movimento teoria feminista

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Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=23816091006 Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica Marlise Matos Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global? Revista de Sociologia e Política, vol. 18, núm. 36, junio, 2010, pp. 67-92, Universidade Federal do Paraná Brasil Como citar este artigo Fascículo completo Mais informações do artigo Site da revista Revista de Sociologia e Política, ISSN (Versão impressa): 0104-4478 [email protected] Universidade Federal do Paraná Brasil www.redalyc.org Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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É Possível Reconstruir a Teoria Feminista a Partir Do Sul Global?

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=23816091006

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Marlise MatosMovimento e teoria feminista: possvel reconstruir a teoria feminista a partir do Sul global?

    Revista de Sociologia e Poltica, vol. 18, nm. 36, junio, 2010, pp. 67-92,Universidade Federal do Paran

    Brasil

    Como citar este artigo Fascculo completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Revista de Sociologia e Poltica,ISSN (Verso impressa): [email protected] Federal do ParanBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA V. 18, N 36: 67-92 JUN. 2010

    RESUMO

    MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA: POSSVEL RECONSTRUIR A TEORIA FEMINISTA

    A PARTIR DO SUL GLOBAL?

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, jun. 2010Recebido em 20 de novembro de 2009.Aprovado em 05 de maro de 2010.

    Marlise Matos

    Partindo da trajetria terica de Nancy Fraser, o texto toma os recentes rumos da teorizao feminista comoemblemticas da elaborao de um arcabouo terico-analtico de flego na dmarche das teorias dajustia e do feminismo contemporneas, ancorado, porm, em consideraes hegemonizadas do Norte glo-bal. H, neste sentido, um distanciamento da terica norte-americana em relao s agendas mais recen-tes do feminismo global (e em especial dos feminismos do Sul) e uma reflexo excessivamente baseada em umolhar desde o ocidente. a partir dessa constatao que recupero a crtica aos estudos de matriz anglo-sax, a partir da contribuio de C. T. Mohanty. Ao final, proponho a experincia de uma quarta ondados movimentos e estudos feministas no Brasil e na Amrica Latina, apontando para circuitos de difusofeminista operados a partir de distintas correntes horizontais de feminismos negro, acadmico, lsbico,masculino etc.

    PALAVRAS-CHAVE: teoria e movimento feminista; justia; participao poltica; transversalidade;interseccionalidade de gnero.

    I. INTRODUO

    Inicialmente como estudo de mulheres ouestudos feministas, depois como estudos degnero e, agora, mais recentemente, como estu-dos vinculados ao campo feminista de gnero(MATOS, 2008), os estudos protagonizados pelaluta feminista das mulheres, desta vez no mbitoacadmico, tm contribudo de modo substantivopara alterar a paisagem das teorias no campo so-cial, cultural e poltico, seja aqui no Brasil ou noexterior. Este artigo se prope debater a possibili-dade de uma nova proposta terica feminista e deuma nova onda para o feminismo em outra mol-dura (frame): do Sul para o Norte global.

    Partindo de uma brevssima apresentao datrajetria terica de Nancy Fraser e, especialmen-te, de alguns comentrios ao livro ReframingJustice (FRASER, 2005a) e de crticas a um arti-go recente intitulado Feminism, Capitalism andthe Cunning of History publicado em abril de2009 na New Left Review , recupero o desenhode um arcabouo terico no mbito do feminismonorte-americano que tem produzido muito impactonos estudos de gnero e feministas na AmricaLatina e no Caribe. Tomo as construes de Frasercomo emblemticas da elaborao de um

    arcabouo terico-analtico de flego na recentedmarche das teorias da justia e do feminismo,por sua vez profundamente ancorado em consi-deraes hegemonizadas do Norte global (condu-zido e organizado por meio de teorias anglo-saxnicas ocidentais, que indiscutivelmente tmsido aladas categoria de a boa teoria). Enten-do que a autora em questo direciona os esforosde sua obra no sentido de (re)construir um novoparadigma para as teorias da justia no mundocapitalista contemporneo. Contudo, tal esforono seria justificvel (e mesmo compreensvel)se a mesma no tivesse as consideraes sobre asdinmicas do movimento feminista (do norte-ame-ricano, sobretudo) como um pano de fundomobilizador de suas reflexes.

    neste sentido que se faz necessrio acom-panhar o percurso terico feito pela autora emquesto para entendermos uma das maiores limi-taes de suas construes recentes: seu olharbaseado nas discusses sobre a justia social con-tempornea e os esforos de (re)construo demodelos analticos para o entendimento do capi-talismo em moldes contemporneos passarempaulatinamente a estar desvinculados de uma an-lise mais densa sobre as vicissitudes do feminis-

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    mo global contemporneo. Isto teria se dado, ameu ver, por certo distanciamento da tericadas agendas mais recentes do feminismo global(e, em especial, dos feminismos do Sul global) epor uma construo excessivamente baseada emum olhar do ocidente hegemnico.

    Numa segunda parte do artigo acompanho tam-bm e reforo as consideraes originais de crti-ca aos estudos de matriz feminista anglo-sax(portanto, ocidental e do Norte global), a partir dacontribuio de C. T. Mohanty (1984; 2003;2006). Mohanty uma terica feminista do ps-colonialismo pode ser considerada uma das pri-meiras vozes contra-hegemnica no Norte glo-bal, que tenta dar destaque aos equvocos, mal-entendidos e problemas que uma viso tericaexclusivamente marcada a partir de olhos oci-dentais traz para os debates dos feminismos edas questes centrais que afetam as mulheres nomundo.

    Pinto (2003) relata a existncia de trs gran-des momentos (ou ondas) do feminismo brasilei-ro: o primeiro teria se expressado na luta pelo votono mbito do movimento sufragista, numa lutapelo direito ao voto, luta, portanto, por direitospolticos uma luta universal pela igualdade pol-tica. Tal fase foi organizada por mulheres das clas-ses mdias e altas e, freqentemente, por filhasde polticos ou intelectuais da sociedade brasileiraque tiveram a chance de estudar em outros pa-ses, tendo configurado, segundo Pinto, um fe-minismo bem comportado e/ou difuso1. O se-gundo momento do feminismo no Brasil teria nas-cido durante o clima poltico do regime militar noincio dos anos 1970, o qual foi uma sntese tantoda desvalorizao e da frustrao de cidadania nopas, quanto de um reforo na opresso patriarcale teria se caracterizado por um movimento con-trrio de liberao, no qual as mulheres discutiama sua sexualidade e as relaes de poder, deslo-cando a ateno da igualdade para as leis e os cos-tumes. As organizaes de mulheres que se le-

    vantaram em oposio ao militarismo formarammuitos grupos que consolidaram os interesses edemandas femininas, propiciando maior articula-o delas na arena pblica. Esta segunda ondacaracterizou-se, no Brasil e nos demais pases la-tino-americanos, ento, como uma resistnciacontra a ditadura militar e, por outro lado, em umaluta contra a hegemonia masculina, a violnciasexual e pelo direito ao exerccio do prazer. Ter-amos, ento, a terceira fase, desta vez referida forte participao das mulheres brasileiras em todoo processo de redemocratizao e na construodaquilo que Pinto identifica como uma espcie defeminismo difuso e com maior nfase aindasobre processos de institucionalizao e discus-so das diferenas intragnero (ou seja: entre asprprias mulheres). Os movimentos sociais e tam-bm o feminista, defrontando-se com novas manei-ras de conceber a cultura poltica e outras formasde se organizar coletivamente, desta vez passa-ram a se caracterizar por: 1) tentativas de refor-mas nas instituies consideradas democrticas(com a criao dos Conselhos da Condio Femi-nina, das Delegacias de Atendimento Especializa-do s Mulheres, por exemplo); 2) tentativas dereforma do Estado (com a forte participao dasmulheres organizadas no processo da AssembliaConstituinte de 1988, por exemplo); 3) busca deuma reconfigurao do espao pblico, por meioda forte participao de novas articulaes dosmovimentos de mulheres (mulheres negras, ls-bicas, indgenas, rurais etc.); 4) uma posteriorespecializao e profissionalizao do movimen-to. Este terceiro momento marca o incio de umaaproximao cautelosamente construda junto aoEstado.

    Aps a construo do enquadramento geral dasduas partes anteriores referentes explicitao dosdebates tericos encabeados por Fraser eMohanty, proponho, finalizando este artigo, a ex-perincia de uma nova onda para os movimen-tos feministas e tambm para os estudos e teoriasfeministas que, por sua vez, levem a srio a exis-tncia radical (ainda recente) de circuitos de difu-so feminista operados a partir das mais distintascorrentes horizontais de feminismos (acadmico,negro, lsbico, masculino etc.), que se poderiachamar de feminist sidestreaming ou de fluxohorizontal do feminismo (HEILBORN &ARRUDA, 1995; ALVAREZ, 2009). A nova ondatoma a srio tambm a direo rumo a arenas pa-

    1 A histria das feministas brasileiras pode ser retraadapelo menos at Nsia Floresta e sua livre traduo do textoclssico Direitos das mulheres e injustia dos homens, deautoria de Mary Wollestonecraft, em 1832. Tendo sido elaa primeira brasileira a tentar desconstruir os esteretiposde gnero e a dominao das mulheres, em meados do scu-lo XIX.

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    ralelas de atuao, seja no mbito da sociedadecivil ou no das fronteiras existentes entre esta e oEstado, e tambm perceptvel a partir da afir-mao da importncia de se considerar as frontei-ras interseccionais, transversais e transdisciplinaresentre gnero, raa, sexualidade, classe e gerao.Tal difuso feminista, com certeza, tem produzi-do conseqncias polticas e culturais que osci-lam desde as polticas estatais (com os srios de-safios propostos a partir da transversalidade eintersetorialidade), passando pelas exigncias dasaes de cooperao internacional, introjetando-se na cultura popular at as reflexes mais nti-mas e que tangenciam aspectos do reconhecimentoda multidimensionalidade subjetiva e identitria. Pormeio destes caminhos tem sido recorrente identi-ficar trajetos pelos quais os feminismos parecemfluir horizontalmente. Eu destacaria ainda a exis-tncia concreta de esforos intencionais para es-tender o feminismo a outros movimentos sociaispor meio de coligaes, campanhas, seminrios,capacitaes e atividades afins.

    A possibilidade de se pensar esta suposta quar-ta onda recente do feminismo no Brasil (e talvezna Amrica Latina)2 pode ser demonstrada pormeio: 1) da institucionalizao das demandas dasmulheres e do feminismo por intermdio da ela-borao, implantao e tentativas demonitoramento e controle de polticas pblicaspara as mulheres que tenham claramente o recor-te racial, sexual e etrio, bem como a busca dopoder poltico, inclusive o parlamentar; 2) da cri-ao de novos mecanismos e rgos executivosde coordenao e gesto de tais polticas no m-bito federal, estadual e municipal; 3) dos desdo-bramentos oriundos da institucionalizao, com acriao de organizaes no-governamentais(ONGs), fruns e redes feministas e, em especi-al, sob a influncia das inmeras redes comunica-tivas do feminismo transnacional e da agenda in-ternacional das mulheres; e, finalmente, e aindamais importante, por meio de 4) um novo framepara a atuao do feminismo, desta vez numa pers-pectiva trans ou ps-nacional que deriva da um

    esforo sistemtico de atuao em duas frentesconcomitantes: uma luta por radicalizaoanticapitalista, por meio do esforo de construoda articulao entre feminismos horizontais, e deuma luta radicalizada pelo encontro de feminis-mos no mbito das articulaes globais de pasesna moldura Sul-Sul. nesta parte final do artigo,tendo como pano de fundo tal conjunto de refle-xes, que avano a proposta ousada de se pensarna teoria feminista a partir de um novo frame doSul global, bem como de se pensar uma quartaonda para o feminismo brasileiro e latino-ameri-cano. Vejamos a seguir.

    II. FRASER E SUA CONTRIBUIO PARA ACONSTRUO DA TEORIA POLTICA FE-MINISTA3

    Para Luis Felipe Miguel (2005), a preocupa-o corrente de multiculturalistas e de distintostericos da diferena seria a de produzir, no umateoria democrtica, mas uma teoria da justia. justamente a este deslocamento que parte impor-tante das teorias feministas dedica-secontemporaneamente: em parte isto se deve por-que, desde a contribuio original de Rawls (1971),ficou patente para o mundo que as democraciasocidentais (e suas teorias subjacentes) vinhamconvivendo facilmente com um quadrodesalentador de profundas desigualdades sociaise polticas. Dentre as contribuies diversificadasdas teorias feministas contemporneas sobre osdebates estabelecidos acerca de temas cruciais como igualdade e diferena, teorias da justia,Estado nacional, democracia e participao des-taca-se sobremaneira a contribuio de N. Fraser.

    Fraser (1995; 1999) ficou notabilizada inter-nacionalmente por sua crtica contundente ao tra-balho filosfico de Habermas4, especialmente aoseu conceito de esfera pblica. Este ltimo tevesua origem na obra Mudana estrutural da esfera

    2 No pretendo tomar o caso dos feminismos brasileiroscomo paradigmtico na Amrica Latina: reconheo a exis-tncia de diferenas e sentidos nicos aos diferentes femi-nismos na regio. O efeito desejado apenas da descriode uma trajetria familiar, aquela que me tem feito pensar epropor este dinamismo da quarta onda.

    3 As tradues, ao longo deste artigo, de trechos de obrasem idioma estrangeiro so de responsabilidade da autora.4 A primeira crtica conhecida de Fraser (1995), na verda-de, apontou para traos conservadores da teoria crtica deHabermas, que permaneceria androcntrica e insensvel squestes de gnero, j que, posicionando-se contra estaforma analtica que distingue e separa sistema e mundoda vida, a crtica feminista afirmaria a necessidade dagenerificao, finalmente, da prpria oposio entre p-blico e privado. A autora quis ressaltar que, nestes espaos,

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    pblica (1984), em que Habermas tratou da g-nese e transformao da esfera pblica burgue-sa. N. Fraser (1999) apontava, naquele momen-to, para o surgimento dos subaltern publics,aqueles grupos sociais que, devido concepode uma esfera pblica nacional e homognea, es-tariam excludos dos processos de deliberaopblica, como as mulheres e as minorias tnicas.As principais crticas elaboradas por ela quelemomento podem ser assim resumidas: 1) os dife-rentes interlocutores na esfera pblica no podemcolocar em suspenso seus diferenciais de status eagir como se fossem iguais, trazendo implcita aconsiderao de que a igualdade social em mode-los liberais e burgueses no condio necessria democracia; 2) existiriam mltiplas esferas p-blicas concorrentes e isto no representa neces-sariamente um afastamento da democracia, pelocontrrio, a multiplicidade seria prefervel exis-tncia de uma nica e compreensiva esfera pbli-ca5; 3) a esfera pblica seria o local de delibera-o acerca do bem comum e tambm acerca detodos os demais temas que fossem coletivamente

    alados a tal condio e seria desejvel, inclusive,a tematizao de interesses e questes privadas(j que o privado tambm poltico)6. Por fim,Fraser afirma que o modelo de esfera pblica de-senvolvido por Habermas pressuporia uma sepa-rao rgida entre a sociedade civil e o Estado, oque nem sempre seria real ou mesmo desejvel.Voltando-se questo da igualdade, Fraser defen-deu ento que, apesar da inexistncia de impedi-mentos formais participao no debate pblico,alguns impedimentos informais ainda persistiriam.

    Destaco o ecletismo terico que pode ser per-cebido na trajetria terica percorrida pela autora:ela insiste em levar em considerao, de modosimultneo, tanto os fatores polticos quanto ossociais e econmicos, que, por sua vez, seriamobservveis nas diversas conjunturas globais. Nasequncia de suas reflexes, Fraser passou a sedigladiar, ento, com a construo de uma novateoria feminista da justia social que incorporassedimenses paradoxais no tratadas nem pelos li-berais (mesmo as correntes do liberalismo iguali-trio) que enfatizavam a justia como equidadee destacavam a redistribuio econmica como omotor da promoo da igualdade e da justia soci-al , nem pelos tericos multiculturalistas oucomunitaristas, que, por sua vez, insistiam que aluta pelo reconhecimento deveria suplantar a lutapor redistribuio. Para Fraser (2001), tornou-sedesafiante o esforo de associar ambos os tiposde reivindicaes em uma anlise que incidiria emum dualismo perspectivo, propondo uma con-cepo de justia bidimensional associada aomonismo normativo da paridade na participao.Haveria assim duas formas correntes de compre-enso da justia: uma que foca a injustiasocioeconmica, enraizada na estrutura poltico-econmica da sociedade (manifestando-se pormeio de distintas formas de explorao,

    estariam marcados diferenciadamente os papis entre ossexos, sendo central na sua argumentao que o prpriotrabalho domstico das mulheres, ao permanecer no-reco-nhecido e invisvel, continuaria no sendo contado comouma efetiva contribuio para a reproduo dos sistemasestatal e econmico. A autora tambm se incumbe de indi-car que a esfera pblica burguesa habermasiana seria arti-ficial, efeminada e aristocrtica e promoveria um es-tilo mais austero de discurso e comportamento pblico:um estilo considerado como racional, virtuoso e varo-nil (FRASER, 1999), tendo tambm cabido promoveruma excluso formal da mulher da vida pblica e naturali-zar, dicotomizando, espaos ideais para as mulheres, comoa vida privada e domstica e, em contrapartida, reificando aesfera pblica como um espao masculino.5 Tanto em sociedades estratificadas como em sociedadesmulticulturais seria desejvel a existncia de esferas pbli-cas mltiplas e concorrentes. Nas primeiras, diz a autora, aexistncia de arranjos que acomodem a contestao entremltiplas esferas pblicas concorrentes promove de formamais adequada a paridade de participao do que em con-textos em que h apenas uma nica esfera pblica e em quemembros dos grupos subordinados no contam com arenasde deliberao e contestao. Fraser chama tais arenas dedeliberao de subaltern counterpublics, ou seja, arenasdiscursivas paralelas em que membros dos grupos subordi-nados podem inventar e circular contra-discursos para for-mular interpretaes de oposio referidas sua identida-de, interesses e necessidades (FRASER, 1999) e afirmaque a sua existncia indica uma ampliao da contestaodiscursiva, fato que implica uma democratizao do espa-o pblico em sociedades estratificadas.

    6 No deveria haver uma definio apriorstica do que deveou no ser tido como fora dos limites do pblico. Assim,diz a autora que pelo contrrio, a publicidade democrticarequer garantias positivas de oportunidades para minoriasconvencerem os demais de que o que no era pblico nopassado no sentido de ser uma questo relativa ao bemcomum deve agora passar a s-lo(FRASER, 1999). Nessesentido, a autora indica que a teoria social crtica deve olharde modo atento para os termos pblico e privado,percebendo-os no apenas como a designao de esferassociais, mas como classificaes culturais e rtulos retricosque apresentam conseqncias prtico-polticas importan-tes para a democracia.

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    marginalizao e privao material); e outra, cul-tural e simblica, focando a injustia advinda dospadres sociais e culturais da representao, re-conhecimento, interpretao e comunicao (es-tas seriam exemplificadas pelas manifestaes dono-reconhecimento, da dominao cultural e dodesrespeito).

    Mais recentemente (FRASER, 2005a; 2005b;2007a; 2007b; 2008), a autora passou a repensar asua concepo e a incorporar uma terceira pers-pectiva especificamente poltica em seu paradigmabidimensional da justia. Fraser passou a conside-rar7, ento, como uma terceira dimenso da justiasocial, a representao poltica. Por meio do recur-so terico a uma suposta virada ps-nacional que a autora passa a utilizar a nova categoria darepresentao, que vai lhe permitir problematizaras estruturas do governo e os processos de toma-da de deciso: pelas lentes das disputas por demo-cratizao, a justia inclui uma dimenso poltica,enraizada na constituio poltica da sociedade eque a injustia correlata a representao distorcidaou a afonia poltica (FRASER, 2005a, p. 128-129).O problema dos limites, segundo a autora, refere-se necessidade de que uma teoria da justia, paraum mundo globalizado, deva se apresentar comotridimensional, incorporando a dimenso poltica darepresentao ao lado da dimenso econmica dadistribuio e da dimenso cultural do reconheci-mento.

    A dimenso poltica da justia referir-se-ia,ento, constituio da jurisdio do Estado e dasregras de deciso pelas quais ele estrutura a con-testao, sendo este o palco no qual as lutas pordistribuio e reconhecimento seriam realizadas.Segundo Fraser: Estabelecendo critrios depertencimento social e determinando quem contacomo membro, a dimenso poltica da justia es-pecifica o alcance das demais dimenses: diz quemest includo e quem est excludo do conjuntodaqueles intitulados a uma justa distribuio e re-

    conhecimento recproco. Estabelecendo as regrasde deciso, a dimenso poltica estabelece os pro-cedimentos para colocar e resolver as disputasem ambas as dimenses econmica e cultural: dizno somente quem pode fazer demandas porredistribuio e reconhecimento, mas tambmcomo tais demandas devem ser colocadas eadjudicadas (idem, p. 44).

    Para Fraser, agora preocupada com a questoda justia numa perspectiva global e transnacional(ou ps-vestifaliana), algumas questes passari-am a se colocar como centrais, quais sejam: qualseria a moldura adequada dentro da qual conside-rar as questes de justia de primeira ordem? Quemseriam os sujeitos relevantes titulares de uma dis-tribuio justa e de um reconhecimento recprocoem dado caso? E como deveramos determinarquem seria finalmente relevante? Em um mun-do globalizado, portanto, no somente o conte-do da justia, mas tambm a sua moldura estariaem disputa. Dizer que o poltico uma dimensoconceitualmente especfica da justia seria tam-bm dizer que ele pode dar margem a espciesconceitualmente especficas de injustias: ou seja,que haveria obstculos especificamente polticos paridade de participao, e estes, por sua vez,no seriam redutveis m-distribuio ou ao no-reconhecimento, e surgiriam da constituio pol-tica da sociedade.

    A dimenso poltica da justia referir-se-ia,portanto, representao questo definidora dopoltico para a autora , sendo que para alcanaras esperadas operaes da poltica da represen-tao seria preciso alcanar trs nveis: 1) con-testar a falsa representao poltica comum; 2)contestar ao mau enquadramento; e 3) colocarcomo uma meta da justia social a democratiza-o do processo de estabelecimento doenquadramento (frame-setting). Portanto, o ter-ceiro nvel de injustia referir-se-ia questo rela-tiva ao como deve-se operar na busca pela jus-tia social: a m representao meta-poltica, se-gundo a qual a ausncia de arenas democrticasnega maioria a chance de se engajar em termosde paridade nas tomadas de deciso sobre oquem, impediria muitos esforos para se supe-rar as injustias.

    Nesta fase das discusses, para Fraser, have-ria ento dois diferentes nveis de m-representa-o: 1) a falsa representao poltica comum: emque as regras de deciso negariam a alguns a

    7 Foi a partir do dilogo e confronto com outra tericapoltica feminista de flego, Iris Young (2009), que surgiua reflexo sobre a imposio arbitrria de apenas duascategorias focais para se conceber a justia social. SegundoYoung: [...] essa categorizao parece no deixar espaopara um terceiro aspecto, poltico, da realidade social, re-lativo s instituies e prticas do direito, da cidadania, daadministrao e da participao poltica (idem, p. 199).

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    chance de participar como pares (a questo cen-tral sendo a da representao intra-moldura e, maisespecificamente, a dos sistemas eleitorais que ne-gam injustamente a paridade participativa a umconjunto significativo de minorias ou daquelasregras ainda cegas em relao ao gnero que tam-bm funcionam de forma a negar paridade de par-ticipao poltica s mulheres; 2) o mauenquadramento (misframing): referir-se-ia ao as-pecto do poltico de delimitao das fronteiras. Ainjustia surgiria quando as fronteiras da comuni-dade so desenhadas de forma a excluir, de todo epor completo, algumas pessoas da chance de par-ticipar nas disputas autorizadas acerca da justia.E esta seria, em ltima instncia, o tipo de injusti-a definidora da era globalizada. Trata-se, aqui,de um aspecto da gramtica da justiafreqentemente negligenciado. O terceiro nvel deinjustia refere-se, portanto, questo do como:diz das falhas na institucionalizao da paridadede participao no nvel meta-poltico. a falsarepresentao metapoltica, segundo a qual a au-sncia de tais arenas democrticas correntementenegam maioria a chance de se engajar em ter-mos de paridade nas tomadas de deciso sobre oquem, alm de impedir tambm os esforos parase superar a injustia (mesmo aquelas experimen-tadas em outras dimenses). A justia como pari-

    FONTE: Held e Kaya apud Cypriano (2010).

    QUADRO 1 A TEORIA DA JUSTIA DEMOCRTICA PS-VESTIFALIANA DE NANCY FRASER

    dade de participao expressaria o carter ineren-temente reflexivo da justia democrtica no mun-do contemporneo, na medida em que esta seriauma noo de resultados que indicaria um princ-pio substantivo de justia pelo qual se pode avaliaros arranjos sociais [...] s so justos se permi-tem a todos os atores relevantes participar comopares na vida social (FRASER, 2005a, p. 59) eseria ainda uma noo de processo, pois indicariaum padro procedimental pelo qual se torna pos-svel avaliar a legitimidade democrtica das nor-mas: [...] so legtimas se podem garantir o as-sento de todos os envolvidos em um processojusto e aberto de deliberao, em que todos parti-cipam como pares (ibidem).

    Diante disso, com a mudana no enquadramentoterico, haveria uma nova proposta de modelos queacomodassem os processos polticos de tomadade deciso, principalmente por meio da deliberaodemocrtica, levando transformao da gramti-ca prpria no mbito das teorias da justia: em vezde teoria da justia social, usar-se-ia a idia de teo-ria da justia democrtica. Ento, ao adotar umaabordagem democrtica e crtica sobre a justia, omodelo terico tridimensional redistribuio, re-conhecimento e representao de Fraser confor-mar-se-ia em uma teoria da justia democrtica ps-vestfaliana (Quadro 1).

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    Dessa forma, v-se que a tematizao sobre ajustia social na obra de Fraser interpenetraria,cada vez mais, a discusso sobre democracia (eno se constituiria como excludente ou antagni-ca a esta) e, como ser possvel notar, tambm adimenso poltica do Estado, que, tambm segundoYoung (2000a), dar-se-ia sob o olhar da buscapor maior incluso poltica. Os dois elementos democracia e Estado comparecem de modo bemespecfico nas elaboraes recentes da autora.

    Em 2007, Fraser (2007b) advogou a tese deque a segunda onda do feminismo norte-america-no poderia ser dividida em trs fases: a dos anos1960, marcados pela efervescncia dos novosmovimentos sociais (instalando-se uma ampliaodo imaginrio feminista por meio da exposiopblica de aspectos da dominao masculina); afase relativa poltica de identidades (com aincorporao, a partir do arrefecimento tanto dovigor utpico da Nova Esquerda quanto dosinsights anti-economicistas, de um imaginrioculturalista que reinventa a poltica como reco-nhecimento); e a fase do feminismo transnaciona-lizado (que ocupou vrios espaos de articulaopoltica no contexto da globalizao). nessemesmo texto que a autora adverte que a segun-da fase teria sido especialmente desenvolvida pe-los feminismos da Amrica do Norte, e a terceira,pelos feminismos na Europa Ocidental.

    Em artigo mais recente Feminism,Capitalism and the Cunning of History (2009)

    novas problematizaes surgem, desta vez, relati-vas dinmica que envolve e articula de modo muitoespecfico o movimento feminista norte-america-no. Aps a profcua abordagem sobre a justia so-cial na contemporaneidade que, inclusive, construiude modo to positivo o percurso at aqui apresen-tado, Fraser retoma, desta vez de modo, em meuentender, extremamente empobrecedor, uma pers-pectiva sobre os movimentos feministas (basica-mente ancorada na experincia norte-americana)para articular suas relaes com o capitalismo tar-dio da contemporaneidade. O distanciamento crti-co da autora parece-me patente pelas escolhas fei-tas e que j estavam, em parte, anunciadas notexto de 2001 (FRASER, 2007b).

    Ponto crtico e limitante no artigo a espcie dereducionismo, a partir do Norte global, ao qualFraser submeteu a discusso dos feminismos nomundo, associando-os a parmetros e experinci-as exclusivas aos do movimento norte-americanoque, como sobejamente conhecido, opera por meiode um enquadramento exclusivamente liberal e ca-pitalista j to criticado, inclusive por Mohanty(2003). Parece demasiado limitador problematizara dinmica dos feminismos na contemporaneidade,partindo de sua necessria subjugao chave ca-pitalista liberal e a partir das referncias ao Norteglobalizado. Para a autora, ao menos neste texto, aagenda do movimento deslizaria do eixo histricodo capitalismo estatal (state-organized capitalism)para um capitalismo transnacional, ps-fordista eneoliberal (ver Quadro 2).

    QUADRO 2 DINMICA DA SEGUNDA ONDA DO FEMINISMO NOS ESTADOS UNIDOS, SEGUNDO FRASER

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    FONTE: A autora, a partir de Fraser (2009) e Cypriano (2010).

    A partir de tais consideraes, pode-se afir-mar que o enquadramento proposto no seriatraduzvel para as experincias feministas na Am-rica Latina (especialmente o Brasil) ou, ainda, paraoutros pases e regies do Sul global, mesmo quea autora reconhea o papel que vem sendo desen-volvido, por exemplo, pelos Fruns Sociais Mun-diais neste contexto. Fraser opera o efeito decondensar todo o perodo da dcada de 1970 atos dias atuais em uma nica onda (a segundaonda) feminista (ainda que a mesma contenhatrs fases), em que haveria ento uma agenda eum discurso confluindo com as demandas porredistribuio, reconhecimento e representao noprimeiro momento, e no segundo haveria a con-formao de um backlash (uma onda reversa),em que a agenda (atual), a partir da fragmentaodo discurso feminista, seria utilizada e resignificadapelo discurso neoliberal. O ponto a ser destacadoaqui que Fraser, ao se aproximar das discussessobre os modelos de capitalismo, opera, em suaprpria obra, um backlash: enviesa seu olhar paraos limites estritos das vicissitudes do Estado e docapitalismo no escopo estadunidense hegemnicoglobal.

    Nestes termos, parece-me evidente que os fe-minismos latino-americanos no podem ser redu-zidos a tal desenho e trajetria propostos. Con-forme sabemos, e veremos na ltima sesso des-se artigo, os feminismos latino-americanos tmsuas prprias vicissitudes e idiossincrasias hist-ricas e no foram (ou so) utilizados ou recruta-dos (no por inteiro) pelas estratgias de cunhoneoliberal, pois, conforme sabido, a fora doSul global surgiu exatamente a partir da: da suana negao, sua reao e oposio aos avanos doneoliberalismo. Parte do feminismo latino-ameri-cano pode, sim, ter sido vtima de tal efeito per-verso, porm parte significativa no e a ela queirei me reportar para demonstrar a contribuiono sentido, justamente, do desmascaramento dodiscurso generificado proposto peloneoliberalismo, mostrando tambm aos feminis-mos do Norte o rumo equivocado em que estesse encontram. Todavia, antes de estabelecermosos patamares terico-conceituais desta crtica,remonto contribuio indispensvel de ChandraT. Mohanty, uma das pioneiras na cida crtica obliterada perspectivao terico-feminista a par-tir do Norte global.

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    III. C.T. MOHANTY: UMA VOZ DISSONANTEDO SUL PARA O NORTE GLOBAL

    Mohanty (1984), em um artigo que j se tor-nou clebre8, Under Western Eyes: FeministScholarship and Colonial Discourses, procurouidentificar nos textos de feministas ocidentais aqui-lo que ela definiu como a produo da mulherdo Terceiro Mundo como um sujeito monoltico(MOHANTY, 1984, p. 333), a partir da constru-o crtica de trs princpios norteadores: 1) aafirmao de que as mulheres constituem-se emum grupo coeso e homogneo, com interesses edesejos idnticos; 2) o uso acrtico demetodologias particulares de anlise que procu-ram provar a existncia desta universalidade ede sua correlata validade para os estudos de dife-rentes pases (especialmente tendo-se como refe-rncia a permanncia da dominao patriarcal eda opresso das mulheres como um fenmenoglobal); 3) esses dois aspectos anteriores, por ge-rarem a noo homognea de opresso das mu-lheres como um nico grupo, definiriam, por con-seqncia, uma imagem ou representao espec-fica das mulheres do Terceiro Mundo (aqui esta-ria ainda em jogo uma construo de relaes defora em que a definio hegemnica de poder reduzida a jogos binrios de estruturas entre quempossui poder homens e aqueles que no o pos-suem as mulheres, especialmente aquelas doTerceiro Mundo)9. Sua proposta, inicialmente vi-gorosa e original, teve repercusses imediatas nomundo acadmico, j que, provocativamente, aobra localizava o feminismo acadmico dentro docontexto global de dominao poltica e econmi-ca do Primeiro Mundo.

    Com o artigo e a crtica, a autora procurouevidenciar modos de apropriao e de codificaode conhecimentos acadmicos sobre as mulheresno Terceiro Mundo, forjados a partir de categori-as analticas desenvolvidas exclusivamente pelas

    tericas anglo-saxs e europias. No mesmo arti-go, h a insistncia da autora em reforar a ne-cessidade (j naquele momento) da formao ouconstruo de estratgias de coalizo entre as di-menses de classe, raa ou cor e nacionalidade naconstruo de tradies acadmicas feministascontra-hegemnicas, que estariam em contrapontocom as propostas (monolticas) ocidentais. A au-tora, ao considerar as prticas tradicionalmenteacadmicas (o ler e o escrever, sejam crticos outextuais) como inscritas em relaes polticas, do devido destaque ao como as teorias feminis-tas ocidentais estariam construindo uma represen-tao distorcida, estvel, anistrica e reducionistaa respeito das mulheres e dos feminismos do Ter-ceiro Mundo como: sexualmente limitadas, igno-rantes, pobres, no-escolarizadas, tradicionais econservadoras, voltadas essencialmente para odomstico e a famlia, dependentes e vitimizadaspelo sistema scio-econmico etc.

    A denncia de Mohanty situa-se, justamente,na necessidade de identificar nessas estratgias,que aparentemente seriam apenas de enunciao,como os feminismos ocidentais estariam se apro-priando e efetivamente colonizando (portanto,oprimindo ou suprimindo), as complexidades fun-damentais e os conflitos que seriam inerentes eque marcam a vida das mulheres de classes, ra-as, religies, culturas e castas to diferentes, emprol de uma viso binria e reducionista10, ealocando-as invariavelmente na categoria de asoutras. J o convite que ela nos faz o de sepensar como o feminismo acadmico ocidental(assim como outros tipos de saberes) deveria(m)enfrentar o desafio de se situar e de examinar opapel efetivo que tem desempenhado no contextoeconmico e poltico global. Nas palavras da au-tora: Desde que as discusses dos vrios temasque eu identifiquei anteriormente (por exemplo, oparentesco, educao, religio etc.) so conduzi-dos no contexto do relativo subdesenvolvimen-to do Terceiro Mundo (que nada menos do queinjustificadamente o confuso desenvolvimento comum caminho separado tomado pelo ocidente emseu desenvolvimento, bem como ignorando a

    8 Mohanty chega mesmo a afirmar: Under Western Eyesno foi apenas a minha primeira publicao no mbito dosestudos feministas, permanece sendo o texto que marcoua minha presena na comunidade feminista internacional(MOHANTY, 2003, p. 221).9 Aqui a autora, de modo perspicaz, coloca-se a bviaquesto: O que acontece quando a assero as mulherescomo um grupo oprimido est situada no contexto dosescritos feministas que as tericas ocidentais elaboram so-bre as mulheres do terceiro mundo? aqui que localizo otrao colonialista (MOHANTY, 1984, p. 351).

    10 Est claro que, na construo destas homogeneizaes,as caractersticas de contraponto que identificam e qualifi-cam as mulheres ocidentais, por oposio, seriam: mulhe-res escolarizadas, modernas, com controle sobre seus pr-prios corpos e sexualidade e liberdade e autonomia paratomar as prprias decises.

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    direcionalidade da relao de poder primeiro-ter-ceiro mundo), as mulheres do terceiro mundo comoum grupo ou categoria so automaticamente e ne-cessariamente definidas como: religiosas (leia-seno progressista), orientadas para a famlia (leia-se tradicional), menores legais (leia-se elas-so-ainda-no-conscientes-de-seus-direitos), analfabe-tas (leia-se ignorantes), domsticas (leia-se atra-sadas) e, algumas vezes, revolucionrias ( ler oseu pas-est-em-um-estado-de-guerra-onde-h-que-lutar!). Isso como a diferena de terceiromundo produzida (MOHANTY, 1984, p. 352).

    Portanto, finalizando o artigo, Mohanty defen-de o ponto de vista de que os estudos trans ouinterculturais do e sobre o feminismo deveriam es-tar atentos, a um s tempo, tanto para as dimen-ses micropolticas de contextualizao, de subje-tividades e de lutas especficas, quanto aos con-textos macropolticos dos sistemas polticos e eco-nmicos globais: anlises particulares, singularesdo Terceiro Mundo deveriam ser ou estar ligadas aanlises de escopo mais ampliado, aspirando, as-sim, possibilidade da construo de estratgiasde solidariedade feministas para alm das frontei-ras (aspecto este que, na reviso realizada em 2003,Mohanty insistiu em destacar11) Ocidente/Orien-te, Leste/Oeste. Este artigo literalmente caiu comouma bomba nos estudos acadmicos feministasnorte-americanos, tendo recebido inmeras crti-cas de todos os matizes (WALBY, 2000). A prpriaMohanty admite que o artigo angariou grande no-toriedade, pois ela foi (des)reconhecida por umconjunto variado de atribuies que oscilaram des-de a atribuio da sua contribuio como sendo ade uma filha desobediente do feminismo brancoat a de mentora intelectual das acadmicas doTerceiro Mundo/imigrantes.

    O fato que a discusso vivaz e eloquente aquirapidamente resumida passa a ser justificada12,ento e posteriormente, pela prpria autora em um

    segundo texto, Under Western Eyes Revisted:Feminist Solidarity through Anticapitalist Strugle(2003). Trata-se de um captulo (o captulo 19 deum livro intitulado, sintomaticamente, de Feminsimwithout Borders13) que retoma os debates e re-constri os principais elementos a serem reco-nhecidos como ainda relevantes para a obra daautora, tomando como ponto de partida este mo-mento inaugural, para coloc-lo em perspectiva.Neste segundo texto, Mohanty explicitamente re-conhece, por um lado, a recente direcionalidadeconservadora adotada nos ltimos tempos pelosmovimentos feministas norte-americanos, reco-nhecendo, inclusive, que parte da luta radical eanti-racista, teria passado a ocorrer fora do esco-po destes movimentos; e, por outro, a virada ps-moderna e ps-colonialista, tendo a sua con-tribuio sido alinhada no segundo tipo. A autoradestaca, ento, a inteno do texto original: Euno escrevi Under Western Eyes como uma pro-va da impossibilidade do conhecimentotranscultural igualitrio e no colonizador, nem eudefino feminismo Ocidental e do Terceiro Mun-do de tal forma oposicional em que no haveria apossibilidade de solidariedade entre o feminismoOcidental e o do Terceiro Mundo. No entanto, issofoi como muitas vezes o ensaio foi lido e utiliza-do. Eu queria saber por que uma oposio toacentuada se desenvolveu desta forma. Talvez omapeamento intelectual e institucional em que euescrevi na poca e as mudanas que tm afetadoa sua leitura, desde ento, esclareceriam as inten-es e as reivindicaes do ensaio (MOHANTY,2003, p. 224).

    Mohanty justifica-se pela crtica cida apre-sentada no primeiro texto enfatizando que ela es-taria acompanhando crticas do humanismoeurocntrico e dirigindo especialmente as suasconsideraes contra as falsas afirmaes mas-culinas e universalizantes (false universalizingand masculinist assumptions). Ou seja, a inten-o original teria sido a de afirmar a importnciade dimenses locais e localizadas que estaria defi-nindo a categoria do universal, inclusive e tam-bm para a categoria do feminismo. Sua contri-buio teria sido a de chamar a ateno para estaforma enviesada de universalizao com vistas a

    11 Nesse sentido cabe a citao literal do texto de 1984:Coligaes estratgicas que constroem identidades polti-cas em oposio para elas se basearem na generalizao,mas a anlise dessas identidades de grupo no podem serbaseadas em categorias universalistas e anistricas(MOHANTY, 1984, p. 349).12 pgina 225, a autora reconhece: Basta dizer, noentanto, que no tenho arrependimentos e s profundasatisfao em ter escrito Under Western Eyes(MOHANTY, 2003, p. 225).

    13 Traduo livre: O Feminismo sem Fronteiras.

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    recuperar, contudo, a possibilidade da construode uma solidariedade bsica feministatransversaliza-dora de fronteiras e no-coloniza-dora (a nonco-lonizing feminist solidarity acrossborders), em que seriam as diferenas compar-tilhadas entre distintas perspectivas do feminis-mo do Terceiro e do Primeiro Mundo as respon-sveis por solidificar tal base solidria. Ou seja: aautora teria a inteno, no to bem delineada noprimeiro ensaio, de dar relevncia e valorizaocrticas das diferenas. Seu objetivo seria o deidentificar, nas diferenas, as possveis conexese os traos de compartilhamento que tornassempossvel a construo de coalizes e de solidarie-dade transversalizadoras.

    Reconhecendo o conjunto de enormes trans-formaes experimentadas pelos Estados Unidos,e tambm pelo mundo, ao longo do perodo demais de 16 anos que separam os dois ensaios,Mohanty, esclarecedoramente, revela: Ociden-tal e Terceiro Mundo explicam muito menos queas categorias de Norte-Sul ou Um Tero-DoisTeros (MOHANTY, 2003, p. 226)14. Aqui aautora no se detm, evidentemente, apenas nascategorias semnticas, mas nos diferenciados sen-tidos que as mesmas podem evidenciar. O queestaria, portanto, em disputa nas discusses pol-ticas contemporneas seria, com a presena des-te jogo terminolgico que s faz evidenciar a con-creta inadequao das categorias, a necessidadeda construo de outras que possam elucidar, porsua vez, a fluidez e o poder das foras globalizantesque situariam de modo diferenciado as comuni-dades de pessoas (como maiorias ou minoriassociais) de modo muito disparatado, e desta for-ma estariam invisibilizando categorizaes quepudessem ter poder de agncia, de transformaopara os grupos diferenciados nesse contextotransnacionalizado. Mohanty, neste segundo tex-to, localiza-se pessoalmente como fazendo partedos Dois Teros dentro do Um Tero, usu-

    fruindo os privilgios desta posio, mas incor-porando a perspectiva e a viso de solidariedadecom as comunidades em luta nos Dois Teros.

    Reconhecendo um movimento, inclusive nor-te-americano, de maturidade das lutas feministastransnacionais, a autora tambm aponta para al-gumas transformaes de uma virada direitano contexto (que acompanharia a hegemonia glo-bal capitalista, a privatizao, o crescimento dodio religioso, tnico e racial) que julga serem re-levantes nas ltimas duas dcadas e que estariamdesafiando as lutas feministas em todo o globo: 1)o declnio das condies de autogoverno em al-gumas naes pobres (acompanhada doconcomitante crescimento em significncia de al-gumas instituies e corporaes capitalistastransnacionais como a Organizao Internacionaldo Comrcio e a Unio Europia); 2) as condi-es de hegemonia do neoliberalismo e a naturali-zao dos valores capitalistas, influenciando nasdecises mais banais da vida cotidiana das pesso-as; 3) o crescimento dos fundamentalismos reli-giosos e de sua retrica machista e racista; e 5) asdesiguais construes de vias de informao(information highway) e a militarizao emasculinizao globais acompanhadas do fortecrescimento nos complexos industriais prisionaisnos Estados Unidos e em outros pases, opondocomunidades de mulheres e de homens.

    Para Mohanty, uma sada possvel seria, jus-tamente, o reforo de uma poltica feminista transou intercultural (politics of feminist cross-cutluralscholarship) que se esforasse por construir asconexes entre o feminismo acadmico e as or-ganizaes polticas anticapitalistas. Este esforoprecisaria continuar baseado na compreenso daexistncia de uma ligao visceral entre as dimen-ses micropolticas da vida cotidiana com aque-las do contexto macropolitico e econmico glo-bais, com vistas construo coletiva de umaprtica feminista transnacional e anticapitalista,constituda, justamente, a partir de organizaespolticas anticapitalistas baseadas desta vez nasolidariedade feminista. Ao feminismo acadmi-co, por sua vez, caberia a construo de uma cr-tica feminista transnacional que estaria fundadana ncora analtica de se tentar compreender avida das comunidades de mulheres mais margina-lizadas pelo mundo, com vistas a se construir, apartir da, o paradigma mais inclusivo possvelsobre a justia social. O ponto de partida epistemo-

    14 Aqui as designaes Norte-Sul, como categorias po-lticas, e no geogrficas, evidenciariam as naes e as co-munidades afluentes e privilegiadas do mundotransnacionalizado por oposio quelas que seriam eco-nmica e politicamente marginalizadas. J as categorias UmTero-Dois Teros (ESTEVA & PRAKASH, 1998) esta-riam referidas s maiorias e minorias sociais, tendo comoponto de partida as diferenciadas condies de qualidadede vida, seja dentro ou fora das fronteiras nacionais dospases.

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    lgico de Mohanty a sua crena na ligao (queela julga ser causal) entre as condies de locali-zao e de experincias marginais e a habilidadedos agentes humanos em explicar e analisar tra-os da sociedade capitalista (recuperando, eviden-temente, a matriz metodolgica do materialismohistrico): a perspectiva particular dos pobresindgenas e das mulheres do Terceiro Mundo/Sulpode nos oferecer a viso mais inclusiva possveldo poder sistmico global (MOHANTY, 2003, p.232).

    A proposta de Mohanty, portanto, a da cons-truo de um feminismo sem fronteiras que te-nha como ponto de partida os corpos e as vidasdas mulheres e meninas do Terceiro Mundo/Sul(o lcus privilegiado onde o capitalismo globalcostuma inscrever suas leis e seu roteiro), naconstruo da conscientizao como o outro ra-dical da globalizao (Dirlik apud MOHANTY,2003). Sua proposta a da aproximao do femi-nismo acadmico com estas realidades globaisprofundamente atravessadas pelo gnero, classee raa, de modo no repetio, dentro do Ter-ceiro Mundo/Sul, das interpretaes de sentido edas perspectivas ocidentais: a construo coletivade um projeto feminista localizado e contextualiza-do em sua forma anticapitalista, antiimperialista,que valorize as formas cotidianas de resistnciacoletiva das mulheres ao redor do mundo. Da,Mohanty se prope a um deslocamento de foco:do olhar ocidentalizado (especialmente aquelesobre os efeitos colonizadores do feminismo oci-dental acadmico) para um olhar de dentro dosespaos hegemnicos do mundo do Um Tero,que necessitariam da reconstruo de um projetode descolonizao.

    Mohanty reconhece que, devido especificidade contextual das mulheres de TerceiroMundo-Sul, o fato delas j estarem envolvidas naslutas antiimperialistas e anticapitalistas desde sem-pre, evidencia que elas j possuiriam a viso maisampliada das lutas anticolonialistas e antiracistasno mundo contemporneo. Ela sugere, ento, aconstruo de estratgias para uma pedagogiaantiglobalizao baseada em alguns princpios,como a internacionalizao-globalizao doscurricula no mbito dos estudos de gnero e demulheres (nos Estados Unidos). Esta estratgiaseria baseada em formas de teorizao relacionais,simultaneamente histricas-globais e singulares-locais, de modo a determinar como e o quse pode aprender quando cruzamos as fronteiras

    culturais e de experincias (tal procedimento en-volveria: estudos feministas comparativos, ummodelo de solidariedade feminista na busca dasdiferenas que uniriam as mulheres) e propetambm esforos acadmicos de compreenso daslutas antiracistas e antimachistas e dos ativismosantiglobalizao. O foco nesta ltima estratgiaresgata ento o esforo de reteorizao de aspec-tos generificados e racializados que construramo Estado, o mercado e a prpria sociedade civilfocalizando as experincias imprevistas de resis-tncia aos efeitos devastadores da reestruturaoglobal sobre as mulheres e as raas ou etnias.

    Em um artigo de 2006 US Empire and theProject of Womens Studies: Stories of citizenship,complicity and dissent , Mohanty mobiliza ar-gumentos para uma retomada da mobilizao fe-minista, agora contra os avanos da militarizaonorte-americana aps as invases do Afeganistoe do Iraque. Ela identifica no comportamento b-lico um conjunto no banal de hierarquias de g-nero e raa e xenofobia nacionalista que mobili-zariam as linguagens do imprio e do imperialis-mo para consolidar um regime militarizado tantointerna quanto externamente aos limites territoriaisnorte-americanos (MOHANTY, 2006, p. 9). Acrtica passa a ser endereada ao fato dos estudosacadmicos americanos suportarem conexesesprias entre conhecimento cientfico, podercorporativo e lucro capitalista. A autora claramentedenuncia a experincia de um backlash com ocrescimento exacerbado do conservadorismo,neoliberalismo e hipernacionalismo na academianorte-americana, a partir da demonizao domulticulturalismo e do feminismo nos anos 80 pelaNova Direita, em nome do politicamente correto(idem, p. 14). Preocupada em identificar uma re-lao possvel de ser estabelecida entre os estu-dos feministas e as categorias de nao e cidada-nia, Mohanty sintetiza: Se os Estudos de Mulhe-res nos anos 1970 chamavam a ateno para acidadania euro-americana, os dos anos 1980 mo-veram-se na direo de uma compreensomutiracial e sexualizada de cidadania e nos anos1990 deram ateno s construes nacionalistase heterossexistas de cidadania. Embora muitas ve-zes de maneira problemtica, em 2006, o projetode cidadania permanece contestado pelos Estu-dos Feministas, sobretudo se formos tentar nosver, mais uma vez, como fazendo parte no e domundo, a partir de uma perspectiva no-imperia-lista (idem, p. 17).

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    Mohanty vai insistir, ento, na necessidade dese teorizar o lugar de imigrantes, pobres, mulhe-res de cor na narrativa dos estudos feministas sobrea cidadania, desafiando a narrativa de resgate dasfeministas privilegiadas norte-americanas, ondequer que esta aparea, como um aspecto crucialda prxis feminista de solidariedade neste momen-to (idem, p. 14). Sendo a favor de um projetodescolonizado e emancipatrio de cidadania queestaria baseado na criao de culturas democrti-cas do dissenso em que prevaleam as lentes anti-racistas, anticapitalistas e no heteronormativas(idem, p. 18), a autora conclui o artigo afirmandoque a anlise desta forma contestada de cidadaniapoderia facilitar as possibilidades das solidarie-dades transnacionais alm das fronteiras nos es-paos acadmicos. Nas suas ultimas palavras:Claramente, estas solidariedades fazem parte dapraxis transnacional feminista ainda que estasno estejam centralizadas nos contextos dos fe-minismos acadmicos norte-americanos(ibidem). Vejamos, ento, com o que as experin-cias feministas brasileiras e latino-americanas po-deriam contribuir nesta construo.

    IV. A PROPOSTA DE UMA TEORIA POLTICAFEMINISTA A PARTIR DO SUL COM BASENA QUARTA ONDA DO FEMINISMOBRASILEIRO

    Tomo por referncia e ponto de partida aqui aconstatao da presena do momento ps-vestifaliano j descrito (FRASER, 2005a; 2005b;2008; 2009) nas relaes poltico-sociais, ou mes-mo na investigao de processos transnacionaisexperimentados pela e por meio da globalizao(MOHANTY, 2003; YOUNG, 2007). J faz partede um determinado consenso entre as distintasteorias feministas o reconhecimento de uma mol-dura transnacional de flego para os movimentosfeministas ao redor do mundo. Parto tambm dopressuposto de urgncia de uma perspectiva soli-dria feminista sem fronteiras, conforme afir-ma Mohanty (2003; 2006), que, por sua vez, pas-se a valorizar diferentes escalas de interveno:os sub-nacionalismo, os regionalismos e oslocalismos, s para citar algumas. Seja qual for amelhor forma de conceitualizao para tais pro-cessos correntes, deve-se aqui focar uma pro-posta alternativa de desenho cartogrfico e geo-mtrico que terico e orientado privilegiadamentepelo vis feminista: a isto me dedicarei nesta se-o final.

    Assim, pensando a partir das especificidadesda experincia latino-americana (sobre a qual, in-felizmente, no h como proceder a um maiordetalhamento, a exemplo do que farei para o Bra-sil) e, em especfico, das experincias do femi-nismo brasileiro, seria importante recuperar o quea literatura j cunhou como ondas do feminis-mo. At o presente momento, foram feitas, noBrasil e na Amrica Latina, vrias tentativas dereconstituio da histria destes movimentos, desuas agendas e contribuies. Entre estes, cabemencionar, para o Brasil: Saffioti (1976); Blay(1984); Simes (1985); Alvarez (1988; 1990;2000); Schumaher e Vargas (1993); Teles (1993);Pinto (1994; 2003); Saffioti e Muoz-Vargas(1994); Santos e Moraes (1995); Soares (1998);Farah (2004); Costa (2005) e Brabo (2006). Paraa Amrica Latina, lembraria: Alvarez (2000; 2009a;2009b), Vargas Valente (2002), Alvarez et alii(2003), Gusmn (2001) e Ribeiro (2006).

    Todas estas autoras tm apontado como umimportante marco do feminismo os anos 1970,tendo-se em vista as enormes limitaes polticasdaquele momento, que foi o da transio de umregime autoritrio militar para o regime democr-tico. As autoras so unnimes em ressaltar a ca-pacidade demonstrada pelas mulheres brasileirasde organizao e manifestao poltica com o in-tuito de promover mudanas.

    Ao contrrio de um movimento bem organiza-do, no Brasil no podemos caracterizar perodosto distintamente claros de movimentao de mu-lheres como sendo exclusivamente feministas.Porm necessrio destacar que as vozes femi-nistas aqui sempre surgiram diante das muitasestruturas opressoras e conservadoras, mesmoprecocemente, desde o sculo XVII e XVIII. Ape-sar da existncia de forte cultura patriarcal e deuma sociedade predominantemente masculina,sobretudo em termos polticos, as vozes feminis-tas brasileiras aparece(ra)m dos lugares menosesperados e em momentos ainda menos propci-os. Essas vozes chamaram a ateno de outrasmulheres e abriram o caminho para a entrada dealgumas delas na arena pblica e, portando, paraas suas prprias demandas. Pinto (2003) sinteti-zou a existncia dos trs grandes momentos dofeminismo brasileiro apresentados na introduodeste artigo: o primeiro expresso por meio da lutapelo voto no mbito do movimento sufragista um feminismo bem comportado ; o segundo

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    experimentado durante o clima poltico do regimemilitar no incio dos anos 197015; e a terceira fase uma espcie de feminismo difuso16: este mo-mento teria se caracterizado por forte dissociaoentre o pensamento feminista e o movimento e aprofissionalizao do movimento por meio doaparecimento de um grande nmero de ONGsvoltadas para a questo das mulheres (PINTO,2003, p. 91). Entendo que h hodiernamente umaforte tendncia dos feminismos brasileiros e lati-no-americanos para uma renovada retomada eaproximao entre pensamento e movimento fe-ministas.

    Vou acrescentar s anlises j estabelecidas apossibilidade de percepo, ento, de uma quar-ta fase (mais recente) do feminismo brasileiro elatino-americano que, por sua vez, poderia ser de-monstrada por meio: 1) da institucionalizao dasdemandas das mulheres e do feminismo, por in-termdio da entrada (parcial) delas no mbito doPoder Executivo e Legislativo destes pases; 2)da criao de rgos executivos de gesto de po-lticas pblicas especialmente no mbito federal(mas tambm, no Brasil, de amplitude estadual emunicipal); 3) da consolidao no processo deinstitucionalizao das ONGs e das redes femi-nistas e, em especial, sob a influncia e a capaci-dade de articulao e financiamento do feminis-mo transnacional e da agenda internacional de ins-tituies globais e regionais (United NationsDevelopment Fund for Women, United NationsChildrens Fund, Organizao Internacional doTrabalho, Programa das Naes Unidas para oDesenvolvimento, Comit de Amrica Latina y elCaribe para la Defensa de los Derechos de la Mujer,Comisso Econmica para a Amrica Latina e o

    Caribe, entre outras) referidas aos direitos dasmulheres; 4) uma nova moldura terica (frame)para a atuao do feminismo: trans ou ps-nacio-nal, em que so identificadas uma luta porradicalizao anticapitalista e uma luta radicalizadapelo encontro de feminismos e outros movimen-tos sociais no mbito das articulaes globais depases na moldura Sul-Sul. Importa destacar queesta uma proposta pessoal de acrscimo de novaonda periodizao j consensuada de trs mo-mentos dos feminismos no Brasil.

    Tambm afirmo aqui e retomo a dinmica dosmomentos capitalistas, conforme enunciado pormeio das ondas anteriormente descritas pelo olharde Fraser. A relativa inovao e apropriao aqui,contudo, de minha inteira responsabilidade. Nes-ta direo, a proposta identificaria a segunda ondarelativa ao capitalismo estatal com a onda do per-odo neoliberal referida pela autora e que trataria,ento, do perodo da onguizao (ALVAREZ,2000) e do feminismo difuso e bem comportadorelatado por Pinto. A postulao de uma quartaonda referir-se-ia, por sua vez, sugesto acres-centada teoricamente por Nancy Fraser, quandoela menciona um perodo ps-neoliberal um fu-turo aberto, para Fraser. O quadro abaixo, retira-do das consideraes elaboradas pela autora, foiacrescido de elementos a partir do que ela conside-rou importante. Os acrscimos so, portanto, deminha inteira responsabilidade e serviriam para tor-nar menos limitadas as consideraes feitas porFraser. Tudo o que est em itlico foi efetivamenteacrescentado por mim.

    Destaco especialmente a necessidade do acrs-cimo de outra forma de classificao para a se-gunda onda dos feminismos latino-americanos ebrasileiro (aquela referida s especificidades daexperincia do Sul global na Amrica Latina), queteria sido experimentada ao longo dos anos 1960e 1970, na regio, e que se referiu luta durssimacontra o capitalismo estatista ditatorial militarizadoda Amrica Latina. A fase seguinte, correspon-dente aos anos 1980 e 1990, alm da nfase nasreformas promovidas pelo Estado neoliberal e suaagenda de constrangimentos, com os respectivosimpactos promovidos no movimento feminista(que levaram os movimentos a se especializa-rem, enquanto o pensamento feminista genera-lizava-se (PINTO, 2003, p. 91)), traz tambm aurgncia das prticas e discursos transnacionali-zados e em rede como uma forma de resistncia etambm como forma propositiva de novo modelo

    15 Esta tambm uma das maiores caractersticas distin-tivas (e no banal) dos feminismos latino-americanos, emrelao aos femininos de matriz europia ou anglo-sax: oseu enraizamento nas lutas contra os estados militarizadose ditatoriais.16 Segundo Schumaher (2005): Em 1982, a sociedadebrasileira vivia um momento importante na poltica, com aconvocao de eleies diretas para governadores. O femi-nismo contava com aliados em alguns partidos polticos, eo movimento reinaugurou sua aproximao com o Estado.Um grupo de feministas paulistas props a criao de umrgo especfico, responsvel pela defesa da cidadania fe-minina e a implementao de polticas pblicas para asmulheres na estrutura do Estado. Nasciam assim, em 1993,os dois primeiros conselhos estaduais do Brasil, em SoPaulo e Minas Gerais (idem, p. 2).

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    de desenvolvimento para a regio um modeloaltermundialista17 (emblemtico no lema maior doFrum Social Mundial: Um outro mundo poss-vel). Entendo, pois, que a quarta onda a que merefiro inicia sua configurao a partir desta terceirafase, indo na direo de consolidao a partir dosanos 2000, reforando o carter anti ou ps-neoliberal promovido pelos movimentos. Entendoque inaugura aqui um movimento de profunda re-

    organizao do Estado que passa a se ocupar, naregio, de modo mais efetivo, com perspectivas,desta vez multidimensio-nais, da justia social (eno apenas no eixo da redistribuio econmica). Aquarta onda traz tambm os desafios dahorizontalizao dos movimentos feministas e daconstruo coletiva do dilogo intercultural e inter-movimentos. Volto a estes pontos mais adiante.

    17 A Marcha Mundial de Mulheres (MMM) uma dasinstituies recentes do feminismo transnacional que plei-teia a legitimidade organizacional de mulheres no sentidode se alinharem a uma agenda radical anti-capitalista e anti-patriarcal, fazendo com que uma rede de seis mil grupos de159 pases e territrios faam parte deste movimento. Apartir de tal caso, possvel estabelecer certos padres do

    que hoje conhecido como feminismo transnacional: ummovimento atento s interseces entre nacionalidade, raa,gnero, sexualidade e explorao econmica numa escalamundial, em decorrncia principalmente do surgimento docapitalismo global; um movimento auto-intituladoaltermundialista, por sua luta de cunho internacional con-tra o neoliberalismo e pela busca por maior justia social.

    QUADRO 3 DINMICA DAS ONDAS DO FEMINISMO (NO BRASIL E NA AMRICA LATINA) EM SUAARTICULAO COM O FEMINISMO DOS ESTADOS UNIDOS

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    FONTE: Elaborao da autora, a partir de Alvarez (2000) e Fraser (2009).

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    Infelizmente, no arcabouo apenas deste arti-go, seria impossvel operar um detalhamento dasconsideraes complexas que esto envolvidasneste quadro referencial. Esta ser tarefa neces-sria para esforos terico-analticos posteriores.Com a apresentao, ainda que no to detalhada,do quadro acima, apenas indico como me pareceser frtil a aposta numa nova onda feministaque venha articulada aos desafios contemporne-os do capitalismo, mas evitando-se o tratamentoempobrecedor e reducionista destas fases por umachave excessivamente norte-americana. Acredi-to, ento, que o futuro para a noo dos desdo-bramentos feministas que se exercitaria no mbi-to norte-americano j seria, pois, o atual presentelatino-americano e brasileiro (assim como acredi-to que os desafios do Estado militarizado, que osfeminismos norte-americanos esto atualmentecombatendo, j foram enfrentados por ns), pois,a partir do governo Lula, o Brasil (bem) aos pou-cos vem sendo reestruturado como um Estadops-neoliberal18, com a incluso de parte dos mo-vimentos sociais (ainda que alguns movimentosainda se mantenham autnomos), inclusive osfeministas.

    O que acrescentamos ao esquema propostopor Fraser refere-se estritamente a uma crtica hiptese defendida pela autora: no concordo quea difuso das idias e atitudes culturais do femi-nismo tenha levado, exclusivamente, a uma trans-formao da sociedade capitalista na direo opos-ta s vises feministas de sociedade justa(FRASER, 2009, p. 99). A partir do Sul global, osfeminismos tm reconstrudo (e por completo)sua relao (sempre tensa e disputada) com oEstado e com o regime capitalista de produo.

    Tm sido muitas as mudanas institucionais,econmicas e culturais nos pases latino-ameri-canos e em especial no Brasil nos ltimos anos.Muitas delas so resultados inequvocos da parti-cipao feminina e feminista por meio dos movi-mentos sociais e polticos nos quais se engajaramno momento da transio do regime militar (ao

    longo dos anos 1960 e 1970) para a democratiza-o do pas (nos anos 1980). So resultados tam-bm de processos de institucionalizao de de-mandas sociais combinados ao esforo de execu-o de outros formatos e desenhos de polticaspblicas. Conceituamos tais tendncias em cursocomo uma quarta onda do feminismo no pas,que poderia, por sua vez, ser definida como umprocesso de democratizao de gnero no mbi-to das instituies e da (re)formulao de polti-cas pblicas, assim como de revitalizao da agen-da clssica do feminismo na busca por direitos,desta vez a partir dos desafios colocados pelomovimento contemporneo de transnacionalizaodo feminismo, de globalizao das agendas locaisdas mulheres e de fermentao das estratgiasfeministas horizontais.

    Ao levantarmos os elementos centrais da agen-da poltica das mulheres brasileiras nos anos 1970e 1980, e ao compar-la depois com a pauta pol-tica dos anos 1990 em diante, recuperamos tam-bm o percurso de difuso assimtrica e desigualdas bandeiras do feminismo no campo dos valo-res e das percepes nas relaes cotidianas degnero at a sua influncia mais efetiva na trans-formao das reivindicaes histricas em plata-formas de fato, de interveno no/do Estado. ParaAlvarez (2000, p. 385-386), teria havido ao longodos anos 1990 um descentramento saudvel dofeminismo latino-americano, transformando-seeste em um campo de ao expansivo,policntrico e heterogneo que abarca uma vastavariedade de arenas culturais, sociais e polticas.Ainda, segundo Farah (2004), desde o final dosanos 1970, tambm ocorreram transformaessignificativas nas relaes entre Estado e socieda-de no Brasil, especialmente a partir de dois gran-des condicionantes: o processo da democrati-zao e o de crise fiscal do Estado. Segundo aautora: Ao lado da mudana de regime, aps maisde 20 anos de regime ditatorial, os anos 1980 fo-ram tambm marcados pela crise do nacionaldesenvolvimentismo, de origens mais antigas, as-sim como por mudanas nas polticas pblicas,estabelecidas ao longo das dcadas anteriores(FARAH, 2004, p. 49).

    O que mais se destacou na pauta das reivindi-caes das muitas organizaes feministas e demulheres naquele momento foram, ento, as ne-cessidades e premncias justamente da vida coti-diana, bem como aquelas urgncias nascidas dasutopias de esquerda que, com muita certeza, pau-

    18 De acordo com recentes anlises de conjuntura sobre ogoverno Lula, este poderia ser considerado como um go-verno ps-neoliberal e pragmtico. Para Emir Sader (2009),a Amrica Latina surgiu como o lugar onde se possvelcontestar a reinante poltica neoliberal. No Brasil, as elei-es de Lula seriam um indcio para uma virada ps-neoliberal.

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    taram a agenda que surgia. Parcelas significativasdos movimentos de mulheres dos anos 1970 emdiante, no Brasil, nasceram dos grupos de vizi-nhana nas periferias dos grandes centros urba-nos. As mulheres dos bairros populares passarama construir sua dinmica poltica prpria: aindaque basicamente permeadas pelos papis social-mente designados de esposas e mes, elascumpriram o importante papel poltico de organi-zar parte significativa dos primeiros protestoscontra o regime militar (SIMES, 1985).

    Soares (1998, p. 36) vai nos chamar a atenopara o fato de que, para alm do feminismo em si,a denominao movimento de mulheres abar-cava um conjunto mais ampliado de grupos femi-ninos que lutavam por temas que se relacionavamao universo simblico e material de referncia dasmulheres, nem todos declaradamente feministas(a exemplo dos grupos vinculados s Comunida-des Eclesiais de Base da Igreja Catlica). Foi emmomento especfico do pas, quando parte subs-tantiva dos grupos de esquerda se encontravacombalido e enfraquecido, que a reao polticapartiu do lugar inesperado os novos movimen-tos sociais e as organizaes polticas lideradaspor mulheres.

    Tratava-se neste momento tambm, no ape-nas de visar a mudanas no regime poltico, masna estrutura interna do prprio Estado e em suasaes, de modo a superar caractersticas crticasdo padro de interveno estatal anterior19. Foi,assim, acrescentado ao esquema proposto porFraser como representando o perodo da se-gunda onda feminista latino-americana e brasi-leira o momento de resistncia e luta contra osEstados militarizados ditatoriais, sendo que foi

    apenas a partir dos anos 1980 que os movimentossofreram processo de ampliao e tambm de di-versificao, desta vez adentrando necessariamentenos partidos polticos, nos sindicados e nas asso-ciaes comunitrias. Como ser possvel perce-ber mais adiante, tais grupos no conseguiramconquistar lugar no espao pblicoinstitucionalizado brasileiro (a exemplo do Parla-mento), mas as suas articulaes, certamente, in-cumbiram-se de expandir as fronteiras da discus-so para diversos cantos do pas e ajudaram arefundar valores e reinventar padres e represen-taes de gnero, tendo como objetivo primordialrevelar as negligncias do governo em relao sgraves desigualdades sociais e econmicas danossa sociedade.

    Ainda que o feminismo brasileiro (e mesmolatino-americano) deste momento tenha se carac-terizado por dar as costas ao Estado e suas arenaspolticas convencionais (ALVAREZ, 2000), no in-tuito de trazer tona e problematizar aqueles te-mas ligados s problemticas das mulheres,houve um primeiro momento de convergncia dosmovimentos urbano-populares com o movimentofeminista, naquele momento que estamos carac-terizando como de terceira onda feminista. Asforas foram unificadas no objetivo central datransformao da situao da mulher na socieda-de brasileira, gestada durante os regimes milita-res, e colocada prova no momento daredemocratizao do pas. Tanto o movimentofeminista quanto os demais movimentos sociaisurbanos, naquilo que tange aos temas especficosdas mulheres, somaram as foras para conquistara incluso da temtica de gnero na agenda pbli-ca e estatal. desta forma que possvel afirmarque a luta pela superao das desigualdades degnero no pas buscaram tanto uma crtica aodo Estado quanto medida que a democratiza-o avanava a formulao de propostas de po-lticas pblicas que contemplassem a questo degnero (FARAH, 2004, p. 51).

    Por um lado, Alvarez (2000, p. 388) analisaque ao reagir s instituies excludentes e ami-de repressivas do regime e ao centralismo demo-crtico das esquerdas, as feministas criaram umapoltica cultural distintiva que valorizava as prti-cas democrticas radicais e a autonomia de orga-nizao. Em contrapartida, segundo Farah, talnova agenda do feminismo, surgida nos idos dosanos 1990, teria sido marcada pela tenso per-manente entre o vetor eficincia e o vetor de-

    19 Farah destaca as seguintes as caractersticas de organi-zao do Estado brasileiro neste perodo anterior aos anos1980: a) centralizao decisria e financeira na esfera fe-deral; b) fragmentao institucional; c) gesto das polticassociais a partir de uma lgica financeira levando segmentao do atendimento e excluso de amplos con-tingentes da populao do acesso aos servios pblicos; d)atuao setorial; e) penetrao da estrutura estatal por in-teresses privados; f) conduo das polticas pblicas se-gundo lgicas clientelistas; g) padro verticalizado de to-mada de decises e de gesto e burocratizao de procedi-mentos; h) excluso da sociedade civil dos processosdecisrios; i) opacidade e impermeabilidade das polticas edas agncias estatais ao cidado e ao usurio; j) ausncia decontrole social e de avaliao (FARAH, 2004, p. 50).

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    mocratizao dos processos decisrios e do aces-so a servios pblicos. Essa tenso, por sua vezlevaria a uma disputa permanente: os movimen-tos populares, partidos esquerda no espectropoltico e governos de corte progressista tendema privilegiar a democratizao das decises e aincluso social; partidos e governo de corte libe-ral-conservador e organizaes da sociedade civilligadas s elites empresariais tendem a privilegiara orientao para a eficincia e corte de gastos, oque significa, na rea social, privatizao,focalizao e modernizao gerencial como prio-ridades (FARAH, 2004, p. 52-53).

    Multiplicaram-se, ento, as modalidades deorganizaes e identidades feministas. As mulhe-res pobres articuladas nos bairros por meio dasassociaes de moradores, as operrias por meiodos departamentos femininos de seus sindicatose centrais sindicais, as trabalhadoras rurais pormeio de suas vrias organizaes comearam a seidentificar com o feminismo, o chamado feminis-mo popular. As organizaes feministas de mu-lheres negras seguiram crescendo e ampliando aagenda poltica feminista e os parmetros da pr-pria luta feminista. Esse crescimento do feminis-mo popular trouxe, como conseqncia funda-mental, um pouco da diluio das barreiras e re-sistncias ideolgicas em relao ao feminismo.Tal diversidade do feminismo brasileiro estevepresente nos preparativos da Quarta ConfernciaMundial sobre a Mulher (QCMM), realizada emsetembro de 1995, em Beijing, China, ao incorpo-rar amplos setores do movimento de mulheres dopas.

    O alvorecer do sculo XXI traz para o movi-mento feminista o tema da participao polticadas mulheres nas esferas de deciso do Estado,no mbito do continente latino-americano, pas-sando a entender a participao paritriainstitucional como um dos espaos mais impor-tantes e ainda intocados rumo a uma socieda-de mais equnime no que tange s questesde gnero. Gostaria, pois, de destacar que o temado acesso das mulheres aos espaos da represen-tao com participao passou a ocupar signifi-cativa presena na agenda das pesquisas e dosmovimentos feministas na ltima dcada, repre-sentando mais do que um deslocamento e sendo apercepo de que a participao poltica e a atua-o dentro das esferas do Estado uma estratgiade grande importncia para a busca de uma soci-

    edade mais justa, levando-se em conta os instru-mentos de controle e polticas pblicas que visem reparao de desigualdades de modo mais efi-caz que as velhas formas de manifestao. cla-ro tambm que, mesmo que de um lado tenhamosuma guinada do movimento rumo participaopoltica mais significativa, temos tambm e prin-cipalmente as novas configuraes do Estado quepermitem que as reivindicaes antes no cana-lizadas passem a encontrar ouvidos atentos quenos idos dos anos 1970 no estavam presentes daforma como hoje se apresentam.

    Tem sido por meio de muita sensibilidade emrelao s dinmicas do poder e da necessidadede se lutar mais por ele e menos por uma agendade direitos, que passou a ser possvel prenunciaro comeo expressivo de um gigantesco esforode transversalizao das foras de todos os mati-zes dos feminismos da regio. J no final dos anos1990 e incio dos anos 2000, um nmero cres-cente de feministas comea a enxergar nos parti-dos polticos, nos rgos dos poderes Legislativoe Executivo, espaos potencialmente viveis paraa atuao feminista. Se erigindo como algo quepode ser descrito como um movimento multinodalde mulheres ou a partir de diferentes comunida-des de polticas de gnero (como tem sido maiscomum se referir no Brasil), o feminismo, em partesignificativa dos pases da regio latino-america-na, na atualidade, no s foi transversalizado estendendo-se verticalmente por meio de diferen-tes nveis do governo, atravessando a maior partedo espectro poltico e engajando-se em uma vari-edade de arenas polticas aos nveis nacionais einternacionais , mas tambm se estendeu hori-zontalmente, fluiu horizontalmente ao longo deuma larga gama de classes sociais, de movimen-tos que se mobilizam pela livre expresso de ex-perincias sexuais diversas e tambm no meio decomunidades tnico-raciais e rurais inesperadas,bem como de mltiplos espaos sociais e cultu-rais, inclusive em movimentos sociais paralelos.

    A heterogeneidade crescente passou a carac-terizar os feminismos da regio latino-americana(ALVAREZ, 2000), conformando-se no momen-to que estou tentando defender como expressivode uma quarta onda feminista. A difuso femi-nista, com certeza, tem produzido muitas conse-qncias polticas e culturais por meio de muitoscaminhos e j possvel identificar casos: o doSindicato dos Bancrios no Brasil, por exemplo,

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    em que grupos de mulheres dentro de um movi-mento de classe empreenderam a luta desde den-tro para influir no prprio movimento; encontrosentre o feminismo acadmico e alunas de cursosde capacitao poltica para mulheres candidatasna esfera poltico-legislativa; e tambm seria pos-svel incluir as piqueteras e os EncuentrosNacionales de Mujeres (ocorrendo anualmente naArgentina e que contam com a participao demais de 20 000 mulheres); o movimento estudan-til e, possivelmente, o Mapuche e/ou os movimen-tos ambientais no Chile; movimentos indgenas egrupos LGBTs (Lsbicas, Gays, Bissexuais eTransgneros) no Peru; o movimento de mulhe-res rurais; as Promotoras Legais Populares; aCentral nica dos Trabalhadores (CUT); o Movi-mento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra(MST); os movimentos negros; o Partido dos Tra-balhadores (PT) de base; assim como tambmas Conferncias Nacionais de Polticas para as Mu-lheres no Brasil, que reuniram, em 2004 e 2007,mais de 3 000 mulheres.

    Num outro regime de esforos possvel tam-bm perceber a tentativa de produo de encon-tros regionais feministas que desobedecem a lgi-ca hegemnica e tradicional do centro para aperiferia ou do Norte para o Sul: refiro-me aquiespecialmente a estratgias como o Frum SocialMundial em nvel regional e em sintonia com to-dos os pases do Sul e a recente criao da Uni-versidade Popular dos Movimentos Sociais(UPMS) (SANTOS, 2008), que se realizou em2009, por meio de oficinas e aes implementadasrecentemente no Brasil pelo Centro de EstudosSociais da Amrica Latina (CES-AL). A UPMS Rede Global de Saberes um espao de formaointercultural que promove um processo deinterconhecimento e auto-educao com o duploobjetivo de aumentar o conhecimento recprocoentre os movimentos e organizaes e tornar pos-sveis coligaes entre eles e aes coletivas con-juntas. Ela tambm se constitui em um espaoaberto para o aprofundamento da reflexo, o de-bate democrtico de idias, a formulao de pro-postas, a troca livre de experincias e a articula-o para aes eficazes, de entidades, de cientis-tas sociais e movimentos sociais locais, nacionaise globais que se opem ao neoliberalismo e quedesejam apostar na possibilidade de se reconstruiro prprio saber cientfico. Este segundo conjuntode esforos muito recentes visa a consolidar arti-culaes poltico-institucionais entre pases e fe-

    ministas, a partir de aes estruturadas no Sul enuma lgica de operao global de baixo paracima, ou seja, gerida no Sul e direcionada para oSul.

    Mesmo com o avano propiciado por Fraserao propor um modelo tridimensional da justiasocial e com as crticas pertinentes de Mohanty,ainda faz-se necessrio uma aposta em avanostericos significativos, explicitando aspectos su-bentendidos que no foram ainda tratados justa-mente devido a organizaes epistemolgicasreducionistas que no os incluem nas formas deteorizao, principalmente aqueles relativos ex-perincia e prtica do feminismo latino-america-no. Por isso, a proposta de uma teoria crtico-emancipatria feminista e de gnero, a qual medediquei em outro momento (MATOS, 2009a;2009b)20, luz da crtica epistmica, props umconjunto de elementos que seriam consideradoscruciais quando se pretende uma forma deteorizao para alm dos paradigmas dialticos ebinarizantes, bem como culturalmente reduzidos(principalmente ao Ocidente, neste caso). Tal pro-posta avana em direo a se pensar os eixosestruturadores da justia social numa dimensosignificativamente ampliada, inclusive numaperspectivao analtica que destaca a dimensoparadoxal e simultnea de repor igualdade e dife-rena num regime de complexidade, propondorealocar uma das principais contendas no femi-nismo latino-americano (e tambm nos feminis-mos de outras regies), que seria, segundo Schutte(1998), o debate entre feministas igualitrias e osfeminismos da diferena. O sentido orientador danova onda, tambm para os estudos e teoriasfeministas, est vinculado, em meu entender, auma renovada nfase em fronteiras interseccionais,transversais e transdisciplinares entre gnero, raa,sexualidade, classe e gerao (no jargo de Fraser:nas transfronteiras). Tambm tem dbito incon-testvel com a necessidade de transversalizao

    20 Impossvel, neste artigo, discorrer com o cuidado e aprofundidade necessrios sobre a proposta completa destenovo modelo. Importa salientar, contudo, que o mesmotem sua origem na minha prpria trajetria inter outransdiciplinar entre os campos da Psicologia e Psicanlise,Sociologia e Cincia Poltica, e enfatiza sobremaneira din-micas epistmicas, filosficas e tericas crticas aosbinarismos de todas as ordens, enfatizando amultidimensionalidade, a complexidade, os paradoxos e asimultaneidade (cf. MATOS, 2009a; 2009b).

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    do conhecimento e a transversalidade na deman-da por direitos (humanos) e justia social e impli-ca: 1) o alargamento da concepo de direitoshumanos (a partir da luta do feminismo e dasmulheres); e 2) a ampliao da base das mobiliza-es sociais e polticas. Por exemplo, a MarchaMundial das Mulheres (MMM) movimento quepode ser considerado emblemtico do feminismode quarta onda teve origem numa manifesta-o pblica feminista no Canad, em 1999, cujolema, inspirado em uma simbologia feminina poe rosas , expressava a resistncia contra a po-breza e a violncia. Mantm at hoje esse primei-ro mote, mas vem ampliando sua conotao, con-vocando o conjunto dos movimentos sociais paraa luta por um outro mundo (designada dealtermundialismo), e por novos direitos huma-nos, em que sejam superados os legados histri-cos do patriarcalismo e do capitalismo, conformeregistrado na Carta Mundial das Mulheres para aHumanidade (MARCHA MUNDIAL DE MULHE-RES, 2005, p. 6): Esses sistemas se reforammutuamente. Eles se enrazam e se conjugam como racismo, o sexismo, a misoginia, a xenofobia, ahomofobia, o colonialismo, o imperialismo, oescravismo e o trabalho forado. Constituem abase dos fundamentalismos e integrismos queimpedem s mulheres e aos homens serem livres.Geram pobreza, excluso, violam os direitos dosseres humanos, particularmente os das mulheres,e pem a humanidade e o planeta em perigo.

    A luta, portanto, pela transversalidade dos di-reitos humanos, expressa na Carta, possui cincovalores de referncia: igualdade, liberdade, solida-riedade, justia e paz; ou seja, a MMM pretendeocupar o espao de uma organizao feministatransnacional baseada nas lutas antiracistas eantimachistas e dos ativismos antiglobalizao,conforme insistiu Mohanty. Tais bandeiras trans-formaram-se em reivindicaes coletivas da Mar-cha e tem sido em torno delas que a MMM no sconsegue se comunicar com o conjunto das ten-dncias do feminismo contemporneo, dos movi-mentos de mulheres de base local e global, mastambm com outros movimentos sociais, comoutras especificidades e simpatizantes de suascausas, formando uma rede global de redes demovimentos, identidades plurais, radicalizando ademocracia, a partir dos nveis locais, regionais,nacionais, at os transnacionais, na direo de umacidadania que se prope planetria.

    A ampliao dos direitos humanos das mulhe-res, por sua vez, nunca esteve to evidente comonas determinaes referentes incorporao daperspectiva de gnero (gender mainstreaming)pelas conferncias mundiais, a exemplo de Vienae Beijing. De fato, ao mesmo tempo que a dife-rena deixa de ser uma justificativa para a exclu-so do gnero dos principais discursos sobre di-reitos humanos, ela, em si mesma, passou a ser-vir de apoio prpria lgica de incorporao daperspectiva de gnero. Tal incorporao baseou-se na viso de que, sendo o gnero importante,seus efeitos diferenciais precisam ser analisadosno contexto de todas as atividades relativas aosdireitos humanos. Assim, enquanto no passado, adiferena entre mulheres e homens serviu de jus-tificativa para marginalizar os direitos das mulhe-res e, de modo mais geral, para justificar as desi-gualdades de gnero, atualmente a diferena dasmulheres indica a responsabilidade que qualquerinstituio de direitos humanos teria de incorpo-rar uma anlise de gnero em suas prticas e an-lises tericas ( a essa difuso terico-cultural quereputo importncia como uma nova fase dos es-tudos no campo de gnero e feminista).

    A luta feminista (e tambm a luta por direitoshumanos), em sua quarta onda, tambm refor-a o princpio da no-discriminao com base naraa, etnia, nacionalidade ou religio. Essa garan-tia foi elaborada na Conveno Internacional paraa Eliminao de Todas as Formas de Discrimina-o Racial (International Convention on theElimination of All Forms of Racial Discrimination CERD), que tratou da proteo contra a discri-minao baseada na cor, na descendncia e naorigem tnica ou nacional. No sentido de melhordefinir o alcance do direito no-discriminaoracial, associada no-discriminao de gnero,foram feitos muitos esforos em confernciasmundiais, oportunidade que se apresentou na Con-ferncia Mundial contra o Racismo, Discrimina-o Racial, Xenofobia e Intolerncias Correlatas,em Durban, na frica do Sul. No entanto, nadaequivalente aos compromissos assumidos em Vi-ena e Beijing, em termos da incorporao de g-nero, foi conquistado ou consolidado no contextoda raa e discriminao racial. Foi assim que es-tudos feministas passaram, ento, a lanar modo conceito de interseccionalidade, inicialmenteintroduzido por K. Crenshaw (1989) numa dis-cusso a respeito do desemprego das mulheres

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    MOVIMENTO E TEORIA FEMINISTA

    negras nos EUA (tendo sido convidada a apresen-tar tal noo em sesso especial em Genebra, noencontro preparatrio da Conferncia Mundialsobre o Racismo, em 2001, em Durban), paracomprometer uma agenda de reivindicaes com-partilhadas entre gnero e raa. O debate interna-cional e tambm os debates regionais, no final dadcada de 1990, como visto em Mohanty, forammarcados pelo surgimento de categorias analti-co-tericas que aludiam multiplicidade de dife-renciaes, que, articulando-se a gnero,permeariam o social: dentre estas, esto, claro,as categorias de articulao e interseccionalidade(intersectionality). Algumas autoras optam por umdesses conceitos (MCKLINTOCK, 1995;CRENSHAW, 2002). Outras utilizam alternativa-mente ambos (BRAH, 2006). Foi na dcada de2000 que a utilizao dessas categorias ficou am-plamente difundida. Contudo, assim como acon-teceu com o conceito de gnero, elas adquiriramcontedos diferentes segundo as abordagens te-ricas das autoras. Mas, segundo Crenshaw, asinterseccionalidades so formas de capturar asconseqncias da interao entre duas ou maisformas de subordinao: sexismo, racismo,patriarcalismo. Essa noo de interao entreformas de subordinao possibilita superar a no-o simplificada de superposio de opresses.

    Em relao ao Estado e s dinmicas vincula-das a este novo formato de teorizao feminista,destaca-se, por sua vez, o esforo no sentido deaes transversais e intersetoriais. Uma nova for-ma terica transversal e interseccional de com-preenso dos fenmenos de raa, gnero, sexua-lidade, classe e gerao desdobram-se na neces-sidade de se pensar em micro e macroestratgiasde ao articuladas, integradas, transversais eintersetoriais, construdas em conjunto pelo Esta-do e pela sociedade civil. Os esforos, considera-dos cada um desses componentes em sua din-mica de articulao complexa (e, s vezes, para-doxal), tornam-se mais profcuos para aresolutividade das questes sociais com as quaisnos deparamos na atualidade. No caso brasileiro,sabemos que, na execuo das polticas, por exem-plo, tradicionalmente, poucas vezes tais temas sotratados de modo transversal e interseccional e sebusca realmente estabelecer dilogo entre os dife-rentes setores envolvidos na promoo das aesgovernamentais. Entendo que est em construouma perspectiva mais aprofundada sobre atransversalidade e a intersetorialidade nas polti-

    cas pblicas, no como mera utopia ouelocubrao terica, j que algumas experinciasbrasileiras vm se destacando nesse campo emostram que, aos poucos, com dificuldades elies aprendidas , a intersetorialidade e atransversalidade so formas de gesto possveis emesmo mais eficientes em termos da promoodo desenvolvimento social e econmico do pas ede garantia do atendimento integral aos direitoshumanos. H muito ainda a se explorar sobre comoum novo modelo de teoria crtica feminista podevir a contribuir no avano da democracia e da jus-tia em tempos globalizados. E este artigo apenasindicou para esta riqueza de possibilidades, semse aprofundar efetivamente nela. Deixamos esteaprofundamento para outro momento.

    V. CONSIDERAES FINAIS

    Os desafios que o feminismo contemporneoenfrenta vo muito alm das fronteiras dos Esta-dos nacionais territrios que o movimento fe-minista estaria ultrapassando ou mesmo borran-do, de um modo que acredito ser definitivo. Per-cebo uma orientao na direo da superao delimites outros que no se restringem mais a de-marcaes e restries tradicionais dentro dofeminismo, dentro de um territrio nacional, den-tro de um lugar especfico para as aes estatais,no sentido do Norte para o Sul que impe umgrau de alcance para as lutas e aes polticas dosmovimentos que absolutamente indita para osparmetros da nossa modernidade (mesmo quetardia). pela primeira vez que se faz possvel eat palpvel vislumbrar e reconhecer a idia dofluxo, do trnsito movimentalista em uma pers-pectiva crtica entre pensamento e prxis femi-nista na virada de uma quarta onda. Quem sabecom esse outro inovador dinamismo no seja maisconcretizvel o sonho da superao das injustiasque ainda corroem esse nosso mundo. A anliseapresentada brevemente neste ensaio certamenteno esgota o debate acerca da multidimensio-nalidade analtica adotada sob um vis crtico-fe-minista do campo de gnero e das inovadoras re-centes estratgias de difuso feminista, mas cer-tamente tentou ainda que brevemente expor oquanto tais deslocamentos tornaram possvelantever um futuro mais promissor.

    O que se delineou aqui tanto o esforo quan-to o acerto de contas de milhares e milhares demulheres que, na opresso,