

O inquisidor mostrou-se novamente desconfiado:

Page 23: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- É um poema épico de Luís Vaz de Camões. Pensei que era muito

respeitado em Lisboa.

- E é. Entre os eruditos. Já o haveis lido?

- Não. Disseram-me que parte dele foi escrito aqui em Goa. O Irmão

Timóteo tem-no em grande estima porque o seu avô, Garcia de Orta, o famoso

naturalista, conheceu Camões. Na verdade, Camões viveu em sua casa por

uns tempos, e escreveu alguns versos para a introdução do livro de Garcia de

Orta sobre drogas e simples orientais.

- Ah. Interessante. É compreensível, então, que o rapaz goste do

livro. Mas esta é uma versão não expurgada, Domine, e contém muitos...

versos pagãos. Que idade tem o Irmão Timóteo?

- Treze anos, Padre.

- Só treze? Uma idade perigosa. Vede, este poema é uma história

falsa, Domine. Descreve as viagens de Vasco da Gama como se fosse um mito

homérico. Está recheado de deuses pagãos e demônios das antigas Grécia e

Roma. Atentai aqui. - Gonsção abriu o livro ao acaso. - Nesta página, o poeta

escreve sobre Marte e Júpiter no monte Olimpo, apoiando Vasco da Gama

para contrariarem o deus do vinho, Baco. Noutra página, temos Vasco da

Gama a falar com Prometeu e Apolo como se estes fossem verdadeiras forças a

quem se reza. E aqui, o poeta escreve uma longa passagem relativa a Vénus e

à sua Ilha dos Amores.

Sadrinho ergueu as sobrancelhas:

- Não fazia idéia.

- Não tenho a certeza se este Irmão Timóteo terá já o conhecimento

ou a educação para... compreender esta obra no seu contexto devido. Sugiro

vivamente, Domine, que este livro seja colocado num cofre até o rapaz ser

mais velho.

O inquisidor concordou:

Page 24: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Compreendo. Assim será feito.

Gonsção fez deslizar o livro pela mesa para que Sadrinho lhe

chegasse e os seus dedos compridos acariciaram a capa de pergaminho com

um gesto que poderia ser de pena.

Parece que os rumores que chegam aos ouvidos de Albrecht são

verdadeiros. Esta Santa Casa tem falta de disciplina. Preocupam-se mais com

os seus confortos e possessões do que com o seu trabalho santo.

- O Irmão Timóteo vai ficar desapontado - disse Sadrinho. - O seu

avô era muito querido como curandeiro em Goa e temos a sorte de Timóteo ter

vindo até nós. É um dos nossos melhores acólitos, e até serve como advogado

dos nossos visitantes. Tem um certo jeito com eles que é melhor que qualquer

castigo.

- Admirável. Gostaria de conhecer esta jovem maravilha. Se ele é

um amante da poesia, posso recomendar-lhe a obra de Diogo Bernardes. Achei

muitas vezes inspiração na coleção Várias Rimas para o Bom Jesus. Tenho

um exemplar comigo que lhe posso emprestar.

Com um sorriso amargo, Sadrinho disse:

- Tenho a certeza que ele ficará contente.

- Garanto-vos, Domine, que os versos não são tão insípidos como o

título sugere.

- De acordo, padre... Ah, aí vêm os nossos visitantes.

As portas distantes abriram-se. O pajem entrou e anunciou:

- Sua Excelência o arcebispo Aleixo de Meneses e o capitão Pedro

Ortiz do Santa Rosa.

O arcebispo entrou: um homem grisalho de aparência suave a quem

as vestes vermelhas e a capa pareciam espalhafatosas. Por trás dele, com

cheiro a alho, laranjas e peixe, entrou o capitão Ortiz, um homem pequeno e

rijo. A sua casaca de cetim verde e calções largos estavam manchados e

remendados. O capacete dourado que trazia na mão fora, porém, muito polido,

e a sua vênia profunda era gentil.

Page 25: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O inquisidor recebeu o arcebispo e o capitão com um aceno de

cabeça. Gonsção levantou-se do seu lugar e desceu do estrado. Apertando as

mãos do arcebispo, disse:

- É uma honra, Excelência. Deixai-me felicitar-vos pela vossa

nomeação como Primeiro-Primaz do Oriente. É uma honra bem merecida.

O arcebispo parecia admirado.

- Agradeço-vos, padre. Também ouvi coisas boas a vosso respeito. A

minha nomeação foi uma bênção inesperada. Espero vir a ser merecedor do

lugar.

- Não tenho qualquer dúvida em relação a isso, Excelência. E uma

boa tarde também para vós, capitão Ortiz. Sou o padre António Gonsção. O

nome do Santa Rosa é falado com orgulho por toda a Lisboa. Apresento-vos as

boas-vindas.

O capitão olhava ora para Gonsção ora para o inquisidor Sadrinho.

- Agradeço-vos e desejo que vós, santos padres, tenhais um bom dia

- disse ele numa voz irritante. - Que Deus vos abençoe este dia e sempre. - As

mãos que apertavam o seu chapéu de veludo estavam pálidas.

Os visitantes da Santa Casa estão muitas vezes pouco à vontade,

pensou Gonsção, no entanto eu acho que as suas notícias não são boas.

Ele acompanhou o arcebispo e o capitão até à mesa. Meneses

sentou-se a alguma distância de Sadrinho e o capitão permaneceu de pé.

Gonsção sentou-se perto do arcebispo, o que pareceu incomodar o inquisidor-

mor.

Sadrinho virou o seu mau humor para o capitão.

- Esperamos, capitão Ortiz, que nos traga provas de tais bênçãos.

Confio que Bernardo de Cartago esteja agora preso no Aljouvar.

Page 26: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O arcebispo Meneses suspirou e olhou para baixo para a mesa. O

capitão Ortiz endireitou os ombros, a revirar o chapéu nas mãos.

- Lamento imenso, Domines, que ele não esteja. Causamos estragos

no navio, mas não fomos capazes de o capturar.

- Não o capturaram - disse Sadrinho, devagar. - Esperávamos

melhor de vós, capitão Ortiz.

Com os olhos desafiadores, Ortiz respondeu:

- Eu não estava à espera que o feiticeiro conjurasse navios ingleses

vindos sabe-se lá donde para sua defesa, Domine!

- Navios ingleses?

- Eu acho - disse o arcebispo - que deveríeis ouvir as circunstâncias

antes de julgardes, Domine. A presença dos ingleses foi confirmada por outros

viajantes que chegaram a Goa.

Sadrinho olhou fixamente para o arcebispo e depois voltou a dirigir

o olhar para o capitão.

- Muito bem. Explicai.

O capitão Ortiz começou com uma vênia rápida.

- O Santa Rosa chegou junto do galeão do feiticeiro perto das

Bassas de Pedro. Dirigia-se para Sul. Perseguimo-lo, conforme ordenado.

Quando passávamos a ilhas Amindivi, estávamos quase ao pé dele. Foi então

que os navios ingleses apareceram, vindos por trás da ilha de Kiltan. Os meus

homens esforçaram-se por preparar todos os nossos canhões, mas os ingleses

já estavam a postos. Navegaram entre nós e o navio do feiticeiro, disparando

os seus canhões. Os navios deles eram menores e mais rápidos. Tinham muito

mais hipóteses de disparar sobre nós.

”Fizemos o maior número de estragos possível, e abatemos mastros

nos navios dos ingleses e do feiticeiro. Mas eu ordenei ao Santa Rosa que

continuasse para sul, em vez de o deixar como presa dos ingleses. Se isso vos

servir de consolo, tenho a certeza que o senhor Cartago está ou morto ou é um

prisioneiro inglês.

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- Fugistes - disse Sadrinho suavemente. - Não vos considerava um

covarde, capitão Ortiz.

As narinas do capitão abriram-se.

- Domine, apesar de ter a honra de estar a fazer um serviço à Santa

Casa, o meu último dever é para com os meus homens e para com Sua

Majestade, o rei Filipe. Talvez vos tenhais esquecido que o Santa Rosa

pertence à frota de Sua Majestade.

- Talvez vos tenhais esquecido do vosso dever para com Deus.

- Disseram-me, Domine, que o serviço ao rei é serviço a Deus. Ou

pretendeis que esta Casa seja mais alta que o trono real?

Bem argumentado, pensou Gonsção, até mesmo sabiamente. Este

homem não é covarde nenhum.

O rosto de Sadrinho empalideceu.

- Acreditamos que o serviço prestado a um é serviço prestado a

ambos. Parece que nos haveis falhado a todos. Felizmente, temos uma sala

disponível onde podereis contemplar o vosso erro. - Estendeu a mão para o

sino de prata.

- Esperai, Domine - disse Gonsção.

- Padre? - Um músculo da face do inquisidor retorceu-se e os olhos

estreitaram.

- Bem-aventurados os piedosos, pois receberão piedade.

- Isso é alguma frase dos jesuítas?

Então esse rumor também é verdadeiro. Ele é muito ignorante das

Escrituras.

- Não, Domine. Essas são também as palavras de Nosso Senhor.

Dos Livros Sagrados.

O arcebispo murmurou.

Page 28: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Mateus, versículo quinto.

- Então qual é a vossa idéia, padre?

- Capitão Ortiz, sois um bom católico?

- Com todo o meu coração, padre, que Deus me ouça e defenda.

- E aceitais todos os ensinamentos da Santa Madre Igreja?

- Todos, padre, do nascimento até à morte.

- Domine, este homem não é herético nem apóstata. A vossa guerra

com ele é uma questão civil. Se precisais de procurar agravo contra ele, tendes

de o levar ao governador Gama. Ele tem a autoridade para decidir se o capitão

Ortiz serviu devidamente o rei.

Sadrinho rilhou os dentes, mas finalmente disse:

- Muito bem. Podeis ir, capitão Ortiz.

O capitão fez uma vênia baixa a Gonsção.

- Não há dúvida que Deus vos concedeu sabedoria, padre. - E

depois voltando-se para o arcebispo, acrescentou: - Se me concederdes a vossa

bênção, Excelência. - Ajoelhou-se e beijou o anel do arcebispo.

Meneses pousou uma mão na cabeça do capitão.

- Se vos ajudar, tendes a minha bênção. Vai com Deus, meu filho.

O capitão Ortiz pôs-se novamente de pé, cumprimentando Sadrinho

com uma volta no chapéu.

- Irei colocar-me imediatamente nas mãos do governador Gama.

O inquisidor Sadrinho aquiesceu solenemente e o capitão Ortiz

saiu. Assim que as portas se fecharam, fixou os olhos em Gonsção.

- Como vos atreveis...

- O grande inquisidor Albrecht - disse Gonsção - enviou-me para

observar esta Santa Casa, e corrigir desvios onde eu achasse por bem. Sabeis

que temos de respeitar uma linha muito clara entre questões de fé e questões

Page 29: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

de justiça civil. Compreendo que este feiticeiro seja importante, mas homens

com a perícia do capitão Ortiz são preciosos contra Holandeses e Ingleses.

Portugal não se pode dar ao luxo desta perda.

- Se este trabalho atamancado for característico da perícia do

capitão - resmungou Sadrinho -, então choro por Portugal.

- Ortiz poderá ter feito por vós mais do que imaginais. Tendes

familiares entre os mercadores e pescadores aqui, não é verdade?

- Claro. E então?

- Os navios danificados não podem viajar até muito longe. Se o

Santa Rosa deitou mastros abaixo nos navios ingleses, eles terão de encontrar

porto seguro para reparações. Se os familiares nos puderem dizer onde é que

os ingleses foram vistos pela última vez, poderemos calcular onde é que foram

acostar. Algumas naves costeiras pequenas, enviadas em segredo, poderão

cumprir o que uma poderosa carraca não conseguiu.

Sadrinho pestanejou.

- Ah, sim, estou a ver. Talvez isso se possa fazer. Vou inquirir

imediatamente. Perdoai-me, Excelência. - E levantou-se para sair acenando

com a cabeça ao arcebispo.

- Domine - Gonsção chamou-o.

- Sim?

- Por favor, preparai os livros deste último ano para que eu os

inspecione.

- Os livros?

- Presumo que a minha carta de apresentação declare claramente

que me devem ser apresentados quaisquer materiais que eu pretenda.

- Ah. Talvez daqui a uns dias, padre. Quando tiverdes recuperado

da vossa jornada.

Page 30: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Eu fui escolhido pela minha capacidade de trabalho, Domine.

Verei os livros esta tarde, se possível.

- Ah, vou ver o que se poderá reunir num tempo tão curto.

- Obrigado, Domine. Talvez pudésseis enviar-me o jovem defensor,

aquele que gosta de poemas, para me trazer os livros.

Sadrinho suspirou.

- Como queirais, padre António. Depois da missa em Santa

Catarina.

- Excelente. E quando estiverdes nos vossos serviços, por favor

lembrai-vos de mim nas vossas orações.

- Assim farei, padre. Tende a certeza que o farei.

Depois de a porta se fechar por trás do inquisidor, o arcebispo

Meneses virou-se para Gonsção.

- Sois ousado, padre António. Essa qualidade é muito necessária

aqui, embora o inquisidor-mor não a aprecie muito.

- Não posso dizer que tenha sido inesperado, Excelência. Poucos

dos que alcançam o poder são poupados à sua influência corruptora. Também

precisamos de nos lembrar do inquisidor nas nossas orações.

- Com efeito - disse o arcebispo com pouco entusiasmo. Acho este

aparecimento dos ingleses - continuou ele, inclinando-se para a frente e

tamborilando com os dedos na mesa muito perturbador.

- Se isso vos descansar a mente, Excelência, quando eu vinha a sair

de Lisboa, soube que Sua Majestade estava a reunir uma nova armada. Foi

por isso, em parte, que eu desejei que o capitão Ortiz fosse libertado para o

governador. Ele vai ser preciso. Acho que não vamos ter de temer a pirataria

inglesa por muito mais tempo.

- Isso são boas notícias, padre. No entanto, não posso deixar de

recordar o destino da nossa armada anterior.

Page 31: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Por favor, Excelência, dai algum crédito aos nossos adelantados2

quanto à aprendizagem com os erros anteriores.

- Há quem diga que a tempestade que destruiu a armada foi um ato

de Deus.

- Deus Nosso Senhor a defender hereges ingleses? Cuidado,

Excelência. - Gonsção agitou um dedo de brincadeira. Caminhais

perigosamente para a heresia.

- Perdoai-me - disse Meneses com um sorriso. - Vou dizer duzentas

orações a Santa Maria em penitência.

- Acrescentai, por favor, mais algumas para mim. - Gonsção pôs-se

de pé, alisando a sua veste branca e o escapulário.

O arcebispo também se levantou.

- Gostaria de vos fazer uma pergunta, porque é que haveis pedido

que o rapaz Orta vos levasse os livros? Por causa do seu famoso avô, o

herbalista?

- Domine Sadrinho disse-me que o Irmão Timóteo é um defensor,

apesar da sua juventude. Quem melhor me poderia informar acerca dos

convidados que são trazidos à Santa Casa e a forma como são tratados?

- Estou a ver. Muito sensato.

- Há algo que poderíeis fazer por mim, Excelência. O arcebispo

pareceu desconfortável.

- Se eu puder.

- Quero saber tudo o que for possível no que diz respeito ao

julgamento do governador Coutinho. Se pudésseis fazer com que me dessem

os registros do julgamento, isso seria de grande utilidade.

- Vou ver o que posso fazer, padre. Mas confesso, a minha

influência na Santa Casa é no mínimo modesta.

2 adelantados - Em castelhano no original. [N. dos T.)

Page 32: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Tenho confiança nas vossas capacidades, tal como o cardeal

Albrecht também.

- Honrais-me demasiado. - Quando iam a caminhar em direção às

portas, Meneses acrescentou: - Foi um caso curioso. Coutinho era de boa

família cristã, sem um sopro de escândalo de heresia. E no entanto algo o

seduziu, o convenceu à apostasia. Alguma coisa que ele aceitou como prova de

crenças pagãs.

- Muito curioso. E é perturbador saber que a sua fé se mostrou tão

facilmente corruptível. Temos de aprofundar este mistério o mais que

pudermos. Onde a Serpente do Mal levanta a cabeça, mais se esconde debaixo

da terra.

Meneses sorriu:

- Vai ser muito refrescante ter-vos aqui, padre Gonsção.

Capítulo III

MORRIÃO: Esta planta é também chamada erva-de-maria, ou erva-

dos-porcos. Tem flores carmins ou douradas, que se fecham quando se

aproximam tempestades. Abrem-se com bom tempo, e são por isso

chamadas ”barômetros dos pobres”. Diz-se que pegar no morrião dá

terceira visão. O morrião afasta a bruxaria e os feiticeiros evitam-na

pois faz com que revelem os seus segredos.

Para o mestre Geoffrey Coulter, Boticário, Londres, do seu aprendiz

e agente, Thomas Chinnery, escrita no mês de Setembro, no ano de 1597 de

Nosso Senhor.

“Senhor, chego à conclusão que tenho de começar novamente esta

carta, pois a última ficou destruída noutra incursão de pirataria ordenada pelo

capitão Wood. Não sei se esta alguma vez chegará às vossas mãos, mas não

posso perder a esperança.

Page 33: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Alcançamos a costa da índia, mas não fiqueis maravilhado com a

nossa velocidade. O curso da nossa viagem não tem sido o que estava

inicialmente previsto. Sir Robert Dudley preparou esta expedição para procurar

um caminho mercantil para a China por Ocidente, pelo estreito de Magalhães.

Não sei, mas se tivéssemos agido desta forma, a Fortuna teria sido mais gentil.

Em vez disso, a nossa frota encontrou o almirante Raleigh nas

Canárias e os seus alardes de riquezas a encontrar ao longo da costa africana e

no mar Arábico, e os seus avisos sobre os perigos a Ocidente, convencendo o

capitão Wood e grande parte da tripulação que deveríamos seguir a rota de

oriente. ‘Sempre é melhor o diabo conhecido’, disseram eles.

Os senhores mercadores Allen e Bromefield estavam furiosos mas

pouco podiam fazer. Mas o nosso caminho não foi mais fácil que o dos nossos

antecessores. O Benjamin perdeu-se numa tempestade ao largo do cabo da Boa

Esperança. Quase metade da tripulação adoeceu de escorbuto ou de outros

males. Pela Graça de Deus, até agora fui poupado às doenças.

Talvez para abrandar a ira dos mercadores, ou para aumentar a sua

glória e riqueza, o capitão Wood tem perseguido todos os galeões portugueses

que encontramos. Tornamo-nos mais corsários que mercadores. Nestas

batalhas, temos ganho, mas não sem esforço. Nesta altura em que escrevo,

estamos ancorados a norte de Calecut, tentando reparar os estragos feitos na

nossa última incursão. O Bear precisa de novos mastros e o carpinteiro diz que

as árvores desta região não servem.

Embora ainda possamos chegar à China, já temos poucas provisões

com que começar o comércio. Tive de usar quarenta e sete pastilhas do vosso

composto de camomila e papoulas para aliviar os doentes e feridos da

tripulação. Quase metade das provisões de ervas desapareceram, em especial o

alho, a aristolóquia, a angélica e a valeriana. Consegui poupar a mirra e o corno

de unicórnio, bem como a confectio alcarmas, mas poderei vir a precisar deles se

não se encontrar outra fonte de medicamentos.

Page 34: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Temo que não seja possível reabastecer estes fornecimentos daqui

até Cantão. Disseram-me que talvez se encontre estes materiais em Pegu, mas

seriam de qualidade incerta.

Peço-vos que me perdoais o meu desperdício destes bens que

estavam destinados a serem o nosso meio de troca e riqueza com o Oriente. Mas

eu tornei-me o curandeiro mais proeminente a bordo, pois o nosso médico do

navio sucumbiu a uma febre somente há dois dias atrás. Apesar de não ter

saudades das suas sangrias e sanguessugas, dou comigo a sentir falta da sua

companhia neste trabalho que afeta o coração.

Esperávamos que alguns homens pudessem seguir a pé até Calecut

para pedirem ajuda, mas não podemos dispensar braços para as reparações. E

há o medo de que se se espalhar o rumor relativamente à nossa localização e

estado enfraquecido, nos possamos encontrar como alvo de banditismo...”

Thomas levantou a sua pena da carta, com a mão a tremer de

cansaço. Da sua rede sobre as escadas que levavam às instalações da

tripulação, ele podia ouvir os gemidos e os movimentos incessantes dos

doentes e dos feridos. Para lá da antepara, a água batia no costado do navio e

as cordas da âncora rangiam com o empurrão da maré. O ar estava úmido,

asfixiante e espesso com os odores de podridão, tanto de madeira como de

carne.

No tabique mais próximo jazia Nathan, o aprendiz de carpinteiro,

com o rosto pálido. A sua ferida do canhão estava a infectar e Thomas pouco

podia fazer pelo rapaz. O seu destino está num poder muito maior do que o

meu.

Um pingo de tinta caiu da ponta da pena em cima do papel quando

se ouviram passos pesados a descer as escadas por detrás dele.

- Então? - disparou Lockheart. - Outra canção de amor para a tua

querida? Não afogues a tua rapariga com mimos, meu rapaz, senão ela ainda

encontra um cachorrinho menos baboso para acariciar.

- Tendes um sentido apurado, senhor, de quando me podeis mais

facilmente perturbar na minha correspondência.

Page 35: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Contudo, Thomas não estava inteiramente descontente por ver a

presença forte do escocês. O bom humor ruidoso de Lockheart, embora

desconcertante, fazia com que a esperança parecesse possível.

E embora a sua carta não fosse dirigida diretamente para ela,

Thomas esperava que Anne Coulter, a filha do seu mestre, a quem ele

admirava há muito, lesse a carta e soubesse que ele estava bem.

Lockheart assentou o seu corpanzil desajeitadamente nas escadas.

- Tenho ouvidos de morcego, Tom. Ouço o raspar da tua pena ao

longe.

- Com ouvidos tão finos, como é que não ensurdeceis com a vossa

própria voz? A propósito, peço-vos que faleis mais baixo. Perturbai-me se

quiserdes, mas permiti alguma paz a estes pobres desgraçados.

- Imploro-te perdão - disse Lockheart com um rugido mais baixo. -

Espero que também tenhas escrito à tua mãe? As mães não sucumbem aos

excessos de carinho e precisam de ser muito reconfortadas.

- Não tenho mãe, senhor. Morreu quando eu nasci.

- Imploro o vosso perdão. As minhas condolências, então.

Thomas encolheu os ombros.

- Não a conheci, por isso não havia ninguém a quem chorar. -

Surgiram-lhe pensamentos espontâneos de uma infância cheia de tristeza,

horas solitárias, uma sucessão de amas, algumas amáveis, outras

indiferentes, outras pior.

- Então precisas de escrever ao teu pai, se é ele o teu único parente.

- O meu pai interessa-se pouco pelas minhas coisas.

- Com certeza que isso não pode ser! És o seu único filho?

- Que eu saiba.

- Então ele deve querer-te mais do que aquilo que pensas. Por vezes,

mesmo os pais aparentemente mais distantes têm um interesse genuíno pelos

seus filhos.

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Thomas fez uma pausa, recordando a forma como, do convés do

Bear’s Whelp, ele espiara a cara nada sorridente do seu pai no meio da

multidão do cais quando o navio se afastava.

- Pode ser que sim. Em tempos o meu pai encorajara-me a fazer

uma viagem a Nápoles, mas o mestre Coulter disse que uma viagem ao

Extremo Oriente seria mais proveitosa. Agora só desejava ter seguido o

conselho do meu pai.

- Pois aí tens - disse Lockheart.

- Tendes razão para isso. Mas o mestre Coulter foi para mim mais

pai que qualquer outra pessoa no mundo, ele e a sua boa esposa.

- É bom quando os homens tratam amavelmente quem os ajuda.

Mas pela tua forma de falar e pelos teus modos diria que nasceste em berço

nobre quando nos encontramos pela primeira vez. O que é que te levou a seres

aprendiz?

Thomas riu-se.

- Berço nobre? Vagamente, na melhor das hipóteses. O meu pai

tinha ligações muito bem nascidas no Continente, e uma vez gabou-se de que

a minha mãe tinha sangue de reis italianos. Mas é um fio muito fino e

enrolado aquele que me liga a qualquer nobreza. Uma riqueza de sangue tão

pequena traz pouca fortuna e ainda menos perspectivas. Reparai, se as

histórias de luxúria contadas acerca dos reis britânicos do passado tivessem

qualquer crédito, à vontade metade das almas de Inglaterra podia sem dúvida

reclamar descendência real.

Lockheart fez um sorriso forçado.

- Não tinha pensado nisso, mas deve haver alguma verdade no que

dizes, rapaz.

Ouviram-se interrogações entre gemidos vindos dos tabiques

escuros à sua volta.

Page 37: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Estejam tranqüilos, está tudo bem - disse Thomas como resposta.

Para Lockheart, ele acrescentou: - Estamos a perturbar-lhes o descanso,

senhor. Vamos para cima para falarmos.

- Uma idéia inteligente. Subamos antes que o ar irrespirável deste

lugar nos transforme em vermes aos dois.

- Dentre os que praticam a arte do meu mestre há os que acreditam

que o ar espesso e pestilento atua como barreira contra a doença. Eu só posso

pensar que esses homens nunca andaram no mar.

Thomas soprou suavemente na sua carta para secar a tinta, depois

dobrou-a e enfiou-a na sua casaca. Pôs-se de pé e seguiu Lockheart pelas

escadas que rangeram até à claridade da luz do dia.

Thomas foi bafejado por uma brisa fresca, prenhe de água salgada e

flores exóticas. Um pôr do Sol dourado encheu o horizonte a Ocidente,

esbatendo-se em azuis profundos e índigo na direção do Oriente. Na linha de

estibordo via-se uma lagoa turquesa, rematada por uma praia arenosa e uma

floresta de palmeiras.

- Eis aqui uma cena mais própria para o bem-estar - disse

Lockheart. Ele usava um gibão sem mangas, manchado, de couro cinzento cor

de ferro, habilmente concebido de forma a revelar um forro de veludo

vermelho, e rendas abertas até ao peito. Visível por trás da renda estava uma

medalha de prata num fio da tampa.

- Dentro desta caixa está esculpido um caduceu, o símbolo de

Esculápio, a quem os Gregos adoravam pelo seu poder de cura.

- Ah. Vejo que conheces os clássicos.

- O meu pai deu-me alguma educação, senhor. Tinha esperança que

o conteúdo desta garrafa nesta caixa pudesse ser medicinal de alguma forma.

- Ainda não o experimentaste.

- Estava na posse de um feiticeiro, lembrai-vos. Não sei se é de

confiança. Neste papel há algumas inscrições. Consigo decifrar o significado

da que está mais em baixo, o grego, mas as outras por cima são escritas que

não conheço.

Page 38: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Dá cá - disse Lockheart, estendendo a mão.

Com relutância, Thomas deu-lhe o papel. Para seu alívio, os dedos

pesados do escocês abriram-no com cuidado.

- Isto é misterioso. A primeira frase está escrita em árabe, no

entanto, o seu significado é bíblico: ”Eu sou a Ressurreição e a Vida.”

- Isso dá esperança. A linha seguinte é também em árabe, não é?

- Uma boa tentativa, rapaz, mas é persa.

- Conheceis essa língua?

- Só um momento - Lockheart examinou-a de perto, como se fosse

um estranho inseto. - Estas palavras são de outro livro sagrado, o Alcorão, do

Islã.

- São? Qual é a sua mensagem pagã?

- Faz ressurgir os vivos dos mortos e os mortos dos vivos. A terra

sem vida é acordada por ele.

Thomas coçou o rosto.

- Todas estas mensagens falam da vida ressurgida da morte. Talvez

seja um remédio muito poderoso.

- Ou o médico que a utiliza tem de orar pela sua eficácia.

- Como o homem não sabe como os remédios funcionam, talvez a

oração seja a parte mais eficaz da cura. Qual é a mensagem seguinte?

Lockheart examinou mais uma vez o papel.

- Aposto que isto é sânscrito.

- Que língua é essa?

- Disseram-me que muitos livros sagrados hindus estão escritos

nesta língua.

- Se calhar são mais palavras sagradas sobre a vida e a morte.

Também conseguis ler essas palavras?

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Lockheart abriu a boca, fez uma pausa, depois fez um sorriso

forçado.

- Não. Thomas suspirou.

- Ainda não estou convencido que posso usar isto em segurança. A

frase grega, eu sei, fala de serpentes e pele.

- Talvez não queira dizer que pertença ao conteúdo desta garrafa.

Podem ser apenas escritos ao acaso de alguém que pratica estas línguas.

- Hmmm. Acho que não. O feiticeiro tinha esta caixa ao lado dele

quando o encontrei. E estava com pouca vontade de ser separado dela.

- Se o grego fala de serpentes, talvez seja veneno de cobra.

- Então pode ser veneno ou remédio. A triaga é um remédio que

usávamos na loja do mestre Coulter. Contém carne de víboras; é um curativo

muito comum. Isto pode ser alguma coisa assim.

- Posso ver a garrafa? Thomas parou.

- Quero-a devolvida.

- Retirou a garrafa iridescente da sua cama de seda e deu-a ao

escocês.

- Não tenhas receio de mim. Isto é uma coisa bem bonita. -

Lockheart fez deslizar suavemente a rolha de cortiça. Saiu com um pop

pequenino. Lockheart bateu na garrafa até sair um pó fininho castanho para a

palma da sua mão. Lambeu o polegar e encostou-o ao pó. Esfregou a

substância misteriosa entre o polegar e o indicador, cheirando a uma

distância segura. Olhou durante uns momentos para o mar, mergulhado no

pensamento. Franzindo o sobrolho, Lockheart pôs a palma da mão sobre a

boca da garrafa e voltou a deitar o que pôde lá para dentro. Depois,

cuidadosamente, limpou a mão aos calções para retirar o resto.

- Que pensais vós? - disse Thomas.

Page 40: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Acho que as nossas interrogações nos estão a levar pelo caminho

errado.

- Não é remédio nem veneno?

- Eu li aquelas frases em livros sagrados, Tom. Talvez isto não seja

remédio para o corpo, mas para a alma. Ou um meio de levar à queda das

almas. Se o meu julgamento tiver algum valor, o pó nesta garrafa é sangue

seco. E já vi muito sangue na minha vida. - Rolhou a garrafa e voltou a dá-la a

Thomas como se ela lhe queimasse as mãos.

Thomas pegou nela, sentindo um arrepio.

- Sangue de homem ou de animal? O que é que um feiticeiro poderá

fazer com isso?

- O que poderá ele não fazer, Tom? Como diz nas Escrituras, ”O

sangue é a vida”. O sangue dos animais nocivos pode realçar a poção das

bruxas, enquanto o sangue de um homem pode ser usado contra ele mesmo.

O sangue de um santo, bem... se a magia do nosso feiticeiro for branca,

poderá fazer milagres; se for negra, grande mal pode ser causado.

- Então isto poderá ser uma relíquia? - Se fosse papista, Thomas

saberia que a sua alma estaria mais a salvo se ele atirasse imediatamente a

garrafa para o mar.

Lockheart encolheu os ombros.

- De certeza que não tenho o conhecimento para o dizer. Thomas

baixou o olhar para a garrafita. Qual será o mal que mais perigos causa à

alma: uma relíquia papista, um talismã pagão ou um feitiço satânico?

- Seja como for - prosseguiu o escocês - é possível que o nosso

feiticeiro a tenha usado apenas como especiaria no seu cozinhado.

Mesmo sem querer, Thomas riu-se.

- Senhor, nunca sei quando falais a brincar.

Page 41: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Não te queixes. Muitas vezes nem eu. Aproximaram-se alguns

passos e Thomas olhou em volta.

O mestre Bromefield caminhava na direção deles atravessando o

convés, com a sua capa de veludo levantada pelo vento. Thomas pensou que

ele se parecia com um retrato de taberna do velho rei Henrique VIII, só que

mais magro e mais gasto. Interrogou-se qual seria o sentido de honra

exagerado que levaria homens como Bromefield a usar roupas tão pesadas e

tufos engomados e duros em volta do pescoço mesmo neste clima tão quente.

Talvez como Enviado Especial de Sua Majestade, a rainha Isabel, ao grande

imperador da China, Bromefield nunca soubesse quando é que iria ser

chamado a impressionar alguém. Thomas pôs novamente a garrafa na sua

caixa e enfiou-a na casaca à medida que um Bromefield encharcado em suor

se aproximava deles.

- Senhor - disse Bromefield a Lockheart -, o nosso capitão

apresenta-vos as suas mais calorosas desculpas e pede o vosso regresso para

o último interrogatório dos nossos cativos. - Bromefield trazia uma expressão

contrafeita e Thomas interrogou-se se o mercador gostava menos da

mensagem ou da tarefa de mensageiro.

- Belas palavras, dadas lindamente, senhor - respondeu Lockheart -

, podeis informar o bom capitão que regressarei em breve.

- Assim farei, senhor. - Bromefield virou-se para sair.

- Mais uma coisa - disse Lockheart. - Também levarei o senhor

Chinnery, pois tem perguntas suas a fazer. - Como Bromefield franzisse o

sobrolho, acrescentou: - Não esqueçais que foi ele quem descobriu o nosso

feiticeiro. Acho que ganhou esse direito.

Bromefield suspirou, como se o mundo tivesse passado todas as

marcas da razão.

- Muito bem, se o capitão Wood estiver de acordo. - Virou-se, com a

capa a rodar e afastou-se.

Thomas ergueu as sobrancelhas para Lockheart.

Page 42: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Porquê esta desculpa?

- O nosso capitão, como deves ter notado, tem um temperamento

que muda como os ventos do cabo Horn. Por razões que desconheço, decidiu

descarregar em mim uma tempestade. Bom, pediu perdão de uma forma

muito elegante. Vem, Thomas. Vamos recebê-lo como cavalheiros que somos. -

Lockheart saltou e pôs-se de pé.

Thomas seguiu-o.

- O que é que lhes vai acontecer, ao feiticeiro e à senhora?

- É isso que está a ponderar agora o nosso capitão.

- Não sei porque é que tantos da sua tripulação nativa ficaram ao

nosso serviço e não quiseram aceitar a liberdade oferecida.

- Os portugueses são patrões duros, meu rapaz. Não há dúvida que

estão à espera de melhor sob o nosso cuidado.

Thomas e Lockheart passaram por vários dos homens da nova

tripulação, que estavam sentados a tirar estopa de cordas velhas para

repararem fugas, outros cosiam velas rasgadas e esfarrapadas. Thomas

sentia-se inquieto por ter tantos estrangeiros escuros a bordo, mas, no

entanto, muita da tripulação original do Whelp estava tão incapaz que a ajuda

era necessária em todos os quadrantes.

Lockheart levou Thomas até ao tombadilho, que estava agora

mobiliado com uma mesa e algumas cadeiras. O capitão Wood sentava-se

relaxadamente à cabeceira da mesa, com o seu rosto corado e curtido com

uma expressão carrancuda. À esquerda do capitão estava sentado o feiticeiro

português, alerta e direito, com as suas mãos algemadas sobre a mesa. Os

senhores Allen e Bromefield estavam de pé, desconfiados, à direita do capitão.

A misteriosa dama hindu não se via em lado nenhum.

O capitão Wood fez um aceno breve a Lockheart, depois a Thomas.

- Senhor Chinnery. Como é que estão os meus homens?

A verdade sobrepôs-se à diplomacia:

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- Não muito bem, senhor. Sofrem de febres, infecções e de falta de

remédios. Não serão muitos os que irão recuperar.

- Tal como eu temia.

O capitão baixou os olhos para a mesa e Thomas ficou surpreendido

por sentir alguma simpatia pelo homem.

- Thomas - disse Lockheart -, concedei-me a honra de vos

apresentar o Senhor Bernardo de Cartago, de Goa. Senhor, com licença,

apresento o Senhor Tomás Chinnery, médico e alquimista.

O prisioneiro ergueu as suas sobrancelhas finas e acenou

respeitosamente a Thomas. Dirigiu então uma pergunta em português a

Lockheart, que respondeu com uma breve afirmativa.

- Senhor - disse Thomas baixinho a Lockheart -, na verdade não

sou médico nem alquimista. Será sensato chamarem-me assim?

- Ele irá considerar-te melhor por isso. E que melhor forma para

descrever aquilo que fazes, hã?

O feiticeiro dirigiu-se então suavemente a Thomas, em latim:

- Cabe-me, então, apresentar-vos as minhas desculpas. Presumo

que o meu salvamento tenha sido pago com alto preço.

- O que é que ele diz? - murmurou o capitão Wood a Lockheart.

- O cavalheiro expressa o seu pesar pelas nossas perdas, senhor.

O senhor Bromefield franziu o sobrolho. Thomas interrogou-se até

que ponto era o conhecimento de latim do enviado. O capitão olhou para

Thomas.

- Senhor Lockheart, o nosso feiticeiro convidado também se chama

a si mesmo um alquimista, não é verdade?

- Sim, é um erudito, senhor.

- Perguntai-lhe se ele tem capacidades de cura ou remédios que

possam ter utilidade para o nosso senhor Chinnery.

Page 44: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Thomas pestanejou com a surpresa. O capitão sabe o meu objetivo

antes de eu falar. E a sua estima pelo homem aumentou novamente.

Lockheart recitou uma corrente deselegante de português.

- Sir! - Bromefield protestou ao capitão. - Estais a pensar pôr as

nossas almas em perigo utilizando os métodos maliciosos deste homem? Não

seria melhor morrermos sem mácula do que aceitarmos a ajuda do Diabo?

Inclinando-se pesadamente sobre a tábua, o capitão Wood ergueu-

se da sua cadeira e olhou para o senhor Bromefield.

- Senhor, será que este navio vai chegar à China, credes, navegado

apenas pelas almas de homens santificados? Será que sombras abençoadas

irão desfraldar as nossas velas e fantasmas enviados pelo céu trabalharão nas

vigias dos canhões? Será que os anjos puxarão as cordas e os querubins

baldearão a água? Garanto-vos, poucos dos malditos homens lá de baixo

estarão mesmo agora imaculados do pecado. No entanto, a minha

competência dada por Deus é cuidar das suas vidas e trabalho. Não pensais

que será prestado um melhor serviço a eles, a Sua Majestade e a Deus ajudá-

los a viver? Numa vida mais longa, mais orações serão ditas e mais pecados

perdoados. E por mais condenados que possam estar, a nossa jornada não

atingirá um objetivo mais lucrativo com a ajuda de mãos vivas?

Bromefield, rangendo os dentes para trás e para a frente,

murmurou:

- Então, que isso fique na vossa consciência, senhor. Que Deus vos

perdoe. Que Deus nos perdoe a todos. - E olhou intencionalmente para

Lockheart.

O capitão Wood resmungou e sentou-se mais uma vez. O feiticeiro

falou durante alguns momentos a Lockheart em português.

Lockheart aclarou a garganta:

- O senhor Cartago diz que tem pouca coisa com ele de remédios

vulgares. Contudo, tem alguns conhecimentos das plantas que crescem nesta

região. Fornecer-nos-á isso se permitirmos que ele viaje conosco até Pegu.

Page 45: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O capitão coçou a sua barba vermelha desalinhada, depois

aquiesceu.

- Um pedido razoável. Vou pensar nele. Agora, senhor Chinnery,

disseram-me que tendes uma pergunta a fazer ao nosso convidado.

Thomas sentiu que a garganta se lhe secava. Como é que eu poderei

perguntar sem alarmar o capitão e o senhor Bromefield?

- Já a haveis feito por mim, senhor. Eu também desejava saber se

ele tinha remédios para oferecer. Mas vou perguntar-lho mais uma vez. -

Virou-se para Cartago e falou em latim:

- Tendes a certeza, Magister, que não havia nada no vosso navio

que possa curar ou aliviar a dor?

Cartago fez uma pausa, olhando para Thomas, que reparou num

canto da caixa de madeira a espreitar da sua casaca. O feiticeiro inclinou a

cabeça com um brilho estranho no olhar.

- Nada, Magister, exceto o que foi oferecido por Ouroboros. - Pôs as

mãos à sua frente de forma a que os seus dedos encurvados e polegares

criassem um círculo.

Thomas sentiu que estava a ser testado. A palavra ”Ouroboros” era-

lhe vagamente familiar, mas não conseguia lembrar-se donde. Em vez de

mostrar a sua ignorância, Thomas inclinou a cabeça em aprovação.

- Compreendo. Obrigado.

- Falais grego? - perguntou Cartago.

- Sim. O meu pai fez com que me ensinassem intensivamente essa

língua.

- A senhora Aditi irá achar interessante, Magister. Poderíeis falar

com ela. Eu próprio não tenho conhecimentos de grego. Talvez, se houver

tempo, possais ensinar-mo um pouco.

Page 46: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Talvez - respondeu Thomas, escondendo a sua admiração.

Lockheart virou-se para ele, com um sorriso espalhado no rosto.

- Claro. Estava destinado, rapaz! - bateu-lhe no ombro.

- Então, então, senhor Lockheart - interrompeu o capitão Wood. - O

que é que o nosso homem disse?

O escocês respondeu antes de Thomas poder dizer alguma coisa:

- Ele não tem medicamentos, senhor, mas parece que finalmente

encontramos alguém que pode falar com a nossa passageira.

- Temos? - O capitão ergueu as suas sobrancelhas peludas para

Thomas.

- O rapaz aprendeu grego e parece que é essa a língua própria para

encantar o ouvido da nossa dama.

- Raios o partam, Lockheart! - explodiu Bromefield. - Porque é que

não nos haveis dito que ela falava grego? Eu próprio fui à escola do Merchant

Taylor e conheço alguma gramática grega. Eu podia ter falado com ela.

- Não lanceis assim a vossa saliva, senhor - rosnou o capitão. - Se

não podemos arrefecer-vos o sangue, senhor Bromefield, atiro-vos à água para

que ela o faça. Senhor Chinnery, sois fluente em grego?

Thomas acenou que sim:

- Sou, sim, senhor. Domino a gramática de Clenardus e li Esopo,

Platão, Demóstenes e Homero.

O capitão Wood virou-se para Bromefield:

- Foi a escola do Merchant Taylor que vos ensinou tudo isso?

Bromefield reteve a respiração e espetou o peito.

- Como parece que não possuo quaisquer aptidões de utilidade

aqui, vou juntar-me ao meu companheiro que está em terra, que está neste

momento ocupado com o verdadeiro objetivo desta expedição, senhor, que é o

delinear do comércio no Oriente.

Page 47: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Bromefield virou-se e afastou-se, olhando para Lockheart enquanto

se afastava.

Thomas sentiu-se num nevoeiro de estupefação, não como aquele

que sentiu quando, por acidente, ingeriu uma gota de xarope de papoula na

loja do seu mestre. A presença de Lockheart nesta viagem representava

claramente mais do que a venda da boa lã inglesa.

- Perdoai-me, capitão, se causei perturbação.

O capitão Wood acenou uma mão carnuda em gesto de despedida.

- Não dês importância, rapaz. É este ar sufocante. Gostaria que

falasses com esta senhora Aditi o mais breve possível. Soubemos que ela está

muito bem relacionada e pode dar um alto resgate. Descobre quanto e de

quem e como se poderá conseguir. Vê se esta expedição ainda pode ter algum

lucro. Segui o vosso caminho.

Quando desciam do tombadilho, Thomas perguntou a Lockheart:

- Sois um homem de tantas línguas, senhor, estou surpreendido por

o grego não ser uma delas.

- Para dizer a verdade, é, embora talvez não a saiba tão bem como

tu.

- Então porque não haveis dito isso ao capitão?

- Queres conhecer o conteúdo da caixa, não é? Eu acho que o nosso

feiticeiro te está a dirigir para a única que te pode dar a resposta. Estes

filósofos podem ter modos labirínticos, mas muitas vezes são generosos com

um colega em viagem.

- Na verdade, gostaria que não me tivésseis apresentado como um

colega alquimista.

- E porque não? Já viste o que já conseguiste? Qual é o mal?

- Receio ser descoberto. Agora ele está a testar-me. O nome que ele

mencionou, ”Ouroboros”, conhecei-lo?

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- Eu pensava que era o nome de um verme.

- As suas mãos fizeram um círculo. Ah! Agora lembro-me. O mestre

Coulter mostrou-mo uma vez num frasco de argila medicinal que ele comprara

a um alquimista da Saxónia. Não é um verme, mas sim uma serpente a

morder na cauda.

- Sim, alfa e ômega, mundo sem fim. - Lockheart ergueu as

sobrancelhas. - E mais uma vez a imagem de cobras. Este mistério leva-nos

realmente para um caminho em serpentina.

- É o que parece. Esperemos não encontrar dentes que nos mordam

no fim.

Capítulo IV

SABUGUEIRO: Esta pequena árvore dá flores docemente aromáticas

na Primavera e bagas pretas no Verão. A sua lenha cheira mal. Os mais

velhos contam que Judas se enforcou no sabugueiro e que foi desta

madeira que se fez a cruz do nosso querido Senhor. As bagas vermelhas

do sabugueiro têm origem nas gotas de sangue de Nosso Senhor. O

sabugueiro é sempre uma árvore de dor e morte. Trazer ramos de

sabugueiro para dentro de casa é tornar-se anfitrião do Diabo, e nem os

berços nem os barcos devem ser feitos desta madeira...

O Irmão Timóteo agarrou com força contra o peito a Bíblia gasta, de

capa de couro. “A pobre senhora não compreende”, pensou ele com pena.

Aproximou-se da mulher que estava deitada, com falta de ar, no catre

manchado.

- Senhora - disse ele, esperando que a sua voz parecesse suave e em

tom de perdão -, senhora, porque deixais que vos atormentem?

A cela estava silenciosa, tirando a respiração incerta da mulher e o

gotejar incessante de água nalgum canto escuro. A mulher vestia apenas uma

roupa interior outrora de seda fina e agora suja e rasgada. Fios de metal

afiado atavam-na às tábuas duras e toscas. Ela sofrera o potro, o tormento da

Page 49: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

água deitada de um jarro para um trapo de linho que é colocado sobre a

língua e dentro da garganta. Haviam-lhe dado alguns momentos de descanso,

mas ainda ansiava por ar como se estivesse a afogar-se. Virou o seu rosto

pálido para o Irmão Timóteo quando ele chegou ao seu lado, mas os seus

olhos escuros pareciam não o compreender.

- Senhora?

- Não! - gritou ela. - Mais água não, suplico-vos. - Tossindo, rolava a

cabeça de um lado para o outro e saltou-lhe da boca um líquido.

- Eu não trago o jarro, senhora. Não temais. Trago esperança. Não

deixais que o Diabo endureça o vosso coração, mas abri-o a Deus e aos

Domines que vos interrogam.

- Mas eu disse tudo o que posso! - lamentou-se ela. Não há mais

nada que possa dizer-lhes. O meu pai... por favor deixai-me falar com meu pai.

- Os Domines são o vosso pai aqui, senhora. E Deus é pai de nós

todos. Porque não lhes dizeis a verdade?

Um suspiro estremecido:

- Eu disse-lhes a verdade.

- Isso não pode ser, senhora, pois ainda estais aqui e os Domines

estão a voltar. Eles conhecem a verdade quando a ouvem. Porque não podeis

ver a verdade no vosso coração?

A mulher fechou os olhos.

- Não posso, não sei o que é que eles querem que eu diga. Timóteo

agarrou na mão fria e trêmula, com os olhos a encherem-se de lágrimas. Ele

desejava não ter esta tarefa. Testemunhar a dor dos convidados da Santa

Casa. No entanto, ele sabia que lhe tinham dado o trabalho mais importante,

guiar as almas até à luz. Odiava o Diabo que causava tanto sofrimento, que

cegava os pecadores para com os seus pecados.

- Por favor, senhora - disse ele. - Olhai para o vosso coração e

salvai-vos. Falai livremente, e aceitai o perdão de Deus.

Page 50: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Foi interrompido por passos na pedra do corredor no exterior da

cela. A mulher ergueu a cabeça do catre, de olhos abertos. A sua mão apertava

a de Timóteo como um ferro.

- Os Domines estão a voltar, senhora. E trazem novamente o jarro.

- Não... não os deixeis... por favor, não os deixeis...

- Só vós os podeis parar, senhora.

As dobradiças da porta da cela chiaram e entraram três homens: os

dois inquisidores-mores em vestes pretas e um estranho de branco. Timóteo

apertou a mão da mulher uma última vez e recuou. Se os mexericos da

cozinha que ele ouviu eram verdade, o dominicano devia ser o enviado do

grande inquisidor. Baixando o olhar, Timóteo fez educadamente uma vênia e

pôs-se a um lado.

- Irmão Timóteo - disse Domine Sadrinho -, a senhora Resgate quer

fazer a sua confissão?

- Não sei, Domine. Ela tem de falar por si mesma. - Timóteo olhou

para o teto e rezou. “Senhor, soltai a prisão que o Diabo exerce sobre o seu

coração. Ajudai-a a ver a luz do Vosso amor. Não a abandoneis na escuridão.”

- Porque é que continuam a atormentar-me, Domines? irritou-se a

mulher. - Eu não sei nada.

O inquisidor Sadrinho respondeu suavemente:

- Porque, minha filha, os tormentos que se enfrentam no Inferno

são muito maiores que qualquer tormento que possais receber na Terra. Os

sentidos da carne são passageiros. O Inferno é dor eterna. Aquilo que vos

damos é um carinho comparado com o que se passa no domínio de Satanás.

Fazemo-vos isto para que vos lembreis desse fato. Não quereis falar livremente

conosco e assim escapar aos horrores da condenação?

Após alguns momentos de silêncio, o inquisidor Pinto disse:

- Parece que ela deseja passar mais tempo na Cama da Memória.

O homem de branco aproximou-se do catre e disse:

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- Qual é o vosso nome, senhora?

A sua boca moveu-se, mas não saíram quaisquer palavras. Timóteo

podia sentir o seu medo.

- Senhora - disse o inquisidor Sadrinho -, este é o padre António

Gonsção. Ele fez todo este caminho desde Lisboa para ver se não ficais perdida

nos fogos de Hades. De tal forma é grande a compaixão da Santa Casa.

- Padre - sussurrou ela -, por favor, ajudai-me.

- Padre Gonsção, esta infeliz é a Senhora Serafina Resgate, viúva de

um fidalgo proeminente. Como vos disse, ela era conhecida por acompanhar

os feiticeiros Zalambur e Cartago. Ai de mim, ela parece não se lembrar do

tempo passado com eles ou com alguém do seu círculo.

- Padre - peço-lhe que...

- Senhora - disse Timóteo -, não percais as vossas preciosas forças

pedindo aquilo que só vós podeis dar. Estais a passar por uma horrível

provação. Peço-vos, dizei apenas palavras que vos levem à libertação. Deixai

que os Domines sejam como parteiras que ajudem a vossa alma a entrar

numa nova vida, e não coveiros que observam uma alma a enterrar-se sozinha

no pecado.

A mulher olhou para ele.

- Não há outra esperança para mim?

- Nenhuma, senhora. Ela suspirou.

- Eu fiz uma jura. Nunca falar disso.

- Haveis jurado a falsos deuses, senhora - disse o inquisidor. -

Como podeis ser castigada por aquilo que não existe?

- Eu vi... - Ela fechou a boca com firmeza, com um novo medo nos

olhos.

- O que haveis visto, filha? Dizei-nos e libertai-vos.

Ela tossiu outra vez, com os olhos muito fechados, mas não falou.

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- Muito bem. - Domine Sadrinho fez um gesto com a cabeça ao

inquisidor Pinto, que ergueu o jarro sobre o rosto da mulher, deixando que o

tecido molhado lhe tocasse no rosto.

- Não! - Os seus olhos arregalaram-se e lutou contra os arames que

a atavam.

- Por favor, senhora, não nos forceis a fazer isto. Conforme o pano

de linho lhe tocou na boca, ela gritou:

- Sim! Perdoai-me. Eu vou confessar!

O inquisidor Pinto afastou imediatamente o pano e o jarro do seu

rosto.

- Bernardo, Harun, perdoai-me - murmurou ela.

O coração de Timóteo saltou de alegria. Caiu de joelhos. Graças a

Deus!

- Uma decisão sensata, senhora - disse o inquisidor Sadrinho. Foi

até à cabeceira do catre e suavemente acariciou-lhe o cabelo úmido - O que

nos quereis dizer, minha filha?

- Senhor, eu... eu pequei.

- Sim. - O inquisidor-mor acariciou-lhe o braço devagarinho com as

costas da mão. - Continua. Descreve o teu pecado.

- Nós... eu fazia parte de... reuniões. Cerimônias. Em adoração da

deusa.

- E além de vós quem estava nessas reuniões?

- O meu amante, Harun. Uma mulher chamada Aditi. Outros... não

sei. Estava escuro. Não conseguíamos ver os rostos uns dos outros.

- Muito bem. E o que faziam nesses rituais pagãos?

- Sri Aditi disse-nos que a deusa vive entre os mortais na índia. Que

ela tem o poder de dar a vida e a morte.

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- Fostes enganada, senhora. Só o Senhor Deus dá a vida e a morte,

e depois a vida eterna.

- É como dizeis, Domine. Só Deus. Mas ela mostrou provas.

- Provas? Quereis dizer que ela usou de ilusões para vos enganar.

Mostrou-vos ídolos?

- Estátuas. Havia estátuas...

- E esta deusa tem cabeça de hipopótamo ou de outra criatura

bizarra?

- Cobras... - A mulher parecia estar a entrar em delírio. Havia

cobras.

- Qual é o nome desta deusa?

- O seu nome é força.

- Quais foram os vossos atos nestes rituais de adoração?

- Houve orações... e cânticos, penso.

- Essas evasões não irão salvar a vossa alma, minha filha. Tendes

de ser mais específica. Não penseis que ficaremos chocados. A Santa Casa

está habituada a todas as formas do trabalho do Diabo.

- Então para que preciso de vos contar?

- Para bem da vossa alma, senhora.

- Alguns de nós... bebemos sangue. Aditi disse que era o sangue da

deusa.

- Sim? Continuai.

- É... é tudo.

- Impossível.

- Não.

- Nós sabemos tudo sobre as cerimônias pagãs, senhora. Não faz

bem à vossa alma esconder seja o que for. Claro, o inquisidor Pinto pode trazer

Page 54: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

novamente o potro, no caso de a vossa boca estar muito seca, ou de a vossa

língua precisar de se soltar.

De olhos estonteados, a mulher disse:

- Não, o que é que querem que eu diga? Que comemos papoulas ou

fornicamos com animais?

- Ah - disse o inquisidor Pinto. - Agora estamos a chegar algures.

O padre visitante tossiu:

- Domine, talvez fosse melhor o jovem Irmão ir tratar agora dos seus

outros deveres.

- Como? Ah, sim, claro. Podes ir, Timóteo.

Timóteo fez uma vênia e caminhou para a porta, sorrindo e feliz.

Depois da sua confissão, ele sabia que dariam um banho à mulher e que seria

alimentada e levada de volta à sua cela. Dar-lhe-iam muito tempo para

recuperar enquanto aguardaria julgamento no próximo auto-de-fé. No seu

julgamento seria excomungada, mas se encontrassem em Goa um defensor à

altura para ela, seria imediatamente recebida nos braços da Santa Madre

Igreja.

Do lado de fora da cela, virou-se e viu que o padre dominicano o

seguira.

- Foi muito impressionante, meu filho - disse o padre. És na

verdade um grande trunfo para esta Santa Casa.

Timóteo sentiu que o seu rosto aquecia.

- Fico contente por mais uma alma ter voltado para Deus, padre.

- Claro. Domine Sadrinho, disse-te que eu gostaria de falar contigo

com calma um pouco mais tarde?

- Não, padre.

- Talvez esta noite, quando tiveres acabado os teus deveres

noturnos. Fazias-me o favor de te encontrares comigo?

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- Mmm... mas claro, padre.

- Ótimo. És claramente talentoso e perspicaz. Poderás ser de uma

grande ajuda para o meu trabalho. - Com um aceno de cabeça, o padre virou-

se e voltou a entrar na cela, fechando a porta atrás de si.

Timóteo sentiu que a sua alegria diminuía com a preocupação O

que é que o enviado especial quer de mim? Porque é que ele me elogia? Eu só

conduzo os nossos hóspedes para a luz. O seu regresso à graça é obra do

Senhor, não minha. Mesmo nada minha.

Capítulo quinto

OLIVEIRA: Esta árvore muito venerada cresce no Oriente desde

tempos antigos. Dos seus frutos retira-se um óleo bom como remédio,

alimento ou combustível para candeeiros. Para os Gregos a oliveira era

símbolo da paz, de viagem segura e vida muito longa. Era consagrada a

Atena, a sua deusa da sabedoria. Em Itália, considera-se que o ramo da

oliveira protege do raio do trovão e das bruxas. Para os Espanhóis, um

arco de oliveira torna a mulher chefe da casa...

Sri Aditi, nascida com o nome de Dará Naini num clã de gentes de

caravanas no Rajastão, olhava fixamente para o deserto do mar. Tanta água, e

nenhum socorro para a sede. Que horizonte tão longínquo, mas sem lugar

para onde caminhar. Morte no meio da vida. Vida no meio da morte. Um

paradoxo à altura de Mahadevi. “Porque é que eu deixei que Bernardo me

convencesse a fugir com ele? Eu nem sequer o amo. Em Goa havia ruas

familiares e casas onde a ajuda se podia encontrar. O que é que faço agora?”

A janela na cabina do navio inglês era demasiado pequena para se

saltar por ela. Pouca diferença fazia; Aditi não sabia nadar. Ser asfixiada pela

água, ou despedaçada pelos monstros que moram lá em baixo? Não, se a

morte tiver de chegar, a forma não será essa. A brisa trouxe do mar um cheiro

acre a sal. Aditi recuou e fechou a janela.

Page 56: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Havia vozes a aproximarem-se da porta.

Aditi rapidamente se pôs atrás de uma mesa, que colocou

juntamente com uma cadeira entre ela e a porta. Deslizou o candeeiro de

petróleo para ficar ao alcance da mão e pousou a outra mão no cabo de uma

faca enfiada na cintura da sua saia gahgrah. Iria tentar ferir ou matar o maior

número de ingleses que pudesse, ou a si mesma, antes de eles terem qualquer

hipótese de a envergonhar. Até agora tinham sido educados, mas Bernardo

dissera-lhe como eram os ingleses. Não esperava que a sua amabilidade

durasse muito.

Os marinheiros estavam a acender os candeeiros no convés inferior.

Com aquela luz fraca, Thomas e Lockheart encontraram a porta dos aposentos

do senhor Bertwick, que morrera de escorbuto há dois meses. Thatch, o velho

e vigoroso mestre de armas do Whelp, que era considerado pela tripulação

com um misto de terror e respeito, estava de guarda encostado à amurada.

- Boa noite, senhor Thatch - disse Thomas.

- Ah, o jovem senhor Chinnery! Boas-noites também para vós.

Tendes porventura mais um pouco daquele sumo de ópio? Eu acho que a

minha febre terçã está a piorar.

- Infelizmente, não, senhor, não há mais. Mas se encontrarmos

algum, dar-vos-ei a saber.

- Bom, então, ficarei muito agradecido. O que vos traz por aqui?

- Disseram-me que a nossa prisioneira está aqui alojada. Por trás

dele, Lockheart acrescentou:

- O capitão gostaria que falássemos com ela pois conhecemos uma

língua que ela sabe.

O mestre de armas esfregou o queixo proeminente com o polegar,

olhando com suspeita para o escocês.

- Sim, há muitos homens a bordo a quererem falar a língua dela, e

os lábios e as mãos também. Mas eu estou encarregado de que nada de mal

lhe aconteça.

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- Tende cuidado com a vossa própria língua, senhor rosnou

Lockheart. - Nós somos cavalheiros aqui ao serviço do capitão.

- Por favor - disse Thomas, mais uma vez espantado com a forma

como Lockheart parecia provocar inimizades em todo o lado. - Tenho ordens

para saber como é que se poderá obter um resgate da senhora. E talvez ela

saiba quais os remédios que podem ser encontrados nestas terras, em especial

o xarope de papoula.

- Então entrai, meu bom senhor Chinnery. Mas se alguma coisa

correr mal, chamem por mim. - O mestre de armas puxou o trinco e recuou.

- Assim farei, senhor.

A senhora Aditi estava de pé por detrás de uma pequena mesa

quando Thomas e Lockheart entraram. A luz fraca do candeeiro em cima da

mesa cintilava nos fios dourados do seu sari vermelho, brilhando na trança

escura do seu cabelo. Uma mão de dedos esguios repousava na mesa, a outra

na cintura, perto de uma faca semi-escondida. Ela olhava para eles

desconfiada, mas não parecia ter medo. Thomas achou-a muito bela, embora

de estrutura demasiado musculosa e porte excessivamente orgulhoso para o

seu gosto. O azul dos seus olhos tem mais aço que o céu limpo.

Sentiu que Lockheart lhe bateu nas costas.

- Não fiques aí especado, rapaz. Fala!

Com uma pequena vênia, Thomas disse em grego.

- Os meus cumprimentos, Despoina Aditi. Disseram-me que sabeis

a língua dos sábios e antigos helênicos.

Os seus olhos abriram-se e um sorriso suave apareceu nos seus

lábios. A sua postura desconfiada relaxou e deixou descair a mão afastando-a

da faca. Inclinou a cabeça.

- Certamente falastes com Bernardo.

- Se quereis dizer Despos de Cartago, estais correta.

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- Como é que acontece falardes esta língua? Sois um estudioso,

como Bernardo?

- Sim, Despoina. Embora os nossos reinos de estudo difiram. Eu

sou Thomas Chinnery, boticário, um investigador de ervas e drogas curativas.

- Estou a perceber. - Inclinou a cabeça com um sorriso curioso. -

”Tamas”, não é?

- Nai, Despoina. Há alguma coisa...

- Não é nada. Os vossos nomes estrangeiros são-me estranhos.

- Ah. Posso perguntar-vos como é que sabeis grego?

- Fui ensinada pelas minhas amas quando era criança.

- Tivestes amas... muito instruídas, Despoina.

- Nai. Quem é este? - Aditi voltou o seu olhar para o escocês.

- Sou Andrew Lockheart, Despoina - disse ele com uma vênia. - Um

homem errante longe da sua floresta, trazendo o ramo sagrado da Caçadora.

Thomas olhou de lado para ele. O que poderá ele estar a tentar

fazer? A senhora Aditi fez uma vênia em resposta, mas não mostrou qualquer

reação às suas palavras.

- Fomos enviados pelo capitão Wood - prosseguiu Thomas -, para

sabermos qual o resgate que poderemos obter por vós e quem o pagará.

- Compreendo. Podem negociar com os maratas de Goa. Eles

pagarão de boa vontade milhares de tangas de prata para a minha libertação

segura. Também controlam muito negócio nesta região, e se eu for bem

tratada poderei ter alguma influência sobre eles relativamente aos vossos

mercadores.

- Então e os portugueses - disse Lockheart -, que vos perseguiam e

a Despos Cartago? O que é que eles poderiam pagar se vos entregássemos a

eles?

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Ela levantou o queixo, com os olhos mais estreitos.

- Neles não se pode confiar. Iriam enganar-vos e pagar-vos com a

morte.

Thomas suspeitou que seria a senhora Aditi a pagar com a morte,

se fosse entregue aos portugueses, mas não se importou de a ajudar a evitar

um tal destino.

- Como é que podemos contatar esses maratas?

- Qualquer comerciante hindu que encontrardes nesta costa irá

aceitar pagamento para levar uma mensagem dessas. Cuidado, porém, com os

piratas, pois também são vulgares nestas águas.

- Temos conhecimento disso, Despoina, mas agradecemos.

- Porque é que desejais voltar para Goa - disse Lockheart -, quando

acabais de fugir de lá? Não pensáveis continuar em direção a Pegu com

Despos de Cartago?

A senhora Aditi baixou o olhar para a mesa.

- Lamento ter fugido com ele. Não desejo deixar a índia. É a minha

casa. Estou envergonhada com a minha cobardia por tentar fugir ao meu

dharma, e à ira da deusa que me apóia.

- Ela virou a cara para a janela.

Lockheart acenou gravemente com a cabeça.

- Como eu vos compreendo. Sois mais corajosa do que eu,

Despoina.

Thomas olhou novamente para ele. Estará ele a querer lisonjeá-la?

- Tenho mais uma pergunta que gostaria de fazer, Despoina.

-Qual é?

Thomas tirou a caixa furtada da sua casaca.

- Encontrei isto no barco de Cartago. Contém sinais que sugerem

que o seu conteúdo possa ser medicinal por natureza. Temos muitos homens

Page 60: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

doentes e feridos a bordo, e não temos mais nada para lhes dar a fim de aliviar

a dor ou para curar. Podeis dizer-me se o pó que está lá dentro tem qualquer

utilidade para nós?

A senhora Aditi olhou para a caixa. Thomas não tinha a certeza por

causa da pouca luz, mas pareceu-lhe que o seu rosto se tornou um nada mais

pálido. Fez uma pausa antes de responder.

- Haveis aberto a garrafa?

- Nai, Despoina. Pensamos que esteja cheia com uma espécie de

sangue em pó. Despos de Cartago sugeriu que pudésseis saber algo sobre isto.

Se é uma santa relíquia, ou uma substância utilizada em bruxaria?

Ela fez novamente uma pausa.

- Bernardo disse-vos mais alguma coisa?

- Não, Despoina.

Agarrou com força nas costas de uma cadeira. Com um suspiro,

disse por fim:

- Não é medicinal. Não deveis usá-lo por isso para esses fins, pois

poderá fazer mal. É sangue de macaco. Bernardo usava-o nas suas...

experiências alquímicas. Peço-vos que lhe devolveis isso, pois poderá não ter

qualquer utilidade para vós.

- Então porque é que a garrafa vinha acompanhada de um caduceu

se não é medicinal? E porquê o papel com frases sagradas respeitantes à vida

e à morte se não é uma relíquia?

- Não sei. Talvez a garrafa anteriormente tenha contido remédios. O

sangue seria santo apenas para aqueles que adoram Hanuman, o deus

macaco. Digo mais uma vez, não tentem usar o pó para cura. Só vos trará...

má sorte.

- Ah - disse Lockheart. - Um talismã de má sorte, como a pata do

mesmo macaco. Não admira que os portugueses andassem atrás de vós.

Page 61: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Thomas olhou para a caixa, relutante em deixá-la.

- Que experiências é que Despos Cartago faz com isto?

- Quando lha devolverdes, talvez ele vo-lo diga. Não tenho nada

mais a dizer. Por favor, deixem-me só, estou cansada.

- Mas ainda há mais uma coisa - insistiu Lockheart. - Quem é a

deusa de quem falastes antes, que vos apóia?

Os seus olhos tornaram-se novamente desconfiados e a sua mão

deslizou em direção à faca da cintura. Lockheart levantou as mãos:

- Não receais, Despoina. Não somos padres para vos converter. Só

pergunto como um homem curioso com as coisas do mundo.

Os seus lábios ficaram finos numa expressão que tanto podia ser de

medo como de desprezo. Caminhou até à janela e abriu-a.

- O seu nome é força - murmurou a senhora Aditi, olhando

fixamente para o mar.

Thomas não pôde dizer se ela estava a responder a Lockheart ou a

murmurar uma oração. Lockheart abriu a boca como se quisesse fazer ainda

uma outra pergunta, mas com um olhar intencional para o escocês, Thomas

falou primeiro.

- Perdoai-nos por vos termos incomodado tanto tempo, Despoina.

Agora vamos deixar-vos a sós.

Lockheart fechou a boca com um sorriso pesaroso e Thomas

acompanhou-o na saída. Quando saíram do alcance do ouvido do senhor

Thatch, Thomas disse:

- Achais que ela tenha mentido? Quero dizer, acerca do pó?

- Como uma leoa no deserto, rapaz, ela mente com o seu orgulho.

- Porque é que haveis dito essas estranhas palavras sobre um ramo

e uma caçadora na vossa apresentação, e aquelas perguntas sobre quem é que

ela adorava?

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- Esperava vir a saber que espécie de sofista ela seria, mística,

erudita ou feiticeira. Agora, penso eu, talvez uma espécie de feiticeira.

- O que importa, desde que sejamos capazes de obter o seu resgate

em segurança?

Lockheart franziu o sobrolho:

- Todo o conhecimento tem a sua utilidade mais tarde ou mais cedo,

rapaz. Adquiri o hábito de juntar o máximo que posso. Também podias fazer o

mesmo.

- Começais a ficar parecido com o mestre Coulter, senhor.

- Estou? - E a sua cara carregada tornou-se um sorriso, sutil. -

Lisonjeais-me. Bem, vamos dizer ao capitão as suas condições de resgate e

depois podes juntar-te ao resto da tripulação na praia. Ainda não acabamos os

barris do bom vinho espanhol que tiramos da posse de Cartago.

- Agradeço-vos, mas já vi que o folguedo tão animado muitas vezes

leva dali a bocado à pancadaria. Ainda tenho de ir ver outra vez os meus

doentes lá abaixo, que não podem tomar parte nessas festanças. Podeis dar a

mensagem da senhora Aditi ao capitão sem mim?

Lockheart parou de andar e pestanejou.

- Se tens a certeza que é esse o teu desejo. Uma noite sem as

profundezas fétidas iria fazer-te bem, rapaz. Não é bom para os doentes terem

um médico sem humor.

- Então, por favor, deixai-me com o meu humor e o meu trabalho.

Ide gozar os despojos enquanto eu trato os que ficaram despojados a obtê-los.

- Compreendi o toque - respondeu Lockheart com uma vênia e uma

careta. - Tem então o cuidado de permanecer lá em baixo durante a noite, pois

os esgares dos bêbados são uma visão terrífica para os homens sóbrios.

- Assim farei, senhor.

- Não te esqueças, não comas romãs enquanto estiveres lá em

baixo, ou não te veremos durante meio ano.

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Thomas riu-se:

- Darei os vossos cumprimentos ao senhor Plutão, se o vir, tal como

vós, senhor, apresentai as minhas cortesias a Baco.

- Não, a minha musa é a casta Diana, e tenho de fazer companhia à

Lua durante toda a noite. Até amanhã, Tom. - Lockheart subiu as escadas até

ao convés superior, desaparecendo na escuridão.

Thomas avançou pelo corredor estreito, entre os mastros, até ao

sítio onde uma outra escada levava às instalações da tripulação. Thomas

desceu-a lembrando-se da descida de Orfeu até ao Inferno. “Embora eu não

procure verdadeiro espírito de amor aqui, muito eu gostaria de levar uma

destas infelizes almas uma vez mais até à luz.”

Capítulo VI

AVELEIRA: Esta pequena árvore tem folhas arredondadas e

amentilhos longos. No fim do Verão, produz nozes escapeladas

chamadas [em inglês] ”Filberts”, em honra de São Filberto, pois é na

festa do seu dia que as avelãs amadurecem. A aveleira é, para os

Irlandeses, uma árvore de sabedoria e comer as suas nozes faz uma

pessoa sábia. Os de Gales entretecem ramos de aveleira nos seus

chapéus, acreditando que lhe concederá grandes desejos. Os melhores

ramos para adivinhação vêm da aveleira, quando cortados na véspera

de São João. Uma varinha cortada da madeira de aveleira por uma

criança inocente de fé verdadeira ajudará na procura de assassinos e

ladrões...

O padre Gonsção sentou-se num quarto escuro, bafiento e sem

janelas. Esfregou os olhos, que já lhe doíam de tantas horas a ler à luz da

vela. O banco alto onde se sentava já parecia duro que nem uma pedra.

Apesar de os ter segurado com cuidado, os três livros enormes que ele estivera

Page 64: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

a ler continuamente ameaçavam cair do atril estreito. E os livros pouco

continham daquilo que Gonsção precisava de ver.

O inquisidor Sadrinho, ao que parece, não deseja o meu sucesso.

Mesmo assim, os livros que lhe haviam dado apontavam para a razão.

Verificara cuidadosamente o registro do último auto-de-fé, realizado no dia 8

de Dezembro de 1596. As listas daqueles que foram conduzidos para execução

civil, dos que foram mantidos na prisão, e os que foram libertados mostravam

que só os hereges mais ricos, que tinham muita propriedade para ser

confiscada, foram queimados. Gonsção fazia uma lista daqueles que foram

mandados para a fogueira, com a intenção de pedir os registros do seu

interrogatório. Suspeitava que iria ver sempre os mesmos familiares como

testemunhas de acusação.

Tal como era de esperar, não lhe tinham dado qualquer registro dos

julgamentos do governador Coutinho ou do vice-rei Afonso de Albuquerque.

Ambos eram homens ricos e em posições que podiam desafiar o poder da

Santa Casa. Podia acontecer as acusações contra eles serem falsas. Gonsção

lembrou-se de um caso em Lisboa; um homem fora preso como herege

durante dois anos até o seu acusador confessar ter prestado falso testemunho

- ficara ciumento, pois o prisioneiro cortejara uma mulher que o acusador

desejava. A Santa Casa é como uma espada bem feita; uma arma poderosa

empunhada tanto para o bem como para o mal.

Assustou-se com uma pancada na porta. Gonsção fechou o livro e

disse:

- Benedite. Entrai.

O Irmão Timóteo entrou, trazendo outro livro de capa de couro e no

cimo um tabuleiro de prata. Na travessa estava um jarro de água, um copo e

uma tigela de arroz com um molho picante de ragu, encimada por fatias de

peixe fumado.

- Uma imensidão de bênçãos te cubra, meu filho. Deve ter sido a

própria Nossa Senhora da Piedade que te mandou. Gonsção indicou que o

tabuleiro deveria ser posto no chão, pois não havia outro lugar onde o colocar.

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O Irmão Timóteo pousou o tabuleiro e o livro com cuidado.

- Não, padre. Foi o Domine Pinto quem me mandou.

- Então certamente que foi inspirado pelos anjos. - O inquisidor

Pinto é dominicano, tal como eu. Talvez a lealdade para com um Irmão da

ordem possa vir a ser de maior força e valor do que a lealdade dentro da Santa

Casa.

- Sim, padre. - O rapaz ficou deferentemente em pé junto à porta.

Tinha cabelo preto cortado à tigela e olhos escuros, e a luz da vela dava à sua

pele castanha uma tonalidade acobreada.

Não há dúvida que ele tem algum sangue hindu, um mestiço, tal

como parecem ser a maior parte dos goeses. É uma pena, pois vai impedi-lo de

ter uma posição mais alta do que a de padre paroquial.

- Fica, Timóteo. Estou contente por finalmente termos a hipótese de

falar. - Gonsção deslizou do seu banco. – Podes estar à vontade para te

sentares neste banco por uns instantes. Eu já me sentei nele demasiado

tempo.

- Oh, não, padre! Vou sentar-me aqui. - Sem hesitação, o rapaz

sentou-se de pernas cruzadas no chão sujo.

- Como quiseres. - Gonsção deu a volta ao atril, achando que era

mais confortável estar de pé. - Há quanto tempo serves na Santa Casa?

O rapaz contou pelos dedos por momentos.

- Há quatro anos, padre.

- E há quanto tempo és avocato dos convidados da casa?

- Há um ano e um mês, padre.

- Mmmm. O que é que me podes dizer sobre esses convidados,

Timóteo?

O rapaz pestanejou.

- Não sei a que vos referis, padre.

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- São gente educada e erudita? Ou pobres agricultores e gente do

comércio? Ou fidalgos ricos?

- Não tenho a certeza, padre. Presto pouca atenção a essas coisas.

Eles são todos pessoas tristes, assustadas, com as almas doridas. Todos a

precisarem da nossa orientação.

- Sim, calculo que na altura em que os vês, seja assim que todos

pareçam. São bem tratados?

- Aqueles que confessam e aceitam Deus são tratados com

amabilidades, padre. Mas...

- Mas?

Suavemente, o rapaz disse:

- Por vezes acho que os guardas são demasiado duros com eles.

- Bom, por vezes tem de se contratar homens duros para essa

tarefa. Os nossos convidados são como crianças perdidas, e as crianças

precisam de uma orientação firme e de disciplina para encontrarem o caminho

reto na vida, não é verdade?

Então a sua educação tem sido descuidada. É impressionante que

um instrumento tão afinado possa ter surgido de uma confraria de tão má

qualidade.

- E os inquisidores? Como é que eles tratam os convidados?

- Oh, os Domines são muito gentis, padre. Domine Sadrinho passa

muito tempo com os convidados, em especial com as mulheres. Quase todas

as senhoras que ele ministrou acabaram por confessar.

Gonsção sentia-se desconfortável com a volta que isto estava a

levar.

- Haveis já servido alguma das heresias nestorianas?

- Hummm... só duas, padre. São muito difíceis.

Page 67: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Sim, é por isso que é preciso lidar com elas com severidade, meu

filho. Estão tão perto da verdade e, no entanto, tão erradas.

Timóteo acenou em confirmação e olhou para as suas mãos.

- Um não se arrependeu. Foi condenado à fogueira no auto-de-fé

seguinte.

Gonsção avançou e colocou a mão no ombro do rapaz.

- Não te culpes. Tenho a certeza que fizeste tudo o que podias.

- Rezo por ele todos os dias, padre.

- Isso é bom, meu filho. Trouxeram para aqui muitos nestorianos?

- Acho que não.

- Estou a ver. - E no entanto a destruição dessa heresia foi a razão

principal para a fundação desta Santa Casa. Parece que os inquisidores se

afastaram do seu objetivo. - Timóteo, não eras avocato quando o governador

Coutinho aqui estava, pois não?

O rapaz abanou a cabeça.

- Mas talvez tenhas ouvido alguma coisa sobre o assunto. Alguma

referência às acusações, ou à sua confissão?

- Não, padre. E se tivesse, dizem-nos para nunca repetir o que um

convidado confessou.

- Claro. Exceto em algumas circunstâncias. Deixa-me que te

explique. As forças que levaram Coutinho e Albuquerque ao pecado podem ser

ainda mais poderosas e traiçoeiras do que as da heresia nestoriana. Eram

homens de boa família cristã, percebes, a quem não faltava honra nem riqueza

material. No entanto, algo os levou a afastarem-se de Deus, a seguirem um

caminho que certamente sabiam ser perigoso para as suas vidas e almas. É

este o mistério para o qual fui enviado a resolver, Timóteo. Essa fonte do mal

poderá estar ainda ativa em Goa, e poderá espalhar a sua influência mais

longe se não a descobrirmos. Foi-me atribuído este dever pelo grande

inquisidor Albrecht, e, através dele, por Sua Santidade o Papa. Vês como isto é

importante, meu filho?

Page 68: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O rapaz acenou com a cabeça, de olhos muito abertos.

Suavemente, Gonsção prosseguiu:

- O miasma da corrupção pode ter infectado até a própria Santa

Casa.

- Não!

- Chiu, também me dói pensar nisso, e espero que se venha a

demonstrar não ser assim. Mas temos de ter muito cuidado, meu filho. Tenho

de te pedir que não discutas com ninguém estas coisas de que falamos.

Consegues fazer isto?

Após uma pausa, o rapaz fez que sim com a cabeça.

- Muito bem. Agora, preciso que me ajudes numa coisa na minha

tarefa. Preciso dos relatos dos julgamentos de Coutinho e Albuquerque. O

inquisidor Pinto poderá saber onde poderão ser encontrados. Pergunta-lhe

onde os outros não te possam ouvir, e se ele puder arranjá-los, traz-mos.

Fazes-me isto?

O rapaz engoliu com dificuldade:

- Sim, padre.

- Deus te abençoe. És um soldado do Senhor na batalha contra

Satanás. Agora vai, e vê se podes encontrar Domine Pinto.

Timóteo pôs-se de pé:

- Sim, padre. - Olhou para a porta, mas hesitou.

- Há mais alguma coisa, meu filho?

- Posso fazer uma pergunta, padre?

- Certamente.

- Perdoai-me, mas... Domine Sadrinho disse que lhe haveis dito

para me tirarem Os Lusíadas.

- Ah, sim, realmente recomendei-lhe isso. Ele disse-te porquê?

Page 69: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Não, padre. Mas... ele disse umas coisas que eu não devo repetir.

Gonsção suspirou:

- Meu filho, tens de compreender que o livro de Camões faz

provavelmente parte do mesmo perigo de que estivemos a falar. Poderá ter

uma influência corruptora numa mente tão nova como a tua.

- Mas eu li esses versos toda a minha vida! - Os olhos de Timóteo

estavam tristes e com um toque de desafio.

- Então o mérito é teu, meu filho, por a tua fé permanecer forte e

pura. Mas estás a chegar a uma idade perigosa, quando o Diabo envia dúvidas

para perturbar a tua mente e tentações para atormentar a tua carne jovem.

- Mas o livro é só histórias!

- As histórias têm poder, Timóteo, quer para o bem quer para o mal.

Foi por isso que Nosso Senhor usou parábolas para ensinar a sua mensagem

aos seus discípulos. Mas tens de desconfiar de outras histórias para além das

que encontras no Livro Sagrado.

A boca do rapaz apertou-se e as suas mãos fecharam-se. Mas

finalmente olhou para os seus pés e sandálias e disse:

- Como quiserdes, padre. Gonsção sorriu:

- Terás o livro de volta um dia. Talvez signifique mais para ti nessa

altura. Disseram-me que é uma obra difícil, mesmo para aqueles que

estudaram os clássicos. Todas aquelas referências a lugares distantes,

divindades obscuras e criaturas.

- Mas eu conheço todas essas coisas, padre - disse Timóteo. - Li a

Ilíada e Virgílio e outros livros. Estavam todos na biblioteca do meu avô. E ele

contou-me muitas histórias que ele leu.

- Chiu, já chega. É claro que tens mais educação que muitos

rapazes ricos de Lisboa. Deus concedeu-te uma inteligência rápida, mas a tua

aprendizagem agora tem de ser de espécie diferente. Tens o dom de inspirar fé

nos outros, levando-os assim para Deus. Temos de cuidar para que as antigas

histórias pagãs não te distraiam de uma tarefa tão importante.

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Timóteo suspirou.

- Sim, tendes razão, padre.

Gonsção deu-lhe pancadinhas no ombro.

- És esperto, meu filho. Até para mim tu és uma inspiração. Agora

vai. Temos muito que fazer, tu e eu.

Sem mais palavras, Timóteo fez uma vênia e saiu.

Gonsção pegou na tigela de arroz e sentou-se mais uma vez no

banco, sentindo-se vagamente sujo.

Capítulo VII

Ameeiro: Esta árvore tem folhas redondas e de matiz avermelhada.

Os Irlandeses utilizam-no para ler a sorte, e para saber a natureza da

doença de um homem, cortando um ramo de amieiro, a madeira irá

passar de branca a vermelha, como se a árvore fosse de sangue vivo.

Talvez seja por esta razão que o amieiro era considerado pelos antigos

como uma árvore de ressurreição.

Thomas estava agachado num cemitério, no meio da escuridão e

com o cheiro intenso a podre. Escavou a terra úmida à sua frente como um

cão rafeiro à procura do seu jantar queimado. À distância, atrás de si, ouviu

lamentos e gemidos suaves. Ainda andam à minha procura. E se calhar

encontram-me. Ele escavou à pressa, arrancando raízes enredadas e pedras

pontiagudas. Os seus dedos embateram numa coisa dura e ele limpou a terra

em volta. Da poeira surgiu uma coisa pálida e redonda - um crânio, ainda com

alguns fios de cabelo. O crânio fixou nele o seu olhar de órbitas vazias e abriu

os maxilares de marfim. Thomas gritou: ”Mãe!” e sentou-se, acordado, batendo

com a cabeça no catre por cima dele.

Page 71: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Sentou-se por momentos, com falta de ar e o coração a bater-lhe

com força no peito. Os pesadelos. Voltaram outra vez. Na escuridão dos

aposentos da tripulação, o sonho pairou nos seus pensamentos, não

abandonado pelo estado de vigília. Meu Deus, porque é que sou tão

atormentado? Esfregou os olhos e interrogou-se que horas seriam. Thomas

lembrava-se de ter deixado a companhia de Lockheart e de ter ido ver os seus

doentes, apesar de não haver muita coisa que pudesse fazer por eles.

Exausto, Thomas descansara num catre vazio. E adormecera. E

sonhara.

Os homens doentes, feridos e moribundos gemiam baixinho à sua

volta, alguns murmurando orações ou chamando pelos seres queridos.

Que direito tenho eu de estar com pena de mim, quando estes

infelizes vivem um pesadelo do qual não há despertar? Thomas pegou num

candeeiro que estava pendurado na cabeceira do catre e levantou-o para

verificar os homens.

Ali ao seu lado estava Stephen, o tanoeiro, cujas costelas tinham

sido esmagadas por uma bala de canhão. Thomas colocara-lhe em volta do

pescoço uma bola feita de galha de carvalho vazia cheia com galho esmagado e

rábano bastardo para manter a febre baixa, mas sem resultado. O homem

tremia num sonho perturbado.

Um braço magro surgiu da escuridão:

- Há mais remédio das dores, senhor? Pelo amor de Deus, peço-vos!

Era Howard, o cordoeiro, cujas pernas e peito tinham sido

queimados e esmagados pelo canhão que ele próprio disparara. Para ele,

Thomas experimentara a teoria do óleo das próprias armas defendida pelo

grande Paracelso; Thomas aplicara uma pasta de valeriana e malva ao canhão

em si, tratando o homem apenas com água limpa e ligaduras. Como resultado,

as feridas de Howard estavam a sarar toleravelmente bem, mas continuava a

sofrer de grandes dores.

- Daqui a pouco - era tudo o que Thomas conseguia dizer -, já vou

ter mais.

Page 72: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

A seguir estava Corbin, cujos braços e pernas tinham sido partidos

por um mastro que caíra. Thomas pusera os ossos no lugar tão bem quanto

pôde, e deu ao homem um amuleto de terra sigilata feito de argila de Malta.

Thomas não invadiu a dignidade de Corbin reconhecendo os seus gemidos de

desespero.

No catre mais além jazia Pepper, o aprendiz de cozinheiro,

inanimado devido ao refluxo dos intestinos. As pequenas doses de mercúrio

misturado com pó de múmia pareciam não ter sido de grande ajuda e não

respondeu à voz de Thomas.

Apertou o ombro do rapaz e passou rapidamente. “Meu Deus,

nunca fui preparado para um serviço como este. Se os janotas que vinham à

nossa loja a queixar-se de dores de cabeça pudessem ver estes homens e

soubessem o que é o verdadeiro sofrimento”. Os carinhos que ele aprendera

para auxiliar senhoras cheias de afetação não tinham cabimento na câmara

infernal que tresandava a suor e a infecção podre. Então porque é que tenho

de ser eu a tratar deles se tenho tão pouco jeito para os ajudar?

Thomas continuou a ronda terrível, dando o pouco conforto que

podia, pensando nos medicamentos que poderia combinar das poucas

reservas que lhe restavam.

Finalmente, chegou ao pé de Nathan, o aprendiz de carpinteiro, cujo

catre ficava junto à escada. O rosto do rapaz revelava um sono tranqüilo.

Thomas sentou-se ao seu lado, congratulando-se por aqui pelo menos haver

um que não estava a sofrer. Mas quando observou, apercebeu-se de que o

rapaz estava na verdade muito quieto, mais do que é natural no sono. O medo

apoderou-se dele e colocou a mão no pescoço do rapaz. Não tinha pulso.

Thomas inclinou a cabeça, com um suspiro profundo. Porque logo

este, Senhor, que tinha tanta vida à sua frente? Thomas percebeu que tinha

de se apressar. Neste clima, os cadáveres não tratados rapidamente tornam-se

um perigo para os vivos. No entanto, devia ser dita uma oração. Passou-lhe

uma frase pelos pensamentos: Todo aquele que acreditar em mim terá vida

eterna.

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Thomas colocou a lanterna nos degraus e tirou a caixa de madeira

do bolso. Abriu-a com cuidado e retirou a seda que embrulhava a garrafinha.

As suas mãos começaram a tremer quando levantou a garrafa opalescente que

cintilava à luz da lâmpada. Finamente esculpida na superfície do vidro,

invisível anteriormente, estava a imagem de uma ave, com as asas esticadas,

erguendo-se de um leito de chamas.

- Sangue de macaco, é isso que és? - murmurou Thomas, com o

coração a bater forte. - Oh precioso macaco, cuja baba vem com palavras de

vida para além da vida, tu dizes a tua mensagem claramente. - Lembrou-se do

aviso da Senhora Aditi, da forma como ela lhe pedira para devolver a garrafa a

Cartago. Será que o alquimista descobriu a pedra filosofal da lenda? O elixir

da vida?

Thomas olhou para o rosto jovem de Nathan. Que mal poderá fazer

a alguém já morto? Não ousando reconsiderar, desrolhou a garrafa.

- Nate, se esta substância for sagrada, que tu sejas abençoado por

ela. Se não, que o mal recaia sobre a minha alma, não sobre a tua. Que Deus

me ajude.

Segurou na garrafa sobre o rosto de Nathan e borrifou uma

pequena quantidade de pó entre os lábios ligeiramente afastados do rapaz.

Parou durante uns momentos, mas não viu qualquer alteração. Thomas

suspirou e pôs novamente a tampa na garrafa, e a garrafa de novo na caixa.

Pegou na mão fria de Nathan entre as suas e fechou os olhos. “Senhor, se for

essa a Tua vontade, dá-lhe de volta a vida. Se não, leva depressa a sua alma

para o Céu”.

A seguir sentiu um puxão no punho da camisa. Lentamente,

Thomas abriu os olhos. Nathan virara a cabeça e olhava para ele.

- Senhor Chinnery? Está a magoar a minha mão, senhor. Thomas

apercebeu-se da força com que apertara e largou.

- Nate... por favor, perdoa-me. Como estás?

- Cansado, senhor. Dormi de mais? Tive sonhos estranhos.

Page 74: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Sonhos? - Os mortos sonham, então?

- Sim. Havia um belo edifício junto ao mar, tudo colunas brancas e

assim. E uma senhora bonita. E serpentes.

- Serpentes? - Meu Deus, o que é que eu fiz?

- Mas eu não tinha medo, senhor. Foi um sonho agradável.

- Ah, deixa-me ver a tua ferida, Nathan. - Thomas levantou a

ligadura improvisada que apertava as costelas de Nathan. Ainda se viam

cicatrizes vermelhas ao longo do peito e do abdômen, mas já não estavam

infectadas. Estavam secas e claramente a caminho de sarar.

- A infecção desapareceu! Diz as tuas orações, Nathan, pois Deus

concedeu-te a tua recuperação. Eu... eu tenho de ir falar com uma pessoa.

Thomas colocou a caixa na casaca e pôs-se de pé.

- Amanhã posso voltar lá para cima, senhor? Estou cansado desta

tarimba.

- Sim. Vamos ver. Amanhã. - Thomas pegou na lanterna e subiu as

escadas, sem fôlego devido ao terror e ao espanto.

Emergiu da escotilha e mergulhou numa noite mais escura que as

profundidades lá de baixo. Eram poucas as lanternas da amurada que tinham

sido acesas e as estrelas brilhavam intensamente por cima dos mastros

partidos. Não havia Lua.

Do outro lado da lagoa, os foliões na praia surgiam como silhuetas

contra as fogueiras, dançando e gesticulando que nem demônios cabriolando

no fogo do Inferno. À ré, um marinheiro solitário contemplava o mar, com a

ampulheta por virar, esquecida. À exceção dele, o Whelp parecia deserto.

Thomas virou-se e caminhou suavemente para o castelo de proa.

Aditi caminhava para trás e para a todo o comprimento dos seus

aposentos, incapaz de dormir. Os seus pensamentos debatiam-se como

nuvens de tormenta. Mais uma vez ouviu vozes à porta.

Page 75: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O homem rude e de barba escura entrou e curvou-se. Tinha o rosto

corado e a respiração rápida e breve.

- Despoina. Espero não ter perturbado o vosso descanso.

- Não. Onde é que está o vosso amigo de cabelo amarelo?

- Está ocupado noutros deveres. Perdoai-me, mas tenho de ir direto

ao assunto, e rapidamente. Surgiu uma hipótese que tem de ser aproveitada

ou esta noite ou nunca.

- Uma hipótese de quê? O vosso capitão não concorda com as

nossas ofertas de resgate?

- Concorda, mas receio ter de vos dizer que ele não pode cumprir os

seus acordos. Os nossos navios estão demasiado danificados para navegarem,

as reparações poderão levar meses.

Aditi engasgou-se a respirar.

- Então nessa altura o Santa Rosa poderá voltar e com ele mais

navios.

- Com efeito, e com tão poucos homens capazes, não estamos em

condições para outra batalha.

- Talvez os goeses não nos encontrem aqui.

- Não, Despoina. Já é demasiado tarde. Os comerciantes que nos

servem têm espiões goeses entre eles. A nossa localização, e a presença de

Cartago conosco, é já conhecida.

Aditi apertou a parte de cima dos seus braços, sentindo frio.

- O que ides fazer?

Ele delineou o seu plano. Os olhos de Aditi abriram-se.

- Faríeis isso por nós?

- Por mim - disse ele com um sorriso meio trocista.

- Contra os vossos...

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- Ninguém sairá prejudicado, e uma vez partido o feiticeiro, eles

estarão em menor perigo. O capitão Wood deu-me autorização para vos levar

juntamente com Despos Cartago, de forma a, segundo ele acredita, poder

discutir posteriormente o resgate. Apressemo-nos, Despoina.

A hipótese de abandonar o compartimento pequeno e vazio era bem

recebida. O velho marinheiro magro que estivera a guardar a sua porta caiu

para trás quando entraram no corredor. Aditi podia sentir o olhar dele nas

suas costas. Ela ansiava deixar o confinamento deste navio, com os seus

homens perdidos e feridos. Ela estava muito consciente de como podiam ser

frágeis os limites da civilização. Um passo em falso, uma mudança de vento, e

ela podia ser devorada como uma pomba no meio de chacais.

Foi levada até uma sala muito parecida com aquela que deixara,

mas ainda mais pequena. Bernardo estava sentado a uma mesa, com as mãos

agrilhoadas. A exaustão afundara-se na nobreza do seu rosto. Cumprimentou-

a com um sorriso de lamento.

Aditi foi ter com ele e colocou-lhe a mão no ombro.

- Bernardo. Fizeram-te mal? - Ela falava em marata.

- Não. Mas não descansei e não tenho estômago para a comida

deles. É bom ver-te, meu falcão.

Aditi interiormente recuou perante esta amabilidade.

- Ele contou-te o seu plano?

- Contou.

Aditi franziu o sobrolho.

- Confias nele?

- Daquilo que vi quando me interrogaram na coberta, acredito que

estes navios não possam sair daqui muito em breve. Pelo menos isso é

verdade.

- Sabes qual o perigo de voltares para Goa. Cartago ergueu as mãos

até ao peito.

Page 77: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Não sou louco, Aditi. Estou preparado.

Thomas ficou surpreendido por ver o senhor Thatch a guardar uma

porta diferente da anterior.

- Ah, senhor Chinnery. Estava a perguntar a mim mesmo quando

iria aparecer. O vosso amigo já está lá dentro e a conferência já começou.

Thomas pestanejou, confuso.

- Perdão? Queres dizer Lockheart? Eu pensava que ele tinha ido a

terra. E não estavas a guardar a senhora Aditi?

- É o que estou a fazer, senhor, e ela está lá dentro, com o feiticeiro.

Estão juntos para discutir planos de resgate. Não vos disseram?

Thomas abanou a cabeça.

- Não importa. Posso entrar.

- Com certeza, e se alguma coisa correr mal, não fiqueis perto de

mim.

- Não o farei. - Thomas escancarou a porta e entrou. Cartago e

Lockheart estavam sentados à mesa, e a senhora Aditi encontrava-se de pé a

um lado. Todos olharam para ele como crianças apanhadas num jogo proibido

qualquer. Quando Thomas encontrou o olhar de Aditi, sentiu que ela sabia ao

que ele vinha.

- Thomas? - disse Lockheart. - O que se passa? Eu pensava que

estavas a tomar conta do rebanho lá de baixo.

Thomas cerrou os punhos e sentiu a garganta seca.

- Uma ovelha perdida regressou fora de tempo. - Olhou para

Cartago, mas disse em grego: - Acho que fui enganado.

A senhora Aditi respondeu:

- Haveis usado o sangue.

Page 78: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Parece que viste um fantasma, rapaz - exclamou Lockheart. -

Peço-te, senta-te e põe-te confortável.

- As vossas palavras são muito hábeis, senhor - retorquiu Thomas,

sentando-se. Para Cartago, Thomas disse em latim: - Preciso saber, Magister,

a fonte deste poder.

- Um momento - interrompeu Lockheart. - Nós chegamos a meio. O

que é que aconteceu para te pôr assim tão nervoso e pálido?

Em latim, de forma a que o feiticeiro pudesse compreender também,

Thomas explicou:

- Lembrai-vos de Nathan, o aprendiz de carpinteiro? Quando o

examinei numa das minhas últimas rondas, ele jazia quieto, sem qualquer

pulsação nas veias ou respiração da sua boca. Pus-lhe um bocadinho deste pó

entre os lábios. Dali a pouco tempo, o rapaz acordou, vivo e com a ferida a

sarar. Não se apercebeu que tinha estado sem vida.

Cartago deixou sair um longo suspiro. Lockheart deu ao feiticeiro

um olhar especulativo, depois sorriu tristemente para Thomas.

- Mas não há qualquer milagre nisto. Fui soldado, e vi muitos

cadáveres aparentes serem arrastados do campo, e reviverem a caminho da

vala comum. O rapaz não estava morto, Tom, só a dormir.

- Eu sei o que vi, senhor!

Cartago disse:

- Mais alguém testemunhou isto?

- Não, Magister. Estava escuro. Mais ninguém podia ver.

- Então temos apenas a tua palavra sobre esta ressurreição

espantosa - comentou Lockheart. - Descansaste o suficiente, Tom?

- Depois de nos termos separado, senhor, examinei os homens sob

a minha guarda, depois deitei-me para descansar. Dormi, mas acordei com

pesadelos.

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- E tens a certeza que este acontecimento não fez parte do vosso

sonho?

- Eu sei a diferença, senhor!

Lockheart aproximou-se e bateu com a mão carnuda no ombro de

Thomas.

- Acho que tu próprio precisas de uma poção mais poderosa do que

o sangue em pó de macaco. Espera um pouco que já te trago um pouco do

ótimo Madeira dos nossos convidados. Tenta não os aborrecer muito com

perguntas fantasiosas, sim?

Com um piscar de olhos, Lockheart levantou-se e saiu do

compartimento. Thomas ouviu-o falar durante uns momentos com o senhor

Thatch antes de os seus passos se afastarem pelo corredor.

- Avisei-vos para não o usardes - disse a senhora Aditi num latim

desajeitado.

- Mas não me haveis dito porquê, Domina, e eu estava desesperado

à procura de um remédio. E este provou ser o mais poderoso dos remédios,

por isso preciso de conhecer a sua natureza.

Cartago olhou para a porta, de sobrolho carregado.

- Perdoai-nos, senhor Chinnery, por não termos sido totalmente

honestos convosco, mas fizemos um juramento de não revelar a fonte do pó. É

uma questão que só se põe para... iniciados.

- Iniciados? - Suspirando, Thomas enfiou os dedos no cabelo. -

Magister, sois cristão?

- Fui, outrora. A minha aprendizagem, porém, levou-me a ser

apóstata. Porque perguntais?

- Para saber se ireis entender o que vou perguntar a seguir.

Condenei a minha alma, ou a do rapaz ressuscitado, com o uso deste pó?

A senhora Aditi fez uma cara séria e estendeu as suas mãos esguias

e de dedos compridos.

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- Tivestes sorte, Tamas, pois Mahadevi mostrou-vos a sua bênção.

Mas nem sempre é assim. E ficareis perturbado com aquilo que não

compreendeis. Se acarinhais a vossa fé, deveis devolver-nos o pó e esquecer o

que vistes.

Cartago ergueu a mão num gesto para ela, mas as grilhetas

interferiram. Falou suavemente com ela numa língua estranha a Thomas.

Depois, para Thomas, disse:

- Que tipo de alquimista sois vós?

- Não vos informaram corretamente, Magister, eu não sou

alquimista, mas sim aprendiz de boticário. Uso ervas, especiarias e todo o tipo

de coisas para curar enfermidades. Sei que partilhamos algum conhecimento,

embora aquilo que procuramos através desse conhecimento seja diferente.

Nunca antes usei uma substância de tanto poder.

Cartago ergueu as sobrancelhas.

- Então, a minha senhora não é a única em cuja palavra não se

pode confiar inteiramente.

- Não escolhi enganar-vos. Lockheart desejava que me julgásseis

um alquimista, talvez para ganhar a vossa confiança. Perdoai-me. Só que, por

favor... estou condenado?

- Não sei o que vos dizer. Na vossa terra, os que pertencem à minha

antiga igreja são chamados traidores devido à sua fé.

Thomas suspirou.

- É verdade que pedem aos meus conterrâneos papistas para

escolherem entre a sua fé e a rainha. É um estado de coisas muito triste.

Quereis então dizer que isto é o sangue de um santo? É uma relíquia papista?

O cavalheiro português olhou para ele durante bastante tempo e

Thomas sentiu como se estivesse a ser pesado numa balança delicada.

- Em que é que acreditais vindo de mim? Eu, que para vós sou

herege, apóstata, e investigador de conhecimentos proibidos? Podia contar-vos

histórias fantásticas de demônios que caminham na terra sob forma mortal;

Page 81: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

chamas que aparecem na noite sem qualquer intervenção terrena; pedras que

caem como chuva dos céus. Que entenderíeis disso?

Thomas não sabia se rir ou gritar de frustração.

- Sois sem dúvida um mago habilidoso, Magister. Conseguis

transmutar toda a forma de um discurso. Mas não posso deixar passar isso.

Podeis não querer saber do estado da minha alma, ou da de qualquer outro

inglês. Mas eu gostaria de saber apenas isto.

Cartago e a senhora Aditi olharam um para o outro. Ela abanou a

cabeça com gravidade. Cartago virou-se novamente para Thomas e sorriu com

tristeza divertida:

- Meu jovem leão, há coisas que por vezes um homem sensato não

diz a outro. Há conhecimentos que não podem ser apreendidos pela mente não

preparada.

Como isto é parecido com o que o meu pai dizia, quando eu lhe

rogava que me contasse qual era o trabalho que o mantinha tão seqüestrado

da minha vista, pensou Thomas.

- Mesmo assim - prosseguiu Cartago, como se falasse com uma

criança. - Se a minha opinião significa algo para vós, acho que a vossa alma

não está mais condenada ao Inferno agora do que estava ontem. Mas,

também, se houvesse Inferno, eu estaria condenado há muito tempo. - Deu

um olhar de relance para a porta: - Depois desta noite, talvez já não importe o

que eu penso.

Os passos de botas aproximaram-se da porta e Lockheart entrou,

trazendo três canecas de cerveja.

- Bebidas à conta da casa! - declarou ele, quando as colocou na

mesa. - Os homens em terra não serão os únicos a poder festejar. Já temos

razões para celebrar.

Com uma vênia, pôs uma em frente de Cartago. O feiticeiro inclinou

a cabeça, mas não bebeu o vinho.

Page 82: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Lockheart empurrou outra na direção da senhora Aditi.

- Despoina?

Ela apenas relanceou rapidamente, depois afastou-a. Pôs a última

caneca em frente de Thomas.

- Se os outros não são sociáveis, pelo menos tu vais beber comigo,

não é, Tom? Ouviste alguma história mais colorida?

Thomas fechou os olhos e suspirou.

- Não me disseram nada de útil.

- Pois, o que eles têm é mesmo línguas de serpentes. Bom, bebe um

pouco deste vinho, porque eu tive um pensamento muito útil.

- Tivestes? - Thomas pegou na asa da sua caneca.

- Foi, sim - respondeu Lockheart, sentando-se. - Lembras-te de

Bandy Teci, do Benjamin, que sucumbiu ao escorbuto ainda nem há dois

dias?

- Sim. Foi queimado na praia nessa mesma noite.

- Isso mesmo. Pois esse é um excelente teste para o teu pó

milagroso. Tentemos trazê-lo de novo à vida.

Thomas imaginou o cadáver decomposto a erguer-se do seu túmulo

de areia.

- Estais louco, senhor? Isso seria abominável!

- Ah! Por causa dos teus melindres, irias privar um homem de uma

boa ressurreição, não era? Para poupar o teu estômago, irias condená-lo a

jazer debaixo de solo estrangeiro? Ou receias que nada se mova senão um

caranguejo de areia?

Cartago olhou para Thomas e pediu uma tradução.

- Magister, ele está a sugerir que utilizemos o pó num homem morto

há dois dias.

Page 83: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

A senhora Aditi exclamou algo e cobriu a boca. O feiticeiro olhou

fixamente para Lockheart.

- Certamente que não tendes essa intenção.

- Achais que não teremos sucesso?

- Mais e menos do que o desejado. Mas de certeza que esta não é a

altura para uma experiência dessas.

- Há uma altura para as palavras, senhor Cartago - precisou

Lockheart -, e uma altura para as obras.

- É agora a altura? - disse Cartago com um olhar enviesado para o

escocês.

- Em breve - respondeu Lockheart, com solenidade por detrás dos

seus olhos joviais. Em inglês, para Thomas, acrescentou: - Não há mais nada

a aprender sentados a beber aqui. Vamos embora, rapaz.

Esta última frase teve um tom de comando que Thomas nunca

ouvira a Lockheart. Levantou-se da mesa. Com uma vênia a Cartago, disse:

- Uma boa noite para vós, Magister.

- E para vós, herbalista.

Thomas fez um aceno à senhora Aditi.

- Minha senhora.

Ela inclinou a cabeça, com um olhar azul intenso.

- Espero que sejais sensato, Tamas, ou trareis a destruição à vossa

volta.

As palavras dela inquietaram-no.

- É essa a minha intenção, senhora.

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Capítulo VIII

PIÓNIA: Esta vinha é também conhecida como o nabo-do-diabo.

Tem um caule espinhoso e um rizoma carnudo. Dá flores amarelas e

bagas negras. Embora seja um purgante útil, a planta é, contudo,

muitas vezes maligna, mas algumas pessoas malévolas cortavam as

raízes e vendiam-nas como a mais poderosa mandrágora, enganando e

envenenando os compradores esperançosos. Quando tomado em

grandes quantidades o rizoma é venenoso e as bagas são, de fato, um

veneno bastante poderoso.

Enquanto Thomas estava ali parado, ponderando sobre os avisos da

senhora Aditi, Lockheart escancarou a porta e ele foi empurrado para fora,

esbarrando impetuosamente contra o mestre de armas. Mestre Thatch

começou atabalhoadamente a proferir injúrias e Lockheart gritou:

- Para dentro, bom Thatch! Afanai-vos! Os vossos prisioneiros estão

a tramar uma fuga! O feiticeiro quase nos enfeitiçou para que fôssemos

cúmplices deles. Entrai e observai-os com os vossos olhos de águia, para que

os feitiços e cantatas deles não lhes permitam escapar!

Thomas começou a protestar mas as mãos de Lockheart cobriram-

lhe a boca.

- O pobre Tom ainda está sob o efeito do feitiço. Tenho de o levar até

lá fora para que respire um pouco de ar fresco. Para dentro, homem, antes que

os vossos bruxos voem com o tempo!

Desconfiado, Thatch espreitou pela entrada. Lockheart deu-lhe um

pontapé para dentro do quarto e fechou a porta com uma chave de ferro.

Ignorando as batidas e os palavrões provenientes do outro lado da porta,

Lockheart pôs um braço à volta do desnorteado Thomas e guiou-o pelo

corredor abaixo.

- O que é que vos possuiu?

Page 85: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- O espírito de Apolo, rapaz, e de Pã também, acho eu. Não achas

divertido?

O homem estará bêbado? Mas não cheira a álcool!

- Não, e o capitão Wood também não vai achar isto nada divertido

quando souber. Ainda vai ter um ataque de apoplexia.

- Ah, isso seria uma visão impressionante, de fato. Lockheart subiu

a escada para o convés principal e Thomas seguiu-o.

- Não, se a tiverdes enquanto pendurado num mastro. Santo Deus,

como está escuro! Sabeis porque estarão as luzes apagadas?

- Está toda a gente na praia, rapaz. Quem necessita de ver? Thomas

apercebeu-se das formas de homens cobertos de turbantes, misturadas com

as sombras dos mastros e balaustradas.

- Os homens de Cartago ainda aqui estão.

- Hã? Ah, são maometanos. Não bebem. Um hábito triste. Vem, aqui

está a corda; o barco voga ali mesmo em baixo.

- Estais determinado a tentar esta experiência louca? Lockheart

agarrou-o pelo ombro.

- Só para te deixar descansado, rapaz. Uma vez que te seja provado

que o teu milagre é apenas um fantasma, não temerás mais pela tua alma,

mas juntar-te-ás às festas e acolherás com alegria outros espíritos que não

sejam os que já partiram deste mundo. Agora vais?

Parece que eu tenho de condescender com este estranho estado de

espírito dele.

- Muito bem. Pelo menos desta vez, senhor, eu rezo para que

tenhais razão.

- Somente desta vez? Rezo para que tenha quase sempre razão.

- Ficaríeis feliz se eu me juntasse aos festejos imediatamente e não

fizesse primeiro uma tentativa de trazer de volta uma alma perdida?

Page 86: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- O quê? E negar ao pobre Ted uma hipótese de festança?

- Eu acho que isso não lhe serviria de muito. Qualquer bebida

esgotaria uma criatura que é só ossos.

Lockheart riu-se.

- Muito bem, isso contentar-me-á. Mas no teu caso, eu nunca mais

daria ouvidos a nada sobre esse disparate de ressurreição, ha? Deixa essas

coisas para os profetas de outrora, e dedica-te aqueles feitos que são próprios

da juventude. Vamos, desce. Eu vou atrás de ti.

Thomas olhou para o lado. Lá muito em baixo, ouviu o bater da

água contra a madeira num ritmo imperfeito e viu um contorno tênue do

barco a remos a balançar ao lado do navio. Engolindo a sua inquietação,

Thomas passou as pernas sobre a balaustrada, agarrando uma corda

grosseira. Buscando com o pé, encontrou um degrau da escada de corda, e

então baixou-se até que todo o seu peso estava na escada.

- Mostra algum despacho, rapaz. Sê lesto.

- Um despacho lesto é o que eu temo - murmurou Thomas

enquanto procurava cada degrau numa descida lenta. A meio caminho olhou

para cima e viu o vulto negro de Lockheart definido contra o céu estrelado,

como se um demônio sombrio do Inferno tivesse usurpado a sua forma e agora

obrigasse Thomas a descer para a perdição.

Um forte estrondo, como um tiro de pistola, ou madeira a bater

contra madeira, suou na popa do navio. Thomas ouviu Lockheart a praguejar

mais acima.

- Parece que mestre Thatch forçou a fechadura - disse Thomas.

- Talvez. Eu vou ver, rapaz. Desce para o barco. Volto em seguida.

Thomas continuou a descida até que o seu pé encontrou a tábua do

assento do barco a remos. Escutou um som vindo de cima e olhou outra vez

nessa direção - algo lhe atingiu o rosto e ele caiu para dentro do barco. Uma

dor aguda correu-lhe pelos ombros e braços. Cambaleou, enrolado na corda,

desorientado. Parou e respirou por um momento, esperando que o balouçar

violento do barco se acalmasse.

Page 87: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Foi apenas a escada que caiu sobre mim. Deve ter-se

desenganchado da balaustrada. Agora Lockheart não vai poder juntar-se a

mim, nem eu vou poder subir para ajudá-lo.

Thomas desembaraçou os braços da escada e sentou-se, escutando.

Os gritos e cantares da tripulação na praia chegavam tenuemente através da

lagoa. O som do bater da água contra o barco e contra o navio parecia alto em

comparação. Mas, mesmo assim, Thomas tomou consciência de outros ruídos

pouco usuais. Passos suaves no convés acima, vozes cujo ritmo não era inglês.

Estarão os homens de Cartago a tentar apoderar-se do navio?

Thomas olhou para a praia e pensou se deveria dar um grito de alarme. Não,

eles não me iam ouvir. Mas o que é que eu posso fazer? O capitão estará entre

os farristas ou a bordo?

Vieram mais ruídos do castelo da popa e uma pancada na água do

outro lado do navio. Thomas pensou em como poderia voltar a bordo. Mas o

casco do Whelp avultava-se por cima dele, um rochedo negro impossível de

escalar. A balaustrada estava demasiado alta para atirar a escada de corda.

Ah. A corda da âncora do outro lado da proa. Talvez eu possa subir por ela.

Thomas empilhou a escada de corda na popa do barco a remos e

ajoelhou-se na tábua de madeira. Colocando as mãos contra a parte úmida do

Whelp, empurrou-se ao longo do casco, agradecendo a Deus por as águas

estarem calmas.

Quando deu a volta à proa, com o gurupés acima dele, uma simples

sereia à luz do dia, parecia agora ser uma criatura dos seus pesadelos,

faminta para arrebatá-lo. Por fim, a bombordo, examinou a escuridão para

encontrar a corda da âncora - mas o seu olhar foi atraído para uma outra

forma negra ao lado do Whelp a alguns metros de distância. Lanternas na

estranha embarcação mostravam que esta tinha uma vela latina do tipo que

Thomas tinha visto no golfo Arábico. De dentro dela, homens de turbantes

subiam cordas para o interior do Whelp.

Uma daura! Não são os homens de Cartago, mas sim piratas

muçulmanos! Thomas ficou gélido, o coração a bater-lhe fortemente.

Page 88: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Ao ver a corda da âncora, Thomas alcançou-a e achou que era

escorregadia ao toque. Impossível subir. E posso ser visto ao tentar fazê-lo.

Algo bateu contra o barco a remos, vultos escuros flutuando na

água. Thomas olhou mais de perto e viu que era um corpo.

Ao voltar-se a luz incidiu sobre ele - era o mestre Thatch. Enjoado,

Thomas ponderou se deveria puxar o homem para dentro do barco a remos,

talvez para tentar ressuscitá-lo. Quando o alcançou, tocando o corpo com a

ponta dos dedos, o ar saiu em bolhas por debaixo das roupas de Thatch e sem

a sua flutuabilidade, o corpo afundou-se para fora de alcance.

Ouviu vozes na daura e as luzes de lanternas revelaram um homem

de barba negra, gesticulando para os marinheiros de turbante. Por trás dele

havia um vislumbre de tecido escarlate com fios dourados.

Eles capturaram Lockheart! E a senhora Aditi!

A raiva divorciou, de algum modo, a sua mente e a razão. Thomas

libertou a corda da âncora. Baixou-se para se deitar de bruços no esquife, o

peito sobre a proa de modo a que os seus braços compridos alcançassem a

água. Silencioso como um tubarão, Thomas remou em direção à daura. Não

apareceu ninguém no convés que desse por ele.

Nos últimos metros Thomas deslizou, deixando as mãos e braços

absorverem o impacto, enquanto se aproximava do casco da daura.

Agarrando-se à madeira, esperou e escutou.

Não percebeu nada da conversa melodiosa, mas parecia que os

muçulmanos estavam reunidos no centro do navio, talvez para admirar os

prêmios que tinham conseguido. Quando Thomas deixou de ouvir vozes ou

sons de passos perto dele, atreveu-se a erguer a cabeça e os ombros para

espreitar pelo convés. O porão de uma parte baixa do navio, acima do convés,

obstruía-lhe a visão do resto do navio costeiro, mas não havia qualquer

homem à vista. Incutindo força nos braços já doridos, Thomas içou-se para

dentro do convés, dando um pontapé no barco a remos para longe. Depois,

rastejou em direção à parede da cabina da proa e aconchegou-se aí.

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Risos e exclamações chegavam da segunda coberta, e então ouviu

passos suaves a aproximarem-se. Thomas esquadrinhou em volta, procurando

uma vela ou uma corda para se esconder; em vez disso, as suas mãos

encontraram a coberta de escotilha. Abriu-a e deslizou lá para dentro,

deixando a coberta fechar-se sobre si.

Caiu de uma altura de alguns pés e aterrou na escuridão, no que

pareciam ser aduchas de corda e montículos de redes de pesca. Os passos

acima da sua cabeça passavam lentos e regulares. Graças a Deus. Não fui

descoberto.

O porão cheirava a peixe e a corda úmida. Sentiu alfinetadas de dor

nos braços e na barriga - lascas de madeira usada da escotilha. Agora, meu

grande idiota brilhante - repreendeu-se a si próprio. - O que é que vais fazer?

Sentiu muitos passos a aproximarem-se, descendo as escadas

algures acima dele. A luz bruxuleava, delineando os contornos de uma porta a

menos de um metro do seu rosto. Havia vozes muçulmanas muito próximas,

rindo.

O navio costeiro tremeu e balançou para um lado. Thomas caiu

contra um montículo de redes. A água por detrás do tabique batia mais alto e

com um ritmo de ondulação de maré baixa. Maldição, eles zarparam! Agora

estou verdadeiramente encurralado.

Alguém remexeu no trinco da porta à sua frente. Tenho de me

esconder. Mas como, se eu não consigo ver nada à minha volta? Thomas

andou como um caranguejo para longe da porta, até ficar pressionado contra

o tabique.

A porta abriu-se para dentro e por sorte ficou atrás dela, escondido.

Uma luz de lâmpada entrou, revelando-lhe que estava num porão de

armazenamento, que ocupava a maior parte da proa.

Alguns homens encostaram-se à entrada da porta. Algo caiu ou foi

atirado para o porão com um sonoro estrondo e a porta foi fechada de novo.

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Thomas suspirou de alívio na escuridão recuperada. Então veio um

gemido do centro do porão.

- Senhor? - murmurou Thomas. - Senhor Lockheart, sois vós?

Estais bem? - Esticou o braço e sentiu o veludo encharcado entre os seus

dedos.

- Então sois vós. O jovem cristão que teme pela sua alma disse uma

voz suave em latim. - Também já vos haveis tornado Judas?

- Senhor Cartago?

- Ou sois vós também uma vítima do jogo deles?

Thomas engoliu em seco.

- Não entendo, Mestre. Eu subi a bordo na esperança de salvar o

meu amigo e a senhora Aditi.

- Ah, sim? Então sois um tonto, embora um tonto piedoso. O vosso

amigo é um cretino, se bem que um cretino prático. No que diz respeito à

senhora... ela serve um poder de formas que eu desconheço.

- O que estais a dizer, Magister? Que Lockheart está aliado aos

piratas?

- Ele disse que nos ajudaria a escapar. Que os vossos navios não

poderiam navegar, nem os homens poderiam defender-nos. Disse que os

mercadores costeiros com os quais tinha estado a negociar, lhe ofereceram

passagem para Goa. Mas tinham de ser pagos, não? É sabido que eu tenho a

minha cabeça a prêmio. ”Fazei de conta que sois prisioneiro”, disse o vosso

amigo. ”Podeis escapar na hora certa.” Mas no entanto permitiu-lhes que me

batessem e me drogassem. E penso que isto não é um papel para eu

desempenhar. A minha cabeça será o preço da passagem.

- Porque é que a senhora vos decepcionaria tanto?

- Ela serve uma causa mais importante. Não posso culpá-la. Há

muito em jogo, se as pessoas erradas a capturarem.

Thomas escutou mais risadas lá fora; e reconheceu uma gargalhada

entusiástica. Um frio percorreu-lhe o corpo. Lockheart queria-me fora do navio

Page 91: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

porque sabia que isto ia acontecer. Sem nenhum homem capaz a bordo, este

esquema seria simples. E eu condenei-me a mim próprio, ao entrar neste

ninho de vespas. Bem, mais cedo ou mais tarde eles irão descobrir-me. O

mínimo que eu posso fazer é surpreender Lockheart e deixá-lo saber que a sua

proeza desonesta não passou despercebida.

Thomas abriu a porta com um pontapé e tropeçou, pestanejando

numa cabina apinhada de homens de compleição escura. As costas largas de

Lockheart estavam à sua frente.

- Que haveis feito, homem? - gritou Thomas. Lockheart voltou-se e o

seu rosto ficou pálido.

- Thomas?

- Sim, e que nome tendes vós agora? Não será Judas?

Três dos piratas árabes agarraram-no, prendendo-lhe os braços

atrás das costas. Thomas lutou apenas por breves instantes, achando que não

era adversário para eles.

A senhora Aditi apareceu no fundo da cabina e aproximou-se dele

com preocupação nos olhos.

- Ignorastes as minhas palavras, Tamas - disse ela em grego. - Não

haveis sido sábio. - Afagou-lhe o gibão e então retirou-lhe a pequena caixa de

madeira com a garrafa preciosa.

- De qualquer modo a minha viagem chegou ao fim, Despoina.

- Não necessariamente - disse ela, passando a caixa a Lockheart. -

Mas a vossa viagem agora será mais comprida. E mais difícil.

Lockheart lançou-lhe um olhar penetrante, magoado.

- A sorte maldita não me libertará do destino que me foi designado,

parece-me - murmurou ele. - Eu esperava poupar-te, rapaz. Poupar-nos a

ambos.

- Então, matar-me-eis como haveis feito com o mestre Thatch?

Lockheart abanou a cabeça.

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- Isso foi obra da senhora. A tua hora de morrer ainda não chegou.

O seu punho carnudo atingiu o rosto de Thomas e este sentiu o

golpe com força na têmpora. O quarto rodopiou enquanto ele caía contra os

homens que o seguravam. Explosões anormais de luz reluziam à sua frente,

depois tudo ficou numa escuridão absoluta.

Capítulo IX

MAÇÃ: Diz-se que esta fruta tão apreciada é proveniente do Oriente.

Pensa-se ser a cura para muitos males. Nas histórias antigas,

procurava-se maçãs divinas como um meio para obter a imortalidade.

Eram usadas como sortilégios mágicos, ou testes de fidelidade. Também

se diz que as maçãs fazem as pessoas desejar coisas proibidas. A maçã

pode ter sido o Fruto do Conhecimento no Éden e devido ao pecado

original de Eva, pensa-se que a maçã seja a fruta da tentação, da

desobediência e da perda da inocência...

Irmão Timóteo caminhou apressadamente pelo corredor, apertando

o livro de registros contra o peito. O bater do seu coração soava-lhe mais alto

nos ouvidos do que o bater dos próprios pés. Eu pequei. Eu pequei perante o

padre, o arcebispo e o Papa. Está errado, errado, perdoa-me, Senhor Todo-

Poderoso, corrigi isto, mas eu pequei e isso está errado e eu irei certamente

morrer queimado no Inferno para sempre.

Nessa manhã nas matinas, Domine Pinto tinha sussurrado ao

ouvido de Timóteo que os registros do julgamento do governador Coutinho

podiam ser encontrados debaixo de uma pilha de papéis, numa despensa

perto das cozinhas. Timóteo não teve de procurar muito para encontrar o

volume encadernado a couro entre os papéis de rascunho, trapos, e madeira

preparada para servir de lenha, como se algum poder superior ou inferior

tivesse a intenção de que Timóteo o levasse. Mas ele tivera de dizer uma

mentira ao cozinheiro, afirmando que Domine Sadrinho o tinha enviado. O

cozinheiro, é claro, acreditou nele visto que todos na Santa Casa sabiam que

Page 93: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Irmão Timóteo era uma boa pessoa, temente a Deus e que nunca, nunca

mentia.

O corredor de mosaicos que conduzia aos dormitórios estendia-se à

sua frente, impossivelmente longo. O livro, volumoso e pesado, dificultava a

sua corrida. Timóteo não reparou na mesa lateral cuja perna sólida se

projetou no seu caminho. O pé ficou-lhe preso na perna da mesa e ele caiu

para a frente. Os braços abriram-se, deixando o livro de registros voar como

um pássaro enjaulado, quando é posto em liberdade, com a encadernação a

abrir-se como asas.

Com um grande estrondo e ruído, Timóteo caiu no chão de joelhos e

cotovelos. O livro aterrou pouco depois, deslizando à frente dele pelo corredor,

as páginas soltas espalhando-se como um leque de senhora.

- Não, Senhor, por favor. Por favor, não. Não permitais que alguém

tenha ouvido - murmurou Timóteo. E gatinhou apressadamente para apanhar

os papéis que tinham caído. As mãos tremiam-lhe tanto que cada página que

ele apanhava chocalhava como uma folha de palmeira ao vento.

As páginas estavam fora de ordem, quando as juntou, e Timóteo

tentou disciplinar a mente o suficiente para as pôr de volta na sua seqüência

correta. Não estavam numeradas e cada página estava completamente escrita

de cima a baixo, frente e verso. Timóteo teve de fazer um exame atento do

princípio e do fim de cada uma para saber qual era a que se seguia.

A princípio, tudo o que leu eram simples relatos de perguntas

monótonas referentes a parentes, freqüência à igreja, e às tarefas diárias de

governar. Então, subitamente, encontrou o registro da confissão de

Coutinho... e parou. Aqui estavam escritos nomes que Timóteo tinha visto nos

livros do seu avô e nos Lusíadas, pessoas e criaturas do passado dourado,

ocultas detrás das neblinas do monte Olimpo. O governador tinha visto

provas, tinha confessado que as histórias pagãs dos tempos antigos eram

verdadeiras. Uma história em particular.

Fascinado, Timóteo procurou pela página seguinte... e viu-a debaixo

de uma bota de couro suave e da bainha de uma batina negra. Lentamente

olhou para cima, para o rosto do inquisidor Sadrinho. Ai, eu não direi mais

mentiras, Senhor. Castigai-me agora.

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Com uma expressão impassível no rosto, Sadrinho disse:

- Esta luz não é suficiente para ler, meu filho. É um mau sítio. -

Então ajoelhou-se e com gentileza retirou as páginas das mãos de Timóteo.

Olhou momentaneamente para o papel, depois juntou os outros no chão,

colocando-os de volta dentro da encadernação de couro. Sem dizer outra

palavra, Sadrinho pôs-se de pé, enfiou o livro debaixo do braço, deu meia volta

e foi-se embora.

- Perdoai-me, Domine - disse Timóteo, ainda ajoelhado no chão.

- Não se fala mais nisso - disse o inquisidor brandamente. - Dizei,

por favor, ao Irmão Pedro nas cozinhas, que quero arroz de açafrão para o

pequeno-almoço.

Timóteo viu-o partir, esperando por uma explosão de temperamento

que deveria certamente estar para chegar. Mas não se deu. Para ele, esta

calma era mais aterrorizante do que qualquer chicotada de cana de bambu.

Timóteo olhou para os arabescos nos azulejos, não se atrevendo a levantar,

demasiado abatido para chorar.

O padre Gonsção saiu da Catedral de Santa Catarina de ânimo leve,

após o serviço religioso matinal. A luz do Sol estava brilhante, o ar fresco e

frágil como vidro. O dia ia estar quente outra vez, e a noite também. A praça já

estava cheia de homens ricamente vestidos, resguardados por guarda-sóis

carregados por escravos, como se um jardim de cogumelos ambulantes,

alegremente colorido, tivesse brotado na umidade da noite.

À distância, trombetas e charamelas anunciavam impetuosamente

um casamento ou um batizado, ou outro acontecimento familiar. As brisas

traziam odores a pimenta, canela, peixe e carne rançosa.

O arcebispo Meneses apareceu por trás de Gonsção. O padre

reparou que o arcebispo vestia apenas uma simples batina beneditina, e tinha

só um criado, que se mantinha silenciosamente de pé ao seu lado.

- Uma manhã agradável, não é verdade? - disse Meneses.

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- Agradável, Excelência? - disse Gonsção, agitando a túnica de lã

branca. - Vamos ficar outra vez assados como porcos, hoje.

O arcebispo abanou um dedo avuncular.

- Ainda não haveis visto Goa no auge das monções, meu filho. As

tempestades sopram em grandes ondas vindas do mar. Os vendavais

arrancam as copas das palmeiras e as telhas dos telhados. A chuva cai com

força, como uma ducha de pregos. Aqui em Goa, Deus está no seu estado

mais dramático.

Um palanquim de seda, carregado por oito escravos parou ao lado

dos degraus da catedral. A cortina de tecido foi puxada para o lado e uma

mestiça encantadora, mastigando um bolo de betei, olhou sugestivamente

para Gonsção. Este lançou-lhe um olhar carrancudo e voltou-lhe as costas. A

mulher riu-se e ordenou aos seus carregadores para prosseguirem caminho.

- Talvez em Goa - murmurou Gonsção -, Deus tenha mais

necessidade de dramatismo.

- Talvez tenhais razão - disse o arcebispo. - Isto não é nenhum

refúgio de santos. É por isso que freqüentemente me visto como estou vestido,

com um hábito simples, de modo a não atrair atenção indevida. E não

aconselho ninguém a caminhar sozinho após o anoitecer. De qualquer modo,

Goa tem a sua beleza e as suas maravilhas. Gostaríeis que vos mostrasse algo

da cidade? Como já deveis ter ouvido dizer, o corpo de Francisco Xavier

miraculosamente preservado, pode ser visto na Igreja de São Paulo. Peregrinos

de toda a Ásia, da China e até mesmo das ilhas Nipônicas vêm prestar-lhe

homenagem aqui.

- Vós honrais-me, Excelência - disse Gonsção, caminhando em

direção à praça. - Mas estou certo de que tendes coisas mais importantes que

fazer. Tal como eu.

- Como quiserdes. - A seguir, em voz baixa, Meneses disse:

- No que concerne ao vosso pedido de auxílio, meu filho, acho que

não vos poderei ajudar muito. Falei com o governador Gama mas ele e os seus

ministros não querem entrar em disputa com a Santa Casa e não falarão

contra ela. Tendes de entender, Sadrinho tem familiares em todos os sítios.

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- Eu entendo, Excelência.

- Entretanto, ouvi dizer que as embarcações inglesas que tanto

atormentaram o capitão Ortiz foram vistas. Estão a ancorar a sul, para

reparar danos tal como calculastes.

- Então poderemos ter outra peça do puzzle afinal. Eu estou à

espera de ver os registros da confissão de Coutinho dentro em breve.

O arcebispo arqueou as sobrancelhas.

- Debaixo do nariz de Sadrinho? O grande inquisidor escolheu bem,

de fato. Vós sois deveras um homem cheio de recursos, padre.

- Não sou merecedor de tal lisonja, Excelência. Os meus métodos

não foram os mais nobres. - Gonsção reparou num grupo de soldados que

riam, reunidos ao redor da fonte no centro da praça. Passavam para trás e

para diante um pequeno recipiente de cerâmica que tinha muitas goteiras,

tentando beber dele.

- O que fazem aqueles homens?

- Hã? Ah, é um jogo, um tipo de iniciação entre os soldados. O

recipiente chama-se gorgoleta e a finalidade é beber vinho dele sem derramar

uma gota. Uma tarefa difícil, como podeis observar.

- Que estranho. Nunca vi tal coisa em Lisboa. O arcebispo encolheu

os ombros.

- Quem pode dizer de onde vêm estes novos hábitos? Tendes a

certeza de que não ireis ver nada mais da nossa bela colônia? Poderíamos

visitar o velho castelo em Bardes, ou passear pelo campo. Têm-me dito que as

colinas de Goa são tão ricas em minérios que têm atraído alquimistas de todo

o mundo, determinados a arrancar delas ouro e cobre.

- Hoje não, Excelência. Mas agradeço-vos. - Esta mistura de raças,

nacionalidades, línguas, hábitos, pensou Gonsção, é uma cacofonia para o

espírito. Goa está para a civilização, assim como os guinchos e murmúrios de

crianças estão para a música.

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- Caso reconsidereis, senti-vos à vontade para me procurar. É

sempre um prazer falar com alguém, que chegou tão recentemente do nosso

país. Que Deus vos guie no vosso caminho, meu filho.

- Que Deus vos proporcione um bom dia, Excelência.

O arcebispo e o criado afastaram-se, em breve desaparecendo por

entre os trajes de cores vivas, pára-sóis e palanquins, que enchiam a Praça da

Catedral.

Gonsção suspirou e voltou em direção à Santa Casa, esperando que

o Irmão Timóteo lhe trouxesse algo menos tentador para os olhos e menos

inquietante para o espírito.

Capítulo X

DATUDA: Esta planta cresce no Oriente e também é conhecida

como a maçã-de-espinhos ou a maçã-do-diabo. As suas folhas, com um

cheiro repugnante, têm a forma de um ovo e, no Verão, as suas flores

são azul-claras. O sumo desta planta causará letargia e visões. Deve ser

usada com grande cuidado, porque, quando utilizada em excesso, é

venenosa. Na índia, é usada por ladrões nas suas vítimas, por mulheres

nos maridos que pretendem enganar, e por príncipes uns nos outros,

porque faz as pessoas agirem como loucas...

Thomas foi embalado como se estivesse num berço, um berço que

cheirava a peixe, a madeira velha e a mar. Um anjo no fundo da sua mente,

disse-lhe que estava ferido e tinha sido drogado e que deveria estar com medo.

Mas os pensamentos dele não eram suficientemente coerentes para querer

saber onde é que estava, nem que droga poderia ser.

Ele já assim estivera antes. Há muito tempo, na sua infância,

Thomas lembrou-se como que em sonhos de uma mesa coberta com uma

toalha branca. Num estado entorpecido e apático semelhante a este tinha sido

carregado nos braços do seu pai e colocado sobre a mesa. Havia um gosto a

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vinho doce e o cheiro a grãos de cevada queimados. Havia uma mulher bonita

em pé, perto dele, vestida apenas com uma túnica drapejada. Atrás dela

estavam dois cães de caça altos e elegantes.

O anjo na mente de Thomas estava transtornado.

- Isto não foi justo - disse ele. - Não te deviam ter feito isto.

Thomas virou a cabeça para o outro lado e fechou os olhos. Escutou

um estrondo à distância, como se fosse um trovão. Passados alguns instantes,

o estrondo transformou-se em batidas de cascos de cavalos. Três, ele sabia.

Eram sempre três.

De repente, ele estava a correr pela floresta, a luz do Sol penetrando

pelas árvores, apunhalando-lhe os olhos. Os seus cascos, pequenos e

fendidos, mal tocavam a terra entre cada salto. Atreveu-se a olhar para trás

para os seus atormentadores que o perseguiam; três mulheres a cavalo; as

capas moviam-se por detrás delas como asas. Não conseguia ver-lhes os

rostos. Elas gritavam-lhe com guinchos estridentes de falcões:

- Assassino! Assassino!

Olhou outra vez para a frente e correu em direção aos ramos baixos

de um freixo. Os chifres ficaram-lhe presos nos ramos e ele não conseguia

libertar-se. As caçadoras que gritavam atrás dele aproximavam-se cada vez

mais. Escutou um assobio e algo o atingiu nas omoplatas.

Respirou ofegante e abriu os olhos. Outro pesadelo! Desorientado,

Thomas voltou a cabeça. As paredes de paliçadas de bambu, que tremiam à

sua volta, não estavam onde ele esperava vê-las. Onde quer que estivesse, não

era o navio costeiro muçulmano.

As canas de bambu entrelaçavam-se com frondes de palmeiras,

formando um telhado não muito acima da sua cabeça. Ele estava deitado em

tábuas de madeira clara. O chão rangia, movia-se aos solavancos e oscilava,

arrojando-o contra a madeira. Eu estou num tipo qualquer de carro em

movimento.

Cuidadosamente ergueu a cabeça e os ombros e tentou mudar para

uma posição sentada. Por alguns instantes não conseguiu sentir os braços e

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as mãos, depois susteve a respiração. Um formigueiro intenso disse-lhe que as

suas mãos tinham sido amarradas atrás das costas e somente agora a

circulação voltava a reconquistar o território que o seu peso lhe negara.

- Então, jovem leão, estais acordado. - O feiticeiro Cartago estava

deitado ao seu lado, com os braços também amarrados. O seu rosto pálido

tinha várias nódoas negras e grandes.

Santo Deus. Será que eu também estou assim tão mal? O que é que

eles nos fizeram?

- Pelos sons que fazíeis - continuou Cartago -, eu apostaria que

estáveis a ter sonhos desagradáveis.

- Eu sou freqüentemente assediado por pesadelos - disse Thomas,

surpreendido com a irritação da sua garganta, como se ela não tivesse sido

usada durante muito tempo. - Desde a infância que assim é.

- Tenho a certeza de que a datura também não ajudou muito.

- Datura? - Thomas sentiu uma comichão crescente nas nádegas e

coxas. Para sua vergonha apercebeu-se de que se tinha sujado, mas não

recentemente. Não se lembrava de nada, após ter sido golpeado por Lockheart.

- Durante quanto tempo estivemos a dormir?

- Eu não tenho estado mais consciente da passagem do tempo do

que vós. Dias, penso.

- Dias! Temos sorte de ter sobrevivido.

- Talvez. Acho que eles nos deram de comer de vez em quando,

embora não me lembre de nada.

- Nem eu. O que é datura?

- Sempre ávido por conhecimento, não é, apothekos3? É uma droga

comum em Goa, utilizada para dores mortais ou para fazer uma pessoa

3 apothekos - Farmacêutico, boticário. Em grego no original. [N. dos

T.]

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esquecida para o mundo à sua volta. Talvez devêsseis procurá-la e adicioná-la

às vossas provisões.

Thomas voltou a cabeça e espreitou através da parede de bambu à

sua volta. Não conseguiu ver nada mais do que luz brilhante e sombra

esmeralda.

- Gostava de saber onde estou.

- O plano deles era trazer-nos para Goa, boticário. Devemos estar

perto, pelo mau cheiro. Perto de Goa, o rio Mandovi é muito amplo e tem um

cheiro particular.

Thomas respirou fundo. Era difícil distinguir os odores para além do

seu próprio suor e fezes, mas discerniu o cheiro a pó, a estrume de animais, a

fruta a apodrecer e a mar. Os homens que caminhavam à frente e atrás do

carro falavam num idioma que ele não conseguia identificar, apesar de uma

parte poder ser árabe.

- Quem são estes homens que nos têm cativos?

- Piratas e ladrões de Omã. Nós não vamos ficar sob os gentis

cuidados deles por muito mais tempo. Apenas até que paguem o nosso

resgate.

- Lockheart ainda estará entre eles? Será realmente tão baixo, a

ponto de me vender aos portugueses?

- Quem pode julgar o coração de um homem? Tenho a certeza de

que o meu era o único resgate que ele e Aditi queriam. Vós fostes uma adição

inesperada.

- Mas porque é que - Thomas calou-se de repente, temendo que o

que estava a ponto de dizer fosse descortês, como se Cartago merecesse ser

prisioneiro e ele não.

- Porque é que ele não vos libertou? Eu não tenho resposta.

- Sabeis quem é que nos vai resgatar?

- Vós provavelmente interessais apenas ao governador, o mais certo

será ele enviar-vos para trabalhar numa das galeras do rei Filipe. Talvez na

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mesma sobre a qual disparastes para me salvar. Isso seria justiça, não? No

que me diz respeito, eu serei enviado para um sítio vigiado por demônios

disfarçados de santos.

- A senhora Aditi não irá ajudar-vos? Cartago tossiu.

- Ela deu-me um meio para escapar. Boticário Chinnery, eu não

tenho qualquer direito de vos pedir um favor, mas no entanto há algo que

gostaria de vos pedir.

- A minha ajuda é fraca, Magister.

- Talvez seja maior do que pensais. As minhas mãos estão atadas e

inúteis e eu gostaria de vos pedir as vossas emprestadas.

- As minhas também estão atadas, Magister.

- Mas elas podem chegar onde as minhas não podem. Tenho um

saquinho do amuleto ao pescoço cheio com o mesmo pó que utilizastes para

reavivar o vosso colega do navio.

Thomas sentiu-se gelar.

- A sério?

- Fui ferido e isso aliviar-me-ia as dores. Em Goa, os ferimentos que

me esperam serão muito piores. Por favor, administre-me o pó, e eu poderei

descansar.

- Magister, eu preferia não voltar a utilizar essa substância.

- Qualquer que seja o dano que imagineis que isso vos fará à alma,

já vos fez. E usaste-lo numa pessoa que já estava morta, enquanto eu ainda

estou vivo.

Uma grande parte da minha vida tem sido devotada ao alívio do

sofrimento. Que direito tenho eu de recusar ajuda a este homem? Que seja

Deus a julgar.

- Muito bem, Magister. Com uma condição... que me digais a fonte

deste pó.

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O feiticeiro arqueou as sobrancelhas.

- Ah, vós sois persistente, jovem leão. Lembrai-vos, eu fiz um

juramento de que não diria o nome da fonte e nenhuma ameaça que me

possais fazer me fará quebrar esse juramento. Contudo, dar-vos-ei pistas para

a encontrardes, se isso vos contentar. Se tiverdes coragem e a sorte estiver do

vosso lado, podereis procurar vós mesmo a verdade.

- Muito bem. Isso é aceitável. - E se a fonte não for perigosa para a

alma, afinal talvez se possa obter algum lucro nesta viagem desastrosa.

Assumindo que eu sobreviva.

- Procurai o debrum do meu gibão, ali no fundo da bainha da

esquerda. Haveis de encontrar um sítio mais sólido do que o resto. Há um

pedaço de papel enrolado lá dentro. Despachai-vos, enquanto ainda temos

tempo.

Thomas virou-se e olhando por cima do ombro, correu com as mãos

atadas a borda do gibão de veludo negro do feiticeiro. Encontrou o sítio

descrito e retirou através de um corte no debrum, um pequeno rolo de papel

de pergaminho.

- É um mapa - disse Cartago. - Não olheis para ele agora. O ponto

na margem superior mais à esquerda é Goa. O ponto à direita e acima é

Bijapur. O ponto mais à direita e mais abaixo é a cidade escondida onde está a

fonte. Os hindus chamam ao pó Rasa Mahadevi. Isto é tudo o que vos posso

dizer.

- Goa. Bijapur. Rasa Mahadevi. Obrigado, Magister - disse Thomas.

Inclinando-se para a frente, enfiou o rolo na parte de cima da bota. Então

caminhou para trás de joelhos até as suas mãos estarem perto do pescoço do

feiticeiro. Desajeitadamente apalpou à volta do colarinho, feliz por Cartago não

estar a usar um tufo. Finalmente encontrou a tira de couro do saquinho do

amuleto e puxou-o com força para fora. Com cuidado, desatou os cordões.

Thomas parou para descansar as mãos doridas e olhou por cima do

ombro de Cartago.

- Estais pronto?

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- Que Deus vos abençoe e guarde, meu amigo - disse o feiticeiro. -

Estou pronto. - Inclinou a cabeça para a frente e abriu a boca, como um

devoto esperando receber a Eucaristia.

Thomas arrastou-se um pouco mais para trás, até que a sua mão

pôde tocar no rosto com barba de Cartago. Os seus dedos encontraram a boca

aberta do feiticeiro e Thomas inclinou o saquinho do amuleto para dentro

dela, sentindo o pó escorregar pelos seus dedos. Eu sou a Ressurreição e a

Vida...

A boca de Cartago fechou-se e Thomas largou o saquinho. Depois

moveu-se de modo a estar de frente para o feiticeiro e observar o efeito que o

pó ia ter.

Cartago tinha fechado os olhos e deixado a cabeça cair para trás.

Num instante, o seu rosto relaxou-se e um ligeiro sorriso nasceu-lhe nos

lábios. A respiração abrandou e tornou-se uniforme. Toda a tensão pareceu

esvair-se dos membros do corpo do homem.

Um medicamento potente, de fato. Tenho de lembrar-me da

quantidade que o saco continha, de modo a poder vir a obter o mesmo efeito

com uma dose semelhante. Se o seu uso não for pecado, que riqueza este pó

poderá trazer à loja do mestre Coulter! Talvez mais do que poderíamos ter

ganho na China.

De repente, o carro parou bruscamente e alguns homens

caminharam até ele, gritando uns para os outros. A parte de trás escancarou-

se e a luz do Sol entrou. Dois homens de pele mestiça deitaram as mãos a

Thomas, agarrando-o pelos braços. E ele permitiu-lhes que o retirassem do

carro sem resistência. Tentou pôr-se de pé, mas quando os seus pés tocaram a

estrada, as pernas não o sustentaram.

Os seus captores ergueram-no e deixaram-no encostar-se contra o

carro. Quando estes enfiaram de novo os braços dentro do carro para

retirarem Cartago, ouviram-se gritos e mais gritos de uma mulher,

provenientes dos carros que estavam mais acima, na rua. Alguns homens

saltaram detrás dos bois e correram com espadas e navalhas em punho.

Outros, montados em mulas galopavam, levantando nuvens de poeira. Os

captores de Thomas também sacaram as armas e gritando um aviso

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incompreensível para Thomas, deixaram-no para se juntarem aos seus

companheiros no cimo da rua.

Não havia ninguém a vigiar no carro atrás do deles. Thomas

demorou apenas um instante para compreender a sua sorte.

- Magister, temos uma possibilidade de escapar! - murmurou ele

alto para dentro do carro. - Senhor! - Mas o feiticeiro mantinha-se imóvel.

Thomas deu um encontrão no carro com a anca mas Cartago não despertou.

Sabendo que tinha apenas alguns momentos, Thomas deixou com

pesar Cartago entregue ao seu destino e cambaleou pela rua em direção à

macega da floresta de palmeiras. Caiu embatendo contra troncos de árvores e

tropeçou em raízes com o equilíbrio perturbado pelas mãos atadas. Aqui e ali,

o chão era lamacento e pantanoso e sugava-lhe as botas. Frondes de palmito

golpeavam-lhe as roupas e a pele. No entanto, ergueu-se uma vez e outra e

prosseguiu vigorosamente.

Por fim, tropeçou e achou-se sem o fôlego necessário para se erguer.

Deitou-se numa ravina lamacenta, coberta por plantas de folhas largas de um

verde-escuro. Deitou-se de costas e respirou ofegantemente o ar pesado e

úmido. Ouviu gritos de pássaros desconhecidos, mas não ouviu gritos de

homens. Parece que consegui escapar-me. Mas o que é que eu devo fazer

agora?

Thomas sentou-se e gemeu, todo o corpo lhe doía. Puxou as cordas

e as mãos quase lhe escorregaram delas. A lama! Thomas deitou-se e esfregou

os punhos um pouco mais na lama e sentou-se novamente. Desta vez, com

esforço e um pouco de dor, conseguiu libertar as mãos. Com um grande

suspiro de alívio, balançou os braços para trás e para a frente. Estavam leves

com a liberdade.

Olhou para as mãos manchadas de terra. Thomas pensou por um

momento, depois retirou o gibão e a camisa. Cobriu-se de lama em todas as

partes que pôde alcançar e rolou pela ravina para cobrir o resto. Fez também

correr lama pelo seu cabelo louro. E finalmente, enrolou a camisa e amarrou-a

numa espécie de turbante para a cabeça.

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Não havia nada que pudesse fazer quanto aos seus olhos azuis, mas

se a senhora Aditi pudesse ser tomada como exemplo, pensou que poderia não

ser tão fora de comum. As suas roupas não eram diferentes das usadas pelos

marinheiros muçulmanos. Mas as botas... ah, as botas.

Eram de couro castanho-avermelhado, um presente do mestre

Coulter. Não tão altas como as mais em moda em Londres, mas ainda assim

as melhores que Thomas alguma vez calçou. Porém, distinguiam-no como

europeu. Com um suspiro pesado, Thomas descalçou-as, notando o papel de

pergaminho enrolado que caiu.

O mapa de Cartago. Mais vale guardá-lo. Se Deus quiser, ele poderá

vir a ter serventia. Thomas enfiou-o na bainha do cordão das calças.

Um tilintar leve e metálico chegou-lhe aos ouvidos e ele ficou

gelado. Estão à minha procura? Mas o barulho não era de homens à caça dele

pela selva. Tinha um som efeminado. Thomas espreitou por entre as folhas na

orla da ravina, e vislumbrou algo escarlate e dourado a caminhar

energicamente a alguns metros de distância do sítio onde ele estava.

A senhora Aditi? Teria ela abandonado a caravana? Não parece

estar à procura de alguma coisa, mas sim a dirigir-se para um destino

conhecido.

Outra vez consciente de uma oportunidade momentânea a ser

aproveitada, Thomas largou as botas e seguiu-a.

Capítulo XI

AMENDOEIRA: Esta pequena árvore produz nozes comestíveis e

floresce cedo todos os anos. Ao longo dos tempos tem sido uma árvore

de esperança, porque lembra as pessoas da chegada da Primavera. Para

os Gregos, era um emblema de lealdade e consistência. É portanto

consagrada à Virgem e na Bíblia aparece como um sinal da aprovação e

perdão de Deus. Na Toscana, os ramos de amendoeira são usados nas

Page 106: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

artes divinatórias. A pasta feita com o fruto desta árvore pode manter

uma pessoa viva onde não se puder encontrar comida ou água...

O padre Gonsção caminhava pelos jardins interiores da ala

residencial. Isto fazia-o lembrar dos pátios das belas vilas e mosteiros de

Portugal. Mas aqui havia figueiras-de-bengala entre os ciprestes, arbustos de

cardamomo entre os cravos, coqueiros entre as laranjeiras, flores de lótus no

meio de lilases. Gonsção encontrou um rebento de rosmaninho e esmagou-o

entre os dedos, inalando a sua fragrância. Tinha muitas saudades de Lisboa.

Havia um banco de pedra debaixo de uma enorme e medonha

figueira-de-bengala e Gonsção sentou-se nele, apreciando a sombra, ainda que

não apreciasse quem a dava. Ouviu um agitar de folhas de bambus ali perto.

Alguém estava a espreitar.

- Timóteo? - Gonsção acenou para o rapaz.

- Padre - Timóteo aproximou-se timidamente do banco.

- Não vos vejo já faz alguns dias, meu filho. Toda a gente a quem eu

perguntei ignorava onde estáveis.

- Eu tenho estado na capela, padre. A rezar e a fazer jejum.

- Mas porquê?

- Fiz mal a uma pessoa, padre. Mas estou confuso e não sei a quem

fiz mal.

- Sentai-vos, Timóteo. Contai-me. Talvez eu vos possa ajudar.

O rapaz sentou-se e começou a falar suave e rapidamente.

- No dia a seguir à nossa conversa, padre, Domine Pinto disse-me

onde eu podia encontrar os registros do julgamento do governador Coutinho.

Estavam nas cozinhas. Iam ser queimados.

Ansioso e com esperança, Gonsção disse:

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- Conseguistes resgatá-los?

- Sim, padre. Mas quando estava a tentar trazê-los para vós,

tropecei no corredor. Tão estúpido, tropecei e o livro caiu no chão. Eu estava a

apanhá-lo e... Domine Sadrinho viu-me.

A esperança de Gonsção morreu instantaneamente.

- Que infortúnio! O que é que o Domine vos disse? Foi ele que vos

puniu com as orações e o jejum?

- Não. Essa é a parte mais estranha, padre. Ele não disse nada.

Apanhou o livro e foi-se embora. Eu tive tanto medo que me escondi e rezei

para que o meu pecado fosse perdoado. Mas ainda não sei qual é o meu

pecado. Falhei em ajudar-vos e ao arcebispo e ao Papa, mas sinto que

prejudiquei o Domine Sadrinho.

Gonsção suspirou e deu uma palmada no ombro do rapaz.

- Eu acredito que vós não tendes qualquer culpa, Timóteo. Fizestes

o que achastes ser o melhor. Não vos deveis punir.

- Foi por minha culpa que vós não conseguistes o livro, padre. Se eu

não tivesse parado para ler as páginas, tê-las-ia recolhido antes que o Domine

me visse.

- Vós... lestes os registros?

Timóteo confirmou com a cabeça.

- Eu não o pude evitar. Perdoai-me, padre.

- Louvado seja Deus. - Gonsção sussurrou e agarrou ambos os

ombros do rapaz. - Escutai, meu filho. Isto é muito importante. Vós estais

perdoado, acreditai em mim. Mas lembrais-vos de algo do que vistes?

O rapaz confirmou outra vez com a cabeça.

- Eu não o consigo esquecer, padre.

- Por favor. Dizei-me. Vistes uma lista de familiares?

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- Não, padre.

- Vistes a confissão do governador?

- Sim. Ele disse que tinha sido enganado por feiticeiros, que lhe

mostraram provas de que os pagãos da Grécia estavam certos.

- Grécia?

- Sim, padre, os Olímpicos. Foi o que ele disse. Gonsção perguntou-

se a si mesmo se os interesses da infância do rapaz lhe estariam a corromper

a mente.

- Que provas eram essas?

- Um pó, padre. Sangue em pó, que ele disse trazer os mortos de

volta à vida! Ele disse que era o sangue de uma deusa, mas eu vi o nome e ele

estava errado.

- Claro que ele estava errado.

- Ela não é uma deusa, padre, ela é um monstro! - de repente

Timóteo olhou por cima dos ombros de Gonsção. O Domine. Perdoai-me.

Tenho de ir - o rapaz pôs-se de pé num pulo e entrou precipitadamente na

plantação de bambu uma vez mais.

Com um suspiro de frustração, Gonsção voltou-se. De fato, o

Domine Sadrinho estava a aproximar-se pelo caminho principal. O inquisidor

pareceu não vê-lo. Quando Sadrinho ia a passar diante dele, Gonsção

chamou-o.

- Bom dia, Domine. Deus esteja convosco.

O inquisidor olhou para cima sobressaltado, e então sorriu.

- E com o vosso espírito, padre. Bom dia. Foi-me dito que vos

poderia encontrar nos nossos jardins. Vós até haveis escolhido um sítio

auspicioso para vos sentardes.

- Escolhi? - Gonsção voltou-se e olhou para a feia árvore atrás de si.

- É um gênero de figueira. Foi-me dito que foi debaixo de uma

destas árvores que o filósofo Siddharta ganhou a sabedoria.

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Gonsção franziu o sobrolho.

- É por acaso um filósofo hindu? O que tendes vós a ver com esse

conhecimento?

- Estais próximo, padre. Ele foi o fundador do budismo. Nesta terra,

uma pessoa aprende todo o tipo de coisas. De um estrangeiro como vós, não

se espera que o saiba. Mas já chega de divagações esotéricas. Eu tenho algo

que podem ser boas notícias.

- A sério?

- Sim. O feiticeiro Bernardo de Cartago foi capturado e está agora

em Goa. Há rumores de que a misteriosa Aditi possa estar com ele.

- Notícias excelentes, de fato, Domine. Como é que isto foi

conseguido?

- Um grupo de piratas muçulmanos achou a recompensa que nós

oferecemos atrativa e soube onde encontrar os navios ingleses. Foi a vontade

de Deus que um dos ingleses fosse mercenário ao ponto de nos entregar o

feiticeiro e a bruxa em pessoa.

- É verdade que Nosso Senhor nos ajuda por meios imprevistos.

Espero que seja possível questioná-los em breve, então?

- Espero que sim. Eu enviei um frade com alguns soldados para

interceptar a caravana. Eles devem estar de volta dentro de pouco tempo.

- Muito bem. Haverá um julgamento esta tarde. - Gonsção parou,

quando um jovem dominicano corado, com as vestes brancas sujas de pó,

correu apressadamente em direção a eles.

- E a delegação está de volta - disse Sadrinho. - Salve, Irmão Marco.

Acabo de contar ao padre António as nossas boas notícias. Temos os

prisioneiros a salvo, espero eu?

O jovem estava agitado e não os olhava nos olhos.

- Padre, Domine, houve um... infortúnio.

O rosto de Sadrinho perdeu toda a expressão.

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- Um infortúnio?

- Eu, quero dizer, o homem que era suposto nós... trazermos...

- Respirai calmamente, Irmão - disse Gonsção. - Dizei-nos o mais

simplesmente possível o que aconteceu.

- E eu não quero ouvir dizer - disse Sadrinho - que este feiticeiro

conjurou uma frota inglesa, fazendo-a sair do nada para o fazer desaparecer.

- Não, Domine. Eu fui com os soldados até à estrada de Panaji,

como me havíeis instruído. Lá encontramos a caravana de muçulmanos. Mas

quando fomos reivindicar o feiticeiro, foi-nos dito que ele estava morto e que o

outro inglês e a bruxa tinham desaparecido.

- Morto - disse Sadrinho. - Haveis confirmado?

- Sim, Domine. Examinamos o corpo. Era o homem que nos havíeis

descrito.

Sadrinho deu um murro na palma da mão e proferiu algumas

blasfêmias indiscretas.

- Parece - disse Gonsção com um suspiro - que o nosso feiticeiro

fez-se desaparecer de um modo definitivo.

- Acho - disse Sadrinho lentamente - que não devíamos escarnecer

de uma alma agora perdida no Inferno.

Acho que não é por isso que vós estais tão furioso, pensou Gonsção.

- Perdoai-me, Domine. Um comentário impensado. Dizei-me, Irmão,

foi possível discernir como é que o feiticeiro morreu?

- Não, padre. Não encontramos nenhuma ferida mortal nele, embora

apresentasse muitos hematomas. Tinha algum sangue à volta da boca. Estava

borrado, mas os muçulmanos disseram que tinha sido drogado com datura e

que isso era uma conseqüência natural.

- É possível que ele tenha morrido de doença? - perguntou Gonsção.

- Suponho que sim - disse o jovem dominicano -, embora nós não

víssemos nenhum sinal óbvio de quaisquer doenças de pele ou cólera nele.

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- Uma doença muito conveniente - rosnou Sadrinho. - Ele escolhe o

momento para morrer, antes de nós o reivindicarmos.

- Não podemos saber o momento exato em que ele morreu - disse

Gonsção.

- Mas o Domine pode estar certo - disse o Irmão Marco. Os

muçulmanos disseram que o ouviram falar com o outro homem no carro,

quase até eles o terem aberto.

- Outro homem? - perguntou Sadrinho.

- Sim. Estava um inglês no carro, com Cartago.

- O mesmo inglês que arranjou a entrega dele?

- Eu acho que não, Domine.

- E este inglês também está morto?

- Não, Domine, ele escapou. Aparentemente houve uma altercação.

Os mercadores que nos iam trazer os prisioneiros pensaram que estavam a ser

atacados por um grupo rival de assaltantes marítimos, nos limites da cidade.

Houve muita confusão. O inglês e a bruxa escolheram esse momento para

fugir.

Sadrinho rosnou:

- É o que eu mereço por confiar em hereges. Esta idéia foi vossa, se

bem me lembro, padre.

- Peço desculpas - disse Gonsção - pelas falhas que o meu plano

possa ter tido, mas ainda nem tudo está perdido. Sabemos a descrição física

do inglês?

- Os muçulmanos disseram que ele era jovem, alto e de cabelo

louro.

- Se não for um perito nos modos locais e em línguas, não lhe será

fácil encontrar refúgio em Goa. Se ainda estiver na área, podemos descobri-lo.

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O jovem dominicano confirmou com a cabeça.

- Eu sei de alguns lugares onde ele possa procurar santuário. Os

soldados já estão a fazer buscas pela cidade.

- Muito bem - disse Sadrinho. - Ide e dai-lhes assistência. E não

volteis até terdes notícias melhores.

- Sim, Domine - o jovem dominicano curvou-se e correu de novo

para fora do jardim.

- Padre, perdoai-me pela minha lenta perspicácia, mas porque é que

nos deveríamos preocupar em procurar um homem que esteve prisioneiro com

Cartago? Estrangeiros em Goa são um assunto civil e normalmente isso não

nos concerne. Em que é que ele lhe pode ser útil?

- Pensai, Domine... um inglês é feito prisioneiro para ser resgatado

por um outro compatriota seu. Que possível resgate poderia ser ganho, a

menos que o jovem soubesse de algo? Talvez este jovem louro esteja também

na conspiração de Cartago, talvez seja um neófito recente. Talvez o feiticeiro

lhe tenha confessado algo, quando à beira da morte. É uma esperança remota,

eu admito, mas é a nossa melhor hipótese de recuperar algo deste infortúnio.

Sadrinho lançou-lhe um olhar de estima.

- Podeis ter razão, padre. Vejo que o grande inquisidor Albrecht

tinha as suas razões para vos enviar até nós. Vós sois como um bom cão de

caça: uma vez com os dentes no assunto, é difícil que o abandoneis. Eu

manter-vos-ei informado, se ouvir alguma coisa. - Com uma leve vênia voltou-

se para partir.

- Uma outra coisa, Domine. No que diz respeito ao Irmão Timóteo...

Sadrinho ficou imóvel.

- Sim?

- Vós estáveis certo ao confiar-lhe a tarefa de advogado. Eu acho

que ele é um rapaz com qualidades excelentes. Podeis ter a certeza de que

falarei bem dele e da educação que lhe haveis dado, ao grande inquisidor no

meu regresso a Lisboa.

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- Eu sinto-me... gratificado, padre.

- No entanto, vi-o por uns instantes esta manhã e ele pareceu-me

muito agitado com qualquer coisa. Não me disse o que era. Eu fiz o possível

para tranqüilizar o rapaz, porque estou certo de que fosse o que fosse que o

estava a afligir, não foi culpa dele.

Sadrinho olhou para trás por cima do ombro com uma expressão

ilegível.

- Claro que não. Ele prima pela obediência e faz sempre o que lhe

mandam. Seja quem for que o mande. Como é que eu poderia culpá-lo de

alguma coisa? Bom dia, padre.

Capítulo XII

BELADONA: Esta planta dá flores em forma de sinos, de cor

castanho-avermelhada ou púrpura no Verão, e bagas negras

posteriormente. Também é chamada sombra-da-noite ou cerejas-do-

diabo. O seu fruto e raiz clara têm muitos usos medicinais para aliviar o

reumátismo, cólicas e febres. No entanto, em grandes quantidades, é

um veneno mortal. Os antigos diziam que as bagas eram usadas pela

deusa do Destino para retirar vidas aos mortais. Na língua italiana, o

seu nome significa ”bela mulher”. Não se sabe se foi chamada assim

pelo seu uso entre as mulheres jovens para tornar belos os seus olhos,

ou por ter sido usada para envenená-las...

A figura escarlate e dourada flutuava, bruxuleava, desaparecia e

reaparecia no meio da folhagem, diante de Thomas. É como se ela fosse um

fogo-fátuo em forma de mulher nos pantanais hindus. Ele tinha esperanças de

que o seu pensamento fosse apenas uma comparação infundada. Havia os que

diziam que os fogos-fátuos eram almas perdidas, conduzindo os homens à

Page 114: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

perdição. Mas a senhora Aditi parecia saber onde estavam os caminhos secos,

e os pés agora descalços de Thomas sentiram-se gratos.

Dali a tempos, chegaram a uma antiga ruína de uma muralha da

cidade, coberta de vinhas e talvez com quatro metros e meio de altura. Havia

uma brecha através da qual a senhora Aditi passou com facilidade. Thomas

seguiu-a com pouca dificuldade. É um milagre ela não me ter visto ou ouvido.

Não há dúvida que eu me tenho movido ruidosamente pelo matagal como um

javali selvagem, para conseguir acompanhá-la.

Do outro lado da muralha havia um bazar ao ar livre. A distração

constante ameaçava Thomas, enquanto ele passava por grandes taças de

bronze cheias de canela, pimenta, gengibre, cardamomo; especiarias que

fariam a fortuna de um homem na Europa. Passou por cobertores cheios de

frutas que ele nunca tinha visto antes, e o estômago lembrou-lhe que fazia já

algum tempo que não comia. Conduzido pela senhora Aditi passou diante de

um comerciante de cavalos elegantes de pescoço esguio, de um mercador

vendendo incenso, pastilhas aromáticas e madeira, de uma mulher expondo

flores de cor carmim, fúccia e brancas, de uma estante com jóias de ouro,

prata e cobre. Todos os sentidos estavam ameaçados de serem dominados,

seduzidos; no entanto Thomas tinha de manter a atenção centrada na forma

em movimento da senhora Aditi.

A multidão no bazar parecia cooperar com o seu empenho. Ninguém

olhava muito para ele, todavia saíam instintivamente do caminho, nunca o

empurrando ou atrapalhando. O meu disfarce deve-me servir bem - quase

nem olham para mim duas vezes.

No fim do bazar, a senhora Aditi aproximou-se de uma casa baixa

com telhado de colmo e sem janelas. Dois homens vigorosos vestidos com

dhotis estavam sentados num banco, ao lado da entrada tapada por uma

cortina.

Então, o que vais fazer agora, idiota? Thomas não tinha qualquer

razão para esperar que a mulher que traiu Cartago lhe prestasse assistência

ativa. No entanto, este dissera-lhe que ela o tinha feito ao serviço de uma

causa mais importante. “Uma causa que não tem nada a ver comigo. Isso eu

sei”. Olhou para o bazar, escutando as ininteligíveis línguas estrangeiras. As

Page 115: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

cores dos dosséis oscilavam e ele sentiu uma onda de fome e de fadiga. Se eu

procurar abrigo por conta própria, posso vir a cair na rua, e ser presa de

algum estranho. É melhor tentar esta estranha que pelo menos conheço de

algum lado.

Thomas foi até à entrada. Os dois homens que tinham

cumprimentado Aditi estavam outra vez a conversar no banco e não

repararam nele. Thomas limpou a garganta, mas isso não pareceu distraí-los

da sua conversa. Ele dirigiu-se-lhes e curvou-se como a senhora tinha feito,

com as palmas das mãos unidas diante do rosto, como se estivesse a rezar.

- Rasa Mahadevi - disse ele, porque estas eram as únicas palavras

em hindu que sabia. - Aditi - apontou para a entrada da casa. - Rasa

Mahadevi.

Os guardas franziram a sobrancelha e olharam para ele de lado,

como se não o desejassem ver. Um dos homens pôs-se de pé, puxou a cortina

para o lado e chamou para dentro da casa:

- Sri Aditi! - então falou umas palavras que Thomas não entendeu.

A cortina abriu-se bruscamente e a senhora Aditi reapareceu à

entrada.

- Vós - disse ela em grego. - O falso alquimista. Porque continuais a

seguir-me?

- Perdoai-me, Despoina, mas eu sou um estranho aqui. Eu não

tenho para onde ir. Necessito da vossa ajuda.

- Da minha ajuda! Não é suficiente o fato de eu vos ter mostrado o

caminho até à cidade? Porque é que devo ajudar mais?

Thomas não tinha pensado como é que iria conseguir a ajuda dela,

esperando que a piedade feminina fosse o suficiente. Mas agora uma

artimanha saltou-lhe à mente, como um fino fio de salvação.

- Porque nós buscamos o mesmo caminho, Despoina.

- Ah, vós não sabeis nada sobre o meu caminho.

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- Eu compartilhei o carro dos raptores com Despos Cartago.

Estivemos acordados mais tempo do que era pretendido e falamos bastante.

Aprendi muito com ele.

O olhar de Aditi queimava como fogo azul.

- Bernardo jamais romperia uma jura.

- Ele não rompeu nenhum juramento, Despoina. Mas achou que eu

tinha mérito para começar uma viagem de filósofo. Se eu me pusesse à prova,

encontraria a fonte da Rasa Mahadevi. O que ele me disse foi uma inspiração

para procurar o caminho da verdade. Nesse caminho apenas vós me podeis

guiar.

- Sim, sim. - Ela atirou a cabeça para trás, no entanto, lançou-lhe

um olhar que ele reconheceu dos visitantes à loja de Coulter; alguém que quer

comprar, mas que necessita de ser convencido.

- Com o que eu aprendi, poderia voltar para Inglaterra e espalhar a

palavra da vossa deusa, cujo nome é força, na minha própria terra. Por favor,

Despoina. Deixai-me entrar e descansar e continuar a nossa conversa.

- Vós não podeis entrar. - Ela falou asperamente para os homens

que estavam à porta e encaminhou-se para dentro de casa, fechando a cortina

atrás dela.

Bem, pelo menos tentei. Os homens que estavam à porta retiraram

as facas curvas dos dhotis e gesticularam insolentemente para ele,

desdenhando-o. Com um suspiro afastou-se, perguntando a si mesmo o que

iria fazer agora. Os gritos deles retiraram-no do seu desalento iminente e os

seus gestos indicavam que ele devia entrar pelo portão, no muro baixo ao lado

da casa.

Um dos homens abriu o portão a Thomas e fechou-o após a sua

passagem. Thomas encontrou-se no que poderia ter sido um jardim mal

cuidado, exceto pelo cheiro, que o informava que era mais um quintal

lamacento.

Page 117: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Uma porta de madeira na parte lateral da casa abriu-se e uma

rapariga pequena num sari castanho emergiu, carregando um tabuleiro de

madeira. No tabuleiro estava uma simples caneca de madeira contendo um

líquido branco e uma taça de arroz misturado com pedaços de fruta amarela.

Ela colocou tudo no chão a alguns centímetros de Thomas e voltou para casa,

sem olhar para ele.

A fome tomou conta dos seus sentidos de prioridade e Thomas

sentou-se no chão, enfiando o arroz e a fruta para dentro da boca o mais

depressa que podia. Depois bebeu da caneca e descobriu tratar-se de leite de

coco fermentado. No seu estado sedento e faminto, sabia-lhe

maravilhosamente.

- Puro néctar - murmurou ele.

- Chama-se feni - disse Aditi da entrada.

- Minha senhora - balbuciou Thomas. - Obrigado. Pensei que vós

me havíeis mandado embora - e ergueu a caneca antes de beber outra vez.

- Tê-lo-ia feito, se fosse mais sensata. Sois um mau presságio,

Tamas. Porque não seguistes o vosso amigo? Sois dharma dele, não meu.

- Quereis dizer Lockheart? Eu não o vi. Apenas vos vi a vós, e por

isso segui-vos.

Ela abanou a cabeça e deu um estalido com a língua.

- Estais imundo.

- Ah. A lama. Eu queria disfarçar-me. Parece que resultou pois

ninguém reparou muito em mim.

- Isso é porque pareceis um Mala, alguém das castas mais baixas,

que serve apenas para carregar lixo e coisas mortas. Ninguém vos tocaria. Mas

há algo que vos denuncia.

- Os meus olhos?

- Um verdadeiro Mala tem mais dignidade.

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- Sois cruel. Onde está a ternura de coração que é a glória do vosso

sexo?

Ela sorriu sombriamente.

- Sabeis pouco sobre mulheres.

Uma nuvem passou sobre o coração de Thomas. A única mulher

que ele tivera a oportunidade de observar fora Anna Coulter e ela não tinha

nada a ver com esta bruxa hindu. Anna era doce, recatada, obediente e

amável; não tinha a arrogância desta criatura. E, verdade seja dita, também

não tinha nem a graça de movimentos nem a beleza de rosto de Aditi.

- Também não sabeis como amarrar um turbante - continuou ela. -

O turbante de um homem mostra a sua família e a sua casta. Vede -

aproximou-se de Thomas e inclinou-se sobre ele. Sem lhe tocar, retirou-lhe

habilmente a camisa da cabeça.

Assim tão próxima, Thomas podia sentir o cheiro do seu suor

misturado com um odor de patchouli. Podia ver também a sua silhueta

através do sari transparente e o volume dos seios. O sangue martelava-lhe nos

ouvidos. Com a cabeça às voltas por causa do feni, mal podia evitar esticar os

braços e agarrá-la.

Ela arranjou a camisa, enrolando-lha de novo em torno da cabeça e

afastou-se.

- Pronto. Agora sois apenas meio imbecil.

- Obrigado - disse Thomas com um suspiro pesado. — Senhor,

porque é que nós, pobres mortais, somos tão tentados? Tentou pensar em

Anna, mas era-lhe difícil lembrar-se do rosto dela.

- Então, o que é que Bernardo vos revelou? - perguntou a senhora

Aditi.

- O suficiente. Ele disse-me como a vossa deusa era sábia e

poderosa. - Deus me perdoe, mas eu tenho de convencê-la. - Disse-me que o

nome do pó era Rasa Mahadevi. Disse-me que a fonte estava num sítio a

sudeste de Bijapur.

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Ela parou, mordendo o lábio.

- Isso é uma peregrinação longa e perigosa.

- Eu já percorri um longo caminho, Despoina.

- Sim, mas à procura de riqueza. A recompensa que recebereis no

fim deste caminho poderá ser menos agradável. Como é que estava Bernardo

quando o vistes pela última vez? Conseguiu escapar?

- Não. Estava a descansar tranquilamente quando a oportunidade

apareceu e não o consegui acordar. Eu tinha-lhe administrado Rasa Mahadevi

de um saquinho que ele tinha ao pescoço. Aliviou-lhe as dores

maravilhosamente. É de fato um medicamento poderosíssimo, Despoina.

Pergunto-me a mim mesmo porque é que vós me haveis advertido para não

usá-lo.

O olhar dela era ilegível.

- Eu não tenho dúvidas sobre o meu julgamento. Mas pelo menos

Bernardo descansa tranquilamente.

- Suponho que, se a caravana se desintegrou e Lockheart fugiu, ele

não necessita de ter medo de encontrar os seus resgatadores agora.

- Não. Ele não tem porque ter medo.

- Sabeis onde poderei encontrar Lockheart? Onde é que ele pode ter

ido?

- Não. Mas eu não confiaria nele, se estivesse no vosso lugar. É um

homem estranho; os demônios apoquentam-no de muitas formas. Ele teme o

seu dharma e tenta fugir dele.

Os sentimentos de Thomas em relação ao escocês também o

apoquentavam de muitas formas. Ele tentou poupar-me enviando-me para

terra, no entanto, era capaz de pedir um resgate por mim aos portugueses.

Podia ter-me matado, porém não o fez. Ajudou-me durante a viagem, sem

nenhum motivo, claro.

- Sim, ele é um homem estranho, Despoina. Thomas terminou o

arroz. Suavemente Aditi disse:

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- O caminho que procurais é traiçoeiro e mortal. Em Goa, nós

somos tenazmente perseguidos pelos padres da Santa Casa de Goa. Não seria

nenhuma gentileza deixar-vos ficar comigo, porque apenas vos estaria

expondo ao perigo. E vós seríeis um perigo para mim. Deveis fazer a vossa

jornada sozinho. Mas vou fazer isto por vós: há um homem em Goa, um

monge, que ajuda as pessoas da vossa terra. Ele é conhecido por padre

Stevens. Depois de teres descansado algum tempo, guiar-vos-ei até ele. Isso é

tudo o que eu posso fazer.

Thomas curvou-se à maneira hindu:

- Isso será de fato uma grande ajuda, Despoina. Obrigado. Aditi

voltou-se e chamou à entrada da porta. A rapariga vestida com o sari castanho

reapareceu, carregando um calicô enrolado. Abriu-o no chão e voltou para

dentro.

- Aqui está a vossa cama - disse Aditi. - Contudo, irão pensar que

eu sou extravagante, porque eles terão de destruir o tecido após terdes

dormido nele. Normalmente, os Mala dormem na sujidade. - Depois curvou-se

para Thomas e voltou a entrar na casa, fechando a porta atrás de si.

A gemer, Thomas rastejou em direção ao tecido e deitou-se sobre

ele. Era agradável estar apenas numa superfície que não se movesse, com os

braços livres. Então fechou os olhos.

E abriu-os, pareceu-lhe a ele, apenas alguns momentos depois. A

rapariga vestida com o sari castanho estava a cutucá-lo com um pau. Quando

olhou para ela, esta deixou cair o pau e correu para dentro. A copa da

palmeira acima dele estava iluminada pela luz do Sol do fim da tarde.

Devem ter passado horas. Dormi durante tanto tempo?

A senhora Aditi saiu, ociosamente, escovando o seu longo e escuro

cabelo. Vestia agora um sari azul e tinha várias pulseiras de ouro no pulso.

Num antebraço usava uma pulseira de prata com a forma de uma serpente

mordendo a cauda.

- Como estais, boticário?

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Thomas pôs-se de pé, ainda dorido mas descansado.

- Melhor, Despoina.

- Muito bem. Vamos então depressa. Fui informada de onde se pode

encontrar o padre Stevens a esta hora do dia. Arranjei para que uns homens

me levem até lá num dholi. Deixarei cair algo quando passarmos pelo monge,

para que o saibais.

- Muito bem. Mais uma vez vos agradeço.

- Que a vossa viagem seja um sucesso, Tamas. Espero que a Deusa

vos receba bem.

E partiu, fechando a porta atrás de si. Thomas ouviu ruídos do lado

de fora do portão e abriu-o. Um dos homens acenou com uma faca comprida

para Thomas.

- Choli, choli, choli! - gritou.

Ao atravessar o portão, viu a senhora Aditi a sentar-se numa liteira

grande com cortinas. Dois homens agarraram as varas, um à frente, outro

atrás. Começaram a correr e Thomas sentiu-se pressionado a acompanhá-los.

Mais uma vez, as ruas de Goa ofereciam uma distração constante:

uma mistura de Ocidente e Oriente, habitadas por todos os tipos de homens

da Europa, África, Arábia e Ásia. As casas eram agora de dois andares e com

telhados de telhas coloridas. Homens ricos e rechonchudos sentados nas

varandas, abanando-se. Escravos e servos passavam por ele apressados,

carregando cântaros de água, ou cestos, ou conduzindo burros carregados.

Mulheres com vestidos europeus de damasco ou veludo fino caminhavam

livremente, acompanhadas por damas de companhia. Mulheres muçulmanas

passavam como fantasmas, de vestidos compridos e coloridos que não

mostravam nada senão as mãos e os pés. Raparigas hindus com o ventre à

mostra e saias transparentes e grandes brincos de ouro enfiados nos narizes,

passavam por ele rindo e cantando. Tudo era uma concatenação de cores,

costumes, odores e som. Mas parecia que a mistura produzia uma intensidade

maior, tal como alho e gengibre esmagados juntos criavam um medicamento

mais poderoso que cada um em separado.

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Thomas mal conseguia manter a atenção na liteira que saltava à

frente dele, esperando pelo sinal da senhora Aditi.

Por fim, o esbelto braço dela apareceu fora da liteira e um objeto

escuro caiu-lhe da mão. Ofegando, Thomas parou onde estava, observando a

liteira desaparecer no meio da multidão.

Sentiu uma pontada de tristeza pelo fato de que poderia não voltar

a ver a senhora Aditi nunca mais, nem saber ao certo quem ela era.

Thomas descobriu estar numa rua tranqüila, com um pequeno

parque à sua esquerda. Debaixo de uma figueira enorme, estava sentado um

jesuíta de cabelo cinzento, conversando com um hindu ricamente vestido. Que

estranha a maneira como acontecimentos do mundo se resolvem... que agora

a minha vida deva depender de um monge papista. Eu espero que o pastor

Hoopes na Inglaterra me perdoe.

Quando Thomas se aproximou, o hindu reparou nele sutilmente e

desviou o olhar.

Thomas parou a alguns metros e chamou num murmúrio alto:

- Padre Stevens?

O monge olhou para ele com alguma surpresa e desculpou-se com o

hindu. Pôs-se de pé e caminhou em direção a Thomas.

- Padre Stevens, eu sou inglês e um estranho aqui. Foi-me dito que

vós me podíeis ajudar.

O monge mandou-o calar suavemente e disse:

- Ajoelhai-vos, como se eu vos estivesse a dar a bênção, meu filho.

Thomas ajoelhou-se e o monge pôs-lhe a mão no ombro.

- Padre, eu estou vestido como uma pessoa de casta baixa. Talvez

não me devêsseis tocar.

O padre Stevens sorriu.

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- Eu estou vestido como um jesuíta, meu filho, e nós tocamos em

qualquer um. Dizei-me, chegastes recentemente desses dois navios que

estavam encalhados a sul?

Surpreendido, Thomas disse:

- Sim, padre, assim é.

- E viestes para Goa como prisioneiro dos piratas árabes?

- Na verdade, padre, vós sois abençoado com o reconhecimento.

O velho monge suspirou e abanou a cabeça.

- Os soldados locais apareceram e falaram comigo. Temo que eles

me tenham sob vigilância agora. Eles estão à vossa procura, meu filho, como

suspeito de assassínio.

- Assassínio? Mas eu não matei ninguém.

- Não havia nenhum fidalgo goês no carro convosco, quando vos

trouxeram até à cidade?

- Sim, havia, mas... - Thomas ficou gelado. Cartago não se tinha

mexido, quando Thomas o chamou. Mas o pó devia tê-lo curado! Ele

substituiu o veneno e não mo disse? ”Uma dentada de serpente para aquele

que respira”, dizia a nota na garrafa. ”Uma pele de serpente para aquele que

não respira.” Ressurreição para uma pessoa que está morta, mas veneno para

a que está viva. E tanto Aditi como Cartago sabiam-no!

- Ai, padre, temo ter sido enganado. Sou um boticário de profissão e

estava a dar o que pensava ser um medicamento a um homem e não veneno.

O padre Stevens bateu-lhe nos ombros.

- Estou comovido com a vossa dor, meu filho, leva-me a acreditar na

vossa confissão de inocência. Eu compreendo que alguns medicamentos se

tornem veneno para uma pessoa demasiado fraca para os suportar e no

Oriente produzem-se medicamentos de fato poderosos. Podeis muito bem não

ter culpa.

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- Conseguis ajudar-me, padre?

- Se não vos ofender vestir o hábito, vou ver se vos posso esconder

entre os meus irmãos, por algum tempo. Nós somos uma ordem nômade e não

levantará suspeitas o fato de vós subirdes a bordo de um navio com esta

roupa. Vinde, temos de sair das ruas depressa antes que vos vejam.

O velho monge começou a descer a rua de pedra e Thomas

caminhou rapidamente ao lado dele, tentando parecer humilde.

- Posso perguntar-vos de que parte da Inglaterra sois, padre?

- Wiltshire, meu filho. Bushton. Estudei em Winchester e Oxford,

embora não fosse por muito tempo.

- Como viestes para este sítio tão remoto?

- Através de Roma e Lisboa. É uma longa história. No colégio de

Saint Andrew, li sobre o trabalho de São Francisco Xavier e isso inspirou-me a

tornar-me missionário no Oriente. Então aqui estou eu. Espero que tenhais

razões mais mundanas para estar aqui.

- Nunca foi minha intenção estar aqui. A minha expedição era

destinada à China.

- Mmm, não tenho dúvida que há um motivo na vossa vinda a Goa.

O Senhor trabalha de formas misteriosas... calai-vos, chegamos a uma área

mais populosa.

A rua levava a um canto de uma praça grande, com uma fonte no

meio. O padre Stevens começara a virar em direção a uma viela secundária,

quando cinco homens, vestidos com camisas largas, calças escuras e espadas

na anca, saíram debaixo de uma colunata e se aproximaram deles.

Com uma inimizade casual, bloquearam o caminho de Thomas e do

padre Stevens.

- Dominus vobiscum, senhores - disse o velho monge. Thomas

escondeu-se atrás do monge, sem saber como se comportar.

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- Padre Estêvão - disse um dos homens armados, com uma

inclinação de cabeça. - Boa noite. Quem é o seu amigo?

O padre Stevens tagarelou durante algum tempo em português.

Thomas teve a impressão de estar a ser descrito como um novo convertido

para a Igreja. Contudo, os homens armados não pareciam convencidos. Um

deles caminhou em direção a Thomas e arrancou-lhe o turbante da cabeça.

- Louro - disse o homem com um sorriso sarcástico. Depois agarrou

Thomas pelo braço e puxou-o para cima. - Levante-se já!

- É alto - disse um dos outros, reparando na altura de Thomas.

Seguiu-se uma discussão entre o velho monge e os soldados. Mas após um

minuto de gritaria, estava claro que o padre Stevens não estava a ter muito

sucesso. O velho monge benzeu-se.

- Perdoai-me, meu filho, mas não consigo detê-los. Farei o possível

para vos proporcionar defesa e segurança. Não desistais. Meu Deus.

- Não, perdoai-me a mim, padre - disse Thomas, enquanto

travessamente empurrava o velho monge para cima dos soldados. Então

Thomas voltou-se e correu o mais rápido que pôde, pelo caminho por onde

tinha vindo. Os seus pés martelavam nos tijolos duros da rua mas ele ignorou

a dor, procurando um beco, uma entrada, algum sítio onde se pudesse

esconder. Os homens com as espadas gritavam e seguiam-no de perto.

Thomas escondeu-se debaixo de um camelo que transportava tapetes

enrolados. Derrubou um rapaz de tanga que carregava uma sombrinha, bateu

num burro assustado para que este lhe saísse do caminho e se pusesse no

caminho dos seus perseguidores. As pessoas na rua gritavam à medida que

ele passava, mas não sabia se o estavam a encorajar ou a informar os

soldados sobre a sua passagem. As suas pernas estavam a arder, a começar a

ceder, cansadas devido à caminhada pelos pântanos e à corrida atrás de Aditi.

Um beco escuro apareceu-lhe à esquerda e ele enfiou-se apressadamente nele.

Gatos, galinhas e crianças dispersaram-se. As mulheres cobriram

os rostos e repreenderam-no. Era como se os seus pesadelos de ser uma

vítima perseguida, se tivessem tornado realidade. Cheirou-lhe a cardamomo e

a lentilhas cozinhadas. Abriu caminho através da umidade e de uma extensão

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de tecido que estava a secar. O seu rosto e o peito embateram contra uma

parede de estuque e ele caiu para trás na sujidade.

Ofegante, exausto, atordoado, Thomas apenas conseguiu sentar-se

à espera, enquanto o sangue lhe escorria do nariz. As vozes aproximavam-se,

rodeavam-no. Mais uma vez foi puxado para cima e lhe torceram os braços

dolorosamente atrás das costas. Demasiado fraco para lutar, deixou que lhe

atassem os pulsos e os homens armados guiaram-no para qualquer que fosse

o fim que o esperava.

Capítulo XIII

BAMBU: Esta erva alta cresce no Oriente. Tem uma haste oca, que é

utilizada com finalidades múltiplas, e folhas em forma de lâminas de punhal.

O pé pode ser comido, mas primeiro tem de ser cozinhado, senão é venenoso.

Na índia, o bambu é um símbolo de amizade e de fogos de origem divina. Diz-

se que nasceu das cinzas de uma rapariga que foi enganada para se casar com

alguém de uma casta mais baixa. Acredita-se no Oriente que se o bambu

florir, significa que se aproximam fomes e outras calamidades...

Sri Aditi estava sentada com os braços apertados à volta das

pernas, enquanto o seu dholi balançava e andava aos solavancos. Os seus

homens sabiam onde a levar: mas ela não sabia se ia ser bem recebida. Não se

atreveu a olhar para ver se o estrangeiro ainda a seguia.

Finalmente o andar dos que a carregavam tornou-se mais lento e os

sons serenaram à sua volta. O dholi foi posto no chão e a cortina de tecido

levantada. Com tanta graça quanto lhe foi possível, Aditi endireitou-se e pôs-

se de pé.

Estavam nos jardins laterais de uma grande casa senhorial de

pedra, que tinha sido erguida antes da chegada dos portugueses, ou mesmo

antes dos mogóis shahs terem chegado a Goa. Os jardins eram sombreados

por árvores asoka, brilhantes com as suas flores escarlates. Pavões

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iridescentes espicaçavam por entre samambaias e arbustos de champak

luxuriantes.

Sri Aditi retirou duas pulseiras de ouro dos pulsos e entregou uma

a cada um dos homens que a carregavam.

- Obrigada. Agora vão, mas apenas por ruas secundárias. Não

voltem aqui, a não ser que vos chamem.

Os homens curvaram-se e partiram em silêncio.

Um servo, vestido com uma túnica jama comprida de cor creme e

turbante, apareceu à porta e os olhos arregalaram-se-lhe com alarme.

- Sri Aditi. Ouvimos dizer que havíeis partido. Aditi curvou-se.

- Assim foi, Dwarpal. Mas o bafo da índia empurrou-me de Indra.

Tenho uma vez mais de suplicar a ajuda dos vossos amos.

O criado olhou na direção do portão.

- Ninguém vos viu entrar aqui?

- Eu acho que ninguém sabe quem eu sou. Ele pareceu hesitar.

- É melhor entrar e esperar aqui dentro. Mas eu não sei o que o

meu amo e a sua senhora vão dizer.

- Entendo. Estou tão aflita como eles vão ficar, certamente. Apenas

espero que eles tenham ainda alguma generosidade para dispensar à minha

pessoa.

- Lakshmi tem feito grandes maravilhas. Entrai, depressa. Aditi

seguiu Dwarpal pelos corredores laterais ricamente mobiliados, sentindo-se

mais como uma ladra que tinha sido descoberta, do que como uma convidada.

Dwarpal parou e indicou uma entrada que levava a um jardim

central.

- Este é o sítio onde podeis esperar confortavelmente. Mandarei

trazer-vos chá de cravinho, se assim o desejardes.

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- Isso seria muito gentil da vossa parte. Refletis a graça dos vossos

amos, como sempre, Dwarpal.

Aditi curvou-se e saiu para o jardim com colunatas. Este era em

grande parte preenchido por uma piscina retangular, na qual flutuavam flores

de lótus pálidas. Um único repuxo de água surgia de uma fonte no centro da

piscina. Jasmins e narcisos cresciam ao seu lado, perfumando o ar. O

crepúsculo caía e uma noite de estrelas podia ser vista no céu de cor índigo.

Aditi ouviu uma série de notas experimentais de uma raga que lhe

era familiar e olhou para um canto distante do jardim. Um músico cego estava

sentado num degrau a tocar vina; tinha uma cabaça no ombro e outra ao seu

lado.

- Gandharva! - Aditi caminhou na sua direção e sentou-se ao seu

lado. - Nunca esperei ver-vos aqui.

O homem cego inclinou a cabeça.

- Será que... Aditi? Ouvi dizer que tínheis escapado e zarpado pelo

grande mar fora.

- Eu tinha, Gandharva. Ou pelo menos, tentei. O navio de Bernardo

foi apanhado por estrangeiros, de quem nem mesmo os portugueses gostam.

- De fato, um infortúnio. O vosso amigo Bernardo está...

- Ele provou a Dádiva dela e faleceu. É melhor assim, visto o que lhe

poderia ter acontecido na Ordem de Gor, ou o que ele poderia ter divulgado.

- Ah.

- Tudo deu errado, Gandharva. Tudo. Nós falhamos. Agora eu sou

uma fugitiva, num lugar que outrora foi a minha casa.

- Aditi, Aditi, deveis estar extenuada. Nunca vos ouvi falar com tal

desespero.

- Eu nunca me senti tão desesperada.

- O desespero é uma ilusão, minha senhora. Uma cegueira não

menos incapacitante do que a minha. Mahadevi tem grande confiança nas

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vossas faculdades mentais e na vossa força, assim como eu tenho. Tudo

sofrerá uma volta diferente.

Aditi suspirou e descansou o queixo nos joelhos.

- A esperança infundada pode ser também uma ilusão, Gandharva.

Uma criada, vestida com uma túnica kurti verde, caminhou na

direção de Aditi e colocou um tabuleiro de prata aos seus pés. No tabuleiro

havia uma chávena de porcelana de chá de cravinho, e ao lado uma pequena

fatia de bolo de betei. Normalmente Aditi não mascava betei, mas esta noite o

seu espírito necessitava desesperadamente de ser reconfortado.

Com uma vênia, a criada desapareceu.

- Mm. - Gandharva cheirou o ar. - Cada vez que eu venho de visita,

as servas do senhor estão mais belas.

- Como sabeis? Ela trouxe-nos pan-supari. Gostaríeis de provar?

- Não, obrigado. Com um sentido perdido, eu preciso de confiar em

todos os demais. Com eles posso ouvir a graça dos passos de uma rapariga ou

sentir o cheiro do seu perfume bem escolhido. A beleza pode ser vista na

escuridão, tal como a luz.

- Ah, sim? - Aditi deu uma dentada no bolo de betei,

pensativamente mastigando a confecção de noz de palma, pasta de lima,

parras, ópio e especiarias. - A escuridão e a luz. Foi-me enviado um presságio

de escuridão hoje. O que pensais vós que irá acontecer, quando Mahadevi

souber do meu fracasso?

O músico cego encolheu os ombros.

- Vós sabeis que Ela tem uma perspectiva diferente das coisas. Para

Ela, as nossas dores são brisas adversas, perturbando-Lhe os pensamentos

apenas como o vento perturba a relva.

- E se Ela ficar mais perturbada do que isso?

- Isso vai depender do seu humor, suponho. O que é o pior que vos

pode acontecer? Tornar-vos num lindo adorno do seu jardim.

Page 130: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Não estais a conseguir tranquilizar-me, Gandharva.

- Eu apenas digo isto porque acho que é pouco provável. Dizei-me

que coisas terríveis aconteceram.

- Zalambur está morto. Serafina está agora na Ordem de Gor,

suportando os tormentos deles. Bernardo está morto. Para salvar a minha

própria vida, regressei a Goa na companhia de piratas. Tive de dar a um dos

estrangeiros o frasco da sua Dádiva. Bernardo confiou num jovem, dando-lhe

a conhecer algo sobre Ela, embora eu não saiba o quê. Este jovem estrangeiro

seguiu-me até Goa, quando escapei aos piratas. Eu também o ajudei,

encaminhando-o para um dos seus compatriotas. Não sei bem porquê.

- Certamente que está de acordo com o Dharma de cada um ajudar

estranhos que estão em necessidade, não é?

- Assim o dizem. Este jovem era estranho. Sabeis que ele rolou pela

lama, pensando que isso o disfarçaria?

- Os animais rolam na sujidade para cobrir o seu odor, segundo

dizem. Talvez o jovem estrangeiro pense como um animal. Na realidade

qualquer ocidental faria bem em cobrir o seu mau odor, não?

- Eles não parecem tomar muito banho, é verdade. Mas a lama não

o cobriu o suficiente. Era óbvio que o seu cabelo e a pele eram de uma cor

peculiar. Bernardo chamava-lhe jovem leão, porque o cabelo do estrangeiro

era amarelo-dourado como a pele de um leão. Este jovem é verdadeiramente

escuridão e luz, Gandharva; ele chama-se Tamas.

- Tendes pensado muito neste homem? Ficastes atraída por ele?

Aditi deu outra dentada no bolo de betei e mastigou por alguns

instantes antes de responder.

- Não sei. Gandharva, vós que haveis viajado mais do que eu e visto

mais do mundo, embora não vejais, já alguma vez sentistes, ao conhecer

alguém, que há um elo que vos une a essa pessoa? Que de algum modo ela é

importante. Já?

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- Eu não, mas ouço dizer que isso acontece a outros. Há quem diga

que isso significa que conhecemos esta pessoa numa vida anterior.

- Eu não acredito noutras vidas. Mas Bernardo deve ter pensado

que havia alguma razão para confiar ou encorajar este Tamas. Talvez por ele

ser um boticário; eles partilham alguns conhecimentos com os alquimistas.

O músico cego concordou com a cabeça.

- Homens de mentes semelhantes podem estar inclinados a

partilhar segredos. Vós e Mahadevi partilhais segredos e em certos aspectos

sois muito parecida com ela.

- Ninguém pode ser parecido com Mahadevi.

- Isso não é verdade. Eu ouvi Ela própria dizer que tinha duas

irmãs, antigamente.

- Ah, que época de milagres deve ter sido essa.

- Assim o diz a história, minha senhora. Mas eu acho que algumas

maravilhas se tornam mais maravilhosas com o passar dos tempos e das

histórias, como ervas daninhas exuberantes.

- De vez em quando, Gandharva, acho que duvidais da divindade de

Mahadevi.

Ele ergueu as mãos.

- Não duvideis de mim, minha senhora. Desde que Mahadevi me

trouxe de volta para o reino dos Vivos, eu sou-lhe completamente devoto. Mas

sou um contador de histórias e conheço algumas histórias.

- É por isso que estais em Goa? Contando histórias aos Maratas?

Ele encolheu novamente os ombros.

- Eu vou e venho. Parto amanhã para Bijapur.

- Eu deveria ir convosco.

- Porquê?

Page 132: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Porque é que devia ficar? Eles andam a perseguir-me aqui e não

vou ser melhor tratada do que a pobre Serafina, se me apanharem. - Aditi

esfregou a testa com os punhos. - Porque é que Mahadevi espera tanto de nós?

Seria muito mais fácil se ela aparecesse e se mostrasse, se provasse o seu

poder.

- Não restaria muito de Goa, se ela o fizesse. Além do mais,

estragar-nos-ia o jogo a nós, pobres mortais.

- Vós pensais nisto tudo como sendo um jogo?

- Ela seguramente pensa assim.

- Quando as pessoas morrem para espalhar a Sua palavra?

- No meu entender, os jogos mais excitantes são aqueles em que se

arrisca o máximo. Há lá aposta mais valiosa do que a vida? Está certo que os

Deuses sejam grandes e poderosos, mas se eles fizessem tudo, o que restaria

para nós, mortais, fazermos?

Aditi abanou a cabeça.

- Ficar de lado e rir, gratos por não termos de ser nós a trabalhar e

a sofrer? Mas ainda não me haveis dado uma razão para que eu fique em Goa.

- Porque não ganharíeis nada com a vossa partida. Se partirdes

agora, estareis a fugir ao vosso dharma, censurando publicamente a injustiça

de tudo isto e, pior de tudo, não trazendo nada de interesse para Mahadevi.

Sabeis como Ela despreza os que se lamentam. Se esperardes, a Roda pode

girar mais a vosso favor. Podereis descobrir algo de interesse e dessa forma

ficar apta para a distrair da desaprovação. Se voltardes para a Mahadevi de

mãos vazias...

Tendes razão. Isso iria enfurecê-la ainda mais. Eu encontrei um

homem fugindo do seu dharma... um personagem digno de piedade. Não devia

querer ser como ele. E quase fui.

- Estais a ver? Esperai a vossa oportunidade, minha senhora. Este é

o conselho que vos dou. E volto a dizê-lo, vós sois inteligente e astuta.

Sabereis aproveitar o momento quando este aparecer. Agni não se renova a

Page 133: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

partir do próprio fogo que o consome? Certamente algo que valha a pena será

ganho deste infortúnio. Vereis.

Capítulo XIV

ASSA-FÉTIDA: Esta resina é de cor avermelhada e vem de funchos

que crescem na Pérsia. É notável sobretudo pelo seu cheiro horroroso e

sabor amargo. Alguns chamam-lhe o Estrume do Diabo. No entanto,

tem sido usada no Oriente como especiaria e ali é chamada a comida

dos deuses. A assa-fétida em pó cura crises e achaques do estômago.

Utilizada num amuleto ao pescoço, diz-se que protege das doenças e da

bruxaria...

Thomas não prestou muita atenção para onde estava a ser

conduzido, até se aproximarem de um grande muro de pedra no extremo da

cidade. Um portão de ferro bloqueava lá dentro uma entrada. Havia três

soldados de guarda ao portão. Enquanto os seus captores gracejavam com os

guardas, Thomas reparou num cheiro pestilento a sair da entrada estreita em

forma de caverna. Estará algum oráculo por lavar esperando lá dentro, para

me falar por enigmas do meu futuro?

Finalmente um soldado abriu o portão e Thomas foi empurrado

para dentro. Caminhou aos tropeções, descendo por um túnel escuro e

inclinado, tentando suster a respiração à medida que o odor se tornava mais

forte. Os seus captores tinham lenços amarrados sobre os narizes mas não

ofereceram nenhum a Thomas.

Dobrou uma esquina e caiu contra um outro portão com barras de

aço. O quarto que ficava atrás dele era escuro, cheio de sombras com forma de

homens. O fedor era sufocante: uma mistura fétida de excrementos, urina,

suor, todos os eflúvios da humanidade, plantas a apodrecer e carne em

decomposição. Thomas tossiu, lutando contra a náusea.

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As barras abriram-se à frente dele e Thomas caiu sobre uma

saliência. Aterrou de lado num chão de pedra que era viscoso e malcheiroso.

Pôs-se de joelhos e os vômitos vieram-lhe à boca impiedosamente. Tudo o que

saiu foi apenas um líquido azedo. Contudo o seu estômago deslocava-se tão

violentamente, que receou chegar a vomitar os próprios órgãos para fora do

corpo. Que maneira mais ignóbil de morrer esta seria.

Pensou em todos os medicamentos para aliviar as dores de

estômago, que havia nas prateleiras do mestre Coulter: menta e narcisos, chá

de flores de pilriteiro, xarope de rebentos de pessegueiro. Tudo distante e

inútil. Mas o pensamento parecia aliviar os espasmos e Thomas tomou

consciência das pessoas à sua volta, dedos mexendo-lhe no cabelo, nos

calções, nos pés. Ouviu umas risadas suaves e homens a falar em idiomas

diferentes. Alguém atrás dele disse:

- Bem-vindo, estranho. - Bem-vindo a Aljouvar.

Não preciso de esperar pela morte para entrar no Inferno, pensou

Thomas. Já lá estou.

Alguém gritou para que os outros se afastassem e agarrou Thomas

pelos ombros, ajudando-o a pôr-se de pé. Num fraco latim, o samaritano disse:

- Respirai rapidamente, amigo. Como um cão no Verão. Isso ajuda.

Vinde.

Thomas ofegava, enquanto era conduzido para uma parede e se

encostava a ela. Uma luz fraca emanava das fendas invisíveis na rocha acima

das cabeças, e ele começou a ver um pouco daquilo que o rodeava. Thomas

voltou-se para agradecer ao seu benfeitor e sobressaltou-se. A seu lado estava

um rosto tão negro como as máscaras de ébano de África, um rosto hindu com

um nariz largo e olhos castanhos.

- Muito bem - disse o hindu. - Sentis-vos melhor agora?

- Sim - Thomas conseguiu dizer. - Obrigado, estranho. Trabalhando

nas cordas que prendiam Thomas, o hindu disse:

- As vossas mãos já estão livres.

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- Deus seja louvado - suspirou Thomas em inglês, massageando os

pulsos. À medida que os olhos se ajustavam à escuridão, viu que estava numa

gruta profunda, cujo chão de pedra tinha sido desgastado até se tornar liso,

pelo constante pisar dos pés. Os ratos guinchavam e trepavam por todo o lado.

No centro havia uma cisterna redonda que se erguia do chão, onde os homens

se iam aliviar. Havia algumas dúzias de homens esfarrapados e de barba no

compartimento: uns caminhavam para trás e para diante como animais numa

jaula, outros estavam sentados balançando-se silenciosamente. Alguns jaziam

deitados no chão e chamavam por Santa Maria, ou por Alá, ou por qualquer

divindade pagã multissilábica. Alguns estavam imóveis, dormindo, doentes ou

mortos. O resto, quer fossem muçulmanos de turbante, goeses bem vestidos,

africanos praticamente nus, hindus de casaca, ou de raça e nação

indeterminadas, estavam sentados calmamente conversando, rezando, ou

jogando com as pedras. Não eram poucos os que observavam Thomas com

curiosidade ociosa.

- Por Jesus - disse alguém que estava sentado perto dele, num latim

com um forte acento. - Acho que encontrastes um britânico, Sabda.

Thomas olhou para baixo e viu um homem vestido com um gibão de

seda sujo e puído e calções apertados abaixo dos joelhos. A sua barba por

aparar e os cabelos louros tinham sido penteados. Os olhos do homem eram

azuis.

- Também sois da Inglaterra, senhor?

Após um momento de pausa, o homem estendeu-lhe uma mão

grande.

- Pieter van der Groot, de Roterdão.

Thomas apertou-lhe a mão cuidadosamente, com o pulso ainda a

doer.

- Sabdajnana é o meu nome - disse o hindu com uma vênia. - E

podemos saber o vosso, meu bom senhor?

- Chinnery. Thomas. De Londinium.

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- Chinritamas.

- Não. Apenas Thomas.

- Tamas? Mmmm... - o hindu murmurou algo.

O holandês riu-se.

- Sabda diz que certamente o vosso nome vos conduziu a este lugar.

Tamas, na língua dele quer dizer ”escuridão”.

- Ah, sim? Então eu estou verdadeiramente no meu elemento,

porque as minhas perspectivas nunca me pareceram tão negras. Este homem

Sabda é vosso servo?

Franzindo o sobrolho, Van der Groot disse:

- É meu amigo. É um médico ilustre e um brâmane, da casta mais

nobre desta terra. Os muçulmanos chamam-lhe um hakim.

- Entendo. Perdoai-me, não era minha intenção insultá-lo - Thomas

fez uma vênia à maneira hindu para Sabdajnana. - E vós haveis-me mostrado

uma bondade inesperada neste sítio... onde quer que estejamos.

O Brahmin retribuiu-lhe a vênia, com um sorriso.

- Isto é o Aljouvar - disse Van der Groot -, a fortaleza do governador,

onde qualquer goês ou estrangeiro com sangue nas veias e má sorte na vida

passa o tempo. Mas deixai-me dizer-vos, tenho visto mais caridade e nobreza

de espírito neste inferno, do que no mundo lá fora. Trazidos a tão baixo, nós

tornamo-nos irmãos na adversidade.

Um homem magro, mas resistente com uma barba negra escassa e

de bigode, aproximou-se com passos regulares e deixou-se cair com extrema

agilidade no chão, ao lado de Van der Groot.

- À exceção daqui do Joaquim - continuou o holandês em voz ainda

mais alta -, que não é irmão de ninguém. Não é verdade, Joaquim?

- Vós desonrais-me - disse o pequeno homem em latim, com

pronúncia portuguesa. - Nem sequer fazeis uma vênia para me cumprimentar,

Page 137: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

como um verdadeiro cavalheiro deve fazer. Não me tenteis a desafiar-vos pela

vossa grosseria. Isso não seria cortês diante do vosso novo amigo, Pedro.

- Não é justo da vossa parte, Joaquim. Sabeis que as minhas pernas

ainda não sararam e eu não posso de modo algum fazer uma vênia tão bem

feita como vós.

- Ah, esqueci-me. Temos de perdoar os inválidos. Então, quem é

este anjo de cabelo dourado que nos visita no inferno?

- Concedei-me a honra de vos apresentar Thomas Chinnery de

Londres. É um inglês, Joaquim.

O pequeno homem ficou comicamente boquiaberto.

- Inglês! Madre de Deus, salvai-me deste herege comedor de

crianças, Pedro!

- Que dizeis? - disse Thomas friamente.

- Esta personagem irritante - disse Van der Groot -, é Joaquim

Alvalanca, o filho de um cão mais divertido com quem tive o prazer de

partilhar uma prisão.

- Ah, já é a segunda vez que me insultais, Pedro. Na verdade, estais

a tornar-vos demasiado familiar.

- Perdoai-me, Joaquim, sou apenas um mercador rude e não sei

nada sobre a delicadeza de um orgulho de cavalheiro.

- A qualidade de um cavalheiro - fungou Joaquim - é demonstrada

pela delicadeza do seu orgulho.

- Nesse caso - disse Thomas -, sinto-me honrado por conhecer

alguém que é sem sombra de dúvida um cavalheiro.

- E tentou uma grande vênia, tal como as que havia visto nas ruas

de Goa. Mas quando baixou momentaneamente a cabeça, esta começou a

andar à roda com tonturas e ele caiu para a frente.

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O brâmane Sabdajnana agarrou-lhe um dos braços. Joaquim

ergueu-se com um salto e apanhou o outro braço. Juntos, colocaram Thomas

no chão.

- Sentai-vos, senhor, por favor - disse Joaquim. - Fazeis-me

demasiada honra. Não receeis conspurcar-vos. Pelo vosso cheiro, isso já foi

feito.

- Temo estar necessitado de comida - disse Thomas. Sabdajnana

colocou uma palma fria na testa de Thomas e pescoço.

- Sinais de febre. Deveis tomar cuidado, bom senhor.

- Ai, senhor, ainda falta algum tempo para que nos dêem de comer -

disse Joaquim. - Espero que não morrais de fome até lá. Ainda que sejais um

diabo e herege fornicador.

- Obrigado - disse Thomas secamente. - Ainda que sejais um

adulador de ídolos papista.

- Ah! Ele atinge-me no coração, Pedro! Devo desafiá-lo?

- Paciência, Joaquim. Ele já sofre o suficiente, por estar aqui na

vossa companhia. Não sois tão cavalheiro que o vosso coração não possa

suportar um pequeno golpe. Além do mais, ele poderia ganhar o duelo, e

sabeis que eu enlouqueceria sem vós aqui a chatear-me.

Uma luz apareceu, balançando perto do portão de ferro. Homens

levantaram-se do chão da gruta, aproximaram-se saindo das paredes, braços

esticados, implorando em muitas línguas. Um soldado de fora do portão

segurou uma lanterna, iluminando dois monges com hábitos castanhos e os

rostos escondidos nos capuzes. Thomas sentiu um vislumbre de esperança.

- Paulistas - disse Joaquim, observando-os com curiosidade.

- Jesuítas - disse Van der Groot a Thomas. - Eles às vezes vêm da

parte da família de alguém, ou para fazer caridade. Ajudam os desafortunados

e não têm grande amor à Santa Casa.

O soldado apontou na direção deles e os monges olharam para

Thomas, gesticulando um para o outro.

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- Ah, talvez tragam comida, senhor.

Mas passado um minuto os monges partiram silenciosamente. O

homem da lanterna seguiu-os deixando a gruta numa escuridão ainda mais

profunda do que antes. Os prisioneiros voltaram, resignados, aos seus lugares

anteriores e aos passatempos.

- Eu tinha esperança - suspirou Thomas - que fosse o padre

Stevens. Falei com ele antes da minha prisão. Ele ofereceu-se para ajudar-me.

- Já ouvi falar dele - disse Van der Groot. - Até cheguei a esperar a

sua ajuda. Mas ouvi dizer que o padre Stevens tinha enfurecido o governador

há alguns anos ao ajudar três compatriotas a fugirem de Goa. As autoridades

não confiam nele e acho que há pouca coisa que ele possa fazer.

- Sim. Ele ia levar-me aos seus colegas jesuítas, quando fomos

detidos pelos soldados. Eles não acreditaram nas desculpas dele em relação a

mim e por isso fui arrastado para aqui. Senhor Alvalanca, vós falastes de uma

Santa Casa. Isso é...

- A Inquisição, senhor - disse Joaquim. - E rezai para que a casa

sagrada não se interesse por vós, inglês herege.

Thomas tinha ouvido muitas histórias à boca pequena a respeito

dos tormentos da Inquisição, apresentada como a mais condenatória evidência

contra papistas. As histórias eram freqüentemente tão lúridas, que ele tinha

perguntado a si próprio quantas delas seriam verídicas.

- Então que crime terrível traz o nosso senhor Chinnery ao

Aljouvar?

- Esqueceis-vos, Joaquim - disse Van der Groot -, de que nesta

cidade basta ser estrangeiro para ser um crime. Houve um rumor que chegou

até mesmo aqui, de que não há muito tempo, uma armada poderosa de barcos

de guerra ingleses perseguiu o maior dos galeões de Goa e quase o

capturavam. Vós não viestes nessa?

- Não - disse Thomas quase sorrindo. - A minha frota era apenas de

dois navios e, apesar de termos atacado um galeão, não o capturamos.

Ficamos seriamente danificados e tivemos de ancorar perto de Calecut para

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reparação, mas enquanto lá estávamos, fomos atacados por piratas árabes. Eu

estava a tentar salvar um amigo que pensava que eles tivessem capturado, e

no meu afã encontrei-me cativo e drogado. Quando acordei, estava num carro

a caminho de Goa.

- Estranho - disse Van der Groot, coçando a barba. - Não pensava

que os piratas de Omã navegassem por essa parte do oceano Índico.

- Mas certamente - disse Joaquim -, apesar de ser inglês já ser de

fato um crime, deve haver algo mais. Senão os paulistas teriam autorização

para afixar uma fiança por vós. Não há nenhuma outra acusação, senhor?

Thomas suspirou.

- Pensa-se que matei um cavalheiro de Goa. Van der Groot susteve

a respiração.

- Então que Deus vos ajude, meu amigo.

- Mas claro! - disse Joaquim. - Um duelo, não? Este bonito rapaz

arranjou uma senhora com um marido ciumento.

- Não, nada tão aventureiro - disse Thomas. - Sou um boticário de

profissão. E estava a administrar um remédio a um homem. Mas ao que

parece, em vez de ser uma substância curativa, resultou ser venenoso.

- Que medicamento era esse que lhe haveis dado? - perguntou

Sabdajnana.

Thomas ficou surpreendido por um momento; depois lembrou-se de

que o brâmane era médico e tinha interesse nessas coisas.

- Era um pó castanho. Sei que a vossa gente lhe chama Rasa

Mahadevi.

- Rasa Mahadevi! - Sabdajnana ficou boquiaberto.

- Conhecei-lo?

- Apenas de rumores, Tamas. O seu nome significa ”sangue da

deusa”, e pensa-se que seja um medicamento muito sagrado e poderoso.

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- E assim o é, porque uma vez utilizei-o para trazer de volta à vida

um homem, mas para o goês foi a sua condenação.

- Haveis utilizado esta espantosa substância?

- Apenas duas vezes.

- Que maravilha! Onde a conseguistes? Tendes um pouco convosco?

- Não. O que tinha foi-me retirado no navio dos piratas. Obtive-a do

próprio homem que morreu ao tomá-la... um alquimista português. De que

Deusa se supõe que seja proveniente? Conheceis a sua fonte?

Sabdajnana arqueou as sobrancelhas.

- Mahadevi, claro, que é a ”Grande Deusa”. Mas ninguém sabe de

onde provém o pó. Alguns dizem que se encontra nas profundezas do deserto

de Decão, ou nas selvas de Bengala. Outros dizem tratar-se do sangue de um

naga.

- Naga? O que é isso?

- Os naga são uma raça lendária de gente, metade homem, metade

serpente. Não sei se verdadeiramente existem.

— Talvez daí provenha a menção das serpentes na garrafa. Que

maravilha, se isto for verdade.

- Então - disse Joaquim -, sois um feiticeiro, bem como um herege.

Thomas olhou furioso para o pequeno homem. O uso correto de

medicamentos, drogas e ervas não tem nada a ver com a feitiçaria. Já lhe

bastava suportar as insinuações do colégio real de físicos, quanto mais de um

ibérico ignorante, de língua afiada. Thomas sentiu o seu rosto corar e sentiu-

se demasiado quente e demasiado frio ao mesmo tempo. Escondeu o rosto nas

mãos.

Sabdajnana agarrou-lhe o ombro.

- Como vos sentis?

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- Não muito bem.

O brâmane e Joaquim ajudaram Thomas a voltar-se e a encostar-se

à parede.

- Não vos quis insultar, senhor. Perdoai-me - balbuciou Joaquim. -

Bom, vou-vos contar a minha história. Isso vai-vos trazer um sorriso ao rosto,

está bem? Sou um hóspede do Aljouvar porque sou um ladrão. Um ladrão

incompetente, nada menos. O que é que eu roubei? Um pão, senhor.

- Éreis assim tão pobre? - disse Thomas. - Pareceis demasiado bem-

educado. Ou sois estudante?

Joaquim riu-se.

- Em Goa, senhor, os únicos assuntos que estudei foi como beber,

como lutar, como foder, e as cem maneiras de matar um homem. Em Lisboa,

era um verdadeiro estudante, num seminário, razão pela qual o meu latim é

tão excepcional. Mas a minha família caiu em desgraça; eu já não tinha

nenhuma fortuna em Lisboa. Por isso naveguei para a índia Dourada, onde

dizem que os rubis e esmeraldas nascem nas árvores e as raparigas de pele

escura concedem todos os desejos.

”Em Goa, tornei-me um soldado, como qualquer homem sem

mulher ou título. Lutamos para defender a nossa preciosa colônia. Fui posto

em tendas com outros dez e foi-nos dito que se servíssemos bem e

encontrássemos esposas, nos tornaríamos fidalgos, não trabalharíamos mais,

mas seríamos proprietários de boas fazendas e caminharíamos pelas avenidas

com escravos carregando pára-sóis sobre as nossas cabeças.”

Joaquim inclinou-se mais e baixou a voz.

- Mas, senhor, eles não nos disseram que apenas ganharíamos dois

réis por dia. Que uma boa camisa tinha de ser partilhada por dez homens.

Que tudo o que nos é dado para comer é arroz e peixe salgado e apenas água

para beber. O governador preferia gastar o dinheiro com a mulher e amigas do

que com os seus soldados.

- Cuidado, Joaquim - disse Van der Groot.

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- Eu já não quero mais saber, Pedro. Por isso, senhor, nós

roubamos. Alguns têm mulheres que lhes dão de comer em troca de amor. Eu

não tenho nenhuma amiga solteira, por isso roubei pão. Mas fui apanhado e o

nosso sargento precisa de um exemplo, por isso aqui estou eu. Uma história

excitante, não acham?

- Há quanto tempo estais aqui? - perguntou Thomas.

- Dois, talvez três meses.

- Há tanto tempo? E nenhum magistrado falou convosco?

- Não, e se tiver sorte, eles vão se esquecer de que eu estou aqui.

Thomas suspirou. Era ao mesmo tempo consolador e entristecedor

escutar os lamentos dos outros.

- E vós, senhor? - perguntou Thomas a Van der Groot. Posso ouvir a

vossa história?

O holandês coçou a barba.

- A minha parece irrelevante. Mas na opinião do governador,

também sou um ladrão. Os navios dos meus compatriotas não são mais bem-

vindos do que os vossos nestas águas. Nós, Holandeses, somos conhecidos

pela nossa habilidade para o comércio e Portugal guarda a sua conquista

ciosamente. Fui apanhado a tentar estabelecer contactos mercantis com

alguns comerciantes maratas. As autoridades não ficaram contentes.

- E também não haveis falado com ninguém?

- Tal como aconteceu com Joaquim, espero que ainda falte muito

para que isso aconteça. Temo que não seja bom para mim, quando o

julgamento for finalmente feito. - O holandês mudou de posição e Thomas

notou uma rigidez invulgar nas suas pernas.

- O que vos aconteceu?

- Tentei fugir e fui espancado por guardas. Não é nada.

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- Percebo. - Thomas podia ver que se tratava de algo mais do que

nada, mas decidiu não pressionar o holandês sobre esse assunto. - Podeis

dizer-me o que me poderá acontecer? Tendes algum conselho a dar-me?

- Se eles estiverem convencidos de que sois um assassino, ou

quiserem culpar-vos de alguma maneira, tendes poucas esperanças, a não ser

fugir. O guarda pode por vezes ser indulgente ou ser subornado. Podeis

esconder-vos por algum tempo entre os maometanos, ou entre os judeus em

Goa; há alguns que não simpatizam com os portugueses, que não vos

trairiam. A vossa melhor hipótese é fugir por terra. Ides para leste, para o

território de Bijapur. O sultão de lá, Ibrahim Adilshah, não gosta dos

portugueses mas recebe bem todos os outros estrangeiros.

Bijapur. Já ouvi falar desse lugar - Ah! É o segundo ponto no mapa

de Cartago; o caminho para a fonte do Rasa Mahadevi.

- E vós, Magister - perguntou Thomas a Sabdajnana. O que traz um

homem culto como vós a este lugar?

O brâmane abanou tristemente a cabeça.

- Homens de sabedoria, se não forem cristãos, são suspeitos em

Goa, nos dias de hoje.

- Homens de sabedoria, se forem ricos, quereis dizer - disse Van der

Groot. - Eles provavelmente tinham inveja da vossa riqueza, Sabda. Vede se

tendes ainda alguma coisa, quando voltardes a casa.

O brâmane suspirou e olhou noutra direção.

- Agradeço... - Thomas tossiu e o mundo girou à sua volta. Ficou

mais quente, como se chamas internas ameaçassem consumi-lo. Queria

derreter-se, ou expandir-se como pão num forno. Sentia os braços e as pernas

pesados como pedras.

- A febre - ele ouviu Sabdajnana dizer sobre ele. - Está a tornar-se

pior.

Claro que era a febre, ele tinha-a tratado tantas vezes.

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Então, um pouco de poejo e de alfazema resolviam o assunto, não é

verdade, senhora Smythe? E lá estava a senhora Coulter olhando para ele e

abanando as bochechas roliças, dizendo:

- Deus não devia dar um pai assim a uma criança. - Mas de quem

estava ela a falar? Do seu pai, é claro; pouco antes ela insistira para que

mestre Coulter o enviasse nesta viagem para longe, muito longe das mulheres

a cavalo que o assombravam e o perseguiam nesta floresta ardente, escura

como o breu. Conseguia ouvir os guinchos e gritos horrorosos e corria através

do fogo, mas não conseguia trazer ar aos pulmões e os ramos não paravam de

lhe bater nas faces, enquanto corria uma pancada poderosa e Thomas viu o

rosto de um demônio a pairar sobre ele. Não; era Sabdajnana, muito

preocupado.

- Thomas?

- Senhor! - disse-lhe Joaquim ao ouvido. - Senhor, tendes de

acordar. Eles vêm à vossa procura.

Com o corpo todo a doer-lhe Thomas deixou-os puxarem-no para

cima.

Havia um monge ao portão, com um lenço a tapar-lhe a boca. Uma

chave rangeu na fechadura de ferro.

- Padre Stevens? - sussurrou Thomas. Olhou em volta esperando

outro coro de lamentos e súplicas dos prisioneiros; porém, em vez disso, houve

um silêncio: nenhum homem chamou ou simplesmente deu conta do monge

ao portão. Poder-se-ia até dizer que os prisioneiros se arrastaram ainda mais

para dentro das sombras, desviando os rostos. O monge entrou na gruta

sozinho, trazendo uma lanterna. As suas vestes não eram castanhas, mas

brancas, com uma capa negra dos dominicanos. O monge foi direito a

Thomas.

- Infelizmente, senhor - sussurrou Joaquim. - Receio que tenhais de

ir para a Santa Casa, afinal de contas.

O dominicano parou à frente deles e apontou para Thomas, dizendo

para Joaquim:

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- Ele é inglês?

Joaquim acenou afirmativamente, olhando para o chão.

- Coragem Thomas - disse Van der Groot.

O monge fez um gesto para os guardas do portão. Enquanto os

homens desciam para dentro da gruta, transportando correntes, Joaquim

sussurrou de novo ao ouvido de Thomas:

- Lembrai-vos de nós, senhor. Pois uma vez que chegueis a

conhecer a hospitalidade da Santa Casa, lembrar-vos-eis do Aljouvar como um

paraíso.

O padre Gonsção demorou-se perdido nas sombras profundas da

Catedral de Santa Catarina. A multidão tinha dispersado há muito, mas ele

estava relutante em abandonar os reconfortantes arcos ibéricos, o altar e os

bancos. As janelas altas tinham vidraças de madrepérola, que deixavam entrar

uma luz difusa e leitosa, como se se estivesse debaixo de água. Que

apropriado, este santuário. Pois receio não ter perícia para nadar entre as

águas turbulentas e sombrias da vida de Goa. Deus me guarde; que eu não

me afogue nela.

As enormes portas de madeira atrás dele abriram-se e uma figura

solitária, um monge, entrou. Este fez uma genuflexão na nave central e

aproximou-se dissimuladamente do banco onde Gonsção estava ajoelhado. Só

quando o monge estava ao lado dele, é que Gonsção reconheceu o Irmão

Marco.

- Deus vos dê uma boa noite, padre.

Gonsção suspirou e benzeu-se como que a terminar as suas

orações.

- E a vós também, Irmão Marco.

- Ele deu-nos, padre, a todos nós. Finalmente trago boas notícias.

- Fico satisfeito por ouvir isso. Mas dai-me essas novas lá fora.

Estas paredes ecoam tanto que as andorinhas nas vigas podem ouvir os

murmúrios.

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- Certamente, padre.

Gonsção permitiu que o Irmão Marco o conduzisse para fora, até

aos degraus da catedral. O Sol estava a desaparecer por detrás das casas

altas, estendendo longas sombras sobre a praça central, ainda cheia de gente.

- Estas pessoas nunca vão para casa, Irmão Marco? O jovem monge

riu:

- Gostam mais de ir às casas uns dos outros, padre. Goa é uma

cidade festiva!

Gonsção estalou a língua:

- Surpreende-me que aqui se faça algum trabalho de conseqüência

séria.

- Um pouco precioso é feito - disse o Irmão Marco. - Mas vamos às

minhas novas. O inglês que pensávamos ter perdido, foi encontrado. Foi

levado para o Aljouvar, mas um dos nossos Irmãos salvou-o e trouxe-o para a

Santa Casa.

- Bem, isso é algum progresso. Teria sido melhor encontrar Cartago

vivo, mas temos de nos contentar com a segunda escolha. Presumo então que

haverá uma audiência esta noite?

- Não tão depressa, padre. O inglês estava doente e com febre e o

Domine Sadrinho quis que ele tivesse algum tempo para se recuperar, antes

de ser entrevistado.

- Entendo. - Depois de tanto atraso e de informações erradas,

Gonsção encontrou-se a si próprio a conjecturar se esta seria uma nova

armadilha. - Sabeis, Irmão Marco, ocorre-me que dada a importância deste

inglês para a vossa investigação, deveríamos dar-lhe o melhor dos advogados.

Penso que o Irmão Timóteo serviria bem para ele, não?

O Irmão Marco sorriu:

- Na verdade as bocas dos sábios bebem da mesma fonte, padre. O

inquisidor Sadrinho já atribuiu ao Irmão Timóteo esse dever.

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- Ah, sim? Isso são novas encorajadoras, na realidade. Algo no outro

lado da praça captou a atenção do Irmão Marco por um momento.

- Eu... tenho de regressar para proceder a algumas preparações

para o vosso novo hóspede. Por favor perdoai-me, padre. - Voltou-se e partiu

rapidamente numa direção oposta ao que quer que fosse que ele tivesse visto.

Gonsção franziu o sobrolho, surpreendido. Mas tanta coisa aqui é

estranha, que nem vale a pena perguntar.

Com um suspiro, continuou a descer os degraus da catedral,

caminhando vagarosamente atrás do Irmão Marco.

Pelo canto do olho, viu duas figuras vestidas com hábitos castanhos

deslocarem-se da fonte da praça na sua direção. Enviou aos céus uma

pequena prece, pois Gonsção achava a paixão jesuíta pela pobreza, caridade e

evangelização algo maçador. A sua oração foi, evidentemente, demasiado

tardia, pois os paulistas caminharam diretamente para ele. Gonsção acenou-

lhes, escolhendo aproveitar o melhor da situação.

- Deus vos dê uma boa noite, Irmãos.

- E ao vosso espírito, padre, queira Deus dar a paz. - O jesuíta que

falou era um homem de cabelo branco, com cerca de 60 anos e o seu

português era estranhamente acentuado. O Irmão a seu lado era atarracado e

tinha cabelo negro, encaracolado. Pela forma como o homem se encolhia e se

contorcia no seu hábito de lã, Gonsção concluiu que ele era noviço na roupa.

- Não vos vi perto da Santa Casa antes - disse o velho monge

astutamente. - Chegastes recentemente a Goa, padre?

- Estou aqui há duas semanas, Irmão.

- Então posso dar-vos as boas-vindas à paróquia mais alegre da

terra de Deus. Sou o padre Tomás Estêvão.

- Ah. Creio que ouvi falar de vós. Sois inglês, não é verdade? - E sou

capaz de adivinhar a razão pela qual vos aproximastes de mim.

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- Essa é a minha terra natal, mas estou exilado até que sua

santidade retire a sua bula ou que sua majestade soberana Isabel volte para a

madre Igreja. Não penso, porém, que alguma destas coisas venha a acontecer.

Este é o Irmão Andrew, da Escócia, um país mais temperado na fé, que não no

clima.

Gonsção acenou educadamente para o monge hirsuto e recebeu em

troca um sorriso frio. Há algo astucioso por trás dos seus olhos. Nem tudo é o

que parece.

- Disseram-me, padre Estêvão, que sois estudante das línguas

pagãs locais.

- Sim - disse orgulhosamente o padre Stevens. - Coligi uma

gramática Canarese e atualmente estou a trabalhar num longo poema

devocional, no estilo e na língua dos Maratas. Chamo-lhe a minha Purana

Cristã.

Gonsção tentou impedir que o seu assombro se tornasse evidente.

- Se bem posso perguntar, padre, o que foi que vos possuiu para

tentar tal coisa?

- Oh, é um grande desafio, eu sei. Mas achei que valia a pena

tentar, a fim de revelar a fé cristã de uma maneira familiar aos Hindus. E

também para demonstrar aos fiéis a beleza da língua e das formas poéticas

usadas pelo povo nativo. Mas não vou ser cansativo como tantos escritores

conseguem ser, com as histórias do meu trabalho em progresso. Soube que

um dos meus compatriotas é agora hóspede da Santa Casa. Um jovem louro,

com o mesmo nome que eu, Thomas. Creio que ele está inocente das

acusações que lhe são feitas e desejo testemunhar a seu favor e oferecer-lhe

consolo.

Tal como eu pensei. Gonsção exibiu o sorriso mais gracioso que

conseguiu.

- Naturalmente, padre, vós estais preocupado com o vosso infeliz

compatriota. Mas lamento ter de vos informar que eu aqui sou apenas um

observador. Não tenho autoridade direta neste caso. Não sei a que acusações

vos estais a referir. Mas sei que a Santa Casa não fez qualquer erro ao fazê-lo

Page 150: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

nosso hóspede; o inquisidor Sadrinho está muito interessado no seu

testemunho. Ele será bem tratado, asseguro-vos. Agora já vos disse mais do

que a minha posição permite. Se quiserdes, mandarei uma mensagem para o

inquisidor-mor, dizendo que desejais uma audiência com ele. Por certo

compreendereis, ele pode não responder com brevidade. O inquisidor Sadrinho

é um homem muito ocupado.

O velho jesuíta sorriu também.

- Já tratei antes com o inquisidor Sadrinho, padre. Sei até que

ponto ele pode ficar ocupado, quando pensa que isso é necessário.

- Fico contente por serdes paciente e compreensivo, padre Estêvão.

Agora, com a vossa permissão, tenho assuntos a tratar.

- Um momento, padre - disse o Irmão Andrew. O seu português

escabroso parecia mais de um soldado, do que de um escolástico. - Há uma

coisa que o padre Estêvão não mencionou. Creio que o jovem inglês não é

querido tanto por ele próprio, como por aquilo que ele pode ter aprendido com

o homem que acompanhou a Goa. Um certo senhor Bernardo de Cartago.

- Falei tudo o que podia sobre isto - disse Gonsção. Não...

- Mas o erro, já se vê - continuou o Irmão Andrew -, é que este

Cartago seja considerado morto.

- ...vos fará qualquer bem... o que é que dissestes, Irmão?

- Que este mesmo senhor Cartago, que tem fama de ser feiticeiro,

não está morto.

Gonsção sentiu que lhe faltavam as palavras. É como se eles

ouvissem os meus pensamentos, do outro lado da praça. Isto será verdade, ou

um outro ardil? Não devo mostrar que isto é importante para mim. Contudo,

de certa forma não conseguiu impedir a sua boca de ficar aberta e os olhos de

olharem fixamente para o monge escocês.

- Isto não é um caso de interesse para a Santa Casa? disse o Irmão

Andrew, pestanejando, todo inocência.

Page 151: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Como... como chegastes a este conhecimento?

- Se nos dispensardes um pouco do vosso tempo, padre disse o

padre Estêvão - nós explicaremos com todo o gosto.

Não sei o suficiente para julgar isto. Não sei onde jaz o corpo de

Cartago, ou até mesmo se ele existe. Não posso confiar totalmente nestes

homens, contudo também não confio no Sadrinho. Se isto é algo que ele não

sabe, ou que me está a esconder, é do maior interesse da minha missão que

eu fique a saber mais.

- Muito bem. Estou pronto para ouvir.

Capítulo XV

PAPOULA: Esta planta tem folhas de um verde-prateado. Dá flores

brancas, vermelhas, ou de cor púrpura em pleno Verão e vagens

redondas com sementes, nos finais da estação. O xarope de papoula é

um remédio excelente, pois dissipa toda a preocupação, todo o

reconhecimento da dor, ou do perigo, ou das circunstâncias difíceis e

proporciona um sono tranqüilo. Contudo, deve tomar-se um cuidado

especial no seu uso, porque quando a tintura é muito forte causa uma

sonolência demasiado profunda e tem de se usar alho ou outra

substância ativa, para reavivar o que dorme. Para os antigos, a papoula

era consagrada a Ceres e a Diana e era considerada uma planta de

morte. Há quem diga que as flores vermelhas nasceram pela primeira

vez do sangue de um dragão morto por Santa Margarida. Outros dizem

que surgiu do sangue de Cristo, que gotejava da cruz. Por toda a parte é

sabido que a papoula se dá bem nos campos de batalha...

Thomas acordou com uma brisa seca e fresca a acariciar-lhe o

rosto, o gênero de Zéfiro matinal que antecede uma tarde abrasadora. Ele

podia ouvir o pairar e o guinchar dos pássaros tropicais, para além da parede

ao seu lado. Da distância, vinham gritos de mercadores da rua e o clamor dos

sinos de igreja. Havia um tênue perfume de caiação por entre os odores do

mar e dos pomares de fruta. Por um momento acreditou que estava de novo

Page 152: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

em Londres, numa manhã de Verão. Mas os outros sentidos e memórias

disseram-lhe que isso não podia ser verdade.

Por cima dele havia um teto branco, em abóbada. A parede à sua

direita era caiada de branco também, com uma pequena janela com grades

colocadas bem alto. Thomas observou os grãos de poeira a flutuarem baixo,

sobre os raios de luz.

Esforçou-se por ficar numa posição sentada, mas teve de voltar a

reclinar-se devido às vertigens. Todo o corpo lhe doía e ele gemeu. Lembro-me

agora - estive doente com febre. Onde é que eu estarei?

Examinou-se a si próprio. Estava vestido com roupas limpas que

não eram suas, calças de algodão e uma camisa de algodão larga, mas sem

sapatos. Tinham-lhe dado banho. Thomas levantou a mão para coçar a cabeça

e descobriu que lhe tinham cortado o cabelo muito curto.

Verdadeiramente não sou o homem que era na minha última

recordação.

Com cuidado e lentidão, Thomas conseguiu finalmente sentar-se.

Tinha estado deitado numa colcha tecida em xadrez vermelho e branco. Por

baixo dela havia uma esteira de palha sobre um catre. Não é uma cama de

luxo, mas é de longe muito melhor do que muitas que eu vi ultimamente.

Estava numa cela com cerca de três metros quadrados.

Contra uma parede adjacente havia uma mesa simples de madeira,

sobre a qual tinham sido postos dois jarros de barro. Ao lado da mesa havia

uma vassoura e uma bacia sanitária. Do outro lado da sala à sua frente, havia

uma porta que tinha na parte superior uma janela de grades.

Poderá isto ser a terrível Santa Casa? Estou numa cela, certamente,

mas está mobiliada mais parecendo uma estalagem frugal e bem cuidada.

Um rosto redondo e moreno apareceu à janela da porta. Soltou um

grunhido de surpresa e voltou-se para falar com alguém que Thomas não

conseguia ver. Então houve o barulho de uma chave a rodar na fechadura de

ferro e a porta abriu-se silenciosamente.

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O dono de um rosto largo e marcado com cicatrizes era um homem

atarracado que usava um bastão no cinto. Entrou com passo forte e

sorridente.

- Bom dia - murmurou Thomas com um aceno.

O homem não disse nada, mas manteve-se afastado da porta. Um

rapaz de doze ou treze anos, com um hábito castanho entrou então. O cabelo

cortado em forma de tigela era negro, os olhos eram grandes e castanhos e a

pele era cor de canela. Trazia uma malga de madeira que colocou no catre ao

lado de Thomas - a malga continha arroz, um filete de peixe e uma salsicha.

Com o estômago roncando de fome, Thomas pegou na malga

avidamente.

- Abençoado sejais e obrigado, irmãozinho - disse entre garfadas de

arroz.

- Deus lhe dê um bom dia, senhor - disse o rapaz, de rosto solene

mas esperançoso.

Thomas engoliu e disse:

- Utorisne língua latina?

- Sim - disse o rapaz nessa língua. - É uma sorte vós também a

usardes. Sou o Irmão Timóteo.

O homem alto, claramente um guarda de alguma espécie, aclarou a

garganta e lançou ao rapaz um olhar de aviso, sorrindo sempre.

- Chamo-me Thomas Chinnery. Podeis fazer-me o favor de me dizer

onde é que eu estou?

O rapaz pestanejou.

- Estais na Casa Sagrada, senhor. Ah, mas não podíeis ter sabido.

Tendes estado doente.

O guarda fez estalar a língua. O rapaz suspirou e ele cerrou os

lábios com ar aborrecido. Thomas perguntou a si próprio o que poderia estar a

acontecer. Talvez o rapaz tenha quebrado alguma regra monástica. Então, é

Page 154: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

isto, realmente. Temível Inquisição. É bastante satisfatória na aparência, até

agora. Será satisfatória nas negociações também? O que teria levado Cartago a

preferir a morte à prisão aqui, ou levado Joaquim a dizer que o Aljouvar é o

paraíso em comparação com isto?

Thomas comeu mais umas garfadas de peixe, salsicha e arroz,

enquanto os seus visitantes esperavam com paciência. Finalmente perguntou:

- Quando é que poderei falar com alguém que tenha autoridade?

- Em breve - disse o Irmão Timóteo. - Fui nomeado vosso advogado.

Thomas quase se engasgou com o arroz.

- Vós? - Uma criança é que vai ser o meu advogado espiritual? Que

tipo de tribunal é este?

- Sentis-vos bem, senhor? - perguntou o rapaz com preocupação

genuína.

- Perdoai-me. Eu estou bem. Apenas me engasguei com o arroz.

- E a febre, foi-se embora?

- Parece que sim. Deram-me alguns medicamentos? O rapaz

inclinou a cabeça.

- Porque perguntais?

- Hum, curiosidade. É isso apenas. - Thomas tinha aprendido que

em certos lugares era perigoso dar a conhecer a sua profissão.

- Tratei-vos eu próprio - disse o rapaz com orgulho. Aprendi a fazer

alguns remédios com ervas com o meu avô Garcia de Orta.

- De Orta? - disse Thomas - De verdade? Li o seu livro. Colóquios

dos Simples e Drogas da Ásia...

Os olhos do Irmão Timóteo abriram-se de espanto.

- Ouvistes falar de meu avô? E lestes o seu livro? Vindo de tão

longe?

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- Sim, de fato. Esse livro foi parte da razão pela qual o meu mestre

me mandou para o Oriente.

O guarda tossiu em voz alta e olhou para o rapaz com ar

carrancudo. O Irmão Timóteo baixou o olhar e afastou-se. Que estranho. O

rapaz não tem ordem de me falar livremente.

- Como sois o meu advogado - disse Thomas, observando o guarda -

podeis dizer-me o que me farão?

Olhando para o chão fixamente, o jovem frade disse:

- Deveis colocar os vossos pensamentos nos pecados que vos

conduziram até este lugar, senhor. Os meus mestres, os inquisidores,

mostrar-vos-ão toda a clemência, se vós abrirdes o coração para eles e para

Deus.

Estas palavras, que deviam de ter sido reconfortantes, causaram

um arrepio no corpo de Thomas.

- Obrigado, fá-lo-ei - esperou ter dado a resposta desejada.

- Estou ansioso por ter essa oportunidade.

- Quando estiverdes bem, senhor.

- Sinto-me suficientemente bem - Thomas ergueu-se e sentiu os

joelhos a tremer. O rapaz correu para o seu lado e segurou-lhe o braço,

levando-o cuidadosamente até ao chão.

- Deveis descansar, senhor. Deixai o vosso corpo e a vossa alma

ganhar forças.

O guarda fez rolar os olhos e resmungou em português. Uma outra

voz ouviu-se do lado de fora da porta.

- Irmão Timóteo!

O Irmão Timóteo soltou o braço de Thomas.

- Desculpai-me, senhor. - O rapaz caminhou apreensivamente até à

porta e saiu. O guarda abanou a cabeça para si próprio, como se a sua

suspeita tivesse sido confirmada.

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Thomas esperou, mortificado pela sua fraqueza. Perguntou-se se

seria a reminiscência da febre ou a falta de alimentação. Caldo de carne seria

um bom remédio, ou um saquinho de cominhos e tomilho. Talvez uma infusão

de folhas de sabugueiro. Não há tais remédios aqui. Quiçá eu pudesse

persuadir o rapaz a trazer-me alhos. Gostaria de saber com quem ele está a

falar. Não me parece feliz.

O Irmão Timóteo reapareceu, franzindo o sobrolho. Chegou-se junto

de Thomas e disse:

- Senhor, ides ver os meus mestres agora.

- Bom - disse Thomas. Lentamente levantou-se, ordenando aos

joelhos que se agüentassem firmes. Para sua surpresa, obedeceram-lhe.

O guarda veio ter com eles, puxando por um bocado de tecido negro

que trazia no cinto.

- Isto é para os vossos olhos - disse o Irmão Timóteo. Só deveis ver o

que é permitido. E temos de atar as vossas mãos. E não deveis falar a menos

que vos seja pedido. Os hóspedes da Santa Casa devem ser silenciosos. É a

regra.

Thomas sentia um medo crescente, enquanto lhe atavam os pulsos

e lhe punham a venda. Não ver. Não falar. Esta prisão satisfatória pode-se

ainda tornar uma coisa de pesadelo.

Depois de uma caminhada breve e desajeitada ao longo de

corredores silenciosos exceto pelo eco dos seus passos, o pano negro foi-lhe

tirado de novo dos olhos. A sala à sua frente era um contraste gritante com a

sua clara e arejada cela.

O salão de audiências era uma sala comprida, com uma mesa

pesada e longa, à volta da qual estavam sentados homens de rostos compridos

e vestes negras. O enorme crucifixo que preenchia a parede mais distante,

evocava pensamentos mais de castigo do que de salvação.

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Na extremidade da imponente mesa, estava sentado um monge

secretário curvado sobre um enorme livro-mestre, a pena na sua mão

semelhante a um punhal pronto para ser atirado. À sua direita estava sentado

um homem, cujo rosto com barba estava marcado pelas bexigas e sulcado

como as vielas calcetadas de Londres. À esquerda do escriba estava sentado

um homem mais pequeno, que parecia entediado, mas que observava Thomas

com olhos velados.

O Irmão Timóteo dirigiu-se ao homem alto, de cicatrizes no rosto e

fez uma vênia em deferência:

- Ele sabe latim, Domine.

- Bom. Então não precisaremos de intérprete. Sentai-vos. O guarda

empurrou Thomas até uma cadeira de madeira, na cabeceira da mesa mais

próxima. Apesar das mãos atadas, Thomas conseguiu sentar-se sem cair.

Bem. Pelo menos permitem-me este pequeno conforto.

O inquisidor alto acenou para o livro de orações encadernado em

cabedal, que se encontrava na mesa à frente de Thomas.

- Colocai a vossa mão direita sobre o missal.

- Perdão, Domine - disse Thomas -, mas tenho as mãos atadas.

O inquisidor bateu na mesa bruscamente.

- Não deveis falar até que vos peçam. - Acenou para o guarda e

Thomas sentiu que as cordas lhe estavam a ser tiradas. Esfregou os punhos,

depois colocou a mão direita sobre o livro.

- Deveis jurar que tudo o que disserdes perante nós, será a verdade

e que observareis a regra do silêncio e que não repetireis nada daquilo que

ocorrer aqui.

- Juro dizer somente a verdade.

O Irmão Timóteo deu um passo em direção a Thomas.

- Deveis jurar também a regra do silêncio, senhor, ou sereis levado

de volta à vossa cela.

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Até que ponto este juramento me comprometerá? Interrogou-se

Thomas. Poderia eu revestir-me de coragem para não falar deste lugar, caso

alguma vez daqui venha a sair? Será a minha alma mais condenada ainda, se

eu não o fizer? Quanto mais tempo me deixarão esmorecer na minha cela, se

eu não o fizer?

- Assim juro - disse ele, por fim.

- O vosso nome?

- Thomas Chinnery. Poderei perguntar os nomes daqueles a quem

me estou dirigindo?

Os inquisidores franziram o sobrolho.

- Não deveis fazer perguntas! - sussurrou o Irmão Timóteo, quase

implorando. - Somente os Domines Sadrinho e Pinto as podem fazer.

O inquisidor alto olhou para o rapaz furiosamente.

- Isso é tudo o que o vosso hóspede necessita de saber disse

sombriamente.

Pelo menos o rapaz ousa dar-me resposta, embora me sirva de

pouco, pensou Thomas.

- Qual é a vossa cidade de origem?

- Londres, Inglaterra.

Os inquisidores trocaram olhares de compreensão.

- A vossa ocupação?

- Sou aprendiz de um boticário.

- Um boticário: isso é alguém que lida com ervas, drogas, venenos e

substâncias alquímicas, não é?

Thomas começou a sentir que as armadilhas lhe estavam a ser

preparadas.

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- Com exceção das substâncias alquímicas, está correto. O

inquisidor ignorou a qualificação de Thomas.

- Qual era o vosso negócio em Goa?

Thomas conseguiu não dizer “Eu não tenho negócios em Goa”.

- Eu fui capturado por corsários muçulmanos e trazido para aqui.

Com que intenção, não sei.

- É um caminho longo para os piratas trazerem um inglês. Sabeis

porque sois hóspede da Santa Casa?

- Não, Domine.

- Não tendes idéia nenhuma, mesmo?

Thomas fez uma pausa, tomado pela surpresa. Será que ele acredita

seriamente que eu devia saber?

- Penso, Domine, que vos compete a vós dizer-mo.

O Irmão Timóteo parecia escandalizado. O inquisidor mais alto

suspirou, batendo com o dedo indicador sobre a mesa.

Thomas ergueu as sobrancelhas inocentemente e esperou. Perdido

por um, perdido por mil, como se diz.

- Senhor, deveis dizer-lhes porque é que estais aqui disse o Irmão

Timóteo.

- Que tipo de advogado sois vós? pensou Thomas. Finalmente disse:

- Presumo que estou aqui porque sou estrangeiro. O inquisidor-mor

olhou brandamente para Thomas.

- De que interesse poderia ser a nacionalidade para a Igreja

Católica?

Que jogo de loucos é este?

- Por causa da minha nacionalidade, poder-se-ia pensar que eu

estou em Goa ilegalmente.

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- Isso é um assunto secular e não preocupação nossa. Que

transgressões de espírito vos trouxeram à nossa atenção?

Cerrando os dentes, Thomas disse:

- Devido à minha terra natal, poder-se-ia pensar que sou um

herege.

- Fazei notar que ele admite o pecado de heresia.

- Que eu posso ser considerado um herege?

- Sois um cristão de oito dias, senhor?

- Que dizeis?

O inquisidor suspirou:

- Quando vos tornastes cristão?

- Desde o nascimento, Domine.

- Fostes batizado na Madre Igreja?

- Fui batizado em... na Igreja de Inglaterra.

- E essa Igreja dos Ingleses segue todos os preceitos da Santa Madre

Igreja de Roma?

Thomas ficou em silêncio, desejando ter a língua vivaz de

Lockheart.

- Nós soubemos - disse o inquisidor -, por outras pessoas do vosso

país, que ela não o faz. - O espectro de um sorriso apareceu brincando nos

lábios do inquisidor. - E que as pessoas de fé verdadeira na Madre Igreja são

perseguidas no vosso país.

- Isso é um assunto político.

- Nós não pensamos que seja. Vós estáveis na companhia de um

homem, que sabemos ser um feiticeiro notório. Esta Santa Casa tem vindo a

procurá-lo há algum tempo.

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Ah. Agora chegámos lá. Cuidadosamente, Thomas disse:

- Fui trazido para Goa na mesma carroça que um homem, que

alguns diziam ser feiticeiro. Escapei da carroça, mas ele não. Mais tarde ouvi

dizer que ele estava morto.

Os inquisidores esperavam, sem dizer nada.

- Sou acusado do seu assassínio?

- Assassínio - disse o inquisidor-mor -, embora seja um pecado

cruel, é todavia um assunto para as autoridades seculares e não é

preocupação nossa. Repito, o que vos trouxe aqui?

Thomas olhava fixamente, mal compreendendo o que ouvia.

- Acre... Acreditais que eu possa ter praticado feitiçaria com o

homem?

- Fizeste-lo? - perguntou o inquisidor, velando os olhos.

- Não! Que maneira de julgar é esta? Diabos me levem se eu

brincarei às adivinhas convosco!

Os olhos do homem de hábito negro abriram-se e Thomas percebeu

que devia de ter apertado mais as rédeas da sua língua. Baixou os olhos para

a mesa, com o rosto a arder. O Irmão Timóteo tocou-lhe no ombro sutilmente.

- Por favor, acalmai-vos, senhor - implorou ele. - Acreditai que Deus

vos vê e comportai-vos com decoro, pois esta é a Sua casa sagrada.

Uma vez mais o inquisidor-mor olhou furiosamente para o rapaz. O

Irmão Timóteo olhou para o chão, murmurando apologeticamente em

português.

- Dir-se-ia que estais a ser mais uma distração do que um bom

advogado, Timóteo. Estais despedido desta audiência.

Em silêncio, o rapaz voltou-se e saiu da sala. Embora o jovem Irmão

tivesse sido de pouca ajuda, Thomas teve uma sensação de perda, quando ele

partiu.

Page 162: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Com uma calma gélida, o inquisidor olhou de novo para Thomas.

- Não é o nosso propósito aqui, senhor, brincar às ”adivinhas”. E

nós realmente receamos que estejais condenado. Encontramos isto nas vossas

roupas. - E ergueu nas mãos um pequeno rolo de pergaminho que Cartago

tinha dado a Thomas.

Eu ainda nem olhei para o que estava escrito ali, pensou Thomas,

começando a entrar em pânico! Cartago disse que era um mapa.

- Ainda negais que praticastes feitiçaria? Thomas fechou os olhos.

- Não sei o que está escrito no pergaminho. Cartago entregou-me

para o manter a salvo. Não sou feiticeiro.

- Tomai nota de que o senhor Chinnery até agora não está

arrependido.

- Como podeis... não tendes provas, nem testemunhas! Como ousais

acusar-me de alguma coisa?

- Podemos produzir testemunhas, senhor, que vos ouviram

murmurar sortilégios com o feiticeiro. Eles acreditam que vós usastes feitiçaria

para criar o caos nas suas fileiras, a fim de poderdes escapar.

O inquisidor encolheu os ombros.

- Mas isso tem pouca importância. É o encargo sagrado da Santa

Casa deixar cada hóspede descobrir por si próprio o pecado na sua alma.

Apenas quando ele próprio reconhece o pecado, o pode então confessar

livremente, purgar a sua alma do mal e ser perdoado por Deus. Seria de fato,

errado da nossa parte, fazer acusações e dizer-vos o vosso erro, pois isso

negar-vos-ia o autoconhecimento. Podeis simplesmente papaguear o que nós

dizemos e assim evitar humilhar-vos perante o Céu.

Meu Deus. Não só o seu rosto lembra as vielas de Londres, como a

sua mente é igualmente labiríntica. Estarei eu na presença de loucos?

- Talvez a falta esteja em nós - continuou o inquisidor. A nossa

generosidade pode ter-vos poupado o duro exame da alma que leva à

revelação. Talvez os vossos erros se tornem mais claros para vós, através da

Page 163: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

privação. Talvez seja até preciso um tratamento mais rigoroso ainda, para

trazer a verdade aos vossos olhos. Para fazer o abençoado trabalho de salvar a

vossa alma, estamos preparados para fazer o que quer que seja necessário. E

nós somos, senhor, muito pacientes.

Capítulo XVI

AÇUCENA: Esta planta tem uma haste longa, raiz bulbosa e flores

em forma de campainhas, ou de uma trompa, E consagrada a Santa

Catarina e dizem que nasceu pela primeira vez a partir das lágrimas

que ela derramou, quando foi expulsa do Paraíso. O suco da açucena

cura as mordidelas venenosas e a raiz acalma as queimaduras. Para

alguns, a açucena é a flor dos degenerados e dos covardes. Outros

dizem que representa a alma e é a flor da morte e que crescerá sobre a

campa de um homem que tenha sido executado. Na Igreja, a açucena

há muito que é símbolo da pureza e da ressurreição...

O padre Gonsção estava de pé no que restava da sombra matinal,

no portão das traseiras da Santa Casa. Encostou-se para trás, contra a parede

de estuque e ficou à espera. Tinha passado a noite averiguando se a Santa

Casa tinha, de fato, o corpo do feiticeiro Cartago num caixão, numa cela

úmida e fria. Ninguém tinha vindo reclamá-lo. Talvez porque

compreensivelmente, quem quer que o fizesse, ficaria imediatamente sobre

suspeita de conluio com a cabala de feiticeiro.

Gonsção tinha falado com o monge que examinara o corpo. O

monge tinha sido bastante convicto: Cartago estava morto, fora de qualquer

dúvida.

Terão estes jesuítas descido tão baixo ao ponto de recorrerem a

ardis e mentiras para ajudarem os seus conterrâneos? Ter-se-ão esquecido

que o dever para com Deus vem antes do dever para com a nação?

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Lá em baixo, no fundo da rua e entre os empurrões do povo, vinham

a chegar, com passo vigoroso, o velho padre Estêvão e o corpulento Irmão

Andrew.

Bem. Têm muito que provar estes paulistas. E se não conseguirem

aprenderão que nós na Santa Casa não aceitamos de ânimo leve tal loucura.

O portão ao seu lado abriu-se e o Irmão Timóteo saiu a correr, todo

ele pernas e braços num rodopio.

- Ah, estais aí, padre! - Correu até ele e agarrou a manga de

Gonsção. - O inglês! O Domine Sadrinho começou o seu julgamento, quando

ele nem sequer está ainda suficientemente bem. Tendes de vir!

- Santa Maria! - suspirou Gonsção. Depois repreendeu-se pelo

desabafo. É claro que Sadrinho não me informou. Olhou para trás em direção

aos jesuítas que se estavam a aproximar. Seriam eles parte do plano dele para

me distrair, ou serão um problema à parte?

- Padre, por favor!

- Sim, Timóteo. Obrigado. Irei imediatamente. Mas tenho de vos

pedir uma coisa. Aqueles dois paulistas vêm falar comigo. O que têm para

dizer é muito importante, por isso quero que os convideis para o tribunal. Não

tenhais medo do Domine. Ele vai querer ouvir o que eles dizem. Eu assumirei

a responsabilidade toda.

Perplexo, mas obediente o rapaz disse:

- Como desejardes, padre - e correu para a rua para interceptar os

jesuítas.

Gonsção entrou para dentro do portão e dirigiu-se a largos passos,

tão depressa quanto pôde, para a sala de audiências. Se os paulistas forem

manobra de Sadrinho, eu posso, pelo menos, embaraçá-lo. Se não são, podem

tornar-se um incômodo e podem fazer-me ganhar tempo para descobrir mais

coisas. Se puderem fazer o que dizem... bem, não é todos os dias que se

assiste a um milagre.

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Os guardas à porta da Sala de Audiências ficaram assustados, mas

não barraram a entrada de Gonsção. Este abriu de rompante as portas da

sala, gratificado por ver a surpresa no rosto de Sadrinho.

A audiência já estava evidentemente a decorrer havia algum tempo,

mas havia pouca gente a assistir. Estavam presentes os inquisidores Sadrinho

e Pinto, assim como o secretário, que olhava para trás e para a frente entre os

inquisidores e Gonsção, com perplexidade. Mas as sete testemunhas

requeridas não se viam em parte alguma, nem tão-pouco o arcebispo. Ainda

mais curioso. Na cabeceira da mesa mais próxima, de costas para Gonsção,

estava o jovem e loiro inglês, atendido pelo seu guarda de cela, fortemente

musculado. O inglês parecia pálido e cansado.

- Perdoai-me a minha chegada tardia, Domine - disse Gonsção, com

uma vênia apressada. - Mas acabei de saber agora que este julgamento se

estava a realizar.

Sadrinho fez um sorriso enjoado.

- Perdoai-nos, padre, mas não nos foi possível localizar-vos, a fim de

vos informar.

- Com certeza. Eu estive fora, recolhendo informações pertinentes

para este caso. De fato, por espantosa coincidência, fui contatado por dois

homens que podem trazer evidência valiosa. Estarão aqui em breve.

Gonsção deu a volta à mesa e ficou de pé atrás da secretária.

- Se me permitirem rever o que já foi dito? - Gonsção folheou as

páginas já passadas do livro-mestre e esquadrinhou as notas. O sorriso de

Sadrinho fundiu-se num franzir de testa.

- Pedistes a outros para virem a este tribunal, sem a minha

permissão? Isso é impossível, padre.

- Compreendo. Em circunstâncias normais eu nunca pensaria em

fazer tal coisa. Mas o que estes homens me disseram é tão... extraordinário,

Domine, que depois de os terdes ouvido, tenho a certeza de que haveis de

concordar com o meu julgamento. Ah, aqui estão eles.

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Os jesuítas estavam à porta, espreitando para dentro ansiosamente.

O inquisidor Sadrinho olhou-os fixamente por um momento e

depois levantou-se da cadeira.

- Padre Estêvão. De certa forma não estou surpreendido. Padre

Gonsção, lamento informar-vos de que cometestes um erro. O padre Estêvão

pede clemência para qualquer dos seus antigos compatriotas. Tenho a certeza

que não tem nada para oferecer relativamente a este caso particular.

Gonsção não conseguia ler nada no rosto sem expressão do

inquisidor.

- Se pelo menos os ouvirdes, Domine, podereis ficar a pensar de um

modo diferente. - Gonsção fez sinal aos dois monges para entrarem.

O velho jesuíta imediatamente foi colocar-se ao lado do jovem inglês

e murmurou-lhe algo na sua língua gutural e sibilante. O jovem ficou

surpreendido e aparentemente satisfeito por vê-lo.

O monge escocês aproximou-se com mais precaução. Não sem

razão, poder-se-ia dizer, pois quando o jovem inglês viu o corpulento monge,

levantou-se e rosnou uma palavra que até Gonsção compreendeu.

Parece que a palavra ”filho bastardo” é semelhante em todas as

línguas. Então eles conhecem-se. Isto está a tornar-se ainda mais

interessante.

- Os vossos visitantes estão a perturbar o nosso hóspede - disse

Sadrinho. - Com todo o respeito, padre Gonsção, devo insistir em que estes

dois homens se vão embora, antes de continuarmos este julgamento.

- Peço apenas um momento da vossa paciência, Domine. Pois eu

acredito firmemente que o cardeal Albrecht há-de achar o testemunho deles de

interesse e portanto vós deveis tomar conhecimento dele.

O nome do grande inquisidor pareceu dar uma pausa a Sadrinho.

- Muito bem. Um momento então. Falai.

- Este é o Irmão Andrew da Escócia. Por favor, dizei a este tribunal,

Irmão, o que me dissestes.

Page 167: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O monge robusto sorriu para o inquisidor.

- Alegrai-vos, pois trago-vos alegres notícias, Domine. O homem que

vós tendes procurado, na verdade, Bernardo de Cartago, não está morto.

Gonsção tossiu. Este homem ousa gracejar com as Escrituras?

Sadrinho, é claro que não vai reconhecer isto.

- Não está morto? - disse Sadrinho, erguendo uma sobrancelha. A

boca torceu-se num sorriso divertido e ele olhou para o inquisidor Pinto. O

homem mais pequeno abanou a cabeça.

- Que estranho - Sadrinho continuou. - Não é então seu o corpo que

jaz num caixão nas nossas celas?

- Pode ser o seu corpus, de fato - disse o Irmão Andrew -, mas num

estado de profundo torpor, não de morto. Como expliquei ao bom padre, os

pagãos faquires e os iogues desta terra são capazes de fingir a morte durante

longos períodos de tempo. Sugiro-vos que Cartago aprendeu este truque a fim

de escapar ao vosso escrutínio. Em atenção ao pobre inocente senhor

Chinnery, ofereço-me para acordar o feiticeiro para vós.

- Acordá-lo? - disse Sadrinho. - Por que meios?

- Oração e uma relíquia.

- Que relíquia pode ser essa?

- Uma mistura em pó de ervas secas e do sangue seco de Santa

Margarita. Da minha terra. Eu trago isto sempre comigo.

- Sangue em pó? - Sadrinho ficou muito sossegado. Como um gato

que sentiu movimento na relva.

- Sim, Domine.

Poderia este ser o mesmo pó sobre o qual Timóteo disse já ter lido

no livro mestre?, pensou Gonsção. O pó que levou homens de bem a duvidar

da sua fé? Não admira que Sadrinho esteja fascinado.

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- Devíeis ensinar mais precaução à vossa língua, Irmão Andrew -

disse Gonsção -, ou as pessoas poderão assumir que vós próprio sois um

feiticeiro.

- Eu? Que Deus me leve neste momento, se assim é. Aprendi o que

sei sobre feitiçaria em Maleus Maleficarum, um texto para vencer as bruxas,

sem as emular. Concedeis-me, Domine, a hipótese de provar o que digo? - O

Irmão Andrew cruzou as mãos na barriga e esperou.

Dir-se-ia que a surpresa que trouxe a Sadrinho é melhor do que eu

tinha planeado.

- É claro - continuou o Irmão Andrew -, isto é, com a condição, de

que se eu for bem-sucedido em acordar o feiticeiro, vós liberteis o jovem inglês

para ficar ao nosso cuidado.

Foi a vez de Gonsção ficar surpreendido.

- Eu nunca fiz tal acordo convosco. A Inquisição não negocia com

almas como um cambista no mercado!

- Isso nem sempre foi verdade - disse o padre Estêvão. Na minha

experiência, o valor de uma alma nem sempre está para além de qualquer

preço. Até o velho Abraão negociou com Deus pelas almas do seu povo.

- Domine, peço desculpa.

Mas Sadrinho ergueu a mão:

- Não, não é necessário pedir desculpa, padre. Tivestes razão ao

trazer aqui estes homens. Penso que há muito a aprender com este Irmão

Andrew.

- E, é claro, se eu falhar - disse o monge escocês -, ter-me-eis à

vossa mercê para fazerdes comigo o que quiserdes.

- Falais como se a Santa Casa procurasse ativamente almas para

julgar.

- O entusiasmo da Inquisição nos seus deveres é lendário - disse o

Irmão Andrew.

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- Apenas porque o nosso propósito é mal compreendido disse

Sadrinho. - Mas aceitaremos a vossa proposta, Irmão, com a condição de que,

se falhardes, o padre Estêvão também sofra todas as conseqüências que vos

ocorrerem a vós.

O padre Estêvão lançou um olhar preocupado ao monge escocês.

Com um suspiro, benzeu-se e disse:

- Assim concordo. Que Deus me ajude. Sadrinho concordou.

- Excelente. Este julgamento fica suspenso, enquanto testamos a

pretensão do Irmão Andrew. - Então apanhou de cima da mesa a campainha

de prata e fê-la tocar duas vezes. Os dois guardas da porta entraram, com as

mãos nos bastões. - Ide à casa mortuária e trazei o corpo do senhor Bernardo

De Cartago.

- Trazê-lo para aqui, Domine?

- Foi o que eu disse, não foi?

Os guardas curvaram-se e partiram imediatamente.

Durante o desconfortável quarto de hora que se seguiu, o padre

Estêvão rezou com o jovem inglês, que parecia não compreender o que se

estava a passar. O inquisidor Pinto mexia-se na cadeira e beliscava a manga

da batina. O inquisidor observava o Irmão Andrew com ar de predador. Que

loucura é que eu pus em movimento?, pensava Gonsção.

Os guardas voltaram, trazendo aos ombros um caixão de madeira

simples. Os rostos enrugavam-se-lhes com nojo enquanto colocavam o caixão

sobre a longa mesa, empurrando o missal e a campainha de prata para fora do

caminho. Gravadas na tampa do caixão, estavam as letras M.N.,

representando Morto Negatio, o que indicava que os restos que continha, eram

de alguém que tinha morrido sem se arrepender.

O cheiro que vinha do caixão era bastante eloqüente quanto ao seu

conteúdo.

- Dir-se-ia - disse Gonsção, enquanto dava a volta à mesa para se

colocar ao lado dos jesuítas - que tendes muito que provar.

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Sadrinho observava com uma curiosidade calma. O inquisidor Pinto

levantou-se e afastou-se da mesa, benzendo-se. O jovem inglês também se

afastou até que chocou com o seu guarda de cela, que firmemente o segurou

pelos ombros. O secretário pôs-se pálido e escreveu umas poucas notas

hesitantes no livro mestre. Os guardas que tinham trazido o caixão pareciam

preferir encontrar-se em qualquer outro lugar.

- Abram-no - disse Sadrinho.

Estes estremeceram, mas os outros guardas tiraram os bastões dos

cintos. Bateram então na campa do caixão, até que esta caiu e tilintou sobre a

mesa. Um ar fétido espalhou-se para fora do caixão e os guardas cambalearam

para trás, com as mãos sobre os rostos, tossindo.

Gonsção tapou o nariz com a manga do hábito e espreitou para

dentro do caixão. O cadáver barbudo estava nu com exceção de um tecido de

algodão manchado, colocado sobre as coxas. A pele estava cinzenta e o

abdómen ligeiramente distendido devido ao inchaço. As iniciais M.M. tinham

também sido gravadas na pele do peito do feiticeiro, provavelmente pelo monge

que fez o exame final. A carne de um pulso tinha sido comida por algum rato

oportunista.

- Morte fingida dissestes vós, Irmão?

- Sim - disse o Irmão Andrew. - Notável, não é? Gonsção afastou-se

e apontou para o cadáver.

- Nesse caso, de qualquer modo, acordai-o ou mostrai-nos a

magnitude da vossa loucura.

O Irmão Andrew retirou da manga um pedaço de pergaminho

enrolado e abriu-o cuidadosamente.

- Se começardes com as orações, padre Estêvão - disse ele,

curvando-se sobre um lado do caixão. O velho monge rolou os olhos para o

céu e benzeu-se. Suavemente começou a entoar a ave-maria.

De uma bolsa pendurada na cintura, o Irmão Andrew retirou um

pequeno frasco opalescente e puxou pela rolha de cortiça.

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- Não! - gritou o jovem inglês. Atirou-se contra o monge escocês,

mas foi detido pelo guarda da sua cela.

O Irmão Andrew murmurou-lhe algo. Sadrinho ergueu as

sobrancelhas e aproximou-se do jovem.

- Reconheceis o frasco, não é? - disse em latim. O louro inglês olhou

para o chão e não falou. - Por favor continuai, Irmão Andrew - disse Sadrinho.

O padre Stevens estava agora no Pai Nosso, enquanto o monge

escocês destapava o frasco e deitava um fino pó acastanhado sobre a boca de

Cartago. O pó borbulhou e liquefez-se, tornando-se de um carmesim profundo

enquanto penetrava entre os lábios cinzentos.

Já ouvi dizer que o sangue dos santos mártires por vezes se torna

líquido em dias de festas ou ocasiões de grande importância, pensou Gonsção.

Será isto um tal milagre? Ou é o sangue de uma besta mítica, como diz

Timóteo e nós estamos a cometer um crime hediondo.

O Irmão Andrew voltou a tapar o frasco e colocou-o de novo na

bolsa do cinto. Um longo minuto decorreu, enquanto todos olhavam para o

homem do caixão.

- Então? - disse Sadrinho.

- Talvez, por ele ter estado tanto tempo em torpor, agora o pó seja

lento a fazer efeito.

Gonsção suspirou aborrecido e afastou-se.

Então ouviu um baque atrás de si. O que se passa agora? Apesar de

tudo voltou-se para ver. O caixão saltava violentamente na mesa, sem que

ninguém lhe tocasse. Deus de misericórdia, será que... O caixão abanou uma

vez mais. O Irmão Andrew disse:

- Estais vendo? Finalmente ele acorda do seu sono de paz.

- Que Deus nos ajude - murmurou o padre Stevens horrorizado e

benzeu-se de novo.

O jovem inglês escondeu a face nas mãos. O pálido secretário

parecia pronto a enfiar-se debaixo da mesa. Os guardas que tinham trazido o

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caixão, deram um passo para trás, com os bastões prontos a agir. Com o

coração a bater, Gonsção avançou até ao caixão e olhou para dentro.

O corpo cinzento estremeceu. Os olhos abriram-se.

- Ergue-te, tu, lázaro malcheiroso! - declarou o Irmão Andrew. - Em

nome do Todo-Poderoso, levanta-te e enfrenta o mundo com o resto de nós,

almas sofredoras.

Os braços tremiam-lhe como um homem com paralisia, mas o

feiticeiro ergueu-se e segurou ambos os lados do caixão. O pulso mordido

vertia sangue negro, mas a pele estava a crescer sobre a ferida. Gonsção de

novo cobriu o rosto com a manga.

Sangue em pó que traz os mortos à vida, tal como Timóteo tinha

dito. O sangue de um monstro. O que é que nós fizemos? Arrancamos nós

uma alma atormentada das profundezas do inferno?

Lentamente, o homem que estivera morto ergueu-se para uma

posição sentada. A cabeça balançava sobre o pescoço e os músculos sofreram

espasmos incontroláveis. O seu olhar terrível abrangeu a sala e todos os que lá

se encontravam, os olhos vermelhos ensangüentados brilhando com horror e

acusação. Então fixou o olhar sobre Sadrinho e abriu a boca, revelando uma

massa negra de carne podre. A queixada moveu-se para falar, mas, em vez

disso, emitiu um rugido alto e estrangulado.

- Então - murmurou o inquisidor -, é verdade. - E sorriu. Isto foi de

mais para o secretário, que fugiu da sala lamuriando orações.

Cartago rodou a cabeça para enfrentar o Irmão Andrew e rosnou

algo obscuro e incompreensível. Se ele proferir pragas, eu fico cheio de medo,

pensou Gonsção.

O Irmão Andrew empalideceu, mas disse:

- São estes os agradecimentos que eu mereço, senhor, por vos

despertar de um torpor malévolo?

Cartago não falou, mas o seu olhar maligno foi eloqüente.

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- Sabeis onde estais, senhor Cartago? - perguntou Gonsção tão

energicamente quanto pôde. - Esta é a Santa Casa. A blasfêmia e a feitiçaria

não serão aqui toleradas. Seja qual for o pesadelo de onde viestes, nesta Santa

Casa tereis de vos comportar de maneira correta.

Cartago voltou a olhar para Gonsção. Acenou uma vez, sagazmente,

e Gonsção sentiu-se gelar até ao coração. Com a mão a tremer, retirou o

rosário do cinto e ergueu o crucifixo à sua frente.

O feiticeiro ressuscitado fez um sorriso demoníaco e emitiu uma

gargalhada semelhante a um grunhido.

- Eu não seria tão temerário, senhor Cartago - disse Sadrinho. -

Pois o vosso companheiro de viagem - e indicou o jovem inglês - entregou-nos

isto. - E mostrou o pequeno rolo de pergaminho. Cartago voltou a cabeça para

olhar furiosamente para o jovem inglês.

Em latim, o jovem disse:

- Não, Magister, eu não lho dei. Eles procuraram nas minhas

roupas e acharam-no. Eu não lhes disse nada. - Talvez compreendendo a

indiscrição das suas palavras, o senhor Chinnery fechou a boca e os olhos e

desviou o rosto.

O Irmão Andrew engoliu o fôlego e fez estalar a língua. Sadrinho

ignorou o desabafo do inglês e estendeu a mão para o Irmão Andrew.

- Dai-me o frasco. - O Irmão Andrew hesitou e os guardas

aproximaram-se dele. Com um suspiro, tirou o frasco da bolsa uma vez mais e

deu-o ao inquisidor.

- Já não resta muito. - Do caixão veio um outro rugido e Cartago

balançou um braço cinzento e delgado em direção ao inquisidor. Sadrinho

saiu habilmente do alcance do feiticeiro. Mas Cartago tinha-se inclinado de

mais e ele e o caixão tombaram da mesa para o chão.

- Pobre homem - disse Sadrinho. - Ele não deve estar ainda...

completamente acordado. Um de vós, leve-o para uma cela onde possa

descansar antes de o interrogarmos.

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Os rostos dos guardas ficaram pálidos.

- Por favor, não, Domine.

- Se precisais de descansar também, há muitas celas vazias e

disponíveis.

Gonsção sabia que devia interferir - não era conveniente ameaçar os

servos da Santa Casa de tal maneira. Mas também estava ansioso por ver ser

removido da sua vista o terrível feiticeiro ressuscitado.

Através de gestos, os guardas determinaram qual deles assumiria o

horrendo dever. O infeliz escolhido ergueu o caixão de novo para cima da mesa

e levantou nos braços o feiticeiro, fazendo um esgar de asco. Cartago agitou os

braços e as pernas e tentou bater no guarda com os punhos. Mas os músculos

ainda pareciam não lhe obedecer à vontade e a força estava claramente a

faltar-lhe. Os seus músculos eram fracos e a maioria falhava o alvo.

- Tratai-o com gentileza - disse Sadrinho. - A sua alma é preciosa

para nós, tendo sido recuperada a tanto custo. Não queremos que ele durma

de novo profundamente tão cedo.

- Sim, Domine - rosnou o infeliz guarda, partindo rapidamente com

o seu fardo horripilante.

Toda a gente no salão suspirou de alívio assim que o feiticeiro foi

levado. Gonsção baixou o crucifixo. Meu Deus, perdoai-nos.

- O ar já cheira melhor - murmurou Sadrinho.

O jovem inglês tossiu e começou a ficar com vontade de vomitar.

- Levai o senhor Chinnery de volta à sua cela, por favor disse

Sadrinho para o guarda da cela, que pareceu muito feliz por lhe obedecer.

- Esperai - disse o Irmão Andrew. - Vós concordastes que ele nos

seria entregue, se eu acordasse o vosso feiticeiro.

Gonsção ficou maravilhado com a máscara de compaixão que

surgiu no rosto do inquisidor.

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- Mas claramente - disse Sadrinho - deveis ver que o jovem está

demasiado doente para viajar. Ele tem de recuperar primeiro. E as

formalidades próprias devem ser escritas e assinadas. - Sadrinho acenou para

o guarda da cela, que levou o inglês para fora da sala.

- Esperava que fôsseis um homem de palavra, Domine disse o padre

Stevens.

- Já a quebrei? - disse Sadrinho. - Tenho toda a esperança de que o

senhor Chinnery deixe em breve a Santa Casa. Asseguro-vos que sereis

informado quando ele o fizer. Agora devo pedir-vos para abandonar este local,

padre Estêvão. Já quebramos várias determinações ao permitir a vossa visita,

mas dadas as circunstâncias extraordinárias, eu não vou cobrar isso de vós.

- Muito bem - resmungou o padre Stevens. - Ficaremos à espera.

Vamos, Irmão - disse ele para o monge escocês.

- Não - disse Gonsção. - Tenho de pedir ao Irmão Andrew que fique

conosco um pouco mais. Afinal de contas, pode ser que tenhamos acabado de

assistir a um milagre e nós devemos tomar tanto conhecimento quanto

possível sobre o caso. O grande inquisidor Albrecht, em Lisboa, gostaria sem

dúvida de saber disto. Por outro lado, se foi feitiçaria o Irmão Andrew devia

estar preocupado com o estado da sua alma. Para seu próprio bem, ele deve

ficar e discutir esta espantosa ocorrência conosco, posteriormente.

Sadrinho acenou para Gonsção, com um toque de admiração no

olhar.

- Exatamente os meus pensamentos, padre. Há muito neste

mistério a ser explorado. Por favor, ficai, Irmão Andrew. Estou ansioso para

ouvir tudo sobre esta espantosa relíquia que nos trouxestes.

- Mas digo-vos, não houve milagre nenhum, nem feitiçaria a atuar

aqui - protestou o irmão Andrew -, somente um truque hindu que eu fui capaz

de frustrar com orações e uma pitada de pó.

- Oh, eu gosto de ouvir falar dos truques hindus - disse Sadrinho.

- Talvez possais ensinar-nos o que fazer, para não voltarmos a ser

enganados. Bom dia, padre Estêvão.

Page 176: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

O velho jesuíta suspirou e deu ao inquisidor um aceno seco. Para o

monge escocês disse:

- Que o bom Deus vos conserve e vos proteja... - E partiu com fadiga

no andar.

Mal o padre Stevens saiu a porta, Gonsção voltou-se para o monge

escocês.

- Por favor, sentai-vos conosco, Irmão Andrew. Dizei-nos

exatamente onde arranjastes esta relíquia. O sangue de Santa Margarita,

dizeis vós? Ela deve ter sido uma mártir de obra rara.

O Irmão Andrew nem falou. Sadrinho abanou a cabeça.

- Padre, vós estais demasiado impaciente. Esquecestes como os

homens são levados a falar a verdade.

- Seguramente que não me ides pôr sobre interrogatório? disse o

Irmão Andrew.

- O estado da vossa alma é preocupação da vossa ordem, Irmão.

Nós temos o dever de a informar de qualquer transgressão que observemos.

Compete ao vosso superior dar-vos a penitência que for requerida. Mas tenho

a certeza que isso não será necessário e que as vossas respostas a umas

quantas questões nos devem satisfazer. Notei, por exemplo que o senhor

Cartago parecia reconhecer-vos. Conhecei-lo?

- Eu... era passageiro no navio inglês que o capturou.

- Os hereges ingleses permitem a um jesuíta viajar com eles?

- Nem todos os ingleses são preconceituosos e o meu dinheiro para

a passagem foi considerado tão bom como o de qualquer outro homem.

- Compreendo - disse Gonsção. - E o senhor Chinnery parecia

reconhecer-vos também. Ele também estava no barco?

- Estava, padre. O jovem inglês é um ervanário e um curandeiro.

Naturalmente que o nosso trabalho por vezes se sobrepunha.

Page 177: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Ah! Mas o cumprimento que ele vos fez agora mesmo, não foi o

que eu chamaria amigável.

- Não. Nós... tivemos uma discussão antes de nos separarmos.

- Hum. Há sobreposição entre o trabalho dos ervanários e o dos

bruxos. Alguma vez vistes tal feitiçaria executada pelo senhor Chinnery?

- Não, nunca.

- Notei que o senhor Cartago reconheceu o frasco do pó miraculoso.

Ele deve tê-lo visto antes, não?

- De fato eu tinha-lo mostrado.

- E ao senhor Chinnery também?

- Sim, é claro.

- Com certeza. E dir-se-ia que o senhor Chinnery sabia a

importância do seu conteúdo, dada a sua reação quando vós o exibistes aqui.

Alguma vez lhe emprestastes o pó para... acordar faquires?

- Ele usou-o uma vez, para fazer um camareiro sair do torpor.

- Devo compreender - disse Gonsção - que um herege inglês confiou

numa relíquia papista? Ouvi dizer que alguns preferiram morrer a fazer tal

coisa.

O monge escocês encolheu os ombros.

- Ele conhecia a sua eficácia e curar, para ele, era de uma

importância primordial.

- Mais importante que a sua alma?

- Certamente - disse Andrew com um sorriso ansioso -, as orações

ditas com a aplicação do pó, protegiam-lhe a alma do mal.

- Sabeis uma coisa - disse Gonsção -, há certas pessoas que se

auto-intitulam de feiticeiros brancos e que afirmam que a oração é a parte

mais importante da sua feitiçaria. Eu acho isto mais hediondo do que a Arte

Negra, pois estas pessoas seriam capazes de utilizar os anjos como escravos

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para ficarem às suas ordens. Eu não acredito, Irmão, que a oração seja

suficiente para salvar a alma de um homem, se ele a acompanhar com ações

infames. Autorizastes o senhor Cartago a usar o pó?

- Não!

- Mas ele sabia o que aquilo era.

- Nós tínhamos ouvido dizer que ele era um alquimista e o senhor

Chinnery estava com falta de remédios. Então discutimos com ele o que

possuíamos e se ele tinha conhecimentos ou provisões para nos ajudar.

- Confiastes no conhecimento de um feiticeiro?

- Não tínhamos provas de que ele fosse um feiticeiro, nem ele nunca

afirmou sê-lo. E até os homens maus podem dar informações úteis.

Gonsção suspirou e deu alguns passos em direção à cruz gigantesca

pendurada na parede.

- Na verdade gostaríamos de acreditar em vós, Irmão. Mas ouvimos

dizer que alguém a bordo do vosso barco traiu Cartago e o senhor Chinnery e

os entregou aos piratas que os trouxeram aqui para Goa. Tanto quanto sei,

esse Judas podia ter sido vós. E nesse caso nada do que vós dizeis pode ser

acreditado.

- Se eu tivesse desejado livrar-me dele - rosnou o Irmão Andrew -,

porque teria eu vindo aqui em sua ajuda?

- Isso é uma pergunta interessante. Não, não. - Gonsção ergueu a

mão. - Não faleis mais agora. Cometem-se erros, quando o homem fala com

pressa. Mas, vede. Há demasiadas peças a faltar neste puzzle e isso preocupa-

me.

- Sim - disse Sadrinho -, talvez devêsseis ficar conosco, até que o

jovem inglês se encontre bem. Estando aqui, podeis dar-lhe conselhos. Talvez

vos seja possível inculcar nele a idéia do perigo em que a sua alma se pode

encontrar. É claro que ser-vos-á permitido partir, logo que tenhamos uma

explicação mais completa e sensata. De particular interesse para mim, é a

origem desta maravilhosa relíquia. Nenhuma Santa Margarita de que eu tenha

ouvido falar, é descrita como tendo derramado sangue que cura. Deve ser a

Page 179: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

vossa memória que temporariamente vos falhou. Dar-vos-emos tempo para

pensar e rezar, Irmão, até poderdes dar uma resposta mais razoável.

- Não me farão mal?

- Certamente que um irmão em Cristo não nos dará causa para lhe

fazermos mal. - Sadrinho acenou para o guarda que tinha ficado.

- Por aqui, por favor, Irmão - disse o guarda. - Temos um quarto

agradável disponível para vós, na nossa ala residencial.

Os punhos abriram-se e cerraram-se mas o monge escocês

finalmente cedeu.

- Até mais tarde, então, Domine, padre. - E permitiu que o levassem

da sala.

- E que Deus vos acompanhe também, Irmão - disse Gonsção,

embora o Irmão Andrew já não o pudesse ouvir.

Sadrinho baixou os olhos para o frasco opalescente na sua mão e

tocou-lhe quase amorosamente.

- Devo agradecer-vos, padre. Fizestes mais pela nossa investigação

do que alguma vez esperei.

- Far-me-eis então o favor de me confiar o que sabeis, para que eu

possa compreender melhor o que vos trouxe? disse Gonsção.

- Na verdade, vós ganhastes esse direito. Sabeis, quando chegastes

ao princípio, eu estava inseguro em relação a vós, padre. Não tinha a certeza

de estarmos... a perseguir os mesmos objetivos. Agora, dir-se-ia que quaisquer

que fossem as nossas intenções originais, as nossas flechas voam para o

mesmo alvo. Vinde ao meu escritório depois das vésperas, amanhã. Todo o

conhecimento que eu tenho será vosso também.

- Porque esperar tanto? Não podeis dizer-mo agora?

- Há algumas idéias que eu devo pôr em ordem, de forma a que vos

possa apresentá-las como um todo coerente. Mas ides ouvir tudo. Prometo-

vos. - Sorrindo como uma criança com um brinquedo há muito desejado,

Sadrinho levou o frasco ao peito e saiu da sala.

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- O que fizestes? - Veio um sussurro alto por detrás de Gonsção.

Este voltou-se. O inquisidor Pinto, que tinha estado num canto afastado da

sala, tão silencioso que Gonsção se tinha esquecido da sua presença,

aproximou-se, com as bainhas do seu hábito negro a varrer o chão. Veio direto

a Gonsção, com uma expressão fechada no seu rosto pequeno e bonito.

- Isso é que espero vir eu próprio a saber, Domine.

- Não vedes? Pensava que tínheis vindo a Goa para levar de volta

esta Santa Casa aos seus verdadeiros deveres e preocupações. Este... Pulvis

mimbile tem sido uma obsessão para Sadrinho, desde que soube da sua

existência. Não tem pensado praticamente em mais nada e agora vós trazeis-

lhe para dentro das nossas próprias paredes, a mesma coisa que eu tanto

tenho rezado para ele abandonar. Não haverá fim para isto, agora. Estamos

arruinados. Que Deus tenha piedade de nós.

- Perdoai-me - começou Gonsção a dizer, mas percebeu que estava

a falar para as costas do inquisidor Pinto que se afastara entretanto.

Gonsção sentiu os ombros a vergarem-se e não sabia se era do peso

da responsabilidade ou do cansaço. Sendo o último a abandonar a grande

Sala de Audiências, Gonsção fechou as portas atrás de si e permaneceu algum

tempo no vestíbulo.

Deu por si a olhar para a parede, na qual estava pendurado o

emblema da Ordem Dominicana. Representava São Domingos segurando um

ramo de oliveira numa mão e uma espada na outra. Por baixo do santo estava

um cão, com uma marca de queimadura na boca e um globo sobre o qual

estava uma cruz. Numa bandeira sobre a cabeça do santo, estavam escritas as

palavras ”Justitia et Misericórdia”.

Tinha sido São Domingos quem, quando soldado, dissera:

- Matem-nos todos. Deus saberá quem são os seus. - Meu Deus,

pensou Gonsção, quem dera que vós pudésseis atribuir-nos esse mesmo

poder, saber quem são os nossos e os que não são, enquanto ainda estão

vivos.

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Capítulo XVII

AZEVINHO: Este arbusto está sempre verde e dá folhas com

espinhos. No princípio do Verão dá flores brancas que, no Outono, se

transformam em bagas vermelhas. Deve tomar-se cuidado no seu uso

porque as bagas são venenosas para as crianças. Diz-se que a cruz de

Cristo foi talhada de madeira de azevinho e como penitência o azevinho

nunca mais ficou um arbusto alto. Também se pensa que a coroa de

espinhos foi feita de azevinho e que as bagas, que antigamente eram

amarelas, se tornaram vermelhas com o sangue de Nosso Senhor. Os

Galeses acreditam que levar azevinho para casa na véspera de Natal,

convida a discussões. Levá-lo para casa de um amigo é levar a morte.

Da mesma forma, é perigoso apanhar azevinho que esteja a florir e pisar

as suas bagas traz má sorte...

Thomas estava sentado balouçando-se no catre da sua cela, com o

queixo nos joelhos e os pensamentos tão caóticos como uma nuvem de

mosquitos. Por que razão é que eu falei, quando Cartago olhou para mim?

Certamente que me condenei. Por que razão apareceu Lockheart disfarçado de

monge, para desafiar a Santa Casa e trazer o alquimista de regresso à vida?

Teria ele acreditado, de fato, que isso me libertaria? Estou rodeado por loucos,

juiz e salvador igualmente. Que Deus permita que eu retenha alguma

aparência do meu próprio senso comum. Vou necessitar de todo o que tenho,

para resistir e escapar deste lugar.

As portas da cela bateram e o seu já familiar guarda entrou. Atrás

dele surgiu Timóteo, transportando um grande rolo de pergaminho atado com

uma fita vermelha.

- Boa noite, Irmãozinho - disse Thomas. - Agradeço-vos pela ajuda

que tentastes dar no meu julgamento. Foi uma pena terdes de sair tão cedo.

Perdestes um espetáculo verdadeiramente extraordinário.

O Irmão Timóteo não o olhou nos olhos e o seu rosto era muito

grave.

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- Assim me disseram, senhor - e pôs o pergaminho enrolado no leito

ao lado de Thomas.

- O que é isto que me trazeis?

- Trago o único conselho permissível a alguém que esteja no vosso

lugar, senhor. Deveis perscrutar a vossa alma, examinar os vossos pecados e

pedir perdão a Deus. Este documento é uma declaração de confissão, senhor.

Domine Sadrinho diz que se vós assinardes isto, abrirá caminho para a vossa

libertação. Ele crê que fostes desviado do bom caminho por outros e sabe que

podeis ser perdoado.

Thomas recuou afastando-se do pergaminho, como se ele fosse fogo.

- Pensava que estavam a ser feitas diligências para me libertarem e

me deixarem ao cuidado do padre Stevens.

Timóteo suspirou.

- Sereis libertado, senhor. Mas é o dever da Santa Casa cuidar da

vossa alma. Se nós vos deixássemos ir embora sem vos dar a hipótese da

confissão, seria como se vos estivéssemos a mandar para o Inferno.

Ah. Eu ainda sou um herege e não me é permitido partir assim.

- Que pecados é que este documento... me permite confessar?

O rapaz lançou um olhar fugidio ao guarda que estava a examinar

as unhas indolentemente.

- Heresia, senhor. E feitiçaria. Não sei que mais.

E eu tinha pensado que a minha alma estava em perigo agora.

Confessar heresia seria renunciar à fé em que tinha nascido e sido batizado.

Renunciar a isso! No Livro dos Mártires de Fox, Thomas tinha lido sobre muita

gente que morreu em tormento durante o reinado sangrento de Mary Stuart,

porque preferiram a morte a tornarem-se apóstatas.

Terei eu tanta coragem quanto eles? Quando estou tão perto de

escapar desta loucura?

Page 183: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Certamente - disse ele para Timóteo - que não sabeis o que pedis.

Com os olhos tristes, o rapaz disse:

- Não sou eu quem pede, mas se fosse o meu dever, eu pediria. Não

quero que a vossa alma seja reclamada pelo Danado.

O rapaz acredita piamente no que a Inquisição ensina.

- Isto é difícil de explicar, Irmãozinho, mas de acordo com a minha

fé, ao darem-me isto para assinar é precisamente o que pode acontecer.

Timóteo abanou a cabeça.

- Isso não pode ser verdade. A vossa igreja herege mentiu-vos.

Ou a tua a ti. Controlando a fúria, Thomas disse:

- Penso que não.

- Deus vê a verdade - disse Timóteo -, e Domine Sadrinho e todos os

inquisidores são inspirados por Deus.

Se é assim, que o Céu nos ajude, pensou Thomas. Não tinha mais

argumentos para oferecer, perante a fé inabalável do rapaz.

- O que fará o Domine inquisidor se eu assinar? O rapaz apertou os

lábios.

- Não sei exatamente, senhor. Os que se confessam e são

absolvidos, normalmente permanecem como convidados da Santa Casa até ao

próximo auto-de-fé. Nessa altura a sentença é dada e são libertados para o

mundo, para esperar a justiça do governador.

- Compreendo. Quando é o próximo auto-de-fé?

- Não posso dizer, senhor.

- Quando foi o último?

- Antes do Natal, no ano passado.

- E o outro antes desse?

- Não me lembro, senhor.

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- Então eu poderia ficar aqui durante anos. Que piedoso. O Irmão

Timóteo parecia prestes a chorar.

- Por favor, senhor. Outros encontraram paz aqui e alegria no

perdão de Deus. O que são anos neste mundo cheio de pecado, comparados

com a eternidade no céu?

Este rapaz vai dar um padre excelente um dia. Infelizmente.

- Antes de eu assinar, podeis dizer-me o que pode ter acontecido ao

outro jesuíta que estava no meu julgamento, o Irmão Andrew?

O guarda da porta virou-se e aclarou a garganta sonoramente.

- Não vos deveis preocupar com os outros, senhor. Pelo menos,

enquanto a vossa própria alma estiver em tal perigo.

- Compreendo. E se eu não assinar a confissão? O Irmão Timóteo

olhou para o chão.

- Então que Deus tenha misericórdia da vossa alma.

- Quereis dizer que serei morto?

O rapaz levantou de novo os olhos, chocado.

- A Santa Casa não mata!

- Não há tortura? Nenhum dos vossos hóspedes morreu às mãos

dos inquisidores?

Timóteo desviou de novo a vista.

- Os Domines fazem tudo o que podem para compelirem os

hóspedes da Santa Casa a verem a verdade.

- E se os hóspedes não conseguirem agüentar essa compulsão?

Timóteo apanhou o rolo de pergaminho e arremessou-o ao peito de

Thomas.

- Por favor, pelo amor de Deus, assine, senhor! Thomas sentiu o

coração a apertar-se-lhe. Podia assinar apenas para aliviar a terna dor que viu

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na face do rapaz. Seja lá qual for o demônio que te inspira, Irmãozinho, tem

um poder mais aterrador que o próprio Satanás.

- Eu... vou pensar nisso. Por favor, preciso de tempo. Timóteo

suspirou e fez girar o documento enrolado nas suas mãos de um modo

desajeitado, antes de o voltar a colocar sobre o catre.

- Como quiserdes, senhor. Deixá-lo-ei convosco, para o caso de

Deus vos abençoar com uma mudança de coração. Voltou-se e caminhou até

ao guarda da porta. Este grunhiu uma pergunta e Timóteo abanou a cabeça.

O guarda olhou para Thomas e também abanou a cabeça, fazendo estalar a

língua, como se Thomas fosse uma criança.

O guarda e Timóteo partiram e o fechar da porta soou de um modo

invulgarmente alto, no silêncio que se seguiu.

Thomas olhou para o pergaminho e perguntou a si próprio, se

ousaria desatar a fita e lê-lo. Ou se devia simplesmente rasgá-lo. Notou algo

escuro e pontiagudo a sair de entre o pergaminho e a coberta de cama. Com

um cuidado supersticioso, a fim de não tocar no documento, Thomas deu um

puxão neste novo objeto. Era uma folha verde-amarelada, longa e estreita,

como a da planta de pimenta. Cheirou-a.

É a isto que chamam betei? Tinha ouvido dizer que era usado pelos

muçulmanos para prevenir o escorbuto. Também diziam que era ligeiramente

narcótico e que aliviava a dor. Por que razão o Irmãozinho me deu isto? Será

um aviso daquilo que está para vir?

De novo as vozes e os passos se aproximaram da cela. Thomas

enfiou a folha dentro da boca, saboreando uma aguda explosão de azedume.

As portas da cela abriram-se uma vez mais e o inquisidor Sadrinho

entrou.

- Que Deus vos dê uma boa noite, senhor - disse com um agradável

sorriso.

- Espero que sim - disse Thomas. - Viestes para me libertar? O

sorriso do inquisidor descaiu apenas ligeiramente.

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- Ainda não, senhor. Fui informado que não estáveis ainda pronto.

Tínhamos a esperança de que abriríeis a alma para o perdão de Deus. Bem,

estas coisas podem levar tempo. Pensei que talvez um passeio servisse para

vos aclarar o espírito. Achamos que o exercício é muitas vezes útil para os

nossos hóspedes. Dar-me-eis o prazer da vossa companhia?

Thomas deteve-se, espantado.

- É-me dada a escolha? Sadrinho encolheu os ombros.

- Podeis ficar aqui em contemplação solitária, se preferirdes. Isto é

mais uma loucura? Estará ele a planear persuadir-me a assinar a ”confissão”?

A oferta do betei sugere uma possibilidade mais terrível. Mas se eu recusar,

ele volta novamente mais tarde.

- Muito bem. Irei.

- Bom - Sadrinho fez sinal ao guarda. Thomas levantou-se e o

guarda veio até ele e desatou-lhe os pulsos. Por um momento, Thomas teve a

esperança de que finalmente teria as mãos livres. Mas o guarda fê-lo girar

sobre si e voltou a atar-lhe os pulsos atrás das costas.

- Uma mera precaução - disse Sadrinho. - E tereis de ser outra vez

vendado.

- É necessário? Já me tendes atado. Para que precisais de me

vendar também?

- Esqueceis, senhor, que o nosso objetivo é purificar a vossa alma.

Há muita coisa que podíeis ver que vos distrairia desse fim. Não tenho desejo

nenhum de ver o nosso trabalho desfeito tão depressa. Por isso, a venda.

Assim que ele disse esta palavra o trapo negro foi colocado nos

olhos de Thomas e atado atrás da sua cabeça. O guarda deu-lhe um toque nas

costas e Thomas andou para a frente, para fora da cela.

- Posso perguntar - disse ele - se o Irmão Andrew ainda aqui está e

se é prisioneiro como eu?

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Thomas sentiu uma leve pancada mordente no ombro.

- Shhh - sussurrou o guarda. O inquisidor disse:

- Não deveis falar fora do vosso quarto, a menos que eu o peça. Não

devemos distrair os outros da contemplação dos seus pecados.

Mais loucura, pensou Thomas.

Era necessário alguma concentração para caminhar atado e cego,

mesmo guiado pela mão pesada do guarda. Todavia, pelo eco dos passos,

Thomas calculou que seguiam ao longo de um corredor que tinha um espaço

aberto à direita, talvez um pátio. Estavam acima do nível do chão, porque

havia sons que ecoavam vindos de baixo.

À esquerda um homem gritou, implorando em português:

- Jesu pau! Jesu pau! - O guarda afastou-se de Thomas e este ouviu

o raspar de metal sobre metal, enquanto uma porta de cela se abria. Depois

veio o som de uma série de pancadas revoltantes, acompanhadas por gritos de

”Silêncio!” seguidos por gemidos de dor.

Thomas só podia manter-se de pé e esperar, impotente, durante o

espancamento. Mordeu com força a folha de betei guardada na bochecha e

chupou com força o sumo adstringente, esperando que o seu efeito lhe

distraísse a mente.

- Esta é a ala dos homens - disse o inquisidor calmamente, como se

nada de extraordinário se estivesse a passar. - A ala das mulheres é lá em

baixo.

E que indignidades é que sofrem as vossas hóspedes femininas?,

pensou Thomas, embora não dissesse nada. Logo depois a porta da cela

fechou-se com uma pancada e Thomas sentiu um outro empurrão nas costas.

Estarei agora manchado com o sangue daquele pobre homem?

Enquanto caminhavam, Thomas não foi capaz de dar conta das

voltas que davam de um corredor para o outro e em breve se sentiu perdido.

De vez em quando, o inquisidor dava alguma informação irrelevante, tal como:

”Aqui é onde recebemos os pedidos das famílias dos nossos hóspedes” ou

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”Aqui era outrora o palácio do sultão de Goa; aqui era a zenana onde ele

mantinha o seu harém”.

Passaram por uma sala que cheirava a pão acabado de cozer,

cebolas e especiarias e Thomas ouviu o tilintar de tachos e chaleiras. Alguns

passos mais além, Sadrinho disse:

- Há escadas que descem aqui. Continuai, mas tomai cuidado com

os pés.

Thomas tateou o chão com o pé direito e desceu desajeitadamente.

Tateou depois com o pé esquerdo, para tomar a medida do próximo passo

antes de tentar dá-lo. As escadas tinham uma depressão no centro, dando a

perceber que muitos pés tinham passado por ali. Os degraus pareciam ser de

altura aproximadamente igual, por isso Thomas continuou a descer com mais

confiança.

Quando atingiu o final dos degraus, o inquisidor disse:

- Parai - e passou por ele impetuosamente. - Agora honrar-vos-

emos, senhor, com uma visão que poucos dos nossos hóspedes tiveram a

oportunidade de ver.

Ouviu o barulho de chaves a rodar numa fechadura à sua frente e

uma porta abriu-se. Uma rajada de ar fresco e úmido trouxe consigo odores

reminiscentes do Aljouvar. Por um momento, Thomas desejou estar de volta à

fétida gruta da fortaleza do governador, na companhia de homens que se

podiam compreender. Joaquim tinha o direito disso. Teria ele sido alguma vez

hóspede aqui, gostaria eu de saber?

- Tende cuidado - disse o inquisidor. - Aqui há mais escadas. Estes

degraus eram mais estreitos e irregulares e Thomas foi forçado a aperceber-se

do caminho com precaução, encostando um ombro contra uma parede de

pedra fria e úmida. Vozes fracas e sons que mal se podiam captar com o

ouvido, fizeram-lhe arrepiar a pele e pôr os cabelos em pé. Eram os gemidos de

homens e mulheres que tinham perdido por completo o juízo e a esperança,

gemendo o seu desespero para paredes duras sem ouvidos.

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Os gemidos tornaram-se mais aparentes e os odores mais pesados,

enquanto Thomas descia e ele começou a perguntar a si próprio se a Santa

Casa teria uma entrada própria e privada para o Inferno.

Mas não há Beatrice ou Eurídice à minha espera para me tirar

daqui. Apenas o inquisidor. Não proclama ele ser um homem de Deus? Eu

diria que este reino ínfero é a sua verdadeira morada.

Os passos pararam num chão de pedra irregular. Thomas foi

voltado para a direita e guiado até uma sala que cheirava a lavagem recente

com água de cal. Uma porta fechou-se atrás dele e a venda foi-lhe tirada dos

olhos.

O inquisidor Sadrinho estava à sua frente, composto e simpático

como qualquer hospedeiro generoso.

- Esta é a nossa sala de interrogatórios. Os nossos hóspedes, nós

damo-nos conta, ficam muitas vezes curiosos acerca daqueles instrumentos

que empregamos para trazer de volta a Deus uma alma perdida. Pensei que

vós, como estrangeiro, pudésseis também estar interessado em vê-los.

Ah, aqui está o seu engodo. Thomas tinha ouvido falar do ritual de

mostrar os instrumentos. Para alguns prisioneiros, isso somente tinha

bastado para os fazer apóstatas e provocar confissões de heresia. O efeito

narcótico da folha de betei deu a Thomas alguma sensação de distância e

calma. Eu devia de ter a coragem de suportar esta dramatização.

A sala branca era iluminada apenas por finas velas, em candelabros

colocados perto dos cantos. Sombras sem forma vacilavam por detrás das

mesas e das máquinas irreconhecíveis de metal e madeira.

- Estas - disse Sadrinho com um gesto grandioso do braço -,

ajudam verdadeiramente a trazer a atenção da mente mundana. Aqui, por

exemplo, é a mesa sobre a qual nós administramos o potro - e orgulhosamente

ergueu um pote contendo uma tira de linho, explicando o seu uso. - Aqui está

o Trono da Virgem Bendita. - Apontou para uma cadeira com uma capota de

chumbo, cujo interior estava cercado de barras de ferro embotadas, que se

lançariam sobre as partes moles do corpo de quem quer que lá se sentasse.

Contra outra parede estava o infame ecúleo, sobre o qual os membros de uma

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pessoa podiam ser esticados para além do que era possível suportar. Num

canto estavam as ”Botas Espanholas”, nas quais as pernas de um homem

podiam ser esmagadas; num outro estava uma pilha de instrumentos de

tortura para os dedos e potes para pôr o azeite a ferver.

Sadrinho expunha sobre cada um deles como um padre a enumerar

todos os tesouros sagrados da catedral. Entretanto, o guarda estava a labutar

com as cordas que atavam os punhos de Thomas. Agora, aposto que me vão

atar de novo as mãos à frente e não é com boas intenções. Se as minhas mãos

estivessem livres, eu podia saltar para a frente e estrangular o inquisidor.

Ousaria eu fazê-lo? Seria morto por isso, sem dúvida, e além do mais

condenado eternamente, mas a idéia tem o seu atrativo. Thomas quase sorriu.

- E este - Sadrinho exclamou enquanto algo novo era preso com

ganchos à volta dos pulsos de Thomas - é o polé, chamado por alguns o

strappado!

Thomas foi levantado no ar, uma agonia de dor rasgando-o dos

pulsos até aos ombros. O ar saiu-lhe rapidamente dos pulmões e tornou-se-

lhe tremendamente difícil inspirar de novo. Abriu a boca, mas não pôde

encontrar ar para gritar. A língua pendia-lhe inutilmente e o rolo da folha

mastigada de betei caiu no chão.

Sadrinho levantou-se e apanhou-o; agitou-o à frente do nariz,

depois olhou para cima, para Thomas.

- Onde arranjastes isto?

Thomas estava incapaz de responder.

Bateu com as pernas e encolheu os ombros, o que lhe deu a

sensação de que estes se iriam soltar dos encaixes e atravessar-lhe a pele. O

movimento só aumentou a dor.

- Não tem importância - disse o inquisidor. - O efeito do betei

dissipar-se-á em breve e o strappado fará sentir o seu efeito completo. Deixar-

vos-ei até lá. Sugiro que, entretanto, mediteis nos vossos pecados e peçais

orientação.

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- Pelo amor de Deus, Domine! - disse Thomas ofegante. Como...

como podeis...

- Como dissestes, senhor. Por amor de Deus. - Sadrinho voltou-se e

apagou todas as velas exceto uma. Com um aceno para o guarda, partiram

ambos.

Thomas lutou contra o pânico que ameaçava inundar-lhe a mente.

Houve homens que sobreviveram a isto. Houve homens que

sobreviveram a coisas piores. Tenho de ficar calmo. Com um esforço da

vontade conseguiu acalmar os movimentos.

Meu Deus, a dor. Quando o efeito do betei desaparecer, como é que

eu vou suportá-la? Tinha visto muitos clientes virem à loja do mestre Coulter,

cada um com uma experiência diferente de dor. Alguns suportavam o que

devia ter sido uma agonia constante, com um sorriso triste. Outros gritavam

ao mais leve toque de uma lança sangrenta. Para alguns, os medicamentos

para alívio das dores eram uma bênção instantânea. Para outros, nada

resultava. Que tipo de homem sou eu?

Lembrava-se de sofrer o castigo da vara de bétula, quando criança,

às mãos do seu pai e das surras recebidas, quando andava na escola. Mas tal

dor era breve e tinha havido muito tempo para sarar depois. Thomas não

podia esperar que este tormento fosse o pior que iria sentir às mãos da

Inquisição. A menos que eu assine a danada confissão!

A corda rangeu por cima dele como a de uma âncora de um barco.

Meu Deus, até estar de volta à prisão fedorenta do Whelp. Meu Deus, se a

minha alma significa algo para ti, deixa esta corda partir-se e liberta-me. Mas

a corda permaneceu segura, enquanto ele balançava ligeiramente para trás e

para a frente, um pêndulo perdendo o impulso com o tempo.

Tentou distrair-se com pensamentos de momentos mais agradáveis.

Trouxe à mente visões de Anne Coulter, o seu rosto doce e redondo e as mãos

gentis, os olhos de avelã e o sorriso tímido. Mas estas feições foram

rapidamente substituídas pelas da senhora Aditi e por uma memória da sua

forma e perfume, enquanto ela se curvava sobre ele para lhe ajeitar o

turbante. É como se eu estivesse enfeitiçado. Oh, Anne, perdoa-me.

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Tentou esvaziar a mente completamente como diziam que os

orientais faziam, para deixar a dor tornar-se meramente uma outra

característica da sala, distante dele. Focou a atenção nos sons: o pingar da

água, os gritos débeis dos que estavam em tormento, o arranhar do que podia

ser uma ratazana junto à porta.

- Thomas? - alguém sussurrou. Involuntariamente voltou a cabeça

em direção ao som, enviando uma nova dor para os seus ombros.

- Ah... quem?

- Shhh... não estrebuches, rapaz. Isso será pior. Acalma-te.

- Andrew! - Thomas respirou, tentando manter-se calmo. - Pelo

amor de Deus, homem, cortai-me as cordas!

- Não posso fazer isso. Não escapamos daqui. Eles deixam-me ver-

te, pensando que poderei oficiar a tua alma e encorajar-te a confessar.

- Se tendes um bocado que seja de caridade cristã, então aliviai um

pouco o peso nos meus braços.

- Ah, muito bem. - Lockheart saiu das sombras e pôs os braços à

volta das pernas de Thomas, elevando-o algumas polegadas. - Mas vai doer

mais quando eu te deixar cair de novo.

- Os meus agradecimentos - suspirou Thomas, engolindo o ar,

enquanto se deixava cair contra o ombro do escocês.

- Não me deram muito tempo para falar contigo, rapaz. Mas

coragem. Há esperança.

- Há? - A doçura do ar nos pulmões distraiu Thomas e os

pensamentos não lhe vinham com clareza. - Tomastes o hábito e os votos tão a

sério que as vossas preces me vão salvar?

- Este traje é apenas um disfarce que me foi emprestado pelo padre

Stevens, para me dar entrada neste terreno círculo do Hades. De algum modo,

é apropriado para mim, mas isto é uma história para outra altura. Temos de

conceber um plano para a tua fuga. Tinha pensado que um Cartago

Page 193: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

ressuscitado seria tudo o que a Santa Casa procurava, mas apenas fiquei

perto do seu verdadeiro desejo.

- O que pode ser então?

- O pó sangrento, rapaz! Não é o feiticeiro que eles querem, mas o

seu conhecimento da fonte do sangue.

Que bizarro, que os meus interesses e os dos inquisidores possam

ser tão coincidentes.

- Mas eles têm Cartago agora. Ele pode dizer-lhes.

- Pensas que estarias nesta posição, rapaz, se ele o pudesse fazer?

Eu ouvi dizer que o pó é lento a curá-lo. A língua dele ainda está cheia de

podridão e ele não consegue falar. Não tem sensação nos membros... podem

espetá-lo e torcê-lo e nada o aflige. Ouvi dizer que pôs o melhor torturador

deles com falta de apetite.

- Uma vingança mesquinha, essa.

- Mesquinha, de fato, e a razão pela qual o inquisidor agora se dirige

para nós. Entretanto ele tem um cheiro da verdade, pois que facilmente

farejou as minhas mentiras. Mas voltando ao assunto... Cartago fez-se teu

amigo, não fez?

- Não como tal.

- Bem, então, considerou-te um companheiro de viagem, talvez. Ele

disse-te alguma coisa sobre o local onde o pó pode ser encontrado? Se sabes

algo, aí está o caminho para a tua libertação.

O mapa! Sadrinho tem-no agora. Mas Cartago teve de me dizer o

que os símbolos significavam. Então. Tenho uma carta para jogar. Mas poderei

confiar em Lockheart? Ele é bem capaz de me tirar a informação e de me

deixar aqui a apodrecer. Com um fio tão fino para pendurar as minhas

esperanças, tenho de ser astuto.

- Ele disse-te, rapaz, onde está a fonte do pó? - Lockheart abanou

as pernas de Thomas para dar ênfase. - Disse-te?

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- Ah! Ficai quieto, peço-vos. Ele... ele pode tê-lo feito. Tenho de

pensar nisso. A dor... torna difícil recordar.

Lockheart suspirou.

- Pensa bem, então. Deram-te uma confissão para assinar?

- Sim, deram-me.

- Pois assina-a. Estes homens não libertam ninguém, até terem

obtido uma confissão. Isso mantém o registro deles imaculado.

- O registro deles? - disse Thomas. - E as máculas da minha alma?

Devo dizer que costumo foder cabras no cemitério, ou beber o sangue de bebes

batizados? Quereis que eu me condene a mim próprio?

- Como o nosso bom capitão Wood poderia ter dito, melhor pecar e

viver e ter mais tempo para penitência, do que morrer para nada. Tem

coragem, rapaz. Eu próprio já enfrentei muitos perigos ao longo dos anos,

porém a morte não me terá até que eu escolha a hora.

- Não? Dizei-me, Andrew. É por isso que vós traístes o capitão e

todos nós?

Lockheart fez uma pausa.

- Talvez. Talvez fosse a morte o que eu receava. Mas não quero mal

a homem nenhum. Nem sequer a ti. Foi por isso que mandei todos a terra

naquela noite, tal como tentei mandar-te a ti. Foi um duro golpe para o meu

coração, ver-te naquele barco. Mas tentei compensar os prejuízos. Arranjei

uma disputa com um bando rival dos bandidos, quando nos aproximamos de

Goa, numa altura em que eu sabia que eles te deixariam sair do carro. Tu

escapaste como eu esperava, tal como eu próprio e a senhora. Tinha pensado

que seria o fim de tudo aquilo. Depois encontrei-me com o padre Stevens para

pedir a sua ajuda e ele disse que tu tinhas sido preso.

”Conversamos longamente. Ele suplicou-me que o ajudasse a

libertar-te. A minha vergonha dominou-me e tomei isso como mais um sinal

de que os nossos destinos estão verdadeiramente entrelaçados.

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- Um presságio - disse Thomas suavemente.

- Se tu assim o entendes. Por isso aqui estou eu, cativo do meu

dever e por conseguinte da Santa Casa. Apenas tu podes libertar-nos.

- Não podíeis ter partido sozinho com facilidade? Por causa das

vossas cenas teatrais, eu sou agora considerado feiticeiro e condenado ao

tormento, a menos que me condene a mim próprio. Foi verdadeiramente a

piedade o que vos trouxe aqui? Ou estais tão enfeitiçado pelo maravilhoso pó,

quanto o inquisidor? Ressuscitastes Cartago para o vosso próprio benefício e

agora voltais as vossas esperanças para mim? Talvez queirais que eu revele o

que sei para o vosso próprio ganho e uma vez na posse da informação, deixar-

me-eis aqui para morrer. Lockheart soltou as pernas de Thomas, deixando-o

cair. Uma dor dilacerante queimou os braços de Thomas, os ombros estalaram

e os pulmões perderam o ar.

- Como te atreves, rapaz! - Lockheart gritou, na voz mais áspera que

Thomas já tinha ouvido. As suas sombras eram monstruosas contra a parede

pálida. - Não fazes um raio de uma idéia do que é que eu quero! Foste tu quem

veio atrás de mim naquele barco, arrastando toda a tapeçaria dos Fados

contigo, como se estivesses atado aos seus fios urdidos e Hécate fosse o teu

mestre de fantoches! Quanto a tirar-te os segredos e a deixar-te aqui, digo-te:

nem eu, nem o que me mandou na nossa amaldiçoada viagem, acreditamos

que este deva ser o tempo e o lugar para tu morreres.

Lockheart voltou-se e caminhou para a porta da câmara.

- Enviaram-vos - arfou Thomas através da sua agonia. Quem... vos

enviou? Andrew?

Mas a porta fechou-se batendo, deixando apenas um eco como

resposta.

Capítulo XVIII

BÉTULA: Esta árvore tem folhas brancas, casca papirácea e folhas

em forma de seta. No Verão dá amentos verdes. O seu nome talvez

Page 196: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

venha do latim ”bater”, já que as varas da bétula foram usadas muitas

vezes para castigar. Diz-se que nosso Senhor Jesus Cristo foi açoitado

com varas de bétula. Um molho de varas de bétula era o símbolo do

poderio romano e do direito que eles tinham de castigar com a

flagelação. Os ramos de bétula também eram usados para expulsar os

espíritos malignos da terra de alguém, ou para tirar os demônios do

corpo dos lunáticos.

Também se diz que as bruxas fazem os paus das suas vassouras de

bétula; contudo há quem diga que estes podem varrer para longe as

bruxas...

A cabra a seu lado balia de aborrecimento, enquanto Aditi a

conduzia em direção ao templo.

- Paz, minha tola - disse ela. - Vais ver o paraíso em breve e talvez

uma vida melhor. - Uma vez Mahadevi tinha-lhe dito que a cabra era o seu

animal favorito para receber em sacrifício. Puxando pela besta malcheirosa,

Aditi não conseguia imaginar porquê. Mas ela estava agradecida por a família

dos maratas que a sustentava generosamente, lhe ter dado uma, em troca de

preces à deusa.

O templo a Mahadevi era pequeno e ficava nos subúrbios de Goa,

junto ao rio Mandovi. Até então, tinha sido ignorado pelos Jesuítas zelosos ou

pelos Mongóis. A cúpula era simples e pintada de branco, não era doirada. As

esculturas de mulheres nos pilares e na arquitrave eram modestas.

Encontrava-se lá pouca gente para puja, naquela tarde. Contudo,

Aditi conservava o orhni puxado para baixo, sobre o rosto. Entregou a corda

de prender a cabra a um brâmane no portão lateral do templo. Sendo membro

da casta Konti, Aditi podia ter executado ela própria o sacrifício, mas uma tal

exibição de riqueza e devoção podia trazer-lhe atenção indevida. Também lhe

repugnava fazer mal aos animais. Suspirou, enquanto a cabra era levada,

balindo, para trás do portão.

Page 197: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Os meus pêsames, minha tola. Tem de ser. Ahimsa era todo bem e

bondade mas Mahadevi tinha fome e precisava de ser alimentada, para poder

dar à luz o Seu dom da vida.

Aditi também tinha dado ao sacerdote uma tira de folhas de

palmeira, na qual inscrevera uma mensagem para Mahadevi. Com a ajuda de

um mensageiro do templo, ela tinha mais hipóteses de a sua mensagem ser

recebida, do que muitos suplicantes. Também tinha dado ao sacerdote

algumas moedas para uma profecia. Normalmente, adivinhar o futuro estava

abaixo da dignidade de um brâmane, mas havia um no templo que tinha uma

família numerosa para sustentar e que seria capaz de o fazer. Estava também

abaixo da dignidade de Aditi alguma vez procurar o augúrio. Mas como tinha

estado trancada durante dias na casa dos seus benfeitores, sentia-se como

que perdida num deserto traiçoeiro sem as estrelas da noite para a guiarem.

Antes de entrar no templo, Aditi desceu os degraus até ao rio

Mandovi e entrou na água até aos joelhos. Ficou agradecida por o rio correr

quente e com lentidão nesta época do ano. Lavou as mãos, os braços e a cara

segundo o ritual, tomando cuidado para que as suas feições não ficassem

expostas a ninguém. Tirou do fundo do pano que trazia na anca uma flor de

lótus e colocou-a sobre a água, deixando-a flutuar para longe, levada pela

corrente. Curvou-se para o deus do rio e voltou a subir os degraus.

Aditi secou os pés e entrou no arco do templo, receando o que

poderia ver. O ídolo de Mahadevi era, de fato, duas estátuas que se

encontravam com as costas encostadas uma à outra. Uma das figuras de

quatro braços era uma bela mulher que sorria docemente, segurando nas

quatro mãos espigas de arroz, uma panela, uma flor e um jarro de água. A

outra, porém, era um feroz demônio feminino que segurava nas mãos uma

espada, um tambor, um jarro de vinho e uma cabeça cortada.

Ambas representavam Mahadevi, nos seus aspectos de doadora da

vida e negociante da morte.

Os sacerdotes voltavam as estátuas conforme calculavam qual era o

aspecto da deusa que estava ascendente. Aditi ficou aliviada ao ver que o lado

benéfico do ídolo estava voltado para ela quando entrou. O ídolo tinha uma

Page 198: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

vistosa grinalda de botões vermelhos de asoka, embora tivessem já começado

a murchar.

Aditi ajoelhou-se aos pés do ídolo e retirou da funda que tinha na

anca uma pequena taça de arroz coberta, um pequeno frasco de óleo

perfumado e alguns fios de açafrão enrolados numa folha de palmeira. Deixou

tudo aos pés de Mahadevi e deitou-se, prostrada, sobre a pedra fria do chão do

templo.

As suas preces foram simples. Traz riqueza àqueles que me têm

ajudado. Perdoa-me as minhas falhas. Guia-me naquilo que devo fazer agora.

Ajuda-me a voltar para ti em segurança.

Aditi não era da família brâmane e portanto não se preocupava com

os pontos mais delicados da teologia. Não questionava a divindade de

Mahadevi, ou até que ponto o sacrifício da cabra a apaziguaria, ou se a deusa

podia ver e ouvir através da sua imagem no templo. O que importava era

dharma, fazer o que era certo. Todo o resto viria por acréscimo. Além disso,

Mahadevi era bastante real para Aditi, real de uma maneira que poucos

adoradores já alguma vez teriam experimentado.

A família de Aditi tinha sido gente das caravanas. A sua terra era o

Rajastão, mas viajavam largamente por toda a índia. Quando Aditi tinha cinco

anos, sabia montar um camelo. Aos seis, falava quatro línguas fluentemente: o

seu sindhi nativo, kashmir, persa e urdu. Quando tinha sete, a família

empreendeu uma longa viagem para sul, com uma grande carga de

mercadorias com destino a Calecut. Para evitar a perseguição por parte dos

portugueses, não seguiram a rota da costa e em vez disso arriscaram-se a

viajar através do árido e vastamente inexplorado planalto de Decão.

Duas noites após terem saído de Bijapur, foram atacados por

salteadores. Os camelos foram roubados ou dispersados. A família de Aditi foi

assassinada, enquanto ela se escondia numa cavidade entre as rochas. Tinha

ficado demasiado chocada e aterrorizada para chorar e foi abandonada sem

ser vista pelos ladrões.

Page 199: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Na manhã seguinte, viu um dos camelos que se dirigia para

Ocidente, afastando-se dela. O pai tinha-lhe ensinado que quando se está

perdido no deserto, se deve seguir um camelo - ele encontrará água. Então,

sem se voltar para olhar para os corpos dos seus pais e dos seus irmãos,

caminhou insensivelmente atrás do camelo. Caminhou todo o dia, chupando

pedras para evitar a sede, mastigando folhas para acalmar os ruídos do

estômago. E o camelo levou-a a um largo rio castanho, com uma pequena

aldeia junto a ele.

Os aldeões ficaram pasmados por encontrarem a criança vinda do

deserto sozinha, admirados com os seus olhos azuis que não eram invulgares

no Rajastão, mas desconhecidos no Decão.

Chamaram-lhe Aditi por causa da deusa do céu e levaram-na

imediatamente à sua montanha sagrada, Bhagavati.

Havia uma cidade numa cova no cimo da montanha, cortada na

rocha viva e escondida à vista. Um palácio templo dominava a cidade e lá

dentro vivia Mahadevi. Aditi foi apresentada à deusa, como um dom caído do

céu. E a deusa aceitou-a quase como se ela fosse uma filha.

Mas Aditi nunca viu a pessoa física de Mahadevi, apenas sombras

por trás de biombos, pois todos sabiam que olhar para a face da deusa era a

morte. Em vez disso, Aditi foi criada por duas velhas mulheres, uma pequena

e doce, mas de fraca personalidade e outra alta e severa, mas sábia. Elas

tinham sido sempre velhas, disseram-lhe e Aditi acreditou.

E Aditi aprendeu uma outra língua, ellenica, que Mahadevi e as

velhas falavam. E ensinaram-lhe a ler e a escrever e aprendeu História,

Geografia e Matemática. Quando teve idade, Mahadevi mandou-a de volta para

o mundo exterior, para ser os seus olhos e a sua mensageira.

Aditi devia a sua vida a Mahadevi, tal como Gandharva e por isso

servia-a com uma devoção quase absoluta.

Aditi ouviu o som de arranhar à sua frente e levantou os olhos do

chão. O ídolo estava a voltar-se. Parou a meio caminho, de forma que era

visível um lado de cada aspecto. A grinalda de flores tinha sido retirada e

substituída por uma grinalda de crânios de rato.

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O sacerdote que fazia profecias espreitou por detrás dos ídolos.

Cruzou o olhar com Aditi e abanou a cabeça tristemente antes de desaparecer.

Ai. O humor dela está a mudar para pior. Isto não vai correr bem

para o meu lado. Sentou-se e curvou-se uma vez mais para o ídolo.

Tende piedade de mim, Grande Mãe. Eu fiz o que pude.

O Irmão Timóteo desceu as escadas em direção aos calabouços,

deixando os pés bater pesadamente nas pedras. Não tinha coragem para as

tarefas que o esperavam. Porque é que eu dei ao inglês a folha de betei? O

Domine teve razão para me ralhar; vai levar mais tempo ao inglês para olhar

para dentro de si e sentir o desejo de se confessar. É justo que o Domine me

castigue. Mas porque tinha de ser isto? Santa Maria, não podias tê-lo feito

mais indulgente? Não, perdoai-me. Estou a ser posto à prova. Deixai-me

provar que sou digno.

Puxou com força a tranca de ferro da porta ao fundo das escadas.

Quando ela se abriu, os gemidos das almas perdidas assaltaram-lhe os

ouvidos. Senhor, eles imploram o vosso perdão. Estais a ouvi-los?

Timóteo tirou duas chaves compridas de um chaveiro na parede e

caminhou pesadamente pela passagem central. Murmurou uma bênção em

cada cela por onde passava, o coração dilacerado por cada pecador

atormentado que o avistava e lhe pedia para ser libertado.

À porta da sétima cela à sua esquerda, Timóteo parou.

- Aprende o que resulta da aliança com a feitiçaria - tinha-lhe dito

Domine Sadrinho. Timóteo engoliu com dificuldade e pôs a chave na

fechadura. Deu-lhe a volta e a porta girou e abriu-se silenciosamente.

Um cheiro nauseabundo invadiu-o e ele tossiu e torceu o nariz. Não

era um odor dos vivos. Apertando o livro de orações fortemente contra o peito,

Timóteo entrou.

- Deus lhe dê um bom dia, Senhor Cortado.

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A coisa na cadeira rolou a cabeça para cima para olhar para ele.

Timóteo benzeu-se, tentando lembrar-se de que aquilo que estava sentado à

sua frente, fora um dia um homem e uma criatura de Deus.

Os braços, as pernas e os dedos do feiticeiro estavam curvados em

muitos sítios, de uma forma que não era natural, e parecia que as cordas que

o atavam à cadeira serviam mais para ajudar o homem a manter-se direito, do

que para o prender.

- Ele ainda não deu, até agora - disse-lhe Cartago, numa voz tão

densa que lhe levou um momento a perceber. - Quem és tu?

- Sou o Irmão Timóteo, senhor. Fui designado vosso advogado. -

Timóteo desejou não ter soado tão pequeno e tímido.

O feiticeiro riu. Um som horrível de um latido líquido.

- O que fizeste, criança, para eles te mandarem entenderes-te com

os mortos? - Cartago esticou a cabeça para a frente nesta última palavra e

Timóteo saltou para trás, assustado.

A raiva começou a sobrepor-se ao medo.

- Vós não estais morto, senhor. Deveis estar agradecido por a Santa

Casa vos ter dado uma outra oportunidade de reconhecerdes os vossos

pecados e de os confessardes perante Deus. Nesta altura deveis saber o perigo

que a vossa alma enfrenta. Deveis receber com alegria a nossa ajuda.

- Ajuda? A Santa Casa só procura ajudar-se a si própria. Apoderar-

se de tudo o que possa roubar ou destruir.

- Isso é mentira! - Timóteo instantaneamente lamentou o impulso e

tentou acalmar-se. Um advogado deve ser gentil a todo o custo, para mostrar

ao hóspede o benefício da piedade. O que diria o Domine Sadrinho? - Vós

fostes mal informado, senhor. - Olhou para o chão e viu que a taça de arroz do

feiticeiro estava ainda cheia. As moscas e os besouros rastejavam sobre ela,

comendo o que o hóspede deixara. - Não haveis comido.

- Não tenho vontade de comer.

Page 202: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Se não comerdes, morrereis à fome.

- Sim.

- Mas a vossa alma voltará para o Inferno, se morrerdes sem vos

confessardes primeiro.

Os lábios do feiticeiro abriram-se num sorriso torcido.

- É aí que pensais que eu tenho estado? - Inclinou-se para a frente,

tanto quanto as cordas lhe permitiam. - Sei um segredo - disse numa voz

sepulcral. - Quereis ouvi-lo?

Timóteo fez uma pausa.

- Talvez.

- Eu sei o que há para além da morte.

- É claro. Sabeis que deveis recear pela vossa alma. Cartago abanou

a cabeça de um lado para o outro sorridente.

- Não é o que vocês pensam. Tudo o que disseram é falso. Os

pensamentos de Timóteo rodopiaram num turbilhão.

Ele mente para me confundir e assustar. Mas o que é que ele viu?

Saber o que acontece depois da morte - mas ele não vai ser verdadeiro comigo.

O Diabo tem a sua língua e eu não devo prestar atenção. Por um momento,

Timóteo perguntou a si próprio se estava perante a alma de Cartago ou se o

corpo tinha sido possuído por um demônio.

- Eu não vou ouvir as vossas mentiras, senhor. Se tendes alma,

trabalhemos para a salvar, ainda que o seu destino não vos preocupe agora.

Ainda há pó de sobra. O Domine trar-vos-á de volta, se morrerdes sem

confissão.

- Oh que habilidoso torturador - suspirou Cartago. - Mas não faz

mal. O Rasa Mahadevi esgotar-se-á e depois? Por muito que tenteis, a morte é

um poder que a Santa Casa não consegue dobrar à sua vontade.

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- Gostaria que pudésseis ver-nos com outros olhos, senhor. Vede-

nos pela assistência piedosa que oferecemos. O Domine disse que eu devia

dizer-vos que ainda agora ele procura: a fonte do vosso pó feiticeiro.

Cartago riu de novo, sombriamente.

- Ah, para o vosso Domine Sadrinho a conhecer teria de ser o fim do

mundo.

- A conhecer? Ainda acreditais que o vosso pó vem de uma deusa

pagã?

- A crença não é necessária, rapaz. Estou certo disso. Não era a

primeira vez, desde que o padre Gonsção tinha vindo para a Santa Casa, que

Timóteo se sentia como duas pessoas numa só mente. Parte dele desejava

ardentemente perguntar ao feiticeiro tudo sobre a criatura a que chamava

deusa. Saber se ela era real, se era tal como as lendas diziam. Mas o seu dever

era tentar salvar a alma de Cartago, não encorajar a sua fé mal colocada. Foi

assim que o velho governador foi arrastado para o pecado? Santa Maria me

ajude.

- Mas esta criatura que vós adorais, não é uma deusa. É um

monstro, não?

A expressão no rosto descaído de Cartago era difícil de descrever no

escuro.

- Um monstro? Alguns homens podem vê-la assim. Mas os que a

vêem, não vivem muito tempo.

- Então esta criatura não é tão misericordiosa como o nosso Deus.

A cabeça do feiticeiro começou a pender.

- Eu não vou discutir filosofia convosco, rapaz - disse ele

suavemente. - Sois demasiado jovem e não sabeis nada da vida.

- Sei o que é a verdade, senhor. E é nisso que vós deveis fixar os

vossos pensamentos.

- O nome dela é força - murmurou Cartago. Fechou os olhos e o

corpo baixou repentinamente sobre a cadeira.

Page 204: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Senhor?

O feiticeiro não emitiu qualquer som. Timóteo não ousou tocar-lhe

para ver se ainda estava vivo, saiu da sala, fechando rapidamente a porta

atrás de si. Encostou-se à parede do corredor, tremendo. O que dirá o

Domine? Falhei? Fui demasiado orgulhoso, pensando que podia ganhar contra

um demônio? E se o que o feiticeiro disse fosse verdade? Não, não posso

pensar nisso.

Recordou a si próprio que havia ainda mais uma tarefa à sua frente.

Uma que poderia, em alguns aspectos, ser ainda pior do que aquela que ele

tinha acabado de viver. Com um suspiro profundo, Timóteo trancou a sala de

Cartago e de novo caminhou pesadamente pelo corredor das almas perdidas.

Capítulo XIX

TREVO: Esta pequena planta dos prados é citada em muitas

histórias. Diz-se que as folhas do trevo se erguem e tremem quando se

aproxima uma tempestade - significado do trevo muda com o número

das suas folhas. Uma haste de trevo com duas folhas, significa que se

verá a pessoa amada em breve. Um trevo de três folhas é sinal da

Santíssima Trindade e protege-nos do mal - embora os antigos

pensassem que era um sinal das três deusas do Destino. Um trevo com

quatro folhas, o sinal da cruz, é raro e traz grandes poderes para ver

através da ilusão, para curar os doentes e para escapar a

circunstâncias difíceis. Um trevo de cinco folhas traz azar e doença,

mas se for oferecido, a boa sorte regressa...

À porta da primeira sala de interrogatórios, Timóteo preparou-se

para o seu próximo dever. Murmurou uma prece e pôs a chave de ferro na

fechadura. A porta também se abriu silenciosamente. As dobradiças nos

calabouços da Santa Casa eram mantidas bem oleadas, para que não se

tornassem distração para os que contemplavam as suas almas. Timóteo

fechou a porta atrás de si e olhou para cima.

Page 205: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Bom dia, senhor.

O inglês não estava bem. Tinha sofrido o strappado durante muitas

horas; o rosto estava branco, os membros rígidos e trêmulos. Tinha os olhos

fechados.

- Senhor?

- Ahh! - O inglês acordou estremecendo e gritou com uma nova dor.

- Desculpai-me, senhor - disse Timóteo. - Eu vim para vos dar

conforto. - Tirou então da parede um bastão comprido e afiado. Da sacola de

cabedal retirou uma esponja embebida em vinho e espetou-a na ponta do

bastão. E ergueu-o até à boca do inglês.

- Bebei senhor, por favor.

A semelhança deste ato com um outro não se perdeu em Timóteo.

Assim foi Nosso Senhor ajudado quando estava pregado na cruz. Assim foram

redimidos os pecados da humanidade. Será que este homem vai compreender

e submeter-se ao perdão de Deus?

Com alguma dificuldade, o inglês conseguiu engolir. Um minuto

depois Timóteo tirou a esponja.

- Mais, por favor, irmãozinho - arfou o inglês.

- Não tenho permissão para ficar mais tempo, senhor. Com tristeza

Timóteo pôs o bastão de novo na parede e a esponja na sacola.

- Esperai. Ficai. Por acaso interpretais sonhos, Irmãozinho? - Veio-

lhe à memória uma outra história da Bíblia. Talvez isto seja um sinal de

esperança.

- Não sei. O que sonhastes, senhor?

O inglês murmurou rapidamente, tentando usar pouca respiração.

- É freqüentemente o mesmo sonho, apenas diverge nas suas

formas. Acabo de o ter de novo. Há três mulheres, às vezes a cavalo, outras

vezes não. Perseguem-me e eu sou uma presa. Chamam-me assassino e

outras coisas horríveis. Acordo sempre, quando estão prestes a apanhar-me.

Page 206: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Desta vez, contudo, eu já estava apanhado e amarrado. Estava pendurado

sobre um caldeirão, enquanto elas dançavam, zombando de mim. Eu lutava,

mas não conseguia escapar. Então vós acordastes-me.

Timóteo pensou um momento.

- Talvez essas mulheres sejam demônios, senhor. Perseguem a

vossa alma, esperando que vos desvieis daquilo que é justo. Agora que caístes,

apanharam-vos e a vossa alma descerá para o fogo.

- Mas eu tenho estes sonhos desde criança. Os demônios

perseguem-me há tanto tempo?

- Estamos sempre em perigo de sucumbir às forças do Inferno,

senhor. Mas há esperança neste sonho.

- Esperança?

- Vós não estais no fogo ainda. Podeis salvar-vos. Tenho de ir agora.

Desejais que eu diga alguma coisa ao Domine?

O inglês engoliu em seco.

- Sim - murmurou. Timóteo aproximou-se.

- Estou a ouvir, senhor.

- Eu... assinarei a confissão.

O coração de Timóteo saltou de alegria.

- Fá-lo-eis? E procurareis o perdão de Deus?

- Sim - arfou sonoramente.

- Então hoje fomos ambos abençoados, senhor!

- Dizei ao Domine... por favor, dizei que eu estou pronto para dizer o

que ele mais deseja ouvir.

- Com todo o prazer, senhor! Deus vos abençoe e vos conserve. Vou

dizer ao Domine imediatamente! - Timóteo abriu a porta de rompante e saiu

apressadamente, não se preocupando em fechá-la atrás de si. Saltando pelas

escadas acima, correu como se os pés tivessem as asas dos anjos.

Page 207: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Os guardas vieram rapidamente para cortar as cordas que

sustentavam Thomas. A doce golfada de ar nos seus pulmões tornou a dor do

movimento quase suportável. Estava fraco e não conseguia manter-se de pé

sozinho. Os braços caíram-lhe ao lado do corpo, inúteis, os ombros

deslocados. Foi novamente vendado e um guarda conduziu-o a uma sala, onde

dois monges o lavaram e lhe esfregaram as costas e o peito com óleos quentes

e perfumados. Thomas quase chorou, tão requintada era esta sensação depois

do seu tormento.

Foi reconduzido à sua cela, onde o aguardava uma refeição: a mesa

estava pronta com frango assado, arroz, laranjas e vinho. O Irmão Timóteo

estava lá também, sorrindo como se fosse Natal. O rapaz alegremente ajudou

Thomas a comer, segurando nacos de galinha para ele morder, partindo as

laranjas, levando-lhe o copo de vinho aos lábios e limpando algumas gotas que

se entornassem ou as migalhas.

- Bendito seja este dia! - disse Timóteo. - Sabia que seríeis um dos

salvos, senhor. Glória a Deus nas alturas!

Os pensamentos de Thomas, contudo, não eram tão alegres. Que

Deus me perdoe. Não tenho a força para sofrer pela minha fé. Se ainda não

pequei, fá-lo-ei certamente, quando chegar ao final da noite. Várias mentiras

terão de ser ditas esta noite, se eu quiser ter a hipótese de escapar. Portanto

tende piedade, Senhor, e digamos que não é pela minha vida miserável, mas

pelo trabalho por fazer, que eu devo aos outros.

Thomas abanou a cabeça ao novo copo de vinho oferecido.

- Já bebi o suficiente, Irmãozinho, obrigado. - Tenho de manter os

meus pensamentos livres da névoa da bebida.

O Irmão Timóteo limpou uma área sobre a mesa e colocou lá uma

pena de escrever enfeitada com plumas, num tinteiro em forma de elefante

prateado. Depois, como um mercador apresentando para venda o seu tapete

mais valioso, o rapaz desenrolou e apresentou a confissão.

Page 208: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Assinai, senhor, e ficai livre.

Thomas olhou para o pergaminho, não lendo deliberadamente as

palavras que lá estavam. Tentou erguer a mão direita, mas o braço estava

demasiado fraco e voltou-lhe a cair ao lado do corpo. Sentiu um toque de

orgulho pelo seu membro rebelde.

- Perdoai-me. O meu braço...

- Eu ajudo-vos, senhor - O rapaz limpou a ponta da pena na borda

do tinteiro e colocou gentilmente a caneta na mão direita de Thomas. Ficando

de pé junto dele, o Irmão Timóteo ergueu o braço de Thomas sobre o

documento e posicionou-lhe a mão no final deste.

Com um profundo suspiro, Thomas rabiscou as iniciais T. C.

- Muito bem, senhor! - O rapaz agarrou o documento e gentilmente

soprou sobre a tinta para a fazer secar. Thomas deixou o braço cair de novo

no regaço, salpicando as calças com gotas de tinta.

O Irmão Timóteo pareceu não reparar; retirou a caneta da mão de

Thomas e colocou a pena novamente no tinteiro.

De súbito, o inquisidor Sadrinho apareceu na porta aberta da cela

silencioso e austero nas suas vestes negras.

- Domine! - disse o Irmão Timóteo. - Ele assinou!

O inquisidor abriu os braços para o céu e pronunciou o Deo

Gratias. Para Timóteo disse:

- Fizeste muito bem, meu filho, redimiste-te a ti próprio. Sabes

aonde levar isso.

- Sim, senhor. - O rapaz enrolou gentilmente o pergaminho e saiu

apressadamente porta fora.

O inquisidor acenou para o guarda da cela que se curvou e também

partiu, fechando a porta atrás de si.

Thomas ficou sozinho com Domine Sadrinho. Ocorreu-lhe que

agora, teria sido uma outra excelente oportunidade de fazer violência contra a

Page 209: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

pessoa do inquisidor. Mas, é claro, fraco e desarmado como estava, Thomas

sabia que só faria pouco dano ao inquisidor e talvez grande dano a si próprio.

Tentou sorrir, mas percebeu que não conseguia forçar-se a fazê-lo.

- Ouvi dizer que há algo que desejais dizer-me - disse o inquisidor.

Thomas respirou profundamente.

- Desejais conhecer a fonte do pó, que traz os mortos de regresso à

vida.

O inquisidor olhou para trás sobre o ombro, depois avançou em

direção a Thomas, de olhos semicerrados.

- De que substância falais?

Senhor, não permitais que ele fique louco, não agora.

- O pó que se chama Rasa Mahadevi ou o sangue da Deusa... o pó

que o monge chamado Irmão Andrew usou para trazer Cartago de volta à vida.

- Humm - disse Sadrinho, fingindo desinteresse, mas os olhos

atraiçoavam-no.

- Que deusa é essa de que falais?

Thomas pensou afincadamente. Nunca lhe tinham dito outro nome

para além de Mahadevi, exceto...

- O nome dela é força.

Um olhar agudo da parte do inquisidor revelou a Thomas que tinha

dito algo importante. Só desejava que tivesse sido a coisa certa.

- Mas de certeza - disse Sadrinho - que já não albergais mais

crenças pagãs? Assinastes a vossa confissão, afinal de contas.

- Não, Domine. É por isso que desejo falar convosco.

- E porque é que a Santa Casa estaria interessada nesta matéria?

- Posso apresentar-vos muitas razões. Se os inimigos da Madre

Igreja tiverem o seu controlo, pensai quanto mal eles poderão fazer.

Page 210: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Mmmm. E vós dizeis que podeis dizer-nos onde os inimigos da

Madre Igreja poderão encontrar este pó?

Vamos a isto agora.

- Posso fazer melhor. Mostrar-vo-lo-ei. O inquisidor franziu o

sobrolho.

- O que quereis dizer? No mapa que encontramos na vossa roupa?

- Não. Eu guiar-vos-ei ou a alguém da Santa Casa, até ao lugar

onde pode ser encontrado.

Sadrinho riu-se.

- Espero que não tencioneis fazer-me passar por idiota, senhor.

Meu Deus, tornai-me convincente.

- Há razões que eu simplesmente não vos posso dizer, Domine. O

local está bem escondido e protegido. Posso dizer-vos somente isto: a fonte fica

a leste e a sul de Bijapur.

O olhar do inquisidor intensificou-se.

- Já sabemos isso. Que mais podeis oferecer?

Ah. Ele decidiu comprar a minha mercadoria. Thomas abanou a

cabeça.

- Eu não estive nesse lugar, Domine. Só tenho o conhecimento que

Cartago me deu. Ele disse que haveria sinais e enigmas para serem resolvidos

ao longo do caminho. Não disse quais serão ou onde estarão. Mas isso eu

tenho a sabedoria para reconhecer e resolvê-los, quando forem encontrados.

Sadrinho deteve-se e não falou durante alguns momentos.

- Ocorre-me que podeis ser simplesmente muito esperto e esperar

por uma hipótese de escapar. Contudo, se o que dizeis é verdade, então a

vossa orientação seria uma dádiva de Deus, na verdade. Tenho de consultar

outras pessoas sobre isto. Por agora, descansai, senhor Chinnery. Vós

Page 211: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

passastes por uma provação terrível, embora não possais negar o seu efeito

salutar para a vossa alma. Por agora temos a vossa confissão e muita coisa se

torna possível. Deus vos conceda uma boa noite, senhor. - Sadrinho bateu na

porta e saiu quando ela se abriu.

Aquela última foi uma promessa ou uma ameaça? Mas a ambição

brilhava claramente em cada poro marcado da sua face. Mas Deus, deixai que

ela o domine, para que eu possa sair desta casa de loucura.

Capítulo XX

CORAL: Esta substância tem a forma de uma planta e a dureza de

uma pedra. Diz-se que cresce no mar e pode ser encontrada em muitas

cores. Para usos medicinais, o coral deve ser moído apenas numa bacia

de mármore; de outra forma pode causar dano. Em pó ou em tintura,

curará muitos achaques do corpo. Usado num amuleto, guarda-nos de

todos os tipos de loucura e de fascinações. Ligado a um pau de fileira

guardar-nos-á de todas as tempestades da natureza. O coral do mais

puro vermelho manterá afastados os demônios e as fúrias, mas o coral

castanho atraí-los-á. O coral amarelo é, no Oriente, uma gema de vida

eterna...

O padre Gonsção estava do lado de fora das portas maciças de

carvalho do escritório de Domine Sadrinho. Os painéis superiores das portas

tinham sido esculpidos em relevo profundo: Santa Catarina pregada ao poste

na porta da esquerda, São Domingos e a sua espada, na da direita. Os painéis

inferiores ambos representavam almas ardendo nas chamas do Inferno, com

os braços erguidos, implorando. Gonsção tocou na cabeça de Santa Catarina e

pediu-lhe a bênção. Depois bateu à porta e um pajem nativo convidou-o a

entrar com uma vênia.

Domine Sadrinho estava sentado atrás de uma enorme secretária de

ébano, com os dedos em forma de campânula, descansando contra os lábios.

Estava afastado da porta, voltado para a janela, cujas persianas estavam

Page 212: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

abertas. Um perfume de jasmim flutuava dentro da sala, vindo de um dos

jardins do pátio. A luz do crepúsculo, de um cobre-dourado, emprestava um

brilho quase beatífico à face do inquisidor.

Gonsção atravessou uma extensão de um espesso tapete persa e

sentou-se numa cadeira de pau-rosa, acolchoada em veludo vermelho.

Preferindo não ser o primeiro a falar, esperou ser notado.

Após um momento, Sadrinho inclinou a cabeça e olhou para o

padre.

- Fizestes voto de silêncio, António? Isso seria incômodo.

- Não, Domine. Não falei, porque não desejava perturbar os vossos

pensamentos.

- É muita bondade vossa, António. Marquei este encontro mesmo

com a intenção de partilhar os meus pensamentos convosco. Devo mandar vir

refrescos? Vejo que já vos pusestes à vontade.

- Obrigado, não, Domine. - Na rígida cadeira de espaldar,

enfrentando o reservado Sadrinho, Gonsção não achava possível sentir-se

confortável.

Sadrinho acenou para o pajem nativo, que se curvou e partiu.

- Bem, estou ansioso por ouvir o que tendes para me dizer - disse

Gonsção. - O nosso visitante, Irmão Andrew, foi mais prestativo com uma

história razoável?

- Ele mostrou-se útil, à sua maneira. Sabeis que mais, lamento não

ter confiado em vós, desde o momento em que chegastes. Com o vosso perdão,

posso atribuí-lo à necessidade de a Santa Casa ser cautelosa com estranhos,

devido ao nosso trabalho.

- É claro - disse Gonsção, lutando contra a impaciência.

- Se eu tivesse exercido mais urgência em achar os registros do

julgamento do governador Coutinho, vós teríeis percebido mais cedo a

importância do que os Jesuítas nos trouxeram ontem.

Page 213: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Na verdade, isso teria sido útil. - Gonsção não achou que o

inquisidor notasse a ironia.

- Mas não importa. Tudo resultou bem, afinal de contas. Vede, foi o

próprio pó que o Irmão Andrew usou, que foi a chave para a cabala que nós

temos estado a investigar. Creio que foi através do uso deste pó, que Cartago e

os seus colaboradores, Dalambur, senhora Resgate e a misteriosa Aditi

corromperam o antigo governador e o vice-rei. Disseram-lhes que o pó era o

sangue da deusa pagã, sangue que traz os mortos para a vida. E como vistes,

a substância de fato tem esse poder. Não admira que eles se tivessem

convencido, não é?

- Eu posso ver como isso pode ser persuasivo - disse Gonsção, não

tendo ouvido nada que não tivesse já deduzido. Presumo que conseguistes

questionar Cartago e que confirmastes isso com ele.

Sadrinho suspirou.

- Meu Deus, o feiticeiro estava tão abatido que não sentiu nenhum

dos nossos ternos serviços e por isso não nos disse nada. Ele não comeu, nem

bebeu e morreu de novo. Com o pouco de pó do Irmão Andrew que sobrou, eu

trouxe-o de novo à vida.

- Vós... usastes o pó, vós próprio?

Gonsção começou a compreender o alarme de Domine Pinto.

- Nós não temos idéia de onde vem. Não vos preocupais com o

estado da vossa própria alma?

- Disparate, António. Deus não teria colocado esta substância nas

minhas mãos, se eu não tivesse sido escolhido para a usar. E foi para a Sua

obra, afinal de contas. Ah, ver a respiração voltar àquele cadáver frio, António!

Uma experiência que eu nunca esquecerei. Mas não serviu de nada. Cartago

rapidamente sucumbiu mais uma vez. Como não temos mais pó, Cartago está

perdido para nós.

- Uma pena, é claro. Mas a sua alma está perdida para Deus, não

para nós.

Page 214: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Sadrinho abriu as mãos para fora, como para sugerir que era a

mesma coisa ao fim e ao cabo.

- Estou preocupado, Domine, com o fato de que vós possais estar

deslizando para o mesmo fosso que enganou Coutinho e os outros.

Sadrinho sorriu.

- António, não podeis estar a falar a sério. Receais que eu possa

acreditar que era o sangue seco de uma deusa pagã? Dai-me mais crédito, por

favor. Na minha opinião, Coutinho e Albuquerque foram enganados.

- E que pensais vós ser a verdade do assunto?

- Claramente há um poder estranho que está a importar esta

substância, a fim de corromper o governo de Goa. Há muitos que estão

descontentes com a presença de Portugal neste continente. O sultanato de

Bijapur ainda está encolerizado com a perda de Goa.

Gonsção acenou afirmativamente.

- Isso é razoável. E perturbador. Sabeis que poder estranho poderá

estar a fazer isto?

- Ainda não.

- E onde poderá este poder estranho ter encontrado uma substância

tão poderosa?

Sadrinho inclinou-se para a frente, sobre a mesa.

- A índia é um continente vasto, António. Não tendes idéia das

maravilhas que se podem encontrar aqui. Mas eu vivo aqui há muitos anos;

ouvi muitas histórias e vi muitas coisas espantosas. Há animais no interior,

que não podem ser encontrados em mais nenhum lugar. As especiarias e os

minerais abundam com propriedades desconhecidas. Não poderá ser que o

sangue seja de um animal raro? As cobras têm sido mencionadas

freqüentemente pelos conspiradores, devo salientar. Os hindus falam de uma

criatura rara, parte homem, parte serpente, que vive na selva.

Page 215: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Mas isso pode ser mero folclore, Domine. O nosso próprio povo

tem histórias de El Cuélebre, uma serpente com asas que guarda as

montanhas e possui encantamentos poderosos.

Os olhos de Sadrinho faiscaram.

- Sim, interessante, não é? Então, uma vez mais, o poder podia não

ser o sangue de forma nenhuma, mas a seiva seca de uma árvore rara, ou

uma forma de minério de ferro cuja aparência e odor imitam o sangue.

- Sim, suponho que tal seja possível - disse Gonsção -, mas o poder

da ressurreição deve pertencer a Deus somente. Portanto nós devemos

considerar ainda esta substância, qualquer que seja a sua fonte, como o mal.

O seu uso deve ser proibido pela Santa Casa.

Sadrinho fez estalar a língua.

- Vós espantais-me, António, com uma forma de pensar tão

provinciana. Uma espada é um objeto do mal? Talvez quando um ladrão ou

um assassino a maneja, mas não em si mesma. Seguramente o vosso São

Domingos não traria consigo um objeto de mal inerente. As espadas

manejadas por aqueles que expulsaram os mouros heréticos das nossas

terras, eram objetos do mal? Pensais que a batalha que nós, da Santa Casa,

empreendemos contra a heresia devia ser uma mourisca, para ser dançada

com cavalos de papel e espadas de madeira? Aqui, António, entregue nas

nossas mãos, está a arma autêntica para o nosso santo arsenal.

Gonsção apertou fortemente os braços da cadeira.

- Que necessidade tem a Santa Casa de uma tal... arma? Sadrinho

bateu levemente na mesa com a palma da mão.

- Não posso acreditar que sejais tão cego, António. Pelo próprio uso

que nós já fizemos deste pó! Com a sua ajuda, nós podemos, com certeza,

obedecer a uma das nossas principais constrições, acima de tudo, a Santa

Casa não mata.

- Santo Deus... vós podeis estar a pensar que devemos usar este pó

como parte da inquisição?

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- E porque não? - Sadrinho levantou-se e começou a andar em

frente à janela. - Tantos morrem antes do nosso trabalho estar feito. Mesmo

quando o espírito está pronto e à beira da confissão, a carne mostra-se fraca.

O silêncio da morte demasiadas vezes os condena ao castigo eterno.

- E vós acreditais que esta substância nos dará todo o tempo que

precisamos, para salvar almas? Não estaremos nós em vez disso a perder as

nossas próprias em troca daquelas que salvamos? Poderá a Santa Casa vir a

tornar-se um outro Círculo do Inferno para aqueles que regressam para nós?

Ou por causa do duro auto-exame que nós exigimos dos nossos hóspedes,

poderá a perdição parecer mais suportável e por isso preferível para eles?

Depois de uma alma perdida ter encontrado os demônios do submundo, será

ela ainda capaz de redenção através de uma segunda ou terceira vida?

- Há os que acreditam, padre, que os perdidos se podem redimir

mesmo fora do Inferno. Pensai nisso! - disse Sadrinho, com os olhos a brilhar.

- Tanto para aprender. Nós podemos até descobrir a própria arquitetura da

vida após a morte.

Então, tu vês-te a ti próprio beijando o anel do papa Clemente, não

vês Sadrinho? E a ser elogiado por toda a Cristandade pelas tuas notáveis

”descobertas”. A imortalidade para o teu nome. E, talvez, a imortalidade para a

tua própria carne? Devias antes considerar a morte na fogueira e o cheiro do

enxofre.

- Se Deus tivesse a intenção de dar ao Homem esta sabedoria, não a

teria o Seu Filho revelado na sua Ressurreição?

- A Bíblia mostra-nos que há um tempo e um lugar para todas as

coisas, António. Talvez seja agora o tempo e seja este o lugar para a revelação

ser feita à humanidade.

Gonsção encostou-se para trás na cadeira, perguntando-se o que

poderia fazer para deflacionar o orgulho louco de Sadrinho.

- Bem, pode haver algo naquilo que vós dizeis. Mas a questão é

discutível. O senhor Cartago está morto de novo e vós não tendes outros

informantes que possam dizer-vos onde é que a substância pode ser

encontrada.

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Um sorriso vitorioso trepou pelos lábios de Sadrinho.

- Ah, mas nós temos sim, António. Porque pensais que o Irmão

Andrew se atreveu a enfrentar o vosso desagrado, trazendo o pó para dentro

da Santa Casa?

- Tenho-me interrogado sobre isso.

- Por causa do jovem inglês. O Irmão Andrew sabia que o Senhor

Chinnery tinha informações que não se podiam perder. Foi por isso que se

arriscou a tirar o inglês do nosso domínio.

- Ah, sim. - Gonsção lembrou-se das palavras do inglês para

Cartago: ”Eu não lhes disse nada...”

- Graças ao encorajamento do Irmão Andrew, o jovem inglês fez

uma confissão completa.

Gonsção sentiu o seu espírito afundar-se ainda mais.

- Ele tinha alguma coisa de interesse para confessar?

- Oh, sim. Não era tão inocente quanto parecia. Aparentemente

Cartago tinha começado a iniciá-lo nos segredos da cabala.

- Ah, sim? E o senhor Chinnery acedeu a dizer-nos a parte do pó?

- Ele diz que fará melhor. Guiar-nos-á até ele. Gonsção soprou o ar

para fora dos lábios.

- E vós acreditais nele?

O sorriso de Sadrinho não vacilou.

- Tenho razão para isso. O jovem não admitiu que é negociante de

drogas e venenos? Sem dúvida ele procura o pó para o seu próprio uso. O rolo

de pergaminho que encontramos nas suas roupas parece ser um mapa

grosseiro, com símbolos alquimistas e a palavra em sânscrito ”Krsna”.

Disseram-me que há um rio com esse nome, no interior. Zalambur, o sócio de

Cartago, era conhecido por fazer viagens até à corte Mogol do imperador

Akbar, tal como a senhora Aditi. Oh, sim. Eu acredito que o jovem inglês sabe.

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- Ainda que ele saiba, o que o impedirá de fugir ou de levar os

outros a cair numa armadilha? Estes cultistas parecem dispostos a morrer

pela sua fé errônea.

- O senhor Chinnery sofreu o strappado, por isso a fuga está para

além das suas forças durante algum tempo. Quanto a uma armadilha -

Sadrinho encolheu os ombros -, será uma tarefa dos que o acompanharem,

desencorajar tal traição.

- Certamente vós não estais a planear seguir este homem vós

mesmo? Isso seria impróprio para alguém da vossa posição. Não deveis

abandonar os vossos deveres, para ir em perseguição de mistérios pagãos.

Sadrinho inclinou-se para a frente novamente.

- É claro. Eu sabia que tínheis a sabedoria para compreender a

situação claramente. Eu não posso abandonar o meu trabalho. É por isso que

tendes de ser vós a ir, António.

- Eu? - Gonsção sentiu a porta de uma armadilha a fechar-se atrás

de si. - Isso é impossível.

- Mas porquê? Vós fostes enviado pelo cardeal Albrecht desde a

longínqua Lisboa, para descobrir a verdade por trás da queda de Coutinho e

de Albuquerque. Não podeis simplesmente ignorar esta última e a mais

importante parte do puzzle.

- Posso, se considerar isso impraticável e perigoso. As minhas

instruções não me dão permissão para deambular longe de Goa...

- Mas também não o proíbem, António. Eu voltei a ler a missiva de

sua Eminência e ele pede-me meramente para vos dar toda a assistência para

chegardes à raiz do problema. Bem.

Agora nós sabemos a forma dessa raiz e temos simplesmente de ir

cavá-la para a expor. Os vossos superiores em Lisboa não podiam ter previsto

todas as possibilidades. E eu não penso que sua Eminência possa apreciar a

vossa interpretação limitada dos seus desejos.

Tu, meu cão matreiro, pensou Gonsção. Pensas que encontraste um

meio de te livrar da minha presença intromissiva. Se eu morrer na tentativa,

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fico fora do teu caminho para sempre. Se eu for bem-sucedido e voltar, trar-te-

ei as sementes da tua futura grandeza. O cardeal Albrecht compreenderia se

eu recusasse? Ou ao tomar conhecimento dos poderes desta substância,

ficaria tão enfatuado com as suas possibilidades como tu?

- Contudo - prosseguiu Sadrinho - se sentirdes que não sois

suficientemente forte para a tarefa, eu já fiz planos para mandar outrem.

- Outrem?

- Sim, estava à espera que fósseis uma influência madura e

orientadora para ele. Vou mandar o Irmão Timóteo.

Gonsção olhou fixamente para o inquisidor.

- Não podeis estar a falar a sério. Ele é apenas um rapaz.

- Os rapazes tornam-se homens em determinadas alturas das suas

vidas, António. E Timóteo está a atingir a idade em que deve ter alguma

experiência do mundo e ver as pessoas que um dia ele servirá. Receio que o

tenhamos mantido demasiado enclausurado aqui na Santa Casa. Está

envolvido com livros e memórias infantis. Além disso, quem sabe mais acerca

desta cabala que estamos a investigar do que eu e vós? Timóteo leu os

registros, afinal de contas.

Ah. Isto é, afinal, o castigo por esta transgressão?

- O que é que vai impedir o inglês de levar o rapaz para um caminho

errado, ou de lhe fazer mal?

- Não sou louco, António. Pedi ao governador para nos arranjar um

destacamento de soldados, para a escolta. Timóteo estará protegido.

E até que ponto pode um inocente rapazola lidar bem com soldados

endurecidos e turbulentos? Quem o protegerá deles?

- Entendo.

- Também mandei anunciar pelos mercados da cidade que a nossa

expedição deseja juntar-se com uma caravana de mercadores, para nos guiar

até Bijapur. Nós oferecemos proteção, em troca de uma introdução na corte do

sultão Ibrahim Adilghah.

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- Então, Timóteo vai viajar no meio de mercadores pagãos e

apresentar cumprimentos numa corte muçulmana Mogol?

- António, vós tendes tão pouca fé no rapaz? Não tenho dúvida de

que ele os fará cristãos a todos, em pouco tempo.

- E se eles desaprovarem o seu proselitismo? E se tentarem Timóteo

para o pecado ou apostasia? Ele não terá ninguém a quem recorrer para pedir

conselhos?

- Acontece que pedi ao bom Irmão Andrew para ir e ele está

bastante interessado em fazê-lo. Parece tão ansioso por encontrar o pó como

nós estamos, embora as suas razões sejam obscuras. Contudo, fala persa

fluentemente assim como português; por isso achei que a sua assistência seria

bastante valiosa.

Gonsção mal conseguiu reprimir o riso cheio de perplexidade e

disse:

- Estais louco. Domine, vistes que este pretenso Irmão é conhecido

do inglês. Tanto quanto sabemos conspiravam juntos, a fim de criar uma

avenida para a fuga de Goa. Como podeis confiar nestes homens? Devo

protestar, Domine. Vós podeis estar a colocar Timóteo em grave perigo.

Sadrinho abriu as mãos como as asas de uma borboleta.

- É por isso que eu tinha esperança de que vós o quisésseis

acompanhar.

Gonsção semicerrou os olhos:

- Certamente que há outros que vós podeis enviar. O inquisidor

ergueu os olhos para o céu.

- António, vós permitistes que os vossos sentimentos nublassem o

vosso julgamento. A quantas pessoas podemos nós confiar este conhecimento?

Não é verdade que na Santa Casa, quantos menos souberem melhor? Desejais

espalhar este segredo por toda a cidade? E se a pessoa errada soubesse disto?

O Adilshah ou o imperador Mogol Akbar? Ou os holandeses? Ou os Jesuítas,

Deus nos acuda. Pensai no que poderá acontecer, se fizerem erguer de novo o

corpo incorruptível de Francisco Xavier.

Page 221: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Gonsção reprimiu um estremecimento.

- Se a vossa conjectura estiver correta, um desses pode já saber

disso. E o Domine Pinto? Não podeis enviá-lo?

Sadrinho suspirou.

- Ele deseja não ter nada a ver com este caso. Recusa-se a ver a sua

importância. Além disso, tem as mãos cheias de heresia em Diu e Pernem.

Seria tão inconveniente para ele deixar o seu trabalho, como para mim deixar

Goa. Não, tendes de ser vós, ou então Timóteo chefia a expedição, como único

representante da Santa Casa.

Timóteo é um rapaz bom e obediente. Se a sua investigação for

bem-sucedida, ele não terá a força de vontade para fazer aquilo que eu vejo

agora que deve ser feito.

- Começo a compreender-vos, Domine. Isto é uma preocupação

maior do que um posto avançado da Santa Casa, um grupo de apóstatas e

pagãos. Se os muçulmanos viessem a saber deste pó, poderiam produzir

exércitos infernais de mortos ressuscitados, contra a nossa colônia ou contra

todo o mundo cristão. E quem sabe que males fariam os feiticeiros pagãos. É

um problema demasiado grave para um simples rapaz resolver.

Sadrinho inclinou-se para a frente e acenou afirmativamente.

- Sabia que viríeis a compreender, António.

- Sim, vós convencestes-me. Irei. Não para vos trazer mais pó,

contudo, mas para destruir a sua fonte.

Sadrinho apertou as mãos e ergueu-as para o céu.

- Glória a Deus. Eu sabia que Ele vos inspiraria para ver a luz.

- Sim - murmurou Gonsção. - Acredito que Ele o fez. O inquisidor

levantou-se e foi até às portas do escritório, abrindo a da direita. O Irmão

Timóteo entrou.

Que bem arranjada que está esta dança. Sadrinho sabia que eu iria

concordar por fim.

Page 222: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Deus seja convosco, Domine - disse Timóteo. - E convosco, padre.

Pus a confissão do senhor Chinnery no seu devido lugar e disse ao Irmão

Marco para escrever a carta ao governador como vós pedistes.

- Muito bem, Timóteo. Agora, António, devo ir diligenciar para que

sejam adquiridas provisões para vós. Este projeto deve entrar em ação tão

depressa quanto possível. Por favor ficai, Timóteo. Ficai à vontade para

conversar na minha ausência. Há muitas coisas que vós e o padre deveis

discutir. Sadrinho saiu, fechando a porta atrás de si. Timóteo piscou os olhos

sentindo-se desconfortável.

- Quereis falar comigo, padre?

Gonsção sentiu ele próprio algum desconforto.

- Ouvi dizer que o inglês confessou.

O sorriso do rapaz era brilhante como o Sol.

- Não é maravilhoso, padre? Que extraordinário é o trabalho do

Senhor.

- É verdade. Ele trabalha de modos desconhecidos. O Domine

Sadrinho disse-vos quais as intenções que tem a vosso respeito?

Timóteo inclinou a cabeça.

- Outra tarefa, padre? Vou ser advogado de um novo hóspede?

Gonsção suspirou. O Domine até deixa para mim o anúncio das

novidades.

- Não, Timóteo. Nós vamos fazer uma grande viagem, vós e eu.

Os olhos do rapaz esbugalharam-se.

- Uma viagem, padre? Através do mar? Para Lisboa ou Roma?

Rindo tristemente, Gonsção disse.

- Ai, não, meu filho. Nem por mar nem para nenhum lugar tão

importante. Nós vamos para a selva da índia. A viagem será perigosa e o que

vamos procurar pode ser ainda um perigo maior.

Page 223: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Perigo, padre?

- O inglês que vós ajudastes disse que nos levaria à fonte do pó, que

traz os mortos à vida. Domine Sadrinho acredita que ele pode ser de valor

inestimável para a Santa Casa. Eu não tenho tanta certeza. E o inglês pode

tentar levar-nos por um caminho errado.

- Não, não, padre! O senhor Chinnery é um bom homem. Eu sei

isso. Se ele diz que nos levará lá, eu acredito nele.

- Espero que a vossa fé esteja bem localizada, Timóteo. Mas de

qualquer forma, enfrentaremos muitos perigos. Para lá de Goa, há poucos que

honrem a Santa Casa, ou mesmo que conheçam o nosso Deus.

- Eu compreendo, padre.

- Quereis ir em tal viagem, meu filho? O Domine Sadrinho está

decidido a enviar-vos, mas eu proteger-vos-ei, se escolherdes não ir.

O rapaz olhou para as sandálias por um longo momento. Olhou de

novo para cima e disse:

- Se é ao serviço de Deus e da Santa Casa, então eu devo ir.

Seremos como os cavaleiros das Cruzadas, ou aqueles que procuravam o

Santo Graal, não é?

Gonsção sorriu e colocou a mão sobre o ombro de Timóteo.

- Como os cavaleiros em cruzada, meu filho. Admiro a vossa

coragem e bom coração. Talvez sobrevivamos juntos a esta viagem.

Capítulo XXI

ACÓNITO: Esta planta tem apenas uma haste que cresce de uma

raiz tuberosa. As folhas são escuras por cima e claras por baixo e tem

no cume um cacho de flores purpúreas, que têm a forma de um capuz

de monge. Também lhe chamam a flor-do-capacete ou napelo. Deve-se

tomar muito cuidado com o uso desta erva, pois dela se faz a decocção

Page 224: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

de um veneno mortal que aflige as pessoas com paralisia, enquanto

mata. O único antídoto é feito de lesmas que se tenham alimentado de

triaga. Diz a lenda que o acônito cresceu, pela primeira vez, da baba

que gotejava do bucho de Cérbero, o cão das três cabeças que guardava

os portões de Hades, foi usado pela deusa-bruxa Hécate para envenenar

o pai. Dizem que as bruxas mastigam as folhas de acónito para se

entorpecerem e terem visões de viagens a terras distantes...

Thomas estava sentado num banco de pedra frio, num pátio da

Santa Casa. Encostou-se, contra a parede atrás de si, de olhos fechados. A

brisa matinal deslizava sobre ele, pássaros exóticos pairavam e cantavam nos

ramos das árvores, por cima da sua cabeça. Thomas tentou não pensar na

dor.

Os braços pendiam-lhe inúteis, as mãos repousavam no regaço. Se

as cordas pudessem sentir como os seus membros, seria assim que sentiriam?

Cingidas, torcidas e queimadas nas extremidades? As mãos tinham sido

envolvidas em ligaduras ensopadas num bálsamo com um cheiro estranho.

Eu devia perguntar ao Irmão Timóteo o que foi usado, pois parece

ter virtude. As queimaduras da corda atormentam-me, mas não tanto como

poderiam.

Os sons da preparação para a viagem continuavam à sua volta: as

mulas a serem seladas, as carroças a serem carregadas, os homens a gritar

ordens. Thomas uma vez mais deu graças a Deus pela proximidade da sua

fuga da Santa Casa. E depois perguntou-se com tristeza, se Deus estaria a

ouvir. Se a sua confissão forçada e o batismo tivessem sido a iniciação na fé

verdadeira, então Deus poderia estar agora a ouvi-lo pela primeira vez. Porém,

se Thomas tivesse renunciado àquilo que era a fé verdadeira, então os ouvidos

do céu podiam agora estar fechados para ele, para sempre.

Uma sombra caiu sobre ele e Thomas abriu os olhos. Um monge,

com o rosto obscurecido pelo capuz castanho de jesuíta, estava ao lado dele,

de pé.

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- Bom dia, Irmão - disse Thomas, não se preocupando por ter

misturado a língua inglesa e a portuguesa na saudação.

O monge acenou com a cabeça.

- Bem, encontramo-nos de novo e em melhores circunstâncias,

rapaz. Parece que a minha fé foi bem colocada em ti.

Thomas franziu a testa.

- Não se pode dizer propriamente que eu esteja bem, Andrew.

- Mas estás vivo e algum dia estarás livre, o que é mais do que

puderam dizer muitos dos que entraram nestas paredes.

- Antes que algo mais escape dos vossos lábios, Andrew, lembrai-

vos que tenho uma questão que quer resposta.

Lockheart fez uma pausa.

- E tê-la-ás, quando chegar o momento certo. Mas não aqui. Aquele

frade dominicano que ali vem, está desconfiado do teu intento. Temos de

esperar um pouco.

Ao som dos passos que se aproximavam, Thomas voltou a cabeça.

Era o dominicano, padre Gonsção, com a capa preta rodopiando-lhe em torno

da batina branca.

- Boa manhã, Irmão, Senhor Chinnery. - O frade negro

cumprimentou-os a ambos com a cabeça e abençoou Thomas em latim,

fazendo-lhe o sinal da cruz. O padre Gonsção parecia ter mais de 30 anos,

com o rosto marcado pela experiência, não pelo tempo. Os olhos cor de avelã

indicavam alguma inteligência e integridade, mas Thomas perguntou-se a si

próprio que crueldades eles teriam contemplado no trabalho do padre. Pela

maneira como Gonsção olhou carrancudamente para os preparativos, Thomas

concluiu que o bom padre não estava de modo nenhum satisfeito por fazer

parte da expedição.

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- Como vos sentis hoje, meu filho? - disse o padre Gonsção em

latim, com sotaque português. Estendeu a mão, como que para apertar o

ombro de Thomas, depois deteve-se.

- Estou melhor, padre - disse Thomas.

- Vou rezar ao bom Deus para sarar os vossos braços, como sarou a

vossa alma.

- Os meus agradecimentos. O vosso Irmão Timóteo tem habilidade

nas artes de curar. Ouvi dizer que ele viria convosco, contudo não o tenho

visto. - De fato, o rapaz não tinha falado de outra coisa, enquanto punha

ligaduras nas mãos de Thomas na noite anterior, tagarelando sobre os

cavaleiros das Cruzadas, o rei Artur e o Graal, Jasão e o velocino de ouro,

Odisséia, Herodes e Perseu. Como se esta louca viagem fosse alguma

expedição saída da lenda. Que pena que eu tenho de desapontá-lo. Porque se

eu levar a minha avante, esta expedição terminará em Bijapur.

- Ele vai - disse o padre Gonsção, franzindo a testa em

desaprovação. - Mas esta manhã foi dizer adeus à família. Juntar-se-á a nós

mais tarde, fora da cidade, onde nos vamos juntar à caravana que nos

acompanhará.

Lockheart começou a falar para o padre em português. Thomas não

conseguia perceber muito do que era dito, mas concluiu que o escocês estava

a oferecer uma gratidão untuosa e devota e a assegurar o bom comportamento

no futuro.

O padre Gonsção aceitou isto com um aceno de cabeça superficial e

desculpou-se rapidamente, dirigindo-se para onde estavam as mulas

carregadas e as carroças saindo do caos para formarem uma linha grosseira.

- Aquele não é louco nenhum - disse Lockheart. - Não confia em

nós. Devemos tomar muito cuidado, para que ele não adivinhe o nosso

propósito. - Olhou para trás, para Thomas. - Seja lá ele qual for.

- O nosso propósito? A minha intenção era fugir para casa à

primeira oportunidade.

Lockheart acocorou-se sobre um joelho ao lado de Thomas.

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- É isso? - disse ele suavemente. - Na verdade não tencionas

procurar a fonte do precioso pó?

Thomas suspirou.

- Quando soube dele pela primeira vez, Andrew, tinha pensado

procurá-lo, para tirar alguma glória do desastre. Agora - olhou para os braços

-, penso que está para além de mim.

- O corpo e o espírito podem curar-se, rapaz. As hipóteses podem

ser melhores do que pensas. O feiticeiro disse-te onde estava a fonte?

Thomas olhou para Lockheart por um momento.

- Sim, mas não em pormenor. É claro que há um mapa. Lockheart

ergueu as sobrancelhas.

- Um mapa! Ainda o tens?

Thomas sorriu perante a ganância do escocês.

- O Domine tirou-mo, ainda antes de eu o ter lido. Sem dúvida que

o nosso bom padre o tem agora.

- Realmente? Então... que necessidade tem ele de vós?

- O mapa tem pouca utilidade, para quem não souber decifrá-lo,

nem o que significam os símbolos que estão escritos nele. Cartago teve de me

dizer o que ele mostra. Eu inventei armadilhas e enigmas para serem

resolvidos no percurso e que embora eu não pudesse predizer quais seriam,

tenho o conhecimento para os ultrapassar.

- Rapaz esperto. Então apenas tu podes interpretar o mapa?

Thomas fez uma nova pausa.

- Talvez. Embora eu tenha esquecido muito do que Cartago me

disse. Lembro-me de que Bijapur era um lugar de nota. E a partir daí, muita

coisa é possível.

Lockheart semicerrou os olhos por um momento, depois sorriu

abertamente.

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- Bem, então, não planejaremos para além disso. - Bateu nos

joelhos de Thomas, amigavelmente. - Bijapur é o nosso objetivo por agora.

Depois disso veremos onde o destino nos conduz. Vem, parece que já têm o

teu corcel pronto.

Thomas ergueu-se, com a ajuda de Lockheart e deixou-se conduzir

até uma mula alta e castanha, cujas rédeas estavam seguras por um jovem

dominicano. Com muita dificuldade e dor, Thomas conseguiu içar-se

desajeitadamente sobre a sela e rolar para uma posição sentada. Tentou deitar

a mão às rédeas, mas o monge abanou a cabeça negativamente.

- Por Cristo - rosnou Thomas para Lockheart. - Os meus braços

inutilizados não são o suficiente para provar que eu sou de confiança? Tenho

de ser conduzido por esta criatura?

- Não é da natureza da Santa Casa demonstrar demasiada

confiança. Temos de provar primeiro a nossa mansidão. Tens de ser paciente.

Ah, lá vêm os homens do governador.

Os portões do pátio abriram-se para entrarem doze soldados goeses.

Os elmos de bronze em forma de barco e as condecorações polidas brilhavam,

tal como as espadas que traziam nas ancas.

- Somente uma dúzia - murmurou Lockheart. - O governador não

estava com uma disposição muito generosa. Mais boas notícias para nós, eh? -

Deu uma palmadinha na perna de Thomas e afastou-se descendo em direção

às carroças pesadamente carregadas.

A mula de Thomas resfolegou e movimentou-se impacientemente

debaixo dele. Thomas observou os soldados, enquanto passavam por ele a

cavalo nos seus corcéis sem valor. Thomas não era grande avaliador de

cavalos, mas estes não pareciam ser da melhor raça, nem tinham recebido o

melhor tratamento. Os próprios soldados eram, notou ele, todos tão magros e

duros como o homem no Aljouvar, Joaquim. Com efeito, um dos soldados

parecia-se fortemente com ele. De fato, este reparou em Thomas e chamou-o:

- Ei, inglês!

- Joaquim, juro pela minha alma! - exclamou Thomas. Que milagre

é este?

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Ignorando os olhares dos outros soldados, Joaquim aproximou o

cavalo até junto de Thomas.

- De que milagre falais, senhor? Que eu esteja aqui, ou que vós

estejais a sair deste lugar com vida?

- O primeiro, meu amigo. Dar-vos-ia um abraço, mas os meus

braços... não são o que eram.

Joaquim acenou intencionalmente.

- Ainda bem, meu amigo, pois não seria bom que os meus colegas

me vissem abraçar um terrível estrangeiro herético como vós.

- Herético, já não, Joaquim. Fiz a minha confissão na Santa Casa.

- Ah, graças à Virgem Maria. Não admira que vos tenham deixado

vivo. Então agora sois simplesmente um inglês imundo e quase digno de ser

meu amigo - disse Joaquim com um sorriso.

- Espero poder provar o meu valor a seu tempo - disse Thomas. -

Mas não me respondestes.

- Mas isto não é nenhum milagre, senhor. Quando a Santa Casa

pede soldados para uma longa viagem fora de Goa, o nosso sargento manda os

seus melhores homens? Não, ele manda às prisões procurar homens

indesejáveis que estejam desesperados. Então vieram ter comigo no Aljouvar e

disseram: ”Joaquim, preferes ir numa missão para a Santa Casa, ou ser

enforcado como ladrão? Foi uma escolha difícil, senhor. Mas como sou um

homem corajoso, escolhi a viagem difícil em vez de uma morte fácil.

Thomas riu.

- Fico grato pela vossa coragem, Joaquim. - Notou que o padre

Gonsção estava a olhar para eles do outro lado do pátio. Ai, este encontro

certamente não encorajará a sua confiança.

Joaquim olhou de relance para Gonsção.

- O padre não parece satisfeito, Thomas. Falaremos mais tarde, está

bem? - Joaquim piscou o olho e partiu a cavalo até onde os outros soldados se

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encontravam à espera. Estes lançaram a Joaquim olhares curiosos, mas não

pareceram zangados.

Com o ânimo mais leve, Thomas suspirou e relaxou na sela. A

esperança ainda é possível, se a providência me traz de novo a companhia de

tais homens.

A medida que a órbita do Sol se elevava por cima da parede do

pátio, eram feitos esforços finais para a partida; os abegãos puxavam pelas

cangas dos bois e os carroceiros verificavam as rodas e os eixos. O padre

Gonsção finalmente montou a cavalo, um corpulento picarço. Lockheart ia

atravessado numa mula preta e cavalgou com o padre para a frente da

caravana.

A quem serve agora o bom Irmão Andrew?, perguntou-se Thomas. A

ele próprio, a Deus ou à Santa Casa?

Os soldados tomaram posições: quatro à frente com o padre

Gonsção e Lockheart, quatro atrás, depois dos carregadores e das carroças e

quatro no centro, onde Thomas seguia.

De algum modo, Joaquim tinha-se colocado entre estes e

descaradamente cavalgava ao lado de Thomas, tendo tirado as rédeas da mula

das mãos do dominicano.

- Como ficaste encarregado de tomar conta de mim, Joaquim?

- Nós, soldados, sabemos o efeito que o Aljouvar pode ter num

homem, senhor. Disse-lhes que conhecia todos os vossos truques, que mós

tínheis contado nas masmorras e, por isso, eu era o mais indicado para vos

conduzir.

Thomas riu.

- Quem me dera ter sido abençoado com a vossa língua ligeira,

senhor.

- Tentais chamar-me mentiroso, senhor?

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- Nunca eu seria capaz de insultar assim um gentil homem tão

terno. Mas admiro a vossa habilidade, para explicar como as coisas devem ser.

Dizei-me, tendes novas dos outros? Sabdajnana está livre?

Joaquim rosnou.

- Foi libertado pouco tempo após a vossa partida, senhor. A família

resgatou-o por uma alta soma.

- Fico contente. E Van der Groot? Ainda está na prisão? Joaquim fez

uma pausa e depois disse suavemente:

- Escapou do Aljouvar.

- Excelentes notícias - disse Thomas também baixando a voz. - Foi

para casa, então?

- Poder-se-á dizer que sim, senhor. Há uma hipótese de poderdes

vê-lo, uma vez que estamos a sair da cidade.

- De verdade? Então talvez eu possa informá-lo de que estamos

bem.

Joaquim olhou-o de modo peculiar, mas não disse nada.

Numa varanda por cima deles, surgiu o inquisidor Sadrinho, com a

batina negra flutuando na brisa da manhã. Ergueu os braços e abençoou a

expedição, terminando com exortações à glória e votos de felicidades. Thomas

perguntou a si próprio, quanto teria sido dito aos outros da expedição, aos

soldados, aos carroceiros e aos servos, sobre o seu propósito e o que eles

acreditavam que iriam encontrar como resultado desta viagem. Que estranho

que o meu estratagema tenha levado a esta volta no meu destino. Quantas

vidas eu destruí, meramente com o fim de ficar livre? Oxalá não lhes aconteça

nenhum mal, quando eu os abandonar.

Finalmente o padre Gonsção gritou:

- Adiante!

O grito foi levado pela linha fora, como uma onda no mar. os

chicotes estalaram, os homens puxaram pelos bois e cavalos, as rodas das

carroças chiaram e lentamente a procissão pôs-se em movimento.

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Joaquim estalou a língua para a mula de Thomas. Esta espetou as

orelhas para a frente e iniciou uma caminhada vigorosa para acompanhar o

cavalo mais alto, ao seu lado. Thomas agarrou a saliência fronteira da sela

com ambas as mãos para ganhar balanço, estremecendo com a dor.

Só depois de terem passado os portões nos muros da Santa Casa, é

que Thomas sentiu os músculos a relaxar e a respiração a tornar-se mais

livre. Não se tinha permitido acreditar na fuga até ao momento.

- Graças a Deus, nesta manhã tão gloriosa - murmurou. A

procissão passou através das ruas tranqüilas, diferentes das avenidas

apinhadas, cheias de homens e animais que Thomas tinha visto no seu

primeiro dia em Goa. De fato muitas portas e persianas estavam fechadas.

- Joaquim, é feriado ou dia de festa? É por isso que a cidade parece

vazia?

O soldado resfolegou.

- Olha outra vez, Tomás. - Os goeses não são loucos. Foram

avisados para não interferirem com o progresso da Santa Casa tão amada.

Thomas observou as casas por onde passaram, cuidadosamente, e

notou que havia rostos cautelosos a espreitar por trás das cortinas e das

persianas. As crianças pequenas estavam a ser arrastadas para dentro das

portas, pelas mães. As crianças mais velhas, escondidas nas sombras, faziam

figas ao padre Gonsção.

- Sabem que estamos a sair da cidade - disse Joaquim -, ou não

seriam tão atrevidos.

Uma grande árvore familiar surgiu à vista, com homens sentados à

sombra dela. Estes ergueram os olhos silenciosamente, enquanto a procissão

passava e Thomas reconheceu um rosto de barba branca. Não ousou chamar

o padre Stevens, nem pôde erguer uma mão em saudação. Thomas apenas

acenou gravemente para o velho monge. O padre Stevens fez um aceno grave

em resposta e pareceu pronunciar as palavras ”Vai com Deus”.

As casas ao longo da rua mudaram gradualmente de ricas casas

citadinas portuguesas, para casas vedadas com muros de prósperos

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mercadores hindus e muçulmanos, e depois para simples cabanas cobertas de

colmo dos hindus, que cheiravam fortemente a excrementos de animais.

Thomas calculou pelo Sol, que se estavam a dirigir para Norte e

para Leste. Passaram por uma abertura numa muralha de pedra a

desmoronar-se e emergiram numa estrada larga que ia de Leste para Oeste. A

Norte havia um rio castanho, tão largo que a outra margem era uma baça

linha escura no horizonte.

Pequenos templos ponteavam a margem mais próxima e para além

deles, os barqueiros com paus, faziam deslizar sobre a água plácida, estreitas

embarcações cheias de peixe e de flores e de frutos coloridos.

- Ah! - disse Joaquim. - Lá está o Pedro. Estais a vê-lo?

- Não. Onde está? - Thomas olhou para cima e para baixo, vendo

apenas esbeltas mulheres hindus carregando cestos.

- Lá atrás, na muralha.

Thomas olhou para trás, para a muralha em ruínas e o que viu

gelou-lhe o coração. Três cadáveres estavam pendurados em grampos,

voltados para o rio. Um, era pouco mais que um esqueleto embrulhado em

pele. Outro, vestia trapos por cima da pele seca e castanha. O terceiro era

louro e vestia o gibão e os calções de Van der Groot. Os pássaros estavam a

debicar no que sobrava dos olhos.

- Meu Deus - murmurou Thomas, desviando o olhar. Dois soldados

benzeram-se. Os outros riram e fizeram gracejos. - Porque não me haveis dito

que ele estava morto?

- Eu disse-vos que ele tinha fugido de Aljouvar, Thomas. Não há

fuga mais certa do que a morte.

Capítulo XXII

OLIVEIRA: Esta árvore tão venerada está sempre verde, com tronco

amarelo e com um fruto que contém azeite e que tem a cor verde ou

Page 234: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

preta. Diz-se que vivem até avançada idade. A infusão das folhas

acalma o espírito. A decocção das cascas reduz a febre. O azeite do fruto

cura queimaduras e quando engolido ajuda a digestão. Para os antigos,

era consagrada a Athena e os Romanos faziam coroas das folhas de

oliveira para significar conquistas e reinado pacífico. No Oriente, a

oliveira é o símbolo da paz, da realização, do incremento e das viagens

em segurança...

O padre Gonsção ouviu agitação atrás de si e voltou-se na sela.

Alguns soldados pareciam estar a gozar uns com os outros acerca dos

criminosos pendurados na muralha da cidade. Com um suspiro, Gonsção

voltou-se novamente para a frente. Timóteo a conduzir tais homens. Como é

que o Sadrinho pôde ter tal pensamento?

Quem lhe dera ter o entusiasmo de Timóteo em relação à viagem.

Ou mesmo o do Irmão Andrew, que pairava ao seu lado sobre os estranhos

templos e as curiosas plantas e animais. Quanto mais se afastavam das

paisagens familiares, mais pesado ficava o coração de Gonsção. Como é que

eu me deixei convencer a isto? Depois lembrou-se da ganância no rosto de

Sadrinho, o horror do feiticeiro trazido à vida novamente. Que idiotice a

minha. O meu desconforto não é nada comparado com a importância de

destruir o mal que nós procuramos.

Tendo descido alguns quilômetros pela estrada, chegaram a uma

área aberta da planície coberta da poeira vermelha, circundada por altos

coqueiros e bananeiras. Alguns camelos ajoelhados à sombra mastigavam erva

preguiçosamente e observavam a aproximação da caravana com grandes olhos

negros. Os seus guias de turbante, com rostos escuros e marcados pelo

tempo, sentavam-se ao lado deles, mascando betei ou conversando

calmamente. Os homens da caravana não se levantaram, quando Gonsção

cavalgou até à clareira, nem chamaram ou lhe prestaram sequer muita

atenção.

O Irmão Andrew olhou em volta.

- Parece que a nossa caravana está aqui. Esperamos apenas pelo

Irmão Timóteo?

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- Não - disse Gonsção desmontando. - O chefe da caravana deverá

juntar-se a nós.

- Ele não é nenhum destes?

- Ela - disse Gonsção desmontando. - É uma viúva do clã dos

Maratas. Herdou o negócio do marido. Mas não vejo que já tenha chegado um

palanquim de mulher.

- O quê? - disse o Irmão Andrew, deixando-se cair da mula. - Ela

não teve as boas maneiras de se lançar sobre a pira do marido?

Gonsção franziu o sobrolho.

- Tendes um estranho sentido de humor, Irmão. Essa prática

bárbara, ouvi dizer, foi proibida em Goa.

- Então ela fez a sábia escolha do lar e da lareira. Perdoai-me,

padre. Hoje estou com um humor esquisito.

- Devemos considerar esta viúva com respeito - disse Gonsção,

conduzindo o cavalo até um tronco de palmeira onde o atou -, porque é a

riqueza da família dela que em parte suporta esta expedição, e é o seu nobre

parentesco que nos levará a conseguir uma audiência com o sultão em

Bijapur.

- Prometo governar a minha língua com cuidado na sua presença.

- Vós não estareis na sua presença, Irmão - disse Gonsção,

enquanto observava o resto da expedição a deslocar-se até à clareira. -

Disseram-me que as senhoras brâmanes se mantêm afastadas dos estranhos,

quase tão estritamente quanto as muçulmanas. Provavelmente nem sequer

nos falará, senão através das suas servas. Espero que vós e o resto do nosso

grupo adiram a esse costume.

- Podeis contar comigo, padre.

- Espero que sim. Ah. Fareis melhor em ir ver o vosso jovem senhor

Chinnery. Parece que está a ter dificuldade para descer da mula.

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Thomas estava deitado sobre o estômago, atravessado na sela, com

o rosto a arder com o esforço e a vergonha. Não ousava mexer-se, temendo

uma queda de cabeça. Os braços agitavam-se ao lado do corpo, inúteis como

as asas de um pássaro acabado de nascer.

- Oh, tu aí, rapaz! Espera um momento, estou aqui. Thomas sentiu

Lockheart agarrar-lhe as costas da camisa e a cintura das calças. Com um

puxão poderoso, Thomas foi puxado para fora da sela e para os braços fortes

de Lockheart.

- Porque não chamaste por alguém, rapaz? Onde está o teu

cavaleiro goês?

- Penso que foi urinar - arquejou Thomas, tentando manter-se de

pé. - Isto é uma idiotice, assim eu não sirvo para nada.

Lockheart olhou por cima do ombro.

- Vem, e eu farei o serviço antes de o bom padre poder piscar um

olho.

- O serviço? - Thomas foi empurrado por Lockheart à volta da mula

e para uma grande pedra, fora da vista do padre Gonsção. - De que serviço

falais?

- É melhor ajoelhares-te, rapaz. Serei rápido, prometo. Lockheart

enrolou uma perna à volta dos tornozelos de Thomas, fazendo-os desaparecer

debaixo dele. Enquanto Thomas caía para a frente, Lockheart segurou-o com

uma mão por baixo do peito. O antebraço foi apanhado pela grande mão

direita de Lockheart. Com uma torção poderosa, Lockheart empurrou o ombro

de volta ao seu encaixe, com um rangido de causar náuseas.

Thomas gritou. A dor foi tão intensa quanto o strappado.

- Coragem, rapaz. Mais uma vez.

- Não...

Mas Lockheart habilidosamente agarrou o braço esquerdo de

Thomas. De novo veio a torção e o ranger do osso. Thomas mal podia respirar,

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enquanto as lágrimas se lhe derramavam dos olhos. Encostou-se contra as

rochas, os olhos fechados, com os ombros e os braços latejando de dor.

Ouviu passos a correr e quando voltou a abrir os olhos, ele e

Lockheart estavam rodeados por soldados com as espadas em punho.

O padre Gonsção forçou caminho por entre os soldados e olhou

para ele e para Lockheart.

- O que estais a fazer?

- Pedistes-me para o ajudar a descer da mula, padre. A única ajuda

para ele, contudo, era pôr-lhe os ombros no lugar. De outro modo precisaria

de ajuda para subir e descer durante toda a viagem.

Thomas sentiu o sofrimento nos ombros a diminuir para uma dor

que rugia. Sem pensar, ergueu as mãos para lhes tocar e ficou maravilhado

por poder mexer de novo os braços. O padre semicerrou os olhos com

desconfiança e ajoelhou-se junto de Thomas

- Porque é que ele gritou?

- Tive de o magoar a fim de o ajudar, padre. Como é necessário ao

recolocar um membro que se partiu, ou ao cortar um que está podre. Ou ao

garantir uma confissão, talvez? Como podeis ver, ele recuperou. Um pouco de

sofrimento, por vezes, pode ser tão bom para o corpo como para a alma.

Thomas disse:

- Está tudo bem, padre. Ele apenas... me surpreendeu. Já ouvi falar

do método, embora seja a primeira vez que o veja pôr em prática. Ajudará à

minha recuperação.

- Ai, eu ajudei-te no teu negócio também, ao ensinar-te uma outra

arte de curar.

- Uma que eu possivelmente não virei a empregar - disse Thomas,

fazendo uma careta e esfregando os braços.

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- Muito bem - disse o padre Gonsção. - Tomai cuidado, meu filho.

Nós contamos convosco.

Olhando furiosamente para Lockheart, Gonsção ergueu-se e

afastou-se.

Os soldados também se dispersaram, alguns olhando para Thomas

com divertimento, outros aborrecidos por terem sido incomodados por nada.

Joaquim demorou-se mais um momento, olhando para Lockheart

especulativamente.

- Vós, Irmão, fostes soldado, não é verdade?

- Entre outras coisas - disse Lockheart.

Joaquim sorriu para Thomas e afastou-se para se ir juntar aos seus

companheiros.

Thomas encostou as costas contra a rocha. Lockheart sentou-se

pesadamente ao seu lado.

- Suponho que devia agradecer-vos, Andrew - disse Thomas.

- Os agradecimentos não fazem falta, rapaz. Embora pense que o

padre tenha querido manter-te fraco. Não irá agradecer-me, tenho a certeza.

- Então fostes soldado. E mercador de lã. E agora médico. Assim

como um falso monge.

- E muitas outras coisas, além disso, embora este hábito seja mais

apto do que muitas outras coisas que usei.

- E que trajo usa o homem que vos mandou atrás de mim?

Lockheart suspirou e encostou a cabeça para trás, contra a pedra.

- Roupas muito familiares para ti, rapaz. Foi o teu próprio pai que

me enviou para zelar por ti.

Thomas olhou fixamente, sem falar.

- Agora provastes que sois um mentiroso, Andrew. Como disse, o

meu pai não se preocupa nem um pouco comigo.

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- E como disse, muitas vezes o cuidado de um pai não é visível.

Quando ele soube que tu estavas para ir numa viagem tão longa, contratou-

me para te seguir e proteger.

- Por que razão não falastes disso antes? O meu pai não podia ter-

vos apresentado a mim antes da viagem?

- Vamos, então, o que terias dito a tal encontro? Certamente

desejarias provar a tua masculinidade nessa viagem.

- Como terias aceite uma ama como presente do teu pai? Não te

terias enraivecido com fúria? Não terias desdenhado a minha companhia como

se fosse um leproso?

- Verdade. Tendes toda a razão. Enfurece-me agora que o meu pai

tivesse tão pouca fé em mim.

- Isto não é falta de fé, mas excesso de cuidado. És importante para

nós, Tom. Mais do que pensas.

- Que tipo de ama é que era capaz de entregar o seu protegido nos

braços do pirata e no peito da Inquisição?

Lockheart olhou para o chão.

- Uma ama louca e covarde, confesso, embora até esse abandono

possa parecer um ato de bondade, se se soubesse toda a verdade. A nossa

viagem parecia no fim, o meu dever um fracasso. Num momento de fraqueza,

decidi escapar ao meu destino e abandonar-te ao teu, o que de algum modo

consegui. Mas os poderes divinos não se deixaram frustrar e tu seguiste um

castigo apropriado. Mas deves concordar que te compensei desde então. Sem

mim, nunca terias deixado a Santa Casa.

- Sem vós, eu nunca teria ido para lá.

- Todas as coisas têm um propósito, Tom, embora possam estar

para além do nosso alcance. Talvez estejas destinado a encontrar o fabuloso

elixir da vida e morte. Talvez nasça da própria pedra filosofal da lenda. Não é

verdade que todos os heróis da lenda sofrem provas de força e coragem, antes

de lhes ser permitido avançar em direção ao seu objetivo almejado?

Page 240: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Começastes a falar como o Irmão Timóteo. Não tenteis distrair-me

com histórias, Andrew. Tendes provas que foi o meu pai quem vos contratou?

- Somente esta - Lockheart tirou para fora da gola do seu hábito

castanho, um medalhão de prata numa corrente. Thomas segurou-o

gentilmente e examinou-o. De um lado estava estampado um veado de patas

erguidas, sobre uma Lua em quarto crescente. Na outra havia uma figura

feminina com trajo grego, de pé entre dois cães esguios.

- De fato, o meu pai tinha um medalhão como este. As imagens

trouxeram ao de cima fragmentos de memórias de infância ou de sonhos,

vacilando vagamente como algas, logo abaixo da superfície do oceano. Um

gosto de vinho doce e mel, vozes cantando demasiado baixo para serem

inteligíveis, uma lua em quarto crescente brilhando por cima das árvores, cães

ladrando à caça.

- Um sinal da sua boa-fé em mim.

- Ou vós roubastes. O mestre Coulter sabe de vós e da missão de

que estais incumbido?

- Não, poder-se-ia dizer que ele e o teu pai... não estão de acordo.

Por isso não lhe foi dito nada.

- Hum. Nunca ouvi o meu mestre falar mal dele. A sua boa esposa,

senhora Coulter, em tempos esteve em desacordo.

- Pode ser que fosse a sua intromissão que o vosso pai receava,

então.

- Não sei porque é que se havia de intrometer, já que foi ela que me

pôs na nossa mal afortunada viagem. Ela disse que curaria os meus pesadelos

e assim foi, até que chegamos à índia.

Lockheart olhou-o curiosamente, mas não disse nada. Thomas

entregou-lhe de novo o medalhão.

- Ainda não estou convencido se sois um amigo ou o filho da puta

mais aldrabão que alguma vez saiu da Escócia.

Page 241: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Lockheart levantou as mãos dos joelhos, encolhendo os ombros.

- Então devemos deixar o tempo e os acontecimentos darem-nos a

resposta.

Nisto, chegou um sopro distante de trompas, vindo do fim da

estrada. Os camelos na clareira levantaram os seus focinhos e cheiraram o ar.

Os condutores levantaram-se, sacudindo as vestes compridas. Os soldados

pararam de jogar e levantaram-se.

- Dir-se-ia que o chefe da caravana se aproxima - disse Lockheart.

Thomas perscrutou a estrada e viu dois hindus de pele escura com

as compridas trombetas que tinham soado ainda há pouco, mais dois camelos

pesadamente carregados com barris e caixas. Atrás deles havia um grande

palanquim carregado por oito homens, coberto com uma tenda de pano

púrpura, com laços e borlas de ouro. Por trás dele caminhavam quatro servas

com sáris escarlates e argolas de ouro nos narizes, falando com gestos

animados e dedos pintados de vermelho.

- Uma pessoa rica - disse Thomas.

- Com efeito, e ela paga a nossa viagem; por isso o padre deseja que

nos mantenhamos afastados, para não ofendermos as suas nobres

sensibilidades.

Thomas concordou com um gesto de cabeça; depois viu um

momentâneo lampejo de luz do Sol sobre a prata e um movimento - um braço

esguio saindo para fora do palanquim, lançando algo fora. O gesto era

familiar. O coração quase lhe parou no peito. Podia ser?

Aditi limpou a mão na saia, depois de deitar fora o bolo de betei

meio comido. Tenho de parar de mastigar isto. É um hábito sujo. Os meus

dentes já estão a ficar manchados.

Mas o seu espírito precisava de ser acalmado desde o puja no

templo de Mahadevi. O seu desassossego tornou-se pior, quando o servo que

tinha mandado ao padre Stevens voltou com a notícia de que o jovem Tamas

tinha sido preso na Ordem de Gor. Não sabendo o que Cartago lhe tinha dito,

Aditi ficara quase frenética com a preocupação e a impotência.

Page 242: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Nessa altura tinham chegado as notícias de que os monges da

Ordem de Gor procuravam uma caravana que estivesse de partida para

Bijapur e apoio para uma expedição de pouca importância ao Decão. No seu

coração Aditi sabia a razão. Convenceu os patronos a mandá-la como chefe da

caravana. Foi, compreendeu então, a missão para a qual tinha ficado em Goa,

como se Gandharva tivesse de certa forma sabido. Era dharma; o que quer

que fosse, os monges da Inquisição não podiam encontrar Mahadevi.

O balanço do palanquim parou e Aditi espreitou para fora pela

cortina lateral. Os condutores de camelo na sombra das palmeiras estavam a

levantar as bestas que gemiam. Estes homens sabiam do seu ofício e ela não

estava preocupada com eles.

Chamou uma das servas silenciosamente.

- Qual é o vosso desejo, Sri Aditi?

- Não podes pronunciar esse nome. Agora sou senhora Agnihotra.

Olha em volta e diz-me quantos soldados vês.

- Perdoai-me... Sri Agnihotra - A rapariga olhou em volta, afastou-se

por um momento e depois regressou. - Não muitos. Só vejo doze.

- Mais do que eu gostaria, mas vou conseguir. Quantos monges?

A rapariga afastou-se apressadamente, de novo. No regresso disse:

- Um com hábito preto e branco e um castanho.

- Só dois. É boa sorte. E viste um jovem pálido com cabelo loiro?

- Sim, Sri Agnihotra. Está além, junto às rochas.

- Ah. - Aditi espreitou para onde a rapariga apontou. Viu-o e sentiu

um estranho aperto dentro de si. Ele está mais magro e pálido. Mas o que é

que eu esperava? A Ordem de Gor nunca é bondosa e eles certamente fizeram

tudo o que puderam para perscrutar os seus segredos. Tenho de descobrir o

que ele lhes disse e ver se não descobrem mais nada.

Page 243: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Além de Tamas, ela reconheceu o desleal Lockheart, com o disfarce

de monge. Assim fica ainda mais interessante. Será que ele também busca o

Rasa Mahadevi?

A serva regressou.

- Sri, o padre da Ordem de Gor, padre António Gonsção, envia os

seus cumprimentos e pede para demorarmos um pouco mais a nossa partida.

Diz que esperam mais uma pessoa do seu grupo. Outro monge.

- Outro monge - suspirou Aditi. - Mais uma vez ao contrário do que

eu teria desejado. - Olhou de relance uma vez mais para Tamas. - Enquanto

estamos atrasados, pede ao louro que se aproxime do palanquim. Se te

interrogarem, diz que nunca vi ninguém com a sua aparência e que estou

curiosa.

A serva curvou-se.

- Como desejardes, sri Agnihotra. - Aditi fechou a cortina e

recostou-se nas almofadas. Não conseguia encontrar uma posição confortável

e as mãos pareciam determinadas a tremer. Por esta vez sentiu-se satisfeita

por ser uma mulher nobre e resguardada. O que poderia estar a empatar

aquela rapariga? Finalmente ouviu a voz da serva do lado de fora do

palanquim.

- Trouxe-o.

Aditi não ousou abrir a cortina para olhar.

- Não há mais ninguém por aqui perto?

- Não, embora o padre nos observe à distância. Ele não queria

permitir isto.

Tamas murmurou algo numa língua que poderia ter sido uma

tentativa de falar português.

- Volta-o de modo a que o padre não possa ver o seu rosto. Ouviu a

rapariga a rir e a falar com ele de forma aduladora.

Page 244: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Já está, Sri Agnihotra. Suavemente, Aditi disse em grego:

- Tamas, sou eu, alguém que vós encontrastes antes.

- Nai - respondeu ele numa voz rouca, muito perto da cortina. -

Pensei que poderíeis ser vós. - Aditi estendeu a mão e depois baixou-a.

- Estais bem?

- Estou vivo e o meu corpo está a curar-se.

- Ah. Não devemos falar muito tempo, mas queria que soubésseis.

Vim para vos ajudar. Qualquer que seja o vosso objetivo. De novo somos

viajantes na mesma senda, Tamas.

Houve silêncio por alguns momentos.

- A minha esperança é escapar, Despoina. Quando chegarmos a

Bijapur. Qualquer ajuda que possais dar, será muito bem recebida.

Aditi sentiu que ganhava ânimo.

- Farei tudo o que puder. Mas os monges continuarão sem vós?

Uma outra pausa.

- Sem mim não têm aonde ir. Temos de parar de falar. O padre

aproxima-se.

- Muito bem - Aditi começou a rir alto e a falar em latim deturpado.

- Que coisa estranha que vós sois, cabelo-amarelo! Vós divertis-me. Vós fazeis

feliz uma velha mulher chateada como eu.

- Domina - disse uma nova voz que ela presumiu ser do padre. -

Perdoai-me por- esta intrusão imprópria da vossa privacidade. Perdoai o nosso

atraso, mas ouvi dizer que o último membro do nosso grupo estará aqui em

breve. Tenho de levar este homem e ajudá-lo a preparar-se para a viagem.

- Está tudo perdoado, padre. Onde encontrastes esta criatura?

- É britânico, Domina. Por favor perdoai-nos. Temos de nos

preparar.

Page 245: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

- Ide, ide. Gostarei de rir muito dele no futuro.

Aditi ouviu os dois homens afastarem-se, murmurando um para o

outro. Encostou-se de novo nas almofadas e suspirou. ”Sem mim, não têm

aonde ir”, disse ele. Isto não é bom. Ele é o único guia deles. O padre vai vigiá-

lo de perto. E isso significa que ele tem algo para lhes dizer. Ele não fez voto

nenhum de silêncio. Enquanto estiver vivo, há a hipótese de que a Ordem de

Gor o use. Ai, Mahadevi, porque me dás esta missão?

Aditi tocou levemente no cabo de marfim da faca no cós da sua

ghagra. Perguntou-se a si própria qual seria a sensação de a usar, de sentir o

sangue quente dele jorrar sobre ela, saindo da ferida no pescoço, no momento

exato em que o seu órgão masculino jorrasse um outro calor entre as suas

coxas. O pensamento excitou-a e perturbou-a. A vida e a morte

simultaneamente. Na verdade eu sou bem a filha da minha mãe adotiva.

Conduzido para longe pelo braço do padre Gonsção, Thomas sentia

uma estranha alegria. Logo após saber que Aditi estava perto justificou-se a si

próprio, pensando na oferta de ajuda dela. Uma tal aliada inesperadamente,

era um dom da providência. E com tal perigo para ela própria: não me enganei

ao confiar na sua compaixão.

- O que é que ela vos disse? - perguntou o padre Gonsção.

- Hum, palermices em grande parte, padre. Ela... ela pensou que eu

tinha uma aparência muito estranha e queria saber o que eu era.

- Altamente impróprio - resmungou Gonsção, levando Thomas para

a mula.

- Talvez longe dos constrangimentos da família, ela se sinta mais em

liberdade.

- Não deveis incomodá-la.

- Não, padre, mas se ela desejar falar comigo outra vez, devo

insultá-la recusando?

O padre fez uma pausa, claramente infeliz com ambas as escolhas.

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- Veremos. Para cima.

Thomas permitiu a Gonsção ajudá-lo a montar a mula, embora,

depois do tratamento de Lockheart, os seus braços se tivessem tornado mais

capazes. Com um aceno, o padre dirigiu-se ao seu cavalo.

Thomas sentou-se, com o calor do sol nas costas, observando a

caravana a reagrupar-se em torno dele: camelos recalcitrantes levados para a

estrada, homens direcionando-se uns aos outros e aos animais com gritos e

gestos. Há muito tempo que não se sentia tão bem. A vida não era sem

esperança. O uso dos braços fora-lhe devolvido, ainda que estivessem fracos e

magoados. Tinha encontrado de novo amigos inesperados. Até Lockheart, se a

sua história for verdadeira, não passa de um ladrão relutante e não de um

patife completo.

Se, por acaso, a Providência tinha posto no seu caminho a fonte do

pó miraculoso, bem e bom. Mas à frente fica Bijapur, uma cidade da qual ele

não sabia nada, exceto que a sua vida mudaria aí. E os sinais eram de que a

mudança seria para melhor.

O Irmão Timóteo bateu no flanco do burro com uma chibata de

bambu, desejando apanhar a procissão da Senhora Marathi. Ele não queria

manter o padre Gonsção e a expedição toda à sua espera. Na verdade, não

teria ficado tão atrasado se não tivesse de ir ao bazar do leilão.

A mãe regularmente enviava-lhe um dinheirinho que ele nunca

gastava, uma vez que a Santa Casa atendia a todas as suas necessidades.

Compreendia agora que o seu pecúlio tinha tido uma outra finalidade, que

antes lhe era desconhecida.

Porque hoje, depois de despedidas cheias de lágrimas à sua mãe e

irmã, ele tinha sido capaz de ir ao mercado, de manhã, onde entre os

mercadores de especiarias e negociantes de cavalos, havia o que agora estava

pendurado no saco de juta ao seu lado.

Era um espelho com a parte de trás em prata, numa moldura

grande de latão. O ferreiro era cristão, por isso havia cruzes gravadas em cada

um dos cantos da moldura e rosas e lírios nos lados.

Page 247: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Timóteo não sabia como iria explicar a sua extravagante compra ao

padre Gonsção. Não queria que o padre pensasse que era por vaidade; Timóteo

não se preocupava nem gostava particularmente da sua aparência. Talvez não

dissesse nada, até ser necessário.

O espelho era só para proteção, afinal de contas. Timóteo tinha lido

os registros do julgamento. Timóteo tinha sido bem ensinado pelo avô. E um

espelho era o que fazia falta quando se enfrentava uma gárgula, não era?

Timóteo tocou o burro para um trote relutante, desejoso que a viagem da sua

vida começasse.

Nota do Autor

Nos finais do século XVI e nos princípios do XVII, a colônia

portuguesa da cidade de Goa era tão esplendorosa como muitas das suas

contemporâneas européias, de tal forma que se tornou conhecida como ”Goa

Dourada”.

Um viajante foi tão longe que lhe chamou a Roma do Oriente. Foi a

primeira colônia européia no subcontinente da índia, conquistada ao sultão de

Bijapur pelos portugueses em 1510. As ricas possibilidades de comércio na

índia, rapidamente tornaram a colônia num canteiro de intrigas mercantis

entre os Portugueses, os Muçulmanos, os Holandeses, os Dinamarqueses e

por fim os Ingleses e os Franceses.

Também foi um campo de batalha de credos, desde que um posto

avançado da temível Inquisição se estabeleceu ali em 1560. O seu propósito

original era hostilizar os cristãos nestorianos que tinham vivido durante

séculos na costa ocidental da índia, e os cristãos-novos, judeus que se tinham

convertido ostensivamente, mas que contudo, conservavam os seus costumes

anteriores.

Page 248: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Porém, a Inquisição goesa rapidamente ganhou a reputação de ser a

mais corrupta do mundo, focando-se naqueles que tinham dinheiro e

propriedades para poderem ser confiscadas.

Também foi o braço da Inquisição que mais tempo sobreviveu,

operando até meados do século XVII. As descrições detalhadas da Santa Casa

são baseadas nas memórias de um francês que foi prisioneiro no início do

século XVI.

Graças às fontes disponíveis na Ames Library of South Ásia, uma

subdivisão da Edwin O. Wilson Library da Universidade de Minnesota, pude

saber os nomes dos chefes da Inquisição em Goa em 1597 (embora a sua

aparência e personalidades, tal como as descrevo, sejam pura ficção), bem

como o governador (que era de fato, o neto do famoso explorador Vasco da

Gama). Foi também lá que soube da vergonhosa destituição do governador

Coutinho e do vice-rei Albuquerque, acusados de heresia e feitiçaria e tive

aquela sensação de ”Ah!” de quando um pormenor histórico se encaixa

perfeitamente na história de alguém.

A expedição dos barcos The Bear, The Bear’s Whelp e The Benjamin

foi uma viagem real, chefiada pelo capitão Benjamin Wood, enviada da

Inglaterra em 1597 com uma carta da rainha Isabel dirigida à corte de Catai

(China). A viagem malfadada nunca atingiu o seu destino, desaparecendo

algures a seguir ao seu encontro com Raleigh e a sua frota nas Canárias.

Contudo, na coleção de documentos históricos, Purchas, His Pilgrimes, há

uma carta datada de 1601, de um capitão português, descrevendo um

encontro com um pequeno grupo de ingleses, os últimos sobreviventes do

naufrágio de uma expedição na costa indiana. A maior parte da tripulação

tinha-se perdido devido a doença, depois de saquearem barcos portugueses.

Esta pode muito bem ter sido a viagem malfadada dos barcos Benjamim e

Whelp.

(O único sobrevivente a chegar finalmente a Goa, onde foi posto na

prisão, chamava-se Thomas.)

Garcia de Orta, o botânico português, é também uma figura

histórica, que viveu os últimos trinta anos da sua vida na índia, viajando

através do Decão. Era bem visto em Goa, onde muitas vezes usou as suas

Page 249: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

ervas como remédios para curar os obres, sem receber nada em troca e

trabalhou freqüentemente na Santa Casa da Misericórdia Jesuíta, que era

descrita pelos viajantes, como um dos melhores hospitais do mundo.

Foi por puro acaso que Garcia de Orta veio a tornar-se amigo de

Luís Vaz de Camões. O poeta tinha sido expulso de Lisboa devido a uma

paixão sem esperança por uma aia da rainha. Falido e cego de um olho, devido

a uma luta, Camões foi acolhido por Garcia de Orta, em jeito de gato

abandonado e na sua casa Camões escreveu Os Lusíadas, agora o poema

épico nacional de Portugal e uma bela peça de fantasia histórica por direito

nato. O padre jesuíta Thomas Stevens foi um dos primeiros ingleses a chegar a

Goa e as suas cartas para a pátria foram julgadas capazes de estimular o

interesse da Inglaterra no comércio com a índia. Aprendeu várias línguas

locais; foi o primeiro europeu a escrever uma gramática da uma língua indiana

e também escreveu a Christian Purana. Era conhecido por dar assistência aos

ingleses em Goa, embora nem sempre fosse bem sucedido ao protegê-los da

ira das autoridades.

São Francisco Xavier, conhecido como o apóstolo das índias, foi um

monge jesuíta, cujo tremendo impacto na cristandade do Oriente é narrado

detalhadamente por outros. Morreu a caminho da China, e o seu corpo,

espantosamente preservado em cal viva, foi finalmente enviado de volta a Goa,

onde jaz exposto à vista, há muitos anos. Contudo, isto levou a que pedaços

do seu corpo fossem furtados para relíquias e os jesuítas finalmente selaram-

no num caixão de vidro, nos finais do século XVII. Em meados do século XIX,

os jesuítas iniciaram um ciclo de exposições do corpo de São Francisco Xavier,

de dez em dez anos.

Todas as outras personagens são de ficção, embora eu tenha

tentado descrevê-las e ao seu mundo tão exatamente quanto a minha

pesquisa me permitiu.

Pouco resta hoje da ”Goa Dourada”. Declinou rapidamente no final

do século XVII, com a crescente influência de outras colônias européias na

índia. Hoje em dia, a velha Goa é uma coleção de ruínas (com umas quantas

igrejas ainda bem conservadas, graças aos fiéis), tendo o resto sido reclamado

pela selva.

Page 250: Kara Dalkey, O SANGUE DA DEUSA - Goa, Vol. 1 (PDF)(Rev)

Num romance deste alcance (incluindo os volumes que se seguem),

a quantidade de investigação requerida e os anos que demorou trazê-lo à

fruição, o número de reconhecimentos devidos é demasiado grande para

enumerar. Contudo, a merecer um reconhecimento especial, está Denny Lien,

bibliotecário na Edwin O. Wilson Library, na Universidade de Minnesota, pelos

serviços prestados, para além da obrigação do cargo da bibliotecário. A sua

ajuda em investigar através da montanha de informação disponível, ajudou

este livro a tomar forma há já muitos anos.

O agradecimento também é devido ao meu antigo grupo de

escritores, os Rabiscadores - Emma, Will, Pam e Steve -, por me ajudarem na

primeira fase deste trabalho, a forjá-lo até se tornar algo semelhante a um

romance.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

http://groups.google.com/group/digitalsource