o crime dos illuminati - césar vidal

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Romance sobre Iluminati

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  • hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm..bbrr//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee

  • CCssaarr

    VViiddaall

    OO CCRRIIMMEE

    DDOOSS

    IILLLLUUMMIINN

    AATTII

  • TTrraadduuoo

    AANNTTNNIIOO FFEERRNNAANNDDOO BBOORRGGEESS

    Ttulo original: Los hijos de La Luz

    Copyright 2005: Random House Mondadori, S.A., Barcelona

    Copyright 2006: Csar Vidal Direitos cedidos para esta edio

    EDIOURO PUBLICAES S.A. Rua Nova Jerusalm, 345 - Bonsucesso

    CEP 21042-235 - Rio de Janeiro, RJ

    Tel. (21)3882-8338 - Fax (21)2560-1183

    www.relumedumara.com.br

    A RELUME DUMARA UMA EMPRESA EDIOURO PUBLICAES

    Reviso Maria Helena Huebra

    Editorao Dilmo Milheiros

    Capa Simone Villas-Boas

    CIP-Brasil. Catalogaao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    V691f Vidal, Csar, 1958-O crime dos Illuminati / Csar Vidal ; traduo Antnio

    Fernando Borges. - Rio de Janeiro : Relume Dumar, 2006

    Traduo de: Los hijos de Ia luz ISBN 85-7316-491-3

    1. Romance espanhol. I. Borges, Antnio Fernando, 1954-. II. Ttulo.

    06-3160 CDD 863

    CDU 821.134.2-3

    Todos os direitos reservados. A reproduo no-autorizada desta publicao, por

  • qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violao da Lei n 5.988.

    Para aqueles que combatem, incansveis,

    honrados e valentes, as obras ocultas das trevas

    SSSSSSSSuuuuuuuummmmmmmmrrrrrrrriiiiiiiioooooooo

    Primeira parte

    OOSS FFIILLHHOOSS DDAA LLUUZZ

    Segunda parte

    CCOONNSSPPIIRRAAOO

    Terceira parte

    NNMMEESSIISS

    Eplogo

    A bela Lola, por Zo Valds

  • PPPPPPPPRRRRRRRRIIIIIIIIMMMMMMMMEEEEEEEEIIIIIIIIRRRRRRRRAAAAAAAA PPPPPPPPAAAAAAAARRRRRRRRTTTTTTTTEEEEEEEE

    OOOOOOOOssssssss ffffffffiiiiiiiillllllllhhhhhhhhoooooooossssssss ddddddddaaaaaaaa

    lllllllluuuuuuuuzzzzzzzz

    UUmm

    Paris, 21 de janeiro de 1793

    REALMENTE MUITO CURIOSA a maneira como as impresses ficam gravadas

    em nosso crebro, para depois emergirem, de vez em quando, graas ao efeito quase

  • mgico da memria. De um desfile demorado, recordamos no a aparncia marcial do

    elegante capito ou as palavras piedosas pronunciadas de maneira emotiva pelo capelo

    ao abenoar as tropas, nem mesmo a variedade de cores dos uniformes. O que fica

    retido em nossa mente, pelo contrrio, o semblante acalorado de um soldado

    campons, suarento e avermelhado, a quem o uniforme de gala atormentava como se o

    estivesse submetendo a uma tortura. De um te-dum solene esquecemos a pregao

    sentida do Evangelho, o grande nmero de fiis e at o motivo transcendental da

    cerimnia impressionante, mas no corao fica impressa a aparncia sonolenta de um

    sacristo barbeado com descuido ou da anci que cochilava durante a homilia. Assim

    age a memria, e a de Karl no era uma exceo entre as de outros tantos integrantes do

    gnero humano. Daquela manh, ele se lembraria de muitas coisas, mas, principalmente,

    ficaria inscrita em suas lembranas a colocao assimtrica do patbulo.

    Tratando-se de uma praa e levando-se em conta a quantidade nada desprezvel

    de espectadores podia-se dizer que metade de Paris estava concentrada naquele lugar

    o mais lgico teria sido instalar aquele ambiente de morte no centro, procurando a

    eqidistncia, para que o maior nmero possvel de espectadores contemplasse, talvez

    at com deleite, quase sempre com curiosidade, o que iria acontecer dentro de alguns

    segundos. No entanto, no fim das contas, os guardies da revoluo, os defensores da

    liberdade, os impulsionadores da igualdade tinham optado por coloc-lo quase numa

    esquina.

    O patbulo se erguia, assim, entre o caminho que levava aos Champs Elises e

    um curioso... pedestal? Sim, tudo parecia indicar que aquele volume enorme e quase

    amorfo tinha sido um pedestal em algum momento de um passado talvez no distante.

    Se bem que, a ser assim, para que esttua exatamente ele tinha servido de plataforma?

    Devia ter sido uma escultura odiada, porque a tinham arrancado quase pela raiz. Nem

    mesmo o pedestal tinha se salvado da ao daquelas multides que os dirigentes da

    revoluo chamavam com vigor de "cidados" e de "o povo". Karl achou inclusive que,

    em outros tempos, o pedestal devia ter contado com um revestimento de mrmore e

    bronze, mas desses materiais to nobres s restavam agora fragmentos em mau estado.

    At a pedra, que agora aparecia, riscada e triste, a descoberto, como uma mulher que

    tivessem tirado da cama para lhe arrancar a roupa em seguida, tinha um aspecto

    deplorvel, como se algum tivesse tido prazer em espanc-la e, no final, enfadado e

    exausto, tivesse desistido da tarefa extenuante.

    O cadafalso tinha sido erguido a poucos passos daquele vestgio lastimvel de

    um passado que, de to prximo, quase parecia presente e que os "cidados" desejavam

  • arrancar pela raiz. Tinha sido coberto por tbuas compridas, colocadas de maneira

    transversal, que serviam para esconder uma complicada estrutura que parecia

    proveniente do Garde-Meuble1. Exatamente no extremo oposto ficava a escada srdida

    que terminava na parte alta do cadafalso, desprovida de corrimo.

    Karl sentiu como se uma bola de metal o atingisse violenta e inesperadamente

    na boca do estmago, quando contemplou um objeto de forma cilndrica colocado sobre

    o patbulo. Estava coberto de couro e, sim, no restava dvida, era a cesta onde a cabea

    do condenado deveria cair. Claro que no se tinha certeza de que fosse acontecer assim.

    De sada, a lmina da guilhotina no parecia muito pesada. Na verdade, era pequena e

    tinha uma forma curva, quase como um daqueles gorros frgios que muitos dos

    presentes usavam. Como no se via nenhum dispositivo que pudesse segurar a cabea

    do ru uma vez que tivesse sido separada do corpo, podia-se imaginar que ela saltaria

    do cadafalso e talvez chegasse at a multido. Os servidores da liberdade teriam

    preparado tudo dessa maneira ou, pelo contrrio, tratava-se de mais uma demonstrao

    de incompetncia, que por ser grosseira no era menos soberba, e da qual davam

    mostras com tanta freqncia? Karl no sabia e, para falar a verdade, tambm no tinha

    nesses momentos um esprito suficientemente forte para se dispor a investigar isso.

    De maneira inesperada, uma rajada de vento percorreu a praa, arrancando-o

    daquelas reflexes. No serviu, no entanto, para aliviar o mal-estar que tinha tomado

    conta dele. Pelo contrrio: arrastou at seu nariz, mais forte e vigorosa, uma mistura

    repugnante e variada de cheiros. Roupa suja, suor acumulado em axilas e ps, baforadas

    de lcool mal digerido... tudo aquilo o envolveu com seu fedor espesso e, por um

    momento, ele pensou que no conseguiria conter a nsia de vmito. Mas conseguiu.

    Custara-lhe muito chegar at ali e no estava disposto a perder o espetculo por culpa

    do asco.

    Um murmrio, inegvel mas reprimido, avisou-o de que tudo iria comear em

    alguns instantes. No se enganou. Em meio a um silncio sepulcral, uma carroa

    desgastada, puxada por cavalos, entrou na praa e se dirigiu para o cadafalso. Se no

    fosse pelas pessoas que ficaram na ponta dos ps para poder observar melhor a cena, e

    que se espezinharam, e que amaldioaram, e que blasfemaram, quase teria parecido que

    no havia ningum naquele lugar.

    O carro chegou, lenta mas inexoravelmente, at o patbulo, e Karl pde ver que

    os carrascos eram quatro. Se no fosse pelas divisas, tricolores e desproporcionalmente

    1 Edifcio-museu onde ficavam expostos objetos e jias da famlia real.

  • grandes, que usavam nos nada modestos chapus de trs pontas, qualquer um teria dito

    que pertenciam ao antigo regime. As mesmas calas, as mesmas casacas, os mesmos

    penteados... bem, no fim das contas, tambm executavam o mesmo ofcio realizado

    tantas vezes ao longo dos sculos.

    O ru estava acompanhado por trs sacerdotes, era evidente, mas o

    comportamento deles no poderia ser mais dessemelhante. Dois deles estavam vivendo,

    sem qualquer sombra de dvida, um momento extraordinariamente divertido. Karl

    pestanejou para ter certeza de que o que estava vendo era real, e, claro, no teve dvida

    alguma: aqueles dois clrigos brincavam como se estivessem desfrutando de uma alegre

    romaria. Engoliu a saliva. A praa transbordava de inimigos do condenado, mas

    ningum tinha se atrevido a se mostrar alegre naquelas circunstncias. Aqueles dois

    eram a exceo. Inclusive, um deles tinha comeado a apontar a barriga e os quadris do

    ru e a zombar de suas formas.

    O terceiro, pelo contrrio, demonstrava um comportamento diametralmente

    oposto. Da distncia em que se encontrava, Karl no podia distinguir suas feies com

    clareza, mas tudo parecia indicar que era vtima de um forte retesamento que talvez

    pudesse ser atribudo tristeza. No, aquele sacerdote no apenas no se divertia com a

    cena como, de fato, ela devia estar lhe causando uma dor insuportvel.

    O carro parou, finalmente, no meio de um espao amplo e vazio que rodeava o

    cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas no desprotegido. Estava rodeado por canhes e

    pessoas portando as mais diferentes armas. Piques2, lanas, mosquetes...

    O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas

    mos um livrinho que Karl tentou em vo identificar e que acabou achando que fosse

    um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o ru pisou

    no cho, trs dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder sua

    origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma

    dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa slida, o homem fez

    um gesto para afast-los e se livrou ele mesmo da pea de roupa.

    Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia

    bvio que no estavam acostumados semelhante demonstrao de dignidade

    principalmente de aprumo por parte de algum a quem iriam separar a cabea do

    corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante.

    De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do ru e

    tentaram segur-lo pelos pulsos. Karl no pde escutar o que o condenado respondeu,

    2 Lana antiga

  • mas captou sem dvida a firmeza, no empertigada mas natural, com que jogou o corpo

    para trs para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele.

    O grande filho-da-puta no se deixa amarrar... Karl escutou uma velha

    colrica a seu lado resmungar. Se fosse por mim, no iriam colocar a corda

    propriamente nas mos.

    Mas alm daquela mulher que talvez no tivesse tantos anos quanto as

    infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam ningum disse nada. Ningum a

    no ser os carrascos, que tinham comeado a se agitar como se impelidos pelo ventinho

    que soprava na praa. De repente, um deles levou a mo boca como se fosse uma

    trombeta e gritou algo que Karl no chegou a entender. Dois soldados que usavam o

    gorro frgio vermelho se apressaram em atender a seu chamado.

    Foi ento que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro

    sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que,

    quase com toda a certeza, no era francs. No, ele no era. Seus traos e suas feies

    indicavam algum de origem nrdica. Poderia se tratar de um alemo, de um holands,

    inclusive de um ingls. Em todo caso, no era uma circunstncia to relevante. O

    significativo era que ele tinha se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se

    dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, at de

    suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou trs frases, mas foram suficientes para

    que o ru elevasse os olhos para o cu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mos.

    Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele no

    poderia garantir, mas Karl teve a impresso de que um dos carrascos amarrava o ru

    com uma expresso de triunfo insolente, como se fosse a consumao de um longo

    processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele

    gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso

    comearam a tocar seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte.

    Quando o ru comeou a subir a escadinha que levava at a guilhotina, Karl

    percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respirao

    desejando que o condenado no escorregasse, casse ou tropeasse naquela subida

    sinistra para a morte. Se no aconteceu nada disso, talvez se deva ao fato de que o

    terceiro sacerdote, o que no parecia francs, agarrou-o pelo brao com a inteno de

    ajud-lo. No entanto, aquela colaborao piedosa durou apenas o tempo de subida.

    Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o ru se

    soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o

    espao que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com

  • tanta segurana, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava

    por um jardim desfrutando do bom tempo.

    Achava-se a ponto de alcanar a lmina, quando parou e olhou para os

    tamborileiros. distncia em que Karl se encontrava no lhe permitiu captar a carga

    exata que o condenado colocou naquela expresso, mas o certo que as mos deles

    ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roassem a pele dos

    instrumentos.

    Morro inocente de todos os crimes de que me acusam disse o ru com

    uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza

    mais alm da praa. Perdo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o

    sangue que vocs esto prestes a derramar no caia nunca sobre a Frana.

    Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assovio repercutiram

    depois que o condenado pronunciou aquelas ltimas frases. Por um instante pareceu que

    o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha

    deixado de girar, que o sol se fixara no firmamento. Ento, uma mo, que parecia sada

    do nada, cravou-se no antebrao daquele homem vestido de branco e o puxou para a

    guilhotina. No houve nenhuma resistncia. O ru parecia reconciliado com seu destino

    como poucos teriam estado. Documente, quase com mansido, permitiu que dois dos

    carrascos, que continuavam com os chapus na cabea, estendessem-no sob a lmina. A

    execuo durou alguns instantes mas, ao contrrio do que Karl tinha temido, a cabea

    no saltou at o cho, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lmina tenha

    evitado aquela profanao extra.

    Um dos carrascos, alto, corpulento, com aparncia brutal, aproximou-se da

    cesta e, agarrando a cabea pelos cabelos, levantou-a para que a multido a visse.

    Durante alguns momentos, deixou que o sangue jorrasse abundante do pedao de corpo

    j sem vida. No entanto, aquela exibio de fora triunfal no pareceu comover os

    presentes, talvez impressionados demais com o que tinha acontecido durante os minutos

    anteriores. Foi ento que o carrasco jogou a cabea no cesto com um gesto depreciativo

    e de uma s puxada apanhou a casaca branca que estava cada no cho do cadafalso.

    Agitou-a por um instante no ar como se fosse uma bandeirola e depois a atirou com

    violncia sobre a multido. Por um breve instante, a pea de roupa descreveu um vo

    curto que foi abortado por um oceano de mos que se lanaram para dela se apoderar.

    Entre rugidos e gritos, uivos e clamores, aquela brancura desapareceu

    completamente no meio da massa. Como a vida daquele homem que tinha acabado de

    ser guilhotinado, Lus XVI, o cidado Capeto, um monarca de trinta e oito anos com

  • que se encerravam oito sculos de dinastia bourbnica na Frana. Nada restava daquela

    dinastia que um dia tinha dominado metade da Europa. Num sentido nada metafrico,

    tinha sido cortada de um golpe s.

    Enquanto assim pensava, Karl observou como o terceiro sacerdote, o que no

    parecia francs, o que tinha tentado consolar o rei, descia agora do cadafalso,

    ultrapassava a primeira linha de soldados e se perdia no meio da multido. Parecia

    atordoado, exausto, submetido a um impacto que no podia suportar. Ningum,

    absolutamente ningum, prestou ateno nele.

    Karl enfiou a mo no bolso e tirou do colete desbotado um relgio dourado.

    Eram pouco mais de dez e quinze. E ento, exatamente quando afastou o olhar da esfera

    branca, ele o viu. Era ele, sim, era ele. Sem nenhuma sombra de dvida. Talvez

    estivesse um pouco mais magro, embora no muito, e seus cabelos estivessem mais

    ralos e grisalhos, mas era ele. E o olhava. Olhava-o com aqueles olhos inquisitivos que

    pretendiam, e quase sempre conseguiam, esconder o que corria pelo fundo de seu

    corao.

    O corao de Karl comeou a bater com mais fora do que a que os

    tamborileiros tinham empregado para bater nos instrumentos. Sabia que o encontraria

    ali. Sempre soubera disso. No poderia ser de outra maneira. E agora, enfim,

    encontrava-o. Ali, no mesmo lugar onde acabava de desaparecer a monarquia mais

    importante da Europa. Apertou os punhos, respirou e tentou abrir caminho at o lugar

    onde ele se encontrava. Deu dois, trs, quatro empurres para alcan-lo. Mas, de

    repente, desapareceu. Angustiado, movimentou a cabea para um lado e para o outro,

    at que seu pescoo doeu, enquanto procurava encontr-lo.

    Empenhava-se nisso quando uma das abas da casaca ficou agarrada entre duas

    matronas que conversavam animadamente, ainda que sem muito critrio, sobre a

    execuo do Capeto. Conseguiu recuper-la, suja e amarrotada, de um puxo, e,

    seguindo um impulso instintivo, tentou lhe devolver uma elegncia que talvez tivesse

    perdido para sempre. Foi ento, quando levantou a vista, com a desolao embargando

    seu rosto, que ele o viu novamente. De maneira incrvel, tinha conseguido se livrar

    daquele imenso mar de corpos malcheirosos, e se colocar na outra extremidade da praa

    abarrotada. Mas como ele tinha conseguido isso? Karl cravava os cotovelos, os punhos,

    os antebraos em qualquer ser vivo que se interpusesse em seu caminho. No, agora no

    podia tornar a escapar. Tinha que agarr-lo.

    O fugitivo porque ele era isso, de fato livrou-se daquele pesado

    espartilho humano entretecido com milhares de corpos quando Karl estava a quase

  • duzentos passos dele. Arfando, suando por todos os poros, reprimindo as maldies que

    lutavam para brotar de seus lbios, contemplou desesperado como sua presa inatingvel

    apertava o passo e, quando chegou a uma esquina, comeava a correr.

    Demorou ainda alguns minutos para se livrar daquela mar, em que no eram

    poucos os que j se vangloriavam de contar com um retalho da casaca branca do

    Capeto. Quando conseguiu, comeou a correr, embora estivesse consciente de que no

    tinha rumo certo nem sabia em que direo seguir. No poderia dizer o tempo que durou

    aquela corrida, mas, por fim, o esgotamento o obrigou a encerr-la e Karl teve que se

    apoiar contra o muro gelado de uma rua desconhecida tossindo violentamente e

    tentando recuperar o ritmo da respirao.

    Inalou gulosamente o vento frio da manh, como se disso dependesse sua vida,

    como se num instante s pudesse conduzir aquele oxignio indispensvel at o ltimo

    lugar de seus pulmes, como se lhe fosse dado recuperar a juventude, o vigor e a alegria

    gastos naquele incidente longo, o mais longo de sua existncia. Um incidente que tinha

    comeado anos atrs, em outro lugar e em outra poca.

    DDDDDDDDooooooooiiiiiiiissssssss

    Baviera, 1775

    COMO BONITA, DISSE A SI MESMO enquanto calculava na mo esquerda o peso

    do animal. Sim, e como gorda. E olhe que era raro neste tipo de animal. Mas a lebre...

    bem, a lebre era uma delcia. Pele suave, cor deliciosa e aparncia opulenta. No deveria

    ter sofrido muito. Tinha se emaranhado no lao na altura do pescoo e pelejando para se

    libertar s tinha conseguido se estrangular mais rapidamente. Acontecia de vez em

    quando com estes animaizinhos. Dava um pouco de pena, mas precisava comer.

  • Balanou a cabea como se quisesse arrancar dela qualquer vislumbre de compaixo e,

    com um gesto rpido, soltou o animal da armadilha que tinha lhe arrancado a vida, e o

    jogou no embornal. Foi nesse momento que o viu.

    Foi apenas um instante e com toda a certeza no teria percebido nada se

    no tivesse sacudido o cangote justo nesse mesmo momento em que seu olhar se

    entrecruzou com o que saa de uns olhinhos midos, redondos e pretos, incrustados no

    rosto assustado e trmulo de um filhote de coelho.

    Com gesto rpido, o caador ficou de p de um salto e se precipitou sobre a

    presa inesperada. Sem dvida, era uma cria da lebre enorme que tinha acabado de

    apanhar. Tinha que ficar com ela.

    Conseguiu dar dois passos antes que o animalzinho se precavesse do perigo

    que avanava em sua direo. Sem dvida, tinha contemplado como sua me ficara

    presa e como tinha perdido a vida no curso de um ritual que nunca tivera antes a

    oportunidade de contemplar. Agora, o medo e o espanto o impediram de reagir a tempo.

    No entanto, de qualquer forma conseguiu se mexer. Deu um salto instintivo direita

    para evitar aquelas manoplas que se lanaram sobre ele e depois, ainda presa do estupor,

    comeou a correr.

    Foi uma corrida inexperiente, desajeitada e lenta. Tpica de algum que at

    aquele momento no sabia o que era ter que se salvar de um agressor. Impelido mais

    pelo susto do que por um medo suficiente para ativar seu instinto de autopreservao, o

    filhote de lebre tratou de se esconder entre uns arbustos.

    O caador se lanou sobre os arbustos convencido de que pegaria aquele

    animalzinho. Estava enganado. A sombra daquela massa se precipitando sobre ele

    acabou tirando do estupor aquele infeliz filhote de lebre. Deu um novo pulinho e, agora

    sim, comeou a correr para se afastar daquele ser que ele no tinha visto antes mas que

    parecia representar um verdadeiro perigo.

    Com as orelhas transformadas em antenas que o avisavam da proximidade de

    seu inimigo, o filhote de lebre descreveu uma corrida em ziguezague que no o afastou

    da cilada persistente, mas pelo menos impediu que ela se transformasse numa realidade

    letal. Ofegante, o caador procurava se aproximar do animalzinho e prend-lo entre o

    vazio ameaador que suas mos formavam, mas, repetidas vezes, aquele ser mido

    evitou a tenaz. Com o instinto que s a experincia proporciona, compreendeu que sua

    nica oportunidade de encurtar distncias e alcanar o animalzinho era engan-lo. Deu

    uma passada com a perna direita que assustou o filhote de lebre e fez com que saltasse

    para a esquerda e, justo nesse momento, precipitou-se sobre ele.

  • Ele lhe escapou por duas mseras polegadas, mas era bvio que o caador tinha

    encontrado o mtodo que lhe permitiria sair com sucesso daquela misso. Bem, era s

    uma questo de repetir a jogada no momento exato em que o animalzinho estivesse

    suficientemente prximo.

    No fez isso. Enquanto o filhote de lebre corria para se pr a salvo maior

    distncia possvel, o caador vislumbrou algo que distraiu sua ateno. No incio, s

    chegou at seu corpo uma soma de sensaes fortes e absorventes. Um cheiro

    penetrante de carne em decomposio, o zumbido irrequieto do que pareciam ser

    centenas de moscas, os raios de sol descendo entrecortados sobre um tronco de rvore

    para se atirar depois pela casca e, revolta, rutilante e avermelhada, uma cabeleira que s

    podia pertencer a um ser humano.

    Ele parou, inalou uma golfada de ar, passou a mo pela testa suarenta e, por

    alguns instantes, procurou compreender o que significava tudo aquilo que se oferecia,

    agressivo e pujante, a seus sentidos. No conseguiu quela distncia e, tendo j relaxado

    a perseguio ao filhote de lebre, deu alguns passos na direo da inesperada

    descoberta.

    O fedor de podrido arranhou suas fossas nasais, mas no o deteve. Espantou

    com furiosos golpes de mo o bando de moscas e conseguiu distinguir uma imagem

    diferente de qualquer outra que j tinha se oferecido antes a suas pupilas.

    Tratava-se de um homem jovem, sem dvida. Era at possvel que no tivesse

    ultrapassado a casa dos vinte anos. No entanto, agora no passava de um despojo ftido

    e coberto de insetos verde-azulados. O rosto parecia destrudo, esmigalhado, esvado,

    como se tivessem tentado desmanch-lo at torn-lo irreconhecvel. No entanto, o

    caador disse a si mesmo que o mais certo era que aquela terrvel abraso se devesse

    ao combinada das feras e das moscas. Quanto ao resto do corpo... As meias estavam

    destrudas, mas enquanto o p direito conservava um sapato, no esquerdo os dedos,

    avermelhados e rodos, do morto sobressaam no meio do tecido. As calas, sujas e

    cobertas de lama, estavam espantosamente rasgadas na altura das virilhas, embora os

    rasges se encontrassem quase totalmente cobertos por espessas nuvens de moscas que

    se movimentavam febrilmente em busca de uma presa que o caador no sabia ao certo

    qual era. Finalmente, as folhas pareciam ter ajudado a cobrir pudicamente as mos, os

    braos e o peito do defunto.

    Por um instante, contemplou aquele ser humano, agora merc de alguns

    predadores que, por serem menores, no eram mais compassivos ou menos eficazes do

    que ele. Ento, de forma inesperada, sem qualquer aviso prvio, sentiu um enjo clido

  • e incontrolvel que subia desde o ventre. Teve, primeiro, um espasmo seco que lhe

    arrancou algumas lgrimas e impregnou sua testa de suor. Titubeante, aproximou-se de

    uma rvore em que se apoiou subitamente mareado. Antes que tivesse apoiado os dedos

    da mo sobre o tronco, comeou a vomitar, tomado por irresistveis espasmos. Podia-se

    dizer que, ao expulsar todo o contedo de seus espasmos, se abrisse diante dele a

    possibilidade de reter a vida.

    TTTTTTTTrrrrrrrrssssssss

    Baviera, 1787

    WILHELM KOCH PASSOU A MO pelo queixo. Sentiu ento um pequeno tufo de

    plos mal barbeados, localizado duas ou trs polegadas abaixo da tmpora. Aqueles

    hspedes inesperados e, sobretudo, indesejados arrancaram dele um ricto de mal-estar

    que saltitou de seus lbios. Por alguma razo que no era fcil de descobrir as regras

    familiares, a educao com os jesutas, um motivo csmico etc. no podia tolerar a

  • desordem nem a falta de harmonia. Era uma atitude extensiva tanto ao traado de uma

    rua quanto limpeza de suas camisas, a uma operao aritmtica bem resolvida ou

    luta implacvel contra o crime. No suportava nada que parecesse dissonante, torto, feio

    ou ruim. Talvez por isso poderia ter sido arquiteto, msico ou matemtico. Certamente

    por isso era um policial. Ele era, e dos melhores. Dificilmente se poderia encontrar, em

    toda a Baviera, um outro igual.

    Ao longo de vinte anos de servio, tudo tinha corrido bem, ou seja, de maneira

    ordenada. Roubos, fraudes, violaes, assassinatos... raras foram as transgresses da lei

    que no soubera enfrentar com sucesso. E tudo, absolutamente tudo, era devido a seu

    mtodo. Na opinio de Koch, a questo se limitava a encontrar o ponto exato em que a

    harmonia que governava o cosmos era quebrada. Da mesma forma como uma tubulao

    quebrada s pode ser consertada quando se descobre o lugar onde ocorre o vazamento, o

    crime exigia que se detectasse a partir de quando a ordem social foi rompida. Um pai

    que no se comportava de acordo com a moral, uma me que esquecia suas obrigaes,

    filhos que passavam por cima de seus deveres filiais... e com o que nos deparvamos?

    Um desfalque, um adultrio, ou at um assassinato. Sim, na verdade, o trabalho de Koch

    consistia em algo muito parecido com os encanamentos. Justamente por isso,

    incomodava-lhe que suas camisas no estivessem devidamente passadas, as botas

    impecavelmente lustradas ou o rosto perfeitamente barbeado.

    O que tinha agora diante dos olhos dava a sensao de ser outro vazamento

    intolervel no mago do edifcio social. Tinha se deparado com ela pedindo os

    processos atrasados para rever o que estava pendente. Tudo j se achava canalizado num

    aqueduto de ordem que garantia, mais cedo ou mais tarde, que acabaria sendo resolvido

    de maneira segura. Tudo, a no ser o processo que agora estava aberto diante de seus

    olhos. Este, em resumo, de forma intolervel, no trazia nmero de referncia, nem

    meno ao agente que o tinha comeado, nem data de entrada. Era uma pasta nua,

    perdida no arquivo, era cujo interior jazia o que no deixava de ser uma carta como

    tantas outras, escrita com tinta preta, com traos regulares, sobre um papel grosso

    embora no necessariamente caro. Mas o contedo era uma outra questo.

    Nada nos seria mais til do que uma histria da Humanidade que fosse

    adequada. O despotismo roubou a liberdade. Como os fracos podem se

    defender? S atravs da unio, mas esta no fim das contas rara...

    At ali, a carta apenas repetia os lugares-comuns de tantos inimigos da

  • monarquia e da religio. Todas aquelas besteiras sobre a liberdade, o despotismo e os

    fracos. Inclusive o chamamento em busca da unio. No entanto, quando se chegava a

    esse ponto, aquela carta dava uma guinada importante, totalmente reveladora:

    Nada pode ajudar a conseguir tudo isto alm das sociedades secretas...

    As sociedades secretas... repetiu Koch num sussurro enquanto estendia a

    mo direita at uma xicrinha de caf que repousava sobre sua limpa e organizada

    escrivaninha.

    Por um instante, limitou-se a saborear aquela beberagem preta, forte e amarga.

    No suportava o caf com mel ou com acar. Achava que ado-lo era uma forma de

    privar o lquido de sua fora, de um vigor que acabava sendo indispensvel para aclarar

    sua mente. Procurou com a lngua qualquer resto de caf que pudesse ter ficado no

    interior da boca e continuou a leitura.

    As escolas secretas de sabedoria so os meios que um dia libertaro os homens

    de seus grilhes. Em todas as pocas, foram os arquivos da natureza e dos

    direitos do homem; e graas a elas a natureza humana se erguer desse seu

    estado ruinoso.

    Koch bebeu outro gole de caf e, enquanto sua boca se franzia num esgar de

    desprezo, disse:

    O que que voc sabe, seu pateta, sobre o estado ruinoso da natureza

    humana?

    Os prncipes e as naes desaparecero da face da terra. A raa humana se

    transformar ento numa famlia, e o mundo ser a morada dos Homens

    racionais.

    Da face da terra... disse Koch, que tinha se detido naqueles pargrafos e

    os repetia vrias vezes como se quisesse rumin-los.

    Certamente, podem ocorrer alguns distrbios; mas, pouco a pouco, os

    desiguais chegaro a ser iguais; e depois da tempestade, vir a calmaria.

    Acaso as conseqncias mais lamentveis iro permanecer justamente

  • quanto os motivos de discrdia tiverem desaparecido? Homens, erguei-vos!

    Koch passou a mo pela parte de seu rosto em que o barbeiro no tinha

    demonstrado exatamente um excesso de eficincia. Franziu os lbios com fastio, porque

    determinou que no ia se deixar distrair. No podia se permitir isso, sem dvida. Talvez

    aquele personagem fosse simplesmente um louco - nunca se podia descartar essa

    hiptese , mas a experincia lhe dizia que a falta de juzo no s no garantia a

    segurana como, no poucas vezes, era seu pior inimigo.

    A Moralidade que conseguir tudo isto; e a Moralidade fruto da

    Iluminao. Os direitos e os deveres so recprocos. Se Otvio no tem

    direito, Cato no tem nenhuma obrigao em relao a ele.

    Koch pousou a xicrinha no pires, procurando fazer com que a posio ficasse

    simtrica. Em seguida, pegou uma pena de ganso que repousava, branca e inflexvel, na

    escrivaninha polida, e a molhou com suave energia num tinteiro gordo de prata. Depois,

    escreveu numa folha de papel os nomes de Otvio e Cato. Pelo que lhe constava, eram

    referncias ao imperador dos romanos e ao famoso censor, no se tratava de nomes

    verdadeiros, mas, ao mesmo tempo, sabia que podiam ser pseudnimos de personagens

    to tangveis quanto a poltrona em que se encontrava sentado.

    A Iluminao nos mostra quais so nossos direitos, e a Moralidade a segue;

    essa Moralidade nos ensina a crescer, a nos libertarmos, a amadurecer e

    caminhar sem as amarras de sacerdotes e prncipes.

    Koch segurou agora a carta com as duas mos e cravou o olhar na ltima frase,

    "...caminhar sem as amarras de sacerdotes e prncipes... caminhar sem as amarras de

    sacerdotes e prncipes... caminhar sem as amarras de sacerdotes e prncipes." Quando se

    quer dominar uma sociedade, preciso aniquilar primeiro aqueles que a governam...

    Respirou fundo, verificou com enfado que no restava caf na xcara e

    lanando mo de uma sineta que se erguia marcialmente a algumas polegadas de sua

    mo esquerda tocou-a com fora. Passaram-se apenas alguns instantes e na porta macia

    do aposento se ouviram algumas pancadas curtas, como se temessem incomodar.

    Entre disse Koch com uma voz que soou fria e carregada de autoridade.

    Um rapago de barba loura e eriada enfiou seu rosto avermelhado pela fenda aberta

  • entre o umbral e a porta.

    Alguma ordem, si? perguntou com uma voz que pretendia aparentar

    uma atitude servial mas que pouco conseguia.

    Mais caf respondeu Koch apontando com o indicador a xcara vazia.

    Uma xcara, si? indagou o jovem.

    Uma jarra respondeu Koch e no se demore, Steiner. Tinha que

    reconhecer que a advertncia carecia de sentido. Na verdade, Steiner, apesar da

    juventude, constitua um verdadeiro exemplo de ordem e delicadeza. Uma ordem que

    lhe dava era obedecida de maneira imediata e eficiente. Com certeza, no tinha se

    enganado quando permitiu sua entrada na corporao, e ao coloc-lo perto dele.

    Quando Steiner fechou a porta, Koch se felicitou pela contribuio ordem

    que o agente representava. Bem que gostaria de dedicar alguns instantes

    autocomplacncia, mas teria que ser mais tarde. No momento... no momento, existiam

    prioridades.

    Jesus de Nazar, o Gro-Mestre de nossa ordem, apareceu numa poca em que

    o mundo se encontrava na mais absoluta Desordem, e entre pessoas que

    durante sculos tinham gemido sob o jugo da Escravido. Ensinou-lhes as

    lies da razo. Para agir de uma forma mais eficaz, serviu-se da Religio

    das opinies que eram correntes naquela poca e, de uma forma muito

    astuta, combinou suas doutrinas secretas com a religio popular, e com os

    costumes que tinha a seu alcance. Foi justamente neles que envolveu suas

    lies: ensinou atravs de parbolas.

    Parbolas... nunca lhe teria ocorrido pensar que as parbolas contivessem um

    ensinamento secreto vinculado a causas polticas. Sem dvida, tinha que reconhecer que

    a carta era, alm de disparatada, substanciosa.

    Jesus escondeu o significado valioso e as conseqncias de suas doutrinas, mas

    as revelou com cuidado a alguns poucos eleitos. Fala do reino dos justos e dos

    fiis, do Reino de seu Pai, de quem somos filhos. Limitemo-nos a tomar a

    liberdade e a igualdade como os grandes objetivos de sua doutrina, e a

    Moralidade como o caminho para os alcanar, e todo o Novo Testamento ser

    compreensvel; e Jesus aparecer como o redentor dos escravos.

  • Koch no era um homem especialmente religioso. Certamente, acreditava em

    tudo o que a Santa Madre Igreja ensinava e guardava minuciosamente os dias santos,

    mas no poderia determinar que o que o impelia a isso era a devoo ou o desejo de que

    a ordem no se rompesse. Contudo, apesar de seu pouco entusiasmo, tinha suficiente

    conhecimento da religio para chegar concluso de que aquilo que tinha acabado de

    ler no passava de puro disparate. Ento, pensou com ironia, catlicos e protestantes

    passaram dois sculos se enfrentando em terras alems, em metade da Europa, do outro

    lado do oceano, simplesmente porque no tinham compreendido que o cristianismo se

    limitava a impelir a liberdade dos escravos... Que ridculo! Que idiota poderia acreditar

    em semelhante tolice? Bem, precisava concluir aquela leitura o quanto antes.

    Sim, entre disse quando ouviu que batiam na porta. Steiner depositou um

    bule de caf fumegante sobre a mesa.

    Quer que eu o sirva, si? perguntou solcito o rapaz de rosto

    avermelhado.

    Koch fez um gesto com a mo indicando-lhe que deveria sair do aposento. Um

    tanto surpreso, o jovem inclinou a cabea e cochichou algumas palavras de cortesia

    antes de sair.

    Pousou a carta sobre a escrivaninha, impulsionou com um movimento a

    poltrona para poder se afastar do mvel em que se apoiava e ficou de p. Notou ento

    que estava com as articulaes inchadas, cansadas, como que dormentes. Levou as duas

    mos aos rins e esticou o trax para trs. Em outra ocasio, teria produzido um estalo na

    altura das vrtebras lombares, mas agora sentiu apenas um alvio agradvel e rpido.

    Sorriu satisfeito quando constatou que as costas respondiam devidamente. Deu alguns

    passos para contornar a mesa, colocou-se diante da jarra e serviu-se de uma nova xcara

    do lquido amargo. Segurou-a com as duas mos como se sustentasse um clice e, por

    um momento, permitiu que seu olhar divagasse pela espuma do caf. Finalmente,

    aproximou o recipiente dos lbios e bebeu um gole longo, quente e eletrizante que o

    levou a fechar os olhos para aproveit-lo melhor.

    Bem disse em voz baixa. Terminemos com isto o quanto antes.

    Alguns poucos eleitos receberam as doutrinas em segredo, e elas nos foram

    transmitidas embora freqentemente quase soterradas sob o lixo da

    inveno humana pelos maons. As trs condies da sociedade humana

    esto expressas pela pedra bruta, pela pedra lascada e pela pedra polida. A

    pedra bruta e a pedra lascada expressam nossa condio sob o governo. bruta

  • por causa da terrvel desigualdade de condio, e lascada porque j no somos

    uma famlia e alm disso nos encontramos divididos por diferenas de governo,

    de classe, de propriedade e de religio; mas quando nos vemos reunidos numa

    famlia nos vemos representados pela pedra polida. G a Graa, a Estrela

    flamfera a Tocha da Razo. Aqueles que possuem este conhecimento so

    certamente Illuminati...

    Illuminati ? Koch esfregou o queixo com uma expresso pensativa. Era uma

    palavra latina ou italiana? Illuminati... sim, claro, respondeu com um sorriso. Os

    iluminados! S podia ser isso. Aqueles que tm a luz que no atinge a outros e que

    mostra os conhecimentos secretos so iluminados! Que coisa bvia! Tinha custado a

    encontrar o significado, mas a culpa era desse pessoal. Empenhavam-se em ser to

    retumbantes, to pedantes, to rebuscados que acabavam obscurecendo o trivial.

    Aqueles que possuem este conhecimento so certamente Illuminati tornou a

    ler. Hiram nosso Gro-Mestre fictcio, morto pela REDENO DOS

    ESCRAVOS; os Nove Mestres so os Fundadores da Ordem. A Maonaria a

    Arte Real, na medida em que nos ensina a caminhar sem travas, e a governar a

    ns mesmos.

    O olhar de Koch desceu at o p da pgina e deu com uma assinatura na qual,

    com toda a nitidez, podia se ler Espartaco.

    Espartaco... Veja s. Nada menos do que Espartaco. Serviu outro caf e o

    tomou em pequenos goles enquanto cruzava o aposento com passos tranqilos e

    pausados. Estava mergulhado nas reflexes mais profundas e, quando ocorria tal

    eventualidade, a rapidez com que sua mente funcionava contrastava com a lentido que

    impunha a seus gestos. Finalmente, parou, respirou fundo e murmurou:

    Lebendig, Lebendig...

  • QQQQQQQQuuuuuuuuaaaaaaaattttttttrrrrrrrroooooooo

  • Frana, maio de 1793

    ENFORQUEM ELES! Enforquem eles!

    Quem lanava os gritos era um homem cujo rosto parecia cinzelado pelo sol do

    norte da Frana. Avermelhado, seco, enrugado, toda a fora de seu corpo endurecido

    parecia se concentrar em volta de seus lbios, uns lbios fendidos que pediam morte.

    Sim, enforquem eles! repetiu como um eco uma anci.

    Enforc-los? respondeu outra voz. A pauladas! Deviam ser mortos a

    pauladas!

    Pena no termos uma... uma daquelas mquinas que eles tm em Paris

    lamentou-se um rapaz de no mximo quinze anos.

    Karl deu uma olhada nos prisioneiros. Era bvio que estavam tomados por uma

    insuportvel sensao de pnico. Quantos eram. Um, dois... seis. Nada menos do que

    seis. E era com seis homens que o governo republicano de Paris pretendia impor seu

    programa poltico? Com certeza, ou eles se valorizavam em excesso ou tinham uma

    idia muito pobre dos camponeses franceses. verdade que eles impressionavam com

    aquelas casacas azuis, com aquelas divisas enormes presas aos chapus e,

    principalmente, com os sabres e as pistolas, mas como lhes tinha ocorrido pisotear de

    forma to ousada os sentimentos daquelas pessoas?

    Acabem com eles! Acabem... com mquinas. A pedradas.

    Vocs tm alguma coisa a dizer perguntou o que assumia o comando.

    Alguma decrarao a fazer?

    No, no dava a impresso de que os detidos estivessem para muitas

    declaraes. Os cinco soldados estavam realmente apavorados e no era para menos

    e quanto ao suboficial... era bvio que tentava manter o nimo, mas seu bigode

    tremia de maneira incmoda. Estava, no mnimo, to apavorado quanto seus

    subordinados. Pobre infeliz!

    D pa saber, por exemplo continuou o chefe improvisado pru 'qu

    vocs tinham que vir neste povoado pra queimar a igreja?

    Karl teve que intuir as ltimas palavras. A pergunta mal tinha chegado ao

    verbo queimar quando um clamor irado, feroz, com ressonncias de morte, preencheu o

    ar espesso e quente que os envolvia.

    Sim, pru'gu?. Pru'qu? gritavam num francs spero, mastigado e

    sombrio os habitantes do povoado.

  • Karl disse a si mesmo que, provavelmente, a nica resposta era: por uma

    mistura de defeitos humanos... soberba, orgulho, sectarismo, nevoeiro mental,

    ressentimento... Tudo aquilo tinha se misturado nos coraes dos soldados e, como

    resultado direto, tinham decidido proclamar a liberdade universal ateando fogo na

    modesta igreja do povoado. Era preciso reconhecer que no deixava de ser uma idia

    peculiar do que significava ajudar a liberdade. Para assegur-la, acabavam com a

    liberdade de culto. Era no havia como duvidar um dos muitos paradoxos daquela

    revoluo que parecia no terminar nunca. Certamente, os homens de Paris e seus

    executores de provncias podiam emitir uma argumentao para justificar aquele ato

    de destruio. Como a Igreja Catlica era um instrumento de opresso, sua pulverizao

    sua incinerao, melhor dizendo acabaria tendo como resultado imediato a

    liberdade do gnero humano. Talvez, mas aquela liberdade conseguida a golpes de

    tocha e tiros de pistola no conseguia convencer Karl. Pior: na verdade, dava-lhe uma

    sensao de inquietude muito parecida com a angstia.

    D no mesmo. D no mesmo! comeou a dizer um homenzinho de uns

    quarenta anos, calvo e usando um calo ridiculamente amarelo. Se os matarmos... se

    os matarmos...

    Nada de "se", Pierre interrompeu o que tinha defendido que os

    enforcassem. Vamos mat-los. Vamos fazer com que esse pessoal de Paris receba

    um castigo. Mas... o que que eles esto pensando? Eles acham que podem vir at aqui

    e nos tirar o trigo e levar nosso vinho e ainda cagar na Virgem? isso o que eles

    acham? Ah, isso no, isso no. Vamos, uma corda.

    Em outras circunstncias, Karl teria tentado argumentar com aquelas pessoas

    que tinham se transformado numa massa enfurecida que gritava seus desejos de morte.

    Sim, sem dvida, teria feito isso, mas naquele povoadozinho do norte da Frana...

    Durante meses, um pequeno grupo de advogados e jornalistas, de nobres progressistas,

    de maons, tinha empurrado a velha monarquia dos Capeto para o aniquilamento. Mas o

    que tinha acontecido depois era muito diferente daquilo que a Inglaterra tinha vivido um

    sculo antes. No havia chegado ao poder um revolucionrio piedoso como Cromwell

    ou uma rainha religiosa e prudente como Ana. No. Os novos governantes da Frana

    estavam convencidos de que podiam mudar o pas com a mesma facilidade com que um

    oleiro d a um pedao de barro a forma que quer. Bem, talvez pudessem fazer isso em

    Paris e Karl tinha suas dvidas mas no campo...

    Aqui est a corda gritou uma mulher bonita, viosa, alta.

    Precisamos de mais disse o homem seco com um tom de voz que

  • oscilava entre a reprovao pela escassez e a pressa em corrigir isso.

    Demoraram apenas alguns minutos para reunir as cordas, fazer um n

    corredio e coloc-las no pescoo dos presos. Antes que Karl conseguisse ver o que

    estava acontecendo, os homens eram arrastados como se fossem ces levados pela

    coleira. Levantando uma poeirada seca e amarela, saram do povoado, enquanto

    cuspiam ameaas e insultos sobre os revolucionrios.

    Parem! Parem!

    Karl tentou ver quem tinha dado a ordem detendo aquela massa no meio da

    qual ele se movia procurando no se ver envolvido. No conseguiu.

    Saia a do meio, monsieur Blondel escutou o homem seco dizer. O

    povoado vai zecutar justia.

    O povoado vai zecutar justia... Sim, a gramtica era deplorvel, mas as idias

    no poderiam ser mais claras. Eles a mulher bonita, a velha, o homem seco, os que

    tinham fornecido as cordas, o rapaz que tinha desejado ter uma guilhotina... todos

    eles representavam o povoado e no iam permitir que os homens de Paris lhes

    impusessem sua revoluo, essa revoluo que comeava levando os produtos do campo

    e em seguida queimava igrejas e plantava uma guilhotina na praa do lugar.

    resistncia a esse plano revolucionrio libertador e cidado, teriam dito em Paris

    eles chamavam zecutar justia. Com certeza, nem Marat, nem Danton nem Robespierre

    estariam de acordo com aquele julgamento e, certamente, teriam srias restries em

    considerar povo aqueles que estavam dispostos a enfrent-los.

    Reiniciaram a caminhada. Karl ento reparou num homem vestido de maneira

    modesta, embora melhor do que o resto dos camponeses, afastado beira da estrada.

    Tinha os olhos avermelhados e o horror estampado no rosto. Devia ser o tal Blondel.

    Bem que ele gostaria de sair do tumulto e lhe dizer que no se preocupasse, que tinha

    feito o possvel, que at tinha chegado s raias do herosmo com seu comportamento.

    No fez isso, porque a vontade de saber onde aquilo ia dar era mais poderosa naquele

    momento do que qualquer outra considerao.

    Ali... Ali!

    A multido acelerou o passo como se tivesse acabado de ouvir um ensalmo.

    Karl tambm apertou o passo para evitar se ver envolvido. Foi assim que chegou,

    suarento e sufocado, at uma esplanada. Com certeza, aquele terreno devia ser bonito

    em circunstncias normais. Era uma pradaria branda e suave que ficava muito perto de

    uma pequena floresta, Sim, seguramente os aldees deviam se reunir ali em dias de festa

    para beber e se divertir. Era o lugar ideal.

  • Venham! Ali mesmo!

    Karl viu agora com toda a nitidez o lugar que o outro apontava. Tratava-se de

    um pequeno grupo de rvores robustas, circunspectas, transpirando dignidade. Pareciam

    estar esperando ali desde a aurora dos tempos para cumprirem sua misso solene e

    especial, de servirem de patbulos aos que tinham se atrevido a arrasar o que aqueles

    que arrancavam seu sustento da me Terra consideravam mais sagrado.Quase como se

    fossem um s homem, meia dzia de lavradores atiraram as cordas at a copa das

    rvores. As sogas no chegaram a tocar o cho. Antes que terminassem de cair, seis

    grupos de pessoas, orquestrados como se tivessem ensaiado a execuo dezenas de

    vezes, apoderaram-se da ponta e comearam a puxar com todas as suas foras.

    Karl observou horrorizado a maneira como os corpos dos soldados se elevavam

    no ar enquanto seus rostos se congestionavam pela presso que a soga exercia em suas

    gargantas. Era duvidoso que os enforcassem. Seguramente, em vez dessa morte quase

    rpida que vem determinada pela fratura da nuca, sofriam os estertores do

    estrangulamento. De fato, eles se retorciam como peixes tirados da gua, enquanto seus

    ps se separavam do cho.

    Teve a sensao de que a agonia se prolongava eternamente, mas, na verdade,

    ela foi rpida. Apenas em um deles, o que parecia mais jovem, a vida pareceu resistir

    idia de abandonar um corpo que tinha vivido pouco. A batalha estava perdida de

    antemo e, alm do mais, a concluso se acelerou quando uma anci se agarrou aos ps

    do ru e puxou. No conseguia entender a dureza daquelas mulheres que tinham

    ultrapassado com folga a casa dos sessenta anos. A que poderia obedecer aquela

    insensibilidade, aquela nsia, aquela falta de piedade? Talvez no fosse possvel

    generalizar e cada caso acabasse sendo diferente. Para as mulheres, que tinha visto em

    Paris entusiasmadas com os estragos causados pela guilhotina, talvez aquelas execues

    fossem apenas uma confirmao de que a injustia, real ou imaginria, estava sendo

    punida: aplaudiam uma espcie de eqidade csmica implantada sobre rios de sangue.

    Para as daquele povoado, o motivo certamente era diferente: deviam estar convencidas

    de que quem se atrevesse a destruir a religio, o fruto do duro trabalho cotidiano, a

    famlia e a paz s poderia ser digno de uma morte rpida.

    Contemplou por um instante os seis corpos. Sim, estavam mortos. Quanto a

    isso, no havia a menor dvida. Mesmo porque pelas pernas de suas calas, como um

    testemunho sujo e humilhante, escorriam filetes de urina e excrementos.

    CCCCCCCCiiiiiiiinnnnnnnnccccccccoooooooo

  • Baviera, 1775

    STEINER SE INCLINOU SOBRE OS restos mortais do jovem. Custou-lhe muito

    reprimir uma mistura de asco e mal-estar que tinha se agarrado a seu pescoo como se

    fosse um cachecol de l. Apesar dos anos de servio que j tinha na polcia de

    Ingolstadt, no conseguia controlar uma certa averso por cadveres. Descobrir ladres,

    vigiar suspeitos, estabelecer cada passo seguido para urdir uma fraude engenhosa e

    mesmo redigir relatrios e instruir processos lhe pareciam tarefas tolerveis, aceitveis,

    at divertidas. No entanto, no conseguia se acostumar ao exame de um cadver. J

    tinha se perguntado mil vezes qual era o motivo de sua averso e nunca conseguia

    elucid-lo completamente. Por certo, havia o aspecto fsico da decomposio da carne.

    Por mais que o catecismo se referisse a ela ou a lembrasse pontualmente na celebrao

    da quarta-feira de cinzas, Steiner no conseguia se familiarizar com o fato de que um

    corpo que ontem respirava, que at se mostrava vioso e saudvel, acabasse reduzido

    condio de carnia pestilenta. Sentia isso, sentia-o na alma, mas no conseguia se

    acostumar.

    No entanto, seu desconforto asfixiante e indesejvel no se limitava ao aspecto

    da decomposio de rgos e msculos. No, de forma alguma, quem dera fosse assim.

    Na verdade, o que lhe causava mais desgosto era a inegvel evidncia de que a morte

    significa um final realmente terrvel e que no existia a certeza de que tudo no

    terminasse no meio de vermes e de putrefao. Certamente, havia os ensinamentos

    religiosos, e a afirmao do Credo sobre a ressurreio da carne, e at os diferentes

    meios oferecidos pela Santa Madre Igreja para facilitar a sorte dos condenados ao

    purgatrio. Tudo aquilo ele conhecia e, claro, acreditava.

    O problema era que, quando se encontrava cara a cara com um cadver, seus

    sentidos se viam to invadidos pelo cheiro de morte, pela viso da morte e pelo toque da

    morte, que a f numa vida duradoura era, talvez, no aniquilada, mas ofuscada como o

    sol encoberto por um mar de nuvens cinzas e algodoadas. E, justamente quando chegava

    a esse ponto, uma mistura de repugnncia e mal-estar, de repdio e desagrado,

    apoderava-se dele, provocando-lhe suor nas mos e angstia no peito.

    De boa vontade ele teria se desligado da investigao dos homicdios, mas

    semelhante graa no lhe foi concedida. Koch se sentia to satisfeito com sua maneira

    de trabalhar uma faca de dois gumes, sem dvida que no apenas tinha se

    transformado num ajudante privilegiado para seu trabalho de resoluo, mas tambm,

  • em algumas ocasies, insistia em que fosse encarregado de dar os primeiros passos.

    Exatamente por causa disso, tinha agora que examinar aquele despojo sujo e carcomido

    que um caador infeliz tinha encontrado.

    O homem tinha chegado tremendo ao posto de polcia e, num primeiro

    momento, os agentes que o viram pensaram que ele tinha acabado de sofrer alguma

    desgraa. E, at certo ponto, era verdade. Enquanto passava por terras que no eram

    suas, tinha encontrado um cadver. Em outras circunstncias, o peso da lei teria cado

    sobre ele, acusando-o de caar furtivamente ou, pelo menos, de invaso de propriedade

    privada. Agora, no entanto, aqueles detalhes estavam amenizados pela gravidade de um

    homicdio. Bem, sucedera assim porque Koch tinha enviado Steiner para examinar o

    corpo e ele tinha decidido que era uma perda de tempo atacar um pobre homem que

    caava lebres de forma ilegal, quando graas a ele se podia botar as mos num

    delinqente de muito maior envergadura. Koch nunca teria aprovado essa maneira de

    agir. "Por acaso devemos perdoar o transgressor menor porque existe outro maior?",

    teria perguntado de forma retrica, para depois acrescentar indignado: "De forma

    alguma, Steiner, de forma alguma." Mas ele encarava isso de outra maneira, e agia de

    acordo com isso. Agradeceu ao homem, disse-lhe num aparte discreto que no deveria

    dizer a ningum o que estava fazendo naquele territrio de caa e, ato contnuo,

    mandou-o ir descansar em casa.

    Levantaram o cadver na presena de um dos juzes mais experientes de

    Ingolstadt, que pensava em se aposentar em menos de um ano, mas, no momento,

    insistia em se manter na ativa.

    Coisa ruim disse quando passou os olhos sobre o morto.

    Alimentaram-se do rapaz.

    No era nenhum exagero. A pancada que tinham lhe aplicado na cabea e que,

    quase com certeza, tinha ocasionado a sua morte no era nada do outro mundo. Tratava-

    se do tpico traumatismo que deixa claro e manifesto como fcil obrigar um pobre

    infeliz a cruzar o umbral que separa a vida da morte. At a, tudo estava dentro dos

    limites da normalidade. O problema era quando se examinava o restante do corpo. O

    pescoo, o peito e o rosto apresentavam arranhes nada desprezveis, mas o pior era a

    regio que se estendia pela frente do umbigo at o incio das coxas e por trs em torno

    do nus. Os animais tinham-se fartado, no havia dvida, mas tudo parecia indicar que

    algum tinha se antecipado a eles.

    Qual a sua opinio, herr doktor3? perguntou o juiz quando o galeno

    3 Em alemo, no original.

  • terminou o exame do cadver sob os olhares atentos dos presentes.

    Pobre rapaz... murmurou de forma quase inaudvel o mdico. Ningum

    podia negar a justeza daquelas palavras, mas, para falar a verdade, no esclareciam

    muito a situao. Pobre rapaz, sim, mas por qu?

    Poderia ser um pouco mais... explcito? atreveu-se a dizer Steiner.

    O mdico respirou fundo e, sem afastar os olhos do cadver, comeou a cevar

    um cachimbo de tubo longo. Era um bonito exemplar de artesanato bvaro, com um

    bocal de madeira entalhada primorosamente e um fornilho alongado de porcelana.

    Devia ter lhe custado bem caro, pensou Steiner.

    Bitte4, algum de vocs tem fogo? perguntou o mdico depois de ter

    certeza de que o tabaco estava bem assentado no interior do cachimbo.

    Foi o juiz quem atendeu sua solicitao e, imediatamente, o ambiente se

    encheu de uma fumaa azulada que desprendia um cheiro agradvel de uma substncia

    que Steiner no conseguiu identificar, mas que ele agradeceu porque encobria, pelo

    menos em parte, o fedor da morte.

    Eles o mataram de um s golpe. Isso indubitvel, mas... interrompeu a

    explicao para dar uma nova sugada no cachimbo mas o mais terrvel que o crime

    veio acompanhado de um comportamento... bem, recuso-me at a qualific-lo. Um

    pouco antes ou um pouco depois da morte, a vtima foi sodomizada.

    Desculpe?... exclamou Steiner, que no tinha certeza de ter escutado

    direito.

    Ele foi sodomizado disse o mdico, com a mesma serenidade com que

    teria comentado que as nuvens anunciavam chuva.

    Est querendo dizer... comeou a dizer Steiner, que no conseguia dar

    crdito s palavras do galeno.

    Estou querendo dizer que o assassino cometeu com este infeliz o pecado

    pelo qual Deus destruiu as cidades mpias de Sodoma e Gomorra. Mas no foi uma ao

    voluntria. Violentaram o rapaz. O alargamento do nus no deixa margem a dvidas.

    Desde j, espero que o tenham matado antes.

    E as feridas no pbis? perguntou Steiner.

    Algumas podem ter sido ocasionadas por animais, mas tenho a impresso de

    que j encontraram o trabalho bem adiantado. O assassino se fartou com as partes do

    rapaz.

    O senhor acha que pode ter sido uma vingana por ele ter se recusado a se

    4 Em alemo, no original.

  • entregar? perguntou Steiner.

    O doutor encolheu os ombros, deu uma nova sugada no cachimbo e lanou no

    ar uma baforada de fumaa azulada. Desta vez no foi uma seqncia de gestos

    prazerosos, mas um encadeamento de movimentos cansados, quase dolorosos.

    Talvez... talvez... disse. Em todo caso, depois de o matar, parece que

    se deleitou em profanar o cadver.

    Um silncio incmodo desceu sobre o aposento. Dava a impresso de que

    nenhum dos presentes queria estar ali, de que teriam dado alguma coisa valiosa para

    poderem se livrar da obrigao de examinar o cadver. Sentiam-se surpresos diante de

    uma manifestao da maldade humana que ultrapassava aquilo que estavam

    acostumados a presenciar em seu papel de mdico, juiz ou policial.

    O assassino deixou alguma pista? quebrou finalmente o silncio Steiner.

    Quer dizer, cabelos, um boto, um pedao de roupa...

    Absolutamente nada respondeu o mdico. Quase... quase d a

    impresso de que se preocupou em apagar qualquer pista depois de matar e sodomizar o

    rapaz. Ou ento era um fantasma...

    Ora, vamos! protestou o juiz quando ouviu as ltimas palavras. Tudo

    isso j bastante complicado em si para que o senhor se dedique a brincar com as

    palavras.

    Um fantasma, repetiu mentalmente Steiner. Definitivamente, nada daquilo iria

    agradar a herr Koch.

    SSSSSSSSeeeeeeeeiiiiiiiissssssss

  • Baviera, 1787

    MAIS DE UMA VEZ, mais de duas, mais de uma centena, Koch tinha se

    perguntado por que Lebendig e, principalmente, a casa de Lebendig no lhe

    provocavam nenhuma sensao de mal-estar. E isso apesar de que, sem nenhuma

    espcie de dvida, nunca tinha conhecido ningum to desorganizado quanto ele. No,

    nem antes nem depois que cruzara seu caminho ele tinha tido oportunidade de ver

    algum semelhante. Era curioso mas, para dizer a verdade, suas vidas nunca teriam se

    cruzado se no fosse por aquele padre bbado. Sim, bendito padre bbado.

    Tinha chegado numa manh, fazia nove anos, sufocado e furioso, afirmando

    que desejava recuperar alguns papis pessoais que andavam em poder de um tal

    Lebendig. Durante alguns minutos, o policial que o atendia o ouvira com enorme

    interesse, quase com devoo se fosse possvel usar essa expresso de uma forma

    que no soasse imprpria , mas no tinha demorado a perceber que aquele homem

    dizia apenas incoerncias e que nada indicava que tivesse sido objeto de algum ato

    punido pela lei. Foi nesse momento que, alegando que o caso que lhe expunha requeria

    uma pessoa mais importante, tinham-no encaminhado para ele.

    Koch tinha precisado apenas de dois minutos para compreender que o clrigo

    em questo se sentia enormemente ofendido e que transpirava desejos de vingana por

    cada poro da pele. O mximo que podia se perceber, no entanto, era que um sujeito

    chamado Lebendig tinha dado dinheiro ao padre em troca de que escrevesse em alguns

    papis. Pensou imediatamente que devia se tratar de um analfabeto necessitado de um

    copista. Havia-os tanto uns quanto outros aos montes em Ingolstadt.

    Tratava-se de alguma carta para a noiva ou a me? perguntou Koch ao

    brio sacerdote.

    No respondeu acalorado. No, no, no. Ora essa! Ele me fazia

    escrever... s isso.

    Ah, sim disse Koch respirando fundo , mas isso, padre, se me permite

    dizer, no um crime.

    O sacerdote passou os dedos pelo rosto como se quisesse arrancar alguma coisa

    muito grave que tivesse ficado agarrada sua pele.

    Calma, calma, que... Bem, primeiro, ele me fez escrever. Nada em

    especial. O que eu quisesse. E eu escrevi. Eu escrevi! Modstia parte, posso dizer que

    desde meus tempos de seminrio poucas pessoas tiveram uma letra melhor do que a

  • minha. E assim era. No ficaria bem eu negar isso...

    Koch concordou com a cabea, enquanto se perguntava mentalmente quanto

    tempo seria capaz de suportar aquela histria.

    Ento ele me manteve escrevendo um tempinho. No muito. Um tempinho.

    Um tempinho repetiu Koch, procurando lhe dar segurana.

    Mas depois comeou a me dar bebida continuou o padre com uma

    mistura de arrependimento e raiva na voz.

    fora? perguntou Koch, embora tivesse conscincia de que a pergunta

    era totalmente desnecessria.

    fora? Bem, no... no acho que se possa dizer que ele tenha me forado.

    No, na verdade ele no fez isso mas...

    Mas... repetiu Koch, tentando ajudar o clrigo a continuar seu relato.

    Mas olhou minha letra, sim, olhou minha letra e disse: "Estupendo,

    estupendo, o que eu pensava."

    "Estupendo, estupendo, o que eu pensava" repetiu Koch sem tirar os

    olhos do clrigo.

    Isso, ele disse isso. "Estupendo, estupendo, o que eu pensava." Ento me

    avaliou outro tempinho e, de repente, saiu do aposento, voltou ao final de outro

    tempinho e me disse: "Sinto muito, padre, mas acabam de me dizer que o telhado de sua

    igreja acaba de desabar."

    Uma desgraa pensou em voz alta Koch.

    E como, e como! O senhor poderia jurar disse com os olhos abertos

    como pratos o sacerdote. Naquele momento, claro, eu tentei me levantar, partir, ir

    embora. O senhor me diga. Com a parquia em runas, que outra coisa eu podia fazer?

    Koch concordou mas no abriu a boca. Ou o padre estava louco de se internar

    ou estava prestes a chegar ao cerne da questo.

    Mas quando tentei me levantar, esse... esse Lebendig ps a mo em meu

    ombro e me disse: "Padre, eu lhe suplico, escreva alguma coisa. O que for, mas escreva

    alguma coisa."

    E o senhor escreveu?

    Claro... claro que sim. No vou esconder. Escrevi. E ento... a vem o pior...

    O sacerdote se apoiou na mesa, aproximou o rosto do de Koch e, ao mesmo

    tempo era que lhe lanava uma baforada de lcool que o policial achou insuportvel,

    disse:

    Ele leu o que eu tinha escrito e disse: "O que eu imaginava." O senhor

  • ouviu? Ele disse: "O que eu imaginava!" Naturalmente, eu aproveitei que ele estava

    lendo o papel para comear a correr at minha parquia...

    Naturalmente concordou Koch.

    Bem, pois cheguei minha parquia e o senhor sabe o que estava

    acontecendo?

    No fao a menor idia respondeu o policial.

    Pois nada disse o clrigo , nada. Nada! A igreja estava como sempre

    esteve. Sem uma rachadura.

    Koch se recostou no espaldar de sua cadeira quando escutou aquelas palavras.

    Naturalmente, toda a histria podia ser falsa, mas, se no fosse, o que ele tinha pela

    frente exatamente? Uma zombaria com a religio? No, ningum tinha perpetrado

    qualquer escrnio contra Deus, a Virgem nem contra nenhum santo. Uma fraude? Pelo

    contrrio. O padre em questo era quem tinha recebido o dinheiro. Era verdade que a

    histria do teto da parquia era falsa, mas isso no podia ser considerado um crime. Em

    outras circunstncias, Koch teria prometido ao sacerdote ocupar-se do caso e, ato

    contnuo, teria tratado de arquiv-lo, mas alguma coisa lhe dizia que o tal Lebendig era

    um personagem peculiar, to peculiar que podia interferir na ordem, impoluta e perfeita,

    que caracterizava a tranqila cidade de Ingolstadt.

    No se preocupe, padre disse por fim. D-me o endereo desse

    personagem e eu, pessoalmente, vou me ocupar de perguntar o que houve.

    Um sorriso de felicidade paralisou o rosto do clrigo quando ouviu aquelas

    palavras. Sem dvida, j estava quase convencido de que ningum o atenderia. E agora,

    agora aquele policial to atencioso, to ponderado, to diligente ia lhe dar ateno. Foi

    embora feliz, risonho, quase entusiasmado. Tanto que resolveu comemorar isso

    entrando na primeira taberna que cruzou seu caminho.

    Koch no agiu imediatamente. Deixou passar uns dois dias e, finalmente, foi

    at a casa do tal Lebendig. Ele morava num prdio no muito antigo de uma rea quase

    prspera da cidade. Com apenas algumas varas a mais, sua casa estaria numa rea

    invejvel. De onde se encontrava, tinha apenas que andar alguns minutos para se

    defrontar com algumas das pessoas mais necessitadas de Ingolstadt.

    O policial alisou o queixo enquanto corria os olhos pela entrada do prdio,

    depois respirou fundo e atravessou o umbral. Um cheiro de comida, no exatamente

    agradvel, invadiu suas narinas enquanto subia os degraus. No se poderia dizer que a

    escada estivesse suja, mas Koch teve a sensao de que aquele lugar no contava com

    toda a limpeza necessria. Era como se os vizinhos no tivessem um interesse especial

  • em manter a dignidade, embora tambm no se pudesse acus-los de sujos. Sem deixar

    de olhar as paredes e os degraus, chegou at o andar onde o padre tinha dito que aquele

    estranho indivduo morava.

    Herr Lebendig? perguntou quando abriam a porta.

    Sim, herr respondeu a mulher cuja silhueta aparecia no umbral, ao

    mesmo tempo em que acompanhava sua breve resposta com um movimento ligeiro de

    cabea.

    Gostaria de v-lo disse Koch num tom correto, mas que deixava claro

    que no aceitaria uma negativa.

    Espere, bitte disse a mulher enquanto fechava a porta.

    Koch ouviu alguns passos no interior, suficientemente quietos para afastar a

    hiptese de que algum quisesse fugir ao da justia. Ao fim de alguns instantes, a

    porta voltou a se abrir, confirmando seu ponto de vista.

    Entre, bitte.

    A mulher foi na frente, ao longo de um corredor peculiar. No era estreito

    demais e tambm no estava mal iluminado, mas num de seus lados estava apoiada uma

    estante comprida repleta de livros. Livros! Para que o morador daquela casa podia

    querer tantos livros? E, sobretudo, como que o padre no lhe tinha dito nada a

    respeito?

    A pergunta lhe pareceu ainda mais obrigatria quando ele desembocou,

    seguindo a mulher, numa saleta. Em outra casa, aquele cmodo estaria ocupado por

    diversos mveis. Um aparador onde expor melhor a baixela, cadeiras, talvez umas duas

    mesas, e at um piano ou um cravo... No entanto, aquela saleta tambm estava tomada

    pelos livros. Abarrotavam as estantes das paredes, mas tambm se remoinhavam - sim,

    remoinhar-se era a palavra apropriada - pelo cho do aposento. Ao mesmo tempo em

    que reprimia um calafrio, Koch pensou que aquelas montanhas formadas pelos volumes

    lembravam os tufos de ervas daninhas que abarrotam um jardim malcuidado.

    Sente-se, herr disse a mulher, mas Koch demorou alguns instantes para

    localizar algum lugar em que pudesse colocar suas ndegas.

    Encontrou-no numa cadeira minscula colocada entre duas pilhas de livros

    quase to altas quanto o assento. Ocupou-a e, ao se sentar, percebeu que aquela

    desordem tinha lhe provocado uma desagradvel transpirao na palma das mos. Tirou

    de sua manga direita um lencinho e as secou, enquanto se perguntava que crimes uma

    pessoa to desorganizada chegaria a cometer.

    Em que posso servi-lo?

  • SSSSSSSSeeeeeeeetttttttteeeeeeee

    Paris, 24 de julho de 1794

    KARL LEVANTOU O OLHAR PARA O CU. Ele continuava cinzento, plmbeo,

    asfixiante. No parecia que fosse descarregar uma s gota que pudesse aliviar aquela

    escurido. Pena. Nesta Paris da Revoluo, onde a sujeira, a fome e a violncia se

    alternavam com a lei de suspeitos e as execues dirias, teria agradecido pela chuva.

    Passou a mo pela testa para retirar o espesso suor que a cobria. Foi ento que seus

    olhos, fatigados e aborrecidos, detiveram-se na lareira. Tinha se transformado numa

    cavidade enegrecida, suja e, talvez, obstruda. S Deus sabia ao certo o tempo que devia

    fazer desde que a tinham acendido pela ltima vez. Graas a Ele, era vero. Sem dvida,

    ningum podia negar que os revolucionrios estavam conseguindo a igualdade. Por

    baixo, claro, mas igualdade afinal de contas, e para a imensa maioria da populao. Em

    toda a Frana.

    Quarenta e oito horas depois de terem cortado a cabea do desafortunado

    Capeto, tinha-se proclamado a Conveno. J no havia monarquia, nem mesmo

    limitada por aquilo que os filsofos chamavam de Constituio. quela altura Karl

    tinha certeza de que a ao da guilhotina no ia parar em Lus XVI. Depois seria a vez

    dos familiares prximos ao rei decapitado. Seria fcil justificar mais umas tantas dzias

    de execues alegando-se que assim se arrancava pela raiz a planta perniciosa da

    monarquia, que a liberdade do povo exigia isso, que luz da razo, e que bl-bl-bl.

    Sim, ele conhecia de sobra todo aquele palavrrio revolucionrio. Conhecia-o inclusive

    antes que sasse luz, difundido pelos jornais e outros meios. Tinha certeza de que se

    tratava apenas do primeiro passo. Porque depois viriam os aristocratas (por acaso no

    eram parentes dos reis?), os antigos funcionrios (por acaso no tinham servido aos

    reis?), os clrigos (por acaso no tinham abenoado os reis?), os militares (por acaso

    no tinham defendido os reis?), os professores (por acaso no tinham ensinado a

    obedincia aos reis?), os juzes (por acaso no tinham aplicado as leis dos reis?) e os...

    s Deus sabia onde os revolucionrios iriam parar em seu plano de criar uma nova

  • sociedade. Lamentavelmente, ele no tinha se enganado.

    No pde suportar por mais de um ms a voragem revolucionria. O assalto s

    igrejas, o confisco de edifcios, o saque ao comrcio, os insultos aos clrigos ou

    simplesmente aos que no andavam maltrapilhos pela rua... no, no podia tolerar por

    mais de alguns dias nem isso nem o insuportvel, pedante e vazio palavrrio

    revolucionrio. Com frio, chuvas e vento, abandonou Paris pensando no fato de que ele

    deveria estar em algum lugar, mas que com toda aquela confuso e desordem no

    conseguiria localiz-lo facilmente. Sua sada da capital no teve, portanto, carter

    definitivo. Era uma retirada estratgica, fadada a um retorno assim que a situao se

    desanuviasse.

    A situao no se desanuviou. Pelo contrrio: medida que adentrava no

    territrio francs, Karl foi vendo que seus piores vaticnios se cumpriam. Se em alguns

    povoados os camponeses, animados pelos agentes de Paris, queimavam os registros de

    propriedade, apossavam-se das terras, arrasavam as igrejas e assassinavam os patres,

    em outros esses mesmos camponeses defendiam de peitos nus as capelas, enfrentavam

    com foices e forcados os fuzis dos sans-culottes, e transformavam numa guerra santa a

    preservao de suas terras, suas igrejas e seus lares. Para uns, tratava-se de criar um

    mundo novo; para outros, de preservar o seu universo o que tinham erguido ao longo

    de geraes com o suor de seus rostos e seus braos e nessa luta no se concederiam

    quartel. Era difcil prever quem venceria a peleja mas, com toda certeza, quando ela

    terminasse os rios de sangue teriam se transformado em oceanos.

    Algumas pancadas na porta arrancaram Karl de suas reflexes sombrias.

    Cidado, cidado... est a?

    Sim, cidad, o que voc quer? respondeu procurando dar a suas palavras

    um tom de naturalidade.

    Abre, que eu lhe conto.

    Karl se levantou do catre onde estava deitado e foi at a porta. Abriu-a com

    dificuldade por causa da mistura de sujeira e ferrugem que a emperrava.

    Diga-me, cidad disse Karl.

    A mulher no disse uma s palavra, mas deu um empurro em Karl e, depois

    de abrir caminho de uma forma to especfica quanto mal-educada, andou at a metade

    do cmodo.

    melhor eu fechar explicou em voz baixa enquanto empurrava a porta.

    O brilho que saa dos olhos midos da mulher disparou no ntimo de Karl um

    sinal de alerta. Parecia bvio que ela queria alguma coisa e, ou ele estava muito

  • enganado, ou no iria sair de graa.

    Veja, cidado comeou a dizer enquanto um sorriso viscoso se juntava

    ao brilho inquietante de suas pupilas , eu... eu conheo algum...

    Fez uma pausa e piscou para ele o olho esquerdo. Era, sem dvida, um sinal de

    cumplicidade, mas Karl no conseguiu saber a que ele podia se referir. Por isso achou

    mais sensato manter silncio e esperar que a "cidad" lhe dissesse de uma vez o que

    queria.

    ...conheo algum que... que tem leite... leite e ovos... bem, poderia at

    conseguir um frango...

    Karl procurou controlar todos os msculos de seu rosto, embora, certamente, a

    idia de poder comer um ovo, e nem digamos um pedao de frango, tinha-lhe provocado

    um verdadeiro terremoto dentro do peito.

    Voc muito sortuda, cidad comentou com frieza.

    Ora, vamos! disse com voz de fastio, ao mesmo tempo em que lhe dava

    uma cutucada. Com certeza voc tem fome, cidado.

    Pela segunda vez desde que a mulher tinha batido na porta, Karl pressentiu o

    perigo. Era uma coisa difcil de explicar, mas to inegvel quanto a exalao de um

    cheiro ftido ou uma corrente de ar.

    Necessito comer como todos os cidados respondeu, preservando-se

    muito de dizer que tinha fome ...cidad.

    Sim, pensou, essa era a melhor resposta que podia dar. Constava que estavam

    prendendo pessoas simplesmente por se queixarem de que no havia po. No tinha a

    menor vontade de que aquela mulherzinha, inimiga de morte da gua e do sabonete,

    denunciasse-o por dizer que tinha fome, em outras palavras, por propaganda contra-

    revolucionria.

    Uma sombra de inquietao pousou sobre o rosto da mulher. Mau negcio, se

    ela no esperava essa resposta. Claro que tambm no lhe convinha que ela chegasse

    concluso de que ele abrigava alguma suspeita.

    Cidad disse Karl , se o que voc me oferece legal, se nossa

    Conveno autoriza, continue falando, porque eu sou um republicano leal e no estou

    disposto a permitir nenhuma deslealdade. Nenhuma, cidad.

    A inquietao deu lugar ao pnico no rosto na mulher. Sim, no havia dvida

    de que ela tinha ficado assustada. Agora era ela que tinha medo de ser denunciada. Karl

    disse para si que era um belo universo de liberdade e sabedoria aquele que os jacobinos

    estavam construindo. Ningum se atrevia a confiar em ningum e todos desconfiavam

  • de todos. As palavras cidado e cidad, isso sim, no lhes saa da boca.

    E ento, cidad? insistiu com firmeza Karl, que desejava livrar-se o

    quanto antes daquela criatura malcheirosa.

    ... legal, claro, cidado respondeu num tom trmulo. Posso lhe

    oferecer...

    Concluiu a frase aproximando seus lbios do ouvido de Karl.

    ...e por apenas...

    Karl refletiu por um momento. Em situaes normais, aquela oferta teria sido

    considerada um verdadeiro roubo, capaz de mobilizar as massas para assassinar o

    vendedor. Mas isso tinha sido na poca da odiosa monarquia. Agora, era preciso

    reconhecer que parecia barato demais para ser verdade.

    Agarrou o pulso esquerdo da mulher e o apertou com fora. No pde evitar

    uma nsia de compaixo. Ela no passava de um punhado de ossos fracos e finos

    envoltos apenas por uma pele prematuramente envelhecida.

    Se o que voc pretende contra-revolucionrio disse, arrastando as

    palavras , se vai contra a repblica, no descansarei at que sua cabea role como a

    do Capeto. Entendeu bem... cidad?

    Com as feies desfiguradas, a mulher concordou.

    Quando?

    Agora... agora mesmo, se quiser... balbuciou assustada.

    Ento vamos disse Karl.

    Ajeitou a desgastada casaca enquanto desciam os degraus da suja escada de

    madeira. Podia compreender que no houvesse comida, que o sabo escasseasse, que a

    roupa, qualquer roupa, tivesse se transformado em artigo de luxo, mas que motivo

    poderia justificar o fato de no limparem uma escada? Talvez, disse para si, a pessoa

    encarregada dessa tarefa tivesse decidido que era uma demonstrao de servido que

    deveria ser combatida. Bem, que magnfico, porcos mas livres. Seguramente algum

    desses filsofos intelectuais, como gostavam de cham-los que tanto abundavam

    na Frana acabaria escrevendo um ensaio intitulado "A imundcie como expresso da

    liberdade". No: da liberdade, no. Da liberdade cidad.

    Um cheiro desagradvel de couve arrancou-o de seus pensamentos, avisando-o

    de que se achavam perto da cozinha e, portanto, a alguns passos da rua. A mistura de

    cheiro de sujeira, de verdura cozinhando e de suor era to pesada que Karl sentiu um

    alvio momentneo quando se viu do lado de fora da hospedaria. Bem que gostaria,

    inclusive, de parar um pouco para respirar fundo o ar da manh, mas a mulher tinha

  • comeado a descer a rua numa velocidade que ningum poderia imaginar.

    Floreal5... Karl se virou e observou uma me preocupada em evitar que seu

    filho de... seis?... sete anos?... atravessasse a rua sem olhar. Floreal... um dos nomes

    trazidos pela revoluo. Como se chamaria aquele menino, na verdade? Jean? Pierre?

    Paul? Com certeza, teria o nome de algum apstolo, de algum personagem das

    Escrituras, de algum santo medieval, ao menos. Mas esses nomes j no eram

    permitidos. Indicavam falta de lealdade repblica dos cidados. Agora tinham que se

    chamar Heliotropo ou Frutidor6... ou Floreal. No havia problema para os recm-

    nascidos, mas aquela pobre criana... com certeza, no comeo no entendia por que

    tinha passado de uma coisa a outra sem aviso prvio. Por um momento, Karl no

    conseguiu reprimir um sorriso. No entanto, no podia se distrair. No enquanto

    estivesse com a mulher. A pobre velha estava to empenhada em no ser descoberta que

    qualquer policial acostumado teria percebido que tinha a inteno de realizar um ato

    ilegal. Pensou nesse momento em abandon-la e pegar um caminho diametralmente

    oposto, mas, por fim, disse a si mesmo que era pouco provvel que houvesse muitos

    agentes da ordem naquela Paris dos cidados. Certamente, algum teria tentado se juntar

    aos novos donos da rua, seria o natural, mas da a conseguirem ia uma distncia nada

    pequena. Apertou, portanto, o passo para alcanar a mulher e disse a si mesmo que,

    hoje, talvez pudesse proporcionar a seu corpo algo realmente substancioso. Se

    conseguisse isso, poderia classificar o acontecimento de uma autntica revoluo.

    5 Floreal: oitavo ms do calendrio republicano francs, cujos dias primeiro e ltimo

    coincidiam, respectivamente, com o 20 de abril e o 19 de maio.

    6 Frutidor: dcimo segundo ms do calendrio republicano francs, de 18 de agosto a

    16 de setembro.

  • OOOOOOOOiiiiiiiittttttttoooooooo

    Baviera, 1775-1776

    STEINER SE INCLINOU, melanclico e meditabundo, sobre a caneca de cerveja.

    Em outra ocasio, teria se preparado para dar conta rapidamente daquele lquido

    dourado e espumante, mas agora seu estado de esprito dificilmente poderia ser pior.

    Fazia vrias semanas que vinha alternando suas tarefas cotidianas que, para falar a

    verdade, no eram poucas com algo to voltil e difcil de encontrar como um

    suposto sodomita assassino. A que estava! Como se fosse pouco complicado

    descobrir algum que tinha acabado com a vida do prximo, ainda por cima neste caso

    tinha que ser um invertido. Podiam tambm andar atrs do rastro se que existia

    de um ladro zarolho, de um estuprador de vista curta ou de um vigarista de cabelo

    branco... Bem que gostaria de no estar naquela enrascada, mas era bvio que fugir ao

    cumprimento do dever e o dever eram as ordens firmes e categricas de herr Koch

    estava muito alm de sua capacidade.

    A morte e sodomizao ou a sodomizao e morte daquele jovem, que

    um desavisado caador furtivo encontrou certa manh enquanto perseguia um filhote de

    lebre, tinha se transformado numa pesada armadilha para a mente metdica e

    impregnada de sentimento de justia de seu superior. Era bvio que, como em tantos

    outros casos anteriores, o desejo que o dominava era o de recompor a ordem rompida

    pelo crime. At a tudo era normal, mas agora a misso estava se revelando mais difcil

    do que o habitual. E isso porque, tal qual o mdico tinha informado, nem no cadver

    nem no local onde ele tinha sido encontrado se tinha detectado o menor vestgio

    suscetvel de conduzir at o assassino ou que permitisse, ao menos, estabelecer a

    identidade da vtima.

    Durante as semanas seguintes, Steiner tinha se dedicado a percorrer os

    arredores da floresta, perguntando a todos aqueles que estiveram a seu alcance e,

  • certamente, a todas as pessoas que fizeram o possvel para no serem interrogadas.

    Velhos e crianas, religiosos e leigos, homens e mulheres, camponeses e artesos. Tinha

    interrogado a todos, mas no tinha obtido informao de ningum. A julgar pela

    investigao, no havia testemunhas oculares do crime, e o mximo que Steiner

    conseguiu foi que uma velha com o rosto transformado num verdadeiro canteiro de

    rugas se benzesse horrorizada ao ouvir suas perguntas.

    A senhora sabe de alguma coisa, vov? tinha perguntado com alguma

    esperana de que, afinal, pudesse fincar o p em algum terreno menos movedio.

    Meu filho respondeu a mulher , j se sabe aonde as ms companhias

    podem levar, e para quem fica em casa em segurana nunca acontece nada de mau...

    No houve jeito de lhe arrancar nem mais uma frase, e Steiner ficou se

    perguntando durante meses se a lacnica anci estava emitindo um juzo categrico

    sobre o morto ou se o advertia para se manter margem daquela histria, ou as duas

    coisas ao mesmo tempo, ou simplesmente nenhuma delas. No fim das contas, por mais

    que Steiner se esforasse, ningum conseguiu informar quem era aquele a quem um dia

    tinham arrancado a vida e submetido a uma cerimnia perversa. Ningum tinha

    presenciado nada. Ningum tinha visto ningum. Ningum tinha a menor idia de nada.

    Era como se um autntico furaco de silncio e esquecimento tivesse soprado sobre

    aquele cadver martirizado, arrastando qualquer fiapo mnimo que pudesse ajudar no

    esclarecimento do caso.

    Tudo parece indicar que no vamos conseguir nenhuma testemunha ocular

    disse Koch numa manh de segunda-feira, logo depois de tomar um generoso gole de

    caf.

    E agora? atreveu-se a perguntar Steiner. Quer dizer, qual deve ser o

    rumo da investigao...

    No se deter e seguir em frente respondeu seu superior com um sorriso

    paternal. Se voc est voltando do campo de carroa, despenca uma tempestade e

    voc fica atolado no caminho, voc procura chegar at a cidade do jeito que for ou fica

    esperando que um arcanjo venha tirar as rodas da lama?

    Steiner disse a si mesmo que, se a carroa tivesse alguma cobertura, certamente

    ele ficaria quietinho ali dentro esperando que a chuva parasse, mas j conhecia seu

    chefe o suficiente para imaginar a resposta que ele esperava.

    Seguiria em frente respondeu, procurando aparentar uma segurana que

    absolutamente no tinha.

    Pois isso mesmo que vamos fazer afirmou Koch.

  • Sim, Steiner concordou, mas continuar exatamente por onde? Porque, no que

    lhe dizia respeito, dificilmente poderia estar se sentindo mais desorientado.

    Descartadas as testemunhas oculares disse Koch, como se corresse em

    auxlio do naufrgio interior de Steiner , devemos nos direcionar para a localizao

    dos possveis criminosos. Obviamente, tanto se se tratar de um quanto de vrios, o lugar

    adequado para os encontrar em algum desses antros onde se renem os perpetradores

    daquele pecado que levou Deus a afundar Sodoma e Gomorra numa chuva de fogo e

    enxofre.

    Desculpe, herr disse um Steiner ainda mais inquieto, depois de escutar

    aquelas palavras. Onde se pode imaginar que vou encontrar essas pessoas? Quer

    dizer... desculpe minha ignorncia, mas... existem bordis para sodomitas ou... ou

    podem ser encontrados de alguma outr