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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (eds Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 17, n. 1, p. 125-152, jan.-jun. 2007. A “Fábula do Mundo” e o Significado Metafísico da Ciência Cartesiana 1 MICHEL FICHANT Universidade de Paris IV- Sorbonne PARIS, FRANCE Tradução de Fábio Antonio da Costa Revisão da tradução de Marcos André Gleizer Sob o título de ciência cartesiana, trataremos aqui exclusivamente da física, que, diferentemente das matemáticas, pertencia para Descartes à “filosofia”: segundo a imagem da Carta-Prefácio à edição francesa dos Princípios, ela constitui o tronco da árvore que representa a filosofia em seu conjunto. É a ela que Descartes fazia referência quando escrevia, na data de 8 de outubro de 1629: “Agora tomei partido a respeito de todos os fundamentos da filosofia” (AT I, 25). É também nesse sentido que a Dióptrica é qualificada como uma obra que trata de “um assunto mistura- do de Filosofia e de Matemáticas”, enquanto que os Meteoros têm “um (assunto) puramente filosófico”, e a Geometria, evidentemente, “um (assunto) puramente matemático” (AT I, 370). Essa caracterização dos três Ensaios de 1637, diga-se de passagem, marca bem que para Descartes, do ponto de vista das disciplinas e de sua tópica no conjunto do saber, filosofia e matemáticas, ao menos aquelas que ele chama também de “puras e abstratas”, permanecem dois empreendimentos separados por sua visada cognitiva e o estatuto de seu objeto. Se uma mistura ou uma união são concebíveis, e mesmo exigidas no que se chamou de um “ma- 1 Este estudo foi extraído do livro de Michel Fichant, Science et métaphysique dans Descartes et Leibniz. Col. Épiméthée, Paris: PUF, 1988, p. 59-84. Reeditado aqui com a permissão do autor.

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  • Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriands Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (eds

    Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Srie 3, v. 17, n. 1, p. 125-152, jan.-jun. 2007.

    A Fbula do Mundo e o Significado Metafsico da Cincia Cartesiana1

    MICHEL FICHANT Universidade de Paris IV- Sorbonne PARIS, FRANCE Traduo de Fbio Antonio da Costa Reviso da traduo de Marcos Andr Gleizer

    Sob o ttulo de cincia cartesiana, trataremos aqui exclusivamente

    da fsica, que, diferentemente das matemticas, pertencia para Descartes filosofia: segundo a imagem da Carta-Prefcio edio francesa dos Princpios, ela constitui o tronco da rvore que representa a filosofia em seu conjunto. a ela que Descartes fazia referncia quando escrevia, na data de 8 de outubro de 1629: Agora tomei partido a respeito de todos os fundamentos da filosofia (AT I, 25). tambm nesse sentido que a Diptrica qualificada como uma obra que trata de um assunto mistura-do de Filosofia e de Matemticas, enquanto que os Meteoros tm um (assunto) puramente filosfico, e a Geometria, evidentemente, um (assunto) puramente matemtico (AT I, 370). Essa caracterizao dos trs Ensaios de 1637, diga-se de passagem, marca bem que para Descartes, do ponto de vista das disciplinas e de sua tpica no conjunto do saber, filosofia e matemticas, ao menos aquelas que ele chama tambm de puras e abstratas, permanecem dois empreendimentos separados por sua visada cognitiva e o estatuto de seu objeto. Se uma mistura ou uma unio so concebveis, e mesmo exigidas no que se chamou de um ma-

    1 Este estudo foi extrado do livro de Michel Fichant, Science et mtaphysique

    dans Descartes et Leibniz. Col. pimthe, Paris: PUF, 1988, p. 59-84. Reeditado aqui com a permisso do autor.

  • Michel Fichant

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    tematismo universal (Gilson), isso somente pode ocorrer a partir dessa diviso inicial. Eis porque no h lugar atribudo s matemticas como tais na imagem da rvore.

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    Devemos a Charles Renouvier uma frase que caracteriza de forma lacnica e sugestiva essa cincia, tanto em sua ambio como em seu resultado. Ela reproduzida por Octave Hamelin como concluso de dois captulos consagrados teoria do movimento e teoria da matria no seu curso sobre O Sistema de Descartes, publicado em 1911:

    Ainda que Descartes nada tivesse descoberto e a teoria dos turbilhes fosse completamente intil, lhe restaria sempre o mrito de ter concebido em sua generalidade e com plena conscincia de seu alcance o projeto de uma explicao matemtica dos fenmenos, e precisaramos dizer com Renouvier que a fsica de Descartes uma obra filosoficamente bem-sucedida.2

    evidentemente tentador para ns, hoje, ler essa frmula deixan-

    do transpassar nela uma suspeita de ironia. O sucesso filosfico seria ento compreendido como a compensao de um fracasso propriamente cientfico, e poderemos ser tentados a julgar essa contrapartida como bastante irrisria em comparao com aquilo que foi o movimento efeti-vo e criador da histria da cincia fsica aps Descartes.

    Ocorre que esse processo foi cedo instrudo: Christian Huygens lhe deu os argumentos que se tornaro clssicos, censurando Descartes por ter sabido fazer com que tomassem suas conjecturas e fices por verdades, e comparando a leitura dos seus Princpios de filosofia quela de

    2 Octave Hamelin, Le Systme de Descartes, publicado por L. Robin, Paris, Al-

    can, 1911, p.340. A citao de Renouvier retirada da sua Philosophie analytique de lhistoire, t. III, p. 298.

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    um romance3. Voltaire logo popularizar essa comparao, ratificando o sucesso da mecnica racional de Newton que parecia dever condenar definitivamente a fsica de Descartes vaidade de um produto arbitrrio de uma inveno aventurosa:

    Descartes... fez o contrrio do que se devia fazer: em vez de estudar a na-tureza, quis adivinh-la. Ele era o maior gemetra do seu sculo; mas a geometria deixa o esprito como o encontra. O de Descartes era dema-siadamente inclinado inveno. O primeiro dos matemticos fez to-somente romances de filosofia. Um homem que desprezou as experin-cias, que jamais citou Galileu, que queria construir sem materiais, somen-te podia erguer um edifcio imaginrio.4

    Alhures, Voltaire se arrisca a procurar na suposta atitude de New-

    ton uma prova do seu desprezo:

    No h em todos os edifcios imaginrios de Descartes uma nica pedra sobre a qual Newton tenha construdo... ele jamais o seguiu, nem expli-cou, nem mesmo refutou; mal o conhecia.5

    Voltaire indica de passagem outro considerando do julgamento re-

    trospectivo da cincia cartesiana: o contraste exibido entre o incontest-vel sucesso matemtico e o impasse da fsica6. A constatao dessa dis-

    3 Christian Huygens, uvres compltes, editadas pela Sociedade neerlandesa de

    cincias, t. X, p. 404. 4 Le Sicle de Louis XIV, cap. XXXI, citado na edio das Lettres philosophiques

    ou lettres anglaise, por Raymond Naves, Paris, Garnier, 1956, p. 229. Conferir evidentemente o conjunto da Carta XIV, assim como o artigo Cartesianismo das Questions sur lEncyclopdie: no h uma s novidade na fsica de Descartes que no fosse um erro. (Ibid., p. 230)

    5 Artigo Cartesianismo (ibid). 6 Seus erros eram tanto mais condenveis visto que ele tinha, para se condu-

    zir no labirinto da fsica, um fio que Aristteles no podia ter, aquele das expe-rincias, as descobertas de Galileu, de Torricelli, de Guericke, etc. e sobretudo sua prpria geometria (ibid.)

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    tncia provoca surpresa diante do que aparece como um paradoxo in-signe: tudo se passa como se Descartes no tivesse sabido tirar na fsica o benefcio de sua prpria inveno da geometria analtica. Mais prximo de ns, Gaston Bachelard aquele que deu a formulao mais forte dessa avaliao negativa:

    O mundo cartesiano da extenso no , a ttulo algum, o mundo da me-dida. A fsica de Descartes uma fsica do objeto no mensurado, uma f-sica sem equaes, uma representao geomtrica sem escala designada, sem matemtica. A fsica de Descartes de forma alguma pertence, na acepo moderna do termo, ao que chamamos de Fsica matemtica... Deixemos portanto a fsica de Descartes na sua solido histrica.7

    Nesse julgamento h desproporo entre a constatao atual e a

    conseqncia histrica. Com efeito, incontestvel que a fsica de Des-cartes em nada diz respeito ao que chamamos, hoje, de fsica matemtica. Mas ser necessrio por isso confin-la em um exlio que a privaria de toda positividade no curso da cincia? Outras observaes sugerem que as coisas no so to simples.

    O prprio Gaston Bachelard nos traz um indcio disso: na mesma obra, uma centena de pginas aps o que parecia anunciar uma invalidao definitiva, e desta vez a propsito da lenta elaborao do princpio de inrcia, ele escreve ainda isto, que exprime uma apreciao bastante dife-rente:

    Se ns escrevssemos uma histria da mecnica, seria necessrio rastrear a formao do conceito de quantidade de movimento. Ns teramos que indicar, em particular, o papel de princpio geral que a conservao da quantidade de movimento tem na Fsica cartesiana. Em seguida, teramos que mostrar o que permanece vlido, dentre as vises gerais de Descar-tes, na mecnica moderna sob os nomes de teorema da constncia da projeo da quantidade de movimento sobre um eixo fixo e do teorema da constncia do momento da quantidade de movimento em torno de um eixo. (Op. cit., p.131)

    7 G. Bachelard, LActivit rationaliste de la physique contemporaine, Paris, PUF,

    1951, p. 35.

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    Assim, Descartes teria ao menos contribudo positivamente para o estabelecimento de certos conceitos fundamentais da fsica clssica. Nes-se contexto, Bachelard cita os trabalhos de Koyr, que tinha reconhecido a Descartes, nos seus tudes galilennes, o verdadeiro mrito da primeira formulao, em toda a sua clareza e generalidade, do princpio de inrcia, que somente uma lenda tenaz atribui a Galileu. Essa lenda podia se im-por tanto mais por ter sido promulgada pelo prprio Newton: com efei-to, nos Philosophiae naturalis principia mathematica, Newton faz seguir o enunciado de suas trs leis do movimento, e dos seus corolrios, de um comentrio onde designa Galileu como o primeiro inventor e utilizador das duas primeiras (dentre as quais a lei da inrcia). Mas, se estudamos os manuscritos de juventude de Newton, como hoje podemos faz-lo, des-cobrimos que em realidade, e contrariamente aos dizeres imprudentes de Voltaire, Newton comeou, assim como alis Christian Huygens, por ler Descartes dele retirando algum proveito, seja pelos emprstimos, mesmo provisrios, que dele fez, seja pelo apoio que tomava sobre crticas que supunham ao menos que esta leitura valia a pena8. De modo que dAlembert sem dvida estava mais prximo, deste ponto de vista, da realidade histrica, quando chegava ao ponto de sustentar que o prprio newtonianismo era o fruto da fsica de um filsofo que, dizia ele, talvez aquele, dos sbios do ltimo sculo, a quem ns mais devemos9

    Mas, sem dvida, convm ir mais alm para dissipar as incertezas que os julgamentos flutuantes da histria da cincia suscitam. O que significa, precisamente, o paradoxo segundo o qual Descartes no teria sabido extrair na fsica o benefcio dos seus prprios trabalhos de geome-tria? No ser, antes, que ele no o quis, e que somos enganados pelo equvoco das palavras, por falta de reconhecer suas variaes de signifi-cao na histria, ou, o que mais grave, por uma leitura incompleta dos

    8 Cf. particularmente J. Herivel, The Background to Newtons Principia, Oxford,

    1965. 9 Artigo Cartesianismo da Encyclopdie ou Dictionnaire raisonn des sciences et des arts.

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    textos? assim que frequentemente citam a famosa declarao de Des-cartes assegurando que toda (a sua) Fsica nada mais que Geometria. Mas esquecem de citar o trecho inteiro, que d frmula uma significa-o bem diferente daquela que o enunciado isolado sugere a um leitor moderno. Pois eis aqui o que realmente escrevia Descartes:

    ... eu no quero mais estudar geometria. Mas resolvi abandonar apenas a geometria abstrata, isto , a investigao das questes que somente ser-vem para exercitar o esprito; e isto a fim de ter tanto mais lazer para cul-tivar uma outra sorte de geometria, que se prope como questo a expli-cao de fenmenos da natureza. Pois se... agrada considerar o que eu es-crevi sobre o sal, a neve, o arco-ris, etc., conhecer-se- bem que toda a mi-nha Fsica nada mais que Geometria. (27 de julho de 1638, AT II, 268)

    Portanto, h geometria e geometria, e a distino assim operada

    torna, por antecipao, sem objeto e sem pertinncia a idia de procurar aqui alguma coisa que possa evocar o gnero de unidade epistemolgica que ns esperamos de uma fsica matemtica. A geometria abstrata precisamente aquela que se prope o assunto puramente matemtico, como tal excludo da filosofia, ao qual Descartes se aplicava na sua Geome-tria de 1637. Ora, quando ele evoca uma outra sorte de geometria, ele remete quilo que escreveu a respeito do sal, da neve, do arco-ris: desta vez ele faz bem referncia aos seus Meteoros, logo, a uma obra puramente fsica, da qual est ausente toda construo puramente geomtrica do gnero, por exemplo, da que se pode encontrar na Diptrica a propsito da lei da refrao ou do tamanho das lentes. Portanto, para Descartes a identidade da sua fsica com uma geometria que visa explicao dos fenmenos da natureza significava algo totalmente diferente da utilizao, para as necessidades desta explicao, de procedimentos resolutrios tomados da geometria abstrata.

    A se encontra a razo pela qual esta fsica pertence filosofia, e nela ocupa o lugar central que representa o tronco da rvore. s razes corresponde a metafsica ou filosofia primeira, primeira porque nela se

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    trata das coisas que so conhecidas primeiramente segundo a ordem que necessrio seguir para filosofar10. Neste sentido, evidentemente, metaf-sica e fsica no podem inverter os seus lugares; o argumento aristotlico em virtude do qual se no existisse alguma coisa como uma substncia imvel e separada, ento a fsica seria a filosofia primeira11 no tem mais nenhum sentido para Descartes. Na ordem, segundo a nica definio que ele dela admite, e que aquela de uma ordem no conhecer e para o conhecer12, a metafsica de direito, sem contestao nem aporia poss-vel, filosofia primeira, precedendo uma filosofia segunda que a fsica. Interrogando-se sobre o significado metafsico da cincia cartesiana, en-tendida como fsica, no se trata, pois, de inverter ou perverter essa or-dem; antes, necessrio esforar-se por responder a uma interrogao que permanece quanto unidade da obra cartesiana e quanto ao lugar que nela ocupa a fsica. No estado atual da interpretao da situao his-trica de Descartes, as solues redutoras no so mais admissveis: ns no podemos admitir uma leitura positivista, que foi aquela de Louis Liard, caracterizando a fsica cartesiana pela ausncia de toda idia meta-fsica13, como se a fsica procedesse diretamente do mtodo e que a metafsica nela tivesse sido acrescentada por razes estranhas cincia tal como a concebemos hoje (ibid, p.93), isto , essencialmente por res-peito a convenes sociais de uma poca passada: assim se veio a susten-tar que o que se encontra de metafsica [na obra de Descartes] pode dela

    10 A propsito do ttulo a dar obra que ele designa como (sua) Metafsica,

    Descartes observa: Parece-me que o mais prprio ser pr Renati Descartes Medi-tationes de prima Philosophia; pois eu no trato em particular de Deus e da alma, mas em geral de todas as primeiras coisas que se pode conhecer filosofando (11 de novembro de 1640, AT III, 235).

    11 Aristteles, Metafsica, E, 1, 1026 a 27. 12 A ordem consiste apenas em que as coisas propostas primeiro devem ser

    conhecidas sem a ajuda das seguintes, e que as seguintes devem depois ser dispos-tas de tal forma que sejam demonstradas s pelas coisas que as precedem (Secondes Rponses, AT IX-1, 121).

    13 Louis Liard, Descartes, Paris, 1882, p. 66.

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    ser separado sem ferida (p.141). Tampouco admissvel a variante que, reconhecendo a anterioridade da metafsica, veria nesta uma simples propedutica cujo inteiro sentido se esgotaria em fornecer fsica os princpios antecedentes do seu encadeamento dedutivo. Tanto num caso como no outro, o equvoco das palavras nos engana, e jamais se dever perder de vista a precauo que tienne Gilson formulava nestes termos: Quando ns nos perguntamos qual foi a relao da fsica com a metaf-sica cartesiana, arriscamo-nos, pois, a cometer um erro grave, e mesmo a pr um problema insolvel, se esquecemos que o procedimento inicial do pensamento de Descartes foi, precisamente, a recusa de considerar sua separao como possvel.14 Mas para o tema que nos ocupa, resulta disso uma preciso e uma conseqncia importantes, que o mesmo Gil-son enunciava nestes termos: Talvez, nada correspondendo exatamente em Descartes ao que ns chamamos hoje uma fsica15, o problema das relaes entre a metafsica e a fsica, do qual exigimos que suas obras nos tragam a solu-o, no tivesse, em realidade, nenhum sentido para ele (op. cit., p. 164-165, sublinhado por ns). Esse ponto de vista permite ultrapassar o que h, finalmente, de decepcionante na via de uma histria das cincias que gostaria de avaliar a validade cientfica atual da fsica de Descartes, para remet-la sua solido histrica, pelo motivo de que nela no encon-tramos as equaes e a mtrica exatas que dela fariam um momento do passado validado da fsica matemtica no sentido moderno do termo. Precisamos, portanto, encontrar na fsica de Descartes um significado que escape ao julgamento de invalidao da histria das cincias, para relacion-la a uma outra histria, que se constitui segundo um outro rit-mo e uma outra temporalidade, com outras linhas diretrizes e outros critrios hermenuticos, nomeadamente: a histria da metafsica.

    14 tienne Gilson, tudes sur lhistoire de la formation du systme cartsien, Paris,

    Vrin, 1930, p. 176. 15 Observaremos a exata oposio frmula de Liard, reconhecendo ao con-

    trrio em Descartes a cincia tal como a conhecemos hoje.

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    O que, portanto, Descartes esperava de uma fsica? Em que senti-do ela se integrava ao plano de conjunto de uma filosofia?

    Descartes forneceu duas exposies cannicas de sua fsica: a pri-meira se encontra no O Mundo ou Tratado da luz, iniciado em 1629 e inter-rompido em 1633, quando Descartes tomou conhecimento da condena-o de Galileu por Roma. A segunda constituda pelas Partes II, III e IV dos Principia philosophiae de 1644, publicado em traduo francesa em 1647. H entre os dois textos grandes diferenas, que se devem situao do autor, ao estilo da exposio, lngua, ao pblico visado e, enfim, ao dispositivo conceitual empregado. O Mundo expe, em francs, o con-tedo de uma filosofia que abrange todos os fenmenos da natureza, segundo uma perspectiva retrica que um autor que nada ainda publicou escolhe para um pblico que deve ultrapassar aquele dos doutos. O Dis-curso do mtodo descrever nestes termos a escolha estilstica assim fixada:

    Eu pretendia, antes de escrev-lo, incluir nele tudo o que julgava saber quanto natureza das coisas materiais. Mas, tal como os pintores que, no podendo representar igualmente bem num quadro plano todas as di-versas faces de um corpo slido, escolhem uma das principais, que colo-cam luz, e, sombreando as outras, s as fazem aparecer tanto quanto se possa v-las ao olhar aquela; assim, temendo no poder por em meu dis-curso tudo o que tinha no pensamento, tentei apenas expor bem ampla-mente o que concebia da luz; depois, no seu ensejo, acrescentar alguma coisa sobre o sol e as estrelas fixas, porque a luz procede quase toda de-les; sobre os cus, porque a transmitem; sobre os cometas, os planetas e a terra, porque a refletem; e, em particular, sobre todos os corpos que h sobre a terra, porque so ou coloridos, ou transparentes, ou luminosos; e, enfim, sobre o homem, porque o seu espectador. (AT VI, 41-42)16

    16 Utilizamos aqui traduo do Discurso do mtodo de Bento Prado Jnior e

    J.Guinsburg, includa no volume dedicado a Descartes na coleo Os pensado-res, So Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 52.

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    Assim se exprimindo, Descartes descreve, em 1637, uma obra que desde ento renunciou a publicar, e que somente aparecer depois de sua morte. Em contrapartida, um autor conhecido e reconhecido que faz aparecer, em latim, os Principia philosophiae, conforme a disposio de um manual de ensino destinado a propagar uma doutrina garantida nos col-gios. A linha da exposio no se define mais pela escolha de um ngulo de viso quase pictrico para produzir o quadro do Mundo, mas pelo encadeamento regrado dos artigos que se seguem por ordem a partir dos princpios primeiros, eles mesmos destacados da experincia original de pensamento que, nas Meditationes de Prima philosophia, trouxe-os luz pela primeira vez. Todavia, quanto concepo fundamental daquilo que, para Descartes, deve ser uma fsica, as duas obras so equivalentes e re-presentam duas vias para realizar a mesma inteno. A gnese da primei-ra, que podemos seguir atravs das correspondncias, permite precisar o sentido do seu projeto.

    O relato da observao do fenmeno dos perilios, feita em Roma por Scheiner, em maro de 1629, incitou Descartes a examinar por or-dem todos os Meteoros naquilo que se apresentar como uma amostra da (sua) Filosofia (AT I, 23). A carta de 8 de outubro, onde ele anuncia esse plano, contm alm do mais a declarao: Agora tomei partido a respeito de todos os fundamentos da filosofia (25). De quais fundamen-tos se trata? Descartes no o diz aqui, mas uma carta de 18 de dezembro sugere alguma coisa sobre isso: nela ele ressalta que, at o presente mo-mento, a Teologia esteve de tal modo submetida a Aristteles, que quase impossvel explicar uma outra Filosofia, sem que ela parea, ini-cialmente, ir contra a F; a respeito disso, especialmente posta em causa a questo da extenso das coisas criadas, saber se ela finita ou, antes, infinita, pois, acrescenta, eu creio, todavia, que serei forado a prov-la (AT I, 85-86) o que deve ser entendido como: forado a provar que essa extenso infinita. Como, da explicao de alguns fen-menos tais como o arco-ris, pode-se chegar a isso? Entre as duas cartas

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    citadas, aquela de 13 de novembro trouxe esta informao decisiva: Em lugar de explicar somente um fenmeno, decidi-me por explicar todos os fenmenos da natureza, ou seja, toda a Fsica (AT I, 70). Tal a origem do Tratado que, desde ento, Descartes vai designar como (seu) Mun-do. O sentido original do projeto cientfico de Descartes, tal como ele se deduz das fases preliminares do seu trabalho, aparece assim: a escolha dos fundamentos da Filosofia se exprime na concepo da extenso das coisas, ou do espao fsico; essa extenso no outra que aquela onde o gemetra traa suas linhas e constri suas figuras, ela , pois, como ela, ilimitada; e a unicidade dessa extenso implica, alm disso, que o conjun-to dos fenmenos da natureza forme globalmente o objeto de uma expli-cao unitria, excluindo todo recorte setorial. DAlembert ver nisso um defeito no mtodo de Descartes, pois, dir ele, se se pode proceder geome-tricamente em fsica, somente em tal ou tal parte, e sem esperana de ligar o todo 17. Ns diremos portanto que a contrario, para Descartes, explicar geo-metricamente os fenmenos da natureza , precisamente, lig-los em conjun-to na unidade da extenso, identificada matria mesma dos corpos, cujas partes relativas so diversificadas somente pela sua figura e pelo seu estado recproco de movimento.

    nesse sentido que preciso compreender o matematismo uni-versal de Descartes, em seu duplo alcance, ao mesmo tempo metdico e ontolgico. Do ponto de vista do mtodo, ele garante a equivalncia entre demonstrao fsica e demonstrao matemtica; ontologicamente, vale como uma tese que trata do ser mesmo daquilo que chamamos de realidade fsica (e que a linguagem da poca designa como corpo): um corpo extenso geomtrica realizada, ou constituda como substncia. Nisso preciso reconhecer que, quaisquer que sejam de resto os proce-dimentos discursivos adotados por Descartes na exposio de sua filoso-fia natural, esta sempre sustentada por uma visada epistemolgica fun-damentalmente realista, no sentido que este termo adquiriu nas discusses

    17 Encyclopdie, artigo Cartesianismo.

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    contemporneas: mesmo quando recorre ao artifcio retrico de uma fbula para apresentar ironicamente um mundo fictcio (como feito a partir do cap. VII do Mundo), a fsica cartesiana uma explicao dos fenmenos que d razo deles a partir das entidades constitutivas da realidade fsica subjacente. Que essas entidades sejam as mesmas que a geometria requer, garante fsica uma inteligibilidade demonstrativa equivalente: o compromisso ontolgico torna possvel a pertinncia epis-temolgica. Tal , segundo ns, o significado do ltimo artigo da segunda parte dos Princpios da filosofia, cujo ttulo enuncia:

    Que eu no admito princpios na fsica que no sejam tambm admitidos na matemtica, a fim de poder provar por demonstrao tudo aquilo que deles deduzirei; e que estes princpios bastam, na medida em que to-dos os fenmenos da natureza podem ser explicados por meio deles. (AT IX-2, 101)

    Supondo que os seus leitores sabem os elementos da geometria,

    Descartes traz a justificao seguinte:

    Pois confesso francamente aqui que no conheo outra matria das coi-sas corpreas que aquela que pode ser dividida, figurada e movida de to-dos os tipos de maneiras, isto , aquela que os gemetras nomeiam a quantidade, e que eles tomam por objeto de suas demonstraes, e que eu somente considero, nesta matria, suas divises, figuras e movimentos; e enfim que, no tocante a isso, no quero admitir nada por verdadeiro se-no aquilo que ser deduzido disso com tanta evidncia que poder subs-tituir uma demonstrao matemtica. E porque se pode explicar, desta maneira, todos os fenmenos da natureza, como se poder julgar pelo que segue, no penso que se deva admitir outros princpios na fsica, nem mesmo que se tenha razo de desejar outros, do que aqueles que aqui es-to explicados.

    A identidade dos princpios da fsica e daqueles da geometria pro-

    cede, portanto, primeiramente da equivalncia categorial das duas cin-cias: uma e outra tm como objeto a mesma quantidade ou a mesma

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    extenso18. Resta que, se ns compreendemos que a partir dessa suposi-o as explicaes da fsica possam substituir as demonstraes mate-mticas, isto no basta para garantir por isso o compromisso ontolgico do matematismo. O texto tardio da Conversao com Burman permite cir-cunscrever aquilo que ainda permanece no resolvido nesta abordagem do problema:

    Todas as demonstraes dos matemticos tm seres verdadeiros por ob-jeto, e o objeto da matemtica tomado geralmente na sua universalidade... um ser real e verdadeiro, e possui uma verdadeira e real natureza, no menos que o objeto da prpria fsica. A diferena consiste somente em que este ser real e verdadeiro o objeto prprio da fsica quando se o considera como em ato e existindo enquanto tal, ao passo que a matem-tica o considera somente enquanto possvel, e como um ser que sem d-vida no existe em ato no espao, mas pode, contudo, existir.19

    Dizer que o objeto da matemtica... um ser real e verdadeiro, e

    possui uma verdadeira e real natureza, no menos que o objeto da pr-pria fsica implica que as duas cincias somente se distinguem por uma maneira diferente de considerar esse objeto, sem que essa considerao afete ainda propriamente o seu estatuto ontolgico: a diferena do poss-vel e do existente nisso inteiramente relativa natureza do nosso espri-to e s modalidades de suas operaes. Essa diferena de modo algum implica uma dessimetria no fundamento que d s duas cincias acesso a uma verdadeira e real natureza.

    18 Princpios no se deve, pois, entender aqui em um sentido axiomtico,

    como se se tratasse de enunciados primeiros de um conjunto dedutivo, defini-es e noes comuns; antes, preciso interpret-los no sentido em que Arist-teles diz que os princpios das realidades naturais so a matria, a forma e a pri-vao (Fsica II, 1). a esta trade que Descartes substitui a quantidade como nico princpio.

    19 LEntretien avec Burman. Edio, traduo e notas de Jean-Marie Beyssade, Paris, PUF, 1981, p. 72-74.

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    aqui que o recurso metafsica se nos impe: ele se exprime na deciso capital que estabelecem, ao longo da elaborao do Tratado do mundo, as cartas de 1630. Nelas, Descartes enuncia a tese, inteiramente singular, da livre criao por Deus das verdades ditas eternas, s quais so assimiladas ao mesmo tempo as verdades matemticas e as leis da nature-za. A discusso do sentido e do alcance dessa tese esteve no cerne das maiores transformaes que mudaram profundamente, para os leitores da minha gerao, o acesso obra de Descartes. Ferdinand Alqui20 acreditara poder sustentar que a criao das verdades eternas significara para Descartes a descoberta da ruptura entre o mundo objetivo da cincia e a experincia ontolgica do fundamento. O ponto de partida de Des-cartes teria sido independentemente de toda metafsica a segurana tecnicista e a confiana na auto-suficincia da cincia, para quem toda realidade se reduz ao objeto. A descoberta, em 1630, da livre criao por Deus das verdades eternas teria permitido reconhecer a impotncia da cincia para atingir o Ser que transcende toda representao dos objetos. O universo objetivo da fsica um mundo simulado, aquele da fbula do mundo, fico sem alcance ontolgico. Bem longe de afastar Descar-tes de suas concepes fsicas, a condenao de Galileu, em 1633, teria tido sobre ele o efeito de uma confirmao salutar ao dissuadi-lo de ela-borar uma cosmologia onde a cincia usurparia uma pretenso explica-o total que no pode ser da sua alada. Contudo, algo completamente diverso se passa com os Principia philosophiae, os quais Alqui devia reco-nhecer bem que contradizem uma tal leitura da fsica. por isso que ele reconhecia na filosofia natural dos Principia algo como uma volta atrs, uma deplorvel regresso ambio totalizante. A teoria da substncia e do atributo principal, que faz do objeto da fsica uma substncia exten-sa, teria permitido restaurar o realismo espacial e dar fsica uma impor-tncia ontolgica e uma suficincia explicativa. Abandonando a fbula

    20 La dcouverte mtaphysique de lhomme chez Descartes, Paris, PUF, 1950, cujas te-

    ses cardinais relativas ao nosso propsito eu resumo nas linhas que seguem.

  • A Fbula do Mundo e o Significado Metafsico da Cincia Cartesiana

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    do mundo, onde ela se mantinha no seu papel, a fsica conserva ento a iluso de poder sustentar o peso do mundo.

    Intitulando como a fbula do mundo e o peso do mundo os dois captulos do seu livro que correspondem respectivamente ao Mundo de 1630-1633 e aos Principia de 1644, Alqui pretendia significar desse modo a distncia que se estabelece, segundo ele, entre duas maneiras para Descartes de fundar metafisicamente o sentido de sua fsica: de um lado, a tese da livre criao das verdades eternas justificaria a desrealizao do objeto fsico e, em um emprego bastante sumrio das idias de Duhem, a concepo da cincia como uma representao sem valor de explicao nem investimento ontolgico. Por outro lado, a doutrina da substncia desejaria devolver fsica uma ancoragem realista, e por isso mesmo infringiria os critrios duhemianos da cincia e a exigncia propriamente metafsica de distino entre o plano do Ser e aquele do objeto. Essa interpretao, por mais falaciosa que seja, nos orienta contudo em dire-o a dois problemas que Descartes nos impe: primeiro, compreender o significado, para a fsica, da doutrina da livre criao das verdades eternas e, em seguida, reconstituir a filiao que vai do Mundo aos Princpios.

    3

    Para dizer em uma palavra porque tomo por falaciosa a tese de Alqui, observarei que a dissociao do Ser e do objeto torna a situao histrica de Descartes ininteligvel: com efeito, nas duas exposies do Mundo e dos Princpios, atravs de dispositivos intelectuais distintos e com intenes diferentes, trata-se do ser desse ente que nomeamos o objeto da cincia fsica. Aqui como l, se Descartes pde chamar de filosofia o que designamos como sua fsica, porque se tratava de uma ontologia regional da realidade corporal ou da coisa material, e para isso era-lhe necessrio recorrer a uma metafsica. , portanto, principalmente a pro-psito do Mundo que necessrio agora precisar o sentido dessa afirma-o, em razo mesmo da adeso que Descartes teria concedido nesse

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    texto a uma concepo anti-realista da fsica, que seria ela mesma o coro-lrio da criao das verdades eternas.

    Releiamos o documento inaugural onde essa doutrina proclama-da, a carta a Mersenne de 15 de abril de 1630; tentemos faz-lo sem pre-conceitos e sem procurar nele confirmaes de tal ou tal preferncia interpretativa.

    Descartes evoca, primeiramente, a distino entre a teologia e a metafsica, esta ltima dependendo to-somente do exame pela razo humana. Ele acrescenta que o uso dessa razo no conhecimento de Deus e de si mesmo que determinou a via pela qual ele pde procurar os fundamentos da Fsica. E nessa investigao averiguou-se isso: Ao menos, penso ter encontrado como se pode demonstrar as verdades metafsicas de uma forma que mais evidente do que as demonstraes de geometria. Todavia, por no estar seguro de poder persuadir os ou-tros disso, ele adiar a publicao desse gnero de proposio, desejando ter primeiramente visto como a Fsica ser recebida. Mas, malgrado esse distanciamento no tempo, que subordina a publicao ulterior da metafsica a uma primeira tentativa de persuaso cujo instrumento seria a fsica, uma exceo dever ser consentida: em certos casos, a fsica pode-r e dever antecipar a revelao de proposies metafsicas: Mas eu no deixarei de tocar, na minha Fsica, em vrias questes metafsicas, e parti-cularmente esta: Que as verdades matemticas, as quais vs nomeais eter-nas, foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, assim como todo o resto das criaturas. Segue uma discusso sobre o sentido e o alcance dessa tese, que se conclui por: Espero escrever isto, mesmo antes de quinze dias, na minha Fsica (AT I, 144-146). Assim, a proposio da qual Alqui sustentou que ela estabelece um corte intransponvel entre cincia e metafsica, formulada ab initio em um contexto onde se trata essencialmente da relao da fsica com a metafsica; mais ainda, o local terico dessa proposio, atestado pelo seu lugar de escritura, encontra-se no livro mesmo onde Descartes se propunha a expor toda a sua fsica.

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    As verdades ditas eternas so essencialmente as verdades matem-ticas. Descartes mesmo ratifica essa assimilao tradicional quando, na carta de 27 de maio de 1630, d como exemplo que Deus era livre para fazer com que no fosse verdade que todas as linhas traadas do centro circunferncia fossem iguais (AT I, 152). Por que falar disso em uma Fsica? Porque desde a primeira carta essas verdades eternas tambm foram designadas como leis Deus quem estabeleceu essas leis na natureza (AT I, 145). porque as verdades matemticas so leis para a natureza21, e inversamente porque a natureza determinada pelas leis que so ao mesmo tempo verdades matemticas, que a tese metafsica assim anunciada pertinente para a fsica, e nela deve ter o seu lugar.

    Intrinsecamente, a tese significa que no h diferena de estatuto ontolgico entre os mathemata e os physika: tanto uns quanto os outros so criados e se situam sobre o mesmo plano. Isso vale contra todas as determinaes ontolgicas anteriormente admitidas, contra o platonismo assim como contra o aristotelismo: para o primeiro, a idealidade dos objetos matemticos os coloca acima da realidade apenas natural, de modo que, a partir do momento que a natureza ser considerada como criada, o carter incriado deles se impor; para o segundo, a abstrao das matemticas as relega abaixo da realidade plena e subsistente das coisas naturais, das quais elas nada mais so que as sombras mentais. Alm do mais, Descartes abole toda diferena epistmica: a fsica pode conhecer seu objeto com a mesma certeza, em uma apreenso to exata e determi-nada, como a matemtica conhece os seus; sendo a incompreensibilidade do seu fundamento a mesma, a inteligibilidade da concepo daquilo que so esses objetos pode tambm ser a mesma. Assim a fsico-matemtica (segundo a denominao dada por Beeckman, o iniciador cientfico de Descartes), na qual ele j encontrara alguns sucessos (em

    21 Como escreveu Alexandre Koyr: As leis da natureza so leis para a natu-

    reza, regras s quais ela no pode deixar de se conformar. Pois so elas, estas regras, que a formam. (tudes galilennes, Paris, Hermann, 1939, III, p. 159)

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    tica principalmente) e alguns dissabores (com os ensaios infrutferos de uma lei da queda dos corpos), torna-se algo distinto de um conjunto de procedimentos eficazes na resoluo de problemas de fsica: ela se faz filosofia, conhecimento explicativo e racional da realidade natural dada.

    Tal tambm o sentido do matematismo universal: a evico do mundo inteligvel e das idealidades incriadas a condio ontolgica da equalizao entre os mathemata e o universitas rerum. V-se mal como disso resultaria que a Fsica deva se reduzir a uma fbula, entendida como uma fico cmoda e til, e, a respeito disso, o comentrio que faz Alqui da atitude de Descartes diante da censura atingindo Galileu verdadeira-mente insustentvel22. No que a fsica cartesiana seja galileana (retorna-remos a isto), mas porque a prpria concepo que Descartes se fazia de uma fsica lhe proibia, na poca da redao do Mundo, uma organizao formal que a tivesse tornado compatvel com a negao do movimento da Terra, ou ao menos neutra a seu respeito: ora, uma epistemologia ficcionalista teria facilmente se adaptado a tal organizao. Ao por as matemticas e a fsica sobre o mesmo plano ontolgico, a tese metafsica de 1630 no torna possvel a interpretao da fbula do mundo como uma ausncia de engajamento ontolgico da cincia. Contudo, este ponto exige uma outra justificao.

    Contrariamente ao que foi s vezes sustentado, a doutrina da livre criao por Deus das verdades ditas eternas, enunciada como devendo ser inscrita com todas as letras no corpo da fsica, est presente de certa forma no texto do Mundo, no estado em que Descartes o deixou em 1633, como no relato que o Discurso do mtodo d sobre a elaborao dessa obra. Ns a reencontramos no captulo 7 do Mundo, quando so introdu-zidas as leis que Deus imps ( natureza) (AT XI, 36), e a reencontra-mos no comeo da quinta parte do Discurso, quando Descartes anuncia: Eu notei certas leis que Deus... estabeleceu na natureza (AT VI, 41). Impor e estabelecer j eram utilizadas na carta de 15 de abril de 1630

    22 Op. cit., p. 117 sq.

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    para expor a modalidade da operao divina na criao das verdades eternas. Sem dvida, a tese explcita e universal da criao de todas as verdades eternas figura nesses textos de maneira incidente e, por assim dizer, margem: neles, ela no posta em evidncia nem proclamada com a solenidade da carta de 15 de abril de 1630. Essa relativa discrio acompanhada do recurso parcial e temporrio ao artifcio estilstico da fbula no tratado do Mundo. Notemos bem que neste ltimo o discurso da fbula somente invocado a partir do captulo 6, o que implica a contrario que tudo o que precede a exposio da verdade mesma, sem nenhum artifcio: a doutrina do sensvel interpretada como signo sem semelhana nem analogia com o seu referente, a reduo dos fenmenos fsicos ao movimento das partes dos corpos, a unidade da matria e da teoria dos elementos (isto , a caracterizao geomtrica dos estados da matria) tudo isto, portanto, posto como verdades de essncia, que incidem sobre a prpria natureza das coisas oferecidas investigao fsica, sem que nenhuma fico altere sua pertinncia ontolgica.

    A introduo da fbula marca por isso uma mudana de modali-dade das proposies das quais ela o revestimento, como se ns entrs-semos doravante no registro do como se e da fico? Para compreen-der o estatuto deste novo Mundo que a fbula supostamente constri sob os nossos olhos, voltemo-nos em direo ao verdadeiro Mundo ao qual ele se ope. Esse mundo, que somos convidados a abandonar, tam-bm significativamente o Mundo antigo; ele , de um lado a outro, caracterizado pelos artefatos conceituais inventados pelos Filsofos, cuja inanidade Descartes j sublinhou: os espaos imaginrios, as formas e as qualidades reais (invalidadas desde o cap. 2), a matria primeira sem formas nem qualidades, distinta da sua quantidade. Alm do mais, esse pretenso Mundo verdadeiro tambm aquele onde se realiza a definio, julgada ininteligvel, do movimento como ato daquilo que est em potn-cia na medida em que est em potncia, com seus corolrios igualmente inaceitveis. Enfim, esse mundo aquele onde as coisas se passam tal

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    como os sentidos delas nos do o testemunho imediato, recusado no captulo 1. Assim, esse verdadeiro Mundo somente denominado desta maneira por uma inverso irnica, de sorte que antes o mundo pretensamente fingido que est a cargo da verdade da natureza das coisas: a fico na qual ele est envolto aparece, ento, por uma inverso simtri-ca da ironia, como a descoberta de um real autntico, que o Mundo anti-go velava sob as qualidades sensveis fortalecidas pelos conceitos de uma filosofia recusada.

    Descartes justifica, inicialmente, a interveno da fbula por uma preocupao com a brevidade, que reencontra a declarao consistindo em no prometer demonstraes exatas de tudo o que dir (AT XI, 48). Alm do mais, a fbula um invlucro que somente recobre uma parte das opinies (portanto, outra parte escapa ao vu da fabulao) e cuja pertinncia , todavia, medida pelo fato de que ela deixa a verdade... aparecer suficientemente [o que significa que h uma verdade da fsica independente do revestimento da fbula] e que esta no ser menos agradvel de ver do que se (eu) a expusesse toda nua [o que implica que esta verdade poderia ser exposta tal qual] (AT XI, 31). Quando em se-guida se trata, no captulo 7, das leis da natureza, a natureza definida, inicialmente, como no sendo outra coisa que a Matria mesma na me-dida em que a considero com todas as qualidades que lhe atribu com-preendidas todas juntas (37), ou seja, todas as qualidades que foram expostas nos captulos 1 a 5, antes da interveno da fbula e, portanto, no regime de verdade toda nua. natureza assim constituda que fazem referncia leis que, impostas por Deus, no podem ser consideradas como artifcios tericos: a imutabilidade de Deus, verdade metafsica da qual se concebe mal que tambm ela poderia ser considerada como uma fico, invocada com insistncia como fundamento das regras ou leis da natureza do novo Mundo. No contamos menos de seis ocorrncias, no captulo 7 do Mundo, da concepo da imutabilidade que assim posta no princpio da inteligibilidade da nova fsica. Citemos a mais forte:

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    Que fundamento mais firme e mais slido se poderia encontrar para es-tabelecer uma verdade, ainda que se quisesse escolh-lo como bem aprouver, do que tomar a prpria firmeza e a imutabilidade que est em Deus? (AT XI,43)

    dizer da forma mais clara que se trata bem de uma verdade her-

    dando do seu fundamento a firmeza ontolgica que a subtrai a toda in-terpretao em termos de construo hipottica puramente representati-va, segundo uma concepo mais ou menos comparvel quela de um Duhem (ou daquilo que uma leitura rpida retm dele)23.

    H mais: recusando o movimento segundo os Filsofos, Descartes pede que se lhe conceda, para definir universalmente o campo da nova fsica, uma matria identificada extenso geomtrica e um movimento concebido como aquele ao qual os gemetras recorrem para definir suas figuras. exatamente nisso que o Mundo da competncia da inteligibi-lidade matemtica e que as verdades eternas nele se realizam como cria-das por Deus:

    Alm das trs leis que expliquei, no quero supor outras, seno aquelas que se seguem infalivelmente dessas verdades eternas, sobre as quais os Matemticos se acostumaram a apoiar suas mais certas e mais evidentes demonstraes: essas verdades, digo, conforme as quais o prprio Deus nos ensinou que ele dispusera todas as coisas em nmero, em peso e em medida; e cujo conhecimento to natural a nossas almas, que no pode-ramos no julg-las infalveis, quando as concebemos distintamente; nem duvidar que, se Deus tivesse criado vrios mundos, elas no fossem em todos to verdadeiras quanto neste. (AT XI, 47)

    23 Portanto, quando Ferdinad Alqui observa que nos Princpios [...] Descar-tes renuncia a uma fsica simblica e desrealizada, esquece que a cincia somen-te linguagem e o objeto cientfico somente construo do esprito, retorna enfim a um realismo cientfico que [...] conduz a prpria cincia ao dogmatismo e ao erro (op. cit., p. 274), podemos reconhecer nesta condenao como que um eco atenuado dos argumentos clssicos de Duhem contra o valor explicativo e a interpretao metafsica das teorias; cf. La Thorie physique, son objet, sa structure, Paris, Rivire, 2 ed., 1914.

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    Portanto, bem longe de reduzir a fsica a uma montagem de fic-es cmodas sem alcance ontolgico, a doutrina da criao das verdades eternas garante o acordo entre a concepo distinta das verdades infal-veis das matemticas e a criao divina. E seria no fundo uma interpreta-o bastante estranha imputar ao carter criado das verdades matemti-cas, que por isso mesmo so leis da natureza, a pretensa desrealizao do objeto fsico reduzido a uma representao sem consistncia ontolgica.

    Eis porque uma leitura pseudo-duhemiana da fbula insustent-vel. Que as verdades fsico-matemticas sejam criadas no faz delas pro-posies contingentes, no sentido que ser, por exemplo, aquele de Leib-niz. Para Duhem, se uma teoria fsica no tem alcance realista ou explica-tivo, que o mesmo conjunto de leis empricas pode ser representado em teorias concorrentes, onde elas podem ser deduzidas da escolha de prin-cpios hipotticos contrrios24. O que a fbula do Mundo cartesiano representa um corpo de verdades que descrevem o mundo tal qual Deus o criou e, mais ainda, que no deixariam de ser realizadas em qual-quer outro mundo criado: disso se segue que elas so as leis necessrias de todo mundo criado, uma vez que para Descartes, diferentemente de Leibniz para quem as modalidades so incriadas, o possvel e o necessrio so queridos como tais por Deus25. Tambm a necessidade criada cons-trange o nosso esprito, mas no a operao criadora de Deus. Deus mesmo teria podido sem dvida, ainda que isso nos seja incompreensvel,

    24 La Thorie physique, op. cit.,e, de forma mais explcita, a apresentao do con-

    flito de Galileu com o Santo Ofcio publicado no , Essai sur la notion de thorie physique de Platon Galile, Paris, Hermann, 1908.

    25 Que Deus quis que coisas fossem verdadeiramente possveis, que quis tor-nar outras impossveis; enfim, que quis que algumas verdades fossem necessrias: carta a Mesland de 2 de maio de 1644 (AT IV, 118), onde Descartes ao mesmo tempo preserva a contingncia dessa necessidade: E ainda que Deus tenha querido que algumas verdades fossem necessrias, isso no quer dizer que as tenha necessariamente querido; pois completamente diferente querer que elas fosses necessrias, e quer-lo necessariamente, ou ser necessitado a quer-lo.

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    criar outras verdades, mas ns no podemos da nossa parte conceber uma fsica diferente daquela que nos impe a considerao da imutabili-dade divina que reina sobre o novo Mundo. Assim, o fundamento escapa a toda tentativa de escolher como bem aprouver: nada h de mais estranho a esta concepo do que a liberdade que Duhem concede inveno dos princpios hipotticos de uma teoria, e que a contrapartida da sua inaptido a explicar o real.

    4

    A posio cartesiana , portanto, duplamente singular: primeira-mente, sobre o plano metafsico, pela tese da criao das verdades eter-nas, que vai de encontro aos ensinamentos mais difundidos da escolstica tardia, qual Descartes se ope frontalmente26. Em seguida, na prpria fsica, onde o matematismo universal toma um significado que Descar-tes o nico a ter sustentado. Esta observao sublinha a distncia entre a fsica matemtica de Galileu e aquilo que se pode designar como a fsi-ca metafsica de Descartes27. Sabe-se que Descartes fundou sua filosofia natural sobre uma crtica do sistema conceitual da escolstica, crtica cujo cerne a rejeio das formas substanciais, e que se estende, alis, aos ressurgimentos animistas, hermticos e neoplatnicos do Renascimento. Ao querer por isso associar Descartes fundao da cincia moderna, marcada pela matematizao da natureza e a substituio do cosmo hie-rrquico dos antigos por um universo geometrizado, foi-se freqente-mente conduzido a pr em segundo plano o carter prprio da cincia cartesiana, que se exprime em particular no seu carter essencialmente anti-galileano; assim, reduziu-se a divergncia, tal como ela se exprime especialmente na grande carta de 11 de outubro de 1638 (AT II, 380 sq.), onde est exposto o resumo da leitura dos Discorsi e dimostrazione matema-

    26 Cf. Jean-Luc Marion, Sur la thologie blanche de Descartes, Paris, PUF, 1981. 27 Daniel Garber, Descartes Metaphysical Physics, Chicago, 1992.

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    tiche do grande florentino, a um desacordo de mtodo, subentendendo que os objetivos eram no fundo equivalentes. Contudo, trata-se de coisa com-pletamente diferente. O matematismo de Galileu repousa sobre a noo de uma mathesis divina, da qual a criao das verdades eternas a anttese meta-fsica. Para o matematismo de Descartes, a evico do mundo inteligvel e das idealidades incriadas a condio ontolgica da igualizao entre as mathemata e o universitas rerum. Descartes, assim, cuidadosamente evitou a metfora do Livro da natureza escrito com a ajuda de caracteres matemti-cos. E ele constantemente se absteve de pretender, como o fazia com toda a razo Galileu, ter oferecido um corpo de teoremas e de problemas pelo qual a cincia do movimento teria acrescentado um desenvolvimento novo s obras de Euclides, de Apolnio e de Arquimedes28.

    Em que sentido Descartes pode, porm, assegurar que essa fsica ainda geometria? Em nenhum outro seno que a geometria estuda as propriedades da extenso. Ora, porque a extenso criada, as verdades que a ela se referem no so eternas e dependem de Deus. Porque a ex-tenso no nada de separado do sujeito extenso ou do corpo extenso29, as verdades matemticas criadas tm diretamente um sentido fsico. En-fim, porque no h outra coisa nos corpos que propriedades da extenso ou que dela dependem, a explicao dessas propriedades ainda geome-tria. assim que a Regra XIV das Regulae ad directionem ingenii anunciava o seguinte programa:

    28 Aps ter anunciado, no comeo da Terceira Jornada dos Discorsi e dimostra-

    zioni mathematiche, sobre o assunto mais antigo, uma cincia absolutamente no-va, Galileu faz notar, ao fim, por um dos seus interlocutores: Vendo a facilida-de e a clareza com as quais ele [Galileu] deduz de um nico princpio muito simples as demonstraes de proposies to numerosas, no me espanto pouco que tal matria tenha sido deixada intacta por Arquimedes, por Apolnio, por Euclides, e por tantos outros matemticos e filsofos ilustres, e tanto mais que tantos volumes to grossos foram escritos sobre o movimento (Discours et d-monstrations mathmatiques concernant deux science nouvelles, trad. por Maurice Clavelin, Paris, Armand Colin, 1970, p. 125 e p. 202).

    29 Regulae ad directionem ingenii, Regra XIV (AT X, 444 sq.)

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    Ns nos ocupamos aqui, portanto, de um objeto extenso, no conside-rando nele absolutamente nenhuma outra coisa salvo essa extenso mesma, e... supomos todas as questes reduzidas ao ponto de no pe-dirmos nada mais do que conhecer uma certa extenso, do simples fato de a compararmos com alguma outra extenso conhecida.30

    Esse objeto definido como matemtico no sentido em que ele

    pode ser apreendido numa intuio, ao apoio da qual a imaginao pode legitimamente fornecer seu auxlio. De certa maneira, o Mundo, os Meteo-ros, e a Diptrica nada mais fazem do que tratar de questes desse gnero, conhecendo extenses determinadas, figuradas e mveis, por compara-o com outras extenses melhor conhecidas. Contudo, todo o problema era conferir a esse procedimento o seu alcance ontolgico, estabelecendo que a geometria que se prope a explicar assim os fenmenos da nature-za incide sobre o prprio ser das realidades fsicas existentes (criadas) aos quais ela se abre: para isso que serve a tese da criao das verdades eternas. De resto, no preciso esperar por 1644 e pelos Principia Philoso-phiae para que a noo de substncia venha garantir o investimento ontol-gico da geometria assim compreendida: pois, na falta de uma exposio explcita da doutrina do atributo principal, que somente os Principia propo-ro, o Mundo no deixa por isso de recorrer substncia, e ao conhecimen-to distinto da sua essncia, sobre o ponto decisivo que a concepo da matria do novo Mundo, oposta quela dos Filsofos. Assim, estes

    ... tambm no devem achar estranho, se eu suponho que a quantidade de matria, que descrevi, no difere mais da substncia que o nmero em relao as coisas numeradas; e se concebo sua extenso, ou a propriedade que ela tem de ocupar o espao, no como um acidente, mas como sua verdadeira Forma e sua Essncia: pois eles no poderiam negar que ela seja muito facilmente concebvel desta forma. (AT XI, 36)

    30 AT X, 447. Ns citamos conforme as Rgles utiles et claires pour la direction de

    lesprit en la recherche de la vrit, traduo segundo o lxico cartesiano e anotaes conceituais, por Jean-Luc Marion, La Haye, Martinus Nijhoff, 1977, p. 67.

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    Portanto, a fsica cincia da extenso realizada e universal, co-extensiva ao conjunto da matria criada. a unidade dessa extenso que permite a Descartes, para tomar a contrario as palavras de dAlembert, ligar o todo 31. Nisto tambm est a razo profunda do anti-galilesmo de Descartes: o argumento essencial que ele ope lei matemtica da queda dos corpos (e que incide no sobre o teor dessa lei, mas sobre a sua prpria possibilidade), diz respeito ao fato de que Galileu deve pri-meiramente, para garantir a sua interpretao fsica, mostrar a legitimida-de da idealizao em virtude da qual todos os corpos pesados igualmente caem no vazio. Ao que Descartes responde que no vazio no h nenhum peso, e que uma lei prescrita sob tais condies no tem nenhum sentido fsico (AT II, 385 [7-11]). Pois o peso para ele um efeito da presso exercida sobre os corpos, fragmentos da extenso, pela matria, tambm extenso, que os cerca. Da mesma forma ele recusa, em mecnica, as definies pelas quais Galileu associava a velocidade fora: ele se em-prenhou em afastar a velocidade, porque, diz Descartes, impossvel dizer qualquer coisa de bom e slido a respeito da velocidade sem ter explicado verdadeiramente o que o peso, e em conjunto todo o sistema do mundo (12 de setembro de 1638, AT II, 355). Como escrevia de forma excelente Koyr sobre esse ponto:

    No podemos isolar os fenmenos. No podemos, portanto, fazer fsica abstrata como aquela de Galileu. A abstrao que negligencia os casos concretos, reais, completamente legtima no mundo de Galileu: um mundo arquimediano. Ela lhe permite explicitar o caso simples, o caso ideal, a partir do qual estudar o caso concreto e complexo. Mas Des-cartes pode fazer somente uma fsica concreta. A abstrao galileana no o conduziria ao caso simples: ela o conduziria ao caso impensvel.32

    Mas se o mundo de Descartes diferente do de Galileu, preci-

    samente a marca de um engajamento ontolgico diferente. A fsica de

    31 Cf. supra, p. 68, n. 1. 32 A. Koyr, tudes galilennes, Paris, Hermann, 1939, II, p. 53.

  • A Fbula do Mundo e o Significado Metafsico da Cincia Cartesiana

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    Descartes concreta pelo seu duplo carter de completude e de enraiza-mento substancial: ora, estes dois aspectos so correlacionados pela pr-pria noo de extenso, tal como Descartes a pe como tema ontolgico da sua filosofia. A extenso indefinida, no que ela se identifica universa-lidade das coisas criadas, opera como um fator de globalizao que impe-de a Descartes toda a setorizao do objeto fsico e toda partio do corpo da cincia em teorias relativamente independentes. E a mesma extenso se faz conhecer como propriedade de um ente, para o qual Descartes no tinha outro conceito a sua disposio para pensar a sua pressuposio seno aquele de substncia33. Disso resulta que para Des-cartes era concebvel instituir uma fsica global e unitria, garantindo ao mesmo tempo a interpretao realista das entidades matemticas que asseguram a sua inteligibilidade. Essa fsica no aristotlica, que abole a separao entre o seu objeto e aquele da matemtica, tambm dispensa uma justificao platnica pelo recurso ao mundo inteligvel das idealida-des. Mas o preo metafsico a pagar era caro: com efeito, ele medido pela doutrina da criao divina das verdades eternas. Da singularidade desse fundamento, que Descartes foi o nico a estabelecer, tambm re-sulta a singularidade nica daquilo que ele chamou de sua fsica.

    Interrogar-se sobre a destinao ulterior, na formao da cincia clssica, de tal ou tal das proposies de Descartes ( ele o primeiro a ter sabido enunciar a lei de inrcia? O que resta de suas leis do choque, todas falsas salvo uma? Por que o romance dos turbilhes incompatvel com

    33 Deste ponto de vista ler-se-o as pginas esclarecedoras de Heidegger, nos

    19-21 do Sein und Zeit, que mostram ao mesmo tempo de que forma a concep-o da res extensa como substncia, em um sentido no esclarecido do termo, fez faltar a Descartes o verdadeiro sentido do fenmeno do mundo, de que forma, em outro sentido, ela pode ainda ser salva: Evidenciando radicalmente a extensio como praesupositum de toda determinidade da res corprea, Descartes preparou a compreenso de um a priori do qual Kant devia em seguida aprofundar o con-tedo (tre et temps, trad. Martineau, Authentica, 1985, p. 91)

  • Michel Fichant

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    as leis de Kepler?), pode ter um sentido para uma histria da circulao das idias, das influncias, das sugestes ou das oposies que elas ofere-cem explicao de outras idias mas ao fazer isto permanecemos no exterior daquilo que, para Descartes, comandava o sentido e a fora de verdade da sua fsica. O lugar real dessa fsica na histria das cincias se situa sem dvida alhures: no interesse que ela apresenta sempre nova-mente, cada vez que se pem de forma crtica e fundamental as questes da interpretao fsica das teorias abstratas, questes que no se pode tratar sem pr em questo o sentido de ser da realidade s quais essas teorias remetem. Descartes se apresentar sempre a ns, desse ponto de vista, com a segurana (ou o excesso de confiana?) daquele para quem era bvio que a fsica tratava da realidade mesma daquilo que segundo um certo modo de ser prprio natureza corporal. Eis porque ainda podemos, doravante sem nenhuma ironia, dar um sentido legtimo frmula de Renouvier: o sucesso da fsica de Descartes bem faz dela uma obra filosfica.