o fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 ›...

20
O Fado na composição erudita do final de oitocentos Maria José Artiaga A procura de identidade No contexto dos nacionalismos europeus, o discurso português, ini- ciado nos anos oitenta do século XIX com as comemorações do tricen- tenário de Camões, adquiriu um tom de intenso patriotismo a partir de 1890 com o Ultimatum, passando a reflectir o sentimento de fragilidade do país num momento de crise económica e política. A longa história de independência portuguesa tornara premente a necessidade de in- vestigar a etnogenealogia do seu povo 1 , a partir dos traços psicológicos e espirituais da cultura popular, num tempo em que os levantamentos das tradições já se faziam por toda a Europa. Essa foi a tarefa da primei- ra geração de etnólogos portugueses, a partir das décadas de setenta e oitenta. Uma das figuras que mais se destacou nesse período foi Teófilo Braga. Na introdução ao Cancioneiro de músicas populares (1893-1899), de César das Neves e de Gualdino de Campos, Teófilo defende a música não apenas como um documento científico para o conhecimento do povo, através das suas canções e instrumentos, mas também como uma condição sine qua non para uma compreensão mais completa da poesia, por ser inseparável dela, ritmando o seu verso e, muitas vezes a sua 1 Expressão utilizada por João LEAL, Etnografias portuguesas (1870-1970). Cultura popular e identidade nacional, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000.

Upload: others

Post on 06-Jul-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos

MariaJoséArtiaga

AprocuradeidentidadeNocontextodosnacionalismoseuropeus,odiscursoportuguês,ini-

ciadonosanosoitentadoséculoXIXcomascomemoraçõesdotricen-tenáriodeCamões,adquiriuumtomdeintensopatriotismoapartirde1890comoUltimatum,passandoareflectirosentimentodefragilidadedopaísnummomentodecriseeconómicaepolítica.A longahistóriade independência portuguesa tornara premente a necessidade de in-vestigaraetnogenealogiadoseupovo1,apartirdostraçospsicológicoseespirituaisdaculturapopular,numtempoemqueoslevantamentosdastradiçõesjásefaziamportodaaEuropa.Essafoiatarefadaprimei-rageraçãodeetnólogosportugueses,apartirdasdécadasdesetentaeoitenta.UmadasfigurasquemaissedestacounesseperíodofoiTeófiloBraga.

NaintroduçãoaoCancioneirodemúsicaspopulares (1893-1899),deCésar dasNeves e deGualdinodeCampos,Teófilo defende amúsicanão apenas como um documento científico para o conhecimento dopovo,atravésdassuascançõeseinstrumentos,mastambémcomoumacondiçãosinequanonparaumacompreensãomaiscompletadapoesia,por ser inseparável dela, ritmando o seu verso e, muitas vezes a sua

1Expressão utilizada por João LEAL,Etnografias portuguesas (1870-1970). Cultura popular eidentidadenacional,Lisboa:PublicaçõesDomQuixote,2000.

Page 2: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga384

formae,aoanteceder-lhemuitasvezesnotempoenoespaço,permitirrecuaràs raízesprimitivasdasnações2.O levantamentodamúsicadanação emantologias, desdeque apoiado emmétodos científicos, aju-darianãosóaconheceroscostumespopulares,comocontribuiriapararealçarosdiferentes estádiosdahistóriadopaís.Noque respeitava àcriaçãomusical,omaterialcolectadodeveriaservirdeapoioaocompo-sitornatãodesejadarecriaçãodamúsicaportuguesa3.Comoexemplono passado, Teófilo apontava aModinha, um género considerado ca-racteristicamente nacional por conhecidos viajantes e personalidadesestrangeiras,comoWilliamC.Stafford4.

A falta, até aí, deuma recolha sistemáticadas fontesmusicais po-pulares levava muitos cronistas a considerarem ser essa a principalrazãoparaainexistênciadeumamúsicadecariznacional.Eraurgente,portanto,percorreropaísdenorteasul,coligir,comparar,antesqueacançãourbanacontaminasseacançãorural.Acompilaçãodeumcorpusmusicalsólido,deorigemrural,servirianãosódematrizeestímuloàimaginação do compositor como, desejavelmente, à constituição deuma linguagemmusical inovadora. Em 1899, escreviaManuelRamos:«a arte vemdopovo, soffrenasmãosdo artista de geniouma elabo-ração superior, transcendente, sem perder o travo da sua origem, evoltaaopovo»5.

Tendo como principal referência osmúsicos russos, que os portu-gueses ainda pouco tinham ouvido6, desejava-se que a música por-tuguesa alcançasse amesma autonomia e, sobretudo, umnível seme-

2«Melodiasportuguesas»,inC.NEVES-G.CAMPOS,Cancioneirodemúsicaspopulares,Porto:EmpresaEditora,1893,vol.I,V-VII.3Ibidem.4Sobreasorigensdamúsicaportuguesa,dizStafford:«Opovoportuguêspossuiumgrandenúmero de árias lindíssimas e de uma grande antiguidade. Estas árias nacionais são oslunduns e as modinhas. Estas em nada se parecem com as árias das outras nações, amodulaçãoé absolutamenteoriginal.»TeófiloBRAGA,História do teatro português. A baixacomédiaeaópera,Porto:ImprensaPortuguesa,1871,p.154.5«Apreciação crítica», in C. NEVES – G. CAMPOS,Cancioneiro de músicas populares, Porto:EmpresaEditora,1898,vol.III,VI.6DuranteasegundametadedoséculoXIX,edeacordocomosdadosatéagoradisponíveis,sabe-sequeoscompositores russosouvidosemLisboa,comexclusãodeAntonRubinstein,foramGlinka,pelomenosapartirde1879,Tchaikowsky,apartirde1884eessencialmentenamúsicadacâmara;Borodine,em1885mas,sobretudoapartirdadécadade1890.VerMariaJoséARTIAGA, «Continuity andChange inThreeDecadesofPortugueseMusicalLife 1870–1900»(diss.dedoutoramento,RoyalHolloway–UniversityofLondon,2007).

Page 3: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 385

lhante, que a tirasse da letargia, ou das influências italianas oufrancesas que a marcavam. Para tal, na Arte Musical advogava-se:«Aproveitemosdosmestresasliçõesenãoasmaneiras»7.

Como emmuitos outros países, acreditava-se na total pureza doscantaresrurais, fiéisdepositáriosdaalmadanação.NopreâmbulodoseuCancioneiro,CésardasNevesescreve:«Seopoemapopulard’umanacionalidade brota espontaneamente do sentimento do povo que aconstitue, pela assimilação de seus proprios elementos n’elle se con-substanciaoestadopsycologicoquelhedáahomogeneidade,eacon-centração de todas as suas forças vitaes lhe caracterisa a indepen-dencia»8.

Ésobreastradiçõespopulares,consideradassustentáculoslegítimosdanação,queoartistadeveprocurarasuainspiração,deformaacriarumprodutocapazdeserreconhecidocomogenuinamenteportuguês9,querdentrodopaísouforadele.Foiesta,quantoanós,aambiçãodeAlfredoKeil que, aopretender ser reconhecido comoomais legítimorepresentantedamúsicaportuguesa,ambicionava,poressavia,ver-lhereconhecido o mesmo estatuto a nível internacional, tal como acon-teceracomoscompositoresdepaísesmusicalmenteperiféricoscomoaNoruega,aDinamarcaouaFinlândia.

Asobrasque,umpoucopor todoo lado,surgiramnocontextodonacionalismo musical, podem ser consideradas um exemplo dessamesma tendência por, através da afirmação de elementos invocadoscomoautóctones,chamaremasioprotagonismomusicalfaceaospaí-sesqueatéaídetinhamasupremacia10.PartindodatesedefendidaporBenedict Anderson, de que «o factor nacional e o nacionalismo sãoartefactos culturais de um tipo especial»11, a vontade de emancipaçãomusical surgida durante o século XIX reflectiu-se de formas muito

7«AMusicanaAllemanha»,ArteMusical20(1874),p.2.8CésarA.dasNEVES–GualdinodeCAMPOS,Cancioneirodemúsicaspopulares,Porto:EmpresaEditora,1895,vol.II,XI.9JúlioNeuparth,narevistaAmphion,numapolémicatidacomMelloBarretodaArteMusical,dáaseguintedefiniçãodemúsicanacional:«amusicadequalquerpaizéaquenascedosseuscostumes, dos seus genios, das suas canções populares e se não póde confundir com a deoutroqualquer»,Amphion12(1891),p.90.10Ver,aesterespeito,HarryWHITE–MichaelMURPHY,MusicandNationalism:Re-evaluationsof the History and Ideology of European Musical Culture, 1830-1945, Cork: Cork UniversityPress,2001,p.10.11BenedictANDERSON,Comunidadesimaginadas,Lisboa:Edições70,2005,p.23.

Page 4: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga386

diversas, consoante a especificidade cultural, política e social de cadapovo. Em Portugal, ela vinha sendo requerida, entre outras razões,comouma formadeafirmaçãodamúsicaportuguesa, faceamodelosquehámuitovinhamsendopostosemcausa,comooitaliano.

OlevantamentodoreportóriopopularAsprimeirascompilaçõessurgidasnasegundametadedoséculoXIX

são da responsabilidade de João António Ribas, em 1857, de AdelinoAntóniodasNeveseMello,em1872,eajáreferidadeCésardasNeveseGualdinodeCampos,entre1893e1898.

NopequenocancioneirodeJoãoAntónioRibasoreportóriocolecta-doetranscritoparacantoepianoé,deacordocomoautor,daBeira,Trás-os-Montes eMinho.Nele aparecemdois fados,O fado atroador,deCoimbra,paravozepianoeOfadorigorozodaFigueiradaFoz,parapianosolo.EmambosocarácterqueapareceescritoéoLandum12.

OcancioneirodeAdelinoAntóniodasNeveseMello,commelodiasdeváriasprovíncias,transcritasapenasparavoz,nãocontémfados.Ofado sóvoltaaaparecernos trêsvolumesdeCésardasNeveseGual-dinodeCampos.

AheterogeneidadedoreportóriocoligidonocancioneirodeNeveseCampos—entreoruraleourbano,onovoeoantigo,oanónimoeacançãodeautor—,assimcomoasua transcriçãoparacantoepiano,foialvodeváriascríticasedeposiçõesnemsempreunânimes.LeitedeVasconcelos, referindo-se à componente literária, da responsabilidadedeGualdinodeCampos,criticaoautordenãoter«educaçãoethnolo-gica»e,porisso,procederacritérioserradosnarecolhadeexemplares,nomeadamente,intercalando«quadrasquenãosãodopovo»nomeiode«cantigasgenuinas»13.JáSousaViterboencontranoprocessodeos-moseentreopopulareoeruditomaisvantagensdoquedesvantagens.

12LanduouLandumsegundoErnestoVIEIRA,Diccionariomusical contendo todos os termostechnicos...ornadocomgravuraseexemplosdemúsica,Lisboa:Lambertini,1899.13JoséLeitedeVASCONCELOS,«Bibliographia:Cancioneirodemusicaspopularesparacantoepiano, por César das Neves & Gualdino de Campos. Porto, 1893-1894», Revista Lusitana:Archivo de estudos philologicos e ethnologicos relativos a Portugal, III, Porto: LivrariaPortuense,1895,pp.190-192.

Page 5: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 387

Emboraconsiderequesetratadeumaprimeira«colheita»quedeveserseguidade«selecção»,acrescenta:

Bastantes dos trechos colleccionados teem um sabor erudito […]. Longe,porémdeseruminconveniente,quer-nosparecerquetemmuitodevanta-josooconglobarn’esteramoafloradasalaapardafloradasruasficando--seassimconhecendo[…]comoéqueamusadopovovembuscarnoaltoasuafontedeinspiraçãoecomoéqueamusadocultismovaerevigorar-semuitasvezesetonificaroseuorganismonasorigensprimitivas14.Viterbo, ao contrário dos antropólogos portugueses da sua época,

destaca-se assimpor realçaro intercâmbioexistente entre asdiversasmanifestaçõesartísticas,mesmonosespécimespopulares,consideran-do-os objectos impuros, locais de reciprocidade do lugar e do tempoemquevivem.Essaconstatação levou-oamanifestaralgumadescon-fiançaapropósitodaeficácianacionalistadasóperasdeKeil15,name-dida emque aoriginalidadedo reportóriopopular sepudesse revelarinsuficienteou inexistentenapotencializaçãodeuma linguagemmu-sical inovadora. Comomuitos dos seus contemporâneos, Viterbo fazdependerasingularidadedaobradasprincipaiscomponentesmusicaisdacançãopopular,noqueestapossaconterdeautênticoouinovador(leia-seexótico),desviandoassimaatençãodacapacidadecompositivadomúsicoqueexploraessematerial.

ContrariamenteàsváriascríticasqueforamfeitasaoCancioneirodeCésar das Neves e de Gualdino de Campos, reveladoras do espíritoromânticoquerodeouasrecolhaspopularesedaautenticidadequeseimaginavaconseguirpormétodoscientíficos,oCancioneirodemúsicaspopulares, evidencia uma realidade diferente daquela que se desejava—adeumasociedaderuraldetentoradeumpassadomusicalaoabrigodamudançadostempos—aoretratarasociedadesuacontemporâneaeoscostumesdaépoca.Atravésdasletras,músicasedançastranscritasou comentadas, vamos adquirindo um manancial de informação em

14S.VITERBO«Apreciaçãocrítica»(v.n.5),V.15«PeloquedizrespeitoàestructuramusicalpropriamenteditaéquenãopodemosaffiançarseAlfredoKeiltemcorrespondidoperfeitamenteaoidealquesetraçoueaqueaspira.Resta,porém, saber, e isso é ainda um problema que julgamos em aberto, se a musica popularportugezaseprestaalargasinspiraçõesparaumaoperaeseexistecomeffeito,noorganismomusicalportuguez,algumacoisadegenuinamenteoriginal.»SousaVITERBO,SubsidiosparaahistoriadamusicaemPortugal,Coimbra:ImprensadaUniversidade,1932,p.300.

Page 6: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga388

vários domínios, como no que se refere ao impacto de determinadosacontecimentos políticos, por exemplo, os que aludem às guerraspeninsularesouàcrisemonetáriade1891;àsdançasdosalãomaisemvoga,comoavalsaeapolca;àsmúsicascommaispopularidade,propa-gadaspelasfilarmónicas;aoscantosescolares,etc.

Osautoresassumem,semdisfarce,teremoptadopornãoalterarousuprimiroquevirameouviram,contrariandooconselhoque lhes ti-nhasidodadodenãoincluíremnasuaobra«extrangeirismos,emumapublicaçãocujaphysionomiadeveriaseressencialmentenacional»16.

OsfadostranscritosnoCancioneirodemúsicaspopulares,aolongodos trêsvolumeseempresençacrescente, sãoum indíciodapopula-ridadeque esse género tinhanos salões ena sociedadeda época.Talcomo os restantes exemplares, são para canto com harmonização aopianoededicadosaváriassenhorasdaaltaburguesiadoPorto.Adis-seminação do fado não só no país como no estrangeiro, como refereMadameRattazzi17ouDianedeMonglave,estaúltimanassuascróni-cas sobre a vidamusical portuguesana revistaArtMusical18sãomaisumtestemunhodaapropriaçãogeneralizadadofadonosanosoitentaedasuapopularidadeindistintamentedasclassessociais.Aesterespei-to,nãodeixadesercuriosaadefiniçãoqueMonglavedá:«LeFadoestdonclechantpopulairedescampagnes»19.

Apartirdomomentoemqueodebateemtornodarecolhadamú-sicapopularadquireforosdecientificidade,nomeadamentenaRevistado Conservatório Real de Lisboa20e,mais tarde, no texto de AntónioArroio21,ofadodeixadeaparecernascompilações,devidoàsuafaltadeantiguidade22eàsuavertenteurbanaeimpura.

16C.NEVES–G.CAMPOS,Cancioneirodemúsicaspopulares(v.n.2),p.17.17EmParis,dizaautora terestadopresentenumasoirée emcasadocondedeParatyondeteráouvido«harpejarnaguitarraosfadosnacionais,deumaoriginalidadefantasiosa»(MariaRattazzi,Portugalderelance,Lisboa:Antígona,1997,p.130)18DianedeMONGLAVE,«LaMusiqueenPortugal»,ArtMusical21/8(1882),p.61.19Ibidem.20Eduardo Schwalbach LUCCI, «Cancioneiro popular português», Revista do ConservatórioRealdeLisboa1(1902),pp.15-16.21«Sobreascançõespopularesportuguesaseomododefazerasuacolheita»,inP.F.TOMÁS,Velhascançõeseromancespopularesportugueses,Coimbra:TypographiaFrançaAmado,1913.22Váriosautores,entreosquaisErnestoVieiraePintodeCarvalho,datamoseuaparecimentoaosanosquarentadoséculoXIX.

Page 7: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 389

PessimismoedecadênciaOpessimismogeradopeloUltimatumteveumecogeneralizadonas

décadasde1890e1900pelasvozesdemuitosintelectuaisportugueses.Vários acontecimentos ocorridos nesse período— do grupo de inte-lectuais que se intitulou os «vencidos da vida» ao suicídio de figurascomoCamiloCasteloBranco(m.1890),JúlioCésarMachado(m.1890),AnterodeQuental(m.1891),—tornaram-sesímbolosdedesilusãodetoda uma geração, quenos anos 70 acreditara conseguir aproximar opaís económica, social e culturalmente do resto da Europa. AdolfoCoelhoeRochaPeixoto,doisdosprincipaisprotagonistasdasegundageraçãodeantropólogosportugueses,naimagemnegativaquefizeramdocarácterportuguês,emtextoscomo«OsciganosdePortugal»(1892)e em«O cruel e triste fado» (1897), chegarama transmitir a ideia deque a própria cultura popular estaria já contaminada pelo estado dedeclíniodopaís23.

Para estes autores o fado representa a verdadeira e mais genuínaessênciadocarácterportuguêsedasuahistórianoquetêmdemaisne-gativoedecadente.ComoescreveRochaPeixoto:«Portugaltempoiseapenas,degenuinamenteseu,ofado»24.Narepresentaçãodetodoumpovo,mesmoquepelanegativa,o fado torna-sea suaexpressãomaislegítimaeoseuelementomaisunificador.

Embora partilhando das opiniões de Rocha Peixoto, a posição doensaístaecríticomusicalAntónioArroioémenosdeterministaquan-do,numapalestradirigidaaosestudantes,em1909,propugnaocantoemcorocomoformadereagiràscomponentesnegativasdofadoqueele acredita exprimirem «o estado de inercia e de inferioridade sen-timental emqueonossopaís estámergulhadohamuitos annosedoqualurgequesaia»25.

NoúltimoquarteldoséculoXIXaideiadequeocarácterportuguêsera intrinsecamente triste e melancólico era corrente e generalizada.Esses sentimentos, associados à saudade, constituíram um topos porexcelêncianostextosdemuitosautores.Acançãoportuguesa,parecia

23EstaopiniãoéexpressaporJ.LEAL,Etnografiasportuguesas(1870-1970)(v.n.1),p.55.24RochaPEIXOTO,Obras,PóvoadoVarzim:EdiçãodaCâmaraMunicipaldaPóvoadoVarzim,1972,vol.II,p.229.25NomesmosentidosepronunciaráLuisdeFreitasBrancoanosmaistardenaArteMusical,numacrónicanãoassinadaquepensamossersua(ArteMusical25[1930],p.1).

Page 8: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga390

ser dissomesmo reflexo, por antinomia à canção do país vizinho, talcomo defendia um autor espanhol num texto publicado no jornalAVozdoCommercio,em1896,quandoobservaqueambososreportóriosreflectemocarácteropostodosdoispovos26.Apartirdestaconvicção,asuaassociaçãoàsaudade,àfatalidade,aofadoé,paramuitos,natural.

Numartigode1890darevistaAmphion,G.M.[GreenfielddeMelo]defende:

Queressescantosnosviessem,poressenciaouinfluencia,dosarabes,querhajam brotado espontaneos d’entre nós, todos elles teem, para assim di-zermos,ocaracterpronunciadodeumaFatalidadeaterradora.Pareceque,aocantarmos,asgarrasdoDestino,asnegrasazasdoFadocrudelissimoeimplacavel,sedespregamimmensamentelargasenosenvolvemnasombraespessa da Desgraça que por sobre nós se estira, lobrega invencivel,suffocante […] // Que o diga essa canção do Fado conhecida em toda aparte, e cuja fórma essencial se conserva intacta a despeito das variantesintroduzidas.Quemseriaoseuauctor?Mysterio.D’ondeproveio?Ignora--se.Nascerianoalcoice,soltapelavozdealgumadesgraçadaqueoDestinoatirouálama?Talvez.OuseráafórmaprimordialconcretadeexprimiremmusicatudooquenalinguagemseinsinuapelapalavraSaudade?27

Um carácter semelhante, «circunspecto e grave», caracterizava asdançaspopulares,segundoTeófiloBraga,citandooestudiosoEduardoNoronha28.EstascaracterísticaslevaramomesmocronistadoAmphionaescreverumartigoemquepropunhacorrelaçõesdirectascomamú-sicadosromenosedoshúngaros,queeleconsideravadomesmotipo.Esta atmosferamusical era obtida, na sua opinião, pela «persistenciasobremaneira acabrunhadora dos tonsmenores» e pela utilização deuma «tessitura normalmentemédia ou pouco elevada, como convémaos que se entregam à doce manifestação de uma tristeza serena»29.

26«Lajotapideluz,castañuelasyvinoenjarro.Lapetenerapidealgomas:abrazosdemugerqueahoguen,besosquequemenneurosisdebilitantesyporencimadetodoestocañnitasdemanzanillabajoeltoldodeunaparra.Encambio,“ofado”pidesilencioabsoluto,penumbramisteriosa y una cierta dósis de tristeza en el corazon. Con diferencias tan marcadasantojásemetareafácil legislarparatodos losdospaísessinmasqueconsultarcuadernosdemúsicapopular.»AlbertoPIMENTEL,Atristecançãodosul.SubsídiosparaahistóriadoFado,Lisboa:LivrariaCentraldeGomesdeCarvalho,1904,pp.16-17.27[GreenfielddeMelo],«AmusicapopularemPortugal»,Amphion1(1890),p.3.28TeófiloBRAGA,Cancioneiropopularportuguês,Lisboa:J.A.Rodrigues&Cª,1913,p.464.29[GreenfielddeMelo],«AsescolasdecantoemPortugal»,Amphion19(1890),pp.1-2.

Page 9: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 391

TambémaCondessadeProença-a-Velha,umadefensoraentusiastadautilizaçãodasmelodiastradicionaisnacriaçãodeumamúsicagenuina-menteportuguesa,considerava,em1902,queacançãopopularportu-guesarevelavaadecadênciadopaísfaceaumpassadodeglóriae,anosmais tarde, acrescentava que amelancolia era um traço essencial docarácterportuguês,presentenassuascanções,mesmonasdeembalar,detalmodoquefaziamlembrarofado«encantadoredoentio»30.

Em suma, o fado, como reflexo da alma portuguesa, é uma ideiageneralizadanosmuitosautoresquefalamdele,sejapararepresentaroque há de mais negativo no carácter português, seja para cantar aprecária situação social e económica do seu povo, seja como géneromusical por excelência da nação. Como escreve, em 1890, um críticonão identificado na revistamusicalAmphion: «A despeito das nossascantigas,ofadoporexemplo,nãoconstituiremoquesepóssachamarum genero, é este todavia um canto tão distincto, tão nacional, quebemmereciaashonrasdesertratadoartisticamenteeapresentadoaopublicocomoamorpatrioqueasnossaspropriasplateiastantoapre-ciamnascomposiçõeshespanholas»31.

De forma semelhante se referem a ele outros autores como LuisPalmeirimeAvelinodeSousa,esteúltimonumopúsculopublicadoem1912.TambémopadreTomásBorba,incitadoporumamigo,paraquemo povo sente a canção «como a mais bela expressão do sentimentonacional», se decide a compor um fado, com a intenção, semprepresentenasuaobra,deresponderàsnecessidadesdoensino32.Masomúsico-pedagogovaimaislongequandoconsideraquea«ingénuame-lodiaaqueaalmaartísticadopovodeu forma,umdia, semse sabercomo, tem efectivamente, para gente portuguesa, tamanho valorestético, que os mais belos lieds de composição erudita lhe ficam adever muito, quando, alguma vez, nos lembremos de estabelecercomparações»33.

30Condessa de PROENÇA-A-VELHA, Alguns séculos de música (Impressões de arte), Lisboa:ImprensaLibâniodaSilva,1930,pp.42-43.31F.F.,Amphion14(1890),pp.2-3.32TomásBORBA, «O canto coral nas escolas»,Arte na escola, Lisboa: SociedadedeEstudosPedagógicos,1916,p.7.33Ibidem.

Page 10: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga392

AaristocratizaçãodofadoPor volta de 1868-934, o fado conheceu um dos seus períodos de

maiorpopularidadequernosbairrospopulares,quernossalõesdaaris-tocracia e da burguesia35, onde se cantavam com acompanhamento àguitarraouaopianoeseconvidavamfadistaseguitarristasparaanimarasfestasprivadas.Asuaentradaemlugarespúblicosfrequentadosporestemesmopúblico, comonoTeatrodaTrindade comapeçaDitosoFado36,ounoCasinoLisbonense37, foimaisumsinaldasuaaceitaçãogeneralizada,mesmoqueassuasletrassofressemacensuraparairaoencontrodos«bonscostumes»dasociedade.

Ajuntaràsuapopularidade,ofactodemuitosconsideraremassuasorigensremotas,incertasoudeproveniênciaárabe,comtodoofascínioqueoexotismoimplicounestaépoca,nomeadamenteparaoscomposi-toresportugueses,foimaisumincentivoàsuaapropriação.Asassocia-çõesquediversosautoresiamfazendoentreamúsicaportuguesaeadeoutros povos — árabes, romenos ou húngaros — foi ilustrativa daatracção que uma determinada singularidade exercia no imagináriomusicalportuguês,atravésdasobrasquese iamouvindonassalasdeconcerto como, por exemplo, as rapsódias de Liszt ou as DançasHúngaras deBrahms38.O fadoparece assimencarnaro idealdeuma«diferençafetichizada»(parautilizarotermodeTaruskin39),paramais,gozandodeumapopularidadequeuniatodasasclassessociaiseopaísde norte a sul. Como defendeu Ernesto Vieira no seuDicionário: «Ocaracteressencialmentemelancholicodo fado,a suagrandepopulari-

34DeacordocomPintodeCarvalho(Tinop)quedistinguedoisperíodosnaexistênciadofadodurante o século XIX: «a primeira, a fase popular e espontânea […] a segunda, a fasearistocráticaeliterária,emqueofadoéexecutadonassalasenaspraiasdamoda.Podemosfixar o fim da primeira e o começo da segunda entre 1868 e 1869. E nesta última fase,enquanto a guitarra sobe das espeluncas aos salões, vemos o piano descer dos salões aosbotequinssafardanas.»HistóriadoFado,Lisboa:PublicaçõesD.Quixote,1982,p.93.35Entreosquefizeramouvirofadonosseussalõesconta-seaduquezadePalmella,oCondedaAnadiaeoMarquêsdeCastelo-Melhor.Estesúltimos,segundoPintodeCarvalho, terãomesmosabidotocarguitarra.Ibidem,pp.263e280.36Representadaem1869.37Em1873,v.P.CARVALHO,HistóriadoFado(v.n.34),p.280.38Asrapsódiasforam,doconjuntodasobrasdeLiszt,asmaisouvidasemPortugalnoúltimoquarteldoséculoXIX.OmesmoseverificourelativamenteàsDançashúngarasdeBrahms.39Richard TARUSKIN, Defining Russia Musically, Princeton – Oxford: Princeton UniversityPress2000,p.18.

Page 11: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 393

dadeea circumstanciad’elleprevalecer sempre sobre todasasoutrascantigas das ruas, cuja existência é ephemera, tornam-o digno dealgumasinvestigaçõesqueseriaminteressantesparaahistoriadamu-sica popular»40. E são exactamente compositores, como Alfredo Keil,Filipe Duarte, Luís Filgueiras, cuja actividade ao longo da vida foimarcada pela busca da afirmação da nacionalidade na vida musicalportuguesa,quesevãoapropriardofado.

Apesar das tentativas entretanto feitas por alguns músicos portu-gueses,écontudoumestrangeirooprimeiroaprovocarumforte im-pactocomoreportóriopopularutilizadoemobrasparaorquestra,nasquais incluiu alguns fados. Victor Hussla, violinista alemão, que foracontratadoparamaestrodaorquestradaRealAcademiadeAmadoresdeMúsicaem1887,apresentaasprimeirastrêsRapsódiasPortuguesasparaorquestra,noTeatrodaTrindade,em12deFevereirode1892.

Oanúncio,publicadonos jornais,dequeestaobra incluíacançõesdo tipo popular, despertou uma enorme curiosidade no público queencheuasala.Asreacçõesforamentusiastas.Váriosjornalistasconfir-maramnosjornaisdiáriososucessoobtidonopúblico.Emparticular,ojornalistadoDiárioPopular,escreve:

Todas três [Rapsódias] tiveram um exito magnifico que deve servir deincentivo aos nossos compositores. […] A 2ª onde o auctor introduziu osmotivos de fados é por este facto a que mais enthusiasmo despertou.Quandorompeuoprimeiro,odaAnadia,houveumfremitoemtodaasala.Fallava a alma portugueza! O naipe dos violinos parecia um grupo deguitarristas.Foibisadootrecho.[…]HusslafoimuitovictoriadoerecebeuentreoutrosbrindesumaguitarracomumesbocetodeMalhoa,represen-tandoumatricana,offertadaAcademia41.Paraalémderesponderaosanseiosdatãodesejadamúsicanacional,

oscríticosvalorizaramnaobradomaestroalemão:«Ainstrumentação,amaneira original e notavel nomodo de fazer as transicções de umparaoutromotivo,eescolhad’elles»42.TudorevelavaemVictorHussla:

[...]umtalentoartisticoadmiravel,edignodosmaioreselogios.[…]Nuncaamusicanacional,tãocheiadeoriginalidade,deinspiraçãoedesentimen-

40E.VIEIRA,DiccionarioMusical(v.n.12),pp.238-239.41«Concerto»,DiarioPopular(13deFevereirode1892),p.1.42«Theatros:salãodaTrindade»,OTempo(13deFevereirode1892),p.2.

Page 12: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga394

to,foiexecutadacomtamanhaperfeição,nemouvidacomtantofervôr.[…]Só nos resta lamentar que fosse preciso vir a Portugal um artista de fóraparaencontrareapreciarasbellezasdanossamuzicapopular43.OsfadosaparecemnasegundaeterceirarapsódiasdeHussla,tendo

ocompositorrecorridoaoencadeamentodeváriostemasretirados,emgrande parte, dos cancioneiros de JoãoAntónioRibas e deCésar dasNeves. Na segunda rapsódia, onde os fados têm uma presença maisexpressiva, a apropriação do género faz-se, na partitura para piano44,entregandoosacordesarpejadosdaguitarraàmãoesquerdaea linhamelódicaàmãodireita,utilizandoemambasumagrandesimplicidadedemeios(Exemplo1).

Exemplo 1.ExcertodeumdosfadosdaRapsódiaPortuguesanº2,parapiano,deV.Hussla.

Na terceira rapsódia, a presença dos fados é menos expressivaembora a apropriação do género seja idêntica à da rapsódia anterior.Deumaformageral,naharmonizaçãodasdiversasmelodiasdorepor-tóriopopular,Hussla serve-sedeuma sériedemeios frequentementeutilizados na época para evocar o primitivismo e a rusticidade dasfontescomo: longaspedais,bordões,ealgumasasperezasharmónicasresultantesdautilizaçãodeintervaloseacordesdissonantes.

O que parece ter entusiasmado o público terá sido o facto do re-portório popular ter sido tratado orquestralmente, do compositor terutilizado uma grande diversidade de temas (incluindo um tema dasilhas deCaboVerde) o que, ao olhar dos críticos, era provadetermi-nante da existência de recursos em abundância, aptos a serem utili-zadospeloscriadoresportugueses.Noquerespeitaaosfados,ofactodeterem sido apresentados num contexto erudito,mostrou ser possívelreabilitar mais este género do seu contexto original, considerado de

43Ibidem.44Atéaomomentonãofoipossívelencontraraspartiturasparaorquestra.

Page 13: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 395

«baixo extracto», para o domínio erudito. A imitação conseguida porHussla, na transposição dos cantos populares para o domínio da or-questra, em particular, na imitação do som das guitarras, parece tersidoumdosfactoresqueentusiasmouoscronistas,emparticular,JúlioNeuparthnacríticadetalhadaquededicouàsRapsódiasnarevistademúsicaAmphion45.Ofactodeumalemãoterconseguido,atravésdosfados,reflectiraalmaportuguesa,nomeadamenteoseuespíritomelan-cólico, foimaisoutro factora suscitar a admiraçãodoscronistaspor-tugueses.

Em suma, valorizou-se o facto de ter sido um estrangeiro a dar oexemplo de como o reportório tradicional era vasto e passível de serutilizadonamúsicaorquestral,masoquemaissobressaiudascríticasfoiaqualidadedaimitaçãoaqueHusslaosubmeteu.Apesardenãotersidoreferido,nãocoubeaomaestroalemãoafaculdadede,apartirdascançõespopulares,renovaralinguagemmusicalcomosepretendia.

A impressãoque estasobrasdeixaramemVianadaMotadeve tersidomarcante.Deacordocomumcrítico,opianistaterápedidoàRealAcademia de Amadores de Música que as repetissem no concertoseguinte,oqueaconteceu46.PassadoumanodaestreiadasRapsódiasde Hussla, Viana daMota apresentou a primeira das suasRapsódiasPortuguesasparapiano,contendováriosfados(FadodeCoimbra,FadoTaborda,Fadodassalas,FadodeCascais,FadoLisbonense).Opúblicorecebeu-osdeforma«calorosa»e«arrebatada»segundootestemunhodoscríticosdaépoca47.

NaRapsódian.º1,dedicadaaoreiD.Carlos,apresentadaàimprensanoSalãodaCasaSassettiem12deAbrilde1893,VianadaMotaexploraos temaspopularesapartirdeumvirtuosismopianísticomuitodeve-dordaescritadeLiszt,oquefoiigualmentesublinhadoporalgunscrí-ticoselevouaoentusiasmoopúblico,rendidopelatécnicadoautor48.Nestaobra,VianadaMotanão fogeaoprocedimentoqueelepróprio

45JúlioNEUPARTH,«Concertos»,Amphion4(1892),pp.25-26.46«RealAcademiadeAmadoresdeMusica»,DiáriodeNoticias(25deAbrilde1893),p.1.47«ViannadaMotta»,DiarioPopular(18deAbrilde1893),p.1.48EnquantoocríticodoAmphiondestacaas«passagensdebravura»eadificuldadetécnicaque elas evidenciam emnadadevendo às de Liszt,ManuelRamos, na «Apreciação crítica»que fazno terceirovolumedoCancioneiro demúsicas populares, comenta:«As rhapsodias,quesão,sobopontodevistatechnico,comopeçasdepiano,muitobemfeitas,teemtalvezopequenosenãodeseresentiremdosprocessosdeLisztoqueatécertopontodesnacionalisaeafogaosthemas.»C.NEVES–G.CAMPOS.,Cancioneirodemúsicaspopulares(v.n.5),III,VII.

Page 14: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga396

criticaráemLisztanosmaistarde,quandoconsiderouqueasRapsódiasHúngarasnãoerammaisque«transcriçõesoumelhor:fantasiassobremelodiasalheais»49.Emtextosposteriores,opianistaportuguêsmuda-ráasuaposiçãorelativamenteaoaproveitamentodomaterialfolclórico,defendendoumaatitudemaislivredapartedocompositor,emvezdautilização directa do reportório popular o que, nas suas palavras,denunciavauma«posiçãoetnológica»maisdoquecriativa50.

A julgar pelas críticas da época, a rapsódia deViana daMota nãoparece ter conseguido outro resultado senão o do reconhecimentopúblicopelatécnicavirtuosísticadoautor,confirmandoopapelúnicoque o artista detinha a nível internacional. A obra servia assim parareconhecimento mais do pianista do que do compositor, para mais,evidenciando a influência de Liszt tão comentada pela imprensa(Exemplo2).

Exemplo2.ExcertodaRapsódianº1deVianadaMota.

Arapsódia,foiumgénerofrequentementeutilizadopeloscomposi-tores portugueses neste tipo de reportório. Assumindo ao longo doséculo XIX, e em particular com Liszt, um tom épico e elegíaco, arapsódiatornou-seexpressãorecorrentedosmovimentosnacionalistasmusicais. Pela sua estruturanormalmente fragmentária e aberta, per-mitia aos compositores associar toadas populares muito diversas nocarácter, e submetê-las a um tom improvisatório que favorecia o seu

49Estecomentárioretirou-oVianadaMotadomúsicoPeterRaabe(1872-1945)numdosseusescritossobreLiszt.VianadaMOTA,VidadeLiszt,Porto:LopesdaSilva,1945,p.92.50JoãodeFreitasBRANCO,VianadaMota,Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,1987,p.171.

Page 15: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 397

aproveitamentovirtuosístico.Tambémdopontodevistadarecepção,arapsódiaeraumgéneroquefacilitavaoreconhecimentodumaherançanacional,peloconjuntodostemasque,quandopretendiamrepresentaro país de norte a sul, faziam com que toda uma audiência se revisseenquanto grupo homogéneo unido em torno dummesmo legado. Oaproveitamentodestegéneropelosmúsicosportuguesesdequetemosvindoa falar, revelaumentendimento semelhante, evitandoousadiasouliberdadesquepusessememriscoaidentificaçãodostemas.

NoanoseguinteaodaapresentaçãodaobradeVianadaMota,foiavez de Alexandre Rey Colaço apresentar o seu primeiro fado parapiano, num concerto realizado no salão do Teatro da Trindade, emMarçode189451.Herdeirodoespíritoromânticoeuropeuegrandead-miradordosmúsicosalemães—deBachaBrahms—,nãoesquecendoo«sublimeChopin!»52,opianista-compositoradvogavaàsnovasgera-ções que procurassem apenas a «forma» nas «músicas estrangeiras»,masqueseinspirassemnas«fontesnaturaes»53:«Inspirem-sedosnos-sosritmos,dasdoceseingenuasmelodiasquenoslegouopassado![…]Procurem na melodia popular nacional a genuina, unica e exactainspiração![…]GraçasáArte–áArtelegitimaepuramentenacional—poderiamossacudiroletargoemquejazemos,esentiriamosentãocan-tarnasnossasveiasoqueCalderonchama«lamusicadelasangre!»54.

Entreoscríticosdaépoca,houvequemacentuasse,nosseusfados,ocarácterdemúsicadesalão,considerando-os«morceauxadoraveisdeconcepção e de effeito»55; houve quem considerasse o estilo já ultra-passado,dogéneroquefizeraaglóriadeumPrudentemtemposidos56etambémhouvequem,maistarde,considerasse:«[o]compositorquemelhor soubeenquadrara ternamelopêanosesplendoresd’umahar-monia e de uma decoração sabias […] onde o imprevisto do detalheornamental se casa de uma fórma feliz ao imprevisto da harmo-nisação»57.

51OsrestantesfadosdeReyColaçoserãoapresentadosaolongodadécadade1890ede1900.52AlexandreReyCOLAÇO,Demúsica,Lisboa:ImprensaLibâniodaSilva,1923,p.97.53 Ao contrário de Manuel Ramos, Colaço revela a preocupação em seguir o cânoneinternacional.54Ibidem,p.99.55«SalãodaTrindade»,OSéculo(18deDezembrode1895),p.2.56«OConcertodeReyCollaço»,Novidades(18deDezembrode1895),p.2.57«Noticiario»,Amphion22,p.345.

Page 16: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga398

AsideiasqueReyColaçoadvogouparaaconstituiçãodeumamúsi-canacionalrealizou-asnassuasobrasparapianoeparacantoepiano.Os seus fados são um reflexo do lirismo que o autor encontrou nasmelodias tradicionais e da nostalgia que atribuiu à alma portuguesa.Não seguem a forma rapsódica e virtuosística dos autores anteriores,encontram-seentreamúsicadesalãoeaCharacterstück (peçadeca-rácter),ondeváriosestilossecruzam.

OsfadosdeColaçonãoselimitaramaumameraimitaçãodavozedaguitarra,comoofizeramamaioriadosmúsicosqueseapropriaramdestegéneronaépoca,massurgemestilizadoseimbuídosdovocabu-lárioromânticodetradiçãogermânica,nosritmos,métricas,texturaseharmonias empregues, numa articulada relação entre o popular e oerudito. Colaço, nos seus fados, não irá corresponder à ambição dosqueapelaramaumalinguagemmusicalinovadora,capazdecontribuirpara uma viamodernista namúsica portuguesa, capaz de se afirmarinternacionalmente.Contudo,nosseusfados,aarticulaçãoentreopo-pulareoeruditovaialémdacitaçãooudasimplesimitaçãodooriginal(Exemplo3).

Exemplo3.ExcertodoFadonº8deReyColaço.

Fortementeatraídopeloexotismoquemarcouasuaépoca,dequefoiigualmenteprotagonistaedequesãotestemunhoobrassuas,comoasDuasDançasPopularesEspanholasparaPiano,oCanteFlamencoouosEsquissesMarrocaines pour Piano, entre outras, ele foi igualmenteum dos principais porta-vozes do romantismo musical europeu, emparticularoalemão,que tantoadmirava,decujos ideaisemúsica foi,comMoreiradeSá,dosprincipais representantesemPortugalnão só

Page 17: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 399

como intérpreteemobrasparapianosolomas tambémnamúsicadecâmara58.

TambémAlfredoKeil escreveu vários fadosparapiano solo eparasextetodecordascompiano59.Estereportórioinsere-senomesmotipodeescritadeumconjuntodeoutraspeçasqueocompositorescreveuno contexto da música de salão e no qual se contam, entre outros:valsas,polcas,mazurcas,quadrilhasefandangos.UmcarácteridênticosepodeverificarnosfadosparapianodeoutrosautorescomoAugustoMachado, Francisco Baía ou Júlio Neuparth. Em todos eles a escritaresume-se à transferência da melodia com o seu acompanhamentoarpejadodaguitarraparaopiano.

Odebatesobrea«substância»damúsicapopularEntreoretratodaalmaportuguesaeainovaçãomusicalapartirdos

materiaispopulares,diversosautoresdebateramoquedeveriaserumaescola de música nacional. Houve quem considerasse que o folcloreportuguêsnãocontinhaariquezaderecursosmusicaisdoescandinavoou,sobretudo,dorusso,peloqueoscompositorescareciamdamatériaprimaparapoderem realizar a sua tarefa.BernardoMoreiradeSá foiumdosquepartilhouessaideia.NumadassuasPalestrasMusicaisdiz:«Duasdasqualidadessuperioresdamusicapopulareslavasãoavarie-dadederithmoscaprichososeaplasticidadetonaleharmónica,oquepermitterevestiramelodiadeopulentaharmonisação».E,emnotaderodapé,acrescentou:«Acarenciad’estaplasticidadeéumdosgrandesfracosdamusicapopularportugueza.Estaarazão,meparece,porqueteem sahido baldas todas as tentativas de constituição de uma tramaartistica com a nossamusica popular»60. ParaMoreira de Sá, a subs-tância musical era determinante para a constituição de uma músicainovadora e, portanto, de uma linguagem capaz de se afirmar comoautênticaanívelinternacional,talcomoaconteceraempaísesconside-radosmusicalmenteperiféricos.MasemPortugaloautornãoreconhe-

58Comdiversosmúsicosportuguesese,emparticular,comVictorHusslaapartirde1888.59Esteúltimo integradonaSuiteAirs Portugais, emversõesparapiano solo eparapianoeviolino.60BernardoValentimMoreiradeSÁ,Palestrasmusicaisepedagógicas,Porto:CasaMoreiradeSá,1914,p.57.

Page 18: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga400

ciaexistiremrecursossuficientementedistintivosquepudessempoten-cializaroseuaproveitamento.

ParaaCondessadeProença-a-Velha,pelocontrário,sendoasimpli-cidade das canções populares portuguesas a suamaior característica,estanãodeviasofreralteraçõessoboperigodeseperderumacompo-nenteessencialdoespíritoportuguês,emparticular,quandoutilizadanoLied.Paraestaautora,ocontrasteentreasmelodiasportuguesaseasespanholas,maisornamentadas,nãofaziaasprimeirasmaispobrescomootinhamentendidoalgunscríticosestrangeiros.Nasuaopinião,essejuízoreflectiaapenasasuperficialidadedequemasapreciara61.Ofacto da Condessa vir em defesa da preservação da simplicidade damúsicapopularquandotratadapelocompositor,dever-se-áaofactodeconsiderar que o texto deveria ter a primazia sobre a música, o queadvogarámaistarde:«Poesiaemúsica,tendemsempreareunir-separase completarem, atingindo o máximo da intensidade expressiva, noclássico lied, onde a palavra deve dominar completamente amelodiaqueinspira.Nãosetratadacolaboraçãoigualmentepoderosadeduasartesreunidas,mas—éprecisofixarbemisto—daabsoluta sujeiçãodamúsicaàpoesia»62.

Uma opinião semelhante foi expressa pelo críticoAdrianoMereia,citadoporTeófiloBraga63,quandodefendeuqueascançõespopularesportuguesas eram caracterizadas pela simplicidade e pelo sentimentoembora,aocontráriodeMoreiradeSá,asconsiderassemuitopróximasdofolclorerusso.Oprincipalobstáculoresidiana faltasistemáticadeum levantamento dos espécimes populares não só rigoroso mas emabundância, à semelhança do que os eslavos há muito tinham rea-lizado, de forma a que os compositores portugueses se sentissemmotivadosa«cultivá-lo».

Finalmente,evoltandoaocomentáriotecidoporViterbona«Apre-ciação Crítica» aoCancioneiro de César das Neves, o facto dos espé-cimes populares se apresentarem imbuídos de elementos eruditos,vinha pôr em causa, para aqueles que defendiam a total pureza domaterialmusical,aoriginalidadeprocuradanasfontesremotas.

61 As suas observações em torno da «extrema pureza» das melodias portuguesas vêmexpressas no pequeno opúsculoOs nossos concertos: Impressões de arte, Lisboa: ImprensaLibâniodaSilva,1902,pp.173-174.62C.PROENÇA-a-VELHA,Algunsséculosdemúsica(v.n.30),p.18.63T.BRAGA,CancioneiroPopular(v.n.28),p.461.

Page 19: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

OFadonacomposiçãoeruditadofinaldeoitocentos 401

Face a tais problemas, o fado apresentava-se como o género porexcelência,capazdereflectiraalmaportuguesanosentimentalismoenanostalgiaqueacaracterizava,aomesmotempoqueuniaopaísdenortea sule todasasclasses sociais.Asuaorigemdesconhecida,quealgunsconsideravamserdeorigemárabe,favoreciaoexotismoprocu-radoemvãonosespécimesrurais,fazendodeleumacançãodistintaeapreciada. Estas associações, tão enraizadas no espírito da época, te-riam,porventura, levadoopúblicoa identificar-secomofadosemprequeoouvianasaladeconcertos.Talveztenhasidotambémesse«sinaldeidentidade»quelevouVianadaMotaatocarosfadosdeColaçonosseusconcertosforadopaíseEvaTetrazziniacantaremportuguêsdoisfados na festa de despedida do maestro Campanini no Teatro deS.Carlos, em 1899, os quais, segundo se lê na Arte Musical: «foramrepetidosnomeiode freneticos e calorosos applausos»64.ComodisseJankélévitch a propósito da música de Albéniz: «En lui la nation sereconnaît»65.

EpílogoÉemfacedocontextopolíticoesocialdosanos80edaagudização

dos sentimentosprovocadospelosacontecimentosde90,queaapro-priaçãoerecepçãodofadonacomposiçãodosmúsicosditoseruditos,podeserentendida.Se,porumlado,conseguesuplantarosregionalis-mos associados às diversas canções tradicionais, por ser cantado deNorte a Sul do país, por outro, não possui alguns dos requisitoshabitualmente exigidos na música nacionalista desta época, como aruralidade quedeveria contribuir para ser considerado autêntico. Poressarazão,desaparecedoscancioneirospopularesquesurgiramposte-riormente.Estesfactoreslevamacrerqueasuautilização,nocontextodamúsica erudita, constituiu uma situação excepcional, determinadaessencialmentepelacargasimbólicaquelhefoiatribuídanummomen-todeexacerbamentodossentimentosnacionais66.

64ArteMusical6(1899),p.52.65VladimirJANKÉLÉVITCH,LaRhapsodie:Verveet improvisationmusicale,Paris:Flammarion,1955,p.156.66 Neste sentido vou ao encontro de Eduardo Lourenço quando considerou que o«traumatismo patriótico» provocado pelo Ultimatum deve ser lido não apenas no plano,

Page 20: O Fado na composição erudita do final de oitocentos › bitstream › 10362 › 35195 › 1 › Cap.19... · No pequeno cancioneiro de João António Ribas o reportório colecta-do

MariaJoséArtiaga402

Ao nível da recepção, como se foi apontando, houve uma reacçãoentusiástica por este reportório revendo-se o público frequentementenele. Tal como Dahlhaus, considero que o conceito de nacionalismomusical se relacionou mais com a função do que com a substânciamusical67,aocontráriodoquealgunsdosautoresaquireferidosdefen-deram.Éaessenívelqueofadoadquiresignificado,comoumcorpodecaracterísticas reconhecidas como especificamente nacionais por umconjuntoalargadodepessoas.

Apesardo fadose terconstituídocomorepresentantedanaçãonoimaginário dos que, na década de noventa de oitocentos, dele seserviram como dos que nele se reviram, os compositores que o utili-zaram não conseguiram responder aos anseios dos que nesta épocaansiavam pela criação de uma linguagem musical distinta capaz derivalizarcomoutrasanívelinternacionale,porventura,abrircaminhoàtãodesejadarenovaçãodamúsicaportuguesa.Seastentativasreali-zadas e aqui referidas — como as de Hussla, Viana da Mota, ReyColaço,AlfredoKeil—nãoresponderamàsexpectativas,contribuíram,contudo, para a difusão de ideais românticos no domínio da músicainstrumental,aindaembrionáriaentrenós.

políticomas essencialmente no «plano cultural e simbólico». EduardoLOURENÇO,Portugalcomodestinoseguidodemitologiadasaudade,Lisboa:Gradiva,2001,p.56.67Carl DAHLHAUS,Between Romanticism and Modernism, Berkeley – Los Angeles, London:UniversityofCaliforniaPress,1989,pp.91-92.