lucas justiniano roberto - lucas... · 2020-05-26 · universidade federal fluminense instituto de...
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Universidade Federal FluminenseInstituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
LUCAS JUSTINIANO ROBERTO
CRACK NO CAMPO
CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO
Niterói
2018
Universidade Federal FluminenseInstituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
LUCAS JUSTINIANO ROBERTO
CRACK NO CAMPO
CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO
Monografia apresentada ao Curso de Graduaçãoem Antropologia da Universidade FederalFluminense, como requisito parcial para aobtenção do título de Bacharel Licenciado emEspecialidade.
Orientador: Prof. Dr. Antônio Carlos Rafael BarbosaCo-orientador: Prof. Dr. João Resende Santos
Niterói
2018
Universidade Federal FluminenseInstituto de Ciências Humanas e Filosofia
Curso de Graduação em Antropologia
LUCAS JUSTINIANO ROBERTO
CRACK NO CAMPO
CONSIDERAÇÕES SOBRE O USO
BANCA EXAMINADORA
.............................................................Prof. Dr. Antônio Carlos Rafael Barbosa
Universidade Federal Fluminense
.............................................................Prof.ª Dr.ª Ana Cláudia da Silva
Universidade Federal Fluminense
.............................................................Prof. Dr. Valdeci Ribeiro dos SantosUniversidade Federal Fluminense
Niterói
2018
DEDICATÓRIA
Dedico esta monografia as pessoas que sempre estiveram comigo nesse
período de estudos e as pessoas que contribuíram de forma direta pra que isso
pudesse acontecer.
AGRADECIMENTO
Eu gostaria de agradecer a M E A L Z O A I R Z E A L L E, minha mãe.
Uma com devir mãe, supermãe e outra que me deu tudo até a dor de cabeça,
através delas eu aprendi e aprendo todos os dias. Não poderia deixar de colocá-las
na mesma linha na mesma palavra. Agradeço a Meu pai ele é foda. Minha tia Hilda
que sempre está a meu lado. Ao Jhonny se não fosse sua boa vontade nem a
matrícula teria feito. Obrigado.
Eu quero agradecer meu Filho Raziel por ser um cara que mudou minha vida,
lindo, intenso, dizer que te amo é minimizar muito meus sentimentos por você filho; a
mãe dele também de alguma forma me ensinou bastante coisa.
A senhora Maria do Céu, Xandi e João Henrique essas pessoas estão sempre
comigo
Meu irmão. Ele é astrofísico. (GB)
Antro.
Em especial agradeço ao Prof. (amigo) Antônio Carlos Rafael Barbosa
quaisquer elogios que faça pra ele reduziria a um ser humano e esse cara
transcende a nós meros mortais, palavras como essa estendo a Ana Cláudia, Daniel
Bitter, Ana Lúcia, Débora Broaz, João Resende. Valdeci Ribeiro do Santos quero ser
como você.
Aos amigos Estevão, Kepli (Luiz), Luan Pacheco, Ícaro Marinho e Torres,
Ricardo Gaúcho, Rodrigo esse mano é parceiro, Augusto Fontes, Tarço, aos
apóstolos: João, Thiago a Ruana* (linda), Para os manos Alexandres sabedoria até
o último fio de cabelo. Certificada.
Agradeço ao povo brasileiro norte,centro, sul inteiro onde nasceu o baião…
Ao amigo Rosinha que esteve presente falando as coisas erradas nas horas
certas, obrigado por você ter passado por minha vida.
Agradecer ao Thiago na moral, vulgo Thiago de Castro esse mano me salvou
sem querer quando eu mais precisei. Obrigado. Ao Saara. Mano Pedro SP
Agradeço o Zezinho evitou muitas caminhadas.
Av. Brasil, B2, Morro do Palácio, Cavalão, Grota, Estado, a Penha e sua
gaiola. Dentre outros lugares.
As pessoas que contribuiram muito pra minha vida ser bacana, Sr. Raimundo
e Francisco. Sueli, Hésio e família. Paulo. Sr. Barriga que não é mole não. A
Princesa Fátima. Roberta ascoltami Ritorna ancor ti prego Con te ogni istante era
felicità. Ao mano Vinícius esse cara me persegue, antes mesmo da UFF ele esteve
próximo.
Aos amigos de MG: Tatu Cú de Frango, Godô, Iris. Betão. D. Divina. Idari pela breve
visita. “Robihud,” netinho e Brexó pela moral.
As putas do passado. Amo vocês todos obrigado.
EPÍGRAFE
...Larguei minha família, a escola, você sabe
Parei com a maconha, tô usando crack
Tô usando crack
No copo de guaravita eu fico suave
Tô usando crack
A maconha te engorda use crack que é mais light
Tô usando crack
Vou perder os meus amigo, se prostituir faz parte
Tô usando crack
MC Carol
RESUMO
Este trabalho visa demostrar um renovado e intensificado interesse no
consumo do crack em centros urbanos e nas lavouras de café, essa contribuição
reside certamente em arejar o debate, abrindo-o para pontos de vista mais
complexos e matizados, capazes de desafiar e complementar criticamente os
discursos médicos, farmacológicos, policiais e religiosos que se apropriaram da
legitimidade de discorrer sobre o tema.
Longe de promover uma nova doutrina ou panacéia teórica, produtora de
novos reducionismos e simplificações, seu espírito é o de incorporar perspectivas
que confrontem o conhecimento convencional e questionar verdades impostas por
um senso comum midiático explorado por diversos setores da sociedade.
. Esse é um passo indispensável para a elaboração mais refinada dos
próprios problemas teóricos e práticos que estão em jogo em terreno tão polêmico.
O uso de “drogas” e mais especificamente o crack, como meio laboral.
ABSTRACT
This paper aims to demonstrate a renewed and intensified interest in the use
of crack in urban centers and coffee plantations. This contribution certainly lies in
opening up the debate, opening it up to more complex and nuanced points of view,
capable of critically challenging and complementing medical, pharmacological, police
and religious discourses that have appropriated the legitimacy of discourse on the
subject. This is an indispensable step towards the more refined elaboration of the
very theoretical and practical problems at stake in such controversial terrain. The use
of "drugs" and more specifically crack, as a working environment
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................13
2 ESTUDOS EMPÍRICOS...................................................................................16
3 CORPO ABJETO..............................................................................................19
4 CRACK NO CAMPO........................................................................................26
5 A SALIVA NÃO GRUDA, REDUZIR USO OU DANOS?..................................35
6 CONSIDERAÇÕES..........................................................................................38
7 ENTREVISTAS.................................................................................................39
8 CONCLUSÃO...................................................................................................42
9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................45
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1. INTRODUÇÃO
Pensando em um trabalho de conclusão de curso, optei por pesquisar o uso
de crack no meio social, público e privado, urbano e rural, em um primeiro momento
nas ruas do grande Rio de Janeiro, e depois - buscando um contraste com esse
local por não estar à vontade com a situação a que usuários eram tratados pelo
Estado e o “Estado paralelo” estabelecido pela criminalidade fluminense - descrevo
o uso nas propriedades produtoras de café na região de Carangola, Caparaó e
Manhuaçu em Minas Gerais. Gostaria de contar o que apreendi durante o período
da pesquisa. O consumo sistemático de um grande conjunto de substâncias
capazes de alterar o comportamento, a consciência e o humor dos seres humanos é
comprovadamente milenar, as ditas “drogas”
Em grego, tókson quer dizer: arco e flecha, e a forma adjetiva toksikons,
assim toksikon pharmacon é veneno pra flecha. Curiosamente, o significado de
pharmacon estendeu-se a toksikon; com o passar do tempo o termo envenenamento
quer dizer intoxicação.
Depois ainda o que é tóxico passou a ser sinônimo de droga. De alguma
forma transformamos em droga tudo aquilo de que fazemos mal uso, seja pela falta
ou excesso. Nosso corpo quando estimulado de forma equivocada pode nos afetar,
como se por uma substância psicoativa ausente em nosso organismo.
A droga está relacionada a sujeira. Na minha pesquisa no meio urbano as
relações são difíceis pois pude perceber que a droga por si não exclui tanto quanto
a sujeira corporal, expondo uma parte de nós, humanos, a outra condição. A fuga
pela não humanidade é um processo doloroso, só com altas doses de dopamina1
para substituir as mazelas sociais que conduz a tal exposição.
1A dopamina é um neurotransmissor importante que participa de funções especificas. Oferece a sensação de bem estar, de prazer e felicidade .
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Outra forma de sujeira ou estar sujo é estar envolvido diretamente com uso ou
comércio de drogas ilícitas. E da mesma forma quando se está no meio de usuários
e se aproxima quem não é, ele é o “sujeira”, nesse caso a polícia é “sujo demais”.
Quando decidi escrever o trabalho de conclusão de curso já havia passado
por um processo de desconstrução, havia uma visão errada que a droga só poderia
existir para meios recreativos e em tratamentos médicos e da proibição e
regulamentação.
Mas desde já tento demostrar que um padrão de vida social pode ser
considerado droga, atualmente se fizer uma breve analogia com as fake news2,
estas podem ser consideradas drogas virtuais, que de alguma forma pode perturbar
o que pensamos e desejamos, confundindo nossos sentidos.
Atualmente, nas praças de cidades de médio e grande porte, e nas
metrópoles podemos ver pessoas concentradas com luz direta nos olhos, sem
perceber nada ao redor, cultivando a si mesmo e vivendo por muito tempo fora da
razão.
2Usado para se referir a notícias fabricadas. O termo fake news originou-se nos meios tradicionais decomunicação, mas já se espalhou para mídia online. Este tipo de notícia, encontrada em meios tradicionais,mídias sociais ou sites de notícias falsas, não tem nenhuma base na realidade, mas é apresentado comosendo factualmente correta.
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Sobre os usuários do crack, fui percebendo através da pesquisa, que quando
entrei em campo logo aparece uma espécie de “neoevolucionismo”, impondo como
premissas nossas próprias noções de como cuidar do corpo e a própria noção
corporal, construídas ao longo de um processo histórico e civilizador (Elias, 1994) no
qual a própria modernidade foi caracterizada pela entrada do corpo na vida política e
social (Foucault, 1988), e pela ideia de que o corpo pode ser construído, fabricado e
de que as identidades podem ser alteradas e permutadas (Haraway, 2000; Butller,
2003). Ou seja, pelo avesso, tais noções eram constantemente reforçadas.
Nesse plano, estamos falando de substâncias tão diferentescomo a cerveja, o crack, a cocaína, a jurema e o diazepam.“Psicoativo” é um dos termos cunhados para referir àssubstâncias que modificam o estado de consciência, humorou sentimento de quem as usa – modificações essas quepodem variar de um estímulo leve, como o provocado poruma xícara de café, até alterações mais intensas napercepção do tempo, do espaço ou do próprio corpo, comoas que podem ser desencadeadas por alucinógenos vegetais,como a ayahuasca, ou “anfetaminas psicodélicas” sintéticas,como o MDMA, popularmente conhecido como ecstasy. Aolado das significações atuais mais costumeiras de“medicamento” e de “psicoativo”, encontra-se nas línguaseuropéias uma utilização mais antiga do termo para designaringredientes empregados não só na medicina, mas tambémna tinturaria e na culinária, provenientes de terrasestrangeiras distantes, como as especiarias do Oriente e,posteriormente, o açúcar, o chá, o café e o chocolate(Goody, 2001).
16
2. ESTUDOS EMPÍRICOS
O texto de Marcel Mauss (2003a[1934]) sobre “as técnicas corporais” é
considerado um marco nas reflexões teóricas sobre o corpo nas ciências sociais. Tal
estudo abriu caminhos para autores como Mary Douglas (1978[1970]) e Pierre
Clastres (2003[1973]) chamarem atenção para o problema da corporalidade
equacionado às representações coletivas que envolvem o corpo e que fazem dele o
resultado de uma “construção social”.
No entanto, esses textos têm sido revisados por autores contemporâneos
(Csordas, 2001; Vargas, 2001; Frangella, 2004; Pontes, 2004; Silva, 2004) que os
criticam por mostrar o corpo como superfície onde o mundo social se inscreve.
Segundo eles, esta perspectiva resulta na renúncia de se levar em conta muitos
processos que se desenvolvem com a materialidade dos corpos, mas que nem por
isso são menos simbólicos.
Este é o caso do consumo de “drogas”. E é neste sentido também que
Vargas (2001) considera que o consumo de “drogas” ilícitas a partir do ponto de vista
dos usuários, põe em jogo processos de alteração material e simbólica da
percepção e que envolve o agenciamento de modos singulares de encorporação e
de subjetivação. Em outras palavras, isto equivale a dizer que o consumo de
“drogas” oferece um campo privilegiado para problematizar a partilha entre a
materialidade dos corpos e imaterialidade dos espíritos tão dominante na teoria
social. Empiricamente, optei por realizar o estudo tendo como principal marcador o
recorte de “classe social, estrato ou grupo de status”. Tal opção se deu
especialmente após a leitura de “Nobres e Anjos”, livro de Gilberto Velho.
Já entre os autores que optaram pelo estudo empírico do tráfico de drogas,
também há variações de abordagem. Alba Zaluar (2000), com seu pioneiro “A
máquina e a revolta”, apreende o tema em meio a um quadro mais amplo de
aumento da violência urbana e, por conseguinte, de exposição midiática que visa
criminalizar a pobreza. Em meio a essa proliferação de discursos, a antropóloga
mostra que, quando vistas de bem perto, as categorias bandido, trabalhador,
malandro e mesmo policiais, longe de se mostrarem estanques ou indicarem tipos
sociais e morais específicos – como querem os noticiários –, são, na verdade,
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cotidianamente formuladas a partir de oposições e misturas de representações,
valores e condições objetivas que constituem toda uma vida social local. Também o
trabalho de Daniel Hirata (2010) inova ao abordar o tráfico de drogas à luz de sua
correlação com outros tantos ilegalismos populares que, desde há muito, compõem
o rol de ação das populações mais pobres para encontrar meios de “sobreviver na
adversidade”.
O estudo de Antônio Rafael Barbosa (1998), por sua vez, considera que as
temáticas da violência e das criminalidades urbanas não recobrem de todo o
fenômeno do tráfico de drogas. Com isso, o autor propõe que uma etnografia do
tráfico de drogas precisa, antes de tudo, relativizar o que é o crime e a violência (em
vez de tomá-los como dados) e concentrar-se na busca de perspectivas
metodológicas e descritivas que se orientem fundamentalmente pela escuta do que
os atores sociais têm a dizer. Também com relação ao estudo do tráfico não se pode
naturalizar importantes diferenças e desigualdades sociais, mesmo que se admita
sua difusão na cidade. (Carolina Grillo 2008a, 2008b), pesquisando jovens cariocas
de classe média que fazem parte das redes de tráfico de drogas “da pista” (em
contraposição aos “do morro”), revela que “o repúdio ao emprego da violência” é,
nas falas de seus entrevistados, um dos principais elementos diacríticos do tipo de
atividade no qual se engajam – o que, segundo ela, só é possível mediante a
condução de negociações marcadas sob a égide da “amizade”, pela existência de
redes relacionais “pulverizadas”, possibilitadas porque ocorrem sem uma
demarcação territorial. As formas de autorreconhecimento também são significativas
e revelam distinções hierárquicas muito relevantes.
Desse modo, diante de um mesmo marco legal, a desigualdade presente na
sociedade brasileira é fator constitutivo e de suma relevância para apreender
distintas possibilidades de concepção das substâncias, do seu consumo, do seu
tráfico, bem como do rótulo impetrado a seus participantes (inclusive antes e após
qualquer tipificação penal). Mais que isso, ela implica e resulta em modos variados
de aproximação com os diversos níveis de violência aí envolvidos. Diante dessa
brevíssima revisão bibliográfica (parcial, como todas as revisões), expresso o
desafio que me proponho enfrentar: falar do consumo abusivo de crack a partir do já
aprendido, isto é, sem, de um lado, recair em diagnósticos depreciativos ou
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generalizantes, considerando a pluralidade de experiências; e de outro lado, tendo
em conta os efeitos reais dos privilégios sociais. Em outras palavras: uma vez
inserido em tal campo de discussão e visando contribuir com ele. Ainda assim,
reconheço a especificidade da minha investigação.
Entre muitas possibilidades de uso e de experiências com drogas,
certamente eu estou olhando para a mais extrema delas, no duplo sentido de uso
intenso da substância e de um tipo de experiência realizada apenas por uma
pequena parcela dentre todos os usuários de drogas, o que me impede de
generalizar o que se passa aí e certamente me deixa ciente de que é a partir deste
lugar que falarei do assunto. Com todos os riscos políticos e analíticos envolvidos
nesta opção, acredito que ao menos ela tem a vantagem de trazer tais temáticas
para o debate antropológico.
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3. CORPO ABJETO
Seguindo a perspectiva do corpo abjeto (Taniele Rui 2012) fui direto a avenida
Brasil na altura da passarela número dez, no Parque União, onde os usuários de
crack ficam expostos entre os carros e as obras do BRT Brasil. Fui recebido pelos
usuários de crack que ali se encontravam estabelecidos com pedidos de cigarros e
algo pra se alimentarem . Durante a pesquisa de campo isso era de praxe. Ressalto
que a minha introdução no campo foi direta, sem a participação de nenhum grupo de
redução de danos (Taniele Rui 2012), igreja ou instituição que participam de
elaboração de políticas que atendem essa população de rua.
Através da inserção direta no campo, no Rio de Janeiro, pude receber e
perceber como o espaço geográfico vai se adaptando aos usuários e as políticas
são criadas entre os usuários pertencentes àquele lugar.
Além da Avenida Brasil, fui às obras do programa de aceleração do
crescimento PAC em Manguinhos e Jacarezinho e por último, na região do Grande
Rio, às proximidades da favela Gogo da Ema em Belford Roxo, onde os usuários
estavam se aglomerando num fluxo maior que nos locais anteriores.
Na região metropolitana do Grande Rio, os usuários de crack se aglomeram
perto de favelas que estão sob a tutela moral do Comando Vermelho CV e Amigos
dos Amigos ADA. Apesar de serem distribuidoras de crack em tal região, essas
facções possuem políticas de vendas distintas, elaborada por ordens transmitidas
através de redes estabelecidas rizomaticamente em presídios cariocas (Barbosa,
2012).
Nessa pesquisa quero demostrar a importância do meio social mais próximo,
familiar ou não, para fazer a pessoa se transformar em um usuário de crack, ou em
um “cracudo”, “nóia” ou quaisquer modos pejorativos que a população fluminense,
ou não, trata os usuários de crack que fazem um uso mais radical ou que estão em
situação de morarem em locais insalubres nas ruas de metrópoles.
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Se da perspectiva das interações concretas trata-se de uma categoria
bastante plástica; é instigante o fato de que tal plasticidade some quando se fala
publicamente do uso de crack: imediatamente é essa figura que emerge e justifica
todo o aparato repressivo, assistencial, religioso, midiático, sanitário e moral.
Portanto, é o corpo do nóia que radicaliza a alteridade, na medida em que
materializa um tipo social fundado a partir da exclusão (Taniele Rui 2012).
Diferente dos locais ocupados por pessoas em situação de abjeção social,
como a cracolândia em São Paulo, nas visitas que fiz aos locais de concentração de
usuários no Grande Rio, percebi que são exclusivamente usuários de crack.
Em São Paulo basicamente existe uma só facção que distribui a pedra de
crack, o Primeiro Comando da Capital, PCC, facção que iniciou a venda de crack em
grande escala no Brasil. Os funcionários dessa facção se misturam entre os
usuários de crack, tratados pela categoria “noia”, e pessoas em situação de
estabelecidos nas ruas, fazendo desses corpos escudos contra a ação direta das
policias.
A defesa do território não é feita por armas bélicas, mas por corpos que são
usados como armas contra a ação do Estado que atua em desfavor da mercância de
drogas naquele local. Apesar de que são as micropolíticas oriunda dos presídios que
prevalecem nesse contexto social (Foucault 1988).
O PCC se estende através dos “noias”, mesmo que essa categoria seja
desumanizada socialmente, mas membros dessa facção não podem pertencer a
essa categoria. Nesse ambiente de pesquisa urbana percebi que o uso da pedra
de crack é mais coletivo que individual, apesar das pessoas não se reunirem e
marcarem na cracolândia para fumar uma pedra de crack, normalmente..
Nessas observações interagi com usuários em diferentes fases de contato
com o crack, e com outros usuários. As categorias Noia, Cracudos são destinadas
sempre ao outro como forma de adjetivar pejorativamente a pessoa que se encontra
21
nas mesmas condições sociais daquele espaço geográfico que relato, porém
cracolândia não é um substantivo concreto.
Em meio urbano seja Rio de Janeiro ou São Paulo os usuários de crack com
um contato mais radical com a pedra, estão expostos a generalizações sociais, que
acabam influenciando o modo de vida desse indivíduo. Na ótica do Estado, eles se
transformam em um grupo de corpos em coma social, improdutivos e incapazes de
associar o crack a sua vida cotidiana, imposta por uma sociedade hierarquizada e
excludente (Louis Dumont, 1996).
Nas favelas da região metropolitana do Rio de Janeiro, a defesa do espaço
geográfico é feita por soldados armados das facções, que determinam onde os
usuários podem consumir o crack e até mesmo circular sem a posse do mesmo.
Socialmente o cracudo só incomoda quando circula por ambientes onde ele
não faz parte do contexto. Ou que essa categoria não exista. Em todas as
favelas do Comando Vermelho na grande Rio de Janeiro há a mercância de crack,
mas a categoria cracudo só é enunciada nas comunidades periféricas longe da zona
sul do Rio de Janeiro. Nessa parte da cidade há sim usuários de crack, que por mais
que tenham contato radical com a droga assumem outra postura social na busca por
adquiri-la.
Com postura parecida, os Amigos dos Amigos, ADA, também impõe limites
morais aos cracudos e usuários que residem e circulam por espaços sob sua
jurisdição.
Quando esses corpos se opõem às normas morais, eles podem sofrer
consequências capitais, perda da casa, com expulsão do convivo familiar, e de tudo
aquilo o que constitui socialmente, a perda de suas características e de seu habitus
(Bourdieu 1979).
Dentro da estigmatização do corpo abjeto e pensando as políticas que esses
corpos produzem entre si, cheguei à Avenida Brasil, na altura do Parque União,
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conhecido popularmente como P.U. Era terça-feira por volta de dez da manhã,
então me dirigi até o canteiro central, onde estavam um grupo de usuários. Sentei e
abri um maço de cigarros, e antes mesmo de acender um, um usuário me pediu um
cigarro, então se aproximou e começamos a dialogar, isso por alguns minutos.
Então, outro que estava perto, também pediu cigarro.
Os cigarros são usados para a combustão da pedra de crack, ou melhor as
cinzas dele. Que são colocadas sobre um copo de suco, coberto por uma camada
de alumínio. Então com um palito de fósforo ou algo similar fazem micro furos,
depositam as cinzas e pedra sobre elas, e a queima com isqueiro, a pedra vira um
liquido que gruda nas cinzas e em pouco tempo transforma as reações das pessoas.
Como já ressaltei, a minha entrada no campo foi de modo direto sem
intervenção de grupo de auto ajuda, igreja ou instituição filantrópica ou estatal. Isso
me possibilitou ter contato direto e acesso irrestrito às informações dos atores da
cena crack de rua, os usuários de contato radical com a pedra conhecidos como
cracudos. Esta palavra guarda o sentido da junção das palavras crack e imundo.
Designam um grupo de pessoas que fazem trabalhos informais como catar papelão,
latinhas de alumínio dentre outros, e também pequenos delitos patrimoniais. Para
poderem comprar a pedra, percebo que podem fazer quase tudo.
Cracudo é só mais uma categoria, como a destinada a usuários de maconha
a tempos atrás, vista como droga de pobre. O maconheiro por algum tempo foi o
cracudo da sociedade.
No Rio de Janeiro o comando vermelho é o maior distribuidor de crack, e com
toda certeza se só os cracudos fossem o mercado final da pedra a mercância não
existiria, estar em situação de rua não leva o uso da pedra, mas a pedra leva a
constância nas ruas. Se estabelecer próximo de onde há mercância de pedra com
mais facilidade e tentar sobreviver por ali fazem dessa população alvo de
abordagens de todos os tipos.
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Tentarei descrever algumas interações que pude presenciar no trabalho de
campo, dos usuários com as agências estatais (polícia e assistência social) ,as
igrejas e os agentes que fazem a mercância da pedra. A venda de crack é feita junto
com qualquer outra substância como maconha, cocaína dentre outras. Mas o
tratamento destinado aos usuários de maconha e cocaína é distinto, na compra de
maconha os usuários podem tocar, sentir o cheiro escolher o tamanho. São tratados
como clientes.
Já quando o usuário é de crack, ele tem que manter uma certa distância da
mesa onde são comercializadas as drogas. Dar o dinheiro e o responsável pela
distribuição entrega a pedra. Ou muitas vezes jogam no chão quando a pessoa se
encontra mais suja ou desagradem simplesmente por estarem ali.
As pessoas que consumem crack naquela comunidade não o podem fazer
nas ruas, como já pude presenciar as pessoas fumando maconha. Vale ressaltar que
alguns deles geralmente não compram a pedra na “loja” mais próxima, por temerem
serem expostos em seu meio social como usuários de crack.
Já para os cracudos, a circulação é totalmente controlada dentro da
comunidade. Somente podem ir até a “loja” mais próxima, ir e voltar rapidamente;
dentro das ruas internas da comunidade a circulação é proibida com pena de serem
espancados e até mesmo mortos com tal descumprimento.
O crack não é a principal causa de morte entre usuários, a violência imposta a
eles, sim, faz vítimas como em toda sociedade, mas muito mais essa população. E a
exposição social deixa características impostas por julgamentos de todos que
passam pela avenida Brasil.
Em paralelo a uma das ruas de acesso á favela da Nova Holanda, no
Complexo da Maré, todos os sábados existe a oferta de serviço por parte de uma
instituição religiosa que atendem a essa população: distribuindo sopa, cortes de
cabelo e convidando algumas pessoas a ingressarem na igreja, oferecendo abrigo e
tratamento contra a dependência do crack. Isso com a supervisão das pessoas que
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controlam a área. Não direi o nome dessa Igreja mas afirmo que ela está em todos
os lugares possíveis, como se fosse “universal”.
Muitos que ali estavam oferecendo uma força aos ditos cracudos relatam que
eram como eles, que foi a força de Deus e da igreja que os permitiu se livrarem do
espírito do mal do vício da pedra. A princípio, quando o usuário aceita, ele é
encaminho para uma instituição, nos moldes de uma clínica e passam por um
processo de higienização. Mais tarde, se ele resiste ao desejo de consumir a pedra,
ele é encaminhado para casa, convertido. E o pastor da igreja mais próxima faz a
integração dessa pessoa às atividades da igreja, ocupando o seu tempo quase que
integralmente.
A pedra física deixa de existir e agir, então entra em cena a pedra
psicossocial; o uso agora fica através das palavras como se elas os mantivessem
afastados do uso. A vigilância social é a maior arma contra as recaídas, a exposição
direta na igreja faz com que seguidores possam vigiar seus atos e condutas morais
e éticas.
Os que recaem ao uso e são descobertos passam por uma análise de
conduta e acabam perdendo suas funções dentro da igreja. Um dos fatores que
podem influenciar a aglomeração de usuários nas ruas é a fuga dessa vigilância
social.
Devido as minhas características corporais, pude estar entre os usuários
como se fosse um deles, em um dos dias da pesquisa foi abordado pelo serviço
social e quase fui internado compulsoriamente... Quero deixar claro que ainda não
fiz uso de crack, o que se tivesse feito não me desabonaria em nada em minha vida.
Então, percebi que além do cinza que é o presente daquela paisagem o preto é o
que prevalece, o racismo está instituído em todas as camadas da sociedade.
Depois de explicar que cursava antropologia na Universidade Federal
Fluminense, ainda não acreditaram segurando no meu braço, só depois de me
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exaltar, tirar minha carteira do bolso, e mostrar a carteira da universidade fui
liberado.
Isso acontece com base na lei 2967/2017 que institui a internação
compulsória de dependentes químicos no Estado do Rio de Janeiro. Como
justificativa, o consumo de crack. São levados às instituições e albergues em
cidades da região metropolitana. Essas políticas têm como objetivo principal a
limpeza social, não o tratamento contra a dependência das pessoas que se
encontram em situação de rua. Conforme se deixa ver em seu artigo terceiro:
Art. 3º- A Política instituída por esta Lei tem os seguintes objetivos:I- Receber a demanda acerca do dependente químico que, por conta do vício, aparenta perda da capacidade do juízo de realidade e autonomia da vontade;II- Realizar de forma ágil estudo técnico do caso concreto e emitir laudo conclusivo, fundamentado de forma transversal e interdisciplinar, com o objetivo de auxiliar a fundamentação judicial de internação compulsória;III- Promover a qualificação, a capacitação e o acompanhamento de equipe técnica interdisciplinar, responsável pelo atendimento ao dependente químico;IV- Articular os entes públicos para viabilizar a internação involuntária e a compulsória de dependentes químicos que deixaram de dispor de autonomia davontade.
Uma outra intervenção do Estado que é constante é a da polícia militar
causadora de atos de humilhação contra os usuários de crack. Xingamentos e
abordagens ríspidas e truculentas marcam sua ação. Sem nenhum preparo. Isso
acontece porque na maioria das vezes quando essa abordagem acontece é porque
estão à procura de pessoas que cometeram algum delito como se os usuários
fossem os culpados por estarem ali. Uma violação de direitos partindo dos que
deveriam preservá-los em todos os aspectos.
26
4. CRACK NO CAMPO
Na busca por um comportamento distinto ao encontrado no meio urbano, que
pude visitar durante a pesquisa, onde os corpos não são parcimoniosos e estão
postos na categoria de “abjeto”, encontrei pessoas que encontram outras formas de
usar a pedra de crack no interior de Minas Gerais, na mesorregião de Carangola,
lugar onde o comércio de crack se estabeleceu a pouco tempo.
Assim, pude ter acesso a informações que contribuíram de forma importante,
porque possibilitou um contraste entre aspectos de todos os atores e das relações
sociais dos envolvidos radicalmente com o crack, seja no consumo ou na mercancia.
Assim como sobre o Estado, na figura da polícia militar e também o posicionamento
da sociedade elaborando micropolíticas individuais para lidar com os usuários de
crack, especialmente depois que se torna público o seu contato com a pedra - dos
bastidores ao público (Goffman 2012).
Em uma cidade economicamente agrária basicamente usufruindo se da
monocultura do café, as relações sociais são mais coesas e as pessoas assumem
papéis marcados dentro da estrutura social. Dentro desse contexto das lavouras de
café, dessa região, que demonstrarei como a pedra se integra a economia de
algumas propriedades produtoras de café.
Não existe ninguém no mundo melhor que osselvagens, os camponeses e os provincianospara estudar profundamente e em todos ossentidos os seus próprios afazeres; assim,quando passam do Pensamento ao Fato,podeis encontrar as coisas completas.
Honoré de Balzac Le Cabinetdes antiques Bibl. de la Plêiade vol.
27
Deste modo, através dessa pesquisa pude encontrar pessoas que não
pertencem a nenhuma categoria imposta socialmente, ou que pertence a várias
categorias. Como algo que vai além do indivíduo, e sua subjetividade.
Nesse contexto não posso falar de crack sem mencionar o desejo que ele
provoca nos usuários e a transformação que esse indivíduo provoca em seu meio
social, assim como sobre nossos processos de subjetivação através da noção de
linhas na esquizoanálise.
Segundo as concepções de Deleuze e Guattari, somos formados por três
tipos de linhas segmentares, duras, maleáveis e de fuga. As linhas duras nos
compõem através de dualidades sociais, que nos fatiam, no sentido forte do termo.
São as grandes divisões na sociedade: rico ou pobre, trabalhador ou vagabundo,
normal ou patológico, homem ou mulher, culto ou inculto, branco ou negro, etc. As
linhas maleáveis possibilitam variações, ocasionando desestratificações e
desterritorializações relativas, e não marcadas divisões
E as linhas de fuga representam desterritorializações absolutas, no sentido
em que rompem totalmente com os limites das estratificações estabelecidas. Para o
entendimento desse processo é importante perceber o corpo e o desejo.
Nesse caso, exponho a abstinência, a fissura como desejo. Apesar do
substantivo ser “crack” (som de quebra), as reações dessa falta ou excesso são
demostradas de formas distintas dea acordo com o meio de uso e perfil dos
usuários. A “fissura” é frequentemente referida como uma necessidade
imprescindível para o corpo, indispensável à vida e descrita como uma vontade “pior
que a fome”.
A abstinência causa grande sofrimento físico e psíquico; o indivíduo é tomado
por grande ansiedade e pensamentos obsessivo sobre as maneiras de obter a
droga, e de alguma forma obter mais produtividade no caso das lavouras.
28
Para demostrar como isso acontece vou expor como o crack é usado como
meio de aumentar a produção e contrastar a automação agrária em paralelo à
substituição de analgésicos e anti-inflamatórios, por ultrapassarem os limites do
corpo.
Nos territórios em que pesquisei, de fazendeiros e trabalhadores rurais, o
consumo de crack só perde para o do álcool.
A pedra entra na equação como um fenômeno para fazer com que eles
pertençam a um grupo, mesmo que seja o pior diante de um cenário estranho, o
agronegócio. Ela tem forte influência nesse movimento em que as pessoas se
deslocam em busca de trabalho e renda por um período temporário, restritos aos
polos de produção agrária, mas depois retornam à localidade de origem e não
fazem mais o uso do crack. Todavia, há os que não conseguem abandonar o hábito
adquirido no lavor. Esse tipo de migração do vício acaba, portanto, sendo uma
especificidade do setor.
Assim, existe o corpo viciado que já não serve mais para o negócio, já que
alguns hábitos adquiridos por esses corpos não condizem mais com o meio rural,
que prima por algumas regras sociais que excluem corpos em estado de abjeção.
Neste caso, tais sujeitos se deslocam para centros públicos de uso de pedra de
crack, ou, por vezes, passam a frequentar casas de consumo. Casas e lares onde o
dono é usuário e alugam espaços para usuários consumirem a pedra.
Considere-se ainda que a automação agrária, imposta pela industrialização
do campo com objetivo de implementar novas tecnologias aos meios de produção,
expõe o ser humano a níveis de exaustão e trabalho analogicamente aos de
máquinas.
Vejamos o quadro de forma detalhada. O dia de trabalho no campo começa
às seis horas da manhã e termina com o pôr do sol, com poucos momentos de
pausa, até mesmo para se alimentar. O dia começa com a reunião dos
trabalhadores na fazenda. Alguns trabalhadores ficam alojados na propriedade, são
29
oriundos de cidades do interior do país e também imigrantes, e outros são
transportados por ônibus e caminhões, esses são moradores de cidades próximas
às lavouras. Alguns desses trabalhadores também fazem o uso de motocicletas para
chegarem, e é o modo como a pedra de crack chega até os meios de colheita. No
período da “derriça” há uma grande migração de pessoas que comercializam
“drogas” em busca de usuários nas lavouras, a venda fica condicionada ao trabalho
do “traficante”, por que se ele não contribui com a “derriça” de alguma forma ele não
fará a venda nessa lavoura.
Para demostrar como o comércio de crack se aderiu ao meio de produção nas
lavouras fui observar de forma direta um grupo de trabalhadores que consome crack
e uma pessoa que comercializa a pedra de crack no meio da lavoura,
exclusivamente nesse local. Não posso afirmar se isso é de conhecimento dos
administradores da propriedade, o fato é que o consumo nas lavouras aderiu
econômica e socialmente à produtividade e ao meio rural.
A colheita de café acontece no período entre o outono e inverno, é feita com
as mãos e com máquinas. Os trabalhadores estendem um pano sob a árvore de
café e retiram os grãos de café (Derriça) com auxílio de meias e luvas nas mãos,
então retiram o café do pano estendido derramando os grãos num balaio (60 litros)
geralmente feio de taquara, um tipo de bambu verde. O balaio é a medida que se
aplica ao preço da colheita. Ao iniciar-se a colheita do café, todos os cuidados
devem ser tomados, a fim de preservar a qualidade dos frutos. Uma forma de
colheita largamente utilizada no Brasil é a derriça total no pano.
Devem-se evitar danos excessivos aos ramos e às folhas, não só para
preservar a produção seguinte, como também para evitar ferimentos que constituirão
uma porta de entrada para agentes patogênicos (fungos e bactérias).
Outra forma de se colher o café manualmente é a colheita seletiva que é feita
no pano somente dos frutos cereja. Os frutos verdes serão colhidos mais adiante
quando estiverem maduros. Nesse caso, poderão ser necessárias duas a três
colheitas por planta ou talhão devido à não uniformidade do processo de maturação
do café. Esta é influenciada por diversos fatores como clima, altitude, número de
30
floradas, adensamento da lavoura, entre outros. Por ser uma operação que
necessita de maior mão de obra, é mais empregada por alguns cafeicultores com o
objetivo de se obter um café superior, uma vez que cereja é a matéria prima
adequada.
A colheita acontece de forma gradual, a cada balaio colhido se paga em
média cinquenta Reais, a contabilidade é feita por um trabalhador incumbido de
anotar e contabilizar quantos balaios de café foram colhidos durante o dia.
A comercialização da pedra de crack nas lavouras acontece da seguinte
forma: o comerciante da pedra chega na lavoura um tempo antes do início da derriça
e esconde as pedras de crack e aguarda os fregueses. As lavouras na zona da mata
mineira se localizam em montanhas, e a distância entre o vendedor e quem quer
comprar é longa, e a comunicação é feita através de palavras ou sons, que fazem as
partes se encontrarem na lavoura.
Tal assunto nos remete ao texto de Franz Boas, “Sobre sons alternantes”,
onde o autor parte de uma patologia auditiva para provar que a percepção também é
determinada pela cultura. Aprendemos a produzir e captar sons a partir de um longo
uso da língua.
A percepção é gerada a partir da semelhança com sons que já se ouviu
anteriormente. O autor define então seu conceito de limiar diferencial, que é o limite
que distingue uma percepção de outra, o que não é um limite preciso. Por isso, duas
sensações sonoras se assemelham mais quando há um grande intervalo de tempo
entre elas, e se a atenção for pouca. Sensação “corresponde a uma certa série de
estímulos ligeiramente diferentes”. Por isso a prática tem uma influência tão grande,
para definir os limites entre tais estímulos. E as novas sensações são sentidas a
partir das já existentes – são classificadas conforme esta semelhança, ainda que
sejam diferentes.
Em acordo no ponto de encontro traçado pelo som, as pedras são
comercializadas pelo preço do balaio colhido ou a metade dele se for pagar em
dinheiro. O balaio de café colhido custa cinquenta reais, e a pedra pode ser paga
pelo balaio de café.
31
Dessa forma uma pedra de crack pode ser trocada por um balaio de café
colhido, o dinheiro fica em segundo plano, já que os usuários tendem a preferir uma
pedra maior e só precisar usar sua mão de obra para consegui-la. O trabalhador
usuário ao terminar de colher e encher o balaio chama o responsável e mostra o que
colheu e pede para anotar aquele balaio colhido na conta da pessoa que o havia
vendido a pedra de crack. Esse pagamento é feito por dia trabalhado, no fim de
semana, ou se o trabalhador preferir no fim do dia trabalhado. A pedra de crack
diminui o valor da mão de obra do trabalhador pela metade, haja vista que o valor
real financeiro dela é a metade do balaio de café derriçado. Dessa forma, de um
ponto de vista cruel, todos ganham e só um perde, o trabalhador usuário.
Em um caso isolado dos que eu tive conhecimento na pesquisa, numa
propriedade de porte menor, depois que o dono descobriu que a comercialização da
pedra de crack era feita em sua lavoura, ele identificou a pessoa que estava fazendo
a comercialização, e não o proibiu, pedindo que não fizesse a comercialização ou
ameaçando de chamar a polícia. Apenas disse que: “na hora do pagamento
subtrairia dez reais de cada pedra comercializada em sua propriedade” - no
momento da contabilidade em que são apresentados dados sobre a derriça e da
qualidade dos grãos. Sendo que para o comerciante de pedras existem duas
anotações, as que ele fez o escambo de trabalho por pedra, e outra do trabalho de
derriça do mesmo.
O trabalhador que serve como contador de café tem uma atuação discreta no
controle da venda de crack, apesar de não coibir, também não aceita abusos. O
consumo é permitido perante a prática do lavor. Quem não trabalha não pode
consumir a pedra dentro da lavoura. E até mesmo vendê-la, como disse acima
O consumo da pedra de crack nas lavouras está diretamente ligado a
automação industrial agrária. Transformar a agricultura em agroindústria penaliza
diretamente o trabalhador rural, já que sua subsistência está diretamente ligada ao
trabalho no campo. E com o passar do tempo vê suas forças se esvaindo diante de
políticas que penalizam a classe, com a introdução das máquinas que pressionam
os trabalhadores a manterem altas taxas de produtividade. E além disso, manter-se
de alguma forma produzindo, evita que outros rótulos se instalem. Num lugar onde
grande parte das pessoas se conhecem, ser tratado como nóia, cracudo ou algo que
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pejora o usuário de crack pode influenciar diretamente o convívio social, dificultando
a forma como vai se socializar. Tal comportamento implica até mesmo na compra do
crack ou qualquer tipo de “droga”.
Volto a insistir nesse ponto. Por se tratar de um espaço geográfico reduzido, a
comercialização fora das lavouras de café é feita de forma discreta, e na maioria das
vezes só no período noturno e, às vezes, dependendo do comerciante, até as vinte e
duas horas.
A lavoura tem esse aspecto social peculiar, o aumento da produção é a
prioridade entre os fazendeiros e trabalhadores, para atingirem metas e garantir
qualidade ao café, não existem limites morais e éticos. Mas mesmo com essa
peculiaridade, não posso afirmar que o comércio de “drogas” na propriedade é feito
de forma delibera pelo proprietário, como também não posso afirmar que o comércio
acontece sem a anuência do mesmo. Em média, numa propriedade de porte médio,
pode haver quatrocentos mil pés de café, com trezentas pessoas trabalhando na
derriça. Em um mesmo lugar pode haver milhares de pés de café e trabalhadores
convivendo e estabelecendo regras de convívio entre eles. Há uma divisão entre os
que usam o alojamento da propriedade e os que vão dormir em casa. Entre os
moradores da região e os que vêm de fora do município e do estado e às vezes até
de fora do Brasil, no caso, imigrantes de países como Haiti e Venezuela, que se
estabeleceram em grandes metrópoles e acabaram migrando para regiões
produtoras de café e açúcar no interior de Minas Gerais e São Paulo.
Pessoas sempre utilizaram “drogas” pelos motivos mais diversos, nas
circunstâncias mais variadas, e não há razões para pensarmos que de repente
viveremos em um mundo sem drogas, principalmente em tempos de abusos e cortes
dos direitos socais dos cidadãos, expondo-os às mazelas impostas por um Estado
que ignora fatores humanísticos inerentes às políticas de ações afirmativas no
campo e nos perímetros urbanos de pequenas e grandes cidades. Cada vez mais o
“negócio” é supervalorizado, seja ele lícito ou não, enquanto a situação de trabalho
e do trabalhador ficam em segundo plano de desenvolvimento, sendo agregada de
forma direta a outros meios de produção, que de alguma forma intervêm na
sociedade, seja no campo ou no meio urbano.
33
É importante, compreender a interpretação que os corpos dão à experiência
com as “drogas”, e suas ressignificações de seu estado, da motivação que os impele
a um consumo repetido de determinada substância, dos sentidos e razões pelas
quais a consideram importante ou indispensável para satisfação de determinadas
metas e necessidades.
Cito um exemplo que virou notícia na mídia nacional. No final do ano de 2009,
o jogador Jobson estava jogando o fino da bola. Seu time, o Botafogo Futebol e
Regatas da cidade do Rio de Janeiro, estava passando por um momento delicado
no campeonato brasileiro daquele ano e precisava de um jogador que se destacasse
e retirasse o time da situação que se encontrava. Fazendo gols e chamando o jogo
pra si. E Jobson assumiu esse papel.
Ao fim do campeonato, Jobson havia obtido êxito na missão de retirar o
Botafogo da situação em que se encontrava, preste a ser realocado na segunda
divisão do futebol, mas foi pego em dois jogos no exame antidoping. A vinculação do
uso de substâncias para melhorar a performance é uma prática constante no
esporte. No caso do futebol, quando falamos de doping relembramos a copa do
mundo de futebol em que o Brasil foi campeão nos Estados Unidos e nessa mesma
competição o craque argentino Maradona foi pego no exame por uso de cocaína e
foi expulso daquela copa. Uma das imagens marcantes daquela copa foi o agora
“crack” comemorando um gol no jogo em que foi pego no exame antidoping, com
olhos e boca grande como o lobo mal. Aquele que foi um gênio da bola, um craque.
No início do ano seguinte Jobson foi julgado pelo Tribunal de Justiça
Desportiva e surpreendeu a todos quando assumiu que não havia usado cocaína e
sim crack. Jobson foi flagrado duas vezes no exame antidoping, após as partidas do
Botafogo contra o Coritiba e Palmeiras, pelo Campeonato Brasileiro de 2009. Foi
punido preventivamente após a competição nacional. A defesa de Jobson foi calcada
no aspecto social do atleta, que poderia até ser banido do esporte por ter sido
flagrado em dois testes, e os auditores levaram isso em consideração.
O atacante deu apenas um curto depoimento, em que confessou ser usuário
de crack desde 2008. “Usei crack, mas não cocaína. Uso desde 2008, fiz até um
exame antidoping em 2008 pelo Brasiliense e ele não apontou nada. Por isso, nem
34
sabia que era doping”, afirmou Jobson3, que disse não saber se era ou não viciado e
que nunca comunicou à diretoria do clube de que era usuário.
O crack é capaz de aderir socialmente e correr lado a lado com a vida e se
torna um problema direto quando o uso é revelado por alguma circunstância e não é
aceito. E a pessoa fica no meio da disputa entre o crack e os valores imposto pelo
meio social direto.
3 https://www.terra.com.br/esportes/futebol/estaduais/jobson-admite-uso-de-crack-e-e-suspenso-por-dois-anos,e4385f5cf874d310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
35
5. A SALIVA NÃO GRUDA, REDUZIR O USO OU DANOS?
Reduzir danos é controlar efeitos de um problema sem eliminar sua causa.
Aplica-se a diversos eventos, de um desastre natural a crises empresariais,
passando por questões de saúde pública. Foi neste último aspecto que o termo
começou a ser usado. Pensando numa qualidade de vida melhor para as pessoas
com HIV positivo.
Em outra perspectiva na área da saúde são as estratégias para reduzir
malefícios relacionados ao uso de “drogas” lícitas ou ilícitas que provocam
dependência. Nesse, caso as primeiras experiências foram feitas na Inglaterra no
início do século passado, em um período próximo a Grande Guerra.
Soldados tratados com morfina ficaram dependentes de opioides. O programa
começou com a alegação que os soldados desenvolveram o vício na luta pelo seu
país, o argumento foi de que o “Estado tinha obrigação de fornecer a substância
para minimizar os ricos da retirada brusca. Apesar de apelar para o patriotismo,
heróis de guerra, a estratégia não foi aceita por questões culturais. Sem respaldo
esse programa ficou por um período de 50 anos em um plano paralelo”. (Unifesp
Dartiu Xavier)
O conceito começou a ter respaldo quando a “Junkiebond”, uma associação
holandesa chamou atenção na década de oitenta para o alto número de
contaminação de hepatite pelo compartilhamento de seringas contaminadas. Os
danos não ficariam restritos aos usuários de drogas injetáveis, afetariam também a
sociedade como um todo.
Na mesma década houve um seminário em São Paulo, na cidade de Santos,
e um dos desdobramentos desse seminário foi justamente a troca de seringas para
conter a disseminação do HIV. Foi lamentável que apenas na década seguinte, já
nos anos noventa, esse tipo de programa realmente começasse a ser tratado com o
devido respeito aqui no Brasil.
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Em se tratando de redução de danos tive contato com um trabalhador rural,
usuário que tentou abandonar o crack sem auxílio de clínicas, terceiros, instituições
estatais ou igrejas.
No primeiro dia, ele saiu e foi trabalhar, e pegou tão pesado que ao chegar
em casa acabou tomando banho, jantando e dormindo.
Ao acordar ele diz que teve uma vontade muito grande de fumar a pedra,
porém o ônibus que o levava junto com outros trabalhadores havia chegado no
ponto marcado de embarque. Ao chegar do trabalho não se conteve e saiu em
busca da pedra, mas não encontrou e acabou comprando maconha. Ao chegar em
casa fissurado foi fazer o cigarro com a erva e começou a fumar quando o cigarro se
abriu e caiu toda a maconha do cigarro. Mas como não consumia “droga alguma há
mais de vinte quatro horas, logo o efeito bateu e ele nem precisou fumar outro.
No outro dia ele fez o mesmo processo, e a maconha caiu toda novamente,
então ele enrolou outro cigarro, foi então que ele começou a perceber que sua saliva
estava muito mais fina ou mais líquida, inconsistente, pelo excesso de uso da pedra
de crack. E por mais que ele mudasse a face do papel ele continuava a não fechar o
cigarro.
Desejando continuar sem fumar o crack, sempre que ele ia fumar maconha
pedia alguém que enrolasse o cigarro pra ele, e isso foi gerando um determinado
estresse. Durante o período de recuperação de sua saliva.
Ele ficou sem usar crack durante um período em que ele tinha maconha, entre
20 e 25 dias. Quando a maconha acabou, ele teve que comprar mais e acabou não
resistindo e comprou crack com o dinheiro da maconha e mais duzentos reais que
havia economizado durante os dias que ele estava longe do consumo de crack. Não
foi trabalhar, ficando fumando a pedra durante dois dias seguidos. Voltando a uma
rotina de consumo intenso novamente. Fumando todos os dias, “fumo todos os dias,
só o dia que o Jhony (traficante) não tem”.
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Do ponto de vista individual, a perspectiva da redução de danos aumenta as
possibilidades de autocuidado. Como uma estratégia pensada para ir além do
discurso “pare com tudo”, ou continue com tudo. As estratégias que são adaptáveis
ao indivíduo e que não envolvem abstinência, usam recursos que vão de
comunidades terapêuticas à substituição de uma “droga” psicoativa por outra que
cause menos danos. Lembrando que as iniciativas nessa área, vão do tratamento
individual as políticas públicas. Por exemplo: “Se beber não dirija”,
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6. CONSIDERAÇÕES
Quero expor mais dois aspectos que moldam a sociedade e o indivíduo, com
exemplos distintos do uso de crack. O primeiro é quando o uso e usuário de crack se
tornam públicos e por causa dessa exposição o seu meio social se reduz fazendo
com que o indivíduo adquira posturas que vão se afastando das suportadas pela
sociedade de uma cidade pequena.
Além do afastamento, as pessoas passam a esconder seu próprio dinheiro
em suas carteiras ou em bolsos diferentes. Porque o usuário pede dinheiro
emprestado e as pessoas se sentem acuadas e de alguma forma acabavam
“emprestando”. A forma com que se pede o dinheiro às vezes caí no tom de
ameaças, e às vezes são mesmo.
O crack nas pequenas cidades expõe um problema ainda maior que o uso, a
falta de informações ou uso de informações midiáticas falsas colocando os usuários
em uma categoria de “pré-bandido”.
Outro tipo de usuário que identifiquei foi o que teve contato com a cocaína
nos anos 80 e 90 quando o processo de fabricação ainda era artesanal. Quando
ainda estava industrializando o processo de fabricação de cocaína. Os efeitos eram
mais intensos, o processo pra se consumir era distinto dos atuais. Com o passar do
tempo e do uso, ele não encontra mais os efeitos que encontravam com a cocaína, e
no primeiro contato com a pedra de crack, adere, gosta. Os efeitos dele são
“maravilhosos” capaz de substituir coisas insubstituíveis, que se colocam no lugar de
outros tempos. Uma pessoa vende maconha para poder ter a sua maconha sem
custos para usar, acontece também com a cocaína. Mas com o crack essa regra é
quebrada como o som da pedra queimando, que origina o nome da droga.
O crack não é a causa da exclusão, é um elemento a mais, que reforça a
exclusão social, processo que é anterior à droga, no entanto, é reversível.
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7. ENTREVISTAS
Eu fiz três perguntas a quatro diferentes pessoas as quais, de forma direta e
indireta, são envolvidas com a pedra de crack e o consumo dela.
Tais pessoas são um trabalhador usuário, que consome crack há cinco anos;
um ex usuário; um policial militar e uma pessoa que conhece usuários e de forma
indireta está presente no meio social da pedra de crack, a quem chamarei de
cidadão.
1 – Qual impacto direto do crack na sua vida?
Usuário:
“Comecei a fumar crack do nada. Um dia o fulano apareceu com a pedra em
casa, eu estava muito cansado e com muita dor no corpo. Eu trabalho com lenha.
Pego toras de madeira com mais de 50 Kg. O óleo4 me ajuda a me recuperar pra
outro dia. Minha mulher não gosta, mas não deixo faltar nada em casa. Aqui quem
não fuma, chera, quem não chera, bebe cachaça. E quem não faz nada disso é
fofoqueiro.
Polícia:
“Na minha direta só que tenho que apreendê-la e tirar de circulação os
traficantes. A pedra de crack não faz mal se ninguém vender. O crack é a pior droga
que eu tenho conhecimento. A pessoa perde tudo que tem. Vira zumbi. Escravo da
droga.”
Ex usuário:
“Agora nenhum. Nem gosto muito de falar sobre isso.” Já fumei demais, você
sabe.
Cidadão:
4 Óleo é como o crack é conhecido entre usuários e traficantes que acham que crack é pejorativo. E também um método de disfarçar o uso.
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“As vezes aparece uns ai me pedindo dinheiro, você sabe quem, os mesmos
de sempre, eu vejo gente que vai no mercado compra as coisa na conta e troca pela
maldita pedra. Fulano, nem quer vender mais pra ele mais. Tem um amigo que
chega da lavoura e a primeira coisa é dá uma pedra no trem.
2- Usar crack atrapalha seu trabalho? Por que?
Usuário:
Não. Até hoje não. Porque só me ajuda. È foda ficar pegando peso o dia todo
dói tudo. Mas já faltei uns dia por causa de fuma pedra, mas eu trabalho, não deixo
de trabalhar, não, tenho que pagar as coisa em casa e pensão do meu filho.”
Polícia:
“Não. Eu não uso drogas. Mas os usuários, sim. E principalmente quem
vende. O traficante afeta a sua vida, a vida de todo mundo que mora aqui na cidade,
uma parte das ocorrências acontece por causa da droga. Mais de cinquenta por
cento.”
Ex usuário:
“Sim. Eu achava que não até perder algumas oportunidades de trabalho. Aqui
as pessoas dão moral pra ladrão, mas pra usuário de crack, eles querem que morra,
pras pessoas usuário de crack não come, não bebe, fui tratado igual lixo por muita
gente.”
Cidadão:
“Sim. Tem amigo que fuma essa merda e tão acabado”
3 -Por que você acha que o crack não é aceito na sociedade como as outras
drogas?
Usuário:
“Não sei, o trem é bão demais. Ruim que é caro. Os outros falam mais eu não
devo nada pra ninguém eu compro com meu dinheiro, não roubo pra comprar. O
41
crack é mal falado por causa dos vagabundo que rouba pra comprar, pra manter seu
vício.”
Polícia:
“O crack é a pior droga pra nós aqui. Como já te disse as ocorrências de
roubo daqui são todas pra comprar droga, e noventa por cento é de crack. Não tem
como aceitar essa desgraça na vida das pessoas. A maconha e o pó ainda dá pra
levar uma vida mais ou menos, a pedra destrói tudo”
Ex usuário:
“Porque as pessoas roubam pra comprar” Se não fosse por conta dessas
coisas seria igual maconha, pinga. Rapaz sujeito tá usando a pedra junto com você,
daí você percebe que sumiu um dinheiro aqui, um rádio ali, ai você vai ver o mesmo
cara que tá fumando com você tá te roubando, e acaba que fumei as minhas coisa
que estavam me roubando. E traficante nem quer saber pega tudo, só não pega a
alma do sujeito. Porque se pegasse já tinha vendido por uma pedra de dez. E
quando fosse pagar pra devolver seria vinte. (Risos)
Cidadão:
Nem pode, né? Você já pensou se do jeito que tá parece que já é liberado.
Alá tá vendo já tão indo fumar a desgraça. Olha a hora meio dia.(Risos) (nesse
momento avistamos pessoas fazendo consumo de pedra embaixo de uma árvore as
margens da BR 116)
42
8. CONCLUSÃO
O realce no estudo do consumo, a partir de grupos que fazem uso laboral,
recreativo, controlado ou não abusivo de substâncias, visa questionar as ideias
simplistas de que todo usuário de drogas é (ou pode se tornar) um dependente
químico e de que o uso de drogas pode vir a se constituir um problema para
qualquer pessoa que experimente alguma substância, independente da sua
trajetória de uso. Tais estudos mostram a heterogeneidade de modos de se
relacionar com as substâncias, de classificá-las e dialogam fundamentalmente com
modelos médicos de pesquisa, questionam o diagnóstico generalizante acerca
desse uso, assim como a autoridade do campo da medicina em falar sobre o
assunto. Expressam claramente o debate no qual a questão está situada. Para eles.
Assim, os estudos voltados às muitas formas de usos controlados e laborais
ou recreativos enfocam sua discussão na crítica às generalizações de um modelo
médico de pesquisa apressado em conferir diagnósticos e “destinos”. Ou seja, tais
estudos se edificaram na oposição a outra área do conhecimento: as chamadas
ciências da saúde, principalmente a medicina e, mais que tudo, opondo-se ao seu
foco na dependência química (talvez por isso mesmo haja, nessa literatura, lacunas
no que diz respeito ao consumo abusivo de substâncias). Para tanto, orientam suas
investigações focando os modos como os indivíduos usam as substâncias à luz dos
aspectos sócioculturais presentes na experiência.
Apenas pondero que levar a sério o que se chama de contexto sociocultural
supõe considerar relações desiguais e mais ou menos hierárquicas presentes na
sociedade brasileira, do mesmo modo que implica ter em conta a proximidade (ou
não) com as muitas formas de violência aí envolvidas. Pois não se pode esquecer
que tanto o tráfico quanto o consumo de drogas estão encapsulados por uma
política proibicionista atravessada por desigualdades sociais – o que impõe
fronteiras significativas entre os grupos e implica distintos tratamentos jurídicos,
díspares negociações com policiais, e, ainda, diferentes aproximações com o
chamado “mundo do crime” No que diz respeito ao modo como essa desigualdade
se apresenta em relação ao consumo.
43
Assim, por outros caminhos, cheguei a aspectos que eram relevantes
inclusive aos próprios usuários. E então fiz as pazes com esses escritos e com
minha escolha metodológica. Foi quando eu constatei que, para falar daquilo que
move e toca as pessoas, nem sempre é preciso ficar escarafunchando suas histórias
de vida. Às vezes, é só olhar, com bastante seriedade e respeito, para as relações
que elas estabelecem com outras pessoas, com substâncias, com corpos, com
sensações, com objetos, com instituições, com ideias e com espaços.
Acredito que precisamos encontrar uma via analítica que possa fazer com que
usos tão diferentes sejam igualmente inteligíveis; e não abordar a questão de uma
forma que às vezes parece cair em visões etnocêntricas que julgam alguns usos
como melhores, mais racionais e, portanto, mais justificados que outros.
Chegamos então ao principal problema do desvio: que é o problema de quem
pode ou não, quem tem legitimidade ou não, quem tem segurança ou não de
exercer determinadas formas de interação social. No caso específico das “drogas”,
isto se traduz em quem consome, em qual contexto e de que modo. Nessas
“disputas” classificatórias entre grupos consumidores de “drogas”, o que está em
jogo é também quem detém a possibilidade de vida na “fantasia” ou retirar os
resquícios da dor e a existência da experiência diversificadora, em que o corpo
aparece como a grande porta de entrada.
Há uma tensão constitutiva, principalmente no âmbito das ciências sociais, na
distinção entre problema social e problema teórico, já que o primeiro não
necessariamente se constitui no segundo. Embora não esperemos resolvê-la, tal
tensão pode ser, se tomada de modo absoluto, imobilizadora e pouco produtiva.
Não se pode negar que problemas sociais têm movido a humanidade,
notadamente as ciências sociais, em sua curta história de vinculação às disciplinas
científicas.
Através de diversos referenciais teóricos capazes de distanciar observador e
objeto, os problemas sociais são historicamente contextualizados e
desnaturalizados, o que não deve implicar, em hipótese alguma, a negação de sua
importância enquanto tal.
44
Não fosse assim, como explicar a importância política e teórica da
contribuição das ciências humanas ao estudo das classes sociais, da identidade
racial ou cultural e das separações de gênero, citando apenas três exemplos entre
dezenas de outros possíveis? A questão das “drogas”, portanto, se estabelece
enquanto um campo de pesquisa não apenas porque se configura num problema
social relevante, mas também porque o fenômeno do consumo sistemático de
substâncias psicoativas vai muito além do contato físico entre indivíduos e
determinadas substâncias.
45
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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modernidade.
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Barbosa, Antônio Rafael. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações
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