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    O amor de muitos

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    EDITORA MULTIFOCO

    Rio de Janeiro, 2014

    O amor de muitos

     Marta Mega de Andrade

    FuturArte Poesia

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    EDITORA MULTIFOCO

    Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.Av. Mem de Sá, 126, Lapa

    Rio de Janeiro - RJ

    CEP 20230-152

    CAPA & DIAGRAMAÇÃO Paula Guimarães

    REVISÃO Lolita GuimaRàes Guerra

    O amor de muitos

    ANDRADE, Marta Mega de

    1ª Edição

    Dezembro de 2014

    ISBN: 978-85-8473-185-5

    Todos os direitos reservados.

    É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais semprévia autorização do autor e da Editora Multifoco.

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    Poemas por amor, escolhidos dos livros imaginários de Ana Madeira

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    Diárias (2012)

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     Janeiro 2012

     Li em algum lugar que um amor de verdade só traz coisas boas. Isso ébaboseira de sacristia. Um amor de verdade é aquele em que as coisas ruins

     são vividas com toda a intensidade, até a última gota; com todo respeito, atéo último sopro; com a dor do coração, não com mãos de creme hidratante. Um

     amor de verdade É bom, É belo, É justo. E não há mais o que pedir dele, porqueele já É tudo. Sem ser certeza de nada.

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    Abril 2012

    Sobre o que Vem da Alma

    Eu não sou a Monalisa

    Ela pode, matéria morta

    Ficar, inerte, num meio de parede

    Em que foi penduradaPara que lhe admirassem o sorriso

    Para que lhe decifrassem o enigma

    Um sem-m de vezes.

    Eu não sou a MonalisaNão quero a redoma com que me isolas

    Nem o pedestal em que me elevas

    Não quero a aprovação

    Que se reserva ao mármore frio

    No qual o siso escrupuloso

    Proíbe o toque.

    Não.

    Não sou tal escultura inerte.

    Pois que, veja, agora!

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    De meus braços pingam suores,

    Os mesmos que molham as roupas

    Enquanto sonho a partida;

    De meus pés fogem os movimentos bruscos

    De uma interminável descida.

     — Não quero ser ouvida. Não quero

     Abrir a boca para dizer verdades nem mentiras — 

    Quero abrir minha boca para abrigar 

    Beijos que se doem, inteiros.

    Quero abrir minhas pernas para abraçar 

    Com elas o homem que eu amo,

    Trazendo-o para perto de mim,

    Para o calor em mim, todo e inteiro.

    Quero o amor dos vivos!

    Pois em mim queima o desejoE em mim corre e jorra uma fonte de vida.

    Se me amares, não me levarás de volta;

    Se me amares, saberás, com justeza,

    Que eu não sou a Monalisa.

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    Eu sou (de) Você

    Qual perdão?

    O de perder-me no amor,

    Por amor?

    Então, qual perdão?Que desculpas devo dar 

    Se a explosão me teve

    Sem que eu quisesse ou pedisse

     Apenas por desejar,

    Por existir, apenas?

    Como pedir perdão por amar?

    Como querer perdão por viver?

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    Maio 2012

    Perdendo-me

    Eu devia ter compreendido da primeira vez.

    Eu devia ter compreendido da segunda vez.

    Eu devia. Eu devia. Eu devia.

    Mas apenas penso, “por que?”

    E isso não me diz respeito.

    Não preciso da resposta.

    Não carece haver razão.

    Procurar por ela é, até, ironia.

    Então, tudo que eu tenho é uma perda. A minha.

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    Demasiado, Muito.

    Não me olha assim

    Como se não fosse nada

    Não me olha como que sugerisse

    Loucura, delírio ou um sonho mauSem razão e sem norte.

    Não me queira assim

    Por trás de cortinas de Édipo

    Por debaixo dos panosPorque eu te quero francamente

    Claramente, demasiadamente.

    E se eu disse isso um dia

    Foi porque transbordava de mim

    Foi porque trespassava de mim

    Não tinha mais jeito

    Era verdade demais para se conter 

    Num segredo.

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    Então, não me leve a mal

    Eu amo demais.

    E que eu ame demais

    Se é meu destino e não teu

    Deixa que eu te olho

    Deixa que eu te vejo

    Deixa que eu construo os castelos no gelo

    E alimento fogueira na neve.

    Porque isso é meu.

    Isso, sim, é meu.

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    Passará

    (setembro 2012)

    Tudo passa, alguém me diz.

    Mas não vai passar assim, de graça.

    Passará marcanteInsolente, com passos pretos.

    E será esquecido num faz-de-conta.

    Numa nuvem de poeira em terra árida

    Porque rede foi lançada a peixe algum.

    Tudo passa, alguém me diz.

    Tudo, sem perdão, passa; é um fato.

    Mas girará vida em morte, morte em vida.

    Indecente, com obscenos passos,

     Virará a esquina com pernas nuas Acenando, nus também os braços

    Num adeus inconsentido.

    Porque a mão não segurou mão alguma.

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    Não há alimento aqui, embora houvesse

    Não há juramento aqui, embora houvesse

    Não há destino aqui, embora houvesse

    Não há paixão aqui, embora houvesse.

    Passará.

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     Julho 2012

    Flor da Pele

    Quero ser o problema, não a solução.

    Pois cuidado por mim não tenho.

    Preciso pegar emprestado do amor de outrem.

    Preciso ser contaminada.

    Preciso do contágio de uma outra gripe,

    Dessas que nos deixam à or da pele

    Com o rosto vermelho e a boca seca

    Pedindo mais água.

    Dessas que nos causam desmaios e dores no peito.

    Pois cuidado por mim não tenho.

    Tenho pele e or.

    Só pele e or.

    Plasmadas num corpo que pede um colo.

    Pede um abraço

    Pede um afeto que se achegue de graça

    Por nada e sem nada.

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    Só quero ser cuidada.

    Ser o problema, não a solução.

    Ser o passivo da paixão.

    Receber, por nada e sem nada.

    Um quase encontro

     À or da pele.

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    Setembro 2012Phileô

     A mulher que ama

    Derrama o sonho sobre a videira carregada de uvas

    Derruba as uvas em um tacho, pisando nelas, fazendo vinho

    Trabalha a massa apertando-a contra a mão forte e os braços tensos

    Deixando a massa escorrer e demorar por entre os dedos.

     A mulher que ama chora e sorri

    Pela conta de coisa alguma, por um nada, um o, um átimo

    Dentre sofrimento atroz e júbilo intenso

    Um grão de arroz pode ser tiro e

    Uma folha d’árvore no meio-o

    Pode ser canoa em beira de rio.

    Mas se um homem ama, eis que o trabalho cessa

     A colheita pára e o sonho baixa sobre a terra

    Repousada, distinta, em espera.Pois se trata de um outro amor esse do homem ou esse

    Da mulher:

     A mulher que ama produz, frutica;

    E o homem que ama resguarda e apropria.

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    Dar

    Penso

    E logo sua língua em minha boca

    Penetra

    E minha língua acolhe

    Dobra-se, mescla-se, molha.

    Minhas mãos descem, alisando peles

    E pelos. Agarra-os.

     Acaricia a pele, acaricia

    Com dedos em espirais que invadem as roupas.

    Minhas mãos descem, se insinuam em volta

    Tomando o pênis, pulsando com ele

     — Quero-o inteiro dentro de mim.

    Mas ainda não.

    Do beijo, lábios mordidos,

     Violados, descem o pescoço

    E encontram mãos que colhem

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    Meus seios para a promessa

    De um outro beijo doce, mole e quente.

    Pulsam o pênis e minhas mãos nele

    Descem, sobem, desvendam, armam para o bote

    De minha língua e em meus lábios some.

    Beijo, mais um e

     Ainda meus seios se oferecem

    Destinam-se, apontam, enrijecem.

    E as mãos me encontram aberta, assim,

    Oferecida, assim, molhada, ardendo

    Enquanto os dedos escorregam levados

    Penetram, voltam, brincam de

    Esconder-se sugados por outros lábios.

     Já não escuto mais e já não entendo mais.

     Apenas quero. Quero.

    Penso.

    Logo em cima de ti estremeço, danço

    E embaixo de ti, recebo-o todo e inteiramente, meu.

    Tudo entra, fundo, toca-me de dentro.

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    Eu te prendo com as pernas

    Eu te agarro os cabelos e mordo.

    Beijo, abro, deixo entrar,

    Deixo ir, voltar, meus pés,

    Minhas pernas e entre elas

    Penso.

    Quero.

    Isto é “dar”.

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    Escuta

    Preciso ir 

     Vou ter que ir. É o único grito

    E o único sussurro

    Que consigo ouvir No contorno dos sons e nas vozes do dia.

    Eu nunca te amei tanto

    (Eu nunca amei tanto)

    Mas preciso ir catar estrelasBrincar com os dedos na chama da vela

     Acariciando os pelos do gato cinza, que

    Sob as ondas de minhas mãos suspira.

    Preciso ir 

    Porque eu amo e meu coração

    Transborda disso.

    Qual peito de mulher que vaza o leite dos meninos

    Qual olhos vertendo as lágrimas quentes de riso

    Qual sexo molhado em desfeita euforia.

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    Eu nunca te amei tanto.

    Eu nunca amei tanto,

    E por isso preciso ir agarrar touros

    Fazer sombras na parede

    Sorrir das graças de uma tia.

    Preciso ir.

    É o único grito que consigo ouvir.

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     A Caixa

    Eu abri a caixa de Pandora

    E dela evadiram-se dragões e moinhos de vento.

    Em espirais, meu corpo se pluriforma:

    São meus dedos que se alongam em direção à porta,Ou meus pés é que se distanciam, cando pequenos?

     A caixa de Pandora, aberta

    Deixa ver um vórtice de coisas belas sem sentido.

    E tudo seria lindoNão fosse a suspeita de um sonho de sons e colorido,

    Não fosse a presença velada de um risco.

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    O Homem Novo

     Você tem a face de um Não imenso.

    Enorme, incomensurável, ali no meio do nariz

    E entre os olhos, bem no ponto cego.

    Nem sabes que esse Não habita em você. Apenas de fora se vê.

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    Tauta

    Lov’ya. Et ça c’est quelque chose d’innoui.

    Tout ce que je fais, does not belong to me.

     Ya know, I know. But on se trompe toujours

    Car l’impossible s’empare of us.Et nous fait, always,

    Courir. Why?

    This should be.

    Ça devrait s’accomplir.

    Lov’ya. Et ça c’est quelque chose d’innoui.

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     Verbo Intransitivo

    Um verbo intransitivo é

    Palavra que não transita “entre”;

     Algo que se diz e

    Segue, sem encontro.

    Mas também não é

    Transitório. Não se choca com

    Um anteparo. Não se dobra ao

    Objeto, então vai sem prazo.

    Passar do ponto do objeto

    Direto, indireto

    É coisa de arteiro

    Que diz “amo”, “gosto”

    Inteiro.

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    Outubro 2012

     De vez em quando é preciso irraciocinar pra ver as coisas como elas são, possíveis.

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    Carta

    “Caro João,

    O meu amor é concreto.

    Ele se constrói com carne e sangue vermelho,

    Ele se faz em palavras, também concretas,

    Inventa contos, versos, letras, sons,

    É aedo e é pedreiro.

    O meu amor é toque de mãos,

     Afago e calor, olhar e encontro.

    É frase na página mas também é na vozE de todo toma meu coração, o bagunceiro!

    O meu amor não se cala.

    Ele fala pelos cotovelos

     — Como fala e como expõe!

    Ele não blefa, mostra as cartas,É aberto, com olhos diretos

    E verdadeiro.

     Atenciosamente,

     Ana.”

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     Átimos

    Em dias frios

    Eu esquento as mãos na borda do fogão

    E tomo meu café em caneca de louça;

    Uso meias nos pés e calças compridas,Olho o fogo na lareira que aquece, de longe.

    Mas em dias quentes

    Eu esquento mais. Não só as mãos,

    Mas as peles, nas brasas de meus dedos próprios;

    E não olho para trás ou para frente,Somente para dentro.

    Em dias quentes,

     Vivo em fantasia.

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    Reexos

    1.

    O amor me prepara para receber.

    O amor me comanda, dê!

    O amor distribui.

    Mas como, se ele é só possível?

    Só?

    O amor me faz viver em dois.

    2.

    Quero fazer uma troca:

    Eu te espero e você virá,

    Eu te quero e você me quererá,

    Eu te beijo e você me abraçará,

    Eu te amo e você me amará.

    O presente pelo futuro.

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    3.

    Coisas certas são enfadonhas!

    E dizem que errar é humano…

    No erro, sou alegria,

    E não sei mais o que é acertar.

    Danço, sapateio, jogo a cerveja na mesa do bar.

    Uma menina que ri,Grávida que está.

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     A Fonte

     Amo tua presença porque ela me afaga

    Me acarinha como fogo de lareira em noite de inverno.

    Sobretudo porque não é presença de um todo.

    Não, tua presença é âmbito, é detalhe:São cabelos por cortar que deixam cachos soltos,

    São meias curtas que insinuam o calcanhar;

    Dedos calmos no que tocam a mesa, o papel, o livro,

    Como lonjuras em que meu próprio corpo se perderá.

    São olhos abaixados olhando areia de praia,Sorrisos, maneiras de falar,

    Cada detalhe, cada detalhe

    Me encontra, me perde, me faz car.

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    O Duelo

    :-)

     Vejo apenas uma solução para o nosso caso:

    o duelo!

    Escolha o lugar, eu escolho a hora

    E a escolha das armas, que cada um tome

     A arma que lhe aprouver:

    uma adaga ou uma espada

    uma espingarda ou um revólver 

    um martelo, um martelo.

    Na hora e no lugar marcado, que venha

    O juiz!

    Daremos nossos passos em direções opostas

    Contando: um, dois, três, quatro...

     Até cem; cem passos — Divergindo até nesse derradeiro evento.

    No penúltimo dos cem passos, respiraremos

    No último de todos os passos, viraremos.

     Viraremos.

    :-P

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    Sexo(Alter Ego)

     Vejo apenas uma solução para o nosso caso:

    o sexo!

    Escolha quando e onde

    E eu vestirei a calcinha preta, rendada,

    E o vestido transparente que deixa ver o sutiã.

     Você não precisa vestir nada.

    Nem vou reparar, nem vai me excitar mais.

     A calcinha preta já me deixa sucientemente molhada

     Ainda mais se imaginar suas mãos entrando nela.

    Irei na hora e no lugar marcado!

    Daremos um primeiro beijo, demorado

    E contaremos um, dois, três, quatro,

    Quantas forem as trepadas e os orgasmos.

    No penúltimo suspiro, agarrarei você pelos cabelos

    E na última enada eu sussurrarei no teu ouvido

    “Eu te amo”

    “Eu te amo”.

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    Eu disse

    Literalmente.

    Mas poesia é metáfora!

    É transporte para além do que se pode dizer.

    Literalmente.

     Às vezes, as palavras soam como hipocrisia

     Às vezes, os intervalos, expectativas do fôlego,

    Deixam ver um jogo, um combate.

    Metáforas...

    Não, poesia não é literal:

    É partida de futebol, bola atingindo a meta,

    Bela!

    Mas as palavras são feitas de letras

    E o amante transparece nelas, sutil

    Como entrelinhas.

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    Lar

    Todos os lares do mundo

    Se dobram bem ao meio de meu peito

     Vazio...

    Extrema dor, essa

    de não reencontrar você;

     — Mas se você está em mim?

    Não me reencontro.

    E quem serei, então?

     Você leva contigo o meu nome

    E ainda tem nas mãos o meu destino.

    Eu nem choro nem rio:

    Não re-clamo.

    Estabeleço ordem no coração vadio.

     Arrumo os quartos, a sala, a cozinha;

    Sonho móveis que aí estarão um dia,

    E essa janela aberta, escancarada,

    Um sol claro...

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    Foi um coração de apartamento sonhado.

    Estamparei, então, nas paredes desenhos simples,

    Um ventilador antigo, uma máquina de escrever.

    Dois símbolos.

    Seremos nós, para sempre, vívidos,

    Entreamados,Nesse lar, nesse aí vazado, vazio.

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    Penso, logo 

    (soneto instável)

    Muitas vezes penso em meu destino

    De amar um menino

    Tonto, que não me quer 

    E me desconhece por inteiro.

    Penso então em meu caminho

    Que já vinha trilhado sem desvios

    E aí penso no desatino

    No desatino.

    De amar um menino

    Tolo, que nem me quer 

    Nem me desarma os olhos

    Nem me aquieta o peito.

    Penso no menino que não solta a minha mão

     Vejo minhas mãos que apertam as do menino. Destino.

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    Novembro 2012

    O Antônimo

    Eu te amo,

    Mas em atos de palavra

    Estou me esgotando,

     Armando e argumentando,

    Repetindo,

    Em qualquer pedaço de papel,

    Em qualquer canto que esteja em branco.

    Eu te amo,

     Verdade que me corta aos bocados.

    Levando a vida intensamente para o olho do ralo

    Centripetando, circuncidando,

    Zumbindo,Uma só direção, um ponto,

    Um bloco de massa,

    Um corpo, um...

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    Qual mosca de banana,

    Cupim na luz,

     Abelha no doce.

    Mutuca na pele:

    Ou mata, ou sofre.

    Eu te amo.

    E de amar, em onda me vem assim,

    Me tem, me toma, se encrava em mim.

    Nem cansaço, nem cegueira,

    Nem meu pretenso livre-arbítrio,

    Nada posso contra isso.

    Esse amor é meu antônimo.

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    Respostas (XVIII)

    Então é amor e, enm, o silêncio.

    Porque o amor é a minha fonte;

    Porque és por mim o espelho d’água

    Quando junto as mãos em taçaRecolhendo dessa água

    E bebendo dessa água,

    Plena do gozo dessa água,

    Neste instante mesmo

    Em que na fonte vejoEm teu semblante o meu

    Em teu reexo ondulante

    O meu rosto torto, errante

    Sempre.

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    Pã e o Ego

    Existe para mim, de verdade, um amor antigo

    Um amor chegado, quente e humano

    Um amor em que se misturam nós

     Arcaico, que me faz mulher em homem

    Homem-mulher,

    Um amor que me diz quem sou.

    Mas existe ainda, em mim, um outro amor 

     Acarinhado, dedicado, formador 

    De mestre que se faz discípulo

    Do aluno que se faz professor.

     Amor-criança que me diz quem sou

    E no fundo é o mesmo amor do outro.

    Um “Pan” no amor humano e animalQue se faz canibal amor divino,

    Que meu corpo instável e mortal

    Mal consegue abrigar sem erro.

    Transborda em palavras, escreve, rima,

     Arremata a carne e confere alma.

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     Acaricia em voz meu nome próprio

    Que no espelho d’água em que o eu me consome

     Aparece e some

    Mostra e resguarda

    Pulsa e para,

    Enamora a fonte.

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    Por um Instante

    Se eu pudesse, choraria

    Mas tenho o corpo seco.

    De meus olhos vazam apenas

    Olhares perdidos, atrás de fantasia.

    Se eu pudesse, choraria

    Pois a tristeza me tem sem guarda,

    E as lágrimas, quando ao rosto rmemente acorrem,

    Reservam ao íntimo um sopro de renovada pureza.

    Mas tenho o corpo seco.

    E nele o amuo ancora,

    O ressentimento amarga

    E o estupor vigora.

    Se eu pudesse, choraria.

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    Fábrica

    Marca-me.

    Com um beijo na testa ou com a ponta do lápis no meio do queixo.

    Escreva-me.

    Desenhe-me em linhas retas pelas quais desloquem-se frases.Leia-me.

     Abra-se em meus personagens e em meus espaços sonhe.

    Use-me.

    Como roupa, como calças jeans e t-shirt de malha sobrepondo à pele.

    Faça-meCom trigo, leite, óleo, sal, açúcar, ovos e

    Bata; com as mãos, enterre-me seus dedos, fure,

     Abra e de novo faça a volta da massa.

     Ata-me.

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    Queime depois de ler 

    (Poesias e Ironias)

    “Meu querido,

    Obrigada por tua carta.

    Muito bom saber que tens em mim ombro amigo,

    Uma palavra doce, com afeto,

    Perfumes, ores; só a paz sem a guerra.

    Então percebo que morri em metáforas,

    Sem morrer “de verdade”. Caminho entre os vivos

    E, a bem dizer, eu não existo.

    Mas como meu duplo, estou lá em minha própria ausência.

     — Privilégio de pseudônimos, talvez,

    Ter a permissão de dizer coisas tristes

    De forma bela.

    Mas minha voz não é só uma voz

    É uma fala, uma linguagem.

    Pré-platônica,

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     Anti-platônica.

    Dando a volta no mundo,

    Minha voz é arcaica.

    Obrigada, então, por tua carta.

    E continuarei escrevendo

     Abertamente, mostrando, expondo

    Corpo e alma do que sinto, do que desejo e amo.

    Para que sejas embriagado pelas palavras

    Protegido em seu cercado.

    De minha parte, abrigada em Ana,

    Quero antropofagia.

    Sincera e simplesmente,

     Ana e seu duplo.”

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     A Dicotomia

    Onde está o meu sexo?

    Ele vianda, vai por aí

    Sem educação ou zelo, descalço

    E sem pelos que o protejam das chuvas e dos sóis a pino.Não se apega ao gozo nem ao úmido

    Dessa trepada fresca, presque-acontecida.

    Onde estão meus peitos?

    Desencontrados, desapontadosSimplesmente dados aos beijos molhados

    E às voltas da língua?

    Onde estão pernas, onde estão também os braços?

    Onde estão os membros que doem a dor 

    Do corpo em que se cruzavam

    No aperto do abraço rme, teso, lembrado?

    Tudo está lá dentro, escandido

    Escandalizado

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    Tudo está incompassado

    Incompossível.

    Onde parará o tornado enlouquecido

    Dessas cabeças inebriadas

    Desses torsos melados

    Desses dedos aprisionados

    Dessa paixão absolvida

    Inominável?

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    Epitáfos

    Morreu de fome

    Na porta da escola

    Na soleira da entrada da sala que habitava

    Como brinquedo.

    Morreu sem azo

    Morrida na praia

     Afogada nas ondas de seus próprios

    Credos.

    Morreu de lua

    Trincada na rede

    Que de mau jeito lançara

    Em águas paradas.

    Morreu. E chorava.

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    Dezembro 2012

    Passarinhos

    Quando eu falo, é para calar a boca.

    Porque a palavra é forteE precisa ser dita com força.

     Aprenda:

    Nem tudo vale a pena,

    Nem todos os bípedes merecem

    Teus ouvidos.Escuta,

    Quando as mãos estalam

     A dor do tapa,

    Na dor sentida do vermelho da mão

    E da cara:

    Existe verdade nessa dor.

    Não se manda ores quando se ama;

     Agarram-se mãos, que sobem

    Percorrendo braços em louca,

     Vã

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    Tentativa de fusão.

    Então, não. Quando eu falo

    Não quero ter razão.

    Quando eu falo de amor 

    Com tesão,

    É para calar a boca dos escrotos.

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    Em Carne e Osso

    Na vida real a gente cora,

    Porque as palavras fogem

    E os olhares se desencontram

    Para que não se denuncie a espera.

    Na vida real a gente evita o toque,

    Esconde o jogo que deveras joga.

    Faz de conta que não

    Quando um sim impera.

    Na vida real a gente se conforma

    Com a carência dos atos,

    Com a carestia dos gestos,

    Com a fuga e a cilada da falta.

    Na vida real somos carne e osso

    Pele e pelos.

    Respiração e coração

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    Tensão e Zêlo.

    Na vida real, somos nós

    E os contextos construídos,

    Os riscos não assumidos,

    Os mundos, os mundos,

    Prometidos, conquistados

    E perdidos.

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     A Trilogia dos Gestos

    (I)

    É você que me faz chorar.Mas também me faz sorrir 

     Assim, por nada,

    Feito criança, de boba que sou

     Apaixonada,

     Alegremente dada.

    É você que dói quando dói em mim,

    Mas também é você que me percorre

    Quando os membros sublevados

    Explodem,

    E de prazer meu corpo jorra,

    Ensurdecendo-me

    Enquanto eu, atordoada ainda,

    Invento a casa, o quarto e, nele a cama,

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    Desse gozo imaginário

    Desses risos de fumaça

    Nesse amor além da conta

    Consentindo para ser amado,

    Num quase beijo nunca roubado

    Num forte abraço, apertado, inteiro.

    (II)

    Tudo por demais,

    Embora seja cedo.

    Por demais sentida

    Ferida, descrente...

    Por demais silente

    Sozinha no jogo

    Que é risco de vida.

    Chego de novo à hora desse vão Já percorrido?

    Nessa dor de mim mesma,

    Falando ao vento

    Sobre coisas sem gesto,

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    Sem gesta,

    Causas amargas sem resposta?

    Não. Nessa hora morta, essa mágoa

    Deve ser saudade.

    Efeito da lonjura e dos segredos que,

    Na distância,

     Viram fantasmas.

    Então, desmente a minha sina,

    Desmente...

    Só uma vez me diga sim,

    Que não enlouqueci,

    Que soube claramente, do dia em que te vi,

     Até o presente,

    Que havia amor ali.

    Consente.

    (III)

    Sozinha na manhã que de novinha

     Aparece clara,

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    Converso com meus botões

    Sobre os gestos da semana passada,

    Sobre o amor e a paixão, enm,

    Que de assalto invadem minha casa

    Povoando-a de sombras e signos.

    É Hermínia quem pede a palavra

    E me diz que signos são complexos,

     Ardilosos, perversos.

     Atenha-se ao que é concreto,

    Conselho que me dá Hermínia

    Bebendo seu gole de vinho.

     A ela, depois do copo de aguardente,

    Bêbada e quente,

    Replica Ana, que a paixão é simples.

     A gente se ama quando ama,

    E dá de inventar signos.E se isso dói ou traz alegria, diz Ana,

    É apenas efeito do prazer enorme

    De ralar os joelhos fodendo-se na vida.

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     A elas eu digo, entre risos,

    Que não sou nada

     Além de vertigem e palavra,

    “E vocês estão comigo, convergindo.

    Escrevam, então, a minha saga,

    Decifrem-me que me devoro

    Nos sinais desse amor contrário,

    No concerto inebriante dessa caçada

    De amante nua e desmesurada,

     Às sombras e aos signos”.

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    O namoro dos rios

    Quando o Negro encontra o Amazonas,

    Diz o rapaz que nos guia,

    Eles não se misturam no mesmo instante

    Não, eles margeiam, um no outro Águas turvas e águas limpas.

    Eles se molham aos poucos

    Das águas um do outro

    E namoram o tempo inteiro,

     Até que nda uma certa distânciaEntrando por entre margens bem denidas

    O barco da gente nalmente alcança

     A mistura das águas nas cores dos rios

     A mistura das almas num só curso das águas

     A mistura dos nomes desses mesmos rios.

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    Ladra

    Eu entrei na sua vida assim,

    Como quem rouba um doce anunciado.

    Eu entrei assim,

    Como quem vai com a correnteza do rio.Em minha vida fez-se mar 

    Fez-se horizonte,

    E peixe nesse mar.

    Eu entrei assim, sentei na sala de estar 

    E perdi o olhar no horizonte do meu mar.Eu entrei assim.

    Que mais posso falar,

    Senão que não há mais para mim

    Outro jeito de entrar?

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    Feitiço(I put a spell on you)

    Esse olhar que me devora

    E que em mim e em você ancora

    É nele que me vejo

    E em que pousa meu desejo

    Nesse olhar perdido

    Intensamente vivo

    Enfeitiçado pelo ser amado

    Esse olhar direto

    Fulminante ataque

    Imediatamente atacado

    Conquistado

    Caçador e caçado

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     Alteridade

    Ultimamente tenho buscado os espelhos

     Atrás da alma, porque no corpo claramente sou além.

     Apresento-me a mim mesma umas cem vezes

    E sempre pela primeira vez, me desconheço.

    E contudo, essa falta de saber se sou quem

    Esse deslocar além em que não reconheço

    É agora o encontro de mim, é o meu encontro.

    O que eu escolhi, mutante, foi amanhecer.

    Tem aqui uma aurora.

    Tem um big bang, um ato de

    Inauguração original do mundo.

    Na direção do sol nascente,Na contra-luz da aurora, eis o lugar onde te vejo;

    E é para lá que eu vou e já fui ao mesmo tempo,

    Corpo e alma, semblante, rosto.

     Vim buscar você. Venho. Virei.

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    Recado

     Agora eu li Platão!

    E em conformidade assenti,

    Todo amor não pode senão

    Ser platônico.

    Pois quando se seguram as mãos

    Ou se envolvem em abraços

    Ou mesmo quando lábios se encontram

    E beijos se dão,

    Não se toma nem se envolve nem se beija as

    Ditas coisas,

    Mas são as almas que

    Se alcançam, transbordando do corpo

    E encarnando-se,

    Em dupla direção.Não há, portanto, nenhum amor 

    Senão no excesso da alma

    No quase-encontro das mãos.

    Eis a antropofagia. Tudo; e demais.

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    Insônia

    Cheguei de ressaca por conta de tudo.

     Acordada, dormi num sono escuso,

    Tanto que dele me feri e a cabeça doía,

    Enquanto o tornozelo inchado e magoado Vem ainda lembrar uma luta perdida.

    No ínterim da insônia digo em minha cabeça:

    Tenho pernas, tenho peitos e estou aqui sozinha.

    Coisa de gente embebedada, embevecida,Encurralada e mal-dormida

    Na hora morta da madrugada, quando se lamenta

    De tudo na vida.

    Eu devia ter amado mais ou falado menos?

    Eu devia ter feito mais e calado menos?

    Eu devia deixá-los em paz?

    E essa agora, que o sol já vem...

    Na vida nal da madrugada

    Quando a consciência me tem.

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    O Livro das Memórias (dez 2012- mar 2013)

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     Autofagia

    Não dá pra trepar simplesmente por sexo.

    Se for esse o caso, eu mesma me trepo,

    Que pelo menos mantenho livres os pensamentos

    Para confrontar o rosto de quem eu bem quiser.E aí posso gritar o nome certo

    E fazer de conta que o mesmo impulso o atinge

    Naquele exato momento.

    Trepando por sexo, eu te como.

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    Mistérios

     A primeira vez ainda brota em mim

    Como tendo sido a do primeiro beijo

    Ou a da primeira tarde de amor.

    São cinco horas e para tudo em torno,

    No intervalo entre essa lembrança

    E um não sei quê de alegria

    Conduzindo as mãos ao centro do mundo.

     A primeira, as outras e a última

    Contam, como mistérios,

    Como batalhas da impossível juntura

    De dois ínmos mundos.

    Entre os dois, um nada,

    De um milímetro de pele e

    Depois, aquilo que não está lá.

    O sentido e o sentimento

    Da ausência desses mesmos contornos.

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    Essas pequenas mortes

    Esses brevíssimos jorros

    São mesmo mistérios,

    O orgasmo que vem do cérebro

     Através de minúsculas nanonervuras

    De músculos tesos,

    E o prazer que não encontra o espaço

    Nem o tempo, nem se conforma

     Aos limites desse corpo.

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    Sobre isto que não é

    Temos um caso.

    E em pensar, perco a hora.

    Em trocar o aqui e o agora

     Vai-se a noção do juízo.

    Sigo sendo aquela que insiste

    Por que não vê? Ou que insiste

    No que vê, mesmo que tudo

    Esteja dado como não, e m?

    Eu não quero mais falar disso.

    Não quero consentir sempre

    No estardalhaço e no perigo

    Do que se toma por desatino.

    É fogo. É falso e é fato.

    No momento em que digo

     Já se foi, ao abrigo.

    E tudo não passou da porta de meu quarto.

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    Mas ainda assim, repito,

    Temos um laço.

    É a ponta de um o

    É um talvez, em essência.

    É um grito, uma impertinência

    De minha parte, que sempre falo

     — Tem algo torto, tem algo errado.Ou bem eu perdi o senso

    Ou bem nada faz sentido.

     A busca, a obstinação

     A falha de julgamento.

    Fico com o que temos.

    Sem mais mistérios

    Nem desvelamentos.

    Fico com meus cascos,

    Batendo rme na terra.

    Pois que digo e não largo,

    Esses gestos impensados

    Essas arestas, esses lances de dados,

    O que temos é um caso.

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    Sobre Amar (1)

    Não sei do amor, ele se perdeu

    No meio do caminho, na chuva forte,

    Pé ante pé em estrada escura e cheia de lama

    fofa.Perdeu-se ao virar a esquina

    Olhei para os lados e vi apenas

     A neblina

    Do dia chuvoso em que resolvi fazer 

     A tal viagem.Não sei quando, não acompanhei a

    Caminhada.

    Conei na clareza dos rumos e dos mapas.

    Me perdi.

    E conforme caminho, entristeço

    Na lembrança da gura amada

    Que, mirando em meu telhado

    Lançava ores e jorrava.

    Em meus olhos um assombroso

    Turbilhão de lágrimas

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    Se esconde sob pupilas

     Armadas para um sorriso.

    Perdeu-se. Só me resta

    Seguir na estrada, esperançosa

    De que ele tenha chegado

     Ao seu destino.

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    Sobre Amar (2)

    Um dia após outro dia

    E está tudo lá, nos olhos

     Assim como nas lidas.

     As mãos que não se encontram

     Já estão de há muito encontradas

     Apertando-se juntas contra os

    torsos, juntos.

    Seguiremos sós e como nos amamos

    Os passos cobrem os passos

    E as pernas entrelaçam as pernas

    Ontem e hoje

    Mesmo que não estejamos vivendo

    Na mesma casa, na mesma hora

    No mesmo centro.

    Um amor puro e sem sentidoUm amor forte como fogo

    De terra seca.

    O que mais posso dizer 

    Senão que o que não vemos

    É ainda o que se passa?

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    Sobre Amar (3)

    Para no meio dessa ponte

    E olha em torno.

    Tem paisagem e tem abismo,

    Tem céu e tem quedas d’água.E se agora vês abaixo a

    Correnteza do rio;

    E se queres que assim a tua mão eu segure;

    Te direi sim, mas no meio dessa ponte

    É onde caremos.Então, segura a minha mão também.

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    Sobre Amar (4)

    Nunca te direi a verdade

    Mas te contarei todos os meus devaneios

     Aqueles que surgem quando

    Estou sozinha, observando as Árvores e o vôo dos pássaros em bando.

    Não posso extrair de mim a pele

    Exibindo aquilo que sou por dentro

    Mas meu rosto você conheceMeu riso em lágrimas

    E o descanso bizarro dos dedos de meus pés

    Dobrados.

    Não sei dizer onde estou nem o que faço

    Tem um canto escuro que nem mesmo

    Eu desbravo.

    Mas para escutar uma canção contigo

    Encerro tudo o que faço, tudo o que quero

    E me sento ao lado.

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    Nunca saberei, de fato.

    Haverá que lidar com isso.

    Haverá que aceitar não ter motivos

    Não ter razões, não ter o menor sentido.

    Haverá que amar a descompostura

    No amado, seu limite.

    Queremos forma, é claro.

    Queremos pontos namente dados

    De uma beleza innita.

    Mas o amor não é isso.

    O amor é amar o quarto escuro

    É encontrar no rosto a alma

     Aberta, criança e vazia.

    Essa alma é a esperança

    Da medida que dá sentido ao mundoSó então preenchido de temas

    De lavores, desassossegos

     Vigílias.

    Quando eu amo,

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     Amo isso tudo:

    O dom, a perda e a promessa

    Do vazio.

     Amar é para loucos.

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    Sobre Amar (5)

     A dúvida estará sempre lá.

    Não somos um, não nos completamos.

    Mas quando estamos, compomos.

    Somos lindos e somos feiosDe dentro, vemos os lapsos de um encaixe

    Mal-feito. Mas não podia ser diferente.

    Não somos metades, somos um todo

    Não somos máquina, engrenagens,

    Somos elos.Então, a dúvida estará sempre lá,

    Pois não fomos feitos um para o outro.

    E o acaso em que nos encontramos

    Não se chama destino,

    Mas sorte, fortuna e

     Jogo.

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     Acontecenças

    Quantos pequenos atos

    Tiveram que ser agidos

    Por mim, por você, pelos vizinhos

     Aos nossos lados,

    Para que num único instante,

    No patamar da escada,

    Tivesse você batido numa porta que,

    Por acaso, dava para aquela sala?

    Quantas estrelas tiveram que morrer 

    Deixando para trás um brilho intenso?

    Quantos touros indomados,

    Cavalos vencidos, rinhas de galo?

    Quantos ônibus passaram e

    Quantas palavras foram ditasQue nos guiaram ao ponto,

    Preciso, exato, este ponto,

    Em que os olhos se encontraram

    Mesmo que não vendo?

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    Foi o silêncio e foi o vácuo.

    Nesse lapso do tempo,

     Algo foi pensado,

    Tão tolo quanto um juízo sobre

     A cor da camisa ou o machucado

    Na ponta do nariz,

    O que provoca um riso e desfaz o laço,

     Abrindo a caixa dos nossos Afetos.

     Até que num dia qualquer, nesse acaso todo

    Depois de tantos risos soltos e

    De outras tantas conversas sérias

    E adas,

    O universo inteiro conspira

    Para juntar os quantos touros, cavalos vencidos

    E galos tombados,

    No momento de um único estalo,

    Quando tudo ca claro, demasiado claro.

     Assim que os feitos se tornam signos,

    E os acontecimentos viram passado,

    Olhamos em torno, olhamos o tempo,

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    Espantados com tudo aquilo que

    Os afetos edicaram.

    Tem um jardim, um parque e toda uma cidade;

    Tem usina elétrica, trilhos, cafés e tabacarias,

    Tem gente, música e estardalhaços.

    Tecemos o mundo e estamos assim, amando.

    É a lei do encontro entre o corpo e o chãoLei da gravidade, regras do jogo.

     Vem dos olhos à pele, da pele à carne,

     Ardem as pernas, ardem os lábios

    Secos, à espera

    Movendo mundos, girando ponteiros.

    É por isso que tudo jorra

    E se mostra num único e clarividente

    Espasmo.

    Do último dia ao primeiro

    Está tudo compreendido e tudo explicado.

    Nada ocorreu, nada adveio

    Que não nascesse do amor do amante

    Pelo amor do amado.

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    Blues

    Parece muito tempo

    Mas não se passou quase nada

    E estamos eu e ele, aqui, trocando olhares

    E frases, entre parênteses.Tudo se encaixa mas também tudo

    Foge da mente

    Quando o som começa

     A dor se apaga e os olhos

    Enchem d’água porqueSou feliz e triste ao mesmo tempo.

    Esta é minha história

    Nada pessoal, nada incomum

    De alguém que chora porque

    Não é amada e de alguém que

    Sorri um pouco de tudo

    Sabendo que essa pontada

    No peito

    É que acorda a vida

    E chama o corpo para habitar 

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    Um fora. Lá longe

    Moro e me perco

    No hábito de não ter dono

    De ser senhora. Sozinha

    Me demoro nesse instante

    Em que tudo indica

    Que a canção repete a

    Partida, a fuga

    Eufórica de quem não

    Tem senão um só caminho

    E um violão no meio da estrada.

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    Ser ou Não

    Em tudo, uma dúvida:

    Sou eu que penso

    Ou o mundo pensa em mim e eu

     Aquiesço?

    Este é aquele, momento do

    “Quem sou”,

    Quando desejaríamos a exatidão

    De uma imagem que não vemos.

    Pois não “somos” nada.

    Caixa vazia, a quem noutro canto

    Chamei de cínicos

    Em seus barris-morada.

    Pensamento estranho?

    Qual! É que somos livres...

    Mas é na liberdade que começa

     A obra e se desdobra a lida.

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    Tem que construir um rosto

    Histórico, topográco;

    Tem que investir num corpo

    Com suas cores, texturas e cheiros.

    Tem que morar na cidade,

    Caminhar na praça,

    Cumprimentar os outros;

    Tem que amar num leito.

    Tem escolhas.

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     A Tecelã

    Entre as portas da cidade

    Caminhava torto o mercador 

    Fenício,

    Senhor antigo, sabedor das línguasDe todos os lugares em seu caminho.

    Esqueci seu nome

     — Ficará ao abrigo.

    Mas levava consigo,E disso eu não me esqueço,

    Tapeçaria colorida feita na Cária,

    Cheirando ao incenso

    Com que as moças do tear 

    Perfumaram sua obra mesclada

    De lã e de linho.

    Perfume tão adocicado que

    Posso sentir ainda, de memória,

    E me traz lembranças dos dias

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    Em que às portas da cidade eu

    Brincava, com meus irmãos

    E minhas amigas.

    Faz tempo enquanto lembro disso,

    No interior deste quarto mesmo

    Em que teço e desteço meus próprios

    Panos, minha própria arte,

    Escondida dos nomes e das cidades

     Vivendo na casa de meu marido.

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    Trovas do João Bobo

    I. A Estúpida Carne

    Troquei um grande amor 

     À altura de uma vidaPela fumaça cinza.

    Seja assim.

     Ao menos

    Haverá

    Fim.

    :{

    II. Nossos Próximos

    Tinha que ser assim

     A fraternidade humana

    Universal?

    Tínhamos todos que ser 

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    Cristãos ou escoteiros

    Ou escoteiros cristãos?

    O amor existe desde antes dessas

    Prossões de fé.

    Ele desrespeita, adultera,

    Invade.

    Me dá tua mão antes que

    Seja tarde

    E os mandamentos dos bons

    Tirem da gente a nossa infância e

    Roubem a inocência dos nossos

    Brinquedos.

    III. Não Matarás

    Não te aproximarás de mim

    Para matar a fome nem saciar 

     A dor.

    Não me dirás palavra

    Pois que palavra existe

    E o que existe acossa.

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    Não conscarás o teu lugar em

    Mim, porque o teu lugar é

    Mais do que podes suportar.

    Não saberás, passará.

    Não mais sequer desejarás.

    Então vai, apenas mata.

    Mas não matarás.

    IV. O Pecado da Gula

    Segue acordado, pequeno homem,

    Que os estrangeiros rondam as fronteiras

    Pedindo entrada, avançando ao longe,

    Então, não descuida da tua guarda.

    Leve abaixo as árvores que estão à frente,

    Deixe plano, chão de terra batida

    Bem cercado. São todos bárbaros,

    Cabelos soltos, barbados

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    Pelo pecado da gula levados,

    Querem teu celeiro, o mel e o leite

    Os pães e os bolos,

    Querem a carne, o vinho

    Que se derrame pelas bordas das bocas

    Que obscenamente se abrem,

    Como se comessem gente ao invés

    De gado.

     V. O Falso Testemunho

    Cegos, somos todos. Mas

    Tirésias, dentre nós o mais cego

    Ele via.

    Por baixo do manto da tirania

    Havia um lho predestinado

     A matar o pai, unir-se à mãe

    Em casamento escuso

    Desatinado.

    Ele nos disse, nos armou que via

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    Mas somos todos cegos

    E suspeitamos, por trás das palavras

    De um clarividente

    Houvesse a cobiça de um outro tirano.

     VI. Posse

    O coração é pequeno,

    Não cabe um o de lã.

    Mas as duas mãos são grandes

    E agarram todo o novelo.

    Quisera ser assim,

    Pisando rme no chão do mundo,

    Como se fosse minha a posse, e só minha,

    Tanto da dor como da retidão do prumo.

    ... Mas o coração tem que ser pequeno.

    Os grandes deixam arestas, assim, de graça,

    Transparecem, os tolos, em suas dobras e curvas,

    E somente batem pelo amor das dúvidas.

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     VII. A Sabedoria

    Indigente. Eis o Cínico

    Em sua morada-barril

    Caminhando pela cidade

    Pelos pórticos da ágora

    Declamando poesia em lugar De palavra.

    Ninguém sabe nada. Ele sabe,

    O mendigo a quem a cidade

     Alimenta como seu profeta.Eis o cínico, desprovido de tudo,

    O não endividado

    O inocente invejado.

    Sua leveza é bárbara,

     Ausência total de laços,

    Família, amigos, uma casa...

    Indigente. Eis o sábio,

    Que não pede nada,

     Vivendo em seu barril-morada.

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     Verdadeiro amante da sabedoria.

    Pobre, mendicante

     Andante, morador de rua

    Perambulante,

    Caixa vazia.

     VIII. Finale: o medo

    Meu coração estanca

    Quando encontro meu rosto

    Num espelho e perceboQue não me basto

    Que não me lastro

    E do que tenho medo.

    Tenho medo de encontrar sempre

    O mesmo rosto que não se entende

    Que não reconhece o tronco a que pertence

    E que persiste na busca do que não vê

     À sua frente

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    Tenho medo ainda de não mais amar 

    Porque o amor é singular e depende

    De acontecer, reluzir, faiscar 

     Assim, de repente; é raro

    Urgente.

    Tenho medo de persistir, para sempre

     Junto ao povo opaco, intransparente

    Que não se doa, não se lança

    Não se arrisca e não percebe

    Que risco impende à lida dos outros.

    Tenho medo do junto e do separado

    Do certo e do errado

    Do justo e do injusto

    Tenho medo de julgar e de nunca mais

     Acreditar, simplesmente.

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     As Horas

    É madrugada e não durmo,

    Penso.

    Nessas noites caladas, os relógios

    Deveriam ser suspensos.

    Mas eles continuam marcando as horas

    Que passam lentas, e contudo passam.

    Só que a lentidão aumenta a dimensão

    De tudo aquilo em que penso.

    Imagina a sensação de sonhar acordada,

    Escutando os ponteiros de um relógio

    Lento!

    No amor passo, volteio e repasso

    Com a calma de quem possui

    Todo o tempo.

    Cabe nesse entre-passo uma vida inteira

    Lado a lado,

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    Ou ainda cabe, com a paixão mais intensa,

    Que trepemos como doidos

    Na madrugada,

    Quando quedam todos os elos.

     — Dormindo os homens, descansam os fatos,

    Para que os ponteiros se mexam

    Sincronizados,

    No enquanto, libertados, aos poucos desfocamos

    De ser e não ser em pensamentos.

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    Histórias de Amor (I)

    Está tudo ali, disposto.

    Os vasos, os travesseiros, as luvas.

    E por onde passo as coisas mostram

    Sua ordem meio divina.O chão é chão e a pedra é pedra.

    Não me encontra mais desprevenida

     A utopia. Tudo tem seu lugar, eu sei.

    Mas é que o amor cona

    E organiza tudo à sua imagem.No m, isto será sempre a forma,

    O ponteio e a meta do lápis.

     Ver as coisas no inegável chão do mundo

    Como dobras.

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    ... Essa Outra História.(Histórias de Amor, 2)

    Talvez um dia eu ganhe

    Ou perca, nalmente.

    Talvez um dia...

    Mas hoje eu vou pensar assim:

    Tudo que estiver em mim

    Será também teu; e não há como

    Desdizer:

    Não sou ninguém,

    Mas é pra ser?

    É isso, um destino.

    Não asseguro porque não posso.

    Não é estória minha, mas

    História de amor. E essas histórias

    São sempre pressentidas

    Sempre pré-vividas em sinais

    De talvez-mundo, talvez-vida.

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    No m das contas,

    São entre-dois.

    Não há que perguntar se

     Vale a pena.

     A decisão já foi tomada de antemão,

    Quando na tua pele persisto

     A encontrar alguém

    E me recomeço.

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    Presságios

    Case-se. Eu não me importo.

     A gente sempre cantará sozinha.

    Se não fosse meu o despeito, minha a mentira...

    Como assusta a intensidade da vida!

    Como arde a urgência do leão no deserto

    E a da serpente enroscada em seu próprio anel!

     Vida é céu e inferno, decerto.

    E se não houvéssemos nós, os possuídos,

    Encontrado na sanha de tentar o homem

    O amor dos verdadeiramente justos,

    Seríamos apenas sombras esmaecidas,

    Mas somos a mão e a terra.

    Sim, isto é o que todos somos, também. Vela, então. Vela.

     A última tentação tarda ainda.

    Não nos veremos mais

    Embora continuemos juntos

    Por coragem e covardia.

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    Tenho medo desse futuro.

    Prevejo a dor desse futuro.

    Gostaria de afastá-lo de mim e,

    Contudo,

    Ele me fascina.

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    Pequenos Ocasos

    Meu coração bate. Respiro.

    É que meu coração bate. Teima

    Que invade o sangue e adoenta.

    Em minhas veias correm tuas marcas.

    Minha carne pulsa. Intensa

    Zoeira que em meu corpo queima.

    Pois em meus lábios abertos resiste

    Teu nome. No som insistente

    De um berro.

     Vão-se mantendo os punhos cerrados,

    Que cortam a palavra antes do tempo.

     Afundam doendo as mãos nas unhas.Mutilam o abraço.

    Que pena...

    Escuta! O barulho da chuva no telhado

    É um sussurro.

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    Reminiscências(Dados pornográfcos sobre as pedras)

    I.(Adagio)

    O amor é forte e sobrepuja.

    É intenso, e sucumbe à ausência.

    É verdadeiramente inaceitável!

    Imperfeito, incorreto,

    Imponderável.

    Esse amor é imenso;

    Um gigante incomensurável,

    Que machuca quando pisa a terra

    E amedronta idosos, meninos e inválidos,

     Ao passar da conta.

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    II.(Andante)

    Onde já se viu!

    Perdoe-me, que isso não é fácil...

    E contudo é simples.

    Não é leve, não é prático,

    Não se liquefaz ao morno do toque,

    Não se derrete no calor d’um só abraço.

    Pois esse amor é sólido e cristaliza;

    Porque é fundo, se enraíza;

    Porque tem rosto, mostra;

    E, como existe, é ferro, é fogo e sangue,

    Tem alvo e mira.

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    III.(Allegro)

    É assim que vivo em te querendo vivo.

    Sem diminuir a pedra, sem minimizar 

     A forma,

    Sem destilar a coisa

    Como se fosse pouco ou

    Falta, desjuízo.

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    IV.(Fugato; intenso)

    Seguindo em frente,

    Fugindo dessa hora,

    Quero, muito, é fato,

    Capturar você

    E cobrir cada pedaço

    De suas pernas, braços

    E outros tantos membros

    De beijos molhados,

    O coração pulsando forte

    E o rosto vermelho.

    Quero fazer calor em você,

    Desvelando inteiramente,

    Sem decência nem anuência,

    Pela força de meu golpe

    Inesperado;

    Que você seja obrigado

     A provar meu gosto,

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    E sentir na própria pele

    O meu sal e o meu cheiro.

    Quero puxá-lo pelos braços

    Em direção ao meu corpo

    Sem saída,

    Olhando olho em olho

    Engolindo-o inteiro, todo,

    Desaando-o a dizer de novo

    No instante extremo desse gozo,

    Que a premência do rapto

    Não te provoca medo.

    Porque amar não machuca

    E tem que ser ameno.

    E esse meu arroubo,

    Esse arremate violento e louco,

    Não encontra a carne, o corpoO coração e o desejo

    Do outro.

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     Acaso

    Foi tudo por acaso.

    Um dia, olhando para o innito

    Eu te vi, eu te ouvi e eu te quis.

    Havia um sonho sendo sonhado

    Nesse lugar distante, o innito

    E você sentava ao meu lado,

    Quando por acaso, percebi

    Que, de fato, havia mais que fantasia

     Ali.

    Me despedi de tudo o que já era dado,

    E o segui.

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    Consentimento

    Sim.

    Eu digo sim, impensante e descompensada.

    Em descompostura, eu digo sim;

    Desalinhada e nua, A conrmação continua

     A construir morada.

    Sim, eu digo.

    Intensamente e unicada,Pacicada e insana

    Desejante e dada,

    Num consentimento pleno

    Sem medida, imenso,

     Alegria ardente e despudorada.

    Este sim é o que eu tenho.

    Eis a minha única e própria palavra,

    O motivo das lições que aprendo

    E que ensino apaixonada,

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     A razão dos interstícios

    Entre meu silêncio e minha fala.

    Pois meu coração assente,

    Desde que sou criança, agora ainda,

     Aberto e inocente,

    Sem juízo e desajustado,

    No amor livre à entrega,

    E na crença no consentimento dos outros.

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    Recusa

    Tem uma planta ortogonal que me invade.

    Mão de arquiteto, densconstruindo terra

    Para elevar a cidade,

    Retiranto curvas, esquinas e ruelasPara colocar as retas e os quadrados

    Cravando no solo pedras, estacas

    Para delimitar propriedades.

    Tem um tiro certeiro que me atinge.Mira de atirador de elite, no meio do peito

    Mal ouço o estampido e já caio, em vertigem,

    Enquanto a bala corta na carne

    O trajeto no do projétil lançado,

    Surdo, limpo, preciso e exato,

    Meus olhos abertos, surpreendidos sem vida.

    Tem uma franja de barro que sobra no corte

    Tem uma nesga de carne que a bala recobre

    Em todos os moldes e mortes,

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    Tem uma coisa que ca,

    Que teima em desmentir a reta,

     A extensão do traço, a precisão da meta,

     A beleza espúria do certo no errado.

    Tem aquilo que transborda,

    Mesmo no sangue não derramado,

     Aquilo que ca impresso nos olhos vidrados,

    Tem algo que vigora alheio aos traços do quadrado,

    Tem sempre esse pedaço, estilhaço das horas

    Que faz parar o uxo d’água na clepsidra.

    Tem o amor fatídico do amante pelo amado.

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    Saudade

    Sodade, diz Cesária

    De Cabo Verde nascida,

    Originária.

    Sodade é o que dói e o que ri

    Na felicidade de poder sentir saudade

    De consentir na saudade

    De permitir.

    Sinto tua falta, como

    Não haveria de sentir?

    Inda mais quando Cesária

    De Cabo Verde nascida,

    Originária

    Canta com voz de lua cheia

    Reetindo nas águas da praiaO momento da nostalgia

    Do quase lamento

    E da pouca alegria

    De não poder viver contigo

    Mais de uma vida.

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    As Cinzas (março a maio de 2013)

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    Eu confesso

    (1)

     A espera e o vazio,

     A luta e a ausência, A paz do meu quarto fechado,

     A violência do desejo contido,

    O amor ao lado

    E o cercado,Em espirais sem saída.

    O lamento da própria pena,

    E a paixão que preenche o espaço,

    Os fantasmas diários, cultivados,

     A textura doce da tormenta.

    Confesso a dor 

    Que venho sentindo

    Sem saber como tocá-lo.

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    Um oratório despedaçado

    Na madeira forte setecentista,

    No olhar barroco

    Em tons de rosa claro.

    Eu sei do sol, assim,

    Espalhando a luz

    Em cada pedaço.

    Nem mesmo penso

    Se mereço isso.

    Nem mesmo entendo

     A razão de haver escolha.

    Mas eu confesso o acontecido

    De um encontro

    Em que me envio.

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    (2)

    Eu confesso que estive andando

    Conscada de tudo e

    Sem razão em nada.

    Confesso que devastei a terra

    Com bombas mais severas

    Que as da Coréia, Irã e Israel.Confesso que chacinei o povo

    Cortando gargantas e que

     Atirei ao mar outros tantos marujos.

    Confesso que deixei os pequeninos

    Sozinhos num bote, à derivaE chamei a tempestade que veio

    Louca, sedenta do sangue

    Dessas pobres vidas.

    Com essa conssão espero

     Aguardo, anseio que

    uma força cósmica exista

    E que me redima, suspendendo

     A memória dos crimes que

    Cometi ao errar tanto,

    Que nem sequer consigo

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     Aplacar contra mim a própria

    Ira, o agelo e a vingança.

    Tende piedade de mim,

    Ó criança, ó coração e alma

    Menina.

    Recebe toda a minha esperança

    De que um dia eu dance de novo

    Lançando âncoras e

     Afagando os cabelos

    De alguém que ame sem medo

    Das batalhas perdidas,

    Que não me faça nascer 

    Morrida.

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    O Grande “Entreparênteses”

     Amo você para além deste mundo.

    Para além dos destinos, das sinas

    E dos caminhos.

     Amo como um solE como um rumo

     Já trilhado, amanhecido

    Naquele único instante de brilho.

     Amo porque fomos umE porque somos.

    O tempo, é certo, vai curar a ferida.

    Essa vida longe é como um sonho

    Mas ainda assim é a vida,

    E é da vida.

    E sigo reencontrando em cada

    Lance de escada

    Em cada esquina dobrada.

    É assim a partida:

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    Quem já amou mesmo,

     Verdadeiramente amando,

    Não nda.

    É o último sopro e é

    Também o primeiro.

    No diverso, tem ainda

    Um verso, uma frase

    O som de uma voz que

    Perfaz a trilha comigo.

    É contudo um passado.

    Estive lá onde um dia nasci,

    Estive lá no dia em que morremos

    E estarei lá, mais à frente

    Pois não sou mais que isso.

    Essa estadia, esse espaçoEssa memória, esse laço.

    Como não amar desde sempre,

    Mesmo que nosso encontro

    Tenha se perdido?

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    O enterro dos ossos

     Vai, aquele que chegado

     Jamais veio ter comigo, de fato.

    Segue, enquanto choro d’um choro errado

    Sobre a fogueira desses ossos mortosQue tentei montar, como se um lego

    Pudesse viver e andar sobre o mar.

    Que quis acender e z queimada,

    Embora homem de guerra nesses ossos

    Não devesse ter sucumbido...

    É um réquiem a canção que canto agora,

    Enquanto gravo na pedra o epitáo:

     Aqui jaz o amante para seu amado,

     Aqui deita o amado, longe de ser apaziguado

    Com um beijo faminto, gelado,

    Por entre lábios frios.

    São apenas ossos devindo cinzas,

    E nas cinzas rostos desfeitos

    Em vento, em maresia.

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    São restos de uma outra história

    Tão obstinada com o renascido,

    No verso das mãos que levavam consigo

    Os contornos prontos de um bem-amado,

    De um homem novo, recém tramado

    Por traços de mulher, como sempre,

    Pelo beijo da mulher que o abraça com as pernas

    Enterrando os ossos de homem na terra,

    Dentro dela.

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    O Dó-de-si

    Essa tristeza enracinada,

    Esses gestos interrompidos,

    O amor, o amor,

    Esse laço,

    Essa corda pendendo

    No vazio do espaço,

    Um o de navalha

    Que corta,

     A garganta seca

    De gritar no vácuo

    E de esperar que os

    Seus fantasmas

    Se adequem ao que

    Não podem,

    Porque são fantasmas

    E não fatos...

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    ... Queimando no fogo

    Da luz dos olhos,

    No brilho intenso,

    Um arco tenso

    E o dom da or da pele

    O dom desperto

    Do zelo com que sente

    O alívio do esgotado.

    O amado, o amado,

    Escondido ao mais profundo

    Poço, perdido entre

    O peito e a força dos braços,

    Num abraço, num gracejo

    Ingenuamente escapado...Onde vai o si-mesmo

    Nessa perda ao que foi lançado?

    Em vertigem, come a terra

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    No caixote da onda,

    No tombo à partida,

    Na queda, na queda.

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    Cinco versos em cinco linhas

    I

    Há uma canção em minha cabeça

    Enquanto ela gira em sonho estranho

    Coaxam alguns sapos “eu te amo”,

    “eu te amo”, os sapos

    E o ruído do pântano.

    II

    Porque no canto da quina da porta

    Tem um fundo falso, escondendo a fendaPara um outro canto da curva da esquina,

    Onde os pés entortam ao cruzar a linha,

    Entre um beijo e um poema.

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    III

    Tinha os olhos entorpecidos a distinguir

    nos tons marrons e beges do assoalho,

    O torvelinho, a espiral

    Que a mão gira sem saber que gira,Quando a cabeça pende, dentro da roda-viva.

    IV 

    São os mitos que nos tocaiam

    Nas entrelinhas e nos desenhos dos cantos

    Das folhas do caderno. Vêm à luz

    Quando, contra a luz, ilumino a página

    Escrita pelos seus avessos.

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     V 

    Enfeitiçada com o que danço, noite, dia

     Ao som da minha própria cantoria

    Em tristeza, sim, e na mais pura alegria

    Que o feitiço impende como sina,

    Quando o feiticeiro nem sabe que também dança.

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    Onde?

     A saudade é sempre

    Uma pontada no innito.

    Não começa nem termina,

     Já vai entrando sem pedir Pela hospitalidade à lareira

    Dos aitos.

    E nesse pátio se cultiva,

    Brota como or,

    Cresce, convive Abarrotando a mesa de gos

    E saciando a fome

    Que nasce dos devaneios

    Loucos de quem só guarda

     Aquilo que já traz no peito

    Sozinho.

    Sim, saudade é parente

    Da noite,

    Quando a mente acordada

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     Acerta o compasso e enxerga

    O caminho, para esquecê-lo ao

    Longo dos afazeres do dia.

    Mas ca na pele esse arrepio

    De uma dor alegre nascida de

     Véspera, quando

    Em noite, em saudade, em innito,

    Imaginei o mundo —

    Como ele seria — 

    Nas cores vivas que abrigo.

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    Encontro

    Em face à tua face

    Tem um entorno que se

    Descortina.

    Tem uma passagemPor onde um veio d’água mina,

    E tem sempre uma hora

    Em que o relógio pára.

    Queria poder manter assimO tempo, parado, ex-tempo

    No olhar que não se desvia.

    Não porque haja em mira

    Caça, alvo, tiro.

    E não porque eu queira assim,

     Viver a vida como que

    Estarrecida

     Atrás do foco,

    Beijando espelhos.

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    Essa não é a face de Narciso

    E esse não é o mesmo rio.

    Em face à tua face

    Tem um suspiro,

    Tem um sopro,

    Tem uma ponte

    Que não leva a nada nem

     A ninguém.

    É só isso.

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    Quatro Tons Abaixo

    Dois olhos, um nariz, uma boca.

    Uma boca e dois olhos.

    Fala. Ri.

    Sente a chuva batendo na ponta dos dedosPela janela aberta.

    Senta e apoia as pernas no braço

    Da cadeira.

    Ri do que eu dito,

    Explora.Não sei mais o que disse,

    Esse mundo é paralelo.

    Nele eu só tenho olhos,

    Ouvidos, olfato,

    Tato.

    Exploro a tua porta entreaberta

    E nem sei onde paro.

     A textura do livro

    Murmura entre meus dedos

    Enquanto ouço a voz de dentro

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    Num mandamento,

    “foda-se que isso não signique nada”.

    Eu quero.

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    O Futuro do Pretérito

    Fui para poder ter sido;

     Andei pelos quarteirões do bairro,

    Matando o tempo com pisadas

    Fortes no chão de concretoPara poder ter andado.

    Desentendi meus recados,

    Desacordei meus instintos,

    Para poder ter amado:

    Fui para não ser enterrado. Vim para vir a ser futuro, aparecido,

    Desejado com a força do que seria,

    Do que poderia

    E do que faria, se o pretérito

    Me fosse dado.

    Que seja, então,

    O condenado a girar o corpo

    Em torno do próprio rabo,

    Desencontrado em seus

    Poréns, em suas dúvidas

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    Em seus receios

    Das perdas indicativas do tempo

    Moderado.

    Que seja redimido o coitado.

    Pois pesou esse tempo linear e disse

    Sem saber, de fato,

    Que um talvez não existe.

    Mas por isso eu quis:

    Para poder ser querido,

    Porque eu amaria.

    Tanto quanto se tudo já tivesse

    Longe, longe, ancorado

    Num outro passado.

    Um talvez é um pretérito,

    No lodo do solo encravado.

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     Jogo de Palavras

    “Nada Muda.

    Nóis caminha,

    Mas para onde vamos?

    Nessa ordem:

    Possibilidade.

    Silêncio. Nascer.”

    Nessa ordem:

    Caminhamos.

    Possibilidade,

    Mas para onde vamos?

    Silêncio? Nascer?

    Nada muda...

    ... Nessa ordem,Mas para onde vamos?

     A possibilidade

    De nascer em silêncio.

    Nóis caminha,

    Não mudamos.

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    Mas para onde vamos?

    Nascer em silêncio

    Para a possibilidade

    Que somos?

    Caminhamos.

    Nada muda nessa ordem.

    Em que estamos,

    Indo, vindo, voltando.

    Possibilidade e silêncio

    Nada muda, e no entanto

    Renascemos,

    Caminhamos.

    Mas para onde vamos?

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     As Ilusões

    Sempre guramos as coisas,

    Porque o amor, solar,

    Envolve tudo com uma luz

    Propícia.Porque a paixão

    É lha do mar, é espuma das ondas

    E ignora as ilhas.

    Ela só quer lançar, alçando

     Âncoras.E o amor responde,

    E como não amar!

    E como aportar-se no escuro

    Quando vem todo esse

     Ardor generoso, esse

    Calor de janeiro em meio

     À potência do futuro herdeiro?

    Sempre compreendemos tudo.

    E sempre já era verdadeiro,

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    Porque quisemos muito

    Para muito além do juízo dos justos.

    Então, as ilusões são tudo;

    E a solidão do ator 

    No m da peça, quando a cortina

    Se fecha e a orquestra pára,

    É momento único,

    Quando a razão se testa

    Não para denir os contornos

    Precisos do louco,

    Mas para cobrar de sua esposa

     — A carne viva — 

    Os ditames de um juramento

    Primeiro:

    Serei tua, apesar do todo.

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    Paixões Tristes

    Por cinco vezes eu repeti:

    Mas, por que?

    E a pergunta se desfez no silêncio,

    Perpassado no só

    Por uma brisa, um vento incerto,

    Leve e comedido.

    Enviei-me no acaso,

    Como se fosse justo desapegar-me

     Ao posto,

    Largando a baía com o

    Farol apagado.

    Não, este não era um

     Verdadeira acaso.

    Então houve a tristeza.

    E quantos nós na garganta,

    Quantos lábios mordidos

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    E pulmões nervosos

    No ar rarefeito!

    Não é isso, não é isso,

    O anseio dizia,

     Antes de ser homem, mulher 

    Ou mesmo bicho.

    É preciso gurar a hora,

    Preparar a mesa

    E arrumar os vasos em torno

     À porta, por onde entra

    O sopro do acaso

    E o beijo amoroso

    Da vida.

    Mas, enm, foi-se um encontro.

    Foi-se um lapso onde

    O conhecimento é puro

    Re-conhecimento e

    Beleza denitiva,

    Quando nasce o amor.

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    Entristece e rejubila.

     A gente chora e se enfurece

    Contra o destino.

    Mas no instante em que já disse,

     Aquiesce.

    Segura com ambas as mãos

    Na investida do remo,

    No peso do timão,

    E atravessa o rio.

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    O Banquete

    Isto mesmo eu digo:

    Não preciso de você,

    Não preciso de nós, vós,

    Eles.

    Mas digo com despeito

    Na calada do abrigo

     Ao som do coração

    Batendo no peito.

    É meu mantra embriagado,

    Dito com jeito de padre

    Exorcista:

    Eu não te amo

    Eu não te quero

    Eu não me estupro

    Para fazê-lo belo

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    De fora de tudo

    E na paz do livre exílio,

     Vem ele, ou antes vinha,

    Sussurando que

    Estamos loucos e

    Não sabemos mais

     Apaixonar o espírito.

    É Sócrates

    Desandando o caminho,

    Para atrasar o banquete

    E desfazer o esperado.

    Parado, na soleira da porta,

    Ele ainda pensa

    No próximo ato.

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    Oz

    Onde fui parar nesse desterro?

    Teu beijo me cerca

    Impondo aos fatos a escuridão da noiteQue nem o gozo em outrem

    Desvela.

    Comigo me enlaço,

    Esquecendo os pólos, as medidas A xação da vida

    Num determinado espaço.

     Abraço, abraço, abraço...

    Porque teu beijo me cerca.

    E teus braços me tomam

    Sempre antes que eu perceba

     A proximidade do tornado.

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    Te desejo como louca

    Em revoada de pássaros,

    Homem de lata vestido de gente,

    Palha de milho, espantalho.

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     A Meia-Noite

    Quero amar,

    Mas o cansaço me toma

    Quando disse tudo

    E falei demais.Então deixa que eu

    Grite sozinha,

    Enquanto durmo.

    Não tenho paz!Mas vai, que um dia

    Eu ainda em lua

     Abrigue todo o amor do mundo?

    Sim, é demais

    Para um só mouro

    Encastelado à espera.

    Uma única moça,

    Uma única noite.

    E nas mil que ainda restam

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    Inventarei palavras para

    Mil contos.

    Não me cortem a

    Cabeça.

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    O Meio Torso

    Se alguém perguntar onde estou,

    Diga que escureci,

    Que emudeci e a garganta dói.

    É o peso, é o pesoDe sempre saber tudo inteiro

    E de nunca ter 

    Um momento de desmemória,

    Desmazelo.

    Se alguém perguntar onde estou,

    Diga que quei,

    Que entreguei as chaves

    E tranquei a gaveta.

    Embora quisesse seguir os passos

    De fora, de leve, manhosa

    Nos vaivéns, lequetreques

    Leva-e-trazes,

    Tem vezes que isso

     Abre, e então aí escurece.

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    É a queda livre, é só

    Um vale, uma fenda, um buraco

    Com rio embaixo, sem trilhas

    Sem voltas.

    Se alguém perguntar onde estou,

    Diga que não fui,

    Que não voltei,

    Que me perdi ou ensandeci,

    Nos avessos.

    Nos avessos.

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    Impertinências  (maio a julho de 2013)

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    Deodorina

    Otacília ganhou uma rosa e

    De amor a rosa abriu em or.

     Ajeitou no vaso, cuidou da rosa

    Otacília, a or.

    Encantado, o moço criou imagem

    De casa branca e janela azul.

     Já viu na porta menino novo

    Sair com a bola para o quintalOnde a roseira brota.

    Otacília, a primeira rosa

    Macia, doce, carinhadora.

    Como não amá-la,

     Jardim futuro em mãos

    De jardineiro? Como

    Não cultivá-la, ela,

    Esteio?

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    E se no peito apaziguado

     Arder a ausente

    Noite, a lua cheia daquele

    Sertão onde encontrei

    Um dia o companheiro,

    É só saudade, é só

     Aperto de um outro jeito,

    De um outro momento,

    De um outro amor, feminino

    Errante, innito anseio.

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    O Lodo(Impertinências, parte 2)

    Não vou dizer mais nada.

    De mim escutarão apenas

     Arfar pulmões no mais inamado

    Silêncio

    Enquanto penso se a carne é fraca

    Ou se é tudo fruto de um péssimo

    Entendimento.

    (De meu rosto, sobram os olhos

    Cavucando no escuro por 

    Um xisto de luz.

    De meu corpo restam asas batendo.)

    Cara, eu te quero muito!

    E tudo isso se confunde

    Com a urgência d’uma fala

    E com o gosto de um outro

    Gosto na boca.

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    Por isso,

    Não direi mais nenhuma palavra,

    Embora elas andem sem mim

    Por trilhas inesperadas.

    E tem a falt