lucien febvre marc bloch e as ciencias historicas alemas 2012 1-libre

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  • Coleo Estudos Alemes

    Srie Estudos de Historiografia Alem

    Lucien Febvre, Marc Bloch e as Cincias Histricas Alems (1928-1944)

    Sabrina Magalhes Rocha

  • Lucien Febvre, Marc Bloch e as Cincias Histricas Alems

    (1928-1944)

    Sabina Magalhes Rocha

    2012

  • Reitor | Joo Luiz Martins Reitor | Joo Luiz Martins Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior Vice-Reitor | Antenor Rodrigues Barbosa Junior

    Diretor-Presidente | Gustavo Henrique Bianco de Souza Diretor-Presidente | Gustavo Henrique Bianco de Souza Assessor Especial | Alvimar Ambrsio Assessor Especial | Alvimar Ambrsio CONSELHO EDITORIAL CONSELHO EDITORIAL Adalgimar Gomes Gonalves Adalgimar Gomes Gonalves Andr Barros Cota Andr Barros Cota Elza Conceio de Oliveira Sebastio Elza Conceio de Oliveira Sebastio Fbio Faversani Fbio Faversani Gilbert Cardoso Bouyer Gilbert Cardoso Bouyer Gilson Ianinni Gilson Ianinni Gustavo Henrique Bianco de Souza Gustavo Henrique Bianco de Souza Carla Mercs da Rocha Jatob Ferreira Carla Mercs da Rocha Jatob Ferreira Hildeberto Caldas de Sousa Hildeberto Caldas de Sousa Leonardo Barbosa Godefroid Leonardo Barbosa Godefroid Rinaldo Cardoso dos Santos Rinaldo Cardoso dos Santos

    Coordenador | Valdei Lopes de Arajo Coordenador | Valdei Lopes de Arajo Vice-Coordenadora | Cludia Maria das Graas Chaves Vice-Coordenadora | Cludia Maria das Graas Chaves Editor geral | Fbio Duarte Joly Editor geral | Fbio Duarte Joly Ncleo Editorial | Estudos Alemes Ncleo Editorial | Estudos Alemes Editor | Srgio Ricardo da Mata Editor | Srgio Ricardo da Mata CONSELHO EDITORIAL CONSELHO EDITORIAL Arthur Assis Arthur Assis Fbio Duarte Joly Fbio Duarte Joly Luiz Estevam de Oliveira Fernandes Luiz Estevam de Oliveira Fernandes

  • EDUFOP PPGHIS-UFOP

    Projeto Grfico

    ACI - UFOP

    Reviso Tcnica Edma Garcia Neiva

    Editorao Eletrnica

    Fbio Duarte Joly

    FICHA CATALOGRFICA

    Todos os direitos reservados Editora UFOP http//:www.ufop.br e-mail : [email protected] Tel.: 31 3559-1463 Telefax.: 31 3559-1255 Centro de Vivncia | Sala 03 | Campus Morro do Cruzeiro 35400.000 | Ouro Preto | MG

  • Coleo Estudos Alemes

    A proposta de uma coleo devotada aos "Estudos alemes" tem por objetivo

    principal incentivar a ampliao e o aprofundamento do dilogo cientfico entre as

    comunidades historiogrficas brasileira e alem, movimento este que tem recrudescido

    nos ltimos anos, depois de um longo perodo de afastamento mtuo.

    A centralidade de que passaram a gozar autores como Reinhart Koselleck e Jrn

    Rsen no debate terico promovido por historiadores brasileiros mostra o interesse

    crescente pelo pensamento histrico alemo um campo at poucos anos atrs

    dominado seja pelos filsofos, seja por autores de orientao marxista , ao mesmo tempo

    em que a vinda de historiadores e tericos da histria alemes ao Brasil se intensifica e

    revela uma abertura efetiva para o dilogo com nossa prpria tradio de pensamento

    histrico, tanto a clssica, das dcadas de 1930-1940, quanto a mais recente.

    Nos ltimos anos, o Programa de Ps-Graduao da Universidade Federal de Ouro

    Preto tem se destacado como um dos mais importantes centros brasileiros de divulgao

    e estudo sistemtico da tradio terico-historiogrfica alem. A criao deste Ncleo

    Editorial , por assim dizer, a conseqncia natural deste processo.

    Os editores.

  • Sumrio

    INTRODUO ........................................................................................................................9

    CONSTRUINDO O OBJETO: TEORIA, METODOLOGIA E LITERATURA SOBRE

    LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH.................................................................................18

    VIVER E ESCREVER A ALEMANHA: A PRESENA GERMNICA NAS

    TRAJETRIAS DE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH ............................................45

    A CONVIVNCIA COM AS CINCIAS HISTRICAS ALEMS ...............................71

    A HISTORIOGRAFIA ALEM NA CRTICA DE LUCIEN FEBVRE E MARC

    BLOCH .................................................................................................................................101

    CONCLUSO ......................................................................................................................147

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...............................................................................153

  • Introduo

    Lucien Paul Victor Febvre (1878-1956) e Marc Leopold Benjamin Bloch (1886-1944)

    so reconhecidos como dois dos mais importantes historiadores da historiografia francesa

    e tambm da historiografia do sculo XX. Esses autores produziram no campo da histria

    moderna e da histria medieval, respectivamente, escrevendo obras que ainda se

    constituem em referncias importantes para as duas disciplinas. Febvre autor de obras

    que encontraram e ainda encontram ampla repercusso na historiografia brasileira, como

    a recm-lanada O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais1. As

    obras de Bloch, por sua vez, no gozam de menor prestgio. No Brasil, Bloch mais

    amplamente conhecido por trs de suas obras: Os reis taumaturgos, A Sociedade Feudal e

    A Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador2.

    Esses historiadores, por outro lado, so referenciados nas discusses

    historiogrficas contemporneas, particularmente no campo da histria da historiografia,

    por sua vinculao Escola dos Annales. Ao longo de todo o sculo XX, tanto na

    historiografia brasileira quanto na historiografia francesa e, de maneira geral, na

    historiografia internacional, Lucien Febvre e Marc Bloch so apresentados como os pais do

    movimento dos Annales. Com a fundao, em 1929, da revista Annales dHistoire

    conomique et Sociale, esses historiadores teriam inaugurado uma nova forma de se

    produzir conhecimento histrico. A iniciativa da revista Annales representaria um marco,

    uma mudana de paradigma no interior da disciplina histrica; a implementao de uma

    escola fundada no estudo da histria social e econmica, em contraposio histria

    tradicional que estabeleceria suas bases na histria poltica3.

    1 Cf. FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais. So Paulo: Cia das Letras, 2009. 2 Cf. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edies 70; So Paulo: Martins Fontes, 1982; BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o carter sobrenatural do poder rgio - Frana e Inglaterra. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador. Edio anotada por tienne Bloch. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a. 3 A anlise detalhada da literatura que estudou Marc Bloch e Lucien Febvre nesta perspectiva realizada na seo A historiografia sobre Lucien Febvre e Marc Bloch.

    9

  • Nesta dissertao, Marc Bloch e Lucien Febvre sero estudados a partir da histria

    da historiografia. No entanto, no sero tratados em nenhuma das duas perspectivas

    acima mencionadas: no analisaremos minuciosamente suas obras, tampouco

    buscaremos demonstrar ou contestar as revolues que eles teriam promovido no

    campo do conhecimento histrico. O objeto de investigao construdo aqui compreende

    as relaes de Febvre e Bloch com as cincias histricas alems, entre os anos de 1928 e

    1944. Mais especificamente, deseja-se responder a duas questes: 1) como foi a

    convivncia de Marc Bloch e Lucien Febvre com as cincias histricas alems? 2) qual a

    avaliao, a crtica desses historiadores franceses a respeito da historiografia alem?

    Essa primeira questo se desdobra em pelo menos trs direes, indispensveis

    para sua elucidao. Trata-se de identificar com que intelectuais germnicos Bloch e

    Febvre mantiveram contato, analisar as formas pelas quais esse contato se efetivou, assim

    como os fatores que interferiram nessa relao. A segunda questo, a investigao da

    crtica, tambm composta por perguntas mais especficas, que envolvem, entre outras:

    identificao dos eruditos alemes avaliados por Bloch e Febvre; busca do contexto de

    insero terico-metodolgico desses eruditos, de sua relevncia na academia alem;

    anlise da relao entre a historiografia alem criticada e as pesquisas individuais dos

    historiadores franceses.

    A metodologia empregada para responder a essa problematizao, para alcanar

    esses objetivos, agrega, ento, procedimentos de identificao e anlise. A pesquisa se

    desenvolve pela aplicao destes procedimentos a dois grupos principais de fontes:

    resenhas e correspondncias. A eles se associam ensaios, artigos e livros. Estudamos as

    resenhas de obras de origem germnica publicadas por Marc Bloch e Lucien Febvre entre

    1928 e 1944 em dois peridicos franceses, Annales dHistoire conomique et Sociale e

    Revue Historique4. O segundo grupo de fontes, por sua vez, composto pelas 530 cartas

    trocadas pelos dois autores entre 1928 e 1943, organizadas e publicadas pelo historiador

    suo Bertrand Mller.

    4 Agradeo ao Prof. Dr. Renato Pinto Venncio, de quem fui aluna no Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Ouro Preto, pela indicao de inserir as resenhas em meu corpo documental. Sua orientao apontou para o que hoje representa o conjunto de fontes mais significativo deste trabalho, sem o qual ele certamente no teria tomado a forma atual.

    10

  • A ideia de explorar a relao de Marc Bloch e Lucien Febvre com as cincias

    histricas alems nesse momento, entre 1928 e 1944, deve-se ao menos a trs fatores.

    Primeiramente, gostaramos de estud-los em seu perodo de maturidade intelectual, j

    como pesquisadores e professores universitrios estabelecidos. Por outro lado, j que

    nossa anlise trata de dois personagens, era importante avali-los conjuntamente. Nesse

    sentido, justifica-se a interrupo da anlise em 1944, ano do falecimento de Marc Bloch.

    H ainda, nessa definio de 1944 como ltimo ano de nossa anlise , outra razo. Alm

    de no contarmos mais com as contribuies de Bloch, aps esse perodo observa-se um

    rearranjo das relaes que conformam esse contexto. Para ficarmos em poucos exemplos,

    a revista Annales, uma de nossas fontes principais, passa por profundas transformaes,

    com a presena mais efetiva de novos personagens, entre eles Fernand Braudel. Assiste-se

    ainda a uma nova postura tanto da revista quanto de Lucien Febvre na academia francesa,

    com sua transferncia para a VI Seo da cole Pratique des Hautes tudes. De tal forma,

    que a continuidade da avaliao dessa questo, aps 1944, demandaria esforos de

    anlise que no conseguiramos alcanar no espao desta dissertao, tampouco no

    tempo disponvel para sua realizao.

    Por fim, essa periodizao adequada s nossas possibilidades documentais. No

    caso das resenhas, utilizamos apenas uma anterior a 1928, publicada por Marc Bloch em

    1918 na Revue Historique. Todas as demais, importantes para esse trabalho, foram

    publicadas entre 1928 e 1944. Quanto s cartas, elas compreendem os anos de 1928 e

    1943, coincidindo, no fortuitamente, com o momento de fundao da revista Annales5. A

    mesma referncia temporal se manifesta nas trs obras historiogrficas que utilizamos.

    Martin Luter: un destin e Le Rhin: problme dhistoire et dconomie, de Lucien Febvre, so

    publicaes de 1928 e 1931/1935, respectivamente. J o texto de Bloch, Ltrange dfaite,

    teve sua primeira publicao em 1946, mas seus manuscritos so de 1940.

    importante que faamos tambm alguns esclarecimentos sobre a utilizao,

    nesse estudo, do termo cincias histricas alems e no apenas historiografia alem.

    Assim como a periodizao, essa uma questo que parte de nosso acervo documental.

    Desde as primeiras anlises, tanto das cartas quanto das resenhas, ficou claro que Lucien

    5 A explicao do contedo e da sistemtica das resenhas realizada na seo O papel da crtica bibliogrfica, enquanto as correspondncias so contempladas na seo A histria da historiografia como campo de investigao.

    11

  • Febvre e Marc Bloch dialogaram com autores germnicos de outras disciplinas alm da

    histria, tais como a sociologia, a geografia e a economia poltica. As referncias aos

    autores destas disciplinas no so menos significativas nem numrica nem

    qualitativamente em relao histria. A nosso ver, seria, ento, uma excessiva reduo

    do campo sua limitao apenas queles autores definidos como historiadores stricto

    sensu.

    Ainda assim, poder-se-ia considerar um exagero a congregao de intelectuais to

    distintos, como Werner Sombart, Max Weber, Georg von Below e Friedrich Meinecke sob a

    rubrica cincias histricas. Nossa persistncia nessa designao, contudo, deve-se ao

    fato de ela encontrar fundamentao em pelo menos dois aspectos. O primeiro deriva da

    apreenso que Febvre e Bloch fazem desses autores e de suas obras. Ainda que no

    estivessem lendo autores que se reconheciam como historiadores, a discusso que Bloch e

    Febvre estabelecem com seus textos passa sempre pela perspectiva da histria. Ou seja,

    em sua compreenso, esses autores circulavam por uma sociologia histrica, por uma

    geografia histrica ou por uma economia histrica.

    Essa classificao, que alm de exagerada poderia parecer arbitrria, na medida em

    que associa disciplinas dessemelhantes em nico conjunto, ganha sustentao na

    argumentao de Heinrich Rickert. Rickert, terico neokantiano do comeo do sculo XX,

    referindo-se s cincias de sua poca, afirma que a cincia histrica parte de um

    conjunto de disciplinas que ele designa cincias culturais, Kulturwissenschaften. Essas

    cincias culturais, em seu entendimento, tambm podem ser designadas cincias

    histricas. Trata-se de disciplinas que se diferenciam das cincias naturais pela busca de

    particularidades, de historicidade, e no de leis ou generalizaes. Assim, tais disciplinas,

    sejam estudando as relaes do homem com o tempo, com o espao, ou dos homens

    entre si, comportam um sentido de conjunto6.

    Explicitados, ento, o objeto desta pesquisa, sua problematizao, seus mtodos e

    sua rea de insero, parece-nos relevante discutir, ainda que rapidamente, sua

    justificao, ou seja, a relevncia de sua realizao. Para responder a essa questo optamos

    por percorrer o prprio caminho de nossa pesquisa, desde o interesse pelo tema at sua

    6 MATA, Srgio. Heinrich Rickert e a fundamentao (axio)lgica do conhecimento histrico. Varia Histria, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 347-367, 2006; RICKERT, Heinrich. Les quatres modes de luniversel dans lhistoire. Revue de Synthse Hitorique, Paris, t. II, n. 5, p. 121-140, 1901.

    12

  • construo como um problema que pudesse ser tratado no campo da cincia histrica. A

    explanao dos motivos pelos quais nos debruamos sobre esse objeto, ao que nos

    parece, contempla o porqu de realiz-la.

    Nossa aproximao dos estudos sobre Lucien Febvre e Marc Bloch teve como

    ponto de partida o desejo de compreender uma situao que diagnosticvamos no

    campo da histria da historiografia brasileira. Tratava-se de buscar entender as causas para

    a pequena relevncia, para o quase silncio da historiografia brasileira sobre a

    historiografia alem. Comparativamente influncia de outras comunidades

    historiogrficas, como a francesa e a americana, por exemplo, sua presena no parecia ter

    tido, ao longo do sculo XX, a mesma significao. Trata-se de uma presena incompatvel

    com o prprio lugar da cincia histrica alem, com sua importncia para o

    desenvolvimento da disciplina, no apenas no sculo XIX, mas tambm no sculo XX7.

    A hiptese que levantvamos, e que pretendamos investigar, associava-se ao

    domnio da historiografia francesa. Ao ocupar largo espao na historiografia brasileira,

    especialmente a partir da segunda metade do sculo XX, a histria produzida na Frana,

    sobretudo a historiografia dos Annales, em alguma medida bloquearia o contato com as

    obras e autores germnicos. Em nossa primeira incurso, tal questo se colocava quase

    automaticamente, nos seguintes termos: os Annales se definiam como uma nova histria,

    em oposio ao tradicionalismo historiogrfico, cujas bases estavam na Alemanha, logo,

    7 A reduzida presena da historiografia alem na historiografia brasileira do sc. XX pode ser bem ilustrada com o caso de Leopold von Ranke, o mais conhecido historiador alemo do sc. XIX. Apesar dos autores brasileiros fazerem referncias a Ranke, essas no se mostravam ancoradas em efetivo estudo de suas obras. No h, no Brasil, nenhuma traduo completa delas, somente uma publicao de fragmentos e ensaios organizados por Srgio Buarque de Holanda em 1979. A esse pequeno nmero de tradues soma-se a inexistncia de monografias sobre Ranke realizadas nos centros de ps-graduao em histria, como se verifica no portal de teses e dissertaes da Capes. At onde pudemos verificar, publicaram-se pouqussimos estudos especficos sobre a obra de Ranke: uma introduo de Srgio Buarque de Holanda ao referido livro e um ensaio de Arno Wehling na Revista de Histria, ambos na dcada de 1970. (Cf. HOLANDA, Srgio Buarque (org.). Ranke. So Paulo: tica, 1979; WEHLING, Arno. Em torno de Ranke: a questo da objetividade histrica. Revista de Histria, Rio de Janeiro, v. XLVI, n. 93, p. 177-200, 1973). importante registrarmos, contudo, que esse cenrio vem se modificando a partir dos anos 2000, com a dedicao especfica de alguns pesquisadores historiografia alem. No caso de Ranke, ressaltamos duas iniciativas, um artigo de Pedro Caldas e a recente traduo comentada de Srgio da Mata, publicada em obra que rene tradues de outros importantes historiadores do sc. XIX. (Cf. CALDAS, Pedro. O Esprito dos papis mortos: Um pequeno estudo sobre o problema da verdade histrica em Leopold von Ranke. Boletim Emblemas, Catalo, v. 1, p. 23-38, 2007; MATA, Srgio da. Leopold von Ranke (1795-1886). In: MARTINS, Estevo de Rezende (Org.) A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX. So Paulo: Contexto, 2010, p. 187-201.)

    13

  • promoveriam, onde exercessem domnio, um afastamento em relao historiografia

    alem.

    O estudo das fontes, tanto bibliogrficas quanto documentais, todavia, mostrou-

    nos as dificuldades em torno desse projeto inicial. Desde as primeiras leituras mais

    sistematizadas, vislumbramos um universo de questes a ser explorado nas relaes entre

    historiografia francesa e historiografia alem. Entre as duas comunidades revelaram-se

    nveis de complexidade tais, que no poderiam ser resolvidos no plano da mera oposio

    paradigmtica. A proposta de explicar o bloqueio de uma historiografia a partir do

    domnio de outra incorreria, assim, no risco do simplismo. Ameaava-se propor, ou

    reafirmar, uma histria, para usarmos expresso corrente, construda a partir de um voo

    sobre as copas das rvores, sem analis-las por terra.

    O olhar mais atento, tanto para a historiografia francesa quanto para a

    historiografia alem, indicou-nos a inviabilidade de trat-las, naquele momento, como

    dois blocos opostos. Tal questo no poderia ser feita sem que se investigasse o

    posicionamento de seus autores, o relacionamento entre eles, seus dilogos, suas crticas,

    suas influncias. O contato com a literatura mostrou-nos tambm que os estudos sobre

    essas questes estavam ainda por se fazer. Encontramos muitos textos, sobretudo em

    lngua portuguesa, que tratavam, de forma genrica, da questo, e que, em muitos casos,

    simplesmente reafirmavam interpretaes cannicas sobre os Annales, como os textos de

    Jacques Le Goff, escritos na dcada de 19708.

    As relaes entre historiografia francesa e historiografia alem, em grande medida,

    foram compreendidas a partir da identificao da primeira com a Escola dos Annales, e

    da segunda com o historicismo. Nesse sentido, foram interpretadas sob o signo de

    oposies: histria nova versus histria tradicional; histria socioeconmica versus histria

    poltica. Essa oposio, em alguns estudos, apareceu coroada, de um lado, com o nome de

    Leopold von Ranke, representante do tradicionalismo da historiografia alem, de outro,

    com os nomes de Bloch e Febvre, representantes da renovao da historiografia francesa.

    Tratando da mitologizao construda em torno de Ranke, Srgio da Mata expressa bem o

    tratamento dado pela historiografia a essa questo:

    8 Cf. LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    14

  • No outro o caso da assim chamada historiografia positivista do sculo XIX.

    Um mito to mais resistente na medida em que se baseia numa caracterizao

    heterclita, e cujo sentido ltimo o de construir o avesso de outro mito e,

    assim, legitim-lo: o da revoluo dos Annales. Positivista seria aquela

    historiografia empiricista, centrada apenas no mbito do poltico e do Estado

    nacional, no uso de documentos oficiais, cultora dos grandes homens,

    inteiramente alheia reflexo terica e s ideias. Quando se atribui ao famoso

    manual de Langlois e Seignobos a condio de summa desta historiografia

    positivista, o alvo bem claro. So aqueles a quem Febvre chamou os

    derrotados de 1870. Ou seja, o grupo da Revue Historique, e, por extenso, a

    historiografia acadmica alem, historicista, que lhe servira de modelo9.

    justamente essa associao de Febvre e Bloch revoluo historiogrfica,

    oposio Alemanha, que nos motivou a investigar essa relao a partir deles. A

    construo desse objeto , assim, uma tentativa de contribuir para o campo da histria da

    historiografia sobre Lucien Febvre e Marc Bloch, para alm da designao primeira

    gerao dos Annales. Ao mesmo tempo, trazer novos temas ao campo que se preocupa

    em analisar as relaes entre a historiografia francesa e a historiografia alem a partir de

    seus atores/autores. Trata-se de uma tentativa de contribuir para que o conhecimento

    dessa temtica, particularmente na historiografia brasileira, v um pouco alm do

    difundido comentrio de Bloch em sua Apologia da Histria sobre a clebre frase de

    Ranke:

    A frmula do velho Ranke clebre: o historiador prope apenas descrever as

    coisas tais como aconteceram, wie es eigentlich gewesen. Herdoto o dissera

    antes dele, ta eonta legein, contar o que foi. O cientista, em outros termos,

    convidado a se ofuscar diante dos fatos. Como muitas mximas, esta talvez deva

    sua fortuna apenas sua ambiguidade. Podemos ler a, modestamente, um

    conselho de probidade: este era, no se pode duvidar, o sentido de Ranke. Mas

    9 MATA, Srgio da. Leopold von Ranke (1795-1886). In: MARTINS, Estevo de Rezende (Org.) A histria pensada. Teoria e mtodo na historiografia europeia do sculo XIX. So Paulo: Contexto, 2010, p. 188.

    15

  • tambm um conselho de passividade. De modo que eis, colocados de chofre,

    dois problemas: o da imparcialidade histrica; o da histria como tentativa de

    reproduo ou como tentativa de anlise10.

    De forma a avaliar a convivncia e a crtica de Bloch e Febvre em relao s cincias

    histricas alems, nos termos definidos acima, esta dissertao est estruturada em quatro

    captulos. O primeiro, intitulado Construindo o objeto: teoria, metodologia e literatura

    sobre Lucien Febvre e Marc Bloch, reflete sobre o referencial terico para a pesquisa em

    histria da historiografia e para esta pesquisa em particular. Apresenta-se tambm, na

    segunda seo deste captulo, uma reviso analtica da literatura sobre Marc Bloch e

    Lucien Febvre no campo da histria da historiografia. Constri-se com essa reviso um

    quadro, que a partir de obras-chave busca representar a diversidade dessa literatura.

    O segundo captulo, Viver e escrever a Alemanha: a presena germnica nas

    trajetrias de Lucien Febvre e Marc Bloch, explora uma das bases tericas de sustentao

    desse trabalho: a tese de que na relao de Febvre e Bloch com as cincias histricas

    alems interferem questes externas ao contexto puramente historiogrfico. Aqui

    apresentamos as relaes desses historiadores com o pas vizinho, a partir uma

    abordagem focada na dimenso cultural. Nesse sentido, discutimos a tradio de

    aproximaes e distanciamentos entre as duas naes, sob o signo de uma guerra de

    culturas. Tambm buscamos explorar como a Alemanha entrecruza as trajetrias de

    Febvre e Bloch, tanto como cidados franceses quanto como historiadores. Esse captulo

    encerra-se com uma seo dedicada a construir a imagem de Febvre e Bloch sobre a nao

    germnica a partir de trs obras: Martin Luther: un destin; Le Rhin: problme dhistoire et

    dconomie e Ltrange dfaite.

    A convivncia com as cincias histricas alems , por sua vez, o foco do terceiro

    captulo. Trata das diversas formas pelas quais Marc Bloch e Lucien Febvre estabeleceram

    contato com a Alemanha, tal como ele se efetivou por meio de determinados parceiros

    intelectuais. Nesse captulo tambm se procura demonstrar como, alm de fazer

    mediaes, esses parceiros (que apresentamos nas categorias de mestres, como Henri

    10 BLOCH, Marc. Apologia da Histria ou o Ofcio de Historiador. Edio anotada por tienne Bloch. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001a, p. 125.

    16

  • Berr e Henri Pirenne, e personagens do crculo annaliste, como Maurice Baumont e

    Maurice Halbwachs) exerceram influncia nas leituras de Febvre e Bloch. Busca-se explorar

    ainda uma importante faceta desse polimorfismo de contatos, a convivncia direta de

    Febvre e Bloch com intelectuais germnicos, os quais tambm so analisados em duas

    categorias: de um lado os alemes que colaboraram na Annales, e de outro, o crculo

    austraco, formado por Alfons Dopsch, Lucie Varga e Franz Borkenau.

    O quarto e ltimo captulo analisa o papel da crtica histrica para esses dois

    historiadores e o largo espao nela ocupado pelas cincias histricas alems. Investiga-se

    sua dinmica de construo por meio das resenhas, o meio privilegiado para a produo e

    veiculao dessa crtica, e as caractersticas gerais das obras/autores germnicos avaliados.

    A ltima parte desse captulo, por sua vez, apresenta umas das questes mais importantes

    para este trabalho, as avaliaes que Marc Bloch e Lucien Febvre construram sobre alguns

    dos mais importantes eruditos alemes: os estudiosos do capitalismo Werner Sombart e

    Max Weber, os medievalistas Georg von Below e Ernst Kantorowicz, e os terico-crticos

    Karl Lamprecht e Friedrich Meinecke.

    17

  • CONSTRUINDO O OBJETO:

    TEORIA, METODOLOGIA E LITERATURA SOBRE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH

    O desejo de analisar as relaes existentes entre Marc Bloch, Lucien Febvre e a

    historiografia alem, desde o primeiro momento, colocou-nos a questo de que recursos

    terico-metodolgicos seriam utilizados para a investigao. Nesse sentido, foi necessrio

    delimitar o campo de observao desse objeto, definir os limites, apontar as ferramentas a

    ser empregadas, mobilizar o conjunto de outros estudos com os quais dialogaramos.

    com esse propsito que oferecemos aqui, antes de adentrar propriamente nosso objeto

    de investigao, uma discusso sobre o referencial terico-metodolgico que norteia seu

    estudo. Com o mesmo intuito, apresentamos tambm o estado da arte da investigao

    desse objeto no campo da histria da historiografia.

    A HISTRIA DA HISTORIOGRAFIA COMO CAMPO DE INVESTIGAO

    Em um estudo que possui a histria da historiografia como rea de insero e

    busca nela suas referncias indispensvel partir da anlise desse campo, especialmente

    de seus pressupostos tericos e metodolgicos. O terico alemo Jrn Rsen, em trilogia

    intitulada Teoria da Histria, props-se a discutir perspectivas de interpretao, mtodos,

    formas de representao, interesses e funes do conhecimento histrico. Segundo

    Rsen, essas categorias compem a matriz disciplinar da cincia histrica, viabilizam a

    anlise de processos cognitivos que se pretendem cientficos. Essa formulao nos oferece

    um caminho de reflexo interessante. Podemos partir de questes tais como: quais seriam

    as perspectivas de interpretao, as teorias e as categorias utilizadas pela histria da

    historiografia? Que mtodos ela utiliza para proceder sua investigao? Quais seriam suas

    18

  • formas de representao? E ainda, quais os interesses e funes desse campo de

    conhecimento?1

    importante deixar claro nosso entendimento da histria da historiografia como

    um campo de pesquisa no interior dessa grande rea denominada conhecimento

    histrico2. Nesse sentido, o mesmo estatuto que atribumos historiografia de maneira

    geral conferimos histria da historiografia em particular. Para utilizar uma construo de

    Rsen, compreende-se a historiografia, e logo a histria da historiografia, como um

    processo cognitivo histrico que se pretende cientfico. No se trata de colocar em

    discusso a cientificidade ou no da histria, mesmo porque em Rsen a discusso no

    toma tal caminho, mas de definir a historiografia como produo rigorosa de

    conhecimento. Em Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-

    antropolgico, Koselleck tambm oferece elementos que auxiliam na composio desse

    entendimento. Koselleck enfatiza a ideia de que a historiografia dependente de

    experincias, mas tambm de mtodos, de caminhos mnimos de investigao, pois ela

    est alm da mera notcia3.

    Em recente publicao intitulada Para uma nova histria da historiografia, o

    historiador alemo Horst Walter Blanke prope uma tipologizao para esse campo de

    conhecimento. Blanke mostra que desde seu incio, no perodo do Iluminismo, at os dias

    contemporneos, essa disciplina se desenvolveu com a manifestao de caractersticas

    comuns entre as obras a ela pertencentes. Em outros termos, vislumbram-se regularidades

    ou similitudes entre obras de histria da historiografia ao longo desses dois sculos que

    permitiriam sua organizao em grupos. Nesse sentido, o autor prope uma tipologizao

    a partir das obras alems, mas que nos parece aplicvel tambm a outros contextos.

    Evidentemente no se prope a construo de um retrato fidedigno; a elaborao

    dos tipos uma abstrao, uma ferramenta terica que, se por um lado, pode esconder

    singularidades, por outro, viabiliza uma compreenso da disciplina em quadros, em uma

    1 RSEN, Jrn. A constituio narrativa do sentido histrico. In: Idem. Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed. UNB, 2001, p. 161-165; RSEN, Jrn. Histria viva: teoria da histria III: formas e funes do conhecimento histrico. Braslia: Ed. UNB, 2007. 2 ARAJO, Valdei Lopes de. Sobre o lugar da histria da historiografia como disciplina autnoma. Lcus: revista de histria, Juiz de Fora, v. 12, n.1, p. 41-78, 2006. 3 KOSELLECK, Reinhart. Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-antropolgico. In: Idem. Los estratos del tiempo. Barcelona: Paids, 2001, p. 47-49.

    19

  • perspectiva macro. Para a organizao desses tipos, Blanke parece levar em considerao

    especialmente o objeto de investigao e a perspectiva terico-metodolgica que norteia

    a pesquisa. Assim, constri dez tipos de histria da historiografia: histria dos

    historiadores, histria das obras, balano geral, histria da disciplina, histria dos mtodos,

    histria das ideias histricas, histria dos problemas, histria das funes do pensamento

    histrico, histria social dos historiadores e histria da historiografia teoricamente

    orientada4.

    A compreenso dessa disciplina a partir de tipologias tambm o instrumento

    utilizado pelo historiador e editor da revista italiana Storiografia, Massimo Mastrogregori.

    Em Historiografia e tradio das lembranas, Mastrogregori constri uma tipologizao a

    partir dos mtodos empregados no estudo da histria da historiografia. A partir do sculo

    XIX, a disciplina ter-se-ia desenvolvido com a utilizao de seis mtodos de investigao,

    que podem ser apresentados em ordem cronolgica. O primeiro seria bibliogrfico,

    erudito, enciclopdico; o segundo filosfico, pragmtico, pedaggico; o terceiro cientfico.

    A eles sucederiam um quarto retrico e literrio; um quinto sociolgico e prosopogrfico e

    por fim um sexto sinttico e descritivo5.

    A partir dessas duas construes tipolgicas podemos apontar possveis respostas

    para as questes elaboradas a partir das categorias definidas por Rsen. Como qualquer

    outro campo do conhecimento histrico, pode-se identificar na histria da historiografia

    uma ntima relao com a experincia, na medida em que trata das mais diversas formas

    de se escrever histria. Ao mesmo tempo, ela no se configura como um relato

    desprendido de categorizao ou de mtodos. Como se pde ver, eles so mltiplos,

    podem se sobrepor e gerar dificuldades de identificao, o que no se confunde com sua

    ausncia. Resta ainda colocar disciplina a pergunta sobre seu interesse e sua funo. Em

    outros termos, ela pode ser percebida como necessidade, como fruto de alguma carncia

    de orientao da vida prtica? Ela teria alguma funo, ofereceria alguma orientao a

    essa realidade?

    4 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 29-35. 5 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 66-67.

    20

  • Blanke e Mastrogregori tambm oferecem respostas a essas questes. Para Blanke,

    a histria da historiografia contempla trs funes: afirmativa, crtica e exemplar. A

    primeira afirmaria a ideologia oficial, a funo negativa, ao contrrio, faria a crtica dos

    modelos tradicionais, enquanto a exemplar ofereceria material ilustrativo para a reflexo

    terica6. Mastrogregori, por sua vez, sustenta que desde seu nascimento a disciplina no

    tem tido outra funo que no ser um espelho da histria-cincia, falar para uma

    corporao de especialistas. O historiador italiano caminha no sentido de alargar essa

    funo, propondo uma aproximao entre a histria da historiografia e a tradio das

    lembranas7. H, portanto, nessas duas interpretaes, o entendimento de que a histria

    da historiografia parte de questes colocadas pela realidade e oferece respostas a ela. O

    ponto central que a realidade, a vida prtica aqui o prprio conhecimento histrico.

    A apresentao dessa discusso tem o objetivo de colocar em debate os aspectos

    tericos e metodolgicos da pesquisa em histria da historiografia. Trata-se de uma

    discusso rpida, que no coloca todos os pontos do problema, mas que nos parece

    cumprir bem o papel de organizar a reflexo. Ela utilizada aqui como uma chave para

    tratarmos da definio de um referencial terico e de procedimentos metodolgicos para

    nossa pesquisa.

    Na medida em que se estrutura a partir da relao de dois historiadores franceses,

    Lucien Febvre e Marc Bloch, com a historiografia alem, esse trabalho pode ser localizado

    em uma problemtica mais ampla, qual seja, a relao das diferentes historiografias

    nacionais entre si. Partindo da tipologia estabelecida por Horst Walter Blanke, poderamos

    dizer que se trata de uma histria da historiografia do tipo histria dos problemas, que

    [...] trata das diferentes reas temticas: a histria das subdisciplinas da histria,

    a histria da relao entre as disciplinas [...], o estudo da recepo de eventos

    histricos individuais [...] e, finalmente, a relao das diferentes historiografias

    6 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 29-35. 7 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 66-68.

    21

  • nacionais entre si (por exemplo, a imagem da Frana na historiografia alem e a

    imagem da Alemanha na historiografia francesa)8.

    Tambm podemos tentar traar os limites dessa investigao partindo da

    categorizao de Mastrogregori. O historiador italiano afirma que seu ltimo tipo, o

    mtodo sinttico-descritivo,

    [...] consiste no fato de contar a histria da historiografia sem um projeto

    metodolgico rgido e em aplicar a uma revista de histria, aos congressos ou

    ento vida de um historiador o mesmo mtodo que aplicaramos a no

    importa que outra atividade cultural ou cientfica9.

    A definio de Mastrogregori para esse tipo especialmente interessante por

    compor um mtodo marcado pela falta de um projeto metodolgico rgido. No se trata

    da ausncia de mtodo, mas da ausncia de metodologia prvia problematizao do

    objeto. Partindo desse argumento, podemos entender que esse tipo de histria da

    historiografia demanda a construo dos seus referenciais. Trata-se de um tipo em que o

    objeto no traz consigo uma metodologia definida, ao contrrio, ela deve ser estruturada

    a partir das perguntas que o pesquisador coloca ao objeto.

    Esse certamente o nosso caso. Cada questo que lhe colocada demanda uma

    direo de investigao distinta; logo, requer uma metodologia prpria. Procurvamos,

    inicialmente, desenvolver a pesquisa nos apoiando em duas referncias tericas

    preestabelecidas. A primeira a noo de regimes de historicidade, estabelecida por

    Franois Hartog. A partir dessa categoria, poderamos pensar a relao dos fundadores da

    Annales com a historiografia alem dos sculos XIX e XX por meio de aproximaes, tendo

    em vista que ambas estariam sob o regime moderno de historicidade. Essa interpretao

    ajudaria a matizar as referncias que enfatizam as grandes rupturas entre essas matrizes e

    tendem a produzir uma mitologizao revolucionria. Contudo, ela se restringe ao campo

    8 BLANKE, Horst Walter. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.) A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 31. 9 MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradio das lembranas. In: MALERBA, Jurandir (org.). A histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006, p. 67.

    22

  • terico-conceitual, no permitindo, portanto, tratar de todas as nuances envolvidas na

    relao de Bloch e Febvre com a produo intelectual alem.

    Ensaiamos tambm articular um segundo referencial em torno da noo de

    paradigmas, mediado pelas contribuies de Thomas Kuhn, Jrn Rsen e Reinhart

    Koselleck10. Essa perspectiva permitiria observar uma relao que se d pela oposio de

    dois paradigmas, um historicista e outro anti-historicista. Sua contribuio estaria

    especialmente na possibilidade de visualizar a constituio, o desenvolvimento, a

    substituio e a sucesso de modelos, de escolas, analisando tanto suas motivaes

    derivadas de um corpus terico-conceitual quanto suas motivaes encerradas na prxis,

    abrangendo as dimenses poltica, cognitiva e esttica.

    Essa ltima, especialmente por oferecer um espectro de anlise mais preciso, seria

    uma categoria mais adequada em relao categoria de regimes de historicidade.

    Contudo, ela tambm nos apresentou alguns problemas. Podemos citar dois mais centrais:

    no temos ainda nesses anos iniciais da escola dos Annales a presena de um paradigma

    definido e, por outro lado, no nos parece ser possvel alocar toda a multiplicidade e

    complexidade da historiografia alem em um nico paradigma. Portanto, para o conjunto

    da anlise, no nos parece haver outro caminho que no o da construo de uma

    metodologia prpria ao tratamento desse objeto, e derivada das perguntas que

    pretendemos investigar.

    O caminho dessa pesquisa busca atingir dois objetivos: explorar a convivncia, o

    contato de Lucien Febvre e Marc Bloch com as cincias histricas alems e investigar a

    crtica, o julgamento desses historiadores a respeito das cincias histricas alems. A

    estruturao da problematizao agrega, ento, duas direes metodolgicas:

    identificao e anlise. Pretendemos demonstrar quem so os autores alemes com os

    quais Bloch e Febvre se relacionaram, como funcionou essa relao, ou seja, por que vias

    ela se estabeleceu, que fatores nela atuaram e qual o julgamento de Bloch e Febvre sobre

    a cincia histrica alem.

    10 KOSELLECK, Reinhart. Cambios de experincia y cambios de mtodo: un apunte histrico-antropolgico. In: Idem. Los estratos del tiempo. Barcelona: Paids, 2001; KHN, Thomas. As estruturas das revolues cientficas. So Paulo: Perspectiva, 2005; RSEN, Jrn. A constituio narrativa do sentido histrico. In: Idem. Razo histrica: teoria da histria: fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed. UNB, 2001.

    23

  • importante esclarecer que a estruturao dessa direo de investigao s

    adquire sentido se temos como pressuposto que na relao de Lucien Febvre e Marc Bloch

    com a cincia histrica alem agem questes externas esfera estritamente terico-

    conceitual, a uma lgica de interpretao internalista dos textos. Dentre muitas das

    possveis atuaes, que podero ser observadas ao longo do texto, podem-se citar

    tradies culturais, conjunturas polticas e acadmico-cientficas, relacionamentos

    interpessoais e convivncias intelectuais11.

    A partir da prerrogativa lanada por Mastrogregori, de que a histria da

    historiografia no marcada por mtodos exclusivos, parece-nos ser possvel aproxim-la

    de outros campos, no muito bem definidos, mas que podem ser referenciados como

    histria intelectual, histria social do conhecimento ou mesmo histria da cultura.

    Esforamo-nos por construir essa ponte porque, para a maior parte dos estudos recentes

    desenvolvidos nesses campos, o reconhecimento de que as ideias no so desenraizadas

    funciona como premissa.

    No estamos fazendo coro j desgastada polmica da determinao social ou

    econmica das ideias. Trata-se aqui de uma concepo de histria ou sociologia do

    conhecimento presente, por exemplo, nos trabalhos de Wolf Lepenies, Fritz Ringer e Pierre

    Bourdieu12. Entendimento presente tambm nas pesquisas de Peter Schttler, Lutz

    Raphael e Bertrand Mller, que investigam a temtica em questo neste trabalho13. O que

    nos parece premente para esses autores, e que pretendemos resgatar para esta pesquisa,

    o fato de o mundo dos intelectuais no se esgotar em conceitos e teorias, mas ser, por

    11 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999; ESPAGNE, Michel; WENER, Michel. La construction dune rfrance culturelle allemande en France: gense et histoire (1750-1914). Annales: economies, socits, civilisations. Paris, 42 anne, n. 4, p. 969-992, 1987; SCHTTLER, Peter. Dsapprendre de lAllemagne: les Annales et lhistoire allemande pendant lentre-deux-guerres. In: CLARK, Stuart (Ed.). The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999. 12 BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Les dition de Minuit, 1984; LEPENIES, Wolf. As trs culturas. So Paulo: Edusp, 1996; LEPENIES, Wolf. French-German culture wars. In: Idem. The seduction of culture in Germany history. New Jersey: Princeton, 2006; RINGER, Fritz. O declnio dos mandarins alemes: a comunidade acadmica alem, 1890-1933. So Paulo: Edusp, 2000. 13 MLLER, Bertrand. Lucien Febvre, lecteur et critique. Paris: Albin Michel, 2003c; RAPHAEL, Lutz. Von der wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegemonie? Die Geschichte der Nouvelle Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge. Francia, Paris, v. 16, n. 3, p. 120-127, 1989; SCHTTLER, Peter. Dsapprendre de lAllemagne: les Annales et lhistoire allemande pendant lentre-deux-guerres. In: CLARK, Stuart (Ed.). The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999.

    24

  • outro lado, marcado por muitos fatores, como: jogos de poder, lutas de classificao, lutas

    acadmicas, polmicas pblicas, dimenses da vida pessoal.

    Tambm no se pode desconsiderar que esses fatores tidos como contextuais

    possam ser criaes de outros textos, ou mesmo um conjunto de textos, como

    demonstram os estudos de Reinhart Koselleck14. Nesse sentido, a explorao contextual,

    que aparecer tanto na anlise das macrorrelaes franco-germnicas, com foco na

    cultura, quanto na investigao das trajetrias de vida de Lucien Febvre e Marc Bloch e de

    suas vinculaes a crculos intelectuais, processar-se- a partir de um conjunto de textos.

    Busca-se, ento, afastamento de uma anlise que reduz o contexto aos eventos

    sociopolticos, sem vinculao expressa com a realidade observada, que funcionem

    apenas como pano de fundo, como cenrio, e se limitem a dizer se determinados autores

    so ou no fruto de seu tempo.

    Por outro lado, no nos parece suficiente saber que h contextos que condicionam

    para tenses ou aproximaes nas relaes franco-germnicas no perodo

    contemporneo a Lucien Febvre e Marc Bloch. importante que saibamos o

    posicionamento desses autores/atores frente a eles, importante resgatar sua condio

    de agentes. No se pode analis-los simplesmente como indivduos que apenas repetem

    um quadro de orientaes. Nesse sentido, imprescindvel a anlise, a interpretao de

    seus prprios textos. Buscaremos aqui, ento, seguir um raciocnio terico-metodolgico

    que comporta uma ordem, em alguma medida, circular, no qual: o quadro de orientaes,

    o contexto, informa a leitura de Marc Bloch e Lucien Febvre, que, por sua vez, elaboram

    uma posio prpria, distinta, que, medida em que ganhar a esfera pblica, modificar o

    quadro anterior.

    Para essa leitura, trabalhamos principalmente com dois grupos de fontes,

    correspondncias e resenhas, s quais se associam ensaios, artigos e livros historiogrficos.

    A escolha das correspondncias trocadas entre Marc Bloch e Lucien Febvre e, sobretudo,

    das resenhas de obras alems escritas por eles, responde a nosso anseio de enfatizar a

    avaliao que tais historiadores franceses fizeram dessa produo. Trata-se, portanto, de

    uma proposta que no se confunde com a busca de influncias tericas germnicas sobre

    14 KOSELLECK, Reinhart. Histria dos conceitos e histria social. In: Idem. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2006.

    25

  • a historiografia desses autores. Um estudo que tivesse tal objetivo, certamente seria mais

    bem conduzido, por exemplo, por um mtodo hermenutico ou mesmo de estudo de

    suas notas de rodap.

    A escolha dessas fontes tambm responde a nosso outro objetivo: o de demonstrar

    com que intelectuais germnicos Febvre e Bloch mantiveram contato e as formas pelas

    quais esse contato se efetivou. Nesse caso, as resenhas exercem funo subsidiria em

    relao s correspondncias. Enquanto as resenhas so, por excelncia, instrumento para

    apreenso da crtica, as cartas auxiliam na composio das relaes interpessoais, das

    ligaes, tanto com intelectuais de origem germnica, quanto com intelectuais franceses

    que, em alguma medida, as influenciavam.

    Construir uma investigao a partir de resenhas e cartas implica congregar duas

    categorias de documentos cujos impactos em seus contextos de produo foram

    distintos. Enquanto as resenhas tm carter pblico, as cartas circulam na esfera privada.

    Esse privatismo poderia conduzir o pesquisador crena de estar diante das reais

    intenes, das verdadeiras interpretaes daqueles que as escrevem, alm de ceder

    espao excessiva afeio. importante, portanto, que elas sejam tratadas com o mesmo

    distanciamento, ou ao menos sua tentativa, que se impe a qualquer documento

    histrico. Cristophe Prochasson, em artigo sobre o uso dos arquivos privados e a

    renovao das prticas historiogrficas, chama ateno para a necessidade do tratamento

    da correspondncia como fonte histrica. Em seus termos:

    Romper a inevitvel relao afetiva que se estabelece entre o historiador e seu

    material epistolar (do qual brotam muito mais emoes e comparaes consigo

    prprio do que das sries estatsticas ou dos documentos administrativos) passa

    pela objetivao desse material, pela sua construo como fonte15.

    Tratando especificamente das cartas de Lucien Febvre e Marc Bloch, podemos

    afirmar que apesar de seu vasto nmero 530 cartas localizadas e publicadas e do

    perodo de troca relativamente longo, de 1928 a 1943, elas apresentam muitas

    15 PROCHASSON, Cristophe. Ateno: verdade ! Arquivos privados e renovao das prticas historiogrficas. Estudos histricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, p. 105-119, 1998, p. 105.

    26

  • regularidades. A principal motivao para a escrita das cartas a edio da revista

    Annales. Essas cartas compem uma crnica pela qual se pode acompanhar a produo

    de quase todos os nmeros da revista. Os principais temas versam sobre a seleo e

    reviso dos textos que seriam publicados, a busca de colaboradores, os conflitos com o

    editor e a distribuio da revista. A esses temas centrais associam-se outros, como as

    candidaturas para professor de ambos os autores ao Collge de France, breves relatos

    sobre o clima e a sade dos familiares, alm se informaes sobre viagens realizadas.

    Nessas cartas, so raras as discusses sobre temticas que envolvem a esfera

    pblica, tais como cultura, economia ou poltica. Os poucos momentos dedicados esfera

    poltica concentram-se quase exclusivamente no decorrer da Segunda Guerra. A mesma

    raridade verificada em relao s questes mais propriamente terico-metodolgicas do

    conhecimento histrico. Bloch e Febvre no fizeram desta vasta correspondncia um lcus

    para a discusso sobre teoria da histria, tampouco para a anlise crtico-reflexiva de

    autores e obras. Essa discusso no ocorreu sistematicamente nem mesmo nos momentos

    em que os correspondentes residiram em cidades distintas, o que, em princpio, poderia

    ter motivado a transferncia para o terreno das cartas de discusses que porventura

    acontecessem nas ocasies de contato direto.

    A referncia distncia entre Bloch e Febvre remete-nos a outra questo central: a

    temporalidade das correspondncias. Observa-se que a maior concentrao de cartas se

    deu entre os anos de 1933 e 1935, quando Febvre residia em Paris e Bloch em Estrasburgo,

    o que coincide com o momento de grande fertilidade na revista Annales dHistoire

    conomique et Sociale. As trocas nos anos anteriores so mais ocasionais, concentrando-

    se especialmente em frias e recessos acadmicos, ocasies em que a necessidade de

    edio da revista e a distncia fsica colocavam a redao das cartas como um imperativo.

    Finalmente, h significativa reduo das correspondncias a partir de 1937, uma reduo

    motivada pela mudana de Marc Bloch para Paris e pelo contexto de guerra, que imps

    dificuldades ao envio e, ao mesmo tempo, foi responsvel pelo arrefecimento das

    publicaes da revista16.

    16 BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome I. Nassaince des Annales. 1928-1933. dition tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 1994; BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome II. De Strasbourg a Paris. 1934-1937. dition tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 2003a; BLOCH, Marc; FEBVRE, Lucien. Correspondance. Tome III. Les Annales en crisis. 1938-1943. dition

    27

  • Essa estrutura das correspondncias , de certa forma, refratria empatia acrtica.

    Apesar disso, buscamos realizar seu tratamento como fonte histrica definindo as

    questes e/ou temas sobre os quais depositaramos maior ateno. Entre esses temas

    destacamos a citao de autores germnicos, referncias expressas Alemanha, tanto na

    esfera poltica quanto cultural, e referncias a autores que se colocavam como mediadores

    entre o crculo dos Annales e os acadmicos alemes.

    A HISTORIOGRAFIA SOBRE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH

    A construo de um levantamento analtico da literatura dedicada ao estudo dos

    historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre um importante passo para o desenvolvimento

    desta pesquisa, mas certamente no tarefa fcil. Esses autores, apesar de produzirem

    seus trabalhos no incio do sculo XX, j figuram entre os clssicos da historiografia

    moderna. E como todo clssico, so muito estudados. De tal forma que qualquer

    levantamento, por mais completo que se proponha a ser, no conseguir englobar toda a

    produo acadmica a respeito. fundamental, portanto, construir um levantamento

    focado, centrado em uma temtica especfica. Tendo em vista que o campo de trabalho no

    qual se insere esta pesquisa a histria da historiografia, buscaremos resgatar as obras

    que estudam os historiadores franceses nessa perspectiva. Interessa-nos retratar os

    trabalhos que tm esses autores como o prprio objeto, procurando compreender

    questes como mtodos, teorias, relaes sociais, relaes institucionais e relevncia do

    conjunto da obra.

    Nosso objetivo o de que essa reviso seja mais que mera citao de obras e

    descrio de seus contedos. Deseja-se analis-las, organiz-las e avali-las criticamente.

    Propomos assim uma anlise a partir da composio de um quadro demonstrativo que,

    por meio de uma pequena mostra de obras-chave, represente a diversidade da

    bibliografia. O principal critrio de seleo das obras que compem esse painel analtico

    sua relevncia, sua centralidade no debate acadmico. A esse critrio associam-se outros,

    como a possibilidade de efetivo estudo dos textos, influenciada pela disponibilidade de

    tablie et present par Bertrand Mller. Hardcover: Fayard, 2003b.

    28

  • acesso fsico e lingustico. Esse quadro ser apresentado em trs subitens, em trs blocos

    que renem as obras a partir de nossa avaliao. O primeiro bloco se organiza pelo ttulo

    Febvre, Bloch e a Escola dos Annales, o segundo compe Revises da historiografia sobre

    os Annales e o ltimo intitula-se Novos quadros da pesquisa sobre Bloch e Febvre.

    Febvre, Bloch e a Escola dos Annales

    Um volume significativo de obras historiogrficas sobre Lucien Febvre e Marc Bloch

    investiga-os a partir de sua relao com a Escola dos Annales. Nessas obras, Febvre e

    Bloch so apresentados como pais fundadores de um novo paradigma historiogrfico,

    como promotores de uma revoluo no interior da historiografia moderna. Nesse sentido,

    o foco o novo programa intelectual, o paradigma dos Annales, e no os autores em si.

    A histria nova, organizado pelos historiadores franceses Jacques Le Goff, Jacques

    Revel e Roger Chartier, um dos primeiros e mais importantes trabalhos que compem

    esse painel17. Essa obra rene uma srie de textos publicados em 1978 e produzidos por

    importantes nomes da Escola dos Annales, como Michel Vovelle, Andr Burguire e

    Philippe Aris. Os textos se dedicam a refletir sobre temas que, de alguma maneira,

    envolviam a discusso sobre os Annales na dcada de 1970, tais como longa durao,

    estruturas, mentalidades e imaginrio. Trata-se de uma obra organizada com o objetivo de

    produzir algo como o estado da arte dessa escola, e que, em grande medida, consolidou

    a vinculao do termo histria nova com Escola dos Annales. do prprio Jacques Le

    Goff um dos textos mais relevantes da obra, e que nos interessa particularmente aqui.

    Com o mesmo ttulo da coletnea, o primeiro captulo de A histria nova prope

    um balano da historiografia que o autor chama de histria nova. Le Goff inicia o texto

    definindo sua compreenso de histria nova pela associao com a ideia de histria total.

    Assim, Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel seriam seus grandes mestres. O

    argumento do autor o de que o projeto de histria total se delinearia j em Marc Bloch e

    Lucien Febvre, com o lanamento da Annales dHistoire conomique et Sociale. Le Goff

    busca em um discurso de Febvre dos anos 1950 e na amplitude do termo social,

    17 CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    29

  • presente no ttulo da revista, a justificativa para essa designao18. Para esse autor, Febvre

    e Bloch possuam como projeto construir uma nova histria de mbito internacional,

    projeto que, se no foi pleno, teria alcanado dimenses ocidentais19. O que se afirma,

    portanto, que a histria nova foi forjada pelo grupo de intelectuais organizados em

    torno da revista20.

    Caracterizando esse grupo como promotor do esprito da histria nova contra a

    histria tradicional, e vislumbrando Febvre e Bloch como seus mestres, construiu-se uma

    imagem revolucionria para ambos. Entre 1924 e 1939 Bloch e Febvre teriam travado um

    combate contra a histria poltica, narrativa, dos acontecimentos. Para Le Goff, esses

    historiadores eram movidos pelo desejo de afirmao de duas direes inovadoras para o

    conhecimento histrico: a histria econmica e a histria social. Ainda que reconhea

    como fontes inspiradoras da Annales a Revue Historique, a Revue de Synthse, dirigida

    pelo belga Henri Berr, e a Vierteljahrschrift fr Sozial-und Wirtschaftsgeschichte Revista

    Quadrimestral de Histria Econmica e Social , Le Goff reivindica para o trabalho de Bloch

    e Febvre uma originalidade sem precedentes21.

    Esse mesmo esforo de apresentao de Marc Bloch e Lucien Febvre como

    revolucionrios intelectuais, arquitetos de uma nova forma de se produzir conhecimento

    histrico, pode ser encontrado na obra de Peter Burke, A Escola dos Annales (1929-1989): a

    revoluo francesa da historiografia, de 199022. Nesse texto, o historiador ingls pretende

    fazer uma reconstruo da histria dos Annales, oferecendo, em poucas pginas,

    condies para a compreenso do movimento como um todo. Burke diverge da

    argumentao de Le Goff ao afirmar que um novo estilo de histria j se gestava a partir

    de trabalhos isolados; na Alemanha com Gustav Schmoller e Karl Lamprecht, na Frana

    com Henri Se, Henri Hauser e Paul Mantoux. No entanto, como j sugere o ttulo da obra,

    para Burke, os Annales no tm precursores como um grupo, como um movimento com

    18 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 34-35. 19 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 45. 20 Idem, ibidem, p. 74. 21 Idem, ibidem, p. 38-40. 22 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: UNESP, 1997.

    30

  • novas propostas para a historiografia. Os anos em que Bloch e Febvre estiveram na direo

    da Annales dHistoire conomique et Sociale so descritos nos seguintes termos:

    Esse movimento pode ser dividido em trs fases. Em sua primeira fase, de 1929 a

    1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma

    guerra de guerrilhas contra a histria tradicional, a histria poltica e a histria

    dos eventos23.

    Peter Burke argumenta que a revista Annales foi planejada, desde seu incio, para

    ser mais que uma revista histrica comum. Ela pretendia exercer liderana intelectual nos

    campos da histria social e econmica, sendo porta-voz da nova abordagem histrica

    interdisciplinar24. Assim como Le Goff25, Burke parte do relato de Lucien Febvre para

    afirmar que os Annales comearam como uma revista de seita hertica, que pouco a

    pouco se converteu no centro de uma escola histrica. As transferncias de Bloch e Febvre

    de Estrasburgo para Paris, nos anos 1930, representariam sinais evidentes do sucesso do

    movimento dos Annales26.

    Entre esses textos que enfatizam a revoluo intelectual produzida por Bloch e

    Febvre, parece-nos estar, tambm, o estudo produzido por Jacques Revel. Em 1979, Revel

    publicou na Annales: conomies, Socits, Civilisations artigo intitulado Histoire et

    sciences sociales: les paradigmes des Annales que, apesar de contemporneo ao artigo

    de Le Goff, traz quanto a ele diferenas importantes27. Jacques Revel se props a discutir

    um ponto polmico que tambm circundava o grupo dos Annales na dcada de 1970: a

    unidade desse movimento intelectual28. Seu argumento que os Annales reclamam para

    23 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: UNESP, 1997. 24 Idem, ibidem, p. 33. 25 LE GOFF. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005. 26 BURKE, Peter. Op. Cit., p. 38-43. 27 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979. 28 Essa discusso sobre a unidade, ou no, do movimento dos Annales em torno de um paradigma, proposta por Jacques Revel, encontra-se tambm em Stoianovich. Cf. STOIANOVICH, Troian. French Historical method: the Annales paradigm. Ithaca: Cornnel University Press, 1976.

    31

  • si uma identidade coletiva, reivindicam uma preservao da origem que parece esconder

    verdadeiros desacordos.

    No que se refere abordagem dos primeiros anos dos Annales, e particularmente

    de Lucien Febvre e Marc Bloch, Revel segue na direo apontada pelos autores referidos

    ao afirmar que a origem dos Annales est na ruptura fundacional de 1929, cuja matriz

    terica seria a obra do socilogo Franois Simiand, Mtodo histrico e cincia social

    (1903). Contudo, Revel distancia-se, por exemplo, de Le Goff, ao admitir que a

    generalizao positivista e historicizante, proposta por Simiand e repetida

    sistematicamente para falar de uma suposta histria tradicional, uma incorreo29.

    Esse autor segue tambm a direo que Peter Burke tomar mais tarde,

    reconhecendo que a tentativa de organizar a produo historiogrfica em torno das

    cincias sociais no era original, e j estava presente na Revue de Synthse com Henri Berr.

    No entanto, Revel tambm se distancia de Burke na justificativa do sucesso dos Annales.

    Burke refere-se aos primeiros anos da revista como uma guerra de guerrilhas, que s

    alcanar o establishment historiogrfico aps a Segunda Guerra30. Jacques Revel, por

    outro lado, sustenta que a legitimidade acadmica faltara Revue de Synthse, que

    estivera s margens das instituies universitrias, mas no Annales31. Enfatiza ainda que

    seus fundadores no eram marginais, mas historiadores reconhecidos, que se

    beneficiaram tambm do apadrinhamento prestigioso de Henri Pirenne32.

    Para nossos interesses, um dos aspectos mais substantivos desse texto a

    afirmao de que ainda no havia se produzido uma efetiva histria do movimento.

    Segundo Revel, a maior parte dos estudos consagrados aos Annales parte dos discursos

    29 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1360-1363. 30 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revoluo francesa da historiografia. So Paulo: Unesp, 1997, p. 11-15. 31 REVEL, Jacques.Op. Cit, p.1360-1376. 32 Faz-se necessria uma observao. Em 1977, como comunicao para um encontro do Fernand Braudel Center, nos Estados Unidos, Jacques Revel produziu um texto com a mesma estrutura do texto publicado na revista Annales em 1979, o qual utilizamos aqui. Entre os dois textos h pouqussimas diferenas, no entanto, uma se revela mais substantiva. Enquanto no artigo de 1979 Revel enftico ao apresentar Febvre e Bloch como historiadores reconhecidos e no como marginais, no texto de 1977 admite exatamente o contrrio, nos seguintes termos: small marginal group of professors of the University of Strasbourg, who at the end of the 1920s, took up arms against the citadel of the university. [pequeno e marginal grupo de professores da Universidade de Estrasburgo, que ao fim da dcada de 1920, pegou em armas contra a cidadela da universidade. (Traduo da autora)]. Cf. REVEL, Jacques. The Annales: Continuities and Discontinuities. Review, New York, v. 1, n. 3-4, p. 9-18, 1978, p. 10.

    32

  • que os membros produziram sobre si mesmos, compondo assim estudos ideolgicos e

    abstratos33. Esse rtulo nos parece definir bem o texto de Jacques Le Goff, e mesmo a obra

    de Peter Burke, escrita mais de uma dcada depois. Especialmente no que se refere aos

    primeiros anos da Annales dHistoire conomique et Sociale, um dos recursos mais

    utilizados como fonte so os comentrios de Lucien Febvre sobre a revista, retirados de

    discursos e conferncias. Revel admite ser seu prprio ensaio constitudo apenas por

    hipteses gerais, que no so fruto de pesquisa histrica, e segue seu diagnstico

    apontando que,

    [...] nous ignorons presque tout de la sociologie du mouvement, de la

    composition des reseaux successif et sediments qui ont t, un moment ou

    un outre, en tout ou en partie associs aux Annales [...] Cette recherche nest pas

    faite34.

    O diagnstico de Jacques Revel sobre os estudos dedicados aos Annales

    semelhante ao de seu colega Andr Burguire. Burguire, em texto tambm publicado na

    revista Annales, em 1979, afirmava que a escrita dos Annales adquirira um carisma

    surpreendente, transformara-se em tradio. Esse carisma motivou o aprisionamento das

    anlises a vulgatas, sem o devido tratamento como objeto de pesquisa histrica35. Nesse

    sentido, novamente afirma-se a necessidade de investigao desse movimento

    historiogrfico, e o prprio Burguire se prope a inici-la, resgatando alguns aspectos da

    paisagem intelectual do nascimento dos Annales.

    Burguire inicia suas referncias a Marc Bloch e Lucien Febvre procurando afastar a

    ideia de que fossem autores marginais, excludos do establishment historiogrfico e

    universitrio. Distanciando-se das anlises de Jacques Le Goff e Peter Burke e

    aproximando-se de Jacques Revel, Burguire sustenta que Bloch e Febvre eram

    33 REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1361. 34 [] ns ignoramos quase que totalmente a sociologia do movimento, a composio de redes sucessivas e sedimentadas que foram, em um momento ou outro, total ou parcialmente associadas aos Annales[...] Essa pesquisa ainda no foi feita. (Traduo da autora). REVEL, Jacques. Les paradigmes des Annales. Annales: economies, socits, civilisations, Paris, Armand Colin (6), nov./dc., p. 1360-1376, 1979, p. 1361-1362. 35 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999, p. 40.

    33

  • herdeiros de posies importantes, eram historiadores includos. O reconhecimento de

    ambos poderia ser visualizado no fato de publicarem em revistas importantes e

    lecionarem na Universidade de Estrasburgo, no momento a segunda mais importante

    instituio universitria da Frana, tanto numrica quanto simbolicamente36. Burguire

    insiste que a marginalidade em torno dos fundadores da Annales seria mais ttica que real.

    Argumenta-se que Febvre e Bloch buscaram meios extrauniversitrios no por estarem

    margem da estrutura acadmica, mas por visualizarem nesses meios um lcus privilegiado

    para interpelar a comunidade de historiadores, para criticar suas certezas.

    Ao que nos parece, h maior distncia entre o texto de Burguire e os demais

    trabalhos referenciados. Esse autor afirma a presena de um projeto de hegemonia

    acadmica nos anseios de Febvre e Bloch. Associado a isso, defende que no se tinha um

    grupo formado por orientaes comuns, reunido em torno de proposies. Tratava-se,

    antes, de um grupo que definiu as diretrizes que recusava, particularmente a histria

    poltica, mas que no traou com a mesma nfase propostas, parmetros terico-

    conceituais e metodolgicos. Febvre e Bloch teriam feito referncias ao esprito dos

    Annales, mas no exposto sua linha doutrinal. Nesse raciocnio justifica-se, por exemplo,

    a importncia da seo de resenhas para a revista Annales, assim como o tom de polmica

    nelas empregado37.

    As apresentaes dos textos de Revel e Burguire como ltimas referncias do

    primeiro bloco so propositais38. Apesar de serem artigos do final da dcada de 1970,

    montados na mesma estrutura dos demais textos, eles apontam para aspectos relevantes,

    que nos encaminham para a organizao de um segundo bloco. Revel e Burguire j

    retratavam a necessidade de produzir estudos propriamente histricos sobre os Annales,

    que se baseassem em pesquisa, levantamento de dados e reflexo crtica. De tal maneira

    que seus trabalhos podem ser pensados na transio dessas duas categorias, pois criticam

    36 BURGUIRE, Andr. Histoire dune histoire: la naissance des Annales. In: CLARK, Stuart (ed.) The Annales School Critical Assessments. v. I. London: Routledge, 1999, p. 42-43. 37 Idem, ibidem, p. 49. 38 Para outros trabalhos relevantes que estudam Marc Bloch e Lucien Febvre com perspectivas semelhantes s apresentadas nesse primeiro conjunto, cf. MANN, H. D. L. Febvre, la pense vivante dun historien. Paris: Armand Colin, 1971; MASSICOTE, G. Lhistoire problme: la mthode de L. Febvre. Quebec/Paris, Edisem/Maloine, 1981; REIS, Jos Carlos. Nouvelle Histoire e tempo histrico: a contribuio de Febvre, Bloch e Braudel. So Paulo: tica, 1996; REIS, Jos Carlos. Escola dos Annales: a inovao em histria. So Paulo: Paz e Terra, 2000.

    34

  • o cenrio historiogrfico em torno dos Annales e reconhecem a necessidade de um novo

    campo de investigao, mas ao mesmo tempo no assumem essa tarefa, limitando-se, nos

    prprios termos de Revel, a expor hipteses gerais.

    Revises da historiografia sobre os Annales Especialmente a partir da dcada de 1980 assiste-se ao desenvolvimento de

    trabalhos que exploram os pontos sinalizados por Jacques Revel e Andr Burguire. Nesse

    sentido, buscamos reunir nesse segundo grupo obras que se aproximam por promoverem

    uma reviso da produo historiogrfica sobre os Annales. Agrupamos sob esse ttulo

    sobretudo as obras que se fundamentam em trabalhos de investigao especficos, que se

    propem a historicizar os Annales. Tendo alguns temas comuns, em maior ou menor grau,

    eles discutem as mudanas promovidas pelo grupo, colocam em questo a fundao de

    um novo paradigma, questionam sua unidade e relativizam o entendimento dos primeiros

    anos da revista como conformadores de uma escola historiogrfica.

    Um dos primeiros trabalhos a reivindicar para si a proposta ensaiada por Jacques

    Revel e Andr Burguire A histria em migalhas: dos Annales nova histria, do francs

    Franois Dosse. Publicao de 1987, essa obra tem como tema central a busca de

    respostas para o questionamento sobre ser ou no a nova histria herdeira do

    movimento dos Annales. Busca-se, nos termos do autor, produzir a historicizao do

    paradigma dos Annales, retraar sua histria em seu aspecto estratgico. A argumentao

    de A histria em migalhas de que os Annales seriam uma escola marcada pelo

    ecumenismo epistemolgico e por uma estratgia de alianas, conjuno que garantiria

    seu sucesso. Os historiadores ligados revista Annales nunca possuram, explcita ou

    implicitamente, um eixo terico claro. Sua metodologia seria a aglutinao de

    procedimentos e linguagens das cincias sociais vizinhas. O sucesso do grupo, nos termos

    do prprio Dosse, revelar-se-ia na posio hegemnica que conquistara na produo

    histrica francesa, ocupando desde os laboratrios de pesquisa at os circuitos de

    distribuio de obras39.

    39 DOSSE, Franois. Parte I: Clio revisitada. In: Idem. A histria em migalhas dos Annales a Nouvelle Histoire. So Paulo: Edusc, 2003, p. 19-26.

    35

  • Tratando do tempo de Marc Bloch e Lucien Febvre, que nos interessa mais

    particularmente, Dosse caracteriza-o como um momento de deslocamento do campo

    poltico para o econmico. Febvre e Bloch fariam parte de um grupo que fundamentava

    sua existncia na rejeio da histria poltica. Outro ponto explorado nessa obra a

    originalidade dos esforos de Bloch e Febvre. Para Dosse, com esses historiadores

    elaborou-se um novo discurso para a histria, fundado na histria-problema e na

    insistncia da relao presente-passado como um instrumento heurstico. No entanto, no

    se poderia derivar desses aspectos um programa revolucionrio. H, portanto, um

    questionamento do diagnstico de revoluo historiogrfica com os Annales. A

    argumentao de Dosse recorre afirmao de Andr Burguire de que os Annales seriam

    mais originais pelas formas de afirmao de seu programa que propriamente por seu

    contedo.

    A histria em migalhas uma obra importante no cenrio de questionamentos ao

    paradigma dos Annales e de busca de sua historicizao. Trata-se de um trabalho que

    investigou redes de relaes em torno dos autores, analisou relaes polticas e

    acadmicas e buscou uma diversidade documental. Por outro lado, tambm marcado

    por um tom provocador, que contribuiu para seu sucesso editorial e para a aglutinao de

    uma srie de debates em seu entorno. Entre esses debates o mais reluzente talvez seja a

    querela com Jacques Le Goff. Em seu prefcio para a reedio de A histria nova, em 1989,

    Le Goff reagiu obra de Dosse, ainda que indiretamente, acusando-a de blasfemar contra

    os Annales, de seu autor ser um dos orquestradores da crise da histria40. De fato, no se

    pode negar que a obra de Dosse motiva polmicas e em certo sentido dificulta discusses

    menos apaixonadas.

    Nessa mesma linha de investigao esto os trabalhos de Lutz Raphael. Historiador

    alemo que nas duas ltimas dcadas se dedicou investigao da histria da

    historiografia dos Annales, Lutz Raphael construiu um artigo analisando o

    reposicionamento da historiografia sobre os Annales. Intitulado Von der

    wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegenonie? Die Geschichte der Nouvelle

    40 LE GOFF, Jacques. A histria nova. In: CHARTIER, Roger; LE GOFF, Jacques & REVEL, Jacques (org.). A histria nova. So Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5-7.

    36

  • Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge41 (Da inovao cientfica hegemonia

    cultural? A histria da Nouvelle histoire no espelho de novos estudos gerais)42, o artigo de

    Raphael inicia-se com a afirmao de que apesar das iniciativas desenvolvidas a partir dos

    anos 1980, a revista e a escola dos Annales no teriam sido ainda devidamente estudadas.

    Esse trabalho de Raphael particularmente importante para nossa perspectiva porque nos

    aponta outros trs nomes que contribuem para a reviso dessa historiografia. So eles,

    Herv Couteau-Bgarie, Olivier Dumoulin e Pierre Bourdieu.

    O trabalho de Couteau-Bgarie43 , nos termos de Raphael, prximo ao de Franois

    Dosse. As obras desses dois autores seriam importantes, principalmente nas anlises sobre

    Marc Bloch e Lucien Febvre, por questionarem as deficincias programticas do que se

    convencionou designar como combates pela histria. Tanto a obra de Dosse quanto a de

    Couteau-Bgarie, contudo, seriam ainda abstratas e arbitrrias, no fazendo efetiva anlise

    dos contextos em que atuavam esses autores e de suas respectivas conexes.

    A contribuio de Olivier Dumoulin para a historiografia dos Annales, por sua vez,

    partiria de uma perspectiva distinta. O trabalho de Dumoulin44 no focado no grupo dos

    Annales, e sim na gerao de historiadores franceses que viveu o perodo entreguerras.

    Raphael aponta que a partir de um estudo prosopogrfico, de uma histria social e

    quantitativa, Dumoulin promoveu uma remontagem do contexto da historiografia

    francesa dos anos de 1930. Essa reconstruo, que inclua Marc Bloch e Lucien Febvre,

    ajudaria a compreender o campo e as formas de atuao desses autores. O autor-chave

    para o desenvolvimento das novas pesquisas sobre os Annales, na avaliao de Lutz

    Raphael, seria Pierre Bourdieu. Bourdieu, com suas pesquisas sobre sociologia da

    educao e da cultura e sobre a estrutura universitria na Frana, seria fundamental para a

    compreenso do desenvolvimento da Escola dos Annales desde Marc Bloch e Lucien

    Febre, mas principalmente a partir da dcada de 1950, momento em que se deu sua

    institucionalizao na VI Seo da cole Pratique des Hautes tudes, em Paris.

    41 RAPHAEL, Lutz. Von der wissenschaftilchen Innovation zur kulturellen Hegemonie? Die Geschichte der Nouvelle Histoire im Spiegel neuerer Gesamtdarstellunge. Francia, Paris, v. 16, n. 3, p.120-127, 1989. 42 Agradeo a gentil colaborao do meu orientador, Prof. Dr. Srgio Ricardo da Mata, que traduziu o texto original, viabilizando minha leitura. 43 Cf. COUTEAU-BGARIE, Herv. Le phnomene Nouvelle Histoire: stratgie et ideologie des nouveaux historiens. Paris: Economica, 1983. 44 Cf. DUMOULIN, Olivier. Profession historien: 1919-1939. Thse de 3e cycle. Paris, 1983.

    37

  • importante esclarecer ainda que o prprio Lutz Raphael representa um dos mais

    importantes nomes da renovao dessa historiografia. Die Erben von Bloch und Febvre.

    Annales - Geschichtsschreibung und nouvelle histoire in Frankreich 1945-1980 (Os

    herdeiros de Bloch e Febvre. A historiografia dos Annales e a nouvelle histoire na Frana

    1945-1980) publicada em Stuttgart em 1994, fruto de sua tese de habilitao45. O

    objetivo da obra era se afastar de uma histria hagiogrfica dos Annales, reconstituir em

    sua complexidade o campo constitudo pelos historiadores franceses. Fundamentando-se

    na anlise social do grupo e em sua produo intelectual, com marcada influncia das

    teorias de Pierre Bourdieu, Raphael estuda os Annales no perodo ps-Segunda Guerra a

    partir da produo cientfica dos autores, de correspondncias e outros materiais de

    arquivo, tendo como mtodo a prosopografia. Nesse sentido, trata-se menos de uma

    histria das ideias e mais de uma histria social de um campo cultural.

    Com essa investigao, Raphael defende algumas teses que representam uma

    ruptura, um distanciamento muito significativo dos demais trabalhos sobre os Annales

    referenciados aqui. Uma das linhas mestras do estudo a demonstrao da

    heterogeneidade e da ambiguidade do movimento dos Annales. Essa heterogeneidade se

    revelaria, por exemplo, na unio de personagens com projetos intelectuais distantes um

    do outro, como Fernand Braudel e Ernest Labrousse, ou mesmo Marc Bloch Lucien Febvre.

    Para Raphael, o momento braudeliano representou uma tentativa de esvanecer essa

    heterogeneidade, atravs da fabricao de um mito de origem que conferiria uma

    coerncia no existente na realidade. Raphael relativiza essa prpria origem, a ideia dos

    Annales como ruptura com as tradies historicistas, chegando a falar em um

    historicismo no tempo das cincias sociais. Sua tese que se, por um lado, Bloch e

    Febvre se declaram inovadores, por outro, eles se inscrevem muito fortemente nas

    instituies e na tradio intelectual francesa. O ano de 1929 no poderia ser visto como

    45 importante chamarmos ateno para a ausncia de tradues dessa obra de Lutz Raphael. Trata-se de uma publicao que no passou despercebida em solo francs, sendo registrada em resenhas que inclusive reconheceram os esforos da pesquisa. Essa ausncia muito significativa tendo em vista o interesse da academia francesa da segunda metade do sculo XX sobre a histria dos Annales, que na maioria dos casos sua prpria histria. Ao que nos parece, h aqui uma indicao de um cenrio ainda resistente a interpretaes crticas sobre os Annales, particularmente interpretaes vindas de acadmicos estrangeiros. Desta forma, nosso acesso a essa obra feito a partir de resenhas produzidas a seu respeito. A relevncia desse trabalho nos fez adotar esse procedimento, ainda que precrio. Buscando minimizar essa precariedade e evitando produzir uma leitura enviesada, exploramos mais de uma resenha e nos detivemos mais em seus aspectos descritivos e menos em seus aspectos qualitativos.

    38

  • inaugurao de um paradigma histrico, ele representaria, mais modestamente, a

    definio de uma prtica do mtier do historiador.

    Essa obra trata ainda do processo de institucionalizao e legitimao dos Annales.

    Raphael argumenta que a prpria interdisciplinaridade, uma das caractersticas mais

    apontadas como marca dos Annales, no teria, na realidade, a mesma efetividade que

    adquirira nos discursos. Os Annales representariam, assim, uma hegemonia institucional, e

    no uma renovao intelectual. Mesmo porque no haveria ali um programa terico,

    ferramentas tericas claras e definidas, mas uma bricolagem conceitual. O historiador

    alemo sustenta que essa escola marcada por uma fragilidade terica, em grande parte

    resultado da tendncia empiricista da histria-problema46.

    Novos quadros da pesquisa sobre Bloch e Febvre

    Delimitamos aqui um ltimo bloco, composto por trabalhos que nos ltimos anos

    se dedicam mais diretamente ao estudo de Marc Bloch e Lucien Febvre. Este bloco pode

    ser compreendido como uma ramificao do anterior, na medida em que os trabalhos so

    marcados pelo mesmo desejo de historicizao, contribuem para o revisionismo da

    historiografia sobre os Annales e, por vezes, so motivados pelo desejo de melhor

    compreender essa escola francesa. No entanto, as obras que discutiremos formam

    tambm um conjunto parte, pois seus objetos de pesquisa so construdos em torno dos

    dois historiadores, e no da Escola dos Annales em si. Assim, interessam-se, por exemplo,

    por conhecer aspectos de suas trajetrias de vida, suas relaes acadmicas, seu

    posicionamento no meio historiogrfico francs e suas relaes com outros contextos

    historiogrficos.

    Nessa direo de reconhecer Marc Bloch e Lucien Febvre como objetos de pesquisa

    histrica, tem-se um trabalho que no exatamente um estudo de histria da

    historiografia. Em 1989 a historiadora norte-americana Carole Fink, que se dedica histria

    46 KOTT, Sandrine. Raphael Lutz, Die Erben von Bloch und Febvre em "Annales" Geschichtsschreibung und "nouvelle histoire" in Frankreich 1945-1980. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 106, n. 1, p. 123-127, 1995; SOLCHANY, Jean. Raphael Lutz, Die Erben von Bloch und Febvre, em "Annales" Geschichtsschreibung und "nouvelle histoire" in Frankreich 1945-1980. Vingtime Sicle. Revue d'histoire, Paris, v. 51, n. 1, p. 177, 1996.

    39

  • contempornea, publicou Marc Bloch uma vida na histria47. Trata-se de um trabalho

    biogrfico, em que se busca recuperar a histria do historiador e do cidado francs Marc

    Bloch. Essa a primeira biografia sobre Marc Bloch, cuja relevncia pode ser atribuda ao

    texto fruto de significativo trabalho arquivstico48. Carole Fink explorou vasta

    documentao at aquele momento no publicada e pouco trabalhada, oferecendo assim

    novos caminhos de pesquisa.

    Interessa-nos apreender o retrato que essa obra elabora de Marc Bloch como

    historiador. Carole Fink compe anlises das principais obras de Bloch relacionando-as

    com seu contexto de vida pessoal. A narrativa ressalta a importncia do relacionamento

    com Lucien Febvre tanto para a vida acadmica quanto pessoal de Marc Bloch. Com esse

    procedimento, so oferecidas informaes relevantes sobre o prprio Febvre, que

    persistem pouco exploradas. O mais interessante parece-nos ser a investigao dos

    estudos de formao, o resgate de algumas das leituras de Bloch, de suas relaes

    acadmicas e institucionais e seus dilogos com outros autores. Nesse aspecto, contudo, o

    texto nos deixa espera de maior profundidade. Carole Fink no realiza esse

    procedimento de recomposio de um contexto fundamental para a compreenso do

    Marc Bloch historiador.

    Apesar de no ser seu objetivo central, Marc Bloch uma vida na histria parece-

    nos trazer contribuies tambm para a histria da historiografia dos Annales. Ao analisar

    o papel da Annales dHistoire conomique et Sociale na vida de Marc Bloch, a obra

    investiga o contexto de fundao da revista, o papel de seus diretores, suas dimenses,

    formataes e pretenses. E as concluses que emergem dessa investigao so, em

    muitos aspectos, divergentes daquelas comumente apresentadas sobre os Annales. Fink

    apresenta uma posio distinta, por exemplo, quanto ao projeto e aos objetivos da revista.

    A revista representava, em considervel medida, uma estratgia conjunta,

    dirigida no tanto para um objetivo de hegemonia ou de preeminncia, mas

    para uma apresentao direta das credenciais profissionais de ambos [Febvre e

    47 FINK, Carole. Marc Bloch. Uma vida na histria. Lisboa: Celta Editora, 1997. 48 A biografia de Carole Fink, originalmente publicada em ingls, tem tradues para o francs, o espanhol e o portugus. Para outro trabalho biogrfico de Bloch, mais recente, cf. DUMOULIN, Olivier. Marc Bloch. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 2000.

    40

  • Bloch], que preparava o regresso de dois historiadores de talento ao local a que

    aspiravam49.

    H, como se pode ver, a refutao da ideia de fundao de um novo paradigma

    historiogrfico, defendida, por exemplo, por Jacques Le Goff50, e tambm de um projeto

    de hegemonia por parte de Bloch e Febvre com a inaugurao da revista, apresentada por

    Andr Burguire51. Carole Fink argumenta que o projeto de fundao de uma nova revista

    de histria estava mais associado aos projetos pessoais de seus diretores de se tornarem

    docentes em Paris que a um desejo de revolucionar a escrita da histria. A bigrafa de

    Bloch afirma ainda que as reivindicaes que colocam Bloch e Febvre como fundadores de

    uma nova escola historiogrfica conformam uma anlise mitolgica do

    empreendimento dos historiadores franceses em 1929.

    Quando, no fim da dcada de 60 e nos anos 70, o sucessor dos Annales atingiu

    projeo internacional, atribuiu-se um estatuto quase lendrio aos primeiros

    dez anos da revista. As lutas e realizaes dos fundadores e tambm a reao

    dos seus opositores foram geralmente exageradas pelos que apostavam em

    apor