léxico do drama moderno e contemporâneo - sarrazac

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  • Verbetes extrados de: SARRAZAC, Jean-Pierre (org.). Lxico do drama moderno e

    contemporneo. Traduo: Andr Telles. So Paulo: Cosac Naify, 2012.

    AO (AES)

    CATSTROFE

    CENA A SER FEITA/ A SER DESFEITA

    DEVIR CNICO

    DILOGO (CRISE DO)

    FRAGMENTO/ FRAGMENTAO/ FATIA DE VIDA

    NTIMO

    PEA-PAISAGEM

    TEATRO ESTTICO (ESTATISMO)

    PS-DRAMTICO

  • AO (AES)

    A crise da ao situa-se, por natureza, no cerne da crise do drama, uma vez que

    este representao [...] de ao (Aristteles, Potica, cap. 6). A reside o fundamento

    da mimese.

    Se a crise da ao assume formas mltiplas a partir do fim do sculo XIX por

    exemplo, com seu descentramento e precoce fragmentao em Tchekhov , o Teatro

    esttico de Maeterlinck que constitui uma de suas manifestaes mais radicais, uma

    vez que tende a anul-la, cortando pela raiz o que constitui a dinmica do ato teatral.

    Agir pr em movimento, como lembra Hannah Arendt baseando-se no latim agere.

    Ora, seria concebvel um teatro que fosse pura imobilidade? Maeterlinck, na

    anulao que preconiza, substituir efetivamente a ao por um (dos) movimento(s) de

    outra natureza: movimentos da alma, dos quais o teatro do fim do sculo XIX, na

    esteira de Wagner, tanto buscou se aproximar verdadeiras aes internas que so o

    motor de vrias obras dramticas do sculo XX, de Strindberg a Duras ou Sarraute e

    outros mais.

    A evoluo multiforme do drama, enquanto ainda mantm esse nome (s

    vezes sua revelia), ao longo de todo o sculo XX, pode ser lida como a procura de

    solues para o seguinte problema: que substitutos encontrar para a ao quando esta se

    torna impossvel? Ou que expanso lhe dar?

    Mas em que consiste precisamente essa ao que se torna impossvel, e por que

    ela se torna impossvel? Aquilo a que a possibilidade se furta desde o fim do sculo

    XIX a grande ao, tal como os tragedigrafos gregos impuseram seu modelo por

    milnios: uma ao, inicialmente projetada, deflagra-se no incio da pea e encontra seu

    desenlace no fim. Esquema ideal em sua simplicidade (que a trama s vezes ir

    complicar), unidade e coerncia sua ordem , cujo modelo dinmico pode ser

    explicado pela relao fechada do sujeito com o objeto.

    O que fica visvel no fim do sculo XIX que essa ordem est minada: na base

    mesma da ao, o projeto, que supe uma vontade, sabotado. Agir primeiro querer

    agir. A crise da ao tem provavelmente sua origem na crise do sujeito, nas fissuras do

    eu e de sua capacidade de querer. Um certo nmero de dramaturgos do fim do sculo

    XIX e do XX, de Tchekhov a Beckett, fez dessa capacidade tornada problemtica o

    prprio assunto de suas obras.

  • O que age, ento, no drama, se a grande ao no mais possvel? Convm

    aqui recorrer distino, operada por Michel Vinaver, entre os trs nveis nos quais

    pode ser percebida a ao numa pea. Esses trs nveis determinam trs tipos de ao,

    que talvez no sejam de natureza igual: ao de conjunto, ao de detalhe (o detalhe

    podendo ser o ato, a cena, a sequncia...), ao molecular (tal como se manifesta rplica

    aps rplica, ou simplesmente no passo a passo do texto).

    Numa pea clssica (lato sensu), o esquema de ao pode ser representado por

    uma estrutura em rvore, as aes moleculares permitindo construir as aes de detalhe

    que, por sua vez, convergem para a ao de conjunto.

    O que o drama moderno e contemporneo realiza, sob diversas formas, no

    necessariamente a suspenso de toda ao de conjunto, mas, acima de tudo, a

    desconexo entre esses trs nveis (ou s vezes entre dois deles). A ao de conjunto,

    quando mantida, mudou de sentido, tornou-se, segundo os casos, distante, fantasstica

    ou puramente interior, de aparncia aleatria raramente o resultado de um projeto, um

    plano preestabelecido, uma engrenagem (que caracterizaria o que Vinaver chama de

    pea-mquina).

    Em Fim de partida de Beckett, pergunta O que est acontecendo?, que

    propriamente a da ao (especialmente do ponto de vista do espectador), Clov responde

    Alguma coisa segue seu curso: nada alm da vida... Programa realizado melhor do

    que em qualquer outro lugar em Dias felizes e que ser repetido, menos radicalmente e

    com outros artifcios, pelo Teatro do cotidiano.

    A ao de conjunto, quando no se reduz a esse viver, antes o resultado, que

    podemos constatar a posteriori, de um processo no qual o sujeito mais objeto do que

    agente. Uma linha que termina por libertar-se do fluxo catico do cotidiano. A ao

    relaciona-se obrigatoriamente com o sentido. A fbula, como uma srie de aes, o

    que constitui sentido o que Brecht defender com veemncia. Na escrita moderna,

    diremos com Vinaver que h um impulso rumo ao sentido. Este, no mais que a ao,

    no existe antes de ser produzido pela e na escrita.

    As aes de detalhe, quando ainda no identificveis, ganham autonomia ao

    mesmo tempo em que o texto fragmenta-se em sequncias, em pedaos por sua vez

    autnomos, at os casos extremos representados, por exemplo, por alguns trabalhos de

    Botho Strauss, em que a pea parece no mais existir seno como uma srie de peas

    breves (Le Temps et la chambre [O tempo e o quarto] e, mais ainda, Sete portas,

    subintitulada Bagatelles). A ao ento no mais unitria, mas serial. O modelo pode

  • ser tambm o da variao musical sobre um tema mais ou menos sugerido. Germania 3:

    os espectros do morto-homem, de Heiner Muller, uma sute caleidoscpia de variaes

    sobre a histria alem e europeia depois da Segunda Guerra Mundial, na qual

    personagens e situaes mudam a cada sequncia, vedando toda possibilidade de se

    construir uma ao de conjunto, exceto considerar que se trata do prprio movimento,

    catico, da Histria. A ao seria aqui o resultado da montagem das aes de detalhe (s

    quais se acrescentam textos no dramticos), o efeito do poder da montagem sobre o

    espectador dimenso (a do espectador) que nunca deveria ser menosprezada numa

    reflexo sobre a ao.

    Em incontveis peas, so as microaes que tendem a ocupar o primeiro plano.

    Elas ploriferam e o texto no age mais seno no nvel molecular, numa ampliao, como

    se no microscpio, do presente, que embaralha e pode tornar imperceptvel a no ser

    eventualmente a posteriori toda linha, todo desenho de conjunto e at as aes de

    detalhe. Elas se desenvolvem em duas direes opostas: a palavra-ao e as aes

    fsicas.

    O princpio cannico (DAubignac, Corneille) segundo o qual no teatro a

    palavra age retomado por Pirandello, num artigo de 1899 sobre LAction parle [A

    ao falada] , como constitutiva da ao dramtica, exacerbou-se nas dramaturgias

    contemporneas sob o impulso da automatizao das microaes. Essa noo de

    palavra-ao, a bem da verdade, aponta para um conjunto de fenmenos complexos e

    provavelmente dspares: ora figuras perfeitamente detectveis com os recursos da

    lingustica e da pragmtica (segundo o modelo, principalmente, dos enunciados

    performticos) ou com a ajuda das "figuras textuais vinaverianas (ataque, defesa,

    esquiva, resposta, movimento para); ora um movimento mais difuso criado pela palavra,

    cuja interao (entre os personagens) constitui a face privilegiada.

    As aes fsicas cumpriria examinar aqui o devir da noo stanislavskiana (que

    parecia fadada ao mimetismo naturalista) em Grotowski e Barba ploriferam na brecha

    aberta h dois sculos por Diderot com a pantomima. Elas se desdobram num territrio

    onde o teatro e a dana avanam um na direo do outro at se misturarem, como nos

    espetculos de Pina Bausch ou Alain Platel, e onde a ao se faz movimento (e s vezes

    o movimento, ao). Atribudas em geral cena e ao ator (logo, ao diretor), elas s

    vezes so assumidas pela escrita.

    Talvez nesse caso a ao no merea conservar esse nome, sendo prefervel,

    como nos casos igualmente extremos dos puros tropismos textuais, internos ou externos,

  • portados pela fala (Falta de Sarah Kane), referir-se a um princpio ativo difuso, uma

    energia que deveria ser associada ao ritmo , mantendo essas obras no mbito de

    uma forma dramtica que no para de expandir seus limites.

    Dizer que o presente do texto, na ordem de seu desdobramento, prevalece,

    remeter ao presente da cena e ao seu jogo. Retomando a ambiguidade original

    prattontes, literalmente, em grego, seres em ao, podendo referir-se igualmente, e s

    vezes indistintamente, aos actantes e aos atores , Denis Gunoun, em O teatro

    necessrio?, afirma que, se o desenvolvimento da mimese enfatizou os primeiros,

    assistimos hoje ao retorno dos segundos, os personagens atuantes apagando-se por

    trs dos atores atuantes. Alm disso, sem dvida, um certo nmero de textos

    contemporneos enfraquece o personagem at dissolv-lo, delegando a ao do ator.

    Parece, contudo, que outros, preservando certo nvel de fico, no extinguem

    completamente nem o personagem nem suas aes prprias, e que o jogo do ator

    continua ento a se basear nesse fingimento (ou simulacro) de fico e representao

    mimtica de aes reais executadas diante de nossos olhos. O que caracteriza diversas

    escritas de hoje que elas se situam na articulao de uma dramaticidade, digamos,

    mimtica, e do jogo de cena a se efetivar, ou ento que essa dramaticidade que ainda

    resiste, s vezes por um fio, mimese est destinada a se articular sobre um jogo de

    cena que dela vai desvencilhar-se.

    Joseph Danan

  • CATSTROFE

    A noo de catstrofe oriunda da esttica teatral clssica. Corneille, por

    exemplo, afirma no ter atribudo aos personagens de Nicomde [Nicomedes] nenhum

    desgnio de parricida a fim de expurgar do palco o horror de uma catstrofe to

    brbara. para demonstrar a mesma reticncia a respeito de uma excessiva violncia

    do desenlace trgico que Racine emprega a palavra catstrofe no prefcio Tebaida:

    A catstrofe da minha pea talvez seja por demais sangrenta. Com efeito, nela no

    aparece quase nenhum ator que no morra no fim. Esses dois exemplos atestam uma

    familiaridade a respeito da noo dramatrgica de catstrofe que no mais a nossa.

    Portanto, a anlise de seu devir e de seus problemas no drama moderno e

    contemporneo implica ao mesmo tempo uma definio e uma reatualizao.

    A partir da Potica, a catstrofe pode ser definida como um desenlace que o

    local da reviravolta e de um efeito violento (pathos). Ela procede segundo uma

    reviravolta na direo do infortnio, pelo qual Aristteles afirma uma predileo que

    no objeto de nenhuma demonstrao, como se fosse evidente que o desfecho funesto

    de uma histria seja o que lhe confere seu carter trgico. Diante dessa ausncia de

    explicao, podemos sugerir a hiptese de que Aristteles privilegia a reviravolta

    francesa porque ela produz um efeito violento, uma ao causando destruio ou dor,

    associando assim categorias que Aristteles instala no topo de sua esttica trgica, a

    catstrofe constitui o lugar por excelncia de produo das emoes trgicas. Momento

    epigonal da ataraxia a busca do espetculo do perigo para melhor pr prova o

    conforto do espectador , a catstrofe est no centro de uma esttica da recepo

    correspondente ao que Hans Blumenberg chama de configurao do naufrgio com o

    espectador. o temor de um naufrgio desse tipo que explica as reservas de Corneille

    ou Racine a respeito de uma catstrofe que atesta uma desconfiana, comum aos

    dramaturgos da idade clssica, perante a catstrofe to destruidora e dolorosa que no

    pudesse ser reduzida a uma interpretao sensata.

    A catstrofe tambm pertence ao mbito do estudo das estratgias de concluso

    do texto dramtico. Ela traria, segundo os termos de Hegel, uma soluo definitiva e

    completa para o conflito dramtico e um apaziguamento igualmente definitivo

    para o espectador. A progresso irresistvel rumo catstrofe final teorizada por

    Hegel faz dela um desdobramento lgico, o lugar de um fechamento do sentido. Desse

    ponto de vista, ela parece sofrer no teatro contemporneo uma perda de sentido radical

  • que recoloca em questo suas funes tradicionais e sua existncia. Diante da supresso

    ou da fragmentao da ao, a catstrofe, tornada irrisria ou suprflua, poderia

    desaparecer para apenas sobreviver num segundo plano. No seio de um drama de agora

    em diante sem soluo, a catstrofe funciona como uma ressurgncia citacional

    Catstrofe de Beckett ou como uma imagem reinvestida de sentido por um fenmeno

    de metonmia semntica: puro infortnio, imagem de morte.

    precisamente o exame do sentido corriqueiro da palavra catstrofe que d

    todo seu interesse reatualizao da noo. O incndio que abre A casa queimada de

    Strindberg, a morte da adolescente a partir da qual Maeterlinck constri a ao de

    Interior constituem infortnios j consumados quando o pano se abre. Por trs dessas

    catstrofes no mais finais, mas inaugurais , desdobra-se o que Jean-Pierre Sarrazac

    aponta como a grande converso do teatro moderno e contemporneo. A partir desse

    momento, como um prembulo que funciona a catstrofe, ressemantizada, nas Pices

    de guerre [Peas de guerra] de Edward Bond, pela fico de uma exploso nuclear, ou

    associada, em Muller, a uma viso mais geral da Histria como sucesso de catstrofes.

    Em Fim de Partida, Beckett tambm constri, a partir de um desastre indefinido, uma

    dramaturgia do ps-catstrofe. uma guinada fundadora de nossa modernidade

    dramtica que essas catstrofes incongruentes e, por conseguinte, privadas de toda

    capacidade conclusiva, prolongam.

    Para alm do esgotamento de sua funo de desenlace, a catstrofe continua a

    ser essencial no teatro, na medida em que representa uma mudana de estado. Esse

    sentido, derivado da teoria matemtica das catstrofes, permite reinterpretar a pea

    homnima de Beckett. Ela mostra um encenador e um iluminador criando uma imagem

    teatral que suscita o seguinte comentrio do diretor: timo. Temos a nossa catstrofe.

    Para causar um infortnio, preciso uma catstrofe. Assim, poderamos dizer que a

    encenao uma catstrofe, e preferir, noo clssica de conflito, a de catstrofe, mais

    operatria para apreender as mudanas de estado manifestadas ou acarretadas pelas

    rplicas trocadas no palco de teatro. Por infelicidade, resulta que o teatro no

    catastrfico. A ausncia de catstrofe tem um sinal muito claro, que o tdio, e

    eventualmente o sono, mudana de estado que substitui a catstrofe ausente.

    Hlne Kuntz, Catherine Naugrette e Jean-Loup Riviere

  • CENA A SER FEITA / A SER DESFEITA

    Assim designada por Francisque Sarcey no sculo XIX, a cena ser feita acha-se

    antes associada ao vaudeville, ao teatro de bulevar e s escritas dramticas mecnicas,

    embora seja possvel apontar sua funo primordial numa lgica de causalidade e

    finalidade de tipo aristotlico ou neoaristotlico.

    Essa cena, que resulta necessariamente dos interesses ou das paixes que do

    vida aos personagens postos em jogo (Sarcey), encontra geralmente seu lugar no fim

    da pea. Correspondendo s expectativas da plateia, ela revela informaes, o

    acontecimento ou a reviravolta essenciais compreenso do enredo. Todo o interesse

    dramtico repousa sobre a cena ansiosamente esperada (Thomasseau), que se torna

    assim um dos elementos bsicos da pea benfeita maneira de Scribe. Por exemplo, na

    dramaturgia inglesa inspirada na pea benfeita, a cena a ser feita a do triunfo do heri

    (ou de seu ajudante) sobre seu inimigo, triunfo proporcionado pela revelao sbita de

    um segredo (Sadler Stanton).

    Conveno mecanicista, ao mesmo tempo sequncia de sucesso e rasgo de

    bravura, a cena a ser feita corresponde mais profundamente a uma funo necessria na

    lgica aristotlica, para levar a ao a seu termo. Na medida em que necessria ao

    prazer do pblico e em que permite sua sequncia encadear a cena de reconhecimento

    e o desfecho tradicionais, ela se define como a cena que o pblico prev, espera e

    exige, e que o dramaturgo deve obrigatoriamente escrever (Pavis). Em ingls, ela ser

    nomeada obligatory scene, sua variabilidade funcional tornando-a ainda mais

    indispensvel lgica interna da pea na medida em que autoriza mltiplas

    combinaes e alteraes, sobretudo no que se refere aos personagens.

    Ao contrrio da cena a ser feita, a dramaturgia no aristotlica proposta por

    Brecht antecipa a cena a ser desfeita. No contexto de oposies termo a termo que

    caracteriza a polmica elaborao do teatro pico tal como mostra o clebre quadro

    em que Brecht contradiz a forma dramtica do teatro por meio da forma pica do

    teatro, a ao por meio da narrao, o crescimento orgnico por meio da montagem, o

    desfecho por meio do desenvolvimento , a cena a ser desfeita afirma-se por sua vez

    como uma ferramenta antittica da nova dramaturgia pica. Fragmentada, difratada

    atravs do drama pelo vis de diferentes elementos narrativos e tcnicas de escrita a

    servio do distanciamento, a servio agora de uma lgica do descontnuo e da

  • decupagem e no mais de uma lgica do encadeamento e da continuidade, ela o

    indicador de uma defasagem manifesta.

    Quando finalmente Heiner Muller escreve que a pea benfeita no traduz mais

    adequadamente a realidade [e que] devemos desenvolver uma dramaturgia de

    fragmentos sintticos, ele se situa ao mesmo tempo no prolongamento do projeto

    brechtiano e em sua superao. A fragmentao radical das peas de Muller (pelo

    menos a partir dos anos 1970) segue uma lgica mais prxima do desconstrutivismo

    aplicado ao teatro de tipo ps-moderno , no seio da qual a cena a ser desfeita, mais

    do que nunca, funciona como uma ferramenta de subverso.

    Patrick Leroux e Catherine Naugrette

  • DEVIR CNICO

    Devir nunca imitar ou agir, como tampouco conformar-se a um modelo,

    ainda que seja o de justia ou de verdade. No existe um termo do qual

    partimos, nem um ao qual chegamos ou devemos chegar.

    Gilles Deleuze

    O devir cnico no poderia ser confundido com o que nos habituamos a designar

    como a fortuna crtica de uma pea. No nos interessamos aqui pelo conjunto das

    encenaes efetivas nem mesmo possveis de uma obra dramtica, mas sim pela fora

    e pelas virtualidades cnicas dessa obra. Pelo que num texto que pode ser no

    dramtico solicita o palco e, numa certa medida, reinventa-o.

    No basta reconhecer, como Henri Gouhier, que o teatro uma arte em dois

    tempos; cumpre igualmente apontar qual a relao exata, na poca moderna e

    contempornea, do universo-texto com o universo-representao, e, sobretudo, que

    vazio esse (no simplesmente de interpretao, mas tambm de criao) que se

    inscreve no mago do texto como um chamado ao palco.

    Ainda do ponto de vista de Gouhier, nossa noo de devir cnico poderia estar

    ligada passagem do dramtico ao teatral. Por seu intermdio, verifica-se que uma obra

    dramtica acha-se de fato na expectativa de uma teatralidade: A representao,

    escreve Gouhier, est inscrita na essncia da obra teatral; esta no existe efetivamente

    seno no momento e lugar em que se consuma a metamorfose. A representao,

    portanto, no um suplemento ou completo do qual, a rigor, poderamos prescindir;

    um fim nos dois sentidos da palavra: a obra feita para ser representada, eis sua

    finalidade; ao mesmo tempo, a representao denota uma realizao, o momento em

    que enfim a obra se v nas condies requeridas para existir dramaticamente. de fato a

    existncia mesma da obra teatral que exige que sua criao seja duplicada por uma

    recriao.

    Entretanto, a noo de devir cnico, tal como sugerimos, extrapola por mais de

    uma razo o mbito delimitado por Gouhier. Em primeiro lugar, pode ser aplicada,

    como dissemos, a um texto no dramtico. Alm disso, continua a ser demasiado

    restritivo falar em recriao e no em uma criao especfica para o trabalho teatral.

    Por fim, convm acabar definitivamente com a cobrana textocentrista de uma

    representao teatral que no passaria da realizao de um texto. Ou seja, de um ato

    cnico que se visse de certa forma instrumentalizado pelo texto. A dinmica moderna e

  • contempornea da criao teatral ligada inveno da encenao [mise en scne] e a

    uma emancipao mais ou menos radical do teatro com relao jurisdio do literrio

    no procede de um desenvolvimento linear que iria do textual ao cnico, mas de uma

    mise en jeu, de uma mise en scne concorrencial e polifnica do texto (considerado ele

    mesmo na distncia e no jogo entre a voz e o gesto do ator) e outros elementos da

    representao: cenrios, luzes, sons etc.

    Na histria do teatro e sobretudo na da esttica teatral , o devir cnico da obra

    dramtica nem sempre teve suas prerrogativas. Aristteles considera o espetculo

    (opsis) elemento de qualidade da tragdia, mas, ao mesmo tempo, apresenta a obra

    trgica que pode muito bem, segundo ele, atualizar-se na leitura como indiferente a

    esse devir do espetculo. (Hegel, por sua vez, no far seno entreabrir a possibilidade

    e apenas para as obras modernas de uma parte de criao oferecida ao ator.) Enquanto

    abertura, vazio do texto, foi Diderot o primeiro a levar realmente em conta por t-lo

    igualmente praticado o devir cnico da obra dramtica, em particular quando tal devir

    faz parte de seu desejo sua utopia de escrever inteiramente, do ponto de vista do

    dilogo a pantomima de um texto.

    Interrogar-se hoje sobre o devir cnico de um texto, sobre a multiplicidade de

    suas linhas de fuga, levar em conta o grau de abertura desse texto. Para Dort, os

    maiores textos de teatro, os que suscitaram, atravs das eras, o mximo de

    interpretaes cnicas, e as mais diferentes entre si, so [...] aqueles que, leitura, nos

    parecem os mais problemticos [...]. Um texto fechado em si mesmo, que contm

    expressamente uma resposta s perguntas nele formuladas, tem poucas possibilidades de

    um dia vir a ser montado. o destino das peas de tese. Em contrapartida, um texto

    aberto, que no responde s perguntas seno com novas perguntas e que toma

    deliberadamente o partido de seu prprio inacabamento, tem todas as possibilidades de

    perdurar. porque ele constitui um chamado ao palco, provoca-o e precisa dele para

    adquirir consistncia.

    Resta esclarecer o que entendemos por abertura de um texto ao palco.

    Geralmente se considerarmos como Hegel evocando as prolas do drama moderno,

    que o ator deve buscar nos alicerces silenciosos do texto que esse vazio uma questo

    de profundidade. O devir cnico estaria, portanto, contido no texto, e os gestos, as

    mmicas, todo o espao e o movimento da representao, toda a teatralidade, contidos

    no dilogo... A essa concepo de um texto oco, de um texto profundo, que

    conteria todas as representaes vindouras, concepo que mal dissimula seus

  • vnculos com o velho textocentrismo, convm hoje opor a ideia de um trabalho de

    superfcie, ou melhor, de interface: deslizamento da estrutura-texto e da estrutura-

    representao uma sobre a outra; sobreposio graas qual o texto se v posto em

    movimento por sua prpria teatralidade, que lhe permanece exterior. Nesse sentido, o

    devir cnico reinveno permanente do palco e do teatro pelo texto o que liga mais

    profundamente, mais intimamente esse texto ao seu Outro exterior e estrangeiro. A

    saber: o teatro, o palco.

    Jean-Pierre Sarrazac

  • DILOGO (CRISE DO)

    A crise da forma dramtica, tal como Szondi a descreveu e teorizou, afeta todos

    os elementos constitutivos do drama, e tanto o dilogo dramtico quanto a fbula ou o

    personagem. Tratando-se da crise especfica do dilogo, poderamos resumi-la a um

    questionamento da relao interindividual entre os personagens e, atravs dessa relao,

    do desenvolvimento do conflito dramtico at a catstrofe e ao desfecho.

    A partir desse momento, o ser-a do personagem, sua relao problemtica

    com o mundo com a sociedade, com o cosmo , tende a prevalecer sobre a pura

    relao interpessoal. O personagem apresenta-se a ns num estado de solido, ou

    mesmo de isolamento, em todo caso de separao em relao aos demais personagens,

    e, muitas vezes, em relao a ele prprio. Em virtude disso, a concepo hegeliana do

    dilogo, segundo a qual somente pelo dilogo que os indivduos em ao podem

    revelar uns aos outros seu carter e seus objetivos [...] e igualmente pelo dilogo que

    exprimem suas discordncias, imprimindo dessa forma um movimento real ao, v-

    se questionada.

    As grandes dramaturgias do fim do sculo XIX e da virada do XX

    principalmente as de Ibsen, Strindberg e Tchekhov antecipam as do fim do sculo XX

    e muito particularmente a de Beckett no sentido de que o dilogo ofusca-se diante

    do monlogo. Um monlogo que no serve, como nas dramaturgias clssicas, para

    relanar o dilogo mas sim para suspend-lo. Nesse teatro de tendncia esttica ou

    esttico-dinmica os conflitos so mais larvados e intrapsquicos do que patentes e

    interpessoais: a solido em solilquio de John Gabriel Borkmann no deixa de evocar a

    de Hamm ou de Krapp; o delrio do Oficial de O sonho exprime sua espera apaixonada

    por uma Victoria que lembra Godot; e, na polifonia ou cacofonia tchekhoviana, cada

    um dos personagens d livre curso a um monlogo que se revela no mnimo to interior

    quanto exterior.

    Se o dilogo significa rplica a distncia (o dia de dilogo), tudo se passa, a

    partir dos anos 1880, como se os personagens nunca estivessem na distncia correta que

    permite o dilogo fundado na relao interpessoal. Longe ou perto demais, ao mesmo

    tempo agregados uns aos outros e isolados um do outro, os personagens da drama

    naturalista vivem na promiscuidade do meio, mas esse mesmo meio basta pensar no

    meio profissional e/ou familiar em que evoluem as criaturas de Ibsen, Hauptmann,

    Strindberg, Tchekhov no cessa de se interpor, de criar barreiras intransponveis entre

  • eles. Quanto aos personagens do drama simbolista, no adianta no formarem mais

    seno um nico corpo trmulo, imagem de Os cegos de Maeterlinck; sua relao

    aterrorizada com o cosmo impede qualquer relao horizontal verdadeira entre eles; sem

    esquecer que, como as peas dessa poca bebiam geralmente no naturalismo e no

    simbolismo, os dois tipos de separao, o societal isto , o poltico e o csmico, que

    pe em ao o inconsciente, podem se combinar...

    Paradoxalmente, no drama moderno e contemporneo, a relao de um

    personagem com o outro torna-se mais fluida, mais instvel que aquela que cada

    personagem, cada lugar de palavra (Ludovic Janvier designa o personagem beckettiano

    como um lugar-dizer) mantm com o espectador. Doravante, o personagem, mais do

    que responder, replicar a seu congnere, dirige-se a esse outro para ele a priori

    invisvel e inexistente (s o ator est a par da existncia, da presena do pblico) que o

    espectador. E se ainda h dilogo mas num sentido puramente metafrico , este s

    pode se dar entre a plateia e o palco. Como escreveu Bernard Dort, o espectador

    moderno que se acha em dilogo. E no mais os personagens.

    Como ento caracterizar esse texto teatral no qual ao lado de longos

    monlogos, de momentos de coralidade, de relatos no submetidos ao regime

    dramtico, ou mesmo cartas, relatos, nomenclaturas, fragmentos de dirios ntimos e

    outros materiais heterogneos subsistem contudo vestgios (ou manifestam-se

    reincidncias) de dilogo? Como dar conta, de Beckett a Kolts e de Muller a Novarina,

    dos textos escritos para o teatro nos quais os modos pico, lrico, argumentativo, em vez

    de se integrar dialeticamente segundo o princpio aristotlico-hegeliano ao modo

    dramtico, permanecem relativamente autnomos e coexistem com ele? Uma soluo

    (digamos, teleolgica) foi, ainda nos anos 1950, considerar a forma pica do teatro

    com destaque para o sujeito pico szondiano como a superao do teatro dramtico.

    Outra soluo, no fundo pouco diferente da anterior, consiste em anunciar, de Artaud a

    Bob Wilson e a Heiner Muller passando por Tadeusz Kantor e Pina Bausch, uma nova

    era ou rea (difcil de delimitar) do teatro, a de um teatro ps-dramtico no qual

    no haveria mais anterioridade do drama, em que o palco seria primordial e o texto no

    passaria de um elemento entre outros. De nossa parte, a voltar a ceder dialtica do

    antigo e do novo ou da vanguarda oposta tradio , preferimos tentar apreender

    mais de perto esse trabalho de desterritorializao operado no seio do prprio texto

    dramtico. Em outros termos, como passar de um dilogo absoluto (ligado a esse

  • drama absoluto mencionado por Szondi) entre personagens entrincheirados atrs da

    quarta parede para o dilogo relativo do teatro moderno e contemporneo?

    Cumpre constatar que o dilogo dramtico, tal como se transforma ao longo de

    todo o sculo XX e tal como se acha em devir ainda hoje, um dilogo mediatizado.

    Um dilogo que chamo de rapsdico na medida em que ele costura conjuntamente e

    descostura modos poticos diferentes (lrico, pico, dramtico, argumentativo), ou

    mesmo refratrios uns aos outros, e que por sua vez controlado, organizado e

    mediatizado por um operador (no sentido mallarmaico), repetindo certas caractersticas

    do rapsodo da Antiguidade como diz Goethe, ningum pode tomar a palavra a menos

    que esta lhe seja previamente concedida. O sujeito rapsdico amplia e, sobretudo,

    flexibiliza o sujeito pico teorizado por Szondi. Em vez de se limitar a esse puro

    (de)monstrador desvinculado da ao proposto em Teoria do drama moderno, o sujeito

    rapsdico apresenta-se como um sujeito dividido, ao mesmo tempo interior e exterior

    ao. A exemplos dos personagens dos jogos de sonho strindberguianos. Ou das

    criaturas beckettianas, sempre escuta do outro, do parceiro, ainda que o outro em si

    mesmo, e sempre, simultaneamente, esteja numa relao de endereamento ao

    espectador.

    Opera-se uma nova diviso na qual o gesto o da composio, da fragmentao,

    da montagem reivindicada e a voz do rapsodo que no se exprime seno atravs de

    monosslabos, que se imiscui no discurso dos personagens intercalam-se entre as

    vozes e os gestos dos personagens. Na concepo clssica do teatro, o autor est

    obrigatoriamente ausente. Nas dramaturgias modernas e contemporneas, ele se torna de

    certa forma presente. Seja de modo explcito, com a voz do rapsodo sobrepondo-se

    ento dos personagens; seja de modo implcito, como montador.

    Maeterlinck foi o primeiro a assinalar, em Ibsen, o surgimento de outro

    dilogo: Ao lado do dilogo indispensvel, h quase sempre outro dilogo [...] a

    qualidade e a extenso desse dilogo intil que determinam a qualidade e o alcance

    inefvel da obra. Ora, esse outro dilogo ocupa hoje um lugar considervel no corpo

    dos textos teatrais e no se limita mais, como na poca de Maeterlinck, a exprimir o

    inefvel. Se podemos considerar que o pr-dilogo de Nathalie Sarraute a

    subconversa de seus romances transposta para o teatro como pseudoconversa de salo

    ainda se situa na posteridade de Ibsen a Maeterlinck, algo de diferente acontece com o

    que eu me sentiria tentado a chamar de sobredilogo vinaveriano: trabalho de

  • montagem (despontuao, descronologizao, deslocalizao, processo de repetio/

    variao etc.) sobre o dilogo ambiente e comum...

    Mas o outro dilogo, o dilogo outro, tambm a mestiagem do antigo

    dilogo dramtico com diferentes tipos de dilogos, como o dilogo filosfico ou o

    cientfico. Vida de Galileu ou ainda Les Dialogues dexils [Conversas de refugiados]

    de Brecht, texto de status ambguo, inspiram-se amplamente em ambos. E poderamos

    igualmente evocar todos esses dilogos dos mortos, maneira de Luciano de Samsata,

    como Entre quatro paredes de Sartre, talvez inspirado em A ilha dos mortos de

    Strindberg, ou em A la sortie [Na sada] de Pirandello, esse ato curto um pouco ao estilo

    de Leopardi. Sem falar da Orgia de Pasolini, ou, recentemente, Cendres de cailloux

    [Cinzas de pedras], de Daniel Danis...

    Todas essas mestiagens e hibridizaes parecem corresponder a uma vontade

    comum: emancipar o dilogo dramtico da univocidade, do monologismo (todas as

    vozes dos personagens reabsorvendo-se em definitivo na nica voz do autor) que tanto

    lhe recrimina Bakhtin; instaurar, no seio da obra dramtica, um verdadeiro dialogismo,

    captar o dilogo de sua poca, ouvir sua poca como um grande dilogo, aprender

    no apenas as vozes diversas, mas, acima de tudo, as relaes dialgicas entre essas

    vozes, sua interao dialgica.

    Talvez a impulso do monlogo no teatro moderno e contemporneo, essa

    tendncia do monlogo a suplementar o dilogo interpessoal, no tenha sido seno um

    sintoma de um fenmeno mais fundamental: reconstruir o dilogo sobre a base de um

    verdadeiro dialogismo. Dar autonomia voz de cada um, inclusive quela do autor-

    rapsodo, e operar a confrontao dialgica das vozes singulares de uma poca. Expandir

    o teatro fazendo os monlogos dialogarem: Quando uma situao exige um dilogo,

    observa Kolts, ele a confrontao de dois monlogos que buscam coabitar.

    Jean-Pierre Sarrazac

  • FRAGMENTO/ FRAGMENTAO/ FATIA DE VIDA

    A noo de fragmento deriva de uma escrita que entra em total contradio com

    o drama absoluto. Este centrado, construdo, composto na perspectiva de um olhar

    nico e de um princpio organizador; sua progresso obedece s regras de um

    desdobramento cujas partes individuais engendram necessariamente as seguintes,

    coibindo os vazios e os comeos sucessivos. O fragmento, ao contrrio, induz

    pluralidade, ruptura, multiplicao dos pontos de vista, heterogeneidade. Ele

    permite visar, em seu uso mais amplo e mais antigo o dos elisabetanos, dos autores do

    Sculo de Ouro espanhol e, de uma maneira geral, dos dramaturgos barrocos , uma

    gama de aes disparadoras cujos comeos aproximadamente simultneos exploram

    pistas paralelas ou contraditrias, ao menos aparentemente. A natureza dos elos entre

    esses comeos, sua coerncia temtica e seu encontro final para um eventual desfecho

    unificador variam segundo as obras, at alcanar o isolamento das pedras sobre a

    circunferncia do crculo, como escreve Roland Barthes. Esses fragmentos podem

    ento ser chamados pedaos, cacos, escombros, estilhaos, migalhas ou trechos de

    escrita, desigualmente separados por vazios. A propsito, acontece de o vazio

    prevalecer e os comeos deixarem de ser comeos, de a natureza das relaes e

    prolongamentos entre esses trechos permanecer enigmtica, e buscarmos em vo o

    vestgio de uma perspectiva unificadora, a trama de um arquiplago, na reunio de

    ilhotas esparsas. Os efeitos da ps-modernidade multiplicaram as escritas da

    desmontagem e da decomposio.

    Mas as aes mltiplas lanadas pelos dramaturgos barrocos, por mais

    heterogneas que elas sejam o reino da mistura dos gneros , contm quase sempre

    a promessa de uma explicao que as torna necessrias. As formas por eles adotadas

    recorrem ao plural, ao simultneo, ao divergente, para melhor alcanar seus fins, isto ,

    dar conta de um universo opaco e instvel cuja complexidade jaz nos atalhos, nas

    espirais independentes e nos desenvolvimentos improvveis.

    A importncia da montagem e a questo do ponto de vista e da coerncia

    ressurgem naqueles que interrogam a escrita fragmentria, como Jean-Pierre Sarrazac,

    que se refere ao rapsodo e leva em conta o duplo gesto do escritor, o que desliga e o que

    liga. Podemos ver nisso uma linha de ruptura entre as escritas fragmentrias que fatiam,

    despedaam ou quebram pedras, ou mesmo fabricam filamentos, como diz Franois

    Regnault, e aquelas que, participando do mesmo projeto, trabalham no movimento de

  • fabricar elos. A natureza e a visibilidade desses elos variam, segundo o dramaturgo

    reforce a montagem, ou a faa ser comentada por um narrador, ou a deixe evidente pelo

    jogo das indicaes e das rubricas, ou ento abandone sua decupagem aos acasos dos

    choques e boa vontade do leitor ou do espectador, quando no aos poderosos efeitos

    da encenao. Hoje, a polmica incide ento sobre os limites e consequncias da

    fragmentao e sobre a maneira pela qual a obra recompe-se por efeito da montagem,

    ou, ao contrrio, aberta a todas as modas da interpretao, no oferece nenhum ponto de

    vista aparente sobre o mundo.

    Tradicionalmente, o fragmento designa o carter incompleto ou inacabado de

    uma obra; nesse caso, e a crer nas definies vigentes, o essencial no parece encontrar-

    se no que resta dela ou no que foi composto, mas sim no que no chegou at ns, no que

    falta. Paradoxalmente, nossa poca transformou o que era a confisso de um fracasso,

    uma perda ou uma insuficincia na afirmao de uma escolha esttica. Roland Barthes,

    por exemplo, aponta o prazer dos comeos sucessivos, a respeito de seus Fragmentos de

    um discurso amoroso. Em dramaturgia, a palavra expandiu-se a ponto de entrar no ttulo

    de certos textos, como os Fragments dune lettre dadieu lus par des gologues

    [Fragmentos de uma carta de despedida lidos por gelogos], de Normand Chaurette

    (1986). Provavelmente a influncia das artes plsticas sobre a escrita dramtica tambm

    se fez sentir nesse caso, uma vez que se tornou banal integrar numa obra pictrica

    elementos heterogneos de origens diversas, o mesmo que libert-la da perspectiva

    nica. Em matria de fotografia, por exemplo, David Hockney em suas paisagens

    fragmentadas, feitas de cenas de polaroides justapostas, recria um mundo onde a

    multiplicao das lentes corresponde multiplicao dos pontos de vista.

    Para Peter Szondi, o eu pico que organiza e justifica as formas dramticas

    parcialmente fragmentrias. Ele busca seus sinais na imploso dos lugares e no separa

    a escritura descontnua da necessidade da montagem. Por exemplo, faz de Strindberg na

    Sonata de espectros um autor que exprime no palco a existncia isolada dos homens de

    sua poca, instalando como cenrio a fachada de uma casa. A multiplicidade dos locais

    da ao no interior da casa , entretanto, contestada pela praa defronte, que recria uma

    unidade. Em contrapartida, Szondi cita Les Criminels [Os Criminosos] (1929) de

    Bruckner como uma obra em que os trs andares da casa derivam de uma verdadeira

    simultaneidade que corresponde, na dimenso temporal, sucesso paralela de cinco

    aes isoladas. Mas ele assinala naturalmente a relao que essas aes mantm com o

    tema. Da mesma forma, insiste, embora faa aluso aos fragmentos dos diferentes

  • debates, no fato de que estes se agrupam para fornecer uma imagem unificada do

    tribunal.

    Woyzeck de Buchner, obra inacabada e em virtude disso recomposta por suas

    sucessivas encenaes, uma pea cuja organizao fragmentria acompanha a viso de

    mundo do personagem principal e contribui para desmascarar sua alienao. O que lhe

    acontece escapa lgica do compl a ser instaurada por uma trama construda. Os

    acontecimentos no obedecem a uma progresso sistemtica, acumulam-se e s fazem

    sentido no interior de uma paisagem disjunta e congelada que expe a situao de

    Woyzeck no mundo e ao mesmo a interioridade do personagem.

    Filiado aos naturalistas, o dramaturgo e terico Jean Jullien concebe a pea de

    teatro como uma fatia de vida encenada com arte. Com essa frmula clebre embora

    com frequncia desvirtuada, Jullien preconiza extirpar um segmento diretamente do

    real. Mquina mortfera contra a pea benfeita, a fatia de vida lquida com a arte das

    preparaes. A pea de teatro ser emancipada de seus apndices, julgados inteis e

    suprfluos. A exposio, escreve Jullien, [...] ser feita peala prpria ao e o

    desenlace no passar de uma interrupo facultativa da ao. A fatia de vida, portanto,

    ilustra a oposio que se ergue entre o fragmento e as sacrossantas regras de equilbrio e

    composio do drama absoluto. A particularidade desse fragmento que ele pretende,

    contudo, ao reforar sua posio de fechamento em si mesmo, constituir nele prprio,

    quando no uma totalidade, pelo menos um conjunto, um objeto dramtico homogneo.

    O teatro pico de Brecht participa da escrita fragmentria na medida em que

    introduz no que era o rio da fbula as rupturas, saltos, elipses, variaes brutais de

    ngulos de viso. Trata-se mais de pedaos que de fragmentos, e a composio de

    conjunto no evidentemente abandonada ao acaso; ela obedece a efeitos primordiais

    de montagem que constituem o ponto de vista.

    Sob a influncia de Brecht, uma parte do teatro cotidiano dos anos 1970 expe

    a vida comum das pessoas comuns sob a forma de curtas sequncias, s vezes

    enigmticas, como em Michel Deutsch ou Franz Xaver Kroetz. A fragmentao vai no

    sentido de uma concentrao extrema das partes cada cena vale naturalmente por si s

    e da evidncia de uma extirpao destas de um conjunto mais vasto que as aproxima

    da fatia de vida. A escolha das sequncias e de sua articulao obedece sempre a uma

    lgica narrativa, ainda que esta se desdobre no interior de um grande vazio e que largas

    camadas de ar acolchoem os espaos intersticiais, concedendo-lhes nova importncia.

    As peas de Michel Vinaver obedecem de bom grado a essa lgica do despedaamento

  • e da montagem. Mas vo mais longe ainda na fragmentao das rplicas, afiadas,

    incompletas, agudas; elas oferecem suas extremidades desnudadas e inconsteis que

    revelam suas origens, grande universo da palavra cuja diversidade e impossibilidade de

    esgot-la elas exprimem (tudo bom de ouvir). A rplica rara, lacnica, em atrito com

    outras, torna-se a marca registrada de uma linguagem fragmentada que se apega em

    exprimir melhor o todo por intermdio das operaes de escolha, retirada e montagem.

    A fragmentao, portanto, diz respeito ao infinitamente pequeno teatral, a rplica, assim

    como ao infinitamente grande, a obra inteira. Esta torna-se ento um imenso fragmento,

    como um mundo arrancado do mundo, significando ao mesmo tempo sua totalidade e

    sua incompletude.

    Os fragmentos, por conseguinte, ou so homogneos ou totalmente

    heterogneos. Homogneos, eles o so na escrita, pelo que falam ou por aquilo a que se

    referem. Nesse caso, provm de um mesmo tecido. A fragmentao concerne a um setor

    limitado; o referente comum garante uma lgica de conjunto.

    Heterogneos, eles o so pela diversidade dos referentes, das preocupaes, dos

    temas, e obedecem, como sugere Heiner Muller, a um princpio de decomposio. A

    heterogeneidade torna-se ento o princpio artstico capital.

    No primeiro caso, a escrita leva em conta um estado anterior idealizado,

    pressuposto (a carta, o discurso, a obra integral, um personagem ausente ou morto, at

    mesmo um tema), do qual restam vestgios, enquanto temos pelo menos uma ideia do

    modelo completo; no segundo caso, ignoramos tanto a provenincia dos fragmentos

    quanto aquilo que deveria ser reconstitudo. O princpio ativo, mas aleatrio, seria

    contido nos fragmentos e no no que exterior a eles, e, a rigor, o autor no saberia

    sobre eles mais que qualquer outro. No haveria previamente a fratura, a seleo, o

    despedaamento, mas apenas trechos cuja diversidade de provenincias, enigma das

    origens, e a causa da juno permanecem desconhecidas.

    O que h ento a reconstruir, que princpio organizacional a imaginar? Nada, se

    a fragmentao passa a ser o princpio esttico em si. As partes no so a metfora ou a

    metonmia do todo. O mundo partido, e intil pr-se procura de um efeito qualquer

    de quebra-cabea ou de uma lei ordenadora. O mundo no organizado, a obra

    tampouco, pois exprime a desordem, o caos, o fracasso, a impossibilidade de toda

    construo.

    Isso resulta em ambiguidades. A primeira a suspeita de impotncia que paira

    sobre o autor caso ele no fornea nenhum princpio artstico de composio, nenhuma

  • arquitetura sutilmente disfarada. A segunda diz respeito ao status especfico da obra

    teatral. O texto ao sabor de todas as modas, o texto informe, o texto rfo pode sempre

    encontrar um pai adotivo, no caso, o encenador que garimparia com tanto mais

    liberdade na obra que lhe proposta na medida em que esta j se acha pr-decupada

    como que para seu livre uso. Contra o princpio mesmo da obra, ele pode organiz-la

    para o palco, ou encontrar um uso dos fragmentos que escape a toda preocupao de

    interpretao. Paralelamente ao fragmento, com conotaes da mesma ordem, a palavra

    material figura assim em ttulos de espetculos contemporneos Matriau Mde,

    Matriau Shakespeare [Material Medeia, Material Shakespeare], significando o desejo

    dos criadores de garimpar onde bem lhes aprouver.

    A obra fragmentada oferece criao, assim como recepo, uma liberdade

    fantstica. Ela contm em si mesma seu prprio veneno, o risco do texto informe e

    aberto a todas as correntes de ar, esvaziado de toda substncia.

    David Lescot e Jean-Pierre Sarrazac

  • NTIMO

    O advento do ntimo no teatro parece um golpe de fora. O drama absoluto,

    segundo Szondi, efetivamente pura relao, e o homem dentro dele evolui no

    mundo dos outros. Ora, o ntimo definido como o superlativo do dentro, o interior

    do interior, o nvel mais profundo do eu, quer se trate de alcan-lo pessoalmente ou

    abrir seu acesso a outro (uma relao ntima).

    O discurso na primeira pessoa a forma por excelncia do ntimo: dirio ntimo,

    relato pessoal, confisso, correspondncia. No drama, ao contrrio, a representao do

    homem na sociedade, e em ao, supe relegar s margens toda expresso no motivada

    pela interioridade.

    Contudo, a tentao do ntimo atormenta o drama desde suas origens: seria

    obviamente ocioso apontar a oscilao perptua, no teatro shakespeariano, entre a

    representao do mundo e das foras que o atravessam e a dos sujeitos por sua vez

    perpassados pelo mundo e suas pulses , e seria tentador exprimir-se e pensar-se a

    partir do interior, o mundo e o sujeito espelhando-se, segundo o princpio barroco da

    analogia; o prncipe de Homburg alcana o nvel profundo das pulses liberadas pelo

    estado de sonho, mas esse parntese ntimo permanece ligado ao: sonhando, ele no

    escuta as ordens que lhe so dirigidas, e essa negligncia se revelar decisiva. Outro

    personagem cuja fala, isolada do dilogo, pertence ao mbito do ntimo, Woyzeck

    demonstra sua incapacidade em ligar entre si os fragmentos de seu eu, e de seu eu no

    mundo, mas seu discurso de certa forma justificado pela observao clnica de que ele

    objeto. A presena do ntimo em Kleist e Buchner, mas poderamos citar igualmente

    Musset, manifesta-se num modo menor, na filigrama dos acontecimentos e discursos

    que derivam da esfera intersubjetiva.

    Existe uma certido de nascimento do teatro ntimo, uma legitimao do

    interior do interior como objeto de representao que no necessita mais do pretexto

    de um drama desenrolando-se principalmente na esfera intersubjetiva; a criao do

    Teatro ntimo por Strindberg, em 1907. O teatro ntimo representado numa tenso

    fecunda entre o eu e o mundo, entre o eu dramtico e o eu pico, cujas modalidades to

    diversas foram caracterizadas e postas em perspectivas no ensaio de Jean-Pierre

    Sarrazac, Thtres intimes, que baliza o itinerrio do teatro ntimo desde sua intuio

    diderotiana at suas formas contemporneas. No teatro contemporneo, a tenso entre o

    eu e o mundo, caracterstica do teatro ntimo, explora formas extremas: a da falncia do

  • mundo, em que a voz do sujeito continua identificvel fazendo-se ouvir num mundo

    desertado ou destrudo (de Beckett a Gregory Motton e ao ltimo Bond); e aquela,

    simtrica, da falncia do eu. A partir do que Jean-Pierre Sarrazac chamou de eu errante,

    desenvolve-se um teatro de vozes supra ou infrapessoais, em que isso fala do mais

    profundo, do mais ntimo, sem que essas vozes sejam sujeitos identificveis num mundo

    determinado. Esse o caso de certas peas de Bernard-Marie Kolts ou ainda do teatro

    de Sarah Kane, no qual o mundo aparece mais como horizonte mtico da fala do que

    como universo de referncia.

    Longe de significar a fuga do personagem para fora do mundo, seu retraimento

    num casulo intimista, o teatro ntimo abrir o campo para o desnudamento, na faa e nos

    silncios que a esburacam, do mais recndito, do no dito, do irrepresentvel, quer se

    trate do eu psquico, de seu discurso interior e de sua rememorao (de Strindberg a

    Bernhard), ou dos alicerces implcitos das relaes ntimas, familiares ou conjugais (na

    esteira de Tchekhov ou ONeill), todos territrios igualmente investidos pela

    psicanlise. A inveno dessa ltima coloca em questo a ideia de um acesso fcil, por

    introspeco, confisso ou confidncia, ao nvel mais profundo do sujeito. Contudo, se

    admitirmos a ideia de que o inconsciente estruturado como linguagem, a forma

    dramtica poderia ter vocao para mimetizar o fluxo linguageiro do inconsciente, como

    atestam, por exemplo, os textos dramticos e no dramticos de Jon Fosse.

    O ntimo no teatro , por fim, um paradoxo para a representao: como dar a ver

    o interior na cena, que o espao deixar penetrar o olhar sobre o tablado, dentro da casa,

    no interior dos pensamentos, ou ainda do inconsciente de um sujeito? O Teatro ntimo

    de Strindberg, onde Ns poderemos, en petit comit,/ Dar vazo ao transbordamento de

    nossos coraes, surge, significamente, no fechamento de um sculo que, segundo

    Walter Benjamin, procurou mais que qualquer outro a habitao, [...] considerou o

    apartamento como um estojo para o homem. O sculo XX ter assim explorado,

    aprofundado, variado a prtica do ntimo na cena: os interiores de Antoine, o Hensingor

    de Craig inteiramente filtrado pelo olhar crtico de Hamlet, o trabalho radical de Claude

    Rgy sobre a relao do espectador com o teatro, que evita os escolhos do intimismo e

    da familiaridade, ou o de Matthias Langhoff para preservar a aspirao csmica do

    Teatro ntimo, so outras tantas formas dadas ao programa sonhado por Strindberg.

    Catherine Treilhou-Balaud

  • PEA-PAISAGEM

    numa conferncia publicada em 1935 que Gertrude Stein, recordando sobre o

    processo que a levou a escrever suas primeiras peas, compara a pea de teatro, tal

    como ela a compreende, a uma paisagem. O ttulo de sua primeira antologia, Geografia

    e peas (1922), j indicava isso.

    A concepo steiniana traduz acima de tudo uma distncia tomada em relao

    ao como fundamento do drama e, ao mesmo tempo, linearidade sob o signo da qual

    se coloca, tradicionalmente, seu desenrolar. Quanto ao: nesse caso, convm ouvir

    em primeiro lugar a fbula. Vocs podero, diz ela, contar uma histria, mas no

    contem comigo para cont-la: inscrevo a essncia do que aconteceu. Em relao

    linearidade: e eis o ponto fundamental. A caracterstica da paisagem, diz ela, estar-

    a. Imvel sob nossos olhos. E entendo que sou eu, leitor ou espectador, que cria o

    movimento no interior da paisagem e que liga os elementos em presena, uma vez que

    tudo est disposto ali para mim minha disposio. Nesse texto, explcita a

    comparao com a fotografia e a escultura. implcita, porm essencial, a comparao

    com a pintura.

    Michel Vinaver voltar a dar noo de pea-paisagem um novo eco, opondo-

    a pea-mquina, designando assim dois polos da escrita dramtica. A pea-

    mquina aquela na qual a ao progride sob o regime do encadeamento causal. Nela,

    reina a linearidade, ao passo que na pea-paisagem, diz ele, a ao progride por repto

    aleatrio. Como se circulssemos no interior de uma paisagem, livres para tomar esse

    caminho em vez daquele.

    A pea-paisagem vinaveriana confere, portanto, imensa amplitude noo

    (que em Stein no valia seno para seu teatro), uma vez que para ele recobre um campo

    que alinha um grande nmero de obras modernas e contemporneas, de Tchekhov ou

    Strindberg a Beckett e Jon Fosse, que no comungam seno o fato de romperem com a

    concepo tradicional da ao e instalarem o leitor ou o espectador no cerne de uma

    paisagem (humana, social...) que um mundo (maior ou menor) ou uma psique

    singular, uma paisagem interior.

    Gostaramos de propor a seguinte distino. Se a pea-paisagem vinaveriana

    define o outro polo no seio de uma forma dramtica cujo espectro alarga-se

    incessantemente, a pea-paisagem steiniana, em sua radicalidade que permanece

    intacta, designaria o outro polo da forma dramtica. Em Stein, com efeito, a pea-

  • paisagem no apenas imagem de uma paisagem. Ela poema e (paradoxalmente)

    msica. Sua segunda antologia intitula-se Operas and Plays [peras e peas] (1932).

    Atenhamo-nos ao poema. As peas de Gertrude Stein so acima de tudo

    concrees linguageiras, que nem sempre preveem a distribuio da fala, e nas quais a

    recusa da linearidade manifesta-se por todo um jogo de repeties, variaes, ritmos. O

    desafio que elas lanam representao no pode mais ser detectado em termos de

    drama ou dramaticidade, mas em termos de material para o palco.

    Textos-materiais, as peas-paisagens de Gertrude Stein estavam espera do

    teatro de Robert Wilson, o que pudemos observar em seus espetculos muito antes que

    ele montasse em 1992 Doctor Faustus Lights the Lights [Doutor Fausto liga a luz]

    (pea de 1938). Isso significa que elas so, da mesma forma que uma pea como

    Hamlet-mquina de Heiner Muller, textos para o palco, destinados a nele conviver com

    outros materiais visuais e sonoros, muito mais do que peas de teatro.

    Seja na concepo vinaveriana ou na concepo steiniana, ou em outras ainda a

    inventariar ou quem sabe inventar, a pea-paisagem aparece como uma noo nodal na

    evoluo presente das formas teatrais, dramticas ou no, ou, mais geralmente, cnicas.

    Joseph Danan

  • TEATRO ESTTICO (ESTATISMO)

    A ideia de um teatro esttico, sugerida por Maeterlinck no fim do sculo XIX,

    mas j embrionria nos tableaux de Diderot, influencia profundamente a escrita

    dramtica moderna e contempornea. Emancipando em diversos graus o drama de sua

    acepo aristotlica, o teatro esttico aparece como uma fora capaz de quebrar,

    interromper ou ralentar a construo da ao. Em Diderot e Maeterlinck, ele constitui

    uma alternativa crtica progresso dramtica, tradicionalmente baseada na dinmica

    evolutiva das relaes inter-humanas. Nesse sentido, o teatro esttico estimula o

    surgimento de novas modelizaes do tempo dramtico, ao mesmo tempo que abre para

    uma reflexo metadramtica: a espera beckettiana ou a petrificao da Histria em

    Muller interrogam a possibilidade mesma da ao dramtica e de sua progresso rumo a

    um desfecho situado no futuro.

    Longe de corresponder, em Maeterlinck, negao de todo movimento, o teatro

    esttico induz antes uma procura das expresses possveis de sua renovao. Atento s

    foras invisveis, ao mesmo tempo ocultas e psquicas, que reemergem do drama

    moderno, Maeterlinck formula efetivamente os princpios de um drama esttico cujas

    estruturas fundamentais so a espera e a subordinao do visvel ao invisvel: s vezes

    chego a pensar que um velho sentado em sua poltrona, esperando simplesmente sob o

    abajur [...], vive, na realidade, uma vida profunda, mais humana e mais vasta que o

    amante que estrangula sua amante, o capito que obtm uma vitria ou o esposo que

    vinga sua honra. Nesse teatro, que substitui a categoria da ao pela da situao, o

    movimento dramtico toma como fonte uma tenso entre a imobilidade fsica das

    personagens e sua mobilidade psquica. Os mbitos estticos das peas maeterlinckianas

    orientam o espao-tempo dramtico para a explorao da dinmica do inconsciente.

    Essa metamorfose da ao inter-humana em movimento psquico caracteriza igualmente

    a dramaturgia strindberguiana, sobretudo em Rumo a Damasco e O sonho. O teatro

    esttico desdobra-se assim em teatro ntimo, condenando o palco a uma introspeco

    que s vezes se revela mortfera. John Gabriel Borkman j colocava em cena dois

    cnjuges emparedados em apartamentos distintos: o personagem homnimo da pea de

    Ibsen, prisioneiro de sua prpria agonia, termina por se exprimir como se fosse um

    morto-vivo. John Gabriel Borkman prefigura nesse sentido os personagens de Sonata de

    espectros de Strindberg reunidos para uma ceia ritual que tende ao teatro esttico de

    uma verdadeira agonia dramtica.

  • Essa propenso imobilidade vigora desde a primeira pea de Beckett,

    Esperando Godot, cuja ao ameaa esvanecer na espera. Em Fim de partida, a espera

    de um fim de contedo indefinido, fim do mundo e fim de partida, parece

    corresponder espera de Godot. Esperando e temendo um fim declarado iminente pela

    primeira rplica Terminou, terminou, vai terminar, talvez v terminar , os

    personagens de Fim de Partida condenam-se imobilidade. Clov, que tenta sem

    sucesso partir desde [o seu] nascimento, permanece imvel at o fim da pea,

    oferecendo a imagem concreta de um teatro dominado pelo teatro esttico. num modo

    mais metafrico, marcado pela recorrncia das imagens de petrificao e glaciao, que

    Muller tematiza a impossibilidade de toda progresso dramtica. Em Hamlet-mquina,

    a petrificao exprime em primeiro lugar o fracasso da utopia comunista, a imobilizao

    da Histria. que o teatro de Muller interroga conjuntamente a possibilidade de um

    progresso histrico e a de uma progresso dramtica. As ltimas palavras de Descrio

    de imagem, por exemplo, fazem referncia a um furaco congelado, metfora de uma

    pea de teatro que substitui a ao pela descrio, e a negao da tempestade do

    progresso, que, em Benjamin, impelia o anjo da Histria para o futuro.

    Hlne Kuntz e Mireille Losco

  • PS-DRAMTICO

    O ps-dramtico no um estilo, nem um gnero, ou uma esttica. O conceito

    rene prticas teatrais mltiplas e dspares cujo ponto comum considerar que nem a

    ao nem os personagens, no sentido de caracteres, assim como a coliso dramtica ou

    dialtica dos valores, e nem sequer figuras identificveis so necessrias para produzir

    teatro (Lehmann). Nesse sentido, o ps-dramtico supera a oposio tradicional entre

    pico e dramtico. dramtico todo teatro que pretenda representar o mundo, de

    maneira direta ou distanciada, e que coloca o ser humano no centro do dispositivo. Se

    Brecht designava o gnero dramtico como um teatro do discurso e da mimese, todas as

    experincias picas para substituir a mimesa pela diegese no so, aos olhos do ps-

    dramtico, seno uma renovao e consumao do teatro dramtico tradicional: elas

    tambm no concebem o teatro seno como representao de um cosmo fictcio.

    Nessa perspectiva, as revolues cnicas do sculo XX, no que se refere a boa

    parte delas, teriam se inclinado a reforar a forma dramtica a fim de salvar o texto e

    sua verdade, quando estes achavam-se ameaados por prticas teatrais tornadas

    convencionais. Inversamente, o teatro ps-dramtico reivindica a encenao como

    comeo e como ponto de interveno, e no como transcrio de um realidade que lhe

    seja exterior (Lehmann). Logo, no lhe necessrio convocar as dimenses

    tradicionalmente ligadas ao teatro. Em contrapartida, ele recorre a todas as artes: dana,

    canto, msica, pantomima, teatro falado, artes grficas, iluminao, vdeo, imagens

    virtuais, hologramas... O objetivo solicitar a imaginao, desencadear associaes,

    obter a criao de um mundo de imagens que resista a uma leitura interpretativa e que

    no possa ser reduzido a uma metfora unvoca (Heiner Muller). O texto no

    excludo desse dispositivo, mas no mais considerado o suporte e o pressuposto da

    representao. um elemento entre outros, no mesmo plano que o gestual, o musical, o

    visual. Como aponta Hans-Thies Lehmann, o passo para o teatro ps-dramtico dado

    quando todos os meios teatrais para alm da linguagem veem-se instalados em p de

    igualdade com o texto, ou podem ser sistematicamente pensados sem ele.

    O ps-dramtico um apelo autonomia real do teatro em relao ao drama, tal

    como fora pressentida e almejada desde o fim do sculo XIX pelos simbolistas e de

    mltiplas maneiras em seguida, em Artaud, nos surrealistas, em Gertrude Stein,

    Witkiewicz etc., e que no teria chegado maturao efetiva seno nas ltimas dcadas

    do sculo XX.

  • Nesse esprito, podem ser consideradas como do domnio do ps-dramtico, por

    diversos motivos, no necessariamente conciliveis, as realizaes de Tadeusz Kantor,

    certas peas de Heiner Muller, de Klaus Michael Gruber, os espetculos de teatro

    danado de Pina Bausch, as encenaes de Bob Wilson e, mais amplamente, numerosas

    formas experimentais que renem artistas de horizontes diversos, preocupados em

    suscitar encontros e descobrir elos entre as artes no palco do teatro.

    Qual ser a memria desse teatro na ausncia de um texto que, at aqui,

    cumprira essa funo? O vdeo? Uma partitura ainda por ser escrita na qual estariam

    consignados dana, msica, texto e os mltiplos elementos do espetculo? Talvez o ps-

    dramtico venha a ser um teatro sem memria ou cuja memria ser necessariamente

    fragmentria.

    Jean-Louis Besson