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A TRAVESSIA ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO ESPIRITUALISMO MODERNO JOHN WARNE MONROE HISTORIADOR E ESCRITOR

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Kardec - Transnacionalização do espiritismo

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A TRAVESSIA

ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO

DO ESPIRITUALISMO MODERNO

JOHN WARNE MONROE

HISTORIADOR E ESCRITOR

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A TRAVESSIA: ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO ESPIRITUALISMO MODERNO JOHN WARNE MONROE

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A TRAVESSIA

ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO

DO ESPIRITUALISMO MODERNO

JOHN WARNE MONROE

HISTORIADOR E ESCRITOR

entro dos cinco anos desde sua emergência no Estado de

Nova York, o Espiritualismo Moderno tornou-se transna-

cional. Ele espalhou-se pela Grã-Bretanha no fim de 1852, de-

pois da chegada da médium americana Sra. W. R. Hayden.1

Aproximadamente ao mesmo tempo, os fenômenos de sessões

espíritas tiveram intenso interesse no continente.

Desde o início de 1851, os praticantes do Mesmerismo na

França tomaram conhecimento das “misteriosas batidas da Améri-

ca”; na primavera de 1853, notícias dos Estados Unidos inflama-

ram a difundida fascinação com mesas que se movem na Alema-

1 Ver Russell M. e Clare R. Goldfarb, Spiritualism in Nineteenth-Century Letters (Rutherford,

NJ: Fairleigh Dickinson University Press, 1978), 68-87.

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nha, França, Itália, e Rússia, entre outros países.2 Sentar em volta

de uma mesa com amigos, colocando as mãos no seu topo, e sen-

tindo-a rodar, estalar ou bater, aparentemente sem nenhum impul-

so físico direto, tornou-se um simples jogo de festa de Bruxelas a

Moscou. Enquanto o grande interesse popular diminuía rapida-

mente, pequenos grupos na Europa adotaram a convicção ameri-

cana que estes fenômenos e outros similares poderiam servir como

um meio de conversar com os espíritos dos mortos, e começaram a

refletir sobre a significância metafísica deste diálogo.

Na próxima década e meia, estes grupos isolados cresceram e

se juntaram. Primeiramente na França, e depois na Itália, Espanha, e

Rússia, tornou-se comum distinguir Espiritualismo de Espiritismo,

um sistema religioso que compartilhava elementos fundamentais

com seu progenitor americano, mas diferia em pontos-chave que

pareciam tê-lo feito mais atrativo aos crentes para quem as expecta-

tivas eram moldadas pelo catolicismo e, em menor medida, pela or-

2 A citação vem de um artigo de Louis-Alphonse Cahagnet em seu diário Le Magnétiseur Spiri-

tualiste, 2:1 (janeiro de 1851): 53. Considerações sobre a onda das mesas girantes nos vários

países da Europa aparecem em Massimo Biondi, Tavoli e medium, Storia dello Spiritismo in

Italia (Roma: Gremese, 1988); John Warne Monroe, Laboratories of Faith: Mesmerism, Spirit-

ism and Occultism in Modern France (Ithaca: Cornell University Press, 2008); Corinna Treitel, A

Science for the Soul: Occultism and the Genesis of the German Modern (Baltimore: The Johns

Hopkins University Press, 2004); e Ilya Vinitsky, Ghostly Paradoxes: Modern Spiritualism and

Russian Culture in the Age of Realism (Toronto: University of Toronto Press, 2009).

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todoxia oriental.3 Nos anos 70 e 80 do século dezenove, o Espiritis-

mo fez seu próprio caminho no oeste, na América Latina e Caribe,

onde ele posteriormente tornou-se parte de uma mistura sincrética

típica do que Paul Gilroy chamou de “Atlântico negro”.4 Este traba-

lho procura lançar alguma luz no crucial ponto de virada desse pro-

cesso de transmissão global: a codificação inicial da filosofia e prática

do Espiritismo pelo escritor e editor francês Hippolyte Léon Deni-

zard Rivail, que publicou seus trabalhos mais importantes sob o

pseudônimo de Allan Kardec. Além de considerar como as ideias de

Kardec surgidas de um francês se deparam com o Espiritualismo

Americano no fim dos anos 50 e início dos anos 60 do século deze-

nove, eu usarei um estudo de caso – aquele do infeliz advogado de

3 Além de Monroe, Biondi and Vinitsky, ver Lisa Abend, “Specters of the Secular: Spiritism in

Nineteenth-Century Spain,” em European History Quarterly 34:4 (2004): 507-534. 4 Ver Alexander Moreira-Almeida et al., “History of ‘Spiritist Madness’ in Brazil”, in History of

Psychiatry 16:1 (2005): 5-25, e Edil Torres Rivera, “Espiritismo: The Flywheel of the Puerto

Rican Spiritual Traditions”, em Interamerican Journal of Psychology, 39:2 (2005): 295-300. Para

“Atlântico negro” ver Paul Gilroy, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness

(London: Verso, 1993). Para sincretismo e os complexos significados sociais que a "doutrina" de

Kardec adquiriu na América Latina e no Caribe, ver Marion Aubrée and François Laplantine, La

Table, le livre et les esprits, naissance, evolution et actualité du mouvement social spirite entre

France et Brésil (Paris: Lattès, 1990); Diana DeGroat Brown, Umbanda: Religion and Politics in

Urban Brazil (New York: Columbia University Press, 1986); David J. Hess, Spirits and Scientists:

Ideology, Spiritism and Brazilian Culture (University Park: Pennsylvania State University Press,

1991); and Diana Espirito Santo, “Spiritist Boundary-Work and the Morality of Materiality in

Afro-Cuban Religion,” in Journal of Material Culture 15:1 (2010): 64-82.

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Bordeaux, Jean-Baptiste Roustaing – para analisar a diferente dinâ-

mica que caracterizou o Espiritismo Kardecista, e marcou uma das

mais salientes diferenças de sua contraparte americana.

Torna-se cada vez mais comum para historiadores – especi-

almente nos Estados Unidos – dizer que seus assuntos passaram

por uma “virada transnacional”.5 Acadêmicos estão examinando a

relação dos estados-nações individuais que têm tipicamente estrutu-

rado a busca histórica como potencialmente arbitrária e restritiva, e

estão procurando outras formas de enquadrar seus assuntos. De-

senvolvimentos que marcam época social, econômica, intelectual e

religiosa, acima de tudo, têm frequentemente sido notáveis pela

facilidade com a qual eles atravessam fronteiras políticas. A abor-

dagem transnacional privilegia tal premência de cruzar fronteiras,

privilegiando migrações, diásporas, e movimento de ideias entre

nações e através de fronteiras culturais e linguísticas. Historiadores

que adotam uma abordagem transnacional autoconscientemente

são primariamente afetados com o estudo dos intercâmbios – rela-

5 Ver, por ex., C.A. Bayly et al., “AHR Conversation: On Transnational History”, em American

Historical Review 111:5 (December 2006): 1441-1464; Mary Louise Roberts, “The Transna-

tionalization of Gender History”, em History and Theory 44:3 (October 2005): 456-468; e

Micol Seigel, “Beyond Compare: Comparative Method after the Transnational Turn”, em

Radical History Review 91 (Winter 2005): 62-90.

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ções de contato nas quais cada parte pega algo de outra enquanto

simultaneamente se distinguem entre si por compreender suas pró-

prias diferenças. Analisar o processo pelo qual indivíduos e grupos

descobrem, inventam e definem suas similaridades e diferenças, por

outro lado, transforma-se em objeto primário da pesquisa acadêmi-

ca. Esta abordagem tem o propósito salutar de revelar a construção

das identidades nacionais e culturais, que emergem não como con-

juntos materiais de características definidas, mas como assunto de

termos instáveis para continuar a renegociação, constantemente

permeada pela influência das outras partes.

Apesar do alcance global do Espiritualismo Moderno, e sua

consequente implicação em numerosas e complexas relações recí-

procas, acadêmicos têm sido notavelmente lentos em considerá-lo

como um fenômeno transnacional. Historiadores dos Estados

Unidos, que têm produzido talvez o maior e mais bem desenvolvi-

do material literário sobre o assunto, tendem a apresentar o Espiri-

tualismo como um movimento religioso distintamente americano.

Seus esforços para fazer assim têm tomado diversas formas. Em

vários graus, muitos têm enfatizado a conexão do Espiritualismo

com um tsunami de interesses em reformas radicais, que vão desde

os direitos das mulheres até ao abolicionismo, que historiadores

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dos Estados Unidos têm considerado por muito tempo um aspecto

definidor do “1848 Americano”.6 Muitos têm colocado o Espiri-

tualismo no panorama de um protestantismo expandido, embora,

às vezes, mais dramaticamente heterodoxo, diversidade sectária que

caracterizou os Estados Unidos antes da Guerra Civil, ao lado do

Swedenborguianismo, Universalismo, Quakerismo, Unitarismo,

Mormonismo etc.7 Um terceiro grupo tem feito uma abordagem

baseada na história cultural, enfatizando a forma do Espiritualismo

revelar especificamente mudanças americanas na prática do luto,

ambivalência sobre raça, e maiores esforços para a própria defini-

ção da cultura nacional.8 A literatura sobre Espiritualismo na Grã-

Bretanha, na França, na Alemanha, na Itália, na Espanha e na Rús-

6 Ver, por ex., Ann Braude, Radical Spirits: Spiritualism and Women’s Rights in Nineteenth-

Century America (Bloomington: Indiana University Press, 1989); e R. Laurence Moore, In

Search of White Crows: Spiritualism, Parapsychology and American Culture (New York:

Oxford University Press, 1977). “The American 1848,” um termo artístico amplamente utilizado

entre os historiadores norte-americanos, foi cunhado por Michael Paul Rogin. Ver Rogin, Sub-

versive Genealogies: The Politics and Art of Herman Melville (New York: Knopf, 1983). 7 Embora Braude e Moore façam isso em algum grau, os exemplos mais desenvolvidos desta cor-

rente são Bret E. Carroll, Spiritualism in Antebellum America (Bloomington: Indiana University Press,

1997), e, dentro de um projeto muito maior, Catherine L. Albanese, A Republic of Mind and Spirit: A

Cultural History of American Metaphysical Religion (New Haven: Yale University Press, 2007). 8 Ver Robert S. Cox, Body and Soul: A Sympathetic History of American Spiritualism (Char-

lottesville, VA: University of Virginia Press, 2003); Molly McGarry, Ghosts of Futures Past:

Spiritualism and the Cultural Politics of Nineteenth-Century America (Berkeley: University of

California Press, 2008); e Cathy Gutierrez, Plato’s Ghost: Spiritualism in the American Renais-

sance (New York: Oxford University Press, 2009).

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sia tem tendido a passar relativamente rápido sobre a questão das

origens americanas, com o objetivo de mapear o desdobramento

específico dessas ideias seja lá o que for o contexto nacional no

foco primário.9 Bridget Bennett chamou atenção para esta miopia,

e fez uma tentativa de corrigir pela ênfase do caráter “transatlânti-

co” do Espiritualismo – tanto em termos das ideias preexistentes

como em práticas que ela obteve, e nos termos de sua difusão –

9 Além de textos já citados, ver Janet Oppenheim, The Other World: Spiritualism and Psychi-

cal Research in England, 1850-1914 (Cambridge: Cambridge University Press, 1988); Alex

Owen, The Darkened Room: Women, Spiritualism and Power in Late Victorian England (Chi-

cago: University of Chicago Press, 1989); e o trabalho acadêmico de língua alemã citado em

Heather Wolffram, The Stepchildren of Science: Psychical Research and Parapsychology in

Germany, c.1870-1939 (Amsterdam: Rodopi, 2009). A literatura acadêmica de língua france-

sa sobre correntes derivadas do Espiritualismo Moderno Americano é escassa. A monografia

histórica chave é Nicole Edelman, Voyantes, Guerisseuses et Visionnaires en France, 1785-

1914 (Paris: Albin Michel, 1995). Edelman trata o assunto como um problema em história

social, enquanto outros estudiosos franceses, de que os escritores deste campo chamam

ésotérisme, tendem a abordar o assunto do ponto de vista da história intelectual. Visto por

esse ângulo, a preocupação do Espiritismo do século dezenove com simplicidade e senti-

mento pode se tornar uma espécie de desvantagem. Estudiosos franceses do ésotérisme,

em qualquer caso, tendem a passar sobre o Espiritismo rapidamente, e dedicar a maior

parte de sua atenção para as mais filosoficamente recônditas formas de inovação religiosa

do século dezenove - particularmente aquelas moldadas sobre a tradição hermética da

Renascença. Ver, por exemplo, Antoine Faivre, Philosophie de la nature, physique sacrée et

théosophie, XVIIIe-XIXe siècle (Paris: Albin Michel, 1996); e Jean-Pierre Laurant, L’Esotérisme

Chrétien en France au XIXe siècle (Lausanne: L’Age d’Homme, 1992).

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mas seu projeto fica artificialmente limitado pelo seu foco exclusi-

vo no mundo de língua inglesa.10

Claramente, uma cuidadosa e extensa consideração do

Espiritualismo como fenômeno transnacional é, para usar uma

metáfora familiar a qualquer acadêmico neste tópico, uma nova

fronteira amadurecida para a exploração por estudiosos do assun-

to. Até agora, como os úteis estudos de Bennett revelam, a barrei-

ra da linguagem tem sido um obstáculo primário a este esforço.

Corporações literárias sobre o Espiritualismo e outras formas

heterodoxas na Europa do século dezenove emergiram em fran-

cês, alemão e outras línguas, mas cada uma dessas tem inclinado a

permanecer desligadas das outras. Historiadores da língua inglesa

da Europa continental, por sua parte, somente começaram a des-

viar suas atenções para este assunto em meados dos anos 90 do

século vinte. As monografias iniciais que eles publicaram – e aqui

incluo meu próprio trabalho – embora informadas de alguma

forma pela rica literatura sobre o Espiritualismo anglo-saxão,

permanecem mais preocupadas com os fundamentos que jazem

na base empírica do que com questões sutis do intercâmbio

10 Bridget Bennett, Transatlantic Spiritualism and Nineteenth-Century American Literature

(New York: Palgrave McMillan, 2007).

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transnacional.11 Como este material fundamental está no lugar

certo, entretanto, ele possibilitará ao acadêmico começar a usar a

literatura existente para construir mais descrições pormenorizadas

da expansão do Espiritualismo nas últimas cinco décadas do sécu-

lo dezenove, primeiro cruzando o Atlântico dos Estados Unidos

para a Europa, daí para o leste através do continente, então de

volta pelo Atlântico ao Caribe e à América Latina. Ao invés de

simplesmente assumir que “Espiritualismo” foi sempre o mesmo

em qualquer lugar, ou limitar nosso foco a uma única nação, po-

demos começar a nos mover para um sentido mais matizado dos

caminhos em que ideias e práticas inventadas nos Estados Unidos

foram, ora gradualmente ora dramaticamente, modificadas em

cada estação na sua jornada global, e que estas modificações po-

deriam dizer-nos sobre grandes similaridades e diferenças na vida

religiosa do século dezenove através do mundo Atlântico.

A carreira de Allan Kardec ilustra o potencial interpretativo de

um enfoque transnacional com especial proximidade. Espiritismo, o

termo adotado em 1857 para substituir o termo americano Espiritua-

11 Além dos textos de Abend, Monroe, Treitel e Vinitsky já citados, ver Thomas A. Kselman,

Death and the Afterlife in Modern France (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1993),

esp. 125-162; e Lynn L. Sharp, Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in Nineteenth-

Century France (Lanham, MD: Lexington, 2006).

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lismo, tornou-se palavra normal em francês e em outras línguas lati-

nas, para a crença que os vivos podem entrar em contato direto com

os mortos. Enquanto muitos acadêmicos de língua inglesa tratam o

Espiritismo e o Espiritualismo como sinônimos, em línguas latinas

cada termo tem, de fato, um significado distinto enraizado em seu

desenvolvimento histórico. O surgimento e a continuada existência

destas distinções, por outro lado, diz-nos muito a respeito de como o

Espiritualismo americano mudou quando ele se moveu do mundo

anglo-fônico para o sul da Europa e além. O Espiritismo de Kardec

foi baseado na adaptação e alteração das ideias americanas distinta-

mente adequadas aos requerimentos do contexto no qual ele mesmo

se encontrava no fim dos anos 50 e início dos anos 60 do século de-

zenove, este contexto, definido por quatro elementos muito diferentes

daqueles presentes nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha: o legado

do pensamento visionário cosmológico e moral derivado dos escrito-

res Socialistas Românticos franceses tais como Charles Fourier, Pierre

Leroux, e Henri Reynaud; uma concepção do desenvolvimento histó-

rico teleológico e o valor do empirismo baseado no Positivismo de

Auguste Comte; um ambiente religioso ortodoxo dominado pela Igre-

ja Católica, que mantinha ligações próximas com o estado; e um go-

verno autoritário que impunha controles rigorosos sobre o discurso

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público, especialmente em matérias concernentes à política, à econo-

mia e à religião.12 Embora a chave dos princípios teológicos do Espiri-

tualismo americano fossem conhecidos e discutidos no Mesmerismo

francês e nos círculos do Socialismo Romântico desde o início dos

anos 50 do século dezenove, a prática das sessões espíritas como ati-

vidade religiosa só ocorreu de fato na França com a propagação das

ideias de Kardec nos anos 60 do mesmo século. No início dos anos

90 do século dezenove, o Espiritismo de Kardec já tinha se tornado o

modelo dominante que sustenta a filosofia e prática da urbana comu-

nicação com os espíritos por todo sul da Europa e América Latina.

Investigar as origens francesas do Espiritismo, portanto, é

colocar-se no cerne da transnacionalização do Espiritualismo

Moderno como um todo: um momento em que uma ideologia

religiosa largamente Protestante, altamente individualista e muitas

vezes radicalmente reformista assumiu uma forma mais agradável

para audiências que eram compartilhadas pelos americanos ansi-

ando por uma prática espiritual que aparentava reconciliar fé e

12 Ao longo deste ensaio, eu sigo o exemplo de Jonathan Beecher, usando o termo "românti-

co", em vez de "utópico", como uma caracterização do pensamento socialista pré-marxista.

A palavra "utópico", enquanto ainda comumente usada, reflete a própria postura polêmica

de Marx sobre a questão, em vez de um esforço para aproximar essas ideias em seus pró-

prios termos. Veja Jonathan Beecher, Victor Considerant and the Rise and Fall of French

Romantic Socialism (Berkeley: University of California Press, 2001), 1-8.

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ciência, mas cujas assunções religiosas, visões sociais, e situações

políticas pareciam muito diferentes. Esta análise será feita em três

partes. As duas primeiras colocarão o aspecto filosófico do Espi-

ritismo em um contexto de troca transnacional examinando como

as ideias de Kardec emergiram do fermento causado pela chegada

das ideias do Espiritualismo Americano na França. A terceira usa-

rá um estudo de caso do início dos anos 60 do século dezenove,

primeiramente para obter um claro entendimento da importância

da consistência doutrinária no Espiritismo Kardecista, e daí tirar

algumas conclusões mais amplas que podem ajudar a explicar a

ascendência da versão modificada de Kardec do Espiritualismo

Americano no mundo católico do fim do século dezenove.

O ESPIRITUALISMO AMERICANO NA FRANÇA: 1848 - 1855

Quando H. L. D. Rivail participou de sua primeira ses-

são espírita, em maio de 1855, os princípios filosóficos do

Espiritualismo Americano haviam circulado na França por um

pouco mais de cinco anos. Mesmo depois da moda das mesas

girantes em meados de 1853, entretanto, o conhecimento des-

sas ideias estava primariamente confinado a uma boemia ur-

bana de mesmeristas e apoiadores da esquerda política. Mui-

tos desses novos partidários franceses adotaram uma concep-

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ção swedenborguiana do mundo espiritual que Bret E. Carroll

tinha identificado como uma típica pré-guerra civil do Espiri-

tualismo Americano.13 Contudo, Paris que tinha um pequeno

e formalmente organizado grupo de pessoas que venerava os

textos do visionário sueco, da forma padronizada da nova

Igreja Americana e de espiritualistas franceses, como eles se

autodenominavam, tomou uma diferente abordagem. 14 O

Swedenborg deles, como o Swedenborg dos americanos, o

vidente Andrew Jackson Davis, era menos autoridade doutr i-

nária que espírito dirigente, uma fonte de contínua revelação e

inspiração para uma visão de mundo que enfatizava as cone-

xões entre o terreno e o além. Louis-Alphonse Cahagnet, um

mesmerista idiossincrático (ou magnetizador) foi o primeiro

pensador francês a elaborar uma cosmologia nesta linha. No

13 Carroll, 16-34. 14 Esta pequena congregação parisiense se chamava La Nouvelle Jérusalem, e data do final dos

anos 20 do século dezenove. Várias outras congregações swedenborguianas existiam em

outros lugares na França, a mais importante na cidade central francesa de Saint-Amand (Cher).

Para mais informações, consulte Alexandre André Jacob, Alexandre Erdan, pseud., La France

mistique, tablau des excentricités religieuses de ce tems [sic], Vol.1 (Paris: Coulon Pineau,

1855), 15-20; as diversas citações em "France" no Carl Theophilus Odhner, Annals of the New

Church (Philadelphia: Academy of the New Church, 1898), e K. E. Sjödén, "Balzac et Sweden-

borg", em Cahiers de l'association internationale des études françaises, 15 (1963): 295-307. O

jornalista Jules Bois fornece uma descrição da Nouvelle Jérusalem, tal como existia no final do

século dezenove. Veja Bois, Les Petites Religions de Paris (Paris: Léon Chailley, 1894), 23-25.

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início de 1848, ele publicou o volume inicial de Arcanes de la

Vie Future Devoilés, uma vasta compilação de conversações

transcritas entre espíritos e sonambulistas.15 No fim do tercei-

ro volume, que surgiu em 1854, Cahagnet apresentou uma

lista de cinco princípios gerais filosóficos que poderiam ser

derivados das centenas de páginas que ele apresentou:

1. A existência espiritual é uma continuação da existência

terrestre;

2. Existem tantos grupos de espíritos como de variedades

de afeições espirituais concernentes às práticas, aos estu-

dos e às crenças filosóficas e religiosas;

3. Há um paraíso superior, ou estado, para onde todos de-

sejam ir, independentemente das circunstâncias, como

aqui embaixo aspiramos uma situação melhor;

4. O paraíso é uma esfera divina na qual cada pessoa sente

e entende Deus, sem vê-lo em qualquer outra forma que

aquela de um sol radiante;

5. Em oposição a este céu, um lugar ou lugares, um sombrio

estado ou estados, que são chamados locais de purificação, nos

15 Louis-Alphonse Cahagnet, Arcanes de la vie future dévoilés, Vol.1 (Paris: author pub-

lished, 1848).

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quais a alma sofre somente a ardente aspiração de desfrutar da

doce felicidade dos escolhidos, e apagar de seus pensamen-

tos mesmo a menor memória dos seus erros passados.16

As entrevistas espíritas de Cahagnet, em outras palavras, de-

linearam uma visão moral e cosmológica muito similar daquela que

Carrol associa com Davis e outros pensadores espiritualistas ameri-

canos que tiraram inspirações dos seus escritos.17 O mundo espiritu-

al e o mundo material não eram radicalmente separados, mas pelo

contrário, pontos de um continuum, limitados por linhas de “afei-

ções”. O céu aparecia como um conjunto de esferas a vários níveis

de distância de uma divindade impessoal central; após a morte, almas

individuais eram engajadas em um processo dinâmico de melhora-

mento, primeiramente “purificando” elas mesmas dos males residu-

ais da existência material, então progredindo – embora em várias

proporções – para um estado final de comunhão com o divino.

As ideias de Cahagnet e as dos espiritualistas americanos

tinham tão forte afinidade que, no início de 1851, traduções dos

dois primeiros volumes dos Arcanes foram publicadas tanto em

16 Louis-Alphonse Cahagnet, Arcanes de la vie future dévoilés , Vol.3 (Paris: Germer-

Baillière, 1854), 380. 17 Carroll, 60-84.

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Nova York como em Rochester sob o título O Telégrafo Celestial, ou

Segredos da Próxima Vida.18 Cahagnet ansiosamente assumiu o cré-

dito à popularidade do crescimento do Espiritualismo nos Esta-

dos Unidos, afiançando que a tradução inglesa do seu livro tinha

“dado nascimento a Davis” e, daí “às manifestações espirituais de

todos os tipos que hoje abrangem a terra”. Apesar da influência

notável que ele acreditava que suas palavras tinham manifestado

em suas praias, Cahagnet sarcasticamente censurou a “poderosa

América” por sua falta de gratidão, que na sua visão a fez uma

nação “selvagem”: “você se lembra do promotor destes estudos?

Você enviou a ele uma única das suas numerosas publicações?

Você adquiriu um único dele? Você disse qualquer coisa sobre ele

em suas especulações metafísicas? Não, você só pensava nele para

roubar a prioridade do seu trabalho. Obrigado, mil vezes obriga-

do, terra benevolente da liberdade”.19

18 Louis-Alphonse Cahagnet, The Celestial Telegraph, or Secrets of the Life to Come Revealed

through Magnetism, 2 Vols. (New York: J.S. Redfield, 1851). 19 Louis-Alphonse Cahagnet, Révélations d’outre-tombe (Paris: Germer-Baillière, 1856), 9-10.

Observe que a cronologia dos escritos de Davis, tal como apresentada por Carroll e outros,

faz com que seja improvável que os americanos tivessem plagiado Cahagnet. Em vez disso,

os dois homens provavelmente desenvolveram seus sistemas filosóficos simultaneamente.

Para obter informações sobre o caso em favor deste ponto de vista, ver L’Union magnétique,

4:62 (25 de julho de 1857): 2.

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Como a injúria antiamericana de Cahagnet indica, ele era

uma figura combatente e excêntrica. No fim de 1847 ele apare-

ceu como um expoente daquilo que a França já denominava o

magnetismo espiritualista, juntando-se a uma contínua polêmica

entre aqueles que viam o Mesmerismo como uma ferramenta

para conhecer o mundo espiritual, e aqueles que preferiam pen-

sar nele como uma técnica terapêutica melhor entendida em

termos médicos do que metafísicos.20 Um autodidata da classe

trabalhadora, Cahagnet conjugou seus experimentos mesméri-

cos e numerosas publicações com seu trabalho de tornear pés

de cadeira e fazer colarinhos de camisas. Diferentemente de

Davis ele próprio não entrava em estado de transe. Pelo con-

20 Para uma visão global do desenvolvimento do mesmerismo francês na primeira metade

do século dezenove e outras questões pertinentes a este ensaio, ver Auguste Viatte, "Les

origines françaises du spiritisme", em Revue de l' histoire de l' Eglise de France, 21:90 (1935):

35-58. Viatte observa que o praticante J. P. F. Deleuze usou o termo "magnetismo espiritua-

lista" já em 1818 para se referir a uma preocupação já estabelecida no mesmerismo francês

em relação "a comunicação com seres espirituais" (página 37). As origens desta preocupa-

ção remontam a figuras do final do século dezoito, como Louis-Claude de Saint Martin, Jean-

Baptiste Willermoz, e Martinès de Pasqually. Veja Christine Bergé, L’Au-delà et les Lyonnais,

mages, médiums et Francs-Maçons du XVIIIe au XXe siècle (Lyon: LUGD, 1995); Antoine

Faivre, Access to Western Esotericism (Albany: State University of New York Press, 1993),

esp. 71-81; David Allen Harvey, Beyond Enlightenment: Occultism and Politics in Modern

France (DeKalb: University of Northern Illinois Press, 2005); René Le Forestier, La Franc-

Maçonnerie occultiste au XVIIIe siècle et l’ordre des Élus Coens (Paris: La Table d’Emeraude,

1987). Na polêmica entre mesmeristas "espiritualistas" e "materialistas", nos anos 40 e 50

do século dezenove, ver Monroe, 64-94.

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trário, da maneira típica da prática mesmerista francesa neste

período, ele usava “a simples imposição de mãos sobre a testa”

para levar ao transe uma variedade de sonâmbulos, todos eles

tirados daquilo que um observador chamou de “classe de ana l-

fabetos”.21 Uma vez que um sonâmbulo atingia o nível de luci-

dez requerido para ver e conversar com os espíritos, Cahagnet

começava a fazer as questões, primeiramente sobre a aparência

do espírito, e depois sobre outros assuntos. Um pequeno círcu-

lo de seguidores comparecia às sessões, cada uma começava

com uma cerimônia de comunhão com pão e vinho magneti-

camente influenciado pelo espírito de Swedenborg, seguida por

prece invocatória. Cahagnet sempre presidia, mas cada membro

do círculo – em 1848 havia nove – tinha oportunidade de colo-

car suas questões ao objeto da sessão.22

O círculo de Cahagnet era pequeno, e sua situação era mar-

ginal mesmo entre os mesmeristas praticantes, mas mesmo assim

tinha um papel importante ao introduzir na França a visão do além

21 Cahagnet, Arcanes 3:372; para “classe de analfabetos” ver Jacob, France mistique [sic], 1:37. 22 Os detalhes sobre a carreira de Cahagnet e as práticas de seu círculo vêm de dois artigos

biográficos em L’Union magnétique, 4:61 (10 de Julho, 1857): 1-2; e 4:62 (25 de julho, 1857):

1-2. De acordo com Jules Bois, seguidores de Cahagnet continuaram suas reuniões após a

sua morte em 1885. Veja Bois, Petites Religions, 36-37.

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que sustentava o Espiritualismo Americano Moderno. Em meados

dos anos 50 do século dezenove, outros escritores franceses começa-

ram a produzir separadamente suas próprias discussões swedenbor-

guianas das implicações metafísicas dos fenômenos das sessões espí-

ritas.23 O mais acessível destes textos foi Lumière, espíritos e mesas giran-

tes de 1854, um pequeno livro de Paul Louisy, baseado na interpreta-

ção de comunicações recebidas através de um não mencionado mé-

dium francês. Um homem de letras parisiense mais conhecido hoje por

suas traduções de Walter Scott e James Fenimore Cooper, Louisy

mostrou uma considerável familiaridade com o discurso do Espiritu-

alismo Americano, mas modificou sua apresentação da nova religião

da forma que ela era sugerida pela política francesa de esquerda.24

Diferentemente de Cahagnet – que de outra forma compartilhava

23 Além do texto de Louisy discutido aqui, ver D. Buret, Esprit de vérité, ou métaphysique des

esprits (Paris: A. Petit-Pierre, 1856), que não cita, mas, no entanto, retrata bem a "filosofia

harmônica" de A. J. Davis; e Louis Goupy, L’Ether, l’électricité et la matière (Paris: Ledoyen,

1854), um largo e idiossincrático trabalho que fica a meio caminho entre Cahagnet e Louisy

na sua abordagem política. 24 O catálogo da Bibliothèque Nationale de France lista o autor de Lumière separadamente

dos outros dois Paul Louisys, um o tradutor de Scott e Cooper, o outro tradutor de vários

textos de língua inglesa, mas o serviço de Louisy como tradutor de artigos da imprensa

espiritualista americana no final dos anos 50 do século dezenove e uma breve menção de

sua posição na equipe de escritores de La Biographie contemporaine, uma espécie de 'Quem

é Quem' do século dezenove, me levam a suspeitar que todas as três entradas se referem à

mesma pessoa. Ver Enciclopédia magnétique spiritualiste 4 (1859): 116-117.

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muitas outras convicções da linha de esquerda – Louisy enfatizava a

origem americana do Espiritualismo, que ele apresentava como uma

defesa divina do governo democrático. Era claro, escreveu Louisy,

que “o mesmo berço no qual a verdadeira liberdade nasceu” seria

também “testemunha do crescimento da verdadeira fé destinada a

regenerar o mundo”.25 Na França de 1854, presa pelo cerceamento

autoritário que se seguiu à breve florescência da revolução democrá-

tica de fevereiro de 1848, declarações deste tipo eram explosivas.

Nas mentes de muitos franceses neste período, particularmente

aqueles que apoiavam a ditadura de Napoleão III, defender a demo-

cracia era menos uma marca da moderação liberal do que um apoio

para o socialismo redistributivo.

O texto de Louisy aumentava a conexão entre o Espiritua-

lismo e o pensamento socialista francês introduzindo um forte des-

vio do precedente americano. Ao invés de conceber a jornada das

almas depois da morte como um movimento progressivo através

de esferas celestes etéreas, como fez Davis, Louisy afirmou que

este progresso tomaria a forma da “metempsicose humana”, na

qual almas individuais eram fisicamente reencarnadas na Terra e em

outros planetas. Estes mundos eram “organizados em uma imensa

25 Paul Louisy, Lumière! Esprits et tables tournantes (Paris: Garnier Frères, 1854), 6.

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escala de perfectibilidade”, uns muito e outros menos confortá-

veis.26 Bom comportamento em uma existência física seria recom-

pensado por encarnação em um planeta melhor; mau comporta-

mento seria punido por encarnação em planeta pior. Leitores fran-

ceses de meados do século dezenove teriam facilmente reconheci-

do esta raiz cosmológica em várias forças do pensamento Român-

tico Socialista que chegou ao seu pico de influência durante a pri-

meira fase da Revolução de 1848.27 Enfatizando a conexão do Es-

piritualismo com democracia e transformando a ideia swedenbor-

guiana de progresso através de esferas etéreas em progresso por

meio de reencarnação, portanto, Louisy deu à nova religião um

lugar claro em seu contexto francês: ele era essencialmente progres-

sista no sentido político, a contraparte espiritual que os esquerdistas

daquele tempo chamaram la sociale – a república social e democráti-

ca que os mais ardentes revolucionários em 1848 esperavam esta-

belecer. Louisy de forma alguma era a única figura a fazer conexões

deste tipo. Um grupo de seguidores de Charles Fourier, o mais

influente dos teóricos socialistas franceses da reencarnação, fez

26 Ibid., 9. 27 Ver Jean-Pierre Laurant, "Esotérisme et socialisme, 1830-1914", em Revue Française

d'histoire des idées politiques 23:1 (primeiro semestre de 2006): 129-147; e Sharp, Secular

Spirituality, 1-47.

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A TRAVESSIA: ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO ESPIRITUALISMO MODERNO JOHN WARNE MONROE

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sessões espíritas regulares em 1853, transformando-se em minice-

lebridade no mundo literário parisiense.28 Vários sonambulistas

neste período também parecem ter baseado suas opiniões sobre a

estrutura do mundo dos espíritos em ideias derivadas da tradição

Socialista Romântica.29

Paralelamente a esta corrente de esquerda, um grupo de

escritores franceses pensou em redefinir a comunicação de es-

píritos baseada no transe de forma a permitir que ela funcio-

nasse explicitamente como um tipo de prática religiosa católica.

Esta abordagem também tinha raízes no Mesmerismo Espiritu-

28 O núcleo desse grupo era formado por escritores de La Démocratie pacifique, um jornal

criado pelo líder fourierista Victor Considerant e banido após o golpe de 1851 de Louis-

Napoléon Bonaparte ter posto fim à Segunda República. As explicações que este grupo

elaborou para os fenômenos das sessões espíritas e suas implicações metafísicas devem

muito pouco ao precedente americano, mas, ao contrário, se desenharam quase exclusiva-

mente sobre o pensamento de Fourier. Ver Monroe, 53-56. 29 Provavelmente o exemplo mais influente dessa tendência é a sonâmbula Célina Japhet.

Ver também o médium J. Roze, que publicou seus próprios três volumes de comunicações

espíritas cosmológicas, J. Roze, Révélations du Monde des Esprits, 3 vols. (Paris: Ledoyen,

1862). Roze, tipógrafo de profissão, era ativo como sonâmbulo pelo menos já em meados da

década de 50 do século dezenove (quando estava com seus setenta anos), e trabalhou com

Kardec quando o manuscrito que se tornaria o Livre des Esprits estava em seus estágios

iniciais. Os dois homens mais tarde tiveram uma briga. Veja a carta de Camille Flammarion

para "M. Rose" de 9 de dezembro de 1861, no caderno manuscrito Miscellanées de 1861, e

a carta de Flammarion a Sabô, presidente da Société Spirite de Bordeaux (n.d.), no início do

caderno Miscellanées de 1863, ambos encontrados no Fonds Camille Flammarion de l'Ob-

servatoire de Juvisy-sur-Orge.

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alista, e seu mais prolífero expoente era Henri Delaage, um mag-

netizador que escreveu numerosos livros enfatizando as cone-

xões entre as visões de sonâmbulos em transe e aquelas dos

extáticos católicos. Para Delaage, conversar com sonâmbulos

era uma forma de “andar com passos firmes, no caminho da

unidade da fé que o conde Joseph de Maistre aludiu, quando

seus pensamentos voaram sobre as montanhas como uma

águia, vigorosa, soberana e forte, para cair e prostrar-se, humil-

de e submisso, ante as decisões augustas do velho homem do

Vaticano”.30 No fim dos anos 40 do século dezenove, uns pou-

cos membros liberais do clero evidenciaram também simpatia

pelo Mesmerismo. Do púlpito de Notre Dame, o eminente

clérigo Henri Lacordaire confessou sua crença nos “fenômenos

magnéticos”, e especulou que eles poderiam ser um “protesto

divino contra a ciência”, oferecendo prova tangível “que há

algo além da morte”.31 Um sacerdote da paróquia parisiense nas

vizinhanças de Batignolles, o abade Almignana, pensou de

forma similar. Com autorização do arcebispo de Paris, ele em-

30 Henri Delaage, L’Eternité dévoilée, ou vie future des âmes après la mort (Paris: Dentu,

1854), 242. 31 Este sermão, proferido em 6 de dezembro de 1846, é citado em Viatte, "Origines

françaises", 43.

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preendeu esforços no seu interesse pelo assunto, conduzindo

seus próprios experimentos mesméricos e frequentando reuni-

ões do círculo de Cahagnet.32 Henri Carion e Girard de Cau-

demberg, dois escritores católicos cujo interesse no assunto

começou com a moda das mesas girantes de 1853, seguiram o

exemplo do Espiritualismo Americano enfatizando a importân-

cia da comunicação pessoal com os espíritos dos mortos, mais

do que o diálogo mediado por um magnetizador e um sonâmbulo.33

Ambos apresentaram a mediunidade como uma prática espir i-

tual essencialmente católica, com potencial de não somente

aliviar dúvidas e consolar dores, mas também prover um novo

canal para as almas no purgatório para fazer apelos diretos aos

vivos por preces. Embora a hierarquia tenha os rejeitado enfa-

32 Para a autorização, veja a carta de Almignana de 17 de junho de 1852 em Archives histori-

ques de l’archevêché de Paris, Carton 4E21, dossier M12bis. Para evidências de sua ligação

com Cahagnet, consulte Abbé A. Almignana, Du somnambulisme, des tables tournantes, et

des mediums, considérés dans leurs rapports avec la théologie et la physique (Paris: Dentu,

1854), 28-36; Jacob (pseud. Erdan), France mistique [sic], 1:62-63; e Louis-Alphonse Cahag-

net, Sanctuaire du Spiritualisme, etude de l’âme humaine et de ses rapports avec l’univers,

d’après le somnambulisme et l’extase (Paris: Germer Baillière, 1850), 152-158, que descreve

as visões do abade Almignana, após tomar "três gramas de haxixe", experienciadas no de-

correr de uma "discussão metafísica" com o autor do livro em 1848. 33 Henri Carion, Lettres sur l’évocation des esprits (Paris: Dentu, 1853); Girard de Caudem-

berg, Le Monde spirituel ou science chrétienne de communiquer intimement avec les puis-

sances célestes et les âmes heureuses (Paris: Dentu, 1857).

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ticamente em meados dos anos 50 do século dezenove, estes

esforços para transformar o Espiritualismo em algo católico

repercutiu fortemente na nova ênfase em experiência religiosa

tangível que caracterizava a Igreja neste período – como, por

exemplo, no caso das aparições de Lourdes.34

DO ESPIRITUALISMO AO ESPIRITISMO

Isto, então, era o clima intelectual turbulento no qual H. L.

D. Rivail começou seus próprios estudos dos fenômenos das ses-

sões espíritas: pequenos grupos de escritores estavam adaptando as

ideias do Espiritualismo Americano ao contexto francês subme-

tendo-as a uma variedade de modificações estratégicas, frequente-

mente procurando ou associando-as com as correntes mais radicais

de 1848, ou as assimilando na estrutura católica. Rivail não era ex-

clusivamente movido por um ou outro desses pontos de vista. Ao

contrário, seu temperamento e educação parecem tê-lo disposto a

pesquisar por uma nova síntese. Nascido em Lion de uma família

34 Para cópias de muitas das condenações oficiais ao movimento das mesas, que começou a

aparecer em 1854, ver os apêndices em Ambroise Matignon, S.J., Les Morts et les vivants,

entretiens sur les communications d’outre-tombe (Paris: Adrien Le Clere, 1862), 106-139. Em

julho de 1856, o Papa Pio IX publicou a encíclica Adversus magnetismi abusus, que oficial-

mente proibia católicos de assistir sessões ou realizar experimentos mesméricos que envol-

viam conversas com o mundo espiritual.

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de advogados, cresceu católico, mas educado na famosa e progres-

sista escola de Johann Heinrich Pestalozzi em Yverdun, Suíça, Ri-

vail reuniu um respeito por dignidade profissional e um gosto por

moderação com uma tardia atração para os valores do Socialismo

Romântico. Depois de completar seus estudos e serviços militares

em 1832, ele e sua esposa fundaram uma escola técnica privada em

Paris, que fechou depois de alguns anos. Ele tornou-se um conta-

dor independente, e no início dos anos 50 do século dezenove es-

tava ganhando suficiente dinheiro para viver a vida confortável de

um burguês. Ao mesmo tempo, ele mantinha seu interesse na edu-

cação, publicando um conjunto de textos pedagógicos e ensinando

física, psicologia e astronomia por breve período em 1849. Como

muitos outros homens progressistas franceses do período, Rivail

era também um estudante ocasional do Mesmerismo, que ele co-

meçou explorar nos anos 20 do século dezenove.35 Embora ele

estivesse ciente da moda das mesas girantes de 1853, e tivesse ami-

gos que lhe informavam sobre os fenômenos esquisitos que eles

tinham testemunhado nas sessões espíritas, ele permaneceu cético.

Sua opinião somente mudou em 1855, depois de uma conversa

com M. Pâtier, “um funcionário público, de certa idade, um ho-

35 Henri Sausse, Biographie d’Allan Kardec (Paris: Jean Meyer, 1927), 18-24.

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mem muito bem educado, com um caráter frio e grave”, cujas opi-

niões altamente sustentadas por testemunho dos fenômenos das

sessões espíritas, persuadiram Rivail que tais coisas podiam de fato

merecer investigação séria.36

No fim de 1855, Rivail encontrou um lugar no pequeno

mundo dos espiritualistas parisienses, e começou no caminho que

o levaria a proeminência. Ele era um frequentador regular nas

sessões espíritas semanais da família Baudin, onde madame Bau-

din e suas duas filhas adolescentes serviam como médiuns. Na

casa dos Baudin, os espíritos se comunicavam via escrita automá-

tica, inicialmente produzida com um lápis atado a um cesto ou a

uma prancheta. Estas reuniões tinham pouco conteúdo quando

Rivail começou a frequentá-las. O espírito chamado Zéphyr res-

pondia às questões com uma mistura de sábia advertência e “gra-

cejo bem humorado” – uma situação que Rivail, um homem in-

tensamente sério, achava desconcertante e improdutivo. Gradu-

almente, ele trabalhou para levar as sessões espíritas a uma direção

mais rigorosa. Baseando no seu treinamento com Pestalozzi no

“método experimental”, ele planejava uma série de perguntas in-

36 Allan Kardec, Pierre-Gaëtan Leymarie, ed., Oeuvres posthumes (Paris: Dervy, 1978), 241. O

material citado aqui vem de um livro de memórias que Kardec escreveu no final dos anos 60

do século dezenove.

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terligadas antes de cada reunião, e as colocava de uma forma mo-

derada e metódica, “não aceitando uma explicação como válida

até que ela resolvesse todas as dificuldades da questão”. Os outros

participantes das sessões espíritas começaram a apoiar o projeto

de Rivail, abandonando seus interesses prévios em “questões tri-

viais”. Zéphyr e seus amigos espíritos apoiaram este exame minu-

cioso, elaborando um conjunto de material que, nas palavras de

Rivail, “formaram um todo e tomou a proporção de doutrina”.37

Ele começou a ordenar as comunicações do grupo e editá-las para

publicação. Enquanto ele fazia isso, outros membros do grupo,

incluindo o dramaturgo Victorien Sardou, o escritor René Tail-

landier e o editor Alfred Didier, contribuíram com a pesquisa de

Rivail dando a ele cadernos adicionais de escritas automáticas de

outros médiuns.38 Para posterior ajuda no seu projeto, Rivail co-

meçou a consultar o magnetizador profissional, Roustan, e sua so-

nâmbula Célina Japhet. Os espíritos de Japhet compartilhavam as

inclinações de Rivail por coerência filosófica, ajudando a clarificar

ambiguidades e reconciliar inconsistências entre as várias comuni-

cações.39 Um dia em 1856, quando este processo estava bem en-

37 Ibid., 242-244. 38 Sausse, 30. 39 Kardec, Oeuvres posthumes, 245.

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caminhado, Rivail recebeu uma comunicação, do grupo de Baudin

ou do grupo de Japhet e de um médium chamado J. Roze, suge-

rindo que ele publicasse seu livro sob o pseudônimo de Allan

Kardec.40 Na primavera de 1857, sua primeira compilação das

comunicações, o Livro dos Espíritos, apareceu impresso.

O livro de Kardec foi um dos muitos textos em linguagem

francesa sobre o Espiritualismo publicado mais ou menos ao mes-

mo tempo, um sinal do entusiasmo que a viagem do médium an-

glo-americano D. D. Home gerou entre os leitores franceses.41 En-

tretanto, o Livro dos Espíritos rapidamente se distinguiu dos seus

competidores. Onde antes os livros espiritualistas em francês ti-

nham tendido a ser digressivos, em compilações mal organizadas

de anedotas e especulações, os espíritos de Kardec conduziram

suas ideias em termos simples, respondendo diretamente, em for-

mato de catecismo, a questões claramente formuladas. Talvez

mesmo mais importante, as respostas que os espíritos forneciam

eram notáveis pela falta de originalidade. Ao contrário de vaga ex-

40 O pseudônimo de Rivail tem duas possíveis histórias de origem. Veja Le Spiritisme 5

(1888): 233, para uma história que o atribui a um médium no círculo dos Baudin; e La Lumiè-

re 10 (janeiro 1899-dezembro 1900): 38-40, para a que o atribui a Japhet e Roze. 41 Para discussões sobre a cobertura da imprensa de Home e a onda de publicações espiritu-

alistas de 1857, ver Monroe, 83-90, 102-104.

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ploração, fantasticamente parecida com o território intelectual, as

comunicações no Livro dos Espíritos sintetizavam seletos elementos

dos diversos sistemas que tinham emergido nos primeiros textos

espiritualistas franceses. Como Cahagnet, Kardec reforçou a conti-

nuidade dos mundos material e espiritual; ele também dividiu com

o Mesmerismo Espiritualista a noção de um “fluido” penetrante

que ligava os dois. Kardec similarmente mantinha a concepção da

jornada das almas como a jornada da continuação do progresso,

presente em Cahagnet e muito no pensamento espiritualista ameri-

cano. Ao invés de considerar a vida do além como uma série de

esferas imateriais, no entanto, ele tomou a abordagem de Louisy,

descrevendo um cosmos no qual as almas individuais expiavam

pecados e colhiam recompensas por bons procedimentos através

da reencarnação física em uma série de planetas progressivamente

mais confortáveis. Entre encarnações, as almas viviam em variáveis

períodos de tempo como espíritos errantes; as entidades que visita-

vam as sessões espíritas eram deste tipo ou eram almas que tinham

alcançado estados etéreos que marcavam os mais altos níveis de

evolução espiritual. Ao mesmo tempo, os espíritos de Kardec, de

forma nenhuma ortodoxos em seus raciocínios, eram frequente-

mente, no mínimo, nominalmente católicos, e enfaticamente cris-

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tãos em sua sensibilidade moral: o livro incluiu comunicações assi-

nadas por Santo Agostinho, São Vicente de Paulo, São Luis, e Féli-

cité de Lammenais, entre outros.

Os outros livros espiritualistas de 1857 foram rapidamente

esquecidos, mas o Livro dos Espíritos tornou-se um campeão de

vendas. Seu sucesso baseava-se não somente nas suas incomuns

coerência e acessibilidade lógica, mas também em uma caracterís-

tica mais fundamental: as ideias que ele apresentava eram nota-

velmente bem ajustadas a sua pretendida audiência. Muito do ma-

terial do Livro dos Espíritos, como já mencionado, tinha anteceden-

tes no trabalho de escritores espiritualistas anteriores, mas os ele-

mentos específicos da síntese de Kardec se emaranhavam de uma

forma única com a mais extensa sensibilidade intelectual e a situa-

ção política dos homens e mulheres alinhados à esquerda progres-

sista da França, especialmente nas classes médias urbanas. A visão

moral e escatológica delineada pelos espíritos de Kardec, com sua

ênfase na caridade como expressão primária da conduta moral e

sua concepção de reencarnação interplanetária, repercutiu bem

fortemente o pensamento do socialista romântico de Fourier,

Henri de Saint Simon, Etienne Cabet, Jean Reynaud e Pierre Le-

roux. O senso do valor das comunicações espirituais de Kardec

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A TRAVESSIA: ALLAN KARDEC E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO ESPIRITUALISMO MODERNO JOHN WARNE MONROE

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como uma forma de dar uma base empírica para a fé, e a visão

teleológica do progresso histórico que ele esposava – com sua

suposição que a humanidade era movida para uma época na qual

a ciência triunfante resolveria um sempre crescente número de

questões fundamentais – se devia claramente ao Positivismo de

Auguste Comte. Na verdade, esta fusão da metafísica romântico-

socialista e da epistemologia positivista era talvez a contribuição

intelectual mais original de Kardec. Politicamente, o Livro dos Es-

píritos tinha uma inspiração no Socialismo Romântico, mas dis-

pensou sua mensagem explicitamente revolucionária. Os espíritos

de Kardec, por exemplo, deixaram claro que a reencarnação não

era um incentivo para criar o paraíso na Terra através de uma

reorganização social radical, como muitos socialistas românticos o

tinham visto, mas pelo contrário, justificava resignação à injustiça

atual com a promessa de uma recompensa futura em um planeta

mais iluminado. Isto serviu ao duplo propósito de distanciar as

ideias de Kardec da violência e da revolta de 1848, e de acomodar

a realidade repressiva do estado autoritário de Napoleão III, sob a

qual os defensores da política de esquerda eram na melhor hipó-

tese censurados ou presos e exilados na pior hipótese. Como re-

sultado deste ato cuidadosamente pensado, a filosofia de Kardec

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atingiu aqueles que a abraçavam como familiar e consoladora: ele

tomou exatamente a forma de um leitor de meados do século

dezenove que com inclinações progressistas esperaria ter de um

sistema alternativo religioso, mas fez isso numa forma que dissi-

pava as intensas paixões político-sociais que tinham causado mui-

to tumulto durante a Segunda República.

Kardec pretendia que o Livro dos Espíritos fosse um texto

fundamental de um movimento organizado. Seu primeiro passo

nesta direção foi terminológico: para substituir o previamente

comum spiritualisme, ele cunhou um novo termo, spiritisme. Como

ele coloca na introdução do Livro dos Espíritos, em Francês a pa-

lavra espiritualismo já atribuída a uma ampla e bem estabelecida

tradição filosófica, fazendo-a aplicável a qualquer um “que acre-

dita que tem nele mesmo alguma coisa a mais do que matéria”,

de Descartes e Victor Cousin a Cahagnet e Delaage. Espiritismo,

em contraste, era mais preciso: ele se referia a uma “doutrina”

estabelecida na “relação entre o mundo material e os espíritos ou

seres do mundo invisível”.42 Crentes desta doutrina eram espíri-

tas; os princípios cosmológicos, escatológicos e morais nos quais

42 Allan Kardec, Le Livre des Esprits, contenant les principes de la doctrine spir ite (Paris:

Dervy 1996), I.

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ela era baseada eram aqueles definidos no Livro dos Espíritos. Em

1858 Kardec fundou um jornal, a Revue spirite, para dar sustenta-

ção posterior a suas ideias, e brevemente depois disso estabele-

ceu uma sociedade para o estudo das manifestações dos espíri-

tos, a Société parisienne des études spirites. Este grupo, composto,

como a Revue o descreveu era de, “exclusivamente pessoas sé-

rias”, incluindo muitos “homens tornados eminentes pelos seus

conhecimentos e posições sociais”, fez sua primeira reunião na

primavera de 1858.43

O TRIUNFO DA CODIFICAÇÃO

Kardec não usou o termo “doutrina” levianamente. Para

ele, como para muitos dos crentes que adotaram suas ideias na

metade final do século dezenove, o Espiritismo adquiriu conside-

rável poder por sua consistência e coerência lógica. As páginas da

Revue spirite e as suas compilações das comunicações dos espíritos

eram polifônicas, juntando escritas automáticas de uma grande

variedade de diferentes grupos e médiuns. Ainda assim havia

sempre um comentário editorial para juntar as várias partes, onde

ele frequentemente enfatizava esta diversidade usando diferentes

43 La Revue spirite, 1 (1858): 148.

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tamanhos de tipos e – especialmente na Revue – incluía assinaturas

de espíritos no fim de suas comunicações. Esta impressão de mul-

tiplicidade, por seu turno, causava subjacente unidade filosófica

para manifestar isto muito mais claramente. Como Kardec colo-

cou isso em seu segundo livro, um manual detalhado sobre como

dirigir as sessões espíritas e a interpretação das mensagens dos

espíritos, “a linguagem dos espíritos é sempre idêntica, se não na

forma, ao menos na substância. Os pensamentos são os mesmos,

qualquer que seja o tempo e o lugar; eles podem ser mais ou me-

nos desenvolvidos, de acordo com as circunstâncias, necessidades

e a capacidade de se comunicar, mas eles não serão contraditó-

rios”.44 Coerência deste tipo, para Kardec, era elemento crucial

para o reconhecimento do Espiritismo. Enquanto uma filosofia

especulativa convencional era meramente “uma teoria, um siste-

ma inventado para sustentar uma causa primeira”, o Espiritismo

tinha “sua fonte nos fatos da própria natureza, em fatos positivos

que frequentemente apareciam aos nossos olhos”.45 Ele não era

simplesmente uma possível visão do universo, ele era a única vi-

são verdadeira, construída com base na evidência empírica – co-

44 Allan Kardec, Le Livre des mediums, ou guide des médiums et des évocateurs (Boucherville,

QC: Editions de Mortagne, 1986), 337. 45 Revue spirite 7 (1864): 325.

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municações espirituais – que através de exame racional era consi-

derado inabalável.

Esta ênfase na coerência doutrinária colocou Kardec em

desacordo aos valores individualistas que muitos historiadores

consideram ter sido um aspecto definidor do Espiritualismo

Americano. Carrol anota que nos Estados Unidos, espiritualistas

nos anos 50 e 60 do século dezenove tendiam a ver contradições

e inconsistências entre comunicações como uma consequência da

novidade do seu empreendimento. Teorias concorrentes, de acor-

do com esta visão, eram simplesmente participantes recentes no

mercado de ideias, das quais a verdade emergiria com a mesma

inevitabilidade que Adam Smith bradava por preços justos.46 No

fim dos anos 50 do século dezenove, muitos franceses espiritualis-

tas – como eles se chamavam – compartilhavam esta visão, pondo

obstáculos contra o esforço de codificação de Kardec. O mais

eloquente desses oponentes era Zéphyre-Joseph Piérart, antigo

editor chefe do Journal du magnétisme, periódico mesmerista líder da

França.47 Logo depois que a Revue spirite iniciou, Piérart fundou

46 Carroll, 45. 47 Para um notável estudo biográfico de Pierart, consulte os artigos de Marc Court, Pierre

Gillon, et al. publicado em Le Vieux Saint-Maur, Bulletin de la société d’hisotire et

d’archéologie de Saint-Maur-des-Fossés 71-72 (1998-1999): 3-69.

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um jornal concorrente, propositalmente denominado Revue spiritu-

aliste. Seu primeiro lançamento começou com um manifesto criti-

cando “alguns espiritualistas isolados” por seus presunçosos es-

forços para “escrever o código dos espíritos”. Este grupo, Piérart

escreveu, “pensará sem dúvida em logo formar uma ortodoxia a

qual todos os sinais indicam que eles terão a pretensão de usar

para explicar estes fenômenos, e fora disso, de acordo com eles,

haverá somente erro, heresia”. Tal movimento, na visão de Pié-

rart, era um grave erro. A abordagem apropriada era evitar con-

clusões prematuras, ao invés de procurar “estabelecer relações

com todos espiritualistas convictos, para colher todas as opiniões,

pesá-las, e julgá-las”. O que o Espiritualismo necessitava, em re-

sumo, era uma “academia”, um corpo imparcial que avaliaria to-

das as reivindicações igualmente. Este processo de reflexão, ar-

gumentava Piérart, teria também uma dimensão democrática: a

“academia”, sugeria ele, poderia solicitar comunicações de um

grande conjunto de círculos espiritualistas sobre “Deus, Provi-

dência, cosmogonias, mundos, eternidade, almas, humanidade, a

vida futura, grandes verdades religiosas, morais, filosóficas, psico-

lógicas, históricas, científicas, etc. etc.” Então, poder-se-ia subme-

ter estes documentos ao escrutínio racional e à análise quantitati-

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va, dando precedência a ideias compartilhadas por um grande

número de grupos.48 Este apelo à democracia, por seu turno, era

um disfarçado golpe à defesa de Kardec da reencarnação, um

princípio irresistivelmente rejeitado pelos espíritos no mundo

anglo-americano. Enquanto Piérart nunca teve sucesso em estabe-

lecer sua Académie spiritualiste, seu jornal – ao menos nos seus pri-

meiros anos – empenhou-se em conseguir meta similar, solicitan-

do informações dos Estados Unidos, argumentando contra a re-

encarnação, e aceitando artigos dos principais autores franceses

espiritualistas do começo dos anos 50 do século dezenove.

Kardec deu pouca atenção às críticas de Piérart, e tratou as

objeções americanas à reencarnação com pouco caso. Na sua visão,

o fato que a maioria dos espíritos americanos não mencionava a

reencarnação era simplesmente uma concessão sobrenatural ao ra-

cismo. Os espíritos, ele escreveu, desejavam acreditar na possibilida-

de do diálogo com aqueles que “emergiam no país com absoluta

liberdade em relação a expressão de opinião”, e então nada diziam

sobre reencarnação, a qual eles sabiam que “ficaria contra os precon-

ceitos da escravatura e da cor. A ideia que um negro poderia se tor-

nar um branco; que um branco poderia ter sido negro; que um se-

48 Revue spiritualiste, 1 (1858): 1-11.

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nhor poderia ter sido um escravo, pareceria tão monstruoso que isto

teria levado à rejeição de toda a ideia” da comunicação espiritual. Na

França, onde este preconceito não existia, de acordo com Kardec, os

espíritos podiam revelar livremente a verdade. Afinal, ele argumenta-

va, “a unidade emergirá neste ponto como em todos os outros”.49

Certamente, o sucesso decisivo da abordagem de Kardec

na França apoiava sua confiança: em 1866, a Revue spirite ostentava

1800 assinaturas e a Revue spiritualiste, 500.50 Na prática, entretanto,

este sucesso somente aumentou o desafio de manter a coerência

filosófica que Kardec procurava. Enquanto as sociedades espíritas

eram criadas na França, um crescente número de médiuns produ-

zia revelações que poderiam variar consideravelmente de grupo

para grupo. Kardec explicava esta situação enfatizando a diversi-

dade do mundo dos espíritos. Fazer a sessão espírita, particular-

mente se ela não invoca explicitamente um espírito particular, era

como fazer uma reunião pública aberta a todos os visitantes. Es-

píritos elevados podiam visitar, mas também o podiam os menos

evoluídos.51 Os espíritos mais inferiores, ele explicava, eram cla-

49 Revue spirite, 5 (1862): 50. 50 Archives nationales de France, carton F/18/294, “Etat du tirage des journaux (politiques et

non politiques) 1er semestre 1866.” 51 Livre des médiums, 352-353.

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ramente identificáveis: eles falavam de uma maneira menos inteli-

gente, podiam ser rudes e danosos, e frequentemente exibiam

uma inclinação para os fenômenos físicos espetaculares embora

grosseiros. Espíritos elevados, em contraste, comunicavam sobre

matérias importantes calmamente, seriamente e em tons modera-

dos.52 Perante esta situação, os espíritos mais enganadores eram

aqueles que mantinham comunicações com todas as marcas esti-

lísticas da elevação, não obstante contradiziam aspectos da Dou-

trina Espírita já aceitos como verdade. Estas comunicações hete-

rodoxas decepcionantes, Kardec argumentava, eram o trabalho de

uma classe insidiosa de almas desencarnadas: os espíritos pseudo-

sábios, ou espíritos impostores.53 Estes seres não eram maliciosos;

eles simplesmente não conseguiram ainda ultrapassar as noções

preconceituosas que tinham limitado seus pensamentos quando

eram vivos. O conceito de espíritos pseudo-sábios, em outras pala-

vras, deu a Kardec uma válvula de segurança – uma forma de des-

legitimar as comunicações convincentes e lógicas, mas inconveni-

entemente divergentes que alguns médiuns produziam.

52 Ibid., 326-351, 407-419. Veja também Livre des esprits, 43-61. 53 Para uma descrição concisa das características do espírito pseudo-sábio, consulte Livre des

esprits, 48-49.

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Apesar de ter sido essencial para a manutenção da coerência

doutrinária do Espiritismo, a efetiva identificação e denúncia de

comunicações deste tipo poderia gerar considerável conflito. Na

verdade, o problema de manter médiuns em seus lugares parece ter

estado entre as maiores dificuldades que Kardec enfrentou logo

que o Espiritismo se tornou um movimento totalmente estabeleci-

do no início dos anos 60 do século dezenove. Sua autoridade pes-

soal como um juiz cheio de discernimento da verdade, e a predo-

minância de seus livros, organização e jornal apreciados no mundo

da ortodoxia francesa, fez muitos médiuns ansiosos por ver suas

comunicações publicadas com sua aprovação. Mesmo quando es-

critas automáticas chegavam à Societé parisienne aos milhares, todavia,

Kardec concluiu que médiuns poderiam ser bastante relutantes em

ter suas comunicações criticadas.54 Apesar das seguidas advertên-

cias de Kardec, muitos médiuns e crentes, quando apresentavam

comunicações para sua avaliação, parecem tê-lo feito já convenci-

dos que eles receberam sabedoria de seres superiores. Estes reque-

rentes ficavam geralmente decepcionados por ouvir o maître pro-

clamar que desvios dos pontos já estabelecidos da doutrina traziam

54 Em 1863, Kardec afirmou estar trabalhando com um conjunto de 3.600 comunicações

espíritas escritas. Além disso, houve "um certo número de manuscritos mais ou menos

volumosos". Revue spirite 6 (1863): 156.

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à questão a origem de suas revelações. Da perspectiva dos médiuns

e dos participantes das sessões espíritas, sobretudo, uma comunica-

ção espiritual era um traço físico de uma poderosa e, profundamen-

te pessoal experiência de inspiração e transcendência. Aprovando a

comunicação, Kardec verificava a autenticidade deste momento de

inspiração; uma rejeição, ao contrário, indicava que o solicitante

tinha se enganado com as fantasias de um espírito de cultura inferi-

or. A posterior inferência de Kardec que tais comunicações inferio-

res eram consequências da própria “fraqueza e credulidade” do

médium teria feito esta recusa duplamente penosa.55

Para a maior parte, estes médiuns recalcitrantes somente

existem no relato histórico como alvos despersonalizados das

admoestações de Kardec.56 O caso do advogado de Bordeaux

Jean-Baptiste Roustaing e sua médium, Madame Emile Collig-

non, entretanto, é uma exceção bem documentada desta regra. A

história de Roustaing fornece uma reveladora ilustração da for-

ma que a autoridade funcionava no Espiritismo Francês, e daí,

da divergência surpreendente entre sua contraparte anglo-

55 Revue spirite 2 (1859): 33. 56 Para discussões sobre alguns outros casos bem documentados em que é possível identifi-

car médiuns específicos, o mais notável dos quais foi Honorine Huet, consulte Monroe,

Laboratories of Faith, 90-94, 133-139.

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americana. Nascido em uma família de advogados de classe mé-

dia, Roustaing começou sua vida profissional como professor de

escola pública em Toulouse, onde trabalhou de 1823 a 1826.

Durante este período ele estudou advocacia nas horas de folga.

Em 1826, ele mudou-se para Paris, onde ele fez seu aprendizado

formal.57 Após terminar seu treinamento em 1829, ele retornou a

sua cidade natal de Bordeaux e começou a trabalhar como advo-

gado. Ele fez uma carreira de sucesso, trabalhando por 30 anos

“no escritório e nos julgamentos”.58 Em 1858, Roustaing con-

traiu uma doença séria, que o obrigou a parar de trabalhar; mes-

mo depois de sua recuperação em 1861, ele não teve força para

reassumir sua “amada profissão”.59

Felizmente, justamente quando Roustaing recuperou, ele

encontrou uma nova vocação: o estudo do Espiritismo. Ele pri-

meiramente soube da nova doutrina por um médico local e por

57 Jean-Baptiste Roustaing, Spiritisme chrétien, ou révélation de la révélation, les quatre

Evangiles suivis des commandements, expliqués en esprit et en vérité par les évangelistes

assistés des apôtres – Moïse, Vol. 1 (Paris: Librairie centrale, 1866), iii-iv. 58 Ibid., iv. 59 Ibid.

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um amigo advogado chamado André Pezzani.60 Inicialmente

Roustaing era cético, mas depois de ler o Livro dos Espíritos, ele

mudou de opinião, por razões que parece ter sido típica entre os

convertidos franceses – homens especialmente educados – neste

período.61 A doutrina de Kardec ofereceu a Roustaing uma pode-

rosa solução para dúvidas metafísicas que o tinham aborrecido

durante sua doença. Antes de encontrar o Livro dos Espíritos, Rous-

taing não podia aceitar os ensinamentos da Igreja Católica. Os

Evangelhos pareciam “obscuros e incompreensíveis” a ele, e as

interpretações que a Igreja oferecia eram patentemente irracionais

para satisfazer os requerimentos de sua mente bem afiada.62 Ao

mesmo tempo, entretanto, o advogado de Bordeaux sentia um

poderoso desejo de acreditar. Ele admirava a moralidade cristã,

mesmo quando se recusava a aceitar a realidade da espetacular

“transgressão das leis naturais” que parecia ocorrer tão frequen-

temente nos Evangelhos.63 O Espiritismo, com ênfase nos fatos, e

sua proposta em prover uma explicação para os milagres de acor-

60 Ibid. Pezzani era um defensor entusiasta da idéia da reencarnação. Veja sua defesa da

cosmologia kardecista contra as objeções de Piérart em André Pezzani, Une philosophie

nouvelle, ce qu’elle doit être devant la science (Paris: Didier, 1872), 93-96. 61 Ibid., iv, vi. Para outros exemplos, ver Monroe, Laboratories of Faith, 123-127. 62 Ibid., vi. 63 Ibid.

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do com as demandas da ciência moderna, finalmente permitiu

Roustaing trocar sua dúvida por uma certeza definitiva. Seu entu-

siasmo com a nova doutrina o inspirou a mandar uma declaração

de fé para Kardec, que foi publicada na Revue spirite em 1861.64

Depois de sua conversão, Roustaing abordou seus estudos

do além com uma intensidade cada vez maior. Ele começou por

assistir uma variedade de reuniões espíritas, nunca servindo ele

mesmo como médium, mas, em vez disso, seguindo ambas: a prá-

tica Mesmerista precedente e a prática usual de Kardec, observando

e colocando questões aos espíritos que apareciam.65 Em dezembro

de 1861, ele encontrou a médium Emile Collignon. Diferentemente

dos médiuns que Roustaing havia consultado previamente, Collig-

non não tinha somente a vontade, mas também a habilidade e paci-

ência para produzir volumosas escritas automáticas suficientemente

ambiciosas para satisfazer o exigente ex-advogado. No fim da sua

segunda reunião com Roustaing, Collignon recebeu uma longa

64 La Revue Spirite, Vol.4 (1861): 169. 65 No início da década de 60 do século dezenove, este modelo tornou-se típico em círculos

espíritas franceses. De acordo com Carroll, médiuns tendem a dominar círculos espiritualis-

tas americanos, mas na França, especialmente a partir da década de 50 até a década de 70

do século dezenove, a figura dominante era o homem presidente da sociedade, que liderava

as reuniões, fazia questões aos espíritos, mas nunca, ele próprio, entrava num transe. Ver

Carroll, 120-151; e Monroe, 132-133.

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comunicação espontânea escrita em colaboração pelos espíritos

Mateus, Marcos, Lucas e João, “ajudados pelos apóstolos”.66 Nesta

carta, os espíritos anunciavam suas intenções de usar Collignon

como um veículo para uma nova série dramática de novas comuni-

cações: “Ao fim, queridos amigos, nós tentaremos explicar os

evangelhos em espírito e verdade, e assim colocar o cenário para a uni-

dade de crenças entre os homens; vocês podem chamar isso de “a

revelação da revelação”.67 A tarefa de Roustaing, como questionador de

Collignon, seria de ordenar estas revelações e prepará-las para pu-

blicação. Reunindo-se regularmente pelos próximos cinco anos,

Collignon e Roustaing produziram um enorme compêndio de co-

mentários sobre os Evangelhos, seguidos por uma similarmente

detalhada explicação dos Dez Mandamentos, fornecida pelo espíri-

to de Moisés. Roustaing publicou estes textos em 1866 – prova-

velmente às suas custas – em três grossos volumes com o incômo-

do título Spiritisme chrétien ou révélation de la révélation, les quatre Evangi-

les suivis des commandements, expliqués en esprit et en vérité.

As ideias de Roustaing e que os Evangelistas de Collignon

expunham eram idiossincráticas e potencialmente explosivas.

66 Ibid., xxiii. 67 Ibid., xxii. Ênfase no original.

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Mais surpreendente, elas ofereciam uma nova explicação para a

divindade de Cristo e o nascimento de virgem. A nova “revelação

da revelação”, que Roustaing explicava com uma combinação

típica de legalidade tortuosa e exuberância tipográfica visionária,

mostra que esta concepção e gestação da virgem, e deste

modo, esta gravidez e o parto – os quais podiam não ter sido

reais, por que eles poderiam ter contrariado as leis da nature-

za, imutáveis como o desejo de Deus, de onde eles emanaram

– na nossa Terra, requeria a ligação de dois sexos para a con-

cepção da fêmea (e em consequência, gestação, gravidez e

parto), e não pode, por consequência e necessariamente, ser

qualquer coisa MAS simplesmente aparente – era, de fato,

simplesmente aparente como funciona inteiramente fora de

toda ação humana – como trabalho do Espírito Santo, quer di-

zer, dos espíritos do Senhor e ASSIM puramente Espírita. 68

Cristo, em outras palavras, não tinha um corpo no sentido

humano, de acordo com os evangelistas de Collignon e Roustaing.

Ao contrário, ele tinha um “corpo fluídico, de natureza perispiri-

68 Ibid., 48. Ênfase no original.

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tual, visível e tangível como uma aparição corporal humana”.69 O

corpo aparentemente físico de Cristo era de fato uma extraordina-

riamente poderosa e duradoura “forma completa” de materializa-

ção espiritual. Seu nascimento e a gravidez de Maria, entretanto,

na verdade não ocorreu, mas foram, em vez disso, simulações, tão

reais que elas convenceram a própria Maria.

Esta noção do corpo de Cristo e o nascimento como “pura-

mente obra dos espíritos”, Roustaing afirmava, era o único meio

racional de relatar a categoria do Messias como um ser divino. A

velha história do nascimento de uma virgem contradizia as “leis da

natureza”, que cada pessoa moderna, cientificamente treinada sabia

ser imutável. Para que a ideia de um Cristo divino seja racionalmente

defensável, entretanto, ela precisa ser explicada em termos dessas

leis. Espiritismo e Mesmerismo, introduzindo a ideia que a alma po-

deria usar o “fluido universal” para que sua presença fosse sentida

no mundo material, davam esta explicação. Cristo, como Roustaing

e Collignon o retratavam, era uma entidade espiritual com um corpo

tangível, mas não de carne. Ele não era um ser humano comum,

então, mas uma manifestação física direta da vontade de Deus; sua

69 Ibid., Vol.3, 131. A palavra perispírito, cunhado por Kardec no Livre des esprits, refere-se

ao "envelope fluídico" etéreo que envolve um espírito quando ele está no estado desencar-

nado, e serve como meio de influenciar o mundo material.

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aparente humanidade era somente uma ilusão para fazê-lo mais atra-

tivo aos menos evoluídos intelectos dos tempos bíblicos.70

Kardec não recebeu a magnum opus de Roustaing com o

mesmo entusiasmo que tinha concedido à carta de 1861. Uma bre-

ve revisão dos Quatre Evangiles apareceu na Revue Spirite em meados

de 1866. “Para os espíritas”, anota Kardec, esta nova coleção de

comunicações dos espíritos “tinha o mérito de em nenhuma forma

contradizer a doutrina ensinada no Livro dos Espíritos”.71 Esta orto-

doxia doutrinária, entretanto, era acidental: ela era ligada nos dese-

jos dos espíritos de Roustaing de fazer perguntas às mais elevadas

entidades que tinham decidido não responder, no interesse de per-

petuar algumas medidas de harmonia entre Espiritismo e Catoli-

cismo – se não aos olhos do clero, que categoricamente rejeitava as

ideias de Kardec, ao menos aos olhos dos leigos de mente aberta.

Na visão de Kardec, então, as falhas do trabalho não provi-

nham das suas contradições com os já publicados textos espíritas,

mas antes da forma de salvaguardar as ideias que ele adiantava.

Mais importante, a descrição do livro da natureza espiritual do Cris-

to contradizia perturbadoramente o ponto chave do dogma católi-

70 Ibid., 578. 71 La Revue Spirite, Vol.9 (1866): 190. Os itálicos são meus.

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co, e pior, lembrava a velha heresia do Docetismo. Em vez de

abraçar de coração o trabalho de Roustaing, Kardec enfatizava sua

relutância em endossar suas mais dramáticas conclusões. “Até nós

recebermos posteriores informações”, ele escreveu, “nós nem

aprovamos nem desaprovamos as teorias (de Roustaing)”. Em vez

disso, os crentes fariam bem em considerar estes volumes como

“uma opinião pessoal dos espíritos que a forneceram”, não como

“parte integral da Doutrina Espírita”.72 Com esta instrução Kardec

deu a entender que Moisés, Mateus, Marcos, Lucas e João de Rous-

taing podiam de fato ter sido espíritos pseudos-sábios, que levaram

o eminente advogado pelo mau caminho. Com receio de que al-

guns leitores vissem esta cautelosa avaliação como muito afirmati-

va, Kardec passou a indicar que vários espíritos contatados para

confirmação já tinham manifestado “sérias objeções a esta teo-

ria”.73 O livro de Roustaing, de acordo com Kardec, era meramente

um documento curioso e hipotético.

A recusa de Kardec de aceitar os Quatre Evangiles como um

texto espírita canônico deixou Roustaing amargamente desapon-

tado. O advogado de Boudeaux respondeu à rejeição de Kardec

72 Ibid., 191. 73 Ibid.

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com uma longa carta, que acabou sendo publicada na forma de

um panfleto no início de 1880. Neste texto, Roustaing denunciou

Kardec por seu autoritarismo. Kardec, ele escreveu, rendendo-se

a uma abjeta sede de poder transformou a doutrina dos espíritos

revelada a ele de uma simples hipótese em um “sistema precon-

ceituoso” inflexível.74 Esta rigidez, Roustaing escreveu, causou

grave dano à causa espiritualista na França. Apresentando-se co-

mo um “juiz infalível”, Kardec “repeliu (...) todos os homens de

porte científico e literário que não queriam ser seus seguidores, os

que desejavam manter sua independência e o critério de suas ra-

zões”.75 Na América, onde o Espiritualismo mantinha-se livre de

dogmas e descentralizado, ele teve sucesso em fazer prosélitos

“aos milhões”.76 Na França, ao contrário, o movimento pareceu

interessar a uma pequena minoria. Pessoas distintas, educadas e

inteligentes, afirmava Roustaing, rejeitavam o Espiritismo francês

porque elas rapidamente percebiam suas contradições. Em teoria,

o Espiritismo era a doutrina que prometia liberdade, reforma so-

74 Jean-Baptiste Roustaing, "Les Quatre Evangiles de J-B Roustaing, réponse à ses critiques et

à ses adversaires" (Bordeaux: J. Durand, 1882), 18. Esta brochura é um manuscrito que

Roustaing escreveu em 1866, e revisou antes da sua morte em 1879. O núcleo do documen-

to é a carta que Roustaing escreveu a La Revue Spirite. 75 Ibid., 29. 76 Ibid.

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cial e a transformação das relações humanas com o além. Na prá-

tica, ele era uma seita autoritária que “exauria e aprisionava” as

mentes de seus adeptos forçando-os a curvarem-se à implacável

vontade de Kardec. O Espiritismo francês, Roustaing concluía,

poderia somente ganhar influência se ele tivesse sucesso em liber-

tar-se das coações do “sistema” opressivo de Kardec.

No final, entretanto, o autoritarismo contra o qual Rousta-

ing se lançava serviu bem a Kardec. Na época em que os volumes

do advogado de Bordeaux apareceram, a esmagadora maioria dos

grupos franceses devotados aos contatos com os espíritos con-

cordaram com o papel central dos textos de Kardec, e reconhece-

ram a proeminência do seu jornal e da sociedade parisiense que

ele liderou. Grupos espíritas tinham também começado a aparecer

na Catalunha e Itália. Esta posição de eminência deu a Kardec

uma considerável soma de poder para determinar quais ideias

eram ou não eram aceitáveis para serem admitidas nos princípios

da doutrina espírita – e criou uma percepção geral que tais “prin-

cípios” existiam antes de tudo. A popularidade dos livros de Kar-

dec, a simplicidade das ideias neles contidas, e seu acessível estilo

fizeram da “doutrina” espírita a lente filosófica através da qual os

franceses – crédulos e céticos, igualmente – entendessem as ses-

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sões espíritas e os contatos do outro mundo que ocorriam nelas.

Um número continuamente crescente de sociedades espíritas

através da França organizou-se de acordo com o modelo de Kar-

dec; as comunicações que os médiuns recebiam refletiam este

crescente consenso tomando sempre mais a doutrina e a termino-

logia do Livro dos Espíritos como seus pontos de partida.77 Entre

os espíritos que falavam através dos médiuns franceses, por

exemplo, a ideia das reencarnações progressivas tinha se tornado

“senso comum” no início dos anos 70 do século dezenove. Ao

tempo da morte de Kardec, em 1869, o Espiritismo kardecista

assumiu um lugar importante na imaginação visionária francesa,

que continuaria a ocupar também no século vinte.

Ainda que Roustaing tivesse discordado, o triunfo do Espiri-

tismo na França, e subsequentemente em outros lugares no mundo

católico, não era provavelmente uma simples consequência de procura

sem escrúpulos de poder. Ao contrário, a versão diferente de Kardec

do Espiritualismo Moderno teve sucesso em grande parte porque ela

repercutia tão fortemente com sua pretendida audiência. Esta reper-

cussão, por outro lado, leva-nos de volta à questão maior do desen-

volvimento transnacional do Espiritualismo Moderno. Na França,

77 Para uma descrição mais detalhada deste processo, ver Monroe, 112-118.

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como nós temos visto, esta força da heterodoxia colocava uma ênfase

muito maior na centralização da estrutura organizacional e coerência

doutrinária do que fez as correspondentes anglo-americanas. Os espi-

ritualistas britânicos e americanos, como uma rica literatura nestes

assuntos mostra, organizaram-se em uma coleção de “associações”

descentralizadas, e eram consideravelmente mais tolerantes com as

diferenças filosóficas entre médiuns e grupos. Em grande parte, como

a resposta ambivalente de Kardec a Roustaing, a preferência francesa

pela autoridade e codificação foi um produto do contexto religioso

que o Espiritismo tomou forma. A maioria dos espíritas, mesmo

quando eles abandonaram o catolicismo, tinham se educado na Igreja,

e continuaram a conceber a legitimidade religiosa em termos católicos.

Kardec mesmo tomou cuidado em apresentar o Espiritismo como

intimamente conectado ao Catolicismo. O Espiritismo, ele escreveu,

parece ainda mais — e com mais autoridade — com a reli-

gião católica do que com outras. No (Catolicismo) nós en-

contramos todos os importantes princípios: Espíritos de vá-

rios graus, suas relações ocultas e visíveis com os homens,

anjos da guarda, reencarnação, separação da alma do cor-

po, segunda vista, visões, manifestações de todos os tipos,

e mesmo tangíveis aparições.78

78 Livre des esprits, 486.

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Enquanto numerosos clérigos críticos e frequentemente

insultuosos do Espiritismo discordavam enfaticamente deste pro-

nunciamento, particularmente quando ele chegava à reencarnação,

parece, contudo ter atingido certo número de leigos como digno

de confiança. De acordo com a própria avaliação de Kardec, ba-

seada em dez anos de correspondência do jornal e da sociedade

espírita, algo como setenta por cento dos espíritas franceses eram

“católicos não amarrados a dogmas”; “católicos amarrados a

dogmas” são estimados em dez por cento mais.79

A centralização relativa do Espiritismo na França e a

confiança na doutrina codificada, contudo, poderiam talvez ser

consideradas uma criação colaborativa, o produto de uma intera-

ção entre as ideias de Kardec e as expectativas de seu público.

Mesmo que o papel do Catolicismo fosse importante para a his-

tória, ele não era o único elemento a fazer esta colaboração, con-

tudo. Como nós vimos, muitos dos distintos elementos “não

católicos” do Espiritismo, incluindo o conceito de reencarnação

expiatória interplanetária e a tendência de dar autoridade nas

reuniões ao “presidente” homem e não-médium, também emer-

giam desta reciprocidade entre ideias e expectativas. Desenvol-

79 Revue spirite 12 (1869): 5.

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ver um entendimento mais claro deste tipo de diferenciação de

como ele acontecia não somente na França, mas em outros paí-

ses desde que o Espiritismo começou sua própria jornada trans-

nacional, fará mais para estimular nosso senso de significância

do processo de inovação religiosa que as irmãs Fox começaram

na sua casa de campo em 1848.

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SUGESTÕES PARA POSTERIORES LEITURAS

ESPIRITISMO E MESMERISMO CONTINENTAL DO SÉCULO XIX:

Abend, Lisa. “Specters of the Secular: Spiritism in Nineteenth-Century

Spain.” In European History, Quarterly. 34:4 (2004): 507-534.

Aubrée, Marion and François Laplantine. La Table, le Livre et les

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entre France et Brésil (Paris: Lattès, 1990).

Bergé, Christine. La Voix des Esprits, Ethnologie du Spiritisme. Paris :

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Biondi, Massimo. Tavoli e Medium, Storia dello Spiritismo in Italia.

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Brown, Diana DeGroat. Umbanda: Religion and Politics in Urban

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1785-1914 (Paris: Albin Michel, 1995).

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Lantier, Jacques. Le Spiritisme, ou l’Aventure d’une Croyance. Paris:

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Le Maléfan, Pascal. Folie et Spiritisme, Histoire du Discours

Psychopathologique sur la Pratique du Spiritisme, ses Abords et ses

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Méheust, Bertrand. Somnambulisme et Médiumnité. 2 vols. Le

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Monroe, John Warne. Laboratories of Faith: Mesmerism, Spiritism and

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Sharp, Lynn L. Secular Spirituality: Reincarnation and Spiritism in

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Treitel, Corinna. A Science for the Soul: Occultism and the Genesis of the

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Vinitsky, Ilya. Ghostly Paradoxes: Modern Spiritualism and Russian

Culture in the Age of Realism. Toronto: University of Toronto Press, 2009.

John Warne Monroe, PhD em História da Europa pela

Universidade de Yale (2002) e escritor norte-americano, é

autor de Laboratories of Faith: Mesmerism, Spiritism and

Occultism in Modern France. Atualmente é professor do

departamento de história da Universidade de Iowa, EUA.

Email: [email protected]

Título Original:

Crossing Over: Allan Kardec and the Transnationalization of Modern Spiritualism.

Tradução e Revisão:

Swami Villela e Vital Cruvinel.

Edição e Produção Gráfica:

PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense].

São Vicente-SP, Brasil - setembro de 2014.