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1 O NEOPIRRONISMO DE FOGELIN Michael Williams (Johns Hopkins University) E-mail: [email protected] Tradução: Nicole Marcello E-mail: [email protected] Resumo: Robert Fogelin concorda que os argumentos para o ceticismo cartesiano trazem consigo uma alta carga de comprometimento teórico, visto que eles dão como certa, explícita ou implicitamente, a ideia fundacionista de que o conhecimento experiencial é de uma maneira bem geral “epistemologicamente anterior” ao conhecimento do mundo. No entanto, ele acredita que há uma rota muito mais direta e de senso comum para o ceticismo. Afirmações de conhecimento ordinário são aceitas com base em procedimentos de justificação que estão muito longe de eliminar todas as possibilidades de erro concebíveis. Como resultado, sempre é possível — ao pôr em cena novas possibilidades de erro — elevar o ‘nível de escrutínio’ ao qual uma dada afirmação de conhecimento está sujeita, de modo que ela não mais pareça adequadamente justificada. Teorias filosóficas da justificação podem ser vistas como tentativas de reparar esta fragilidade do conhecimento ordinário. Mas todas elas fracassam ao sucumbir aos modos pirrônicos da hipótese, da circularidade ou do regresso ao infinito. Argumento que a concepção de Fogelin de níveis variáveis de escrutínio conduz no máximo ao falibilismo, e não ao ceticismo radical. Mais importante, demonstro que mudar a gama de anuladores relevantes a uma dada afirmação de conhecimento pode fazer mais do que estabelecer padrões rígidos para justificação: isso pode alterar o assunto por meio da mudança de direção da investigação. Daí conclui-se que a introdução de ‘hipóteses céticas’ (tal como o gênio maligno de Descartes) não são mais bem identificadas como aquelas que elevam os padrões a um nível máximo, mas como aquelas que introduzem um novo tipo de avaliação que, sem compromisso com o que eu chamo de ‘realismo epistemológico’, nada

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1

O NEOPIRRONISMO DE FOGELIN

Michael Williams

(Johns Hopkins University)

E-mail: [email protected]

Tradução: Nicole Marcello

E-mail: [email protected]

Resumo:

Robert Fogelin concorda que os argumentos para o ceticismo cartesiano trazem consigo

uma alta carga de comprometimento teórico, visto que eles dão como certa, explícita ou

implicitamente, a ideia fundacionista de que o conhecimento experiencial é de uma maneira

bem geral “epistemologicamente anterior” ao conhecimento do mundo. No entanto, ele

acredita que há uma rota muito mais direta e de senso comum para o ceticismo. Afirmações

de conhecimento ordinário são aceitas com base em procedimentos de justificação que estão

muito longe de eliminar todas as possibilidades de erro concebíveis. Como resultado, sempre

é possível — ao pôr em cena novas possibilidades de erro — elevar o ‘nível de escrutínio’ ao

qual uma dada afirmação de conhecimento está sujeita, de modo que ela não mais pareça

adequadamente justificada. Teorias filosóficas da justificação podem ser vistas como

tentativas de reparar esta fragilidade do conhecimento ordinário. Mas todas elas fracassam

ao sucumbir aos modos pirrônicos da hipótese, da circularidade ou do regresso ao infinito.

Argumento que a concepção de Fogelin de níveis variáveis de escrutínio conduz no máximo

ao falibilismo, e não ao ceticismo radical. Mais importante, demonstro que mudar a gama de

anuladores relevantes a uma dada afirmação de conhecimento pode fazer mais do que

estabelecer padrões rígidos para justificação: isso pode alterar o assunto por meio da

mudança de direção da investigação. Daí conclui-se que a introdução de ‘hipóteses céticas’

(tal como o gênio maligno de Descartes) não são mais bem identificadas como aquelas que

elevam os padrões a um nível máximo, mas como aquelas que introduzem um novo tipo de

avaliação que, sem compromisso com o que eu chamo de ‘realismo epistemológico’, nada

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fazem para impugnar o estatuto justificador das afirmações de conhecimento ordinário

introduzida em contextos ordinários.

Palavras-chave: Conhecimento; justificação; ceticismo; contextualismo; realismo

epistemológico.

1. Nos últimos anos, tem-se visto um crescente pessimismo com relação às nossas

perspectivas de se chegar a uma resposta satisfatória ao ceticismo. Porta-vozes influentes

da visão pessimista incluem Thomas Nagel, Peter Strawson e Barry Stroud.1 Estes filósofos

seguem Hume ao pensar que, enquanto o ceticismo não adentra, e talvez, num certo sentido,

não possa adentrar nossa vida cotidiana, o veredicto do cético sobre nossa pretensão ao

conhecimento é quase sempre teoricamente correto. Então, estes neo-humeanos veem uma

tensão permanente entre nossas práticas epistêmicas ordinárias e os resultados inevitáveis

da reflexão filosófica sobre elas. No dia a dia, operamos facilmente com contrastes como

aqueles entre conhecimento e conjectura, ou entre crença justificada e mera suposição. Mas

devido à existência de argumentos poderosos a favor da visão de que o conhecimento é

impossível — para os quais nenhuma resposta comumente aceita jamais foi dada ―, quando

tomamos distância e refletimos sobre tais distinções nos vemos perdidos. Os ditos crentes

racionais na rua, porém céticos nos estudos, estamos condenados a viver com o que Nagel

chama de “uma cisão no ser que não desaparecerá”.

O time dos neo-humeanos pessimistas conta agora com Robert Fogelin.2 Mas

Fogelin é um cético com uma diferença. O foco de preocupação para os outros neo-humeanos

é o ceticismo ‘cartesiano’, para o qual nosso conhecimento do mundo externo estabelece o

problema original e paradigmático. Em contrapartida, Fogelin se volta para uma tradição

mais antiga: o ceticismo pirrônico clássico. Eu acredito que esta diferença seja realmente

muito importante. Mas para dizer o porquê, preciso falar um pouco sobre o motivo pelo qual

o ceticismo deve ser levado a sério antes de tudo.

1 Nagel (1986); Strawson (1985); Stroud (1984). 2 Fogelin (1994). As referências são dadas no texto pelo número da página entre parênteses [a segunda referência é à tradução brasileira. N. do T.]

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2. Supondo que os pessimistas estejam corretos e o ceticismo não possa ser refutado:

existe um problema sério aí? Eu acredito que sim, contanto que o ceticismo que se pretende

irrefutável satisfaça (pelo menos) três condições: deve ser radical; deve ser altamente geral;

e deve ser ‘natural’ ou ‘intuitivo’.

O ceticismo radical é o ceticismo que trata da justificação. O cético radical argumenta

que nós nunca estamos suficientemente justificados a ponto de poder aceitar uma coisa mais

do que outra. Pois bem, o ceticismo é frequentemente apresentado como uma negação da

possibilidade de conhecimento. No entanto, em particular depois dos desafios de Gettier à

explicação tradicional do conhecimento como crença verdadeira justificada, esta formulação

necessita ser tratada com cuidado. Gettier demonstra que as condições tradicionais para o

conhecimento, ao menos se interpretadas ingenuamente, não podem ser consideradas como

suficientes. Consequentemente, se quisermos continuar a relacionar conhecimento a

justificação, precisamos caracterizar de forma mais estrita o tipo de justificação capaz de

produzir conhecimento. Mas isso introduz uma ambiguidade às negações da possibilidade

de conhecimento. O pensamento poderia ser tal que, embora sejamos capazes de justificar

nossas crenças, as condições extras para justificação que transformam crença verdadeira

justificada em conhecimento não são condições que estejamos aptos a satisfazer. Ou pode

ser que o conhecimento seja radicalmente impossível porque somos incapazes de estar

justificados no que cremos, mesmo no menor grau.

O ceticismo não-radical, que ataca o conhecimento considerado de forma estrita,

obviamente não é um desafio sério para as práticas epistêmicas cotidianas. A razão disto é

que, mesmo que não víssemos nenhuma maneira de colocá-lo de lado, sempre poderíamos

pôr em prática o que Crispin Wright chamou de “o recuo russelliano”, ao abster-se de falar

em conhecimento (entendido estritamente) em favor de falar em crença justificada. O ônus

de demonstrar que tal retirada acarretaria uma perda significativa recairia então sobre o

cético. Em contrapartida, justamente porque obviamente não dá uma margem aceitável de

recuo, o ceticismo radical representa uma ameaça muito mais séria à nossa perspectiva

epistemológica ordinária.

Aqui há um ponto geral: quanto mais rígido o conceito de conhecimento, mais fácil

será a argumentação em favor do ceticismo. Ao mesmo tempo, quanto mais fácil a

argumentação, menos interessante o ceticismo se torna. Por exemplo, alguns filósofos

afirmaram que o conhecimento considerado de forma estrita exige certeza absoluta, certeza

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que ultrapasse até mesmo da possibilidade lógica de erro. Mas a negação de que somos

capazes de conhecimento nesse sentido exigente é algo com que se pode viver com bastante

facilidade. De fato, essa forma de ceticismo é mais corretamente compreendida como um

falibilismo recomendável e, por isso, não é de forma alguma ceticismo.

Esse é um exemplo extremo. Contudo, acredito que observações similares se aplicam

a explicações de conhecimento mais modestas e atraentes. Consideremos tentativas —

muito plausíveis — de explicar o conhecimento em termos de justificação absoluta. Nessas

explicações, a certeza anexada ao conhecimento consiste no fato de que a crença verdadeira

é sustentada por uma justificação que não está sujeita a ser abalada pela aquisição

(indefinida) posterior de crenças verdadeiras. Não é óbvio que qualquer justificação que

possuímos atualmente atende a esta condição exigente. Consequentemente, há um caso

prima facie para um meta-ceticismo modesto, o que quer dizer que, até onde se sabe, pode

faltar-nos conhecimento. Mas, novamente, essa forma de ceticismo não representa uma

ameaça séria para nossa autoimagem de animais (potencialmente) racionais. Nada tão

dramático quanto uma cisão no ser parece estar à vista. Somente o ceticismo radical sugere

isso.

Formas sérias de ceticismo filosófico não são apenas radicais, mas são também

altamente gerais. Elas desafiam a nossa possibilidade de termos crenças justificadas, seja

com respeito a quaisquer assuntos ou ao menos com respeito a certas áreas muito amplas de

fatos: por exemplo, todos os fatos que se referem ao mundo externo. Isto é como deveria ser.

Não é uma afronta ao senso comum apontar para o fato de que há uma porção de coisas que

não sabemos e nunca saberemos. A prova relevante é fragmentária ou inexistente e seus

defeitos nunca serão reparados. Nem o ceticismo será uma ameaça séria se sua generalidade

consistir somente em afirmar que qualquer crença pode ser colocada em questão, havendo

cenário adequado. Isso também é algo com que podemos viver facilmente. Uma forma séria

de ceticismo filosófico deve emitir um veredicto negativo acerca de todas as nossas

afirmações de conhecimento. Deve julgá-las coletivamente, não individualmente.

Isso nos leva à terceira exigência: a de que o ceticismo filosófico seja ‘natural’ ou

‘intuitivo’. Com isto eu quero dizer que os argumentos que conduzem ao ceticismo devem

explorar somente recursos derivados de nossas ideias epistemológicas cotidianas.

Claramente, a exigência para que o ceticismo seja natural ou intuitivo está profundamente

associada à exigência para que ele seja geral. O cético não está interessado em apontar a

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ignorância contingente, ainda que extensa. Ele quer encontrar alguma dificuldade intrínseca

em nossas pretensões ao conhecimento: seja o conhecimento como tal ou o conhecimento de

um tipo muito amplo. É por isso que o ceticismo é geralmente estabelecido em termos de

possibilidade do conhecimento. Sua questão não é se há uma porção de coisas que nós não

sabemos e nunca saberemos. Antes, sua afirmação é a de que a questão do conhecimento está

fadada ao fracasso desde o início; e não devido a algum alto padrão gratuitamente imposto

por ele, mas por razões implícitas às nossas ideias epistemológicas mais mundanas.

Isto nos leva à razão mais importante pela qual os argumentos céticos devem ser

intuitivos ou naturais. Se eles não são intuitivos, se eles dependem de ideias teóricas

controversas e possivelmente dispensáveis acerca do conhecimento ou da justificação, a

aparente inevitabilidade do ceticismo nos dirá algo sobre essas ideias, mas nada sobre nossas

afirmações cotidianas de conhecimento ou de justificação. Fazemos bem aqui em adotar a

terminologia de Robert Fogelin e distinguir ceticismo filosófico de ceticismo a respeito da

filosofia. O primeiro é uma ameaça para as práticas epistêmicas cotidianas. O último, mesmo

que pareça interessante e importante em vários aspectos, não é.

É claro, poderíamos ser capazes de chegar a um pelo outro: por exemplo, ao

argumentar que certas teorias filosóficas do conhecimento simplesmente trazem à luz ideias

que sempre estiveram implícitas em nossa perspectiva epistemológica cotidiana. Se isso

puder ser demonstrado, pode ser que o fracasso dessas teorias para garantir a possibilidade

de conhecimento seja, no fim das contas, uma vitória para a filosofia cética. Mas a ligação

tem que ser feita, e fazê-la está longe de ser tão simples quanto frequentemente se supõe.

3. As condições recém discutidas não são fáceis de serem satisfeitas. No entanto,

acredito que a chave para responder ao ceticismo que atormenta os neo-humeanos de hoje

em dia é ver que ele consegue ser radical e (aparentemente) geral somente a custa de não

conseguir ser intuitivo.3 Todos os problemas cartesianos — o mundo exterior, indução,

outras mentes, o passado e assim por diante — são problemas de sub-determinação. Como

tais, eles dependem de uma partição prévia de nossas crenças em classes privilegiadas e

classes problemáticas, divisões estas por sua vez consideradas como correspondentes a uma

ordem de prioridade epistêmica que independe de contexto. Assim, o problema do nosso

conhecimento do mundo exterior surge como uma forma radical e geral de ceticismo

3 Para uma defesa detalhada dessa posição, ver o meu Williams (1992).

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somente se todas as nossas crenças sobre o mundo forem consideradas como dependentes

de algum tipo mais básico de conhecimento para sua justificação: o conhecimento empírico,

por assim dizer. A ideia de que o conhecimento experiencial é, de alguma forma totalmente

geral e intrínseca, epistemologicamente anterior ao conhecimento do mundo é um exemplo

do que eu chamo de ‘realismo epistemológico’. Consequentemente, o caminho para

ultrapassar os problemas céticos cartesianos é arrancá-los pela raiz, ao revelar e atacar o

realismo epistemológico do qual ele depende tacitamente.

Admito que a dependência que o ceticismo cartesiano tem dessas ideias nem sempre

é imediatamente óbvia: daí a necessidade do que eu chamo de ‘diagnóstico teórico’, o qual

pretende expor uma dependência essencial que o problema tem de pressupostos teóricos não

reconhecidos. O resultado de ligar o ceticismo cartesiano ao realismo epistemológico, o qual

acredito não haver boas razões para aceitar, é uma visão contextual da justificação que abala

a coerência teórica dos domínios epistêmicos sobre os quais o cético tenta generalizar. O

resultado é um ceticismo sobre um determinado gênero de teoria epistemológica. O

ceticismo filosófico é rejeitado.

É por isso que considero a defesa do ceticismo de Fogelin tão significativa. Fogelin

compartilha do meu pensamento de que o ceticismo cartesiano carrega uma alta carga de

teoria e parece “se apoiar em um comprometimento filosófico prévio com o caminho das

ideias — um compromisso que o cético pirrônico não teria” (p. 193/250). Portanto, para o

pirrônico, “o cético ao estilo cartesiano não é suficientemente cético” (p. 193/250). Ele é

cético sobre tudo, exceto sobre seus próprios pressupostos epistemológicos. Ao contrário, o

ceticismo pirrônico é totalmente intuitivo. As dúvidas pirrônicas são “o resultado natural e

inteligível” (p. 203/263) da reflexão acerca de nossas práticas epistêmicas cotidianas. Elas

não dependem de nenhum pressuposto teórico controverso. O ceticismo pirrônico prospera

(eu afirmo) onde o ceticismo cartesiano fracassa.

No cerne do ceticismo pirrônico reside o “problema de Agripa”.4 Os Cinco Modos de

Agripa são discrepância, relatividade, regresso ao infinito, hipótese e circularidade. Os

4 Ao enfocar o problema de Agripa, Fogelin apresenta uma versão severamente despojada do ceticismo pirrônico. O fundamento do pirronismo histórico é o método de oposição: o cético alcança a suspensão do juízo ao contrapor a toda proposição ou argumento uma proposição ou argumento incompatível que lhe parece como mais ou menos igualmente plausível. Esse método, no qual concepções competidoras se neutralizam mutuamente, não tem conexão especial com a argumentação epistemológica: uma teoria física será oposta a uma teoria física alternativa, um juízo ético a outro juízo ético e assim por diante. A meu ver, o papel mais direto de considerações epistemológicas na prática dialética do cético pirrônico tem sido amplamente mal compreendida. Ver o meu Williams (1988).

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modos desafiadores da discrepância e da relatividade ‘acionam uma exigência pela justificação

ao revelar que há afirmações opostas no que diz respeito à natureza do mundo que

percebemos’. Mas, uma vez aceito o desafio, os modos dialéticos restantes nos confrontam

com um trilema aparentemente fatal. Uma vez que que o que quer que ofereçamos como

justificação para uma dada afirmação ou crença — seja uma prova específica ou um critério

geral de credibilidade — pode estar sujeito a uma exigência de justificação, estamos

ameaçados por um regresso vicioso. Mas não há maneira satisfatória de bloqueá-lo. Diante

de repetidas exigências para avalizar o que afirmamos, finalmente ficaremos sem ter o que

dizer, terminando, portanto, com uma suposição tosca; ou vamos acabar repetindo algo que

já tínhamos dito, raciocinando em círculos. Independentemente do que aconteça, nenhuma

justificação satisfatória terá sido produzida. Diferente do ceticismo cartesiano, o problema

de Agripa não depende de uma partição controversa de nossas crenças em classes

privilegiadas e classes problemáticas. Ele não depende de uma teoria da mente particular.

Não depende também de nenhuma visão particular acerca do que consiste a justificação.

Tudo que ele explora é a exigência do senso comum de que reivindicar uma crença

justificada é abrir-se às demandas de produção de justificação.

O que Fogelin chama de ‘o problema de Agripa’ é geralmente reconhecido como o

problema do regresso da justificação. Fogelin descarta esta maneira de caracterizar o

problema porque acredita que ela exerce uma pressão sutil que induz a pensar que o

problema pode ser solucionado. Mas, de acordo com Fogelin, não temos o direito de

simplesmente supor que o desafio cético deve ser algo que possamos responder de alguma

forma. Talvez não se possa respondê-lo de modo algum.

É tentador supor que — visto que pelo menos algumas de nossas crenças são

justificadas e que o regresso da justificação é claramente vicioso ― deve ser possível colocar

uma das alternativas restantes numa situação melhor. Talvez haja crenças ou justificativas

finais que, ainda assim, não são apenas suposições: aqui chegamos à ideia fundamental das

teorias fundacionistas da justificação; a de que algumas de nossas crenças são

intrinsecamente críveis. Se formos por esse caminho, podemos muito bem acabar achando

que a base última do conhecimento empírico é bastante limitada e, assim, estarmos diante

de uma gama de problemas cartesianos de sub-determinação. No entanto, esses problemas

não surgirão imediata e naturalmente, mas sim em consequência de uma resposta teórica

particular ao ceticismo de Agripa. Em vez disso, se acharmos a estratégia fundacionista

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impraticável — seja porque não há crenças básicas intrinsecamente críveis, ou porque,

mesmo que houvesse, estas constituiriam uma base tênue demais para um sistema útil de

conhecimento empírico —, poderemos esperar encontrar uma descrição satisfatória da

justificação em alguma história sobre como as nossas crenças combinam entre si. Isso levará

a uma forma de teoria da coerência, que afirmará que os modos complexos nos quais os

sistemas de crença se apoiam uns nos outros não devem ser equiparados a uma simples

circularidade. Seguir esta linha poderia também gerar mais problemas céticos: por exemplo,

o problema de associar a coerência, que sobrevém nas relações crença-crença, com a verdade

objetiva. Mas, novamente, esses problemas surgirão somente porque a necessidade de

corresponder ao ceticismo de Agripa nos forçou a explorar uma opção teórica particular. No

entanto, ao supor que uma dessas opções deve funcionar, uma vez que de fato temos crenças

justificadas, estamos tratando o ceticismo como um mero dispositivo metodológico. O que

nos dá o direito de fazer isso, quando um exame atento para tentar responder ao ceticismo

sugere fortemente que o “problema” do ceticismo não tem solução? De acordo com Fogelin,

nenhuma explicação da justificação já elaborada conseguiu passar pelo crivo dos modos de

Agripa: se não ao regresso vicioso, sucumbiu à hipótese ou à circularidade. De fato, ninguém

sequer chegou perto de obter êxito na tarefa estabelecida pelo problema de Agripa, de modo

que “as dúvidas pirrônicas, uma vez levantadas, parecem incapazes de serem resolvidas” (p.

203/263).

O ceticismo pirrônico, então, é ao mesmo tempo intuitivo e irrefutável. Uma vez que

o problema de Agripa pode ser levantado com respeito a qualquer suposta crença justificada,

ele também é geral. Mas seria ele radical? De acordo com Fogelin, sim. O ceticismo

pirrônico propõe “um desafio cético tão robusto quanto se desejaria” (p. 193/250).

Novamente, isso parece razoável. Se as tentativas de se justificar uma crença levam

inevitavelmente à hipótese, à circularidade ou ao regresso, a conclusão não é a de que nossas

justificações são menos que permeáveis, mas sim de que elas são totalmente inúteis. Assim,

se Fogelin estiver certo, minha linha anticética — a qual depende da possibilidade de

diagnóstico teórico — é, na melhor das hipóteses, efetiva somente contra uma forma de

ceticismo que nunca foi a mais fundamental. Ela pode funcionar contra o ceticismo

cartesiano, mas deixará o ceticismo pirrônico intocado. Mas Fogelin está correto?

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4. De forma significativa, do meu ponto de vista, Fogelin não supõe que o problema

de Agripa automaticamente apresenta um desafio cético sério. Ao contrário, sustenta que

ele coloca esse problema somente dados dois compromissos adicionais.

O primeiro é um compromisso com um princípio normativo forte de justificação

epistêmica. O princípio é capturado pela máxima de W. K. Clifford: “é errado sempre, em

qualquer lugar e para qualquer pessoa crer em algo a partir de prova insuficiente”. Em

consequência, Fogelin chama essa doutrina de “cliffordismo”. Ele sustenta, corretamente, a

meu ver, que muitos epistemólogos contemporâneos aceitam alguma versão dela.

O segundo compromisso é com a existência de conhecimento. Para aqueles que

assumem o primeiro compromisso, é claro, isso significa conhecimento segundo os padrões

cliffordianos. Portanto, segundo Fogelin, “a suposição que move os programas

justificacionistas, tanto em seus modos fundacionistas quanto em seus modos não

fundacionistas, é que temos (ou poderíamos ter) conhecimento segundo os padrões

cliffordianos. A tarefa de uma teoria da justificação epistêmica é apresentar como isso é

possível” (p. 115/158). Fogelin sustenta que o problema de Agripa é a pedra na qual esses

projetos afundam. Nenhuma teoria já produzida sequer se aproxima de resolvê-lo.

Supondo que Fogelin esteja certo sobre isso, o que vem a seguir? Teríamos alcançado

o ceticismo filosófico ou apenas o ceticismo sobre a filosofia (cliffordiana)? A resposta é clara:

somente o último, a menos que suponhamos que os padrões cliffordianos estão embutidos

dentro das práticas epistêmicas cotidianas. No entanto, de acordo com Fogelin, o cético

pirrônico não faz essa suposição. Pelo contrário, “o pirrônico simplesmente toma os padrões

do dogmático com seu valor aparente e faz o dogmático cumpri-los. O pirrônico invoca os

Cinco Modos e argumentos semelhantes com propósitos dialéticos” (p. 115-6/158). Eu

concordo, mas o problema é ver como esse uso dos problemas céticos por um filósofo que

não aceita a identidade dos padrões cotidianos e cliffordianos de responsabilidade epistêmica

nos leva a dar um passo na direção do ceticismo filosófico em vez do ceticismo sobre filosofia.

Este problema se torna agudo quando nos voltamos para a descrição de Fogelin da

visão epistêmica do próprio pirrônico. Ele vê o cético pirrônico como alguém

caminhando pelo mundo, afirmando saber certas coisas e, por vezes, afirmando estar

certo ou mesmo absolutamente certo delas. O cético pirrônico participa livremente

das práticas epistêmicas comuns, apoiando-se em todas distinções práticas

incorporadas nelas. Essas práticas são muitas vezes falíveis. Frequentemente, essa

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falibilidade não importa, pois o preço de estar errado não é alto. Quando o custo do

erro se torna excessivo, o cético, como outros, pode buscar maneiras de aprimorar

essas práticas, de modo que as oportunidades de erro sejam reduzidas. Descrito

assim, o cético se parece com o cético moderado de Hume...: cauteloso, agradável e

são. (p. 192/249)

Isso é falibilismo, e não ceticismo radical. Fogelin termina onde eu teria previsto. Na medida

em que se desvia claramente de compromissos filosóficos controversos — tais como o

cliffordismo —, o neopirronismo não consegue chegar ao ceticismo radical. Para gerar um

problema sério, ele teria de aceitar esses compromissos. Mas, então, ele seria alvo do

diagnóstico teórico. De ambas as maneiras, Fogelin não consegue abrir um caminho

intuitivo para o ceticismo radical.

Nada disso é novidade para Fogelin. Ele antecipa a objeção de que o ceticismo que

defende é uma “sopa muito rala” (p. 192/249). Esta objeção não vai ao ponto, ele argumenta,

porque os projetos justificacionistas que afundam no problema de Agripa não estão

arraigados unicamente em ambições epistêmicas adventícias. Mais do que isso, eles surgem

naturalmente da reflexão sobre uma certa característica inegável de nossas práticas

epistêmicas cotidianas: sua fragilidade. Assim, para completar o argumento precisamos

observar essa fragilidade para ver exatamente em que ela consiste.

5. A descoberta de Fogelin da fragilidade do conhecimento não advém diretamente

de uma confrontação com os problemas céticos, mas sim da tentativa de responder ao

problema de Gettier. Geralmente acredita-se que Gettier demonstrou que o conhecimento

não é simplesmente crença verdadeira justificada. Se quisermos manter uma análise do

conhecimento centrada na justificação, necessitamos de uma “quarta cláusula” para

selecionar o tipo de justificação capaz de produzir conhecimento. Fogelin não está de acordo.

Ele acredita que com um entendimento apropriado da justificação podemos ver que os

contraexemplos criados no estilo de Gettier para a análise do conhecimento enquanto

“crença verdadeira justificada” são apenas aparentes.

Fogelin defende — e eu concordo — que a justificação tem dois aspectos. O primeiro

tem a ver com o desempenho ou com a responsabilidade epistêmica. Dizemos que uma

pessoa está justificada em crer que P quando tomou os devidos cuidados ao formar sua

crença. Nesse sentido de “justificado”, é claro que ela pode estar justificada em crer em algo

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que é de fato falso. Mas também usamos “justificado” para avaliar as bases nas quais a crença

de uma pessoa se fundamenta. Quando temos em mente esse sentido de “justificação”,

Fogelin sugere, dizer que uma pessoa está justificada em crer que P significa dizer que suas

bases ou suas razões estabelecem a verdade de P. Uma análise adequada do conhecimento

deve levar em consideração ambos os sentidos. Às cláusulas habituais:

S sabe que P se

i. P é verdadeiro,

ii. S crê em P,

Devemos adicionar tanto uma “cláusula de desempenho”,

(iiip) S chegou justificadamente na crença em P,

E uma ‘cláusula de bases adequadas’,

(iiig) As bases de S estabelecem a verdade de P.

Eliminando a redundância, chegamos à elegante formulação:

S sabe que P se S chegou justificadamente na crença em P com bases que estabelecem

a verdade de P (p. 94/135).

Agora, num típico problema de Gettier, uma pessoa forma uma crença a partir de alguma

inferência que aparentemente confere justificação, a qual, não por culpa dela própria, envolve

uma premissa ou um preceito falso. Todavia, por um golpe de sorte, ocorre que sua crença

é verdadeira mesmo assim. Portanto, ela parece ter uma crença verdadeira justificada que

não estamos dispostos a considerar como conhecimento. Mas tais exemplos, afirma Fogelin,

exploram o duplo aspecto da justificação. Tomamos os exemplos para envolver crença

verdadeira justificada porque a suposta pessoa está justificada no sentido do desempenho:

ela não pode ser culpada por seu erro. Ainda assim, suas razões são de fato falhas. Sua

justificação é inválida porque ignora informações vitais; e é por isso que não estamos

dispostos a dar-lhe o crédito de possuir conhecimento. Desse modo, os exemplos de Gettier

não descrevem casos de crenças verdadeiras justificadas sem conhecimento, considerando

‘justificado’ univocamente. Eles são exemplos de uma pessoa justificada de uma forma, mas

não de outra. Uma vez que vimos que ambos os aspectos da justificação são essenciais para

o conhecimento — na realidade, para a própria justificação — os contraexemplos

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desaparecem e a análise do conhecimento enquanto ‘crença verdadeira justificada’ continua

válida.

Essa é uma boa solução para o problema de Gettier. Mas como ela funciona

exatamente? Ela é realmente tão diferente de uma abordagem da “quarta cláusula” que aceita

os contraexemplos como genuínos e tenta limitar o tipo de justificação que produz

conhecimento? Essa questão é importante, visto que análises de quarta cláusula

naturalmente conduzem a uma distinção entre ceticismo radical e não radical, abrindo o

caminho para uma retirada russelliana, caso seja difícil de se obter o conhecimento.

O próprio Gettier nota que seus exemplos dependem de supor que uma pessoa pode

estar justificada em crer em algo que é falso. Fogelin claramente nega isso, ao menos com

respeito à justificação que confere conhecimento, uma vez que ele considera que o

conhecimento exige razões que estabeleçam a verdade do que se sabe. Mas o que quer dizer

‘estabelecer a verdade’? A resposta óbvia é que as razões da crença estabelecem sua verdade

se elas forem verdadeiras e, logicamente, implicarem a proposição na qual se acredita. Uma

resposta assim faria a explicação de conhecimento de Fogelin um equivalente funcional da

análise da quarta cláusula. Essa resposta também faria o conhecimento depender de uma

concepção de tal forma rigorosa de justificação que seria difícil ver como a fragilidade das

afirmações de conhecimento nos levaria a dar um passo na direção do ceticismo radical. No

entanto, essa concepção não pode ser o que Fogelin tem em mente. Tal visão seria

“chauvinismo dedutivo”, coisa que ele rejeita enfaticamente. Sua visão está próxima (ou à

primeira vista parece estar próxima) de uma concepção de justificação de “alternativas

relevantes”. As razões “estabelecem a verdade” de uma crença se elas excluem todas as

possibilidades relevantes de erros (ou talvez importantes, ou significativas, ou reais). Em

circunstância cotidianas, estas ficam aquém de todas as possibilidades de erro que existem.

Essa é uma característica da justificação em geral, não apenas justificação de algum tipo

especial, do tipo que confere conhecimento. Portanto, acredito que Fogelin pode defender a

afirmação de que sua análise de conhecimento não delineia uma forte distinção entre

conhecimento e crença verdadeira justificada que não é conhecimento. Pelo menos, não

levarei adiante esta linha de crítica.

Essa concepção de procedimentos justificadores ordinários nos força a reconhecer

suas fragilidades. Normalmente fazemos afirmações de conhecimento sérias diante de

possibilidades de erro remotas e não tão remotas que não eliminamos. Isso não precisa ser

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censurado. Com efeito, se os custos de erro são baixos comparados aos da investigação

adicional, essa é a única forma razoável de se proceder. Todavia, ao nos apoiarmos em razões

que não excluem possibilidades de erro significativas, estamos nos expondo a riscos

epistêmicos. Admitimos a possibilidade de provas anuladoras, mas contamos com que ela

não ocorra. Então, quando conseguimos nos safar dela, quando problemas que poderiam

surgir não surgem, em suma, quando somos bem sucedidos em conhecer algo, isso é em

parte uma questão de “graça epistêmica”. Como diz Wittgenstein, “É sempre graças à

Natureza que alguém sabe alguma coisa”.5

Então, na justificação cotidiana, as razões sobre as quais nossas crenças se apoiam

estão abertas à anulação por um argumento, o que quer dizer que uma possibilidade de erro

ignorada é no final relevante. Um argumento assim eleva o que Fogelin chama de “níveis de

escrutínio”. Por causa da possibilidade sempre presente de que o nível de escrutínio possa

ser elevado, os procedimentos justificadores cotidianos, e portanto as afirmações de

conhecimento que dependam deles, são intrinsecamente frágeis. Isso prepara o ambiente

para a explicação elaborada de Fogelin da motivação por trás das teorias filosóficas de

justificação: “Uma tentativa de transcender nosso modo atual de justificação é uma

consequência natural e imediata de perceber sua fragilidade” (p. 203/262). Transcender essa

fragilidade demonstraria que ao menos algumas justificações se ligam às nossas crenças

cotidianas, não importando qual o nível de escrutínio estabelecido. Mas o problema de

Agripa anula todas as tentativas. É por isso que não há resposta final para o ceticismo.

Devemos viver com nossas frágeis justificações cotidianas, confiando à graça que elas nem

sempre nos decepcionarão.

Uma questão razoável a se perguntar é o que isso tem a ver com o ceticismo radical.

Se tem algo a ver, a descrição de Fogelin de como as teorias filosóficas da justificação

emergem da tentativa de compensar a fragilidade dos procedimentos justificadores

cotidianos intensifica a suspeita de que essas teorias refletem um anseio por um nível de

segurança muito maior do que o ordinário. Assim, seu fracasso não levará a um ceticismo

radical, mas a uma decepção na busca pela certeza. Essa é uma forma de ceticismo sobre a

filosofia, não uma forma de ceticismo filosófico. Parece que não estamos chegando a lugar

nenhum.

5 Wittgenstein (DC, 505). As referências subsequentes são dadas por DC e número da seção.

14

Isto nos traz de volta à possibilidade de defender o ceticismo radical sem assumir

para si um compromisso filosófico sério de qualquer tipo: uma façanha que o pirrônico, em

contraste com sua contraparte cartesiana, deveria levar a cabo. Dizer que nossas

justificações cotidianas são menos que permeáveis não significa dizer que elas não têm valor

epistêmico. É sempre uma falácia ir diretamente da possibilidade de erro para a

impossibilidade de justificação. Algum pressuposto oculto deve estar em ação. Qual seria

ele?

A pista é perceber que a justificação cotidiana, como descrita (corretamente) por

Fogelin, envolve um componente externista crucial. Contamos com que certos anuladores

possíveis para nossas afirmações de conhecimento não sejam reais. Se estivermos certos,

saberemos: do contrário, não. Mas o conhecimento depende de estarmos certos, não de nosso

conhecimento de que estamos certos. É claro, isso quer dizer que saber que P não implica

saber que alguém sabe que P. Mas isso também não o exclui. A ideia é antes a de que saber

que alguém sabe que P exige uma investigação à parte. Qualquer que seja a justificativa a

que isso nos leva, ela envolverá seu próprio elemento de graça epistêmica. Mas de um ponto

de vista externista, esse não é o regresso vicioso da justificação ameaçado pelo problema de

Agripa, mas apenas o caráter aberto da investigação falibilista. Uma questão pode sempre

conduzir a outra. Mas isso não significa que não podemos responder questão alguma sem

responder todas.

Alguns filósofos certamente responderão que, no caso da justificação, significa sim.

Mas isso é devido a um compromisso anterior com uma forma forte de internismo. Esse

compromisso exige o que Larry BonJour chama de “acesso cognitivo” a todos os fatores

sobre os quais a justificação epistêmica sobrevém. Se a explicação wittgensteiniana de

Fogelin acerca da justificação cotidiana está correta, esse é um compromisso que as práticas

epistêmicas cotidianas não fazem. Mas é justamente esse o compromisso de que precisamos

para nos levar da fragilidade dos nossos procedimentos justificadores cotidianos, via

problema de Agripa, para a ameaça de um ceticismo radical. Pelos próprios padrões de

Fogelin, o movimento da reflexão sobre nossas práticas cotidianas para as tentativas

transcendê-las não é imediato, tampouco natural.

Observe que, se isso está correto, o “cliffordismo” é uma falsa questão. O cliffordiano

insiste que é errado, sempre e em qualquer lugar, crer em algo a partir de provas

insuficientes. Portanto, pode parecer que o cliffordismo, como Fogelin está inclinado a

15

supor, impõe um padrão mais alto de responsabilidade epistêmica do que o normal. Como já

argumentei, isso anularia a naturalidade de qualquer forma de ceticismo derivada do

fracasso dos programas cliffordianos. Mas, de fato, ele não faz isso. Num entendimento

cotidiano de suficiente — que reconhece a inevitabilidade da graça epistêmica —, o

cliffordiano deixa tudo como está. A esse respeito, é como aquele outro lema aparentemente

exigente, o princípio de verificabilidade. Dizer que uma proposição é sem sentido, a menos

que ela seja verificável analítica ou empiricamente, parece dramático. Mas o Princípio é

ineficaz sem algum conceito adequadamente restritivo de verificação empírica. Ele poderia

excluir tudo ou nada.

A objeção a esta altura será que eu estou ignorando o papel crucial desempenhado

pela noção de Fogelin de ‘níveis de escrutínio’ para produzir o ceticismo. Ao contrário do

que ele às vezes sugere, a concepção de Fogelin é a de que não é o cliffordismo em si que

torna o problema de Agripa sério, mas sim o cliffordismo no contexto de um escrutínio no

mais alto nível: escrutínio irrestrito. No contexto do escrutínio irrestrito, o chauvinismo

dedutivo torna-se razoável, mais do que chauvinista. O escrutínio irrestrito exige que

eliminemos todas as possibilidades de erro, o que nunca poderemos fazer. Além disso, um

cético sempre pode aumentar o nível de escrutínio unicamente por meio da reflexão: ao

retroceder de qualquer procedimento justificador cotidiano dado e ao observar o quanto ele

presume como certo, o quanto ele depende da graça epistêmica.

Uma forma de resistir a esse aumento de nível de escrutínio é adotar uma visão

contextualista encorpada do conhecimento e da justificação. No entanto, aos olhos de

Fogelin essa visão distorceria as práticas epistêmicas ordinárias. Para se ter certeza, a

justificação cotidiana tem lugar em contextos restritos, mas isso não significa que nossas

afirmações de conhecimento são relativizadas àqueles contextos. Ao fazer afirmações de

conhecimento, comprometemo-nos a ter razões suficientes para nossa crença. Portanto,

abrimo-nos para o aumento do nível de escrutínio, através de exame reflexivo da atual

incompletude de qualquer razão que tenhamos.

O que é escrutínio “irrestrito”? A resposta parece ser: é o escrutínio que abstrai de

considerações práticas que normalmente nos desencorajam de exigências prementes por

justificação além de um certo (normalmente não muito distante) ponto. Mas embora o

movimento para um tal escrutínio nos permita considerar as possibilidades de erro que

ordinariamente seriam consideradas como remotas demais para serem levadas a sério, ele

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não nos leva a dar um passo em direção ao ceticismo radical. No máximo, ele demonstra que,

se a investigação fosse sem consequências, poderíamos razoavelmente exigir um grau mais

alto de segurança do que estamos acostumados. Ele não demonstra que a justificação

ordinária é sem valor.

Como pudemos chegar a esta conclusão? Por ora, suponhamos que as justificações

ordinárias são inválidas no contexto do escrutínio irrestrito e também que nenhuma

tentativa de transcender os procedimentos justificadores ordinários é bem sucedida. Como

isso poderia nos dizer algo a respeito dos procedimentos justificadores ordinários em seu

contexto apropriado? Até onde posso ver, há somente um caminho. Temos que supor que o

contexto filosófico de escrutínio irrestrito é privilegiado. Não é difícil ver como a história

deve continuar. Temos que demonstrar que as exigências justificadoras ordinárias são a

soma de dois vetores: um que reflete considerações puramente epistêmicas e, portanto,

impõe exigências estritas à justificação; e outro que reflete as contingências práticas que nos

permitem relaxar nossas exigências epistêmicas “em prol de propósitos práticos”. Essa

imagem da justificação epistêmica leva prontamente a uma conclusão neo-humeana. Em prol

de propósitos práticos somos forçados a ignorar problemas céticos. Mas no escritório, onde

todos esses propósitos são postos de lado e nosso “humor oscilante” pode operar sem maior

controle, esses problemas nos confrontam com força total e nossa confiança cotidiana em

nossas crenças e procedimentos evaporam. Além disso, a visão do ponto de vista do

escritório, enquanto é de certa forma “forçada e pouco natural”, permite uma profunda

introspecção em nossa condição epistêmica. Ela revela a aparência de nossas práticas

justificadoras epistêmica de um ponto de vista puramente epistêmico: o ponto de vista no

qual a probabilidade de nossas crenças serem verdadeiras é a única consideração relevante.

Há fortes ecos de Hume em Fogelin, o qual escreve:

A reflexão sobre possibilidades remotas ou não tão remotas ainda não excluídas pode

nos levar a pensar que quase nunca sabemos as coisas que afirmamos saber.

Enquanto mantivermos essa “concepção intensa das coisas”, não estaremos

inclinados a pensar que sabemos as coisas que normalmente aceitamos sem hesitação

nem que estamos justificados em crer nelas. Quando retornarmos às coisas práticas

da vida, nossos padrões voltarão ao seu nível moderado normal e essa falta de

inclinação passará. Isso é tudo muito humeano. (p. 94/134-135).

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Contudo, isso tudo também está muito errado. A distinção implícita entre a prática e o puro

epistêmico é capciosa. O oposto da prática é a teoria, não o puro epistemológico.

Para ver isso, observe primeiro que, embora sofra todo tipo de mudanças contextuais,

o escrutínio simplesmente não desliza entre níveis, do flexível ao moderado e ao intenso e

depois de volta ao início: ele muda de perspectiva tanto quanto muda de nível. Wittgenstein

percebeu isso de maneira aguda. Assim:

DC, 341. As perguntas que formulamos e as nossas dúvidas dependem do facto de

certas proposições estarem isentas de dúvidas serem como que dobradiças em volta

das quais as dúvidas giram.

342. Isto é, pertence à lógica das nossas investigações científicas que certas coisas

de facto não sejam postas em dúvida.

343. Mas a situação não se assemelha a isto: Não podemos investigar tudo e por isso

somos forçados a contentar-nos com suposições. Se queremos que a porta se abra, é

preciso que as dobradiças lá estejam.

Isentar de dúvida certas proposições — temporária ou permanentemente — faz-se

necessário para acertar a direção da investigação, a perspectiva de escrutínio. Essa função

de acerto da direção da não-dúvida seletiva nada tem a ver com os aspectos práticos, uma

vez que ela se aplica até para as investigações mais teóricas.

As mudanças na perspectiva de escrutínio operam independentemente das mudanças

de nível. Como vemos novamente em Wittgenstein:

DC, 163. Verificamos a história de Napoleão, mas não se acaso todos os relatos que

lhe dizem respeito se baseiam em erros de apreciação, falsificações, etc... Porque

sempre que verificamos qualquer coisa, já partimos de pressupostos que não são

verificados. Deverei dizer que a experiência que talvez faça para verificar a verdade

de uma proposição pressupõe a verdade da proposição que a aparelhagem que creio

ver está realmente ali (e por aí fora)?

Na investigação histórica ou científica, há muitas formas de aumentar o nível de escrutínio.

Como historiador, posso gastar muitas horas nos arquivos e investigar escrupulosamente a

proveniência de qualquer documento que eu encontrar. Como cientista, posso desmontar e

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remontar meus equipamentos para verificar defeitos; eu posso repetir meu experimento

muitas vezes e continuar indefinidamente. Mas certos tipos de dúvidas não aumentam o

nível de escrutínio: elas mudam o assunto. Preocupações sobre se meu equipamento é uma

ilusão de óptica não é parte de uma abordagem cuidadosa especial para a física experimental.

Ela introduz um tipo de investigação completamente diferente: a epistemologia cética, por

assim dizer. Portanto, quando Hume ou Fogelin vencem seu desespero filosófico, eles não

retornam para padrões mais moderados, mas para buscas diferentes, conduzidas em

qualquer nível de de rigidez epistemológica que os recursos e os custos (incluindo custos de

oportunidade) permitam.

Eu disse anteriormente que, para obter uma conclusão cética radical e geral a partir

do pensamento que procedimentos justificadores ordinários podem parecer inadequados no

contexto de escrutínio irrestrito, esse o contexto precisa ser visto como privilegiado: nas

palavras de Fogelin, “uma estrutura justificadora última que sustente todas as outras” (p.

98/140). Fogelin acredita que exista tal estrutura? É difícil dizer. Por um lado, ele expressa

simpatia pelo “contextualismo pluralista”, uma visão que certamente repudia a existência de

qualquer estrutura assim. Por outro lado, ele nega que ele seja ele próprio um contextualista.

A profunda incerteza de Fogelin é aqui refletida numa incerteza superficial acerca de

haver ou não uma verdade sobre o saber. Se consideramos o contexto de escrutínio irrestrito

como sendo privilegiado e supomos que as dúvidas céticas não podem ser deixadas de lado,

a conclusão deveria ser que nós nunca de fato sabemos algo, embora seja frequentemente

admissível dizer que sabemos (por exemplo, quando temos conhecimento para todos os

propósitos práticos, ou para esse ou aquele propósito prático em particular). Se rejeitamos a

ideia de privilégio em favor de um contextualismo mais aprofundado, a conclusão é a de que

sabemos todos os tipos de coisa: nós as sabemos quando satisfazemos os padrões de

justificação apropriados ao contexto. O fato de que Fogelin está tão incerto sobre se há um

fato da questão sobre o conhecimento sugere fortemente que ele está dividido entre essas

duas opções. No fim das contas, essa tensão o leva a uma inconsistência.

Fogelin espera resolver a aparente tensão em suas concepções da justificação nos

lembrando de que a justificação tem dois aspectos: performance responsável e razões

adequadas. Ele quer afirmar que o primeiro aspecto é contextualmente sensível enquanto

que o segundo não é. Portanto:

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Embora sejam sempre feitas de dentro de estruturas restritas, afirmações de

conhecimento não são relativizadas a essas estruturas.... [A] exigência de razões

adequadas não está relativizada a uma estrutura particular com um nível de

escrutínio fixo, embora a avaliação de um desempenho epistêmico responsável

esteja. É essa disparidade entre as exigências objetivas da cláusula de razões

adequadas e as exigências relativizadas da cláusula de responsabilidade epistêmica

que, uma vez percebidas, gera a demanda por teorias filosóficas da justificação. (p.

98/262)

Isso não pode estar certo, mesmo pelos próprios padrões de Fogelin. “Objetivo” aqui

significa “não sujeito a variações contextuais”. Mas as teorias filosóficas da justificação

tentam resguardar um pouco da justificação mesmo na presença de escrutínio irrestrito.

Portanto, “razões adequadas” — ao contrário do que pensamos num primeiro momento —

são agora as razões que “estabelecem a verdade” de uma crença quando não há limites para

o alcance do potencial. Essa concepção de razões adequadas leva imediatamente para o

chauvinismo dedutivo, aquele que já sabemos que Fogelin repudia. Se quer evitar o

chauvinismo dedutivo, Fogelin precisa das exigências para “estabelecer a verdade”, de seu

critério para adequação das razões, o que também será variável de acordo com o contexto.

Portanto, ele não tem uma defesa para o ceticismo.

Por que Fogelin está errado? Em parte, porque ele quer derivar o ceticismo radical

e geral de visões epistemológicas que estão num nível profundamente mais hostil para com

o ceticismo. Como resultado, ele é levado a ignorar formas nas quais “as estruturas

justificadoras” têm a ver tanto com a direção da investigação quanto com o nível de

escrutínio, um descuido que o faz perder uma das linhas de pensamento anticético mais

potentes da epistemologia contextualista. Mas, ao colocar tudo isso de lado, a meu ver,

Fogelin entendeu mal o contextualismo — ao menos a versão que eu defenderia — de uma

maneira fundamental. Ele se afasta dos contextualistas, afirma ele, porque ele não sustenta

que

I. S está justificado em crer que P se P está justificado dentro de uma estrutura na

qual S está operando.

Ele oferece as seguintes razões para negar isso:

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(a) Posso rejeitar a estrutura justificadora de S (S pode estar usando mapas

astrológicos);

(b) Posso aceitar a estrutura justificadora de S, mas pensar que ele não a usou

corretamente;

(c) Posso conceder que S foi epistemicamente responsável, mas pensar que suas

razões foram anuladas. (p. 96/137).

Eu não vejo por que um contextualista não deve aceitar todas essas possibilidades. Uma

visão contextualista de justificação não obriga que se afirme que uma referência ao contexto

é parte do conteúdo de uma afirmação de conhecimento. Uma afirmação de conhecimento

insta que se sustente que todos os anuladores potenciais relevantes foram eliminados: o

elemento contextual vem para regular quais anuladores são — ou melhor, deveriam ser

considerados — relevantes. Mas isso é consistente com a visão de que as pressuposições

relativas ao que é significativo estão elas mesmas sujeitas a crítica, a qual, se obtiver sucesso,

forçará a retirada de uma afirmação. Mais precisamente, um contextualista sustentará que:

(C1) Todas as justificações têm lugar num contexto de pressuposições de segundo

plano (por exemplo, relativas a quais anuladores potenciais precisam ser excluídos);

(C2) Essas pressuposições podem elas próprias serem desafiadas, mas somente por

uma recontextualização do procedimento justificador original, uma recontextualização que

envolverá pressuposições próprias;

(C3) A recontextualização pode seguir indefinidamente. Mas esse é o caráter aberto

da investigação, não um regresso vicioso da justificação. (Esse é o elemento externista na

contextualização).

Posto desta forma, o contextualismo não tenta insular afirmações de conhecimento de

crítica, como Fogelin parece supor. Quanto ao resultado dessa crítica, o contextualismo

como tal não deve se comprometer antecipadamente. Quando os próprios padrões de

justificação se tornam alvos de crítica, podemos dizer que, ou estávamos justificados (pelos

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padrões em vigor previamente), mas não estamos mais justificados (porque os padrões

mudaram), ou podemos dizer que nunca estivemos justificados, porque nossos padrões

sempre tiveram problemas (ou foram mal aplicados). Seria interessante mapear os fatores

que influenciam nossa escolha de descrição. Mas vale notar a possibilidade de perder a

justificação previamente possuída (e talvez recuperando-a subsequentemente), uma vez que

ela aponta para uma potencial instabilidade do conhecimento. Eu acredito que essa

instabilidade é o que Fogelin observa, mas interpreta (mal) como uma dúvida sobre se há

uma “verdade” acerca do saber.

No entanto, surge agora a questão sobre se a possibilidade da recontextualização

abre ou não caminho para o ceticismo: para o ceticismo cartesiano em particular. A ideia é a

seguinte: o cético, ao indagar se sabemos ou não qualquer coisa que seja sobre o mundo

externo, cria um contexto no qual nenhum procedimento justificador que admite a

existência desse conhecimento é legítimo. Isso nos força a basear o conhecimento sobre o

mundo em algum estrato mais primitivo do conhecimento: o conhecimento experiencial.

Mas nenhuma dessas tentativas de fundamentação pode ser bem sucedida, portanto

nenhuma explicação geral do conhecimento sobre o mundo externo é possível.

O contextualista tem duas respostas para isso. A primeira é que não há nada

sacrossanto no domínio sobre o qual o cético cartesiano tenta generalizar. Se negamos que

o conhecimento experiencial é de alguma forma geral e totalmente objetiva

epistemologicamente anterior ao conhecimento do mundo, não veremos o contexto criado

pela tentativa do cético de investigação geral como algo interessante ou importante, pois

nesse caso não veremos mais ‘“o conhecimento do mundo exterior” como um tipo de

conhecimento teoricamente relevante. A segunda é que, mesmo que permitamos ao cético o

recuo reflexivo para que nos projetemos num contexto especial, um contexto no qual o

conhecimento do mundo nos ilude, isso resulta no máximo na descoberta de que o

conhecimento é impossível dentro das condições de reflexão filosófica (“no escritório”). Não

resulta na descoberta, dentro das condições de reflexão filosófica, de que o conhecimento é

impossível em geral. Supor que é, é confundir a instabilidade do conhecimento com a sua

impossibilidade.

Para ir da instabilidade para a impossibilidade, devemos privilegiar as restrições

justificadoras incorporadas no contexto da reflexão filosófica. Devemos supor que elas

revelam as restrições justificadoras últimas e de contexto invariável: restrições ao

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conhecimento do mundo como tal. Mas, para um contextualista, essas restrições não

existem. Supor que existem é realismo epistemológico: a meu ver, o compromisso metafísico

sem fundamento sobre o qual o ceticismo por fim se apoia. Na medida em que, em sua

explicação da “objetividade” da cláusula de razões adequadas, é atraído para tal

compromisso, Fogelin tem mais em comum com o resto dos neo-humeanos do que ele

imagina.

Referências bibliográficas:

Fogelin, Robert J. 1994. Pyrrhonian Reflections on Knowledge and Justification. New York and

Oxford: Oxford University Press. (Reflexões pirrônicas sobre o conhecimento e a

justificação, tradução Israel Vilas-Bôas, Salvador: EDUFBA, 2017)

Nagel, Thomas. 1986. The View From Nowhere. Oxford: Oxford University Press.

Strawson, Peter F. 1985. Skepticism and Naturalism: Some Varieties. London: Methuen.

Stroud, Barry. 1984. The Significance of Philosophical Scepticism. Oxford: Oxford University

Press.

Williams, Michael. 1988. “Scepticism Without Theory”. Review of Metaphysics, 41(3): 547-

88.

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Wittgenstein, Ludwid. DC. On Certainty. Oxford: Oxford Blakwell, 1969.