mulher e poder: viúva, vida cotidiana, moral e bons...

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Sobral, ano 5, v.1, n. 9, Jul/Dez 2016, p. 73-95. ISSN: 2317-2649 MULHER E PODER: viúva, vida cotidiana, moral e bons costumes em Campanário – Ce (1952-1974) WOMAN AND POWER: widow, daily life, morals and good manners in Campanário – Ce (1952-1974) RESUMO O presente artigo apresenta a trajetória de vida de Leonília Marques Veras, que foi uma mulher muito influente na vida da população campanarense através da igreja e de sua fazenda no local, para, assim, realizar um estudo sobre o cotidiano das pessoas simples que viviam na dependência social de sua família e, com este, entender um pouco mais sobre a formação social e organizacional da sociedade campanarense na segunda metade do século XX, numa abordagem da micro história. Palavras-Chaves: Estudo– Cotidiano – Sociedade - Campanarense SUMMARY This article has the purpose of discussing the life trajectory of Leonília Marques Veras, who was a very influential woman in the life of the people of Campania through the church and her farm in the place, in order to carry out a study about the daily life of Simple people who lived in the social dependence of their family and, with this, to understand a little more about the social and organizational formation of the Campanian society in the second half of the twentieth century. Key-Words: Study- Daily life - Society – Campanarense. EXPEDITO ARRUDA DE VASCONCELOS NETO [email protected] Chrislene Carvalho dos Santos Pereira Cavalcante INTA/UVA

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Sobral, ano 5, v.1, n. 9, Jul/Dez 2016, p. 73-95. ISSN: 2317-2649

MULHER E PODER: viúva, vida cotidiana, moral e bons

costumes em Campanário – Ce

(1952-1974)

WOMAN AND POWER: widow, daily life, morals and

good manners in Campanário – Ce

(1952-1974)

RESUMO

O presente artigo apresenta a trajetória de vida de

Leonília Marques Veras, que foi uma mulher muito

influente na vida da população campanarense através da

igreja e de sua fazenda no local, para, assim, realizar um

estudo sobre o cotidiano das pessoas simples que viviam

na dependência social de sua família e, com este,

entender um pouco mais sobre a formação social e

organizacional da sociedade campanarense na segunda

metade do século XX, numa abordagem da micro história.

Palavras-Chaves: Estudo– Cotidiano – Sociedade - Campanarense

SUMMARY

This article has the purpose of discussing the life trajectory of Leonília Marques Veras, who was a very

influential woman in the life of the people of Campania through the church and her farm in the place,

in order to carry out a study about the daily life of Simple people who lived in the social dependence

of their family and, with this, to understand a little more about the social and organizational formation

of the Campanian society in the second half of the twentieth century.

Key-Words: Study- Daily life - Society – Campanarense.

EXPEDITO ARRUDA DE

VASCONCELOS NETO

[email protected]

Chrislene Carvalho dos Santos

Pereira Cavalcante

INTA/UVA

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INTRODUÇÃO

A trajetória de vida do ser humano é complexa, em um cotidiano de detalhes que

fundamentam o desenvolvimento da sociedade. A História, enquanto ciência que estuda o

passado a partir do presente1 nos possibilita perceber esses detalhes através de uma dinâmica

diferente. Não mais enfatizando, exclusivamente, na apresentação dos grandes heróis, grandes

líderes ou mesmo de nomes importantes da política, como acontecia no período da escola

metódica2, ou, quando a História era entendida como ‘história-relato’3 das coisas importantes,

mas analisando todos os indivíduos envolvidos na construção da imagem pública dessas

pessoas. Segundo afirma François Dosse, “a Nova História se esconde, então, na busca das

tradições, ao valorizar o tempo que se refere às voltas e reviravoltas dos indivíduos4”.

Nessa perspectiva, com o intuito de entender a formação social e organizacional de

Campanário, distrito de Uruoca, localizado na região Noroeste do Estado do Ceará, a cerca de

300 quilômetros da capital, Fortaleza, venho por meio da produção deste trabalho realizar um

estudo sobre a trajetória de vida da senhora Leonília Marques Veras (Dona Liú) que foi uma

figura muito influente na política, na religiosidade e na organização social, nas décadas de

1950/60 e 70, a partir da capela católica e de sua fazenda no local.

Foto: Mapa do Ceará

Fonte: https://www.google.com.br/maps

1 BOSCHI, Caio César. Por que estudar História? São Paulo: Ática, 2007. 2 A escola metódica, dita positivista, fugia da análise subjetivista em nome da verdade e se utilizava apenas de

documentos oficiais para o desenvolvimento das pesquisas. Somente com a escola dos Annales tornou-se possível

a realização de pesquisas utilizando novas fontes, como a oralidade, e se tornou possível a análise de tais

documentos. 3 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales a nova História. SANTOS, Dulce Amarante Oliveira

dos (Trad.). Bauru – SP: EDUSC, 2003. P. 39 4 Ibidem. p. 249.

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O presente artigo possui a finalidade de discutir sobre as relações sociais, vividas por

trabalhadores rurais e fazendeiros abastados, na gênese do distrito de Campanário, para assim

contribuir com o conhecimento histórico da formação social e urbana da sociedade

campanarense. Para isso, sabendo da amplitude da temática e das dificuldades a serem

enfrentadas, diante da promoção de um estudo tão abrangente, realizei uma pesquisa

direcionada para o conhecimento da trajetória de vida de Leonília Marques Veras, que foi uma

figura de destaque social em Campanário, Ceará, no final do século XX.

Foto: Leonília Marques Veras. (195?)

Fonte: cedida por Irisvaldo Frota Veras (neto de Leonília).

Observa-se nessa imagem que o ato de fotografar já representa uma imagem feminina do

tempo, pois ela aparece sozinha, uma senhora sem família, sem agregados, é Ela, uma mulher

dona de si. A compreensão da trajetória de vida de Dona Leonília é, uma estratégia para se

conhecer o modo de vida dos trabalhadores que a cercavam e compartilhavam de uma rede de

relações. Pois, sabendo que, “o indivíduo constrói-se socialmente, em meio às redes de

sociabilidades em que se inscreve5” e que a proposta de um relato de experiência é, na verdade,

“compreender o coletivo, expressão de uma época, de um grupo, de uma geração, de uma classe,

5 CONCEIÇÃO, Livia Beatriz da. História e Biografias: limites e possibilidades teóricas. Revista Cantareira, jul,

dez, 2011, p. 4.

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de uma narrativa comum de identidade6”. Na historiografia cearense alguns trabalhos já usam

metodologicamente essa escrita histórica, como SANTOS (2005) ao abordar a vida de Deolindo

Barreto para compreender a história política de Sobral na década de 1920.

Venho, por meio do texto que se segue, analisar de maneira menos superficial, a trajetória

de vida de Dona Leonília para entender sobre a vida dos indivíduos que eram ligados a ela. Para

uma melhor delimitação temporal dessa pesquisa, analisei os discursos dos entrevistados

baseado na ênfase do período da possível ascensão de Leonília em 1952, com a morte de seu

marido, o senhor Francisco Marques Vieira, e finalizei minhas pesquisas com a análise do seu

próprio sepultamento, em 1974, que, de fato, não significou o término de sua existência, pois

ela continua presente na memória de muitas pessoas até os dias atuais.

Para entender o contexto social em que Dona Leonília estava inserida é necessário

compreender que, Segundo Nilo Matos Cunha7 em seu trabalho monográfico intitulado

Oligarquia Rocha de Uruoca, o município de Uruoca foi controlado pela família Rocha por

quase 50 anos, período este que representa a segunda metade do século XX, com uma política

pressionadora e intimidadora. O poderio dessa oligarquia era mantido através das relações de

poder com a maioria dos fazendeiros do município. Nesse período, Leonília Marques Veras já

possuía poder político e, ao lado de seu marido, apoiava a Oligarquia Rocha, seu poder era

exercido através do controle das terras da então Fazenda da Lagoa que, posteriormente, com a

emancipação do município de Uruoca, viria a se transformar no distrito de Campanário8.

Segundo Manoel Chaves9, poeta e memorialista campanarense, após a morte de seu

marido, o senhor Francisco Marques Vieira (1892-1952) conhecido por Chico Ramos, dona

Leonília (1899-1974) desenvolveu uma intervenção mais atuante na sociedade. Ela organizou

e manteve regras de ‘moral e bons costumes', através de sua interferência social por meio da

igreja católica e de sua fazenda, para com a população que era subordinada a sua família, ou

seja, agregados, funcionários e moradores de suas terras. Entretanto, através da análise das

fontes orais, suponho que a autoridade da Sra. Leonília tenha raízes mais profundas e

consistentes mesmo antes da morte de seu marido, pois uma figura tão notável no meio social

6 ARFUCH, Leonor. Op. Cit. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010, P.100. 7 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 8 Diário Oficial. Lei nº 6751 de 5 de novembro de 1963. 9 Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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não ascenderia de maneira tão repentina, com tamanho poder, sem que houvesse pré-

estabelecido esse sistema de atuação.

Partindo dessa perspectiva, pretendo refletir sobre a trajetória de vida de Dona Leonília,

porém com o objetivo de entender melhor sobre a vida cotidiana da sociedade campanarense, a

fim de promover uma reflexão sobre a vida social e individual, para a construção do

conhecimento da história de vida das pessoas simples, tecendo ‘um novo olhar sobre os

indivíduos, suas ações e posições na história10’.

A construção do presente artigo toma por base a história da Sra. Leonília porque, mesmo

inserida numa sociedade patriarcal e tendo a figura masculina como autônoma e preponderante

em relação a mulher, que foi o município de Uruoca, ela conseguiu grande visibilidade e

influência na cidade. Sua atuação como chefe de família, em meados do século XX, lhe rendeu

status e poder. O mandonismo desenvolvido por Dona Líu não é indiferente ao contexto

político que está inserida, pois o autoritarismo dos coronéis, nesse período, ainda era

contundente e promissor. Assim, ela era resultado da sociedade e do tempo em que viveu,

executando atividades cabíveis ao estilo de vida de políticos e fazendeiros de sua época.

SER VIÚVA EM TEMPOS DE CORONÉIS

Antes de adentrarmos definitivamente na temática discutida é necessário conhecer alguns

eventos que sucediam paralelamente ao poderio e a política de compromissos11, baseada num

certo cooperativismo e/ou troca de favores entre patroa e empregados numa relação de

compadrio, promovida por Leonília em Campanário, Ceará.

O coronelismo, Segundo José Murilo de Carvalho, é um sistema político, uma complexa

rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da República, envolvendo

compromissos recíprocos’12. O poderio dos coronéis no Estado do Ceará, segundo Francisco

Josênio C. Parente, foi marcado pela atuação de forças políticas fragmentadas13. A dinâmica da

política das oligarquias cearenses, distintas das fortes oligarquias de outros estados

10 GUARINELLO, Norberto Luís. História científica, história contemporânea, história cotidiana. Rev. Bras.

Hist., vol. 24, nº.48, São Paulo, 2004. 11 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 8. 12 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. In.: Revista

Brasileira de História. São Paulo: v. 40, nº. 02, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/ 13 Ibidem. P. 384

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nordestinos14, não permitia um fortalecimento da base do poder dos governantes no Estado.

Além disso, a própria localização geográfica e as condições climáticas (secas periódicas) não

favoreceram ao desenvolvimento de uma política mais estável.

Ainda segundo o sociólogo Francisco Josênio C. Parente, o Estado do Ceará era dividido

em três polos políticos importantes: a região do Cariri, o Norte e o Sertão Central15. Sendo que,

a região Norte era bem mais estruturada em relação ao eleitorado e a manutenção do poder. A

cidade de Granja, inserida na região Norte do Estado, possuía uma grande extensão territorial

e abarcava alguns dos municípios vizinhos, inclusive Uruoca (antigo Riachão), que estava sob

o domínio da oligarquia Rocha, sob a liderança do então deputado estadual Aniceto Rocha16 e

que se tornara chefe do executivo local em 1983.

No período que concerne ao recorte temporal desta pesquisa, ou seja de 1952 até meados

de 1974, o Estado do Ceará, a princípio, era administrado pelo governador Raul Barbosa (1951-

54)17, sendo sucedido pelo Jornalista Paulo Sarasate (1955-58)18, período este que antecede a

parceria dos coronéis Cesar Cals, Adauto Bezerra e Virgílio Távora no governo do Estado, num

momento que ficou conhecido como ‘tempo dos coronéis’ (1962-1985)19. Nessa época o Estado

passava por fortes ondas de migrações internas, para a capital e outros centros urbanos,

promovendo uma explosão da população20 nesses centros; e externas, para outros estados, como

consequência do processo de industrialização, projetado pelas elites brasileiras21 no Governo

de Vargas, que se consolidou com o espírito de modernidade22.

14 PARENTE, Francisco Josênio C. o Ceará dos coronéis (1945-1986). In: SOUZA, Simone de. Uma nova história

do Ceará. 2º ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002. Pp. 382 – 384. 15 Ibidem. 16 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 17 MOTA, Aroldo. História Política do Ceará. 1947-1966. Rio-São Paulo – Fortaleza: ABC editora, 2005. 18 Ibidem. 19 SILVEIRA, Edvanir Maia da. Três décadas de Prado e Barreto: a política municipal em Sobral do golpe militar

a nova república. Tese (doutorado) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências

Humanas. 2013. P. 109. 20 PARENTE, Francisco Josênio C. o Ceará dos coronéis (1945-1986). In: SOUZA, Simone de. Uma nova história

do Ceará. 2º ed. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002. P. 381. 21 GOMES, Ângela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil. Revista Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, nº

2, 1998, pp. 31 – 58. Disponível em: http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg2-2.pdf 22 ADRIAO, Maria Antonia Veiga. “Lá onde eu tava num tinha futuro”: migração sertão–cidade de Sobral 1950–

1980. AEDOS, v. 7, n. 17, 2015, p. 325

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A população pobre que sofria com a decorrência das secas migrava para os núcleos

urbanos como Fortaleza, Sobral23, Camocim24, e para outros estados como o de São Paulo.

Como afirma Maria Antonia Veiga Adrião25, esse movimento se desenvolve de diversas formas,

tanto da zona rural para a zona urbana, que é o mais comum, como ocorre o contrário, ou seja,

algumas pessoas também se destinam das cidades para o campo. A partir desse período as

migrações que ocorriam, principalmente para o sudeste26, representavam a fuga da população

que almejava uma qualidade de vida melhor e se esforçava para superar as dificuldades

econômicas.

Essas migrações ocorrem em todo o Ceará e favorecem também ao crescimento de alguns

pequenos núcleos urbanos, além da dinamização econômica provocada pela estrada de ferro,

ou melhor, pelo caminho percorrido pelo trem que não promovia apenas o trânsito de pessoas,

mas também de conceitos, costumes e/ou culturas de grande importância no desenvolvimento

da modernidade, essas migrações foram de grande valia para que pequenos distritos se

transformassem e alcançassem a categoria de município, como foi o caso de Uruoca27 em 1957.

Os dois distritos – Campanário e Paracuá – que, antes também eram adjacentes ao município

de Granja, foram subordinados ao novo município.

A emancipação política do município se iniciou em 1958, no final do mandato de

governador de Paulo Sarasate (1955 – 1958), com a eleição de Joaquim Gomes Garcez Rocha28

que foi o primeiro prefeito da cidade. Até então a cidade era governada pelos políticos29

granjenses e, principalmente, pelos grandes latifundiários30 do município que executavam as

funções de verdadeiros coronéis no sertão cearense. É nesse espaço que surge a figura de

Leonília Marques Veras com influência política no distrito de Campanário, em Uruoca - CE.

23 Ibidem. 24 SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Entre o Porto e a estação: cotidiano e cultura dos trabalhadores urbanos

de Camocim-CE (1920-1970). Tese de Doutorado: Recife, 2008. 25 ADRIAO, Maria Antonia Veiga. “Lá onde eu tava num tinha futuro”: migração sertão–cidade de Sobral 1950–

1980. AEDOS, v. 7, n. 17, 2015, p. 325. 26 Ibidem. 27 Lei de emancipação nº 3.560 de 26 de março de 1957. 28 Disponível em: http://uruoca.ce.gov.br/ acessado em 28 de janeiro de 2016. 29 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 30 FONTENELE, A. Batista. A marcha do tempo: os fonteneles. Fortaleza: SENAI/CE, 2001.

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MULHER E PODER: O CASO DE LEONÍLIA EM CAMPANÁRIO

É comum, nos meios de comunicação, apresentar um coronel como um fazendeiro

rustico, autoritário, brutal, ignorante, dispondo da vida dos demais habitantes do

lugarejo em que se reside. Este é um estereótipo que vem sendo consagrado e,

comumente, ridicularizado. Mas todo estereótipo é restritivo, empobrecedor, embora

contenha um fundo de verdade.31

A figura do coronel, sempre vista como alguém de muita autoridade, respeito e domínio

social e político, era desempenhada por Leonília Marques Veras em meados da segunda metade

do século XX. O distrito de Campanário, antes fazenda da Lagoa, pertencente a família de Dona

Liú, possuía uma população essencialmente agrícola32 que explorava o manuseio de alguns

instrumentos (enxada, pá, picareto, etc) na plantação de culturas para sobreviver, estes eram, na

verdade, em sua maioria, retirantes que buscavam minimizar as consequências da seca com o

amparo de um fazendeiro/patrão que lhes dessem a garantia de sobrevivência. Pois, como

afirma Maria Ferreira, filha de retirantes, que antes de morar em Campanário residiu em outras

cidades do Ceará e, inclusive, do Estado do Maranhão,

“nós morava no Bandeira, depois nós viemo morar aqui. Me lembro que mamãe batia

o milho no pilão e depois fazia cuscuz ou pixé pra nós comer, nós era tudo pobre,

tinha muita pobreza naquele tempo, a madrinha Liú matou a fome de muita gente,

dava trabalho e terra pras pessoa fazer suas casinha33”

A população de Campanário não tinha a oportunidade de frequentar escolas. Essa

limitação e/ou a inacessibilidade de estudar em uma escola é justificada pela inexistência de

uma instituição publica no distrito, porque a primeira escola fundada no distrito (sendo esta

fundação atribuída a família de dona Leonília) só ocorreu em 1977 depois do falecimento da

viúva; além disso, também havia a impossibilidade de arcar com a manutenção dos estudos dos

filhos numa cidade grande. Apenas os grandes latifundiários, no caso, Thomaz Moreira

Fontenele e Francisco Marques Vieira, dois dos donos do território que atualmente forma o

distrito de Campanário e localidades vizinhas, enviavam seus filhos e, posteriormente, seus

netos para estudarem na capital cearense, como faziam as classes dominantes do estado no

século XIX que antes enviavam seus filhos para estudarem na Europa ou mesmo no Rio de

31 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 8. 32 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 33 Fontes Orais. Maria Ferreira. 79 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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Janeiro, a capital do império. Colégios como Lourenço Filho, Farias Brito e Nossa Senhora de

Lourdes, recebiam os filhos dessas famílias abastardas campanarenses em Fortaleza.

Segundo Irisvaldo Frota34, dona Leonília era letrada e possuía, para a época, um favorável

conhecimento sobre a língua portuguesa, matemática e, principalmente, por ser beata da igreja

católica, conhecia e estudava a doutrina eclesiástica. Não se sabe como aconteceu a instrução

de Dona Liú, entretanto algumas cadernetas35 escritas à mão contendo anotações de dados

pessoais de sua família, tais como nomes, datas de nascimento, registros administrativos da

fazenda, indicam vestígios de que a mesma possuía um distinto grau de instrução levando em

consideração o contexto social que estava inserida.

Foto: Caderneta de anotações de Leonília Veras – (1940)

Fonte: Arquivo da família Veras.

Essas cadernetas eram usadas para o registro de dados familiares. Elas possuem desde

nomes de filhos, netos, bisnetos todos com suas respectivas datas de nascimento. É o único

documento estável que nos pode inquerir um pouco sobre o conhecimento que ela possuía.

Por ser uma latifundiária do interior do Ceará, Leonília representava uma mulher fora do

padrão que a sociedade exigia, pois ao contrário do que destaca Michelle Perrot36, em que

apresenta a mulher como sendo criada para a família, com a vocação de ser dona de casa para

benefício social, ela não gostava de exercer suas funções domésticas e, de acordo com

Aparecida Veras37, neta de Dona Leonília, a mesma mantinha duas ‘ajudantes’ para cuidar da

casa e da lavagem das roupas, sendo que essa era uma prática das mulheres ricas do período,

34 Entrevistas Orais. Irisvaldo Frota. 78 anos. 7 de agosto de 2015. 35 Cadernetas de anotações de compras, datas de nascimento. 36 PERROT, Michele. Mulheres Públicas. LEAL, Roberto (Trad.) São Paulo: UNESP, 1998. P. 9. 37 Aparecida Veras. 76 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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pois historicamente, no Brasil, o trabalho braçal desnobrece o indivíduo. Assim, segundo o

memorialista Manoel Chaves38, “toda hora que você chegasse na casa dela (Dona Liú), de dia

ou de noite, segunda ou domingo, ela tava prontinha, capaz de ir pra missa. Ela só andava nos

‘trinco’”. O fato de Leonília se ocupar na administração da fazenda e ainda na administração

da capela católica, e, tomando por base a simplicidade e realidade social que esta estava

inserida, permitia esta visão sugerida pelo memorialista.

Na década de 1950, Francisco Marques Vieira possuía uma vasta extensão territorial em

Uruoca, pois havia comprado todas as terras de seu irmão José Marques Vieira39. Estes eram

oriundos, a princípio, da localidade do ‘Cosmo40’ vinculada a antiga vila de Martinópole

também pertencente ao município de Granja e que também foi elevada à categoria de município

em março de 1957. Chico Ramos se tornou, dentro do núcleo urbano que se formava

gradativamente, nos derredores da igreja de São Sebastião, o homem mais rico e mais influente.

Este veio a falecer em outubro de 1952, deixando para a mulher e os filhos seu legado e suas

riquezas. A partir de então se iniciava ou, talvez, se fortalecia o poderio social e político de

Leonília em Campanário.

A intervenção política das mulheres na sociedade cearense, no século XX, é uma

atividade muito mais de apoio do que de atuação efetiva e praticamente algo impensável diante

do poder das oligarquias e, consequentemente, dos coronéis41 que possuíam influência. Havia

notadamente uma preponderância masculina, pelo legado tradicional, na política do Ceará. A

política seria uma profissão de homens, como afirma Perrot42, ‘concebida e organizada no

masculino’. Apesar de que D. Leonília nunca adentrou efetivamente na política partidária, pois

nunca correspondeu a necessidade de exercer algum cargo público oficialmente, mas atuou

indiretamente a partir de seu poderio econômico. A presença forte de Leonília influenciando no

campo político correspondia a perspectiva de René Rémond43, por ser “o lugar de gestão do

social e do econômico”. Ela mantinha uma organização social com base na dependência de

terras e também na relação de compadrio que ligava os trabalhadores por um laço mais forte do

que a simples subjugação econômica. Essa relação de apadrinhamento era tão forte que, é

comumente perceptível, mesmo entre os entrevistados, o direcionamento a pessoa de dona Liú

38 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 39 Idem. 40 Fontes Orais. Aparecida Veras. 76 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 41 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 2º ed. São

Paulo: Alfa-Ômega, 1975. 42 PERROT, Michele. Mulheres Públicas. LEAL, Roberto (Trad.) São Paulo: UNESP, 1998. P. 129. 43 RÉMOND, René. Por uma história política. ROCHA, Dora (Trad.)2º ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. P. 10

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como sendo ‘madrinha Liú’ mesmo sem possuir esse vínculo sacro selado pela igreja. Dessa

forma, essa relação era muita mais simbólica do que real. Simbolismo este que era reforçado

através da atuação de Leonília na igreja e que perdura até os dias atuais mesmo depois de mais

de quarenta anos de sua morte.

Dona Leonília desenvolveu uma espécie de regência social e, a partir desse poderio,

administrou a vida pública e privada de muitas famílias. E, apesar de dificultosa a inserção de

mulheres no meio político essa possibilidade não se tornou alheia à Leonília que, assim como

a matriarca maranhense D. Ana Jânsen Pereira44 que ainda no século XIX ‘tornou-se chefe da

facção mais influente da província do Maranhão’, ela fundamentou o seu prestígio e ascendeu

como uma figura coronelística, ainda que nas terras longínquas do sertão cearense, mas que

correspondia aos seus interesses.

Apesar de não estar inserida no organograma político oficial, primeiramente no município

de Granja e depois Uruoca, Leonília possuía forte influência diante da oligarquia Rocha45 que

viera a governar o município de Uruoca por quase 50 anos. Sua participação indireta garantia a

manutenção do poderio que possuía em Campanário e lhe rendia mais status e poder pela

estreita relação que esta possuía com os políticos. Nos anos eleitorais, ainda na sede do

município de Granja, Leonília destinava o voto de seus trabalhadores e agregadas para os

candidatos de seu interesse. “Ela recebia-os em sua casa e os apresentava para o povo, afim de

que estes percebessem a boa relação que ela possuía com as autoridades municipais”46. A

Oligarquia Rocha não possuía uma oposição forte no distrito de Campanário, mas os eleitores

do distrito proporcionavam uma força maior na disputa diante da forte oposição que possuíam

de correntes lideradas por outras famílias latifundiárias, em destaque os Valdivinos e Eduardos,

na sede do município47.

Sabendo, pois, que o poderio de Leonília estava embasado essencialmente na posse de

terras e, consequentemente, nas relações de compromissos48, fundamentados pelas trocas de

favores públicos ou privados, acredita-se que a boa convivência com o grupo político se firmava

44 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 25. 45 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 46 Fontes Orais. Galvanír Chaves. 86 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 47 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 48 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 8.

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também como pretensão de manter a paz social e evitar problemas e intrigas familiares nas

fazendas, o que não ficou claro durante as pesquisas, mas que deixou subentendido ao se

descobrir que a mesma possuía uma guarda privada49 muito forte que, posteriormente a sua

morte, viera a ser substituída pela polícia municipal. Tal milícia seria resultado de uma medida

protetiva direcionada para conter possíveis invasões territoriais e/ou embates sociais já que o

município de Uruoca ficou conhecida como cidade violenta por causa das constantes brigas

entre muitas famílias latifundiárias50. Servia, na perspectiva de Michel Foucault51, “para manter

a disciplina”. Mantinha, principalmente, a manutenção do poder e o controle social sobre os

trabalhadores e, consequentemente, suas famílias. A milícia era a justiça na ausência do Estado.

A patente das milícias correspondia a um título de nobreza que irradia poder e

prestígio... a patente embranquece e nobilita... a organização militar constitui uma

casta privilegiada com poderes para se esquivar à justiça, a ela confiada a tarefa de

compelir os recalcitrantes.52

A milícia de Leonília tinha a função de proteger as pessoas, manter a ordem e a boa

vivência social de acordo com os interesses dela. Não se tem o conhecimento sobre a ocorrência

de mortes ou de violência exacerbada por parte da guarda privada, mas, segundo Manoel

Chaves53, a milícia era forte e atuante na sociedade. É possível que, Leonília Veras vinculada a

Oligarquia Rocha, possuía uma milícia ou Jagunços que serviria de proteção contra os

opositores da Oligarquia, pois Como afirma Antonia Milvia de Carvalho Siqueira, sabendo que

“a força política da família Rocha era baseada na violência, no mandonismo local, era a ‘ferro

e fogo’. Havia a temeridade em não obedecer e quem falasse contra a oligarquia Rocha estava

sujeito a morte54”. Assim, era necessário, tanto para apoiadores como opositores, a manutenção

de uma guarda privada que os protegesse em momentos de conflitos.

Essas ações de imposição de poder através de uma força privada não difere a família de

Leonília dos outros latifundiários do Estado, pois os grupos dominantes do campo, como afirma

Regina Ângela Landim Bruno55, possuíam dois traços marcantes: “a defesa da propriedade

como direito absoluto e a violência como prática de classe”. Isso para garantir direito da posse

49 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 50 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 51 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. RAMALHETE, Raquel (Trad.). 37º ed. Petrópolis

– RJ: Vozes, 2009. P. 165. 52 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1975. P. 192. 53 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 54 SIQUEIRA, Antonia Mílvia de Carvalho. Céu e Inferno Uruoquense. Monografia apresentada ao curso de

História da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. 2001. P. 37. 55 BRUNO, Regina Ângela Landim. Nova República: a violência patronal rural como prática de classe. Sociologia,

Porto Alegre, ano 5, nº 10, jul/dez 2003, p. 285.

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de terras sendo de valor incontestável por ter sido adquirido com trabalho ou por herança. Essa

garantia do direito embasada no recurso da violência pode ser associada a perspectiva

apresentada por Raymundo Faoro56 do ‘rústico militarismo dos senhores territoriais’.

O distrito de Campanário, nesse período, era habitado por diversas famílias57, mas apenas

três eram os donos dos latifúndios que formavam o distrito: Thomaz Moreira Fontenele

(Thomaz Demétrio) e Maria Moreira Batista Fontenele, sendo donos da localidade do Alto

Jaraguassuí; Francisco Marques Vieira (Chico Ramos) e Leonília Marques Veras (Dona Liú),

donos da Fazenda da Lagoa (sede de Campanário), juntamente com José Marques Vieira (Zé

Ramos); e, por fim, Agostinho Rodrigues de Sousa e Francisca Rodrigues de Sousa donos da

localidade nas proximidades do rio Poção, como destaca o mapa apresentado a seguir, feito a

partir dos dados adquiridos nas entrevistas orais.

Foto: Distrito de Campanário 2016.

Fonte: Google Mapas.

Os demais habitantes de Campanário eram, em suma, trabalhadores58 que viviam em

condição de dependência à essas famílias59. Estes se dispunham ao arrendamento das terras para

conseguirem moradia e sustento. Ocorria, de fato, o que sugere Maria de Lourdes Mônaco

Janotti: “O trabalhador rural, habitante das terras do fazendeiro, entregava ao proprietário quase

a totalidade do fruto de seu labor, cabendo-lhe, apenas, o mínimo para subsistência.60”

56 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Porto Alegre: Globo, 1975. 57 FONTENELE, A. Batista. A marcha do tempo: os fonteneles. Fortaleza: SENAI/CE, 2001. 58 Fontes Orais. Aparecida Veras 76 anos. Entrevista realizada no dia 06 de agosto de 2015. 59 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha de Uruoca. Monografia apresentada ao curso de História da

Universidade Estadual Vale do Acaraú. 2003. 60 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 42.

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Segundo Chaves61, o fazendeiro mais rico era o Chico Ramos e, por isso, as pessoas se

destinavam a ele em busca de trabalho e proteção. O trabalhador buscava refúgio com ele na

fuga das intempéries das secas. A necessidade de proteção também emergia em virtude das

secas, porém as frequentes disputas entre as famílias abastadas uruoquenses deixava a

população atônita e temerosa, o que provocou o fortalecimento de muitos laços de fidelidade

entre os fazendeiros e peões. Com certo tempo Chico Ramos era um dos homens que possuía o

maior número de agregados e trabalhadores em suas terras. Sua família, era, pois, semelhante

“a instituição da família colonial, da casa-grande, que habitua-se a exercer um poder sobre uma

grande massa de homens, formada por um certo números de agregados e dependentes em torno

do patriarca62”.

Em virtude da entrega de quase a totalidade da produção desenvolvida na agricultura, os

trabalhadores rurais pobres em Campanário passavam por situações severas em decorrência das

secas que assolavam o Estado do Ceará, pois eles estavam em um lugar onde a assistência do

Estado não chegava63 e não existia a garantia de direitos para a população subalterna do interior

que, governado pelos latifundiários, através de concessões e/ou favores64 desenvolvendo uma

política de ajuda social às famílias fazendo a manutenção de uma estratégia de estabilidade no

poder, se tornava cada vez mais difícil a sobrevivência dessas pessoas. Então, a dependência à

Leonília era um meio de escape da miséria que assolava as famílias que habitavam a região, ao

mesmo tempo que a ‘ajuda’ de Leonília correspondia a política de compromissos65

desenvolvida por ela na sociedade. Ela (Leonília) oferecia proteção e exigia ‘adesão irrestrita’66.

Sabendo, pois, que a base das relações de trabalho entre os moradores e os proprietários

das terras, comum na paisagem sertaneja do Ceará até meados de 197067, era fixada nas relações

tradicionais de uma certa reciprocidade desigual do Paternalismo68. Os trabalhadores,

geralmente, tinham a figura do coronel como a de um pai por dar-lhes trabalho, lugar para

61 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 62 CUBAS, Viviane de Oliveira. Segurança Privada. São Paulo: Associação Editora Humanitas, Fapesp, 2005.

P.30. 63 BARBALHO, Alexandre. Os modernos e os tradicionais: cultura política no Ceará contemporâneo. Estudos de

Sociologia, Araraquara, v.12, n.22, p.27-42, 2007. Pp. 30-31. 64 CUNHA, Nilo Matos. Oligarquia Rocha. Monografia apresentada ao curso de História da Universidade Estadual

Vale do Acaraú. 2006. 65 JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Coronelismo: uma política de compromissos. 8º ed. São Paulo:

Brasiliense, 1992. P. 8 66 Ibidem. P. 57 67 PEREIRA, Francisco Ruy Gondim. Catolicismo e conflitos agrários nos sertões do Ceará (1980-1990). ANPUH

– XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. 68 THOMPSON, E.P. Patrícios e Plebeus. In: Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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morar, sustento e proteção em tempo difíceis. Em Campanário, no caso, as relações eram

mantidas com a matriarca da família Veras que possuía as mesmas características de um coronel

e desenvolvia, praticamente, as mesmas funções na comunidade rural. As relações de trabalhos

possuíam uma manutenção de favores que correspondiam aos interesses tantos dos

trabalhadores quanto da Dona Leonília.

O poder de Leonília trata‐se, assim como no matriarcalismo69, da relação mantida entre a

elite e os subordinados, de proteção e trabalho, que notadamente a partir de concessões a

determinados grupos sociais, referentes a certas necessidades ou anseios, com o objetivo de

manutenção da hegemonia elitista, pretendendo-se evitar ou conter uma tensão social.

Nos períodos de seca a necessidade das famílias por alimentos é mais gritante e, contudo,

a situação destas, que não tinham outras rendas era vulnerável ao sistema dos latifundiários. A

década de 1950 foi muito conturbada para os agricultores por ter acontecido três períodos de

seca70 no Ceará. A primeira seca da década foi em 1951, um ano antes da morte de Chico

Ramos, sendo as outras em 1953-54 e a mais frustrante de todas que ocorreu no ano de 1958.

A família de Leonília, através dos trabalhadores arrendatários de suas terras, sempre possuíam

muitas reservas de grãos71 (feijão, arroz, milho) e não sofriam tanto com as condições

subversivas do clima. Assim, pela necessidade da manutenção dos trabalhadores e, além disso,

por possuir grandes reservas de alimentos, a Sra. Leonília sempre dividia ‘o pão de cada dia’

com as famílias pobres do distrito72. É nesse interim que Dona Leonília promove a criação de

sua imagem de ‘mulher bondosa e sempre acessível aos pobres’. Isso fazia com que as situações

de dependência das famílias rurais fossem mais consistentes e constantes. Segundo Maria

Ferreira73, ela alimentava as pessoas “porque era rica e era boa. Dava de comer a todo mundo.

Se adoecia um pobre daquele ela mandava o remédio, a comidinha dele....”. Sendo que,

exatamente por esse motivo, ela ficou conhecida como a “mãe dos pobres74”. Percebe-se, com

isso, uma maior ênfase na política de compromissos desenvolvida por Leonília, pois, de fato, o

que aconteceria se ela negasse um prato de comida aos trabalhadores pobres? Será que ela

conseguiria manter a boa relação e dependência destes indivíduos? A possibilidade é que,

69 Conceito apresentado por Marx e Engels em: ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade

privada e do Estado. Tradução de Ruth M. Klaus: 3ª. Centauro Editora, São Paulo, 2006. 70 História da Seca no Ceará. Jornal O Povo. Publicado online em 07/12/2013. Disponível em: www.opovo.com.br 71 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 72 Idem. 73 Idem. 74 Fontes Orais. Maria Ferreira. 79 anos. Entrevista realizada no dia 06 de agosto de 2015.

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talvez, ela nem dividisse, necessariamente, seus alimentos com as famílias, mas lhes desse o

que estava sobrando.

O poder autoritário embasado nas relações de compromissos, com base na riqueza e

‘ajuda’ social que ela possuía e desenvolvia, respectivamente, certamente não se distancia da

ideia de ‘cumplicidade’, entre ela e das pessoas que estavam sujeitas a ela, como afirma Pierre

Bourdieu75: “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido

com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o

exercem”. A cumplicidade entre sujeitos para a efetividade do poder garante a distinção do

exercício desse mesmo poder. No caso de Campanário, a sujeição da sociedade a pessoa de

Dona Liú estava mais definida por uma questão de dependência social e econômica, pois as

pessoas moravam em suas ‘terras’ e eram ‘alimentadas’ por ela. A Sra. Leonília construiu a sua

imagem de ajudadora que protegia e alimentava os pobres, ao mesmo tempo em que era uma

temível senhora do sertão que controlava a vida das pessoas simples e que governava com

autoridade.

Eram exatamente os eventos cotidianos, a busca pela subsistência, as incertezas e as

necessidades das famílias, que reforçavam a condição de dependência à Leonília Marques

Veras. Essa subjugação das famílias rurais à família de latifundiários mantinha a relação

também de poder e influência social. As tradicionais formas de relações de trabalho (moradia e

parceria) eram estáveis no período em que Leonília atuou com o desenvolvimento de um poder

autoritário e prepotente.

Mais do que uma simples relação de patrão e empregado, ou mesmo de fazendeira e

peões, Leonília mantinha uma superioridade que a possibilitava uma interferência direta na vida

privada das famílias dos trabalhadores. Essa relação de respeito mantida até fora da fazenda era

afluente da atuação religiosa76 dela a frente da igreja católica no distrito, o que reforçava ainda

mais o paradoxo apresentado anteriormente.

75 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. P. 9. 76 Fontes Orais. Galvanír Chaves. 86 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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Foto: Igreja São Sebastião 1940 – Campanário, Ce.

Fonte: cedida por Antônia Mundoca.

Além de possuírem grande domínio territorial, estes passaram também, a partir dos anos

de 1940, a ser promovidos como os “donos da igreja77”, o que ampliou o poderio da família por

envolver-se agora não simplesmente com as relações de trabalho, mas também com o

imaginário religioso da população. Ainda nos anos de 1939 foi iniciada as obras da Capela por

alguns dos membros da família de Tomaz Demétrio, porém, segundo Aparecida Veras78, devido

a falência do seu comércio foi transferido as obras da igreja para a responsabilidade de Chico

Ramos e Dona Leonília.

Assim, D. Leonília mantinha uma organização da comunidade a partir dos princípios

religiosos católicos. Esta, por sua vez, possuía uma estreita relação com os padres que advinham

a comunidade para celebrar as missas. Ela, guiada pelo mesmo objetivo religioso do marido,

recebia em sua casa os padres e bispos que passavam por Campanário e iam em direção a cidade

de Camocim ou Sobral. Era, pois, uma das beatas mais notáveis da igreja79.

Segundo Aparecida Veras80,

Era ela quem hospedava padres e quem viesse (da igreja) ia pra casa dela, o povo tinha

maior atenção a ela, porque mandava na igreja... aí com 22 anos depois ela morre...

ele morreu em 52 e ela morreu em 74. Isso é o que consta na igreja, pois ele e ela são

enterrados nos fundos da igreja numa capelinha, meu pai (João Veras) também foi

enterrado lá, porque ficou no lugar dela. Quando ela morreu papai ficou no lugar dela

organizando tudo.

A aplicação do termo ‘mandava na igreja’, usado pela entrevistada, não foge a lógica do

poderio exercido por Leonília no imaginário religioso. O fato de a mesma ter, juntamente com

77 Idem. 78 Fontes Orais. Aparecida Veras. 76 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 79 Ibidem. 80 Ibidem.

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o marido, terminado a edificação da igreja lhe conferia poderes eclesiais e tornava a igreja um

lugar de domínio social. Por esse motivo, ambos os patriarcas campanarenses foram sepultados

numa capela especial edificada atrás da igreja de São Sebastião, destacando a importância

destes para a sociedade. Ainda assim, João Veras, neto do casal, com 40 anos após a morte de

sua avó, dona Leonília, no ano de 2014, foi sepultado na igreja, mesmo depois dessa prática ter

sido banida. Isso demonstra a resistência da memória do poderio de sua família na sociedade

campanarense.

A interferência na vida privada baseia-se na organização de regras de moral e bons

costumes, a partir dos princípios cristãos e que eram, necessariamente, defendidos e divulgados

pela própria igreja. A capela era, na perspectiva de François Dosse81, ‘lugar especializado na

difusão cultural’. Em Campanário, aprendia-se na missa a obedecer a Deus, a servir ao padre e,

de maneira mais simbólica, a temer a Sra. Leonília. Ela possuía o controle sobre os dois espaços

sociais mais importantes do período: a igreja e a fazenda.

A opressão desenvolvida por Leonília era destinada a todos os indivíduos que habitavam

suas terras, mas especialmente aos difusores de contendas e as prostitutas que habitavam os

derredores da localidade. Sendo acometida por um sentimento religioso profundo, em

conformidade com a doutrina cristã católica, ela defendeu um ideário feminino moralista que

inibia a interação ou convivência de mães solteiras ou prostitutas no distrito, como apresenta

Rita Lara,

Ela queria me botar pra fora daqui, porque dizia que eu era rapariga... não gostava

dela porque ela queria me botar pra fora do Campanário... agora, dos filhos dela, do

Raimundinho, do João Veras, eram gente boa. Mas dela eu não podia gostar porque

era a dona do campanário. Assim mesmo, ainda tem o nome dela, Leonília Marques

Veras, na rua que é a ponta da minha casa hoje.82

Pela grande participação de Leonília na igreja católica ou, podendo dizer, pela sua

regência eclesiástica, sendo também a igreja o único canal que vinculava o divino à

Campanário, naquele período, ela desenvolvia uma função concedida pelo próprio Deus na

perspectiva da população e, por isso, o temor exacerbado a mulher que figurou medidas

interventivas de organização social nos moldes cristãos. Assim, era praticamente indiscutível

as ações que ela desempenhasse na sociedade, pois era inviável rebater contra o próprio Deus.

81 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales a nova história. SANTOS, Dulce Oliveira Amarante

dos (Trad.). Bauru – SP: EDUSC, 2003. P.266. 82 Fontes Orais. Rita Lara (nome fictício) 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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Dona Leonília tinha repulsa por mulheres que não correspondessem ao destino

matrimonial que lhes propunha a igreja católica. Ela não permitia a circulação livre das

‘mulheres da vida’ nas ruas durante o dia, como afirma Maria Ferreira,

Naquele tempo as coisas tinham mais lei... a madrinha Liú não gostava de ver mulher

da vida, ela não queria mulher da vida aqui em Campanário... de noite elas iam brincar,

mas durante o dia elas ficavam presa dentro de casa porque ela não queria ver

nenhuma no meio da rua. Elas não podiam vim pra rua porque a velha (Dona Liú) não

aceitava.83

A reclusão delas em suas próprias casas era monitorada por Leonília através de sua milícia

privada, ou seja, seus homens de confiança84. Ela, ficava no interior de sua casa apenas a

observar o fluxo de pessoas na rua. Ficava em sua janela, como afirma Perrot85, ‘protegida’ e,

assim, desenvolvia a vigilância que, como destaca Foucault86, “é decisiva para a efetivação do

poder disciplinar” (grifo do autor). A noite era entendida como sendo pertencente aos homens

e às profissionais dedicadas ao uso deles.87 Nada de puro ou de divino se faria a noite, por isso

era o único momento permitido para essas mulheres (mães solteiras, prostituas) saírem de casa.

A milícia era responsável por fazer as mulheres ‘mal faladas’ retornarem para suas casas

sem infligirem as regras de Leonília e desagradarem as moças de família e as senhoras casadas.

E, ainda, para mantê-las longe dos homens e evitar a promiscuidade. Entretanto, o

distanciamento das moças aumentava ainda mais o interesse dos homens em procura-las nas

madrugadas, principalmente no movimentado cabaré conhecido por ‘Vai quem quer’88 que

possuía as raparigas mais belas e solicitadas do distrito. Na verdade, este prostíbulo era o único

existente até então em Campanário, mas nem todas as ‘mulheres da vida’ eram, de certa forma,

filiadas a ele. O cabaré também pode ser batizado como ‘recinto das Gabrielas’ porque a dona

do prostíbulo era a madame Gabriela e todas as suas filhas, que também seguiam a mesma vida

da mãe, tinham este nome.

A nomenclatura sugestiva do cabaré nos induz a reflexão sobre os frequentadores do

prostíbulo que, certamente, não possuía distinção de classe social na recepção dos clientes.

Todos os homens desejosos de prazer fácil eram bem recebidos, contanto que levassem o mais

83 Fontes Orais. Maria Ferreira. 79 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 84 Fontes Orais. Manoel Chaves. 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 85 PERROT, Michele. Mulheres Públicas. LEAL, Roberto (Trad.) São Paulo: UNESP, 1998. P. 48. 86 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. RAMALHETE, Raquel (Trad.). 37º ed. Petrópolis

– RJ: Vozes, 2009. P. 169. 87 PERROT, Michele. Mulheres Públicas. LEAL, Roberto (Trad.) São Paulo: UNESP, 1998. P. 29. 88 Fontes Orais. Manoela Ribas (Nome fictício). 58 anos. Entrevista realizada no dia 20 de novembro de 2015.

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importante para a festa: o dinheiro.89 Políticos, fazendeiros e peões eram tratados com a mesma

disposição pelas donzelas que viviam desses gracejos.

A rejeição construída por Leonília à essas mulheres da vida era fundamentada,

principalmente, pela questão da honra feminina90. O objetivo dela era ‘preservar a dignidade

das famílias’ e evitar a inserção das mulheres faladas no meio das pessoas de boa índole, pois

as moças de família, se tivessem contato com essas mulheres, poderiam ter suas mentes

corrompidas e perderem sua honra diante da sociedade.91

O cabaré ‘vai quem quer’ estava localizado nas proximidades do rio Coreaú que banha

Campanário, e que foi batizado de Poção no distrito, justamente como forma de obediência à

Sra. Leonília que desejava que todas as ‘mulheres da vida’ morassem fora do perímetro urbano

do distrito. Como afirma Rita Lara,

Ela queria botar pra fora quem era rapariga, não era só eu... quem fosse rapariga era

pra tirar daqui... dizia que era pra botar todas pra rua do Poção...botar fora. Eu era da

irmandade do Coração de Jesus, aí a Galvanír era tesoureira e me tirou porque dizia

que eu era rapariga (a mandado da Dona Liú).92

Essas mulheres não eram excluídas apenas das atividades cotidianas, como comprar carne

no mercado ou óleo diesel na ‘bodega’, mas de todos os momentos incluindo as missas e festas

em clubes. Se, porventura, uma mulher ‘mal falada’ conseguisse adentrar aos recintos onde

aconteciam as festas eram expulsas imediatamente.93 Elas possuíam uma vida distante da

comunidade e só mantinham relações pessoais com os membros de suas próprias famílias. Em

virtude disso, elas mesmas realizavam suas festas na beira do rio e, de certa forma, desafiavam

o poderio de Leonília. Diversos rapazes, inclusive os filhos de Leonília94, participavam dessas

festas e se divertiam dançando com as mulheres.

O cabaré era, pois, assim como pontua François Dosse, o lugar de uma ‘cultura não

controlada’.95 Talvez fosse esse também o pensamento de Leonília em relação ao prostíbulo

que levaram-na a realizar as medidas tomadas para repressão e exclusão social das mulheres do

89 Ibidem. 90 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal – Decreto-lei n.º 2.848, de 07/12/1940. Rio de Janeiro:

Revista Forense, 1945. P. 33. 91 Fontes Orais. Rita Lara (nome fictício). 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 92 Idem. 93 Idem. 94 Fontes Orais. Rita Lara (nome fictício). 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015. 95 DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales a nova história. SANTOS, Dulce Oliveira Amarante

dos (Trad.). Bauru – SP: EDUSC, 2003. P.266.

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cabaré e das outras que seguiam a mesma vida. Mas esse trabalho não era dificultoso, pois ela

possuía o domínio sobre a capela católica do distrito que lhe dava embasamento e autoridade

para realizar a disciplina sócia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É sabido que o fim da trajetória de um indivíduo não necessariamente represente o fim de

sua existência, pois ainda que faleça pode se manter presente na memória das pessoas. E, a

história como mestra da vida, divulgadora de memórias, possibilita que as pessoas tenham uma

lembrança mais duradoura e mais crítica dos eventos que se sucederam no passado, através do

registro e da construção do conhecimento sobre as mesmas.

A história de Campanário, de certa forma, se confunde com a história da família de Dona

Leonília Veras, porque, como foi apresentado durante todo o artigo, eles eram os patriarcas e

dominavam a região com poder político e econômico. Através desse poder estabeleceram ‘leis

morais’ que eram seguidas pela população que vivia subjugada a essa família.

À guisa de concluir a presente pesquisa, estou satisfeito por haver coletado diversas

informações importantes, através da memória de pessoas simples, para a compreensão de um

período da história do distrito de Campanário, minha terra natal, a qual tenho grande apreço.

Pois, apesar de haver feito um estudo sobre a vida de Dona Leonília, a intencionalidade do

presente trabalho era compreender o desenvolvimento da vida cotidiana das pessoas que viviam

à sombra dela. Não quero, por meio deste, findar qualquer pesquisa que, porventura, venha a

discutir essa temática, pois sei que há muitas informações a serem descobertas que podem

favorecer a um estudo mais aprofundado sobre o tema. E, exatamente por isso, espero que o

meu trabalho sirva de estímulo para futuros historiadores campanarenses afim de que se

realizem muitos estudos sobre a vida rural e urbana, a religiosidade, a política e muitos outros

temas que ainda possam surgir ou que estejam ocultos a nossa jovem ótica dos fatos. Eis que, a

realização desta pesquisa me fez compreender que uma história nunca se finda, sempre se

transforma e que um homem nunca morre enquanto a história transcrever suas memórias através

do tempo.

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ENTREVISTAS ORAIS

APARECIDA VERAS. 76 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

GALVANÍR CHAVES. 86 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015

IRISVALDO FROTA. 78 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

MANOEL CHAVES. 86 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

MANOELA RIBAS (Nome fictício). 58 anos. Entrevista realizada no dia 20 de novembro de

2015.

MARIA FERREIRA. 79 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

RITA LARA (nome fictício). 80 anos. Entrevista realizada no dia 6 de agosto de 2015.

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