movimento hip hop de caruaru

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  • 8/7/2019 Movimento Hip Hop de Caruaru

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    Mim Hip Hp C - Pmbc

    Juventude e Integrao Sul-aMerICana:caracterizao de situaes-tipo e organizaes juvenis

    relatrIo daS SItuaeS-tIPo BraSIl

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    Hip Hop: Famlia MBJCaruaru - PE

    Coordenao

    Apoio

    Setembro 007

    Adjair Alves - UFPE (Coord.)Rosilene Alvim - UFRJ (Coord.)

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    Sumrio

    . Breve abordagem do segmento juvenil e suas demandas ......................................................................................................................... 4

    . Caracterizao etnogrca da situao estudada ........................................................................................................................................... 7

    Notas .................................................................................................................................................................................................................................... 6

    Anexos ................................................................................................................................................................................................................................. 8

    Reerncias Bibliogrcas ............................................................................................................................................................................................

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    . Breve abordagem do segmento juvenil e suas demandas

    A amlia MBJ surgiu por volta de 000 e 00, conorme relatos de seus integrantes undadores. Como organizao dos

    jovens do Morro Bom Jesus e do bairro Centenrio em Caruaru, Pernambuco, a amlia MBJ corresponde a um conselho diretor

    composto por jovens integrantes do movimento hip-hop em Caruaru e tem a uno de interlocutora do movimento hip-hop

    no Morro Bom Jesus e no bairro Centenrio.

    ..a gente comeou a pensar na necessidade de juntar as oras, pra levar o movimento adiante e torn-lo pblico, no rdio, televiso,

    mostrar a cara. Isoladamente a gente no tinha representatividade, no tinha como dizer quem somos. Mas, como organizao, a gente

    tanto podia dizer quem como podia articular tambm a carreira individual, contando com o apoio de todos da amlia MBJ. A amlia

    oi organizada para mudar esse quadro em relao ao jovem da avela, da perieria. Fazer o jovem entender que ele tem que trabalhar,

    para levantar sua auto-estima. Se reconhecer como capaz pra poder ser reconhecido como capaz pelos outros l ora. Pra voc exigir que

    reconheam voc preciso que voc se reconhea primeiro. Ento, a amlia, a meu ver, tem essa uno, porque ela valoriza o jovem, ela

    diz a cada um da gente que a gente pode, que a gente capaz. Ela conscientiza o jovem pobre da perieria de sua capacidade. Ele comea

    a acreditar nele, nas atividades que desenvolve dentro da associao, quando so dadas a ele atribuies que at ento ele no tinha de-

    senvolvido, a ele comea a acreditar no seu potencial e passa a agir na sociedade com base naquilo que ele aprendeu na convivncia coma amlia MBJ. Fbio Santos de Azevedo (Preto RF Rima Forte)

    Como que se pensou isso? Enm, se tomarmos cada banda com sua bandeira isolada, no se tem o conjunto do que se passa no Morro, a

    voc vai dizer: mas no s isso que acontece por aqui. Tudo isso acontece por aqui, ento no azia sentido a gente estar separado. Qual a

    ora que teramos? Enm, esses e outros eram os motivos que nos levaram a nos organizar a m de juntarmos oras para combater esses

    maus exemplos sociais. Isael de Souza Alves (MC JC)

    O objetivo promover o apoio necessrio aos jovens do movimento hip-hop em Caruaru, em todos os aspectos possveis,

    incluindo a a produo de discos e shows.

    A gente quer divulgar a comunidade da gente atravs da amlia MBJ. Assim a gente t mostrando que no s aqui no Morro, mas tam-

    bm l no So Joo da Esccia. A gente tem muito apoio da amlia MBJ, tanto materialmente como apoio moral. Por exemplo, na gravao

    do nosso primeiro CD, a gente teve o apoio dos irmos, inclusive economicamente, porque, se no osse esse apoio, a gente no teria como

    azer esse trabalho. MC MAX (bairro So Joo da Esccia)

    Os jovens que compem a amlia MBJ residem no Morro Bom Jesus (MBJ) e no bairro Centenrio. Este circunda o lado leste

    do Morro Bom Jesus. Embora se localizem nas proximidades do centro de Caruaru, esses bairros so considerados, pelos prprios

    jovens, como perierias em virtude das condies sociais, econmicas e culturais caractersticas desses locais, com alto ndice de

    excluso social e criminalidade. Esses jovens negros se reconhecem como tais, e assim se identicam por causa de suas condies

    sociais.

    Ser negro hoje no Brasil voc ser suburbano, peririco. Assumir a identidade do lugar de onde voc veio gera as discriminaes. Porque, a

    partir do momento que voc no tem vergonha de ser o que voc , de assumir mesmo sua identidade suburbana, voc vai ser discrimina-

    do... A relao negroexcluso anda lado a lado. Porque, por mais que a televiso mostre as novelas, as discriminaes contra o negro, eles

    nunca vo mostrar a essncia histrica de onde veio, do sorimento que oi e tem sido a luta do negro. Porque eles esto azendo a co.

    Tem dierena enorme entre a novela da Record retratando a perieria e o documentrio do Bill, Meninos do trco. Tem muita dierena

    em termos de sentimento, de realidade... O ponto negativo do olhar do alto escalo da sociedade em relao a ns aqui do subrbio que

    eles no aceitam que a gente cresa ao nvel deles. Essa uma realidade que todo jovem que daqui ou que tenha sado do subrbio tem

    que saber. Porque eles no vo querer ver o Black-out patro, nunca! Eles querem que eu estude e que seja capacitado para ser um bom

    uncionrio pra eles, um gerente, um supervisor, mas nunca um proprietrio igual a eles. Essa a grande negatividade, que a gente seja

    sempre a mo-de-obra geradora de renda para o grande uso deles. Clodoaldo Jos da Silva (MC Black-out)

    A escolha desse segmento juvenil como objeto de estudo se deu pela sua identicao com as questes tnico-raciais, a

    relao com a cultura e a articulao em torno do movimento hip-hop, que eles identicam como cultura de rua.

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    O hip-hop oi, por assim dizer, o instrumento catalisador das potencialidades desses jovens pelo ato de agregar valores

    que vo desde a percepo da identidade cultural, como ator de reconhecimento, at justia social, como elemento de distri-

    buio. Identicando-se, desse modo, como participantes do movimento hip-hop, esses jovens conseguiram organizar-se em

    grupo e azer valer sua ora reivindicatria como instrumento de presso e mudana na agenda poltica do municpio.

    Como atestam os membros da amlia MBJ, organizar-se num coletivo tornou-se um imperativo, visto que essa era a nica

    orma de se azer ouvir enquanto grupo organizado. Mas isso no signica que conseguiram atingir completamente a superao

    de suas demandas sociais e culturais.

    A amlia MBJ ajudou na construo de uma proximidade maior com a comunidade. Aqui est a nossa ora. Sem a comunidade a gente

    no prossegue. Ento esse era o primeiro passo da Organizao Famlia MBJ: superar as diculdades quanto orma como a comunidade

    v os jovens da prpria comunidade, e oi com as aes da amlia MBJ que a gente oi quebrando os preconceitos dentro e ora da comu-

    nidade. Hoje, muitos pais de amlia chegam perto para valorizar o trabalho que seu prprio lho desenvolve na comunidade. O trabalho

    social que a gente mantm dentro da comunidade, trabalho educativo, sobretudo, ajudou a superar as diculdades de modo que as pes-

    soas na rua olham pra gente de orma positiva, dando os parabns ao trabalho e dando ora para continuar. interessante ver como a

    amlia MBJ adquiriu tanto prestgio. Por exemplo: eu no estou aqui dizendo que a polcia 00%, mas at da polcia a gente tem ganhado

    o respeito. Antigamente, eles paravam a gente, bastavam nos ver, hoje no, eles admiram o trabalho da gente. Isso uma coisa que a gente

    conquistou e que jamais vamos perder. (Mrcio Bezerra da Silva lder do Movimento Hip-Hop e membro da amlia MBJ Entrevista,

    8/6/007)

    Embora Mrcio, no depoimento coletado em campo, tenha destacado mudanas quanto a determinadas ormas de vio-

    lncia soridas pelos jovens, e ele se reere especicamente relao com a polcia, preciso chamar a ateno para o ato de

    que aqui ele alude relao Famlia MBJPolcia Militar. No se trata da orma como a polcia lida com o jovem da perieria em

    geral. Ele est alando em termos do coletivo juvenil. A situao de violncia contra os jovens do Morro Bom Jesus e do bairro

    Centenrio continua conituosa e violenta.

    Antes da organizao da amlia MBJ, a Polcia Militar, sempre que chegava ao Morro, no queria saber se os jovens eram

    ou no do hip-hop; s vezes, ser do hip-hop tornava-se uma razo para a violncia policial. E tudo isso pelo ato de saberem que

    aqueles jovens produziam letras crticas s atitudes violentas dos policiais. Estes invadiam o salo onde os jovens se reuniam

    com a desculpa de revist-los, para saber se eles tinham drogas, como eu mesmo presenciei quando de minha pesquisa de

    campo em 004. Se por um lado essas aes no esto se repetindo, como acontecia antes da organizao da FMBJ, por outro

    elas se intensicam sobre os jovens do Morro Bom Jesus, seja quando esto em grupo, seja quando esto sozinhos. Talvez no

    os lderes da Famlia MBJ, por terem maior visibilidade na comunidade e estarem sempre presentes nos meios de comunicao,

    mas os liderados, quando esto sozinhos, acabam ainda vtimas dessas aes truculentas, presenciadas por mim conorme re-

    lato em meu dirio de campo.

    Assim que encerrei a conversa com RF, desci a Rua da S e encontrei JC e DJ Ivan, que ainda estavam conversando sobre os projetos de sua

    banda, Juventude Sangrenta. DJ Ivan despediu-se da gente e seguimos, eu, JC e RF, pela Rua da S em direo ao meu carro, que estava

    estacionado logo no incio da rua. Mais adiante, passamos por dois policiais em suas motos, parados entrada do beco do S, no Centenrio.Esse beco tem esse nome porque ele possui a estrutura de um S. Alguns anos atrs, os jovens da amlia MBJ haviam me dito que aquele

    beco era canal de uga da malandragem, razo pela qual os policiais estavam ali. Passamos pelos policiais sem despertar sua ateno e

    seguimos adiante, eu e JC. Quando me despeo de JC e j estou entrando no carro para retornar ao hotel onde estava hospedado, vi quan-

    do os policiais pararam JC e o revistaram. Sa do carro e quei de longe observando o que poderia acontecer. Aps a revista, eles liberaram

    JC, que acenou para mim com sinal de positivo e seguiu adiante, subindo as escadarias que o levavam a sua residncia... No dia seguinte,

    voltei ao Morro e ui direto casa de DJ Ivan, visto que l estavam JC, MC Ionara e MC Joj. DJ Ivan estava ao computador, trabalhando na

    construo de uma nova base para um rap que havia sido escrito por JC. Naquele momento, ui indagado por JC sobre o incidente do dia

    anterior e, logo aps meus breves comentrios, ele me disse que o policial pegou seu mao de cigarros e perguntou em que ele era viciado.

    Ele respondeu que em cigarro, e o policial voltou a perguntar se JC tinha certeza. JC conrmou. O policial abriu sua carteira e viu dentro

    o documento do pernoite do presdio ( que JC est sob condicional). O policial voltou a olhar para JC e o mandou embora. Foi a que JC

    acenou para mim conrmando que estava tudo positivo. (Fragmento do Dirio de Campo, 4/7/007)

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    Mas o ato que esses jovens tm experimentado algumas transormaes e atingido alguns dos seus objetivos com a

    organizao da amlia MBJ. Esses objetivos giram em torno de demandas sociais que eles consideram undamentais para sua

    existncia como ser de direito. Ou seja, educao prossionalizante de qualidade, adequada realidade do jovem peririco,

    incluso social, mediada pelas condies e oportunidades de trabalho, e reconhecimento social, pautado pelo m do precon-

    ceito cultural e racial.

    A questo da visibilidade estava na base de tudo, porque, juntos, a gente conseguiu unir os jovens que curtiam o movimento dando maiorpoder de presso ao movimento. Isso s veio acontecer com a criao da amlia MBJ. Trs das bandas precursoras do movimento tm

    suas bases no Centenrio e no Morro Bom Jesus. J a Alerta Prosistema daqui do outro lado, isto , zona leste de Caruaru... A gente tinha

    os estandartes da amlia, que eram incluso social e cultural, porque no existia essa preocupao nos subrbios, e a vinha a questo da

    escola, que, naquele momento, no Morro, no havia. A associao como espao para desenvolvimento de atividades artsticas do hip-hop

    tambm no existia... (Black-out Lder na FMBJ, ragmentos de entrevista, 9/6/007)

    Essa sociedade pensa que a gente um zero esquerda, um nada a ver. A gente no desconhece as coisas negativas que existem aqui,

    mas a gente tem coisas positivas tambm, porque assim que todo ser humano . S que eles no querem considerar a gente como um

    ser humano igual a eles. s vezes, eles pensam que o jovem da avela, porque no tem a mesma escolaridade deles, inerior, mas no

    assim, no. O jovem muitas vezes no tem a escola porque precisa, logo cedo, trabalhar pra ajudar sua amlia, e muitas vezes o pai no tem

    condio de sustentar sozinho o trampo, ento o jovem obrigado a deixar a escola logo cedo. Mas o jovem da perieria tem capacidade

    de ser o que ele desejar, um mdico, advogado, seja l o que or. O que alta so as condies. Da porque ele acaba se tornando um malo-

    queiro. Ento a Organizao Hip-Hop Famlia MBJ oi undada com a nalidade de juntar oras, lutar por melhores condies e ortalecer

    a luta do jovem da perieria. A idia era tornar a gente mais orte para lutar pelos objetivos. E assim que tem sido. (Preto RF, ragmento de

    entrevista, /6/007)

    A amlia MBJ, o hip-hop a, tem um desao rente, porque o que eu vejo nessa sociedade muito preconceito, e a gente tem uma dupla

    misso: convencer os irmos da avela a lutarem contra isso e tambm convencer os racistas das idiotices deles. Mostrar que somos todos

    iguais, embora dierentes. Que o indivduo no deve ser condenado por sua dierena. A gente tem mantido os projetos no Morro, o que

    muito importante. Tem alguns membros da MBJ rente tentando dar continuidade ao trabalho de conscientizao do nosso povo. Ine-

    lizmente, nem todos tm tempo para se envolver totalmente porque a gente no tem recurso para manter todo mundo trabalhando para

    o hip-hop, n? E a gente precisa sobreviver, mas os irmos que esto rente tm dado conta do recado. (Preto RF, trecho de entrevista,

    4/7/007)

    A amlia, ento, surge da necessidade de mostrar o que se passa no Morro, mas de orma que osse possvel perceber que tudo tem a ver

    com tudo. Isso no podia ser eito por um grupo s. Ento, veja, a Obsesso ia apresentar apenas a questo do racismo. Um jovem negro

    como o Preto RF alando que discriminado por ser da avela. O que se podia pensar? Que era um recalcado, rustrado, que se queixa de

    no ter tido xito na vida e culpa o racismo. A Juventude Sangrenta alando dos pais de amlia assassinados no Morro pela polcia, ou mor-

    rendo no crime, o que iriam dizer? Uns marginais querendo deender os criminosos. Mas a voc tem a amlia; todo mundo junto dizendo

    tudo isso, um grupo grande, mais de 60 jovens. Quando a gente az os shows na Praa do Centenrio, desce toda a juventude do Morro,

    bairro Centenrio, So Francisco, Salgado, Cohabs; enm, aquela multido de jovens repetindo os reres das bandas. Isso sim presso!

    Os pais desses jovens tudo ali apoiando o grito deles. Essa era a inteno. E a voc tinha do outro lado da cidade, seja no So Francisco, seja

    no Alto da Balana, os parceiros que colam com a gente, azendo suas paradas, sozinhos tambm, ento vamos juntar todo mundo. Poder

    Negro, no So Francisco, alando do que se passa na quebrada por l; Alerta Prosistema disparando o verbo contra o sistema do lado doSalgado e do Alto da Balana. Ento, oi essa a nossa estratgia para azer valer nosso grito de liberdade. (JC, entrevista, /6/007)

    Essas eram as demandas sociais que motivaram a organizao do coletivo juvenil no Morro Bom Jesus em Caruaru e es-

    sas tm sido as razes por que esses jovens tm lutado. Isso no tem sido cil para eles, pois, como eles mesmos insistem em

    dizer, as oertas ceis do crime esto mais perto, mas eles reconhecem que preciso resistir apesar das diculdades que tm de

    enrentar cotidianamente.

    ...Como eu estava alando, o jovem da perieria no pode escolher no que trabalhar porque, um exemplo como eu, por minha vontade,

    eu seria mdico, teria ormao em Direito, em Letras ou Economia, mas veja, eu estou ainda concluindo os estudos no colgio [RF est

    cursando a terceira srie do ensino mdio], quando j deveria ter concludo. Mas por qu? Porque eu tenho que trabalhar pra sobreviver.Os jovens das classes dominantes, esses, sim, podem escolher o que desejam ser porque tm tudo nas mos; nasceram em bero de ouro.

    Tm uma vida melhor e, com certeza, vo conservar esse status social. H ento uma desigualdade de condies e, conseqentemente,

    de oportunidades para os jovens, e isso depende de onde ele esteja nas relaes econmicas. Se na classe dominante, ou na classe eco-

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    nomicamente dominada. O jovem da classe dominante pode desrutar o apoio da amlia, mas e o jovem da perieria? Que apoio ele pode

    desrutar? Um exemplo aqui, minhas condies, minha amlia, que apoio ela pode me dar? Eu estou me tomando como exemplo, mas

    aqui onde eu moro, Morro Bom Jesus, bairro Centenrio, os jovens tm as mesmas condies que eu, ou seja, nenhuma condio que pos-

    sibilite a eles se dedicar aos estudos. (Preto RF, entrevista, 4/7/007)

    . Caracterizao etnogrca da situao-tipo estudada

    Justicativa da escolha da situao-tipo

    Caruaru tem suas origens ligadas s eiras para comrcio dos produtos do agreste e do serto (FERREIRA, 00, p.08),

    denindo a sua vocao comercial na regio. Localizada a 6 km do litoral pernambucano, na regio do agreste, desempenha

    a uno de principal plo comercial. Essa posio, aliada s questes sociais, provocadas pela postura poltica das elites gover-

    nantes ante o enmeno natural da seca, tem ocasionado um uxo migratrio na regio azendo com que se crie um amontoado

    de gente, sem planejamento urbano adequado.

    Essa populao, nesse uxo em direo cidade, vai se xando a, em condies precrias de sobrevivncia4, ormando

    aglomerados, que vo constituindo avelas, espaos precrios de subsistncia, caracterizados por uma assistncia mnima dos

    servios pblicos, ausncia de saneamento bsico, servios de sade, entre outros, gerando um contingente de excludos soci-

    ais.

    O Morro Bom Jesus, em virtude de sua localizao, poderia ser considerado um carto-postal da cidade no osse seu as-

    pecto socialmente dramtico, a ama de ter se transormado em um lugar assustador, abrigando seus antasmas, quase sempre

    exorcizados pela ao da polcia. Visto de todos os pontos, oerece, igualmente, vista de todos os pontos da cidade de Caruaru.

    Transormou-se num retrato da excluso social. Seus moradores so pessoas que vivem margem do processo econmico-

    social: garis, comerciantes ambulantes, artces, guardas-noturnos, marchantes, desempregados e uma categoria marginal de

    trabalhadores que ocupa espaos na eira do troca, quase sempre comercializando produtos roubados.

    O Morro Bom Jesus tem sido alvo das manchetes locais por abrigar uma populao de degredados sociais: tracan-

    tes, criminosos procurados pela justia etc. Uma populao que vale por si mesma, pois s lembrada em perodo eleitoral

    ou nos noticirios policiais. Os polticos s vm aqui para pedir nosso voto. Abraam nossa molecada e, depois, somem.

    Ao p do Morro, est o bairro Centenrio, cuja populao no se distingue do quadro apresentado. Esses dois bairros so

    considerados os mais violentos e temidos na cidade.

    Nessa comunidade, identicada pelos hoppers como perieria6

    , jovens organizados em um movimento cultural esocial articulam um maniesto vida e lutam pela sobrevivncia, contra a criminalidade, as drogas, a violncia policial e a

    segregao sociocultural, como est claro nas composies poticas, cantadas como meio de inormao, os raps. Juntam-

    se a eles outras galeras, os skatistas, meninos e meninas de rua, em virtude de sua proximidade socioeconmica e cultural.

    H um lao estreito entre as maniestaes culturais vivenciadas por esses grupos de jovens, que criam alternativas de

    ocupao dos espaos ociosos, onde so, quase sempre, vitimados pela ao preconceituosa de uma populao que os

    desconhece como cidados e, muitas vezes, ratica a ao violenta do Estado.7

    Em Caruaru, os hoppers do Morro Bom Jesus tm procurado atrair a ateno da sociedade para as questes simblicas, as

    ormas de segregao social e cultural, mas tambm material e econmica. A eles so negados os direitos de se reconhecerem

    como membros de uma sociedade, comportamento que tem gerado, muitas vezes, nesses estratos sociais, expresses como asociedade para se reerirem a outros estratos sociais, como se eles no zessem parte da sociedade. Assim eles dizem: O cara

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    que da sociedade..., como orma de distino. Suas produes musicais reconhecem essas particularidades locais como moti-

    vadoras dos discursos agressivos de que so acusados.

    Esses jovens vm demarcando o espao pblico, criando novos signicados, atraindo a ateno da populao com pro-

    testos, cultura e lazer, desenvolvendo um trabalho que aponta para algumas de suas principais demandas, que tm a ver com

    polticas de reconhecimento e redistribuio relacionadas s condies precrias da comunidade , necessidades de educa-

    o, sade, saneamento bsico, trabalho e lazer, algumas delas muito mais ligadas sua condio de jovens pobres, negros e

    condio vitimizadora por residirem em locais segregados e marcados pelas altas taxas de criminalidade.

    Jovens, em sua maioria negros, esbravejam slogans contra o racismo Sub-raa a puta que o pariu!8 para expressar

    a revolta cultural contra o que eles identicam como sistema, enquanto o DJ, com a mo nos pickups, retira um scratch! 9 Seg-

    uem-se gritos rpidos, em rimas esqulidas, pau puro contra o racismo, a violncia, a polcia, os polticos, o diabo e o bom Deus.

    Em Caruaru, o rap a trilha sonora da galera de rua, maloqueiros que haviam adotado a rua como espao de luta. Curtem o rap

    nacional. a que o hip-hop tem seu sentido, e por isso que somos discriminados. 0

    Como assinala Mano Brown, dos Racionais MCs, perieria perieria em qualquer canto. Esses jovens moradores de perierias

    urbanas que participam de grupos culturais entendem que esta sua principal luta: enrentar a questo cultural, compreendida do

    ponto de vista simblico, embora para eles no seja apenas o simblico que esteja em jogo, mas algo mais: o meio onde produzem

    sua sobrevivncia econmica. Assim, a cultura aparece a como mercadoria exposta no mercado de bens e capitais (BOURDIEU,

    999).

    O hip-hop, compreendido como cultura de rua, representa, para esses jovens, a superao das situaes de segregao

    social, porque eles so vistos como no tendo cultura, e essa realidade est associada, como j a demonstramos, a sua condio

    escolar, mas tambm s questes de ordem antropolgica, isto , tnico-raciais. Mediante a produo cultural, armada pelos

    quatro elementos do hip-hop rap, grate, DJ e break , eles vislumbram uma independncia econmica. Nesse ponto, a cultura

    apresentada como meio, como mercadoria, como uma produo.

    A cultura posta ento como demanda atende a duas necessidades sociais desses jovens: reconhecimento e redistribuio.

    Reconhecimento liga-se questo simblica, que remete ao valor humano, o reconhecimento como pessoa e como membrode uma etnia, como ser de cultura. Mas, a, tambm se insere a questo material, que tem a ver com a excluso econmica,

    tanto pelo ato da negao de suas possibilidades de insero no mercado de trabalho como pelo tipo de oerta que lhes eita

    nesse mesmo mercado. Isto , atividades reconhecidas como subemprego, recusadas pelos jovens da classe mdia, os boys,

    como eles costumam armar. Segundo Nancy Fraser (00, p. 48): No mundo real, cultura e economia poltica esto sempre

    imbricadas, e virtualmente toda luta contra injustia, quando corretamente entendida, implica demandas por redistribuio e

    reconhecimento.

    Trabalho de campo

    Conheci os jovens membros da amlia MBJ em agosto de 00, como deixo registrado em dissertao deendida no

    PPGA-UFPE, para obteno do grau de Mestre em Antropologia. Aproximar-me dos hoppers oi conseqncia do trabalho em

    sala de aula numa escola pblica, localizada no centro da cidade de Caruaru, que, pela condio privilegiada de sua localizao,

    recebe alunos oriundos de todos os bairros populares, sobretudo os da proximidade do centro da cidade, como o caso do

    Morro Bom Jesus e do bairro Centenrio.

    No colgio estadual, conheci um jovem estudante do ensino mdio (Black-out) que azia parte da amlia MBJ, sendo

    ele, ento, o responsvel por minha aproximao tanto da realidade do Morro como do conhecimento sobre as atividades

    desenvolvidas pelo movimento hip-hop no Morro Bom Jesus e no bairro Centenrio. Esse movimento tem sido reconhecido

    como cultura de rua por ter origens e desenvolvimento pontuados pelos embates e conitos que se estabelecem na rua. Com

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    uma leitura crtica da realidade dos jovens dos guetos e avelas (WACQUANT, 00, p. -0), os hoppers tm se constitudo

    protagonistas do cotidiano nesse cenrio social.

    Na verdade, mesmo tendo concludo minha pesquisa de mestrado, no havia perdido a ligao com a amlia MBJ, pois

    seus membros so os sujeitos inormantes de minha pesquisa no doutorado em Antropologia. Assim, quando recebi o convite

    do Ibase, vi a a possibilidade de retomar anotaes eitas como resultado dos contatos j estabelecidos e a oportunidade de

    poder empreender novos olhares sobre aquela realidade, buscando atualizar os dados j existentes.

    Num primeiro momento, procurei retomar os contatos com os lderes da amlia MBJ para apresentar o projeto do Ibase e

    solicitar a contribuio deles a m de se disporem a cooperar para o melhor xito da pesquisa. Para tal empresa se pronticaram,

    uma vez reconhecida a sua importncia para a construo de uma perspectiva verdadeiramente includente. Mais: isso deveria

    ter como base a criao de uma cidadania regional, capaz de garantir a universalizao dos direitos dos jovens e a consolidao

    de uma integrao cidad dos povos da Amrica do Sul. Deveria tambm ampliar o reconhecimento dos jovens e grupos juvenis

    como agentes decisivos no processo de integrao dos povos sul-americanos.

    Passada essa ase de reencontro, xamos um calendrio para realizao das atividades necessrias coleta de dados. No

    hip-hop, a experincia dos mais velhos no movimento acilmente contamina os mais novos. Eu mesmo tive de me aastar entre

    a pesquisa de campo do mestrado e a do doutorado, pois havia sido inuenciado de tal orma pela relao estabelecida que s

    vezes tinha diculdade de distinguir entre o que era a minha ala e o que era a ala dos meus inormantes. Evidentemente, no

    estava agindo sob o eeito da iluso da objetividade, como assinala Alvim (op. cit.):

    Ao olhar o objeto de sua investigao como um conjunto de indivduos, personagens a serem constitudos a partir de caractersticas cole-

    tivas, o pesquisador constri o ponto de vista do outro a partir de suas prprias indignaes morais. Esse , portanto, o risco de se lidar com

    temas relacionados s chamadas questes sociais.

    Todo enmeno observado no campo implica um esoro que ao mesmo tempo um risco, um desao, quando nos

    propomos interpret-lo. um dilogo entre a teoria acumulada da disciplina antropolgica e a observao etnogrca, como

    assinala Peirano (98, p. 44). Isso resulta muitas vezes na converso do pesquisador, como arma Srinivas (apud PEIRANO, Id., p.

    ): Os antroplogos so thrice-born, isto , eles deixam sua cultura nativa para estudar uma outra e, na volta, tendo se amil-

    iarizado com o extico, tornam extica sua cultura amiliar, na qual sua identidade renasce.

    Sendo assim, mesmo correndo os riscos acima descritos, procurei estabelecer alguma orma de controle, para impedir

    que os jovens liderados ossem induzidos em suas respostas pelos lderes do movimento e, assim, pudessem comprometer

    os resultados. Desse modo, dividi as entrevistas em grupos distintos: lderes e liderados. Os prprios lderes oram abordados

    individualmente e em locais dierenciados. Quando a data disponibilizada pelos hoppers coincidia, solicitava que gravssemos

    a conversa em horrio e local dierentes. Assim, eles poderiam car vontade para expressar seus sentimentos em relao s

    aes da amlia e atuao dos lderes. Ainda assim tive algumas diculdades, pois alar para esses jovens uma tarea um tanto

    quanto dicil, mesmo tendo desenvolvido uma proximidade que inspirasse conana. Eles traegam entre a necessidade de a-lar, isto , gritar contra as eridas geradas na luta pela vida, e o silncio imposto pela arrogncia do sistema. Da porque, quando

    abordados, esto o tempo todo medindo as palavras, como a prever o mal que a palavra suscita.

    Evidentemente, no podia, apesar do escasso tempo disponibilizado para pesquisa, concentrar a coleta de dados em uma

    nica semana. Era necessrio dar um descanso aos jovens e a mim, para a retomada de alguns pontos. Esse tempo, alm do

    descanso, permitiu-me conerir as entrevistas e possibilitar a retomada das inormaes, reestruturando, agora, as questes para

    aerir maior conabilidade. O recurso do gravador de voz, permitido pelos hoppers, oi uma pea undamental para a retomada

    das questes e respostas desenvolvidas no campo por meus inormantes.

    Trabalhei com dois questionrios, sendo um construdo a partir das orientaes ornecidas pelo Ibase, e um segundo,

    mais preso s sensaes, ruto de minhas estadas anteriores no campo. Mesmo assim, no me restringi aos questionrios previa-

    mente elaborados, no estilo echado, mas procurei dar um carter de abertura s entrevistas, possibilitando otimizar as alas dos

    meus inormantes.

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    0

    preciso dizer, ainda, que algumas das inormaes coletadas surgiram ao sabor da espontaneidade dos inormantes. o

    que chamo de perieria da programao. Por exemplo: algumas anotaes que pude realizar sobre consideraes desenvolvi-

    das por Nino (presidente da Associao Hip-Hop Famlia MBJ) e sobre questes do cotidiano dos hoppers oram necessrias

    para compreender o posicionamento dos jovens perante as questes ormuladas. Algumas vezes mantinha o gravador ligado,

    mesmo quando a conversa no estava diretamente relacionada pesquisa. evidente que obtive permisso para assim agir,

    pois no era possvel esconder dos meus inormantes qualquer ao da minha parte. Procurei agir de orma a respeitar sempre

    o direito dos meus inormantes, inclusive azendo-os ouvir o que havia gravado.

    Era preciso considerar todas as alas dos hoppers, pois qualquer coisa dita no campo, sobretudo naqueles momentos em

    que as relaes uem espontaneamente, pode esclarecer discursos e atitudes proeridas no ato das entrevistas. Da porque pedi

    a permisso para manter o gravador ligado sempre que rolasse um papo, mesmo que no diretamente relacionado pesquisa.

    A minha convivncia com os hoppers, estabelecida no curso desses seis anos, tem me dado a condio de desrutar a conana

    deles, de tal modo que no sobra espao para qualquer suspeita. Pelo contrrio, h uma conana bem estabelecida entre pes-

    quisador e inormantes. Por outro lado, tenho procurado agir pautado por uma tica, politicamente correta, respeitando meus

    inormantes como sujeitos de direitos, acima de tudo.

    Essa a razo por que tenho submetido a eles todo trabalho escrito. Tenho mesmo disponibilizado as tas gravadas para

    que possam autorizar a divulgao ou restringi-la, se or o caso. O presente relatrio oi igualmente disponibilizado aprecia-

    o dos meus inormantes antes de ser enviado ao Ibase, para que eles pudessem azer qualquer alterao que julgassem ne-

    cessria.

    Como arma Zaluar (986, p. ), na pesquisa etnogrca, az-se necessrio considerar no apenas a posio do pesqui-

    sador, mas tambm a do pesquisando. E mais, como este v o pesquisador/observador. Como o pesquisador de ato recebido

    pelo grupo?. Evidentemente, nem tudo pode ser compreendido no campo. No se pode assumir postura de erudito que quer

    desvendar todos os raciocnios. E aqui me vali de Geertz (989, p. 0), que, reerindo-se atitude do pesquisador diante do

    campo, diz:

    (...) o que inscrevemos (ou tentamos az-lo) no discurso social bruto do qual no somos atores, no temos acesso direto a no ser mar-

    ginalmente, ou muito especialmente, mas apenas quela pequena parte dele que os nossos inormantes nos podem levar a compreender.

    Isso no to atal como soa, pois, na verdade, nem todos os cretenses so mentirosos, e no necessrio conhecer tudo para entender

    uma coisa. Todavia isso torna a viso da anlise antropolgica como manipulao conceptual dos atos descobertos, uma reconstruo

    lgica de uma simples realidade, parecer um tanto incompleta.

    E ainda, como a rebater os argumentos de que uma anlise da realidade no possa ser considerada convel por no se

    apegar a uma suposta objetividade, arma:

    Apresentar cristais simtricos de signicado, puricados da complexidade material na qual oram localizados, e depois atribuir sua ex-

    istncia a princpios de ordem autgenos, atributos universais da mente humana ou vastos, a priori, Weltanschauungen, pretender umacincia que no existe e imaginar uma realidade que no pode ser encontrada. A anlise cultural (ou deveria ser) uma adivinhao dos

    signicados, uma avaliao das conjecturas, um traar de concluses explanatrias a partir das melhores conjecturas e no a descoberta

    do Continente dos Signicados e o mapeamento da sua paisagem incorprea. 4

    Histrico

    A literatura sociolgica mais recente tem tratado os movimentos sociais como aes coletivas de carter sociopoltico e

    cultural que viabilizam distintas ormas de a populao se organizar e expressar suas demandas. Segundo Gohn (00, p. -

    6), os movimentos sociais representam oras sociais organizadas que aglutinam as pessoas no como ora-tarea, de ordem

    numrica, mas como campo de atividades e de experimentao social, e essas atividades so ontes geradoras de criatividade e

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    inovaes socioculturais. As experincias, de que so portadores os movimentos sociais, segundo essa pesquisadora, recriam-

    se, cotidianamente, na adversidade de situaes que enrentam. A partir delas, constituem resistncias s oras que os oprimem

    e potencializam azeres positivos. Os movimentos sociais destacam-se como agentes sociais undamentais na criao de identi-

    dades de grupos, antes dispersos e desorganizados, e, ao realizarem essas aes, projetam em seus participantes sentimentos

    de pertencimento social. Aqueles que eram excludos de algo passam a sentir-se includos em algum tipo de ao de um grupo

    ativo.

    O hip-hop engloba caractersticas de organizao poltica, cultural e social, de modo que caberia bem conceb-lo como

    um movimento, associando-lhe o adjetivo social, como bem arma Andrade (996). Seguindo essa mesma orientao, Rocha,

    Domenich e Casseano (00: 7, 8) armam: Esse movimento social seria conduzido por uma ideologia de autovalorizao da

    juventude de ascendncia negra, por meio da recusa consciente de certos estigmas associados a essa juventude, imersa em uma

    situao de excluso econmica, educacional e racial. desse modo que temos concebido o hip-hop, como um movimento

    juvenil, aglutinador de demandas, que vo das questes culturais s de ordem socioeconmica. Dito de outra orma, o hip-hop

    se caracteriza como um movimento juvenil na luta por justia social, compreendida, aqui, como poltica de reconhecimento com

    redistribuio.

    Identicado por seus integrantes como cultura de rua, o hip-hop chama a ateno para a necessidade de valorizar a di-

    menso poltica e social da ao dos jovens da avela. a ao poltica constituindo instrumento a servio da transormao

    dessa realidade. Enquanto movimento social, constituem-se como atores histricos, dotados de uma misso transormadora da

    realidade social. Como assinala Burity (999: 4, 7):

    A expectativa de mudana total ou demarcao de um ponto de ruptura que instaure um novo tempo , certamente, um dos mitos mais

    recorrentes que herdamos do imaginrio social dos ltimos duzentos anos. (...) a Revoluo est no cerne desse legado discursivo. Ela

    aparece ou em seu prprio nome ou subjacente concepo de mudana que pressupe uma propenso natural, e geralmente ascen-

    dente, a uma instabilidade permanente na sociedade, seja devido a conitos de interesses materiais, seja a reaes contra a opresso e a

    dominao.

    No hip-hop, tudo tem a ver com a armao de uma identidade esmagada pela excluso social, que traega da culturapara a economia, como mostram grcos anexos sobre perl econmico e cultural (escolar). Da a preocupao desses jovens

    de ir buscar, no passado, as razes culturais de uma convivncia mais solidria; estabelecer o resgate dos heris identicados

    com a luta das minorias tnicas. Eles no negam a importncia do papel do Estado, mas reivindicam, para si, o controle da vida

    cotidiana. Lutam pela autonomia do indivduo ora do mbito da mquina estatal, pois reconhecem que as ormas de as insti-

    tuies sociais atuarem numa sociedade estraticada correspondem s estruturas de dominao, seja cultural, seja econmica.

    Possivelmente, a est o undamento do discurso desses jovens contra o que eles chamam de sistema . Ainda assim, encaram

    o processo de mudana como uma tarea histrica, cuja conquista se d como resultado de uma transormao que se processa

    no mundo cultural e da ao poltica da sociedade organizada.

    Essa mudana acontece como reao produzida pelo indivduo que se pe a como um dissidente em relao s ormas

    de ao das instituies da sociedade. Essa dissidncia o ponto de partida da mudana.

    Cada um tem que azer sua correria e, na medida em que acredita em si mesmo, acredita tambm no outro. Eu ao a minha parte conorme

    acredito, e espero que cada um aa a sua, isto , se tiver conana no seu trabalho, no espere pelos outros. Desse modo a gente vai con-

    struindo a realidade e trazendo para o nosso lado aqueles que ainda no desenvolveram a esperana.6

    No acredito em mudana que venha como resultado da ao nica dos partidos polticos. A poltica uma orma de corrupo que no

    perdoa ningum. Eu no apoio nenhum poltico, pois, mesmo que ele seja uma boa pessoa, acaba por se corromper, porque no existe

    poder poltico, estou alando da poltica dos partidos, que no seja base de corrupo. O prprio ato de eles gastarem ortuna para se

    elegerem j uma orma de corrupo. De onde vem esse dinheiro? No que eu acredito? Acredito no hip-hop, no meu trabalho. No poder

    da cultura! Vou combater o sistema enquanto ele existir. Eu sou o anti-sistema.7

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    Trabalhando a elevao da auto-estima e a conana no esprito de luta da perieria, esses jovens apresentam-se como

    exemplo de luta e de resistncia cultural e social. O discurso contra o que eles chamam de sistema reete a conscincia de que

    a problemtica social no se restringe avela, ela tem seu undamento ora dali o eeito de lugar, como assinala Bourdieu

    (00, p. 9), ao armar que nem tudo que se v no campo tem, ali mesmo, sua causa.

    Nada mostra melhor que os guetos americanos, esses lugares abandonados, que se denem, undamentalmente, por uma ausncia es-

    sencialmente a do Estado, e de tudo o que disso decorre: a poltica, a escola, as instituies de sade, as associaes etc.

    O hip-hop signica, a, a ao de um movimento social que deseja estabelecer um marco divisor na ausncia de polticas

    pblicas e na alncia das instituies. Sua criticidade implcita dimenso cultural e social que o constitui. A leitura do mundo

    e a construo da conscincia juvenil na perieria: eis o sentido cultural e histrico, mas tambm poltico, de sua ao.

    No hip-hop, o cultural tem uma ora poltica capaz de intererir na realidade social, constituindo, por assim dizer, sua es-

    sncia. Poltica, histria e cultura, produzindo a vida e ugindo da lgica da excluso social, promovida pelo sistema. A cultura

    era um instrumento essencial na luta, numa sociedade que procurava, por todos os meios, negar a identidade do povo negro

    escravizado. Reconhecer sua identidade, suas origens e sua luta era o primeiro ato para a libertao. A histria desses jovens

    comea com a negao de sua identidade e cultura. A eles oi relegada apenas a mo da escravido, e ainda hoje assim. O quesobra para eles so as mos caliadas da construo civil, da limpeza urbana ou da enxada da agricultura. A recusa e a criminal-

    izao.8

    Historicamente, o hip-hop originrio de uma poca em que prolieram grandes discusses sobre direitos humanos, e, na

    ordem dos atos, primeiramente nos guetos americanos, os marginalizados articulavam-se para azer valer suas propostas e lu-

    tas sociais. Isso surge nos anos 60 (EUA)9, poca de maior eervescncia das questes sociais, envolvendo, sobretudo, as relaes

    intertnicas, nos guetos nova-iorquinos, especicamente em 968.0 Esse perodo se destaca pelos embates sociais em deesa da

    cidadania e pelo surgimento de lideranas expressivas do movimento negro, tais como Martin Luther King, Malcolm X e grupos

    como os Panteras Negras.

    Como movimento nacional, o hip-hop apresenta seus primeiros sinais no incio da dcada de 80, por intermdio das equipes

    de baile, das revistas especializadas e de discos vendidos na Rua 4 de Maio (So Paulo). Os pioneiros do movimento, que inicial-

    mente danavam o break, oram Nelson Triuno, depois Thade & DJ Hum, MC/DJ Jack, Os Metralhas, Racionais MCs, Os Jabaquara

    Breakers, Os Gmeos e muitos outros. O primeiro registro onogrco de rap nacional s veio a aparecer em 988. Trata-se da

    coletnea Hip-Hop Cultura de Rua, pela gravadora Eldorado. O hip-hop constitudo, nesse cenrio, pela criatividade juvenil, es-

    tabelecendo um estilo de vida ditado por jovens da perieria. uma orma de expresso cultural que se constitui em movimento

    poltico.

    O que esses jovens produzem, nas perierias do pas, custa ser reconhecido como cultura, muitas vezes pelas condies em

    que so orjadas essas produes e por retratarem aspectos da vida que a sociedade deseja no revelar. Jovens negros alando

    de discriminao social, de crime e violncia como eeitos colaterais do sistema. Esses jovens so obrigados a ter uma carreira a

    todo custo, para adquirir visibilidade e assim poder ser reconhecidos. Desse modo eles podem conquistar um contrato com al-

    guma empresa onogrca, possibilitando a construo de sua independncia econmica. Embora a perspectiva poltica desses

    jovens aponte para um processo que vai alm da mera realizao pessoal, mas coletiva, quase sempre so impossibilitados de

    azer alguma coisa por sua comunidade se no conquistarem uma carreira pessoal ou a projeo de um trabalho de sua banda.

    a lgica do capital prevalecendo sobre o social.

    Foi assim com Racionais MCs, no Capo Redondo, com MV Bill, na Cidade de Deus, e tem sido com tantos outros espal-

    hados pelo pas. Com a ascenso poltica de alguns governos de esquerda, como o de Luiza Erundina, em So Paulo, e a prpria

    eleio de Lula para presidente da Repblica, as demandas sociais da perieria, bandeiras de luta do movimento hip-hop, oram

    incorporadas como polticas de juventude, como assinala a revista Rap Brasil n. , ano IV (004). Nela, o presidente Lula apa-

    rece cercado pelos dolos nacionais do hip-hop, assumindo compromisso com a perieria.

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    Em nvel local, a lgica do sucesso pessoal ainda prevalece como instncia necessria luta pelo reconhecimento e por redistri-

    buio. Primeiramente, porque esses jovens precisam adquirir um grau de visibilidade que os projete para ora de sua comunidade,

    cidade e estado, para ento serem ouvidos quanto s suas demandas locais. Embora os jovens da amlia MBJ tenham conquistado

    alguns espaos para discutir suas pautas de reivindicaes, no tm, por outro lado, conquistado xito em transormar suas demandas

    em polticas pblicas, e isso se d pela orma clientelista como a poltica, nesses grotes, vivenciada. Assim, o assdio poltico tem sido

    grande, de todos os setores polticos, interessados em us-los como massa de manobra, buscando coopt-los para suas legies.

    Serem reconhecidos como jovens de direito, terem acesso a uma educao escolar de qualidade, que lhes garanta a inser-

    o no mundo do trabalho, serem reconhecidos como possuidores de cultura distinta ainda constituem desaos aos jovens do

    Morro Bom Jesus uma maioria reconhecidamente descendente de aro-brasileiros, ora do processo da produo social e da

    escola, como est claro no grco anexo.

    Caracterizao da situao-tipo4

    medida que iniciamos nossa busca tentando compreender como esses jovens trabalhavam suas demandas, algumas

    questes oram surgindo e apontando para a necessidade de objetivar, da melhor orma possvel, as inormaes coletadas. Isso

    me obrigou a retornar vrias vezes ao campo, tanto para esclarecer algumas dvidas como para posicionar outras questes mais

    esclarecedoras. As respostas s questes oram organizadas nos quadros que se seguem. Em todos eles, as opes de respostas

    estavam conguradas em duas modalidades, sendo, no primeiro quadro, sim e no.

    O QUE SIGNIFICA SER JOVEM PERIFRICO Sim No

    . Acreditar no seu potencial 90,% 9,9%

    . No pensar no amanh 49,% 0,7%

    . No ter oportunidades 6,4% 6,6%

    4. S pensar em lazer e entretenimento ,% 96,7%

    . Estudar, adquirir conhecimentos para a vida ,% 46,7%

    6. Ter liberdade 8,4% 6,6%

    7. Poder trabalhar ,4% 46,6%

    8. Desenvolver amizade 9,4% 6,6%

    9. Ter sade/disposio sica 90,% 9,9%

    0. Desrutar o apoio amiliar 0,% 49,9%

    . Ter tempo para se dedicar aos objetivos ,4% 66,6%

    . Ter independncia nanceira ,% 86,7%

    . No ser respeitado socialmente 90,% 9,9%

    4. No ter nada de bom ,% 97,7%

    . Tudo estar bom ,6% 97,4%

    6. Estar preocupado com o uturo 96,7% ,%

    7. Aproveitar a vida com responsabilidade 96,7% ,%

    8. No contar com a amlia para ajud-lo na vida 0,% 49,9%

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    como um artista, n? Eu me sinto como um estranho nessa sociedade, porque ela me v como um perigo para ela, quando eu no sou um

    perigo! Ento, ser jovem nessa sociedade problema, pois as pessoas no querem respeitar a gente pelo que a gente . Eles no entendem

    o jovem e por isso querem que ele seja aquilo que eles querem, mas a gente quer escolher ser o que a gente quer. Uma coisa que eu digo

    sempre que voc tem que ser original. No queira copiar os outros. Principalmente aqui na perieria. Eu observo, s vezes, que existem

    caras aqui que vem os boys e querem copiar o estilo deles. Eu co puto com isso. Cara, no v que no pode ser o que no pode! A

    treta! Vai se oder! No d! Voc tem que ser aquilo que voc ! por isso que muitas vezes voc v o cara entrando na malandragem, por

    qu? Quer ser o que no pode! s vezes, ca dizendo que isso ou aquilo, quando na verdade no nada! Eu moro ali! Eu estudo acol!

    Eu tenho isso ou aquilo! Porra!!! Essas coisas que o jovem gosta muito de inventar. Ele t dormindo e nem acordou, j quer que o sonho se

    realize. No, voc tem que ser aquilo que voc ! (DJ Nino Entrevista, /6/007)

    Eles percebem a existncia dos conitos sociais e os deixam evidentes no seu rhythm and poetry, como uma situao

    cultural, tnica, sempre associada sua condio de excludos socialmente, visto que esse conito abarca todas as dimenses

    da vida cotidiana e est presente no prprio seio da avela. 7 Do modo particular como cada um, individualmente, ou mesmo o

    grupo agem em sua comunidade, esperam estar contribuindo, de uma orma ou de outra, como exemplo a ser seguido. o que

    se pode observar nas palavras de Dexter revista Rap Brasil.8 Falando sobre o hip-hop, ele arma acreditar poder auxiliar na

    transormao da juventude, que est seguindo pelo caminho da criminalidade.

    O no-entendimento, permeado de preconceito contra os jovens e suas perormances, constitui elemento muito presente

    na crtica que eles produzem em relao escola. Todavia, isso no quer dizer que ignorem a importncia do conhecimento

    escolar como processo de armao pessoal e da cidadania (item da tabela acima). Alis, eles tm dito que o conhecimento

    o quinto elemento no hip-hop.

    No dia 4/7/007, estive na casa de JC, da banda Juventude Sangrenta, do Morro Bom Jesus, por volta das 4 horas, por ne-

    cessitar conversar com um membro da banda Voz do Morro. Naquela ocasio, JC pediu sua prpria irm para ir casa de Cuca

    (Jonas), vocalista da VDM, porque eu precisava alar com ele. Depois de conversarmos sobre as questes da pesquisa, Cuca me

    perguntou se era possvel conseguir para ele uma onte bibliogrca que possibilitasse uma consulta mais aproundada sobre

    a histria das civilizaes. Razo: ele estava pensando em construir um novo rap e precisava de elementos mais substanciosos

    para enriquecer a sua composio. Naquele momento, ele ez um comentrio sobre uma banda de rap do Sudeste, muito apre-

    ciada no Morro Bom Jesus, a Faco Central. Dizia Cuca: Voc j escutou o novo CD da Faco Central? O rap ala da realidade

    local deles, mas eles usam um conhecimento to desenvolvido que s vezes preciso estar com o dicionrio para entender. Isso

    bom! Isso mostra que os rappers so intelectuais tambm! Conclu (Ver Dirio de Campo, 4/7/007).

    Os rappers esto se dando conta da importncia do conhecimento como instrumento de armao social. Inelizmente,

    eles reconhecem que quem poderia ajud-los, a escola, no cumpre seu papel como deveria.

    O item 7, quando comparado ao , apresenta certa coerncia, uma vez que retrata um equilbrio nas respostas. O , tratan-

    do de oportunidade, revela um ndice de 6,4% dos jovens armando as oportunidades que lhes aparecem, enquanto o 7

    equilibra a relao entre poder e no poder trabalhar; respectivamente, ,4% e 46,6 %. Os jovens armam que o grande

    entrave ainda est no preconceito que pesa sobre eles por causa de suas origens tnicas e tambm por residirem em locais es-

    tigmatizados. Ou seja, existem as oportunidades, mas elas logo so suprimidas pelo preconceito cultural/simblico. Pobres que

    residem em outros bairros que no avelas, segundo esses jovens, possuem mais chances de poder trabalhar. A positividade,

    para os jovens da avela, vem do ato de o hip-hop estar na moda. Isto , em ascenso na televiso. Como atesta depoimento

    registrado em minhas anotaes:

    Agora tem aumentado muito o interesse em divulgar o hip-hop, no ? A televiso, o rdio, os jornais, toda mdia tem demonstrado muito

    interesse em divulgar o hip-hop, a juventude etc. aqui em Caruaru, e acho que em outras cidades deve ser assim tambm. Em Caruaru,

    tem-se desenvolvido o hbito de divulgar as pessoas quando elas se tornam amosas l ora, ou quando elas participam de um evento

    que moda. Ento, o que est acontecendo com o hip-hop. A Rede Globo, mas no s ela, tem divulgado trabalho dos rappers nacionais

    como MV Bill, Rappin Hood, Marcelo D e outros. At mesmo o aparecimento do rap americano na televiso tem aumentado. Ento, aquia televiso quer azer o mesmo e a eles tm nos procurado. Da ter havido essa procura por parte de algumas empresas, que querem di-

    vulgar seus produtos e, como a gente moda agora, ento eles nos procuram para ser garoto- propaganda deles. Com relao a isso, no

    existe aqui uma posio comum. Alguns acham que a gente deve azer, outros acham que no. Mas a gente deixa muito vontade. Se eles

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    vo ganhar dinheiro, e todos ns precisamos de dinheiro para sobreviver, ento que vo e aam o trampo, ganhem seu dinheiro e sejam

    elizes. A gente procura no criticar, apenas adverte para no envolver o nome da amlia nessas paradas. Acho que preciso ter mais res-

    peito nessa relao. No eles olharem para ns apenas como garotos- propaganda ou como mercadoria no mercado. Se eles reconhecem

    que a gente tem talento, ento que cheguem e digam: Olha, a gente t vendo que vocs so capazes e a gente quer divulgar o trabalho

    de vocs, mas no, eles s querem explorar a gente e dar migalhas pelo trabalho da gente. Ento, alta mais respeito e oportunidade para

    a gente mostrar o trabalho da gente. (Suspeito Entrevista, 8/6/007)

    Outros dois itens que mereceram as consideraes dos jovens oram o 0 e o 8. Ambos tratam da possibilidade de o

    jovem poder contar com a amlia para ajud-lo na vida. H apenas uma pequena dierenciao na orma como eles oram

    apresentados, mas o contedo o mesmo. No houve, de nossa parte, qualquer inteno em vericar alguma contradio nos

    depoimentos dos jovens. Os itens oram repetidos por acaso; diria que por alta de ateno minha mesmo. Mas interessante

    perceber a coincidncia, pois, embora eles estivessem um pouco distantes na ordem numrica das questes, reetiram um

    equilbrio e uma coincidncia de resultados (0,% e 49,9 %, respectivamente).

    O ato de terem se repetido e a coincidncia de resultados chamaram-me a ateno, o que me levou a indagar os jovens

    sobre o contedo das questes. Para eles, no que a amlia no queira dar apoio aos seus lhos. Aqui, sobrepem-se con-

    tedos relacionados tanto s possibilidades de acompanhamento do crescimento dos lhos como contedos relacionados s

    ormas como os indivduos adultos incorporam o imaginrio social hegemnico sobre o uturo dos jovens (conorme registro no

    Dirio de Campo, /7/007):

    Eu estou h seis anos na correria com a amlia MBJ. Mas eu, como uma gerao mais nova na amlia, posso dizer que j ui uma cria da

    amlia. Eu sempre ouvia as bandas se apresentarem nas praas e oi aquilo que oi me dando coragem de chegar junto e hoje ao parte

    da amlia, na banda Calibre da Morte. No inicio oi dicil, porque minha amlia tinha muitos preconceitos com os jovens do Morro que

    aziam rap, e tambm porque minha me sempre achava que essa coisa de rap no dava dinheiro. Ela achava que eu devia era procurar um

    emprego. Mas medida que eles oram vendo o trabalho da amlia MBJ, ento as barreiras oram sendo quebradas e eu acabei ormando

    minha banda com outros companheiros mais novos. Acompanho a amlia desde 00 e tem sido graticante pra mim. (MC ED Entrevista,

    /6/007)

    No que os nossos pais no queiram nos dar apoio, que eles no tm nem para manter a casa! Da a gente ter que trabalhar duro desde

    cedo para ajudar nossos pais a manter a amlia. (Preto RF Entrevista, /7/007)

    O quadro a seguir tambm traz algumas questes que nos deixam apreensivos. Por exemplo, descrena nos governantes.

    Observei um pequeno ndice relativo ao quantitativo dos jovens da MBJ sobre a preocupao com esse tema. Eles apresentaram

    alto ndice de preocupao apenas na segunda meno. Ao serem indagados, percebi um posicionamento aptico quanto

    participao na vida poltica nos trs nveis, municipal, estadual e nacional. Todavia, a escuta desses jovens revelava que eles no

    se desconheciam como seres polticos, assim como no desconhecem que azem poltica no hip-hop.

    O que eles dizem que no acreditam em mudana social vinda da parte do poder poltico institucional. Para eles, os

    polticos so eleitos prometendo cuidar do patrimnio pblico apenas para se beneciarem disso. As alas dos jovens revelam

    elementos dignos de apreenso:

    Veja bem, no que eu no me preocupe com o que est acontecendo na poltica de orma geral. Eu no posso dizer que no sou poltico,

    pois o hip-hop um movimento poltico. Eu tambm no estou dizendo que o que os polticos azem aqui no municpio ou l em Braslia

    no aete a vida de todos ns. Mas o que eu quero dizer que FHC era presidente e eu, avelado. Hoje, Lula est no seu segundo mandato,

    e eu continuo da mesma orma, um avelado. No estou alando de mim apenas, JC, mas de muitos outros JCs da vida. por isso que a

    gente vai percebendo que se eu, JC, no zer alguma coisa por mim mesmo, no adianta nada. por isso que muitos jovens da perieria

    entram no mundo do crime. Veja s: em 00, eu ui preso, tinha me envolvido numa treta e ui pego, passei dois anos no presdio. Era para

    passar apenas seis meses, mas quei dois anos e acabei saindo de l com uma tuberculose, da qual estou me tratando. Alguns dos meus

    parceiros de hip-hop que caram aqui caram em tretas tambm e esto enjaulados. O que mudou? Nada! disso que eu estou alando.

    No vai haver revoluo nenhuma com esses polticos que esto no poder! Sejam de esquerda, e muito menos de direita. (JC Entrevista,

    4/7/007)

    Eu acho que isso vai muito de situao. Dentro de So Paulo, os rappers j zeram campanha poltica para partidos polticos; aqui, a gente

    j ez tambm. o seguinte: poltica e hip-hop podem andar... O hip-hop no deixa de ter sua poltica porque, enquanto movimento orga-

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    7

    nizado, um movimento poltico. T entendendo? S que a poltica dos bares caminha lado a lado no seguinte ponto, a gente no pode

    permitir-se ser usado. E sim contar com oras polticas que tenham alguma inteno de ajudar o movimento hip-hop. Que no caso de

    Caruaru, isso acontece. O movimento hip-hop aqui tem alguns apoios do poder poltico do municpio, t entendendo? A partir do ponto

    que seja pra azer caminhar o hip-hop, vlido. Por isso que a gente tem estado atento, para no cair na armadilha da poltica partidria,

    mas daquele jeito, porque ela caminha com o hip-hop, mas preciso saber o que ela quer e qual vertente ela deende, t entendendo?

    (MC Black-out Entrevista, 9/6/007)

    Na amlia MBJ ningum discrimina ningum pela sua religiosidade, ou ideologia. Basta j a discriminao que voc sore na sociedade.

    Quanto poltica, a gente deixa muito vontade para que cada um tome a deciso que achar melhor. A gente tem o lema de que nossopartido a perieria. Agora, a gente orienta para que nenhum membro da amlia aparea em propaganda de partido alando em nome

    da amlia. Muito menos pedindo voto para esse ou aquele poltico. A amlia no tem partido que no seja a perieria. Cada um tem a sua

    conscincia, eu apoio quem apoiar a perieria. Os polticos s querem tirar da gente e a gente no vai permitir qualquer tipo de explora-

    o. A gente at gostaria de participar mais da vida poltica, tanto local como nacional, estou alando de poltica no sentido do poder, os

    partidos polticos. Mas a gente sabe do risco que corre, pois os polticos querem que a gente se lie a eles, seus partidos, que se torne cabo

    eleitoral, e do jeito que as coisas andam na poltica brasileira no d. Nossa participao poltica se d mesmo nas letras de rap, quando

    a gente ala da realidade social e do descaso do poder poltico em relao vida na avela. Essa podrido que est a. Ento a gente acaba

    discutindo poltica chamando a ateno da molecada quanto necessidade de no se deixar enganar. Aqui na realidade da gente muito

    perigoso ter uma vida poltica mais ativa, porque voc acaba sendo conundido com um cabo eleitoral. Essa a orma como a avela

    vista pelos polticos. Se voc no se maniesta, por outro lado, voc acaba tendo mais diculdade para conseguir as coisas, e a situao da

    avela no nada boa, ento muitos acabam se entregando aos polticos. Mas a gente tem tido o cuidado de no vincular nossa atuao e

    posio poltica ao movimento. Quem quiser participar livre, s no pode alar em pblico em nome da amlia. A poltica inui muito na

    vida da juventude como um todo, mas o que a gente diz aqui que voc no deve se entregar aos polticos, se no voc acaba presa deles.

    Ento, se no se envolver, voc vai est sempre em liberdade para agir como cidado. Voc sabe que o que eles azem l na Cmara ou na

    Assemblia Legislativa, tudo isso acaba em voc, por isso voc precisa ter independncia para poder dizer sim ou no a qualquer um. (MC

    Suspeito Entrevista, 8/6/007)

    A mesma coisa acontece com os polticos, eles chegam aqui com o discurso de que querem mudar a realidade, mas na verdade o que eles

    querem usar a amlia para promover-se, azer ibope poltico pra eles. Um dia o pessoal do partido do preeito nos procurou, porque o

    preeito tem atendido algumas das nossas reivindicaes, como a construo da escola Dom. Soares Costa, no Morro, e nos cedeu o espao

    para reunies da amlia, uma antiga casa no Morro, a eles acham que a gente vai azer politicagem pra eles. Ento eles disseram que que-

    riam gravar umas imagens do projeto da amlia. Ento procurei saber do que se tratava e ui logo dizendo que a gente no az propaganda

    para poltico nenhum. Eles disseram que no era para poltico e que a inteno era mostrar o que tem sido eito no Morro pelo movimento

    hip-hop e o apoio que a administrao municipal tem dado. A gente achou que isso seria importante, pois divulgaria o nosso trabalho,

    era importante at mesmo pra divulgar o projeto da amlia. A gente concordou desde que no aparecesse nenhum poltico, nem que sealasse em nome de qualquer poltico, mesmo que osse o preeito. Quando a gente comeou as gravaes, a eles chegam dizendo o que

    a gente tinha que alar. A eu disse pra a! Voc quer me ensinar a dizer as coisas que tm que ser ditas sobre o trabalho da gente? Sobre

    a amlia, quem entende somos ns, que somos do hip-hop. Ento, quem vai denir o que ser dito somos ns. Foi a que eu percebi que

    a inteno era outra e a zemos resistncia e eles acabaram aceitando a nossa posio. E a gente ez o bagulho. Passamos um dia todo

    gravando isso. (DJ Nino Coordenador da Famlia MBJ Entrevista, 9/6/007)

    Lembro que, em outra ocasio, quando alvamos sobre poltica, queria saber como eles avaliavam a conjuntura poltica

    e, mais que isso, como eles viam o ato de jovens da avela, que reclamavam da ausncia de polticas pblicas na avela, estarem

    divididos azendo campanha poltica para os mais diversos candidatos. Um jovem comeou a alar:

    Eu j z campanha para muitos candidatos, mas no votei em nenhum deles, pois no acredito neles, pois eles s azem prometer. Mas

    como eu precisava do dinheiro para sobreviver, eu precisava me alimentar, comprar algumas coisas, ento tive que trabalhar para um

    deles... Nem havia acabado de alar, quando outro o interrompeu, dizendo: Pra voc ver como a situao aqui da perieria, todos trab-

    alham por certos avores, como diz GOG citando um rapper do Distrito Federal o que me di mais ver meu povo caindo na cilada,

    trabalhando em campanhas milionrias por migalhas. Como se pode perceber, de certo modo, est, a, presente um embate social de

    classe. (Fragmento de Dirio de Campo 0/0/004)

    Como assinalam os jovens da Famlia Morro Bom Jesus, o assdio poltico tem vindo de todos os lados. A presso para que

    eles se posicionem vem sempre relacionada a necessidades bsicas dessa populao. Mas eles tm resistido, alegando que o

    que eles querem no nada mais do que ser reconhecidos como sujeitos de direito, como cidados que so.

    A gente est entre ogo cruzado, de um lado os polticos que apiam o preeito reclamam por no nos denirmos politicamente em

    deesa da administrao do preeito. De outro, a oposio, ligada aos partidos de esquerda, levanta o discurso de que somos movimento

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    social excludo e que devemos estar do lado da esquerda. O que no aceitamos que os nossos direitos sejam manipulados como se os-

    sem mercadoria negociada no mercado das eleies. Ns temos dito que nosso partido o Morro Bom Jesus. Temos trabalhado com os

    jovens do Morro no sentido de que eles so livres e que a amlia MBJ no tem partido poltico. (DJ Nino Lder da Famlia MBJ Entrevista,

    9/6/007).

    Embora entenda que no seja possvel viver sem a poltica, pois estar discutindo aqui sobre o destino do hip-hop j poltica. Quando se

    trata da poltica partidria, entendo o hip-hop pela sua atuao na perieria. O lado social mais pobre da sociedade muito procurado para

    apoiar os polticos. Eu entendo que hip-hop e poltica no devem andar juntos. Ns somos um movimento social e assim que devemos

    continuar. Meu partido o Morro Bom Jesus, a perieria. Estarei com quem estiver com o Morro. Mas deixo que cada um dos moradores doMorro escolha por si mesmo o que achar melhor. Cada um responsvel pela escolha que az. Se eu escolho o caminho da criminalidade,

    da vida bandida, do trco, eu no posso armar que ui levado ou obrigado por algum a azer essa escolha. Por ela, s cabe a mim mesmo

    responder. (MC Suspeito Lder na MBJ Entrevista, 8/6/007)

    Cada um cada um. Essa uma expresso muito presente nas conversas de roda. Parece no haver preocupao com a

    manuteno de uma uniormidade de discurso ou ao nesse mundo de becos e vielas interminveis, de atos inusitados e es-

    cassez de quase tudo. Como arma DJ Nino: Aqui h uma estrutura desestruturada...9. Na avela, cada jovem tem de encontrar

    uma orma de sobrevivncia e ser respeitado pelas escolhas que tiver eito, pois ele nico em suas escolhas.

    s vezes eu escuto acusarem o rappers de dar maus exemplos ou incentivar a violncia nas letras pesadas. Ora, as pessoas alam em

    disposio interior para azer o bem, e por que no alam em disposio interior para azer o mal tambm? Se voc az o mal, az por que

    escolheu azer, no oi por inuncia. Assim no crime, voc sabe dos perigos, aonde voc vai chegar e ainda assim voc escolhe esse

    caminho, ento culpe a voc mesmo. Se tivesse que culpar algum pelas escolhas erradas que, por acaso, tivesse eito na vida, esse algum

    seria eu mesmo. claro que o sistema, a ganncia dos ricos, que no deixam alternativa ao povo da perieria, so os grandes culpados, mas

    eu posso me posicionar contra tudo isso, que o que ao. Ns do hip-hop procuramos alertar os jovens dos perigos da vida bandida, mas

    cada um livre para escolher os caminhos que quer. No rap, a gente mostra esses dois lados da vida. Tnhamos um parceiro (irmo J), que

    colava com a gente e trocava muitas idias, mas acabou na vida do crime. A gente o alertou, mas ele achava que no ia acontecer com ele,

    e a? Que Deus o tenha e d a ele um bom lugar. (Suspeito Entrevista, /6/007)

    Essa assuno da responsabilidade individual da escolha que cada um az est retratada na desterritorialidade estabeleci-

    da pelo uxo da vida na avela, como acentua Adad (00, p. 6-7). Em seu estudo sobre corpo e movimento, diz ela: H, pois,

    uma circulao desses jovens, expressa na instabilidade da desterritorializao e do reagrupamento contnuo, que se poderia

    chamar de estratgia de rua, caractersticas dos bandos nmades, evidenciadas nas suas aes inormais. Eles no sabem inor-

    mar, quando solicitados, sobre o paradeiro dos outros. Mas eles no so vagabundos, no sentido negativo dessa palavra.

    Aqui na perieria, a gente procura passar a idia de que ser jovem saber curtir a vida sem se envolver com a marginalidade. O jovem peri-

    rico no est preso sua quebrada, ele est sempre circulando por todos os espaos da cidade; a, ele est sempre observando as coisas,

    aprendendo com elas e se inspirando nelas. Ele tem inteligncia e a vida sua escola. Ele quer se divertir, mas est aprendendo com tudo

    o que est ao seu redor. (DJ Nino Entrevista, 9/6/004)

    Essa ala de DJ Nino, proerida no campo, em 004, est reetida no quadro estatstico que apresentamos acima, sobre-

    tudo nos itens 7 e , em que os ndices atestam uma quase unanimidade (96,7% e 00%, respectivamente), sobre Aproveitar

    a vida com responsabilidade e Estar atento aos perigos da vida. dicil no admitir que parte desses jovens no tenha passado

    por algum tipo de envolvimento com a criminalidade, mas igualmente dicil aceitar que o simples ato de residirem em comu-

    nidades reconhecidas como avelas seja o suciente para serem rotulados como bandidos ou criminosos. essa visibilidade

    negativa que eles querem anular. Assim, ao mesmo tempo que xam como principal demanda o reconhecimento como pes-

    soas, cidados, eles lutam, tambm, pela oportunidade de serem aceitos como seres de cultura.

    Neste segundo quadro, modiquei as opes de respostas no mais apresentadas como sim e no, mas como primeira

    e segunda opo, seguida da possibilidade de esclarecimento para as respostas queles jovens, caso julgasse necessrio, ou

    quando eu precisasse de algum esclarecimento.

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    QUESTES QUE MAIS PREOCUPAM

    OS JOVENS PERIFRICOS . Opo .Opo

    Desrespeito s expresses culturais do jovem peririco 90,% 9,9%

    Preconceito social, econmico e cultural/racial 90,% 9,9%

    Descrena nos governantes 6,6% 8,4%

    tica e compromisso social 96,7% ,%Drogas/violncia 96,7% ,%

    As oertas do crime 8,4% 6,6%

    Desigualdade e pobreza 90,% 9,9%

    Fome/misria 90,% 9,9%

    Futuro do jovem 8,4% 6,6%

    Reorma agrria 86,7% ,%

    Educao prossional/inclusiva 90,% 9,9%

    Cidadania e direitos humanos 96,7% ,%Sexualidade do jovem 9,4% 6,6%

    Desemprego/alta de renda 96,7% ,%

    Esses jovens esto preocupados com o uturo e sabem que, num mundo onde as estatsticas esto contra eles, no se pode

    descuidar jamais. Eles sonham com um uturo melhor e sabem que esse sonho est indissociavelmente ligado ao presente. Ser

    jovem estar de olhos no uturo, viver com criatividade, no desandar, ser verdadeiro e consciente.0 A maniestao do desejo

    em ascender socialmente torna-se muitas vezes um conito em virtude da orma como os adultos, sobretudo aqueles mais

    prximos, como os pais, os indagam sobre o uturo. Evidentemente, esses conrontos so decorrentes da orma como o sistema

    estruturou o modelo ideal de sucesso, e as expectativas de seus amiliares so produzidas nesses embates com o sistema. Mas o

    uturo, embora numa perspectiva negativa, ou pelo avesso, tambm est presente nas oertas constantes eitas pelo tracante

    para atender suas demandas. So propostas de sucesso cil que lhes so apresentadas pelo mundo do crime.

    Minha me muitas vezes me pergunta sobre o que eu tenho ganhado com o rap. Ela no entende que eu ao rap porque eu gosto e no

    porque eu queira ganhar alguma coisa. Eu sonho um dia ser rapper amoso e ganhar dinheiro e ajudar as pessoas na minha quebrada,

    azendo rap, mas no isso que me estimula a continuar no movimento, nem a azer rap. O rap uma maneira de me expressar, de dizer

    aos outros como eu vejo o mundo, e no se az isso para car rico, se az isso porque essa a vida. Ganhar a vida a nossa proposta. Se der

    pra ganhar mais, tudo bem! Mas eu no quero car rico! Eu no quero ser milionrio, pra que isso, cara? No! por isso que o mundo essa

    doideira toda, essa parania! Porque as pessoas no se contentam, elas querem sempre mais. (JC Entrevista, /7/007)

    Esses jovens esto o tempo todo sendo bombardeados pelo modelo de sucesso vinculado ao consumo, submisso e ao

    trabalho explorado. E, pelo ato de no terem concludo seus estudos escolares, eles so constantemente pressionados a aceitar

    as condies impostas pelas relaes de explorao do mercado de trabalho. Suas atividades culturais e artsticas no so recon-

    hecidas como laboriosas. E quando rejeitam as oportunidades que lhes so oerecidas, acabam sendo oco de interpretaes

    preconceituosas, que insistem em no reconhecer seus valores culturais. Da eles alarem do seu envolvimento na cultura hip-

    hop como uma orma de prossionalizao.

    Eu no gostaria de ter um emprego onde eu tivesse que azer aquilo com que eu no concordo ou de que no goste, mesmo que esse

    emprego osse pra car em rente a um computador. As pessoas alam que a gente tem que comear de baixo, mas observe o RF h

    quanto tempo voc trabalha na grca, RF? Veja, ele trabalha na grca h cinco anos. Ele comeou azendo tudo na empresa, j varreu,

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    j ez axina, de tudo na grca e por que ele no tem uma grca? por que ele no inteligente? No! A maior tecnologia t aqui, !

    [JC aponta para a cabea]. A sociedade no oerece condio de voc progredir, de ter seu prprio negcio. Sabe por qu? Porque voc

    preto e da avela! No h uma valorizao da perieria, do jovem da perieria, para que ele possa trabalhar naquilo que ele realmente quer.

    Por exemplo: no hip-hop a gente az teatro, grate, dana, msica. Por que eles no querem reconhecer que a gente tem um trabalho? (JC

    Entrevista, /6/007)

    Mesmo quando os jovens aceitam determinadas ormas de trabalho oerecidas pelo mercado, eles no so reconhecidos

    como capazes para a uno, seja pela empresa, seja pela prpria sociedade. Isso ca claro na ala que se segue, na qual Black-outconversa comigo sobre a existncia do preconceito social contra o jovem da perieria:

    Vou usar um trechinho de um dos maiores pensadores do rap nacional quando ele diz que numa grande metrpole como So

    Paulo ver um jovem peririco, preto, pobre ou morto j at cultural. A discriminao sempre vai haver, por mais que voc siga os

    padres da sociedade. Voc trabalha, ganha o seu de orma honesta, mas quando voc tiver ora do seu mbito do trabalho e tiver

    sendo voc, na rua, de bermuda, de chinelo e de camiseta, voc vai ser discriminado, t entendendo? Eu mesmo j tive experincia

    de estar no palco cantando e quando voltei ao meu trabalho [Black-out se reere ao tempo que trabalhava numa loja de calados

    no centro de Caruaru] certas pessoas chegaram comentando sobre um jovem que estava naquele evento cantando, e elas usaram

    o termo cantando msica pra malandro, t entendendo? Elas se reeriam ao rap que eu tinha apresentado num estival promovido

    pela Polcia Militar, uma campanha pela paz. E nisso os dois cidados discutindo, no sabendo eles que o jovem a quem eles se

    reeriam era exatamente eu, que, naquele momento, estava ali numa loja trabalhando, atendendo eles. Ou seja, eu, o suposto

    malandro, como eles haviam dito. E eu assisti a eles conversando sobre mim, sem que eles soubessem que era eu quem estava ali.

    O engraado nisso que um deles alou pro outro: Esse maloqueiro parece com aquele cara, no ?. A o outro respondeu: Que

    nada, cara, no ts vendo que aquele maloqueiro no tem condio de estar numa beca dessas!. Ele se reeria ao ato de eu estar

    de camisa de manga comprida e gravata. nisso que eu digo; que a discriminao sempre vai existir. Cabe a ns azer o possvel

    para dobrar, porque por mais que a discriminao exista e que o preconceito insista, t havendo outra viso, e um dos responsveis

    por isso tem sido justamente o movimento hip-hop, que t mostrando a que o jovem da perieria trabalha, tem responsabilidade,

    tem amlia e tem objetivo de vida. T entendendo? Essas barreiras sempre vo existir e eu vou sempre alar pro meu lho que essas

    coisas existem e ele tem que aprender a conviver com elas at que elas sejam extintas, que o que a gente deseja, n? Mas uma

    coisa muito complexa. (Black-out Entrevista, 9/6/007)

    Esses jovens sonham um dia serem reconhecidos pelo que azem, desenvolver um dos elementos do hip-hop. O rap,

    elemento musical, o caminho pelo qual eles tm demonstrado maiores esperanas. E, a, eles espelham-se nos exemplos de

    sucesso do rap nacional. O ato que no cil, para eles, sonhar com a possibilidade de vencer as diculdades diante das

    presses sociais, sobretudo do mercado, mas tambm da necessidade de superar as ronteiras da avela, como assinala Regina

    Novaes (999, p. 69):

    Enquanto participam de centenas de grupos existentes, os jovens sonham sobreviver atravs da msica, sonham entrar neste mer-

    cado. Sonham com o sucesso de vendas, querem vender uma mensagem, mas no querem se vender. Todo tempo se az uma

    mesma pergunta: entregar ou no entregar o rap para a indstria onogrca? Vender onde e para quem? Depois de um contrato, as

    letras esto ou no mais palatveis ao sistema? Como denir as ronteiras entre ganhar dinheiro com tica ou azer uns baratos

    escrotos para ganhar dinheiro?

    Embora se rera, mais especicamente, ao Sudeste do pas, onde o hip-hop j adquiriu certo reconhecimento, e alie

    a esse ato a presena dos grandes lderes do hip-hop nacional, Novaes deixa claro que est tratando de uma realidade

    nacional e, portanto, bastante heterognea.

    Tomando a situao-tipo que estamos analisando e levando em considerao os desaos do jovem no Nordeste do

    Brasil, a situao agrava-se, pois, questo econmica somam-se a questo cultural e a simblica, que, evidentemente,

    esto presentes tambm no Sudeste; mas, aqui, a questo simblica tem um agravante cultural: a macheza nordestina.

    Um jovem pobre, de pele escura, de baixa escolaridade, avelado, no pode querer sobreviver da msica, da dana e do

    grate, numa regio como esta, onde homem que se preza tem de trabalhar no pesado, ser cabra-macho.

    Uma das demandas mais ortemente reoradas pela Famlia MBJ tem a ver com a questo da educao inclusiva.

  • 8/7/2019 Movimento Hip Hop de Caruaru

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    Da a necessidade de construir um quadro (conorme abaixo congurado) onde os jovens pudessem se maniestar sobre o

    que eles armam ser essa demanda. Neste terceiro quadro, as opes de respostas seguem os critrios do quadro anterior,

    possibilitando aos jovens um momento para azer seus comentrios quando julgarem necessrio, ou suas respostas no

    oerecerem clareza de entendimento.

    interessante observar o desenho que o quadro mostra, pois aponta para questes que remetem ao plano da die-

    rena cultural e de uma poltica de reconhecimento como uma demanda presente no que esses jovens armam. Os itens

    Valorizao da cultura jovem peririca pela escola e Eliminar o preconceito social, econmico e cultural/racial apare-

    cem com o mesmo ndice percentual, o que nos diz estar havendo uma discrepncia no campo simblico escolar. Isso se

    reete no desempenho do jovem da perieria, razo pela qual eles se sentem excludos da escola.

    Este quadro aponta para duas questes undamentais: a primeira assinala uma concepo de cultura que vai do

    elemento simblico de armao de identidade tnica, a cultura negra, por exemplo, a uma percepo da cultura como

    um produto a ser negociado como moeda de troca. Nesse sentido, eles alam dos elementos (rap, grate, dana e dis-

    cotecagem) constituintes do hip-hop como prosses e produtos a serem negociados no mercado de bens e consumo. 4

    Falam tambm da necessidade de prossionalizao no hip-hop. A segunda questo aponta para uma maior insero da

    cultura e, neste caso, dos valores tnicos no azer escolar. Para esses jovens, a orma como a escola retrata a histria do

    negro depreciativa, e isso contribui para que os aro-descendentes sejam estigmatizados, tirando-lhes qualquer chance

    de armao social.

    QUESTES QUE MAIS PREOCUPAMO QUE O JOVEM CONSIDERA FUNDAMENTAL . Opo .OpoPARA UMA EDUCAO INCLUSIVA

    Valorizao da cultura jovem peririca pela escola 98,% ,9%

    Educao prossionalizante de qualidade 0,% 49,9%

    No discriminar o jovem peririco por ser pobre 9,4% 6,6%Eliminar o preconceito social, econmico e cultural/racial 98,% ,9%

    Entender as origens das diculdades escolares do jovem 00% -

    Acreditar no potencial do jovem peririco 96,7% ,%

    Educao adequada s necessidades do jovem peririco 8,4% 6,6%

    Maior integrao escolaamliacotidiano 6,4% 6,6%

    Escola adequada aos ideais do jovem peririco 8,4% 6,6%

    Fomos conerir isso, ouvindo os jovens.

    No ter escolaridade adequada aixa etria estabelecida pelo sistema signica para a sociedade no ter cultura. assim que eles nos vem.

    Desse modo, somos negados enquanto pessoas, e o que sobra para ns? Plvora, violncia, o crime. contra isso que a Famlia MBJ tem

    lutado. Temos buscado revirar a moeda, pois sabemos que ela tem outra ace, mas no cil virar o jogo a nosso avor, pois o sistema no

    vai aceitar que agente vena. (Black-out Entrevista, /6/007)

    A cultura apresenta-se para esses jovens como expresso simblica da sua singularidade, mas tambm como atividade-

    meio, pois eles vislumbram tirar da sua sobrevivncia, uma vez que acreditam se tornar prossionais, desenvolvendo os quatro

    elementos: grate, msica, dana e discotecagem. Assim, no aceitam que sejam reservados para eles apenas os trabalhos me-

    nos prestigiados na escala social.

  • 8/7/2019 Movimento Hip Hop de Caruaru

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    Eu trabalho numa grca. Comecei l azendo de tudo, at axina nos banheiros. Eu estou concluindo o segundo grau, mas o que isso vale

    para um jovem da perieria? Aqui, no adianta ter o segundo grau, nem mesmo mais que isso. Voc tratado como se osse um z ningum.

    Mas eu t na humildade! Agora eu sou operador. s vezes, o patro me manda papelaria comprar alguns materiais que esto altando na

    grca. Eu vou com minha roupa de trabalho mesmo e co observando como as pessoas me olham. Um preto, todo melado de tinta, sujo!

    Eles no tm nenhuma considerao. assim que somos tratados, no como um trabalhador, mas como um ningum! (RF Entrevista,

    4/6/007)

    A questo da prossionalizao por meio dos elementos do hip-hop tem sido objeto de armao no movimento hip-hop mun-

    dial. Em 999, quando Crazy Legs esteve no Rio de Janeiro, oi convidado para azer um comercial para uma Cia. de teleone

    mvel, e a produtora precisava de um b-boy para ser coadjuvante. Depois de convocar alguns e ter assistido a eles, Crazy Legs

    recusou todos os que oram trazidos, alegando que eles no tinham vibe, isto , o conhecimento necessrio para o trabalho. A

    partir da, comeou-se a desenvolver uma nova mentalidade no hip-hop nacional, de que no se podia pens-lo apenas como

    uma diverso, mas algo srio e que podia tornar-se um campo de luta prossional para os jovens, o qual eles no podiam neg-

    ligenciar.

    A prossionalizao tem sido uma temtica seriamente discutida pela amlia MBJ. A escola regular, sabem eles, inca-

    paz de preparar o indivduo para o mundo do trabalho. Sabem tambm que, sem essa capacitao prossional, eles no tero

    chances no mercado de trabalho. Revisitando o campo, agora em 007, tenho ouvido deles a necessidade de cursos prossional-izantes adequados realidade dos jovens periricos. E isso est claro nos . e 9. itens do quadro apresentado acima, nos quais

    as demandas de Educao prossionalizante de qualidade e Escola adequada aos ideais dos jovens periricos apresentam

    como ndices 0,% e 8,4% (primeira opo) e 49,9% e 6,6% (segunda opo), respectivamente.

    Desse modo, eles no aceitam que sejam rotulados de incapazes e despreparados para o mercado de trabalho. Para eles,

    o que h uma poltica de segregao e excluso social qual a escola est intimamente relacionada, quando ela no oerece

    as condies de exerccio pleno de sua cidadania. Ela nega aquilo que, segundo eles, constitui a base da ormao do indivduo,

    sua cultura.

    A cultura, eu t alando da cultura como plural, o elemento ormador da cidadania. O cidado aquele que age com conscincia, e a cul-tura elemento que vai dar essa estrutura ao indivduo. Na cultura hip-hop, por exemplo, quando a gente t trabalhando com as crianas,

    ento elas vo crescendo, muitas vezes sem entender o que est acontecendo, at que ela se reconhece um cidado. Ento a cidadania

    uma coisa que se orma no indivduo e adquirida na sua vivncia com a tradio. A cultura essa tradio. Da, no hip-hop, a gente est

    o tempo todo levando o jovem a entender que ele no pode desconhecer suas razes sociais e culturais. A escola, oerecida pelo sistema

    perieria, no est preocupada com essa ormao: azer os jovens reconhecerem suas razes culturais. Pelo contrrio, essas razes so

    negadas ao jovem da perieria. Ento essa escola no serve, pois o jovem educado por ela, se que podemos chamar isso de educao,

    no possui a conscincia do que ele realmente. Ele um individuo, s que com uma conscincia que no a dele, de sua cultura, de sua

    raa. Que individuo esse? Ele um perdido! por isso que ele no se encontra, por isso que esse jovem toma os caminhos que toma na

    vida, porque ele no se reconhece. No hip-hop a gente tem essa preocupao de azer o jovem encontrar suas razes, pois este o ponto de

    partida da construo da cidadania. como diz Mano Brown: A cultura negra uma rvore que possui vrios ramos, o samba um ramo, o

    jazz outro ramo, assim tambm o hip-hop outro ramo dessa rvore. Essa a cultura. (DJ Nino Entrevista, 9/7/007)

    A escola? Bom, ela importante, mas no para o jovem da avela, muito menos se ele or negro. No da orma como ela est a. Veja bem o

    que eu quero dizer; no que a escola no tenha importncia para mim. A questo : o jovem da avela tem uma educao de qualidade

    oerecida pela escola? E educao recebida da escola garantia para esse jovem de que ele vai arrumar um bom emprego? No! Nem uma

    coisa, nem outra! Eu, por exemplo, gostaria muito de ter um emprego, ser reconhecido pelo meu trabalho. Mas qual o empresrio que vai

    me dar esse emprego? Que vai achar que eu tenho condio de ocupar esse emprego? Nenhum. Depois, voc sai da escola, conclui seus

    estudos, se lho do rico tem logo um emprego bom, ou tem dinheiro para abrir seu prprio negcio, a os estudos desse jovem tm

    importncia. Mas e o lho do pobre? Qual a condio que voc tem para produzir seu conhecimento, ou para pr em prtica os conhe-

    cimentos que voc construiu? Culturalmente, a escola no contribui para o reconhecimento do jovem da avela. A prpria orma como ela

    apresenta a cultura do jovem da avela negativa. (JC, Juventude Sangrenta Entrevista, /7/007)

    Um item no quadro acima que me chamou a ateno oi o de nmero : Entender as origens das diculdades escolares

    do jovem. Por unanimidade, os jovens reconheceram essa questo como undamental no atendimento da demanda social da

    educao (00%). Precisava conversar com eles para ouvi-los sobre o que isso signicava para todos. Evidentemente que havia

  • 8/7/2019 Movimento Hip Hop de Caruaru

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    algo muito singular a, e era preciso desvendar.

    A escola no est usando uma linguagem que alcance o jovem da perieria. A escola uma coisa necessria, porque o jovem da perieria

    necessita conhecer a realidade, mas preciso encontrar o jeito de aproximar essas realidades, a da escola e a da comunidade, pois so

    dierentes. E a escola no est sabendo azer isso, os proessores comeam por discriminar a cultura do jovem da perieria como se a cul-

    tura da escola osse a mais poderosa, a mais certa. Ento voc conversa com o jovem da perieria: A! Como , vai escola?. Ele responde:

    Que porra de escola! O proessor quer ser melhor que a gente, quer mandar em mim!. E por