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O PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO TRIBUTÁRIO A LUZ DE UMA INTERPRETAÇÃO OBJETIVA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO THE PRINCIPLE OF NO TAX FORFEITURE AT THE LIGHT OF AN INTERPRETATION OBJECTIVE IN THE DEMOCRATIC STATE OF LAW Antônio Carlos Diniz Murta RESUMO A tributação brasileira tem previsão, primordialmente, na Constituição Federal. Simultaneamente, criou-se uma série de dispositivos, naquele texto, que objetivam conte-la; impedindo, assim, que se torne arbitrária e abusiva. Dentre estes mecanismos de restrição fiscal, encontramos a denominada vedação à instituição de tributo com efeito de confisco. O confisco, neste caso, vale para o tributo, propriamente dito, e, se for o caso, a penalidade, acaso aplicada, diante do inadimplemento de obrigação tributária. Na configuração fática da existência do confisco tributário, devemos considerar o tributo isoladamente e não a carga tributária total. Em seguida buscamos apreender se a exação fiscal acarreta a impossibilidade ou causa extrema dificuldade no exercício de direitos constitucionalmente previstos; como a propriedade, atividade econômica ou circulação de riquezas. A determinação jurídico-material da vedação do tributo com efeito de confisco, ainda incipiente no País, teria uma repercussão imediata na ação estatal de busca incessante de apropriação do patrimônio privado do sujeito passivo. PALAVRAS-CHAVES: CONFISCO/TRIBUTAÇÃO/SEGURANÇA ABSTRACT The Brazilian taxation has forecast, primordially, in the Federal Constitution. Simultaneously, created a series of devices, in that text, purpose countain it; hindering, thus, that it becomes arbitrary and abusive. Among these mechanisms of fiscal restriction, we find the called impediment to the institution of tax with forfeiture effect. The forfeiture, in this case that, applies to the tax, properly said, and, if it was the case, the penalty, perhaps applied, front of the contract breach of tax obligation. In the fact configuration of the existence of tax forfeiture, we must consider the tax separately and not total tax burden. After that we search apprehend if the fiscal exaction causes the impossibility or cause extreme difficulty in the exercise of laws constitucionally foreseen; such as property, economic activity or circulation of wealth. The determination legal-material of the tax impediment with forfeiture effect, still incipient in the country, would have an immediate repercussion in the state action of incessant search of appropriation of the private patrimony of the passive citizen. KEYWORDS: FORFEITURE/TAXATION/SECURITY 5542

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O PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO TRIBUTÁRIO A LUZ DE UMA INTERPRETAÇÃO OBJETIVA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

THE PRINCIPLE OF NO TAX FORFEITURE AT THE LIGHT OF AN INTERPRETATION OBJECTIVE IN THE DEMOCRATIC STATE OF LAW

Antônio Carlos Diniz Murta

RESUMO

A tributação brasileira tem previsão, primordialmente, na Constituição Federal. Simultaneamente, criou-se uma série de dispositivos, naquele texto, que objetivam conte-la; impedindo, assim, que se torne arbitrária e abusiva. Dentre estes mecanismos de restrição fiscal, encontramos a denominada vedação à instituição de tributo com efeito de confisco. O confisco, neste caso, vale para o tributo, propriamente dito, e, se for o caso, a penalidade, acaso aplicada, diante do inadimplemento de obrigação tributária. Na configuração fática da existência do confisco tributário, devemos considerar o tributo isoladamente e não a carga tributária total. Em seguida buscamos apreender se a exação fiscal acarreta a impossibilidade ou causa extrema dificuldade no exercício de direitos constitucionalmente previstos; como a propriedade, atividade econômica ou circulação de riquezas. A determinação jurídico-material da vedação do tributo com efeito de confisco, ainda incipiente no País, teria uma repercussão imediata na ação estatal de busca incessante de apropriação do patrimônio privado do sujeito passivo.

PALAVRAS-CHAVES: CONFISCO/TRIBUTAÇÃO/SEGURANÇA

ABSTRACT

The Brazilian taxation has forecast, primordially, in the Federal Constitution. Simultaneously, created a series of devices, in that text, purpose countain it; hindering, thus, that it becomes arbitrary and abusive. Among these mechanisms of fiscal restriction, we find the called impediment to the institution of tax with forfeiture effect. The forfeiture, in this case that, applies to the tax, properly said, and, if it was the case, the penalty, perhaps applied, front of the contract breach of tax obligation. In the fact configuration of the existence of tax forfeiture, we must consider the tax separately and not total tax burden. After that we search apprehend if the fiscal exaction causes the impossibility or cause extreme difficulty in the exercise of laws constitucionally foreseen; such as property, economic activity or circulation of wealth. The determination legal-material of the tax impediment with forfeiture effect, still incipient in the country, would have an immediate repercussion in the state action of incessant search of appropriation of the private patrimony of the passive citizen.

KEYWORDS: FORFEITURE/TAXATION/SECURITY

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INTRODUÇÃO

O Sistema Tributário Nacional, inserto no texto constitucional, nos apresenta um rol de competências tributárias, hipóteses de tributação e, simultaneamente, instrumentos de coibição de seu incremento desmedido.

É de conhecimento amplo que a tributação brasileira é intensa, complexa e, infelizmente, em contínuo crescimento a despeito dos malefícios advindos ao desenvolvimento nacional, emperrando a atividade econômica, e a vida econômica das pessoas comuns.

No entanto, o legislador constituinte, ao mesmo tempo em que permitiu ao legislador ordinário dos entes políticos, dotados de competência impositiva tributária, instituir tributos, buscando, sobretudo, extrair parcela do patrimônio privado; tratando-se de verdadeira mudança de titularidade de propriedade, apresentou mecanismos de contra-pesos que, se bem trabalhados e observados, permitiriam uma pseudo-contenção do avanço da alienação compulsória do ente privado ao ente público, mediante a discutida tributação.

Estes contrapesos se consubstanciam de normas constitucionais direcionadas ao poder tributante. Ou seja, ao mesmo tempo em que permite a cobrança de tributos, estabelece premissas rígidas para fazê-lo sem as quais a tributação se queda ilegal e, sendo assim, inviável.

Acontece que dentre estes mecanismos de contenção constitucional da tributação, verifica-se alguns que necessitam de uma depuração ou análise mais cuidadosa na medida em que sua leitura, pura e simples, não denota ou revela qualquer efeito prático, pelo menos imediato, para resguardar a coletividade contra efeitos nocivos de uma tributação inadequada e dissociada da realidade econômico-social nacional.

Dentre eles, considerado por muitos autores como verdadeiro cânone ou princípio constitucional de observação e respeito obrigatório, nos deparamos com a regra prevista no artigo 150, inciso IV da Constituição Federal que veda a instituição de tributo com efeito de confisco.

Sem embargo de seu impacto terminológico quando de sua leitura, a interpretação deste denominado princípio constitucional de contenção de tributação desmedida dissociada de uma apreensão de seu conteúdo valorativo, abrangência material e jurídica e impacto prático nas relações jurídico-tributárias acarretaria sua imprestabilidade já que envolto de aspecto de difícil mensuração e compreensão.

Buscaremos, portanto, apresentar, pelos limites deste trabalho, um sintético painel da tributação no Brasil, princípios constitucionais que a limitam e, em seguida, um quadro perfunctório, com nosso entendimento, do princípio que veda o tributo com efeito de confisco segundo a doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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1. DESENVOLVIMENTO

1.1. O SISTEMA TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A Constituição de 1988 dispõe normativas sobre o sistema tributário especialmente entre os artigos 145 e 162 e elas representam um esforço de aperfeiçoamento do nosso sistema constitucional tributário no sentido de simplificar e modernizar o sistema, reduzir injustiças fiscais, ampliar os contribuintes e corrigir os desequilíbrios regionais.

Como nos ensina José Eduardo Soares de Melo várias seriam as acepções das hipóteses de tributação na carta constitucional vigente uma vez que "A Constituição relacionou diversos tipos de tributos, a saber: (a) impostos (arts. 145, I, 153, 155 e 156); (b) taxas (art. 145, II, em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição; (c) contribuição de melhoria (art. 145, III), decorrente de obras pública; (d) pedágio (art. 150, V), pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público; (e) empréstimos compulsórios (art. 148), para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência (I), e no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional (II); (f) contribuições sociais genéricas, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas (art. 149); (g) contribuição para o custeio de previdência e Assistência Social, em benefício dos servidores dos Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 149, § 1º); (h) contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública, em benefício dos Municípios e do Distrito Federal (art. 149-A); (i) contribuições sociais (art.195) do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhes preste serviços, mesmo sem vínculo empregatício; a receita bruta ou o faturamento e o lucro (I); do trabalhador e dos demais segurados da Previdência Social (II); sobre a receita de concursos de prognósticos (III); do importador de bens ou serviços do exterior (IV); sobre as atividades do produtor, parceiro, meeiro ou arrendatários rurais em regime de economia familiar; (j) contribuições para os planos de previdência (art. 202), Salário-Educação (art. 212, § 5º) PIS/PASEP, destinado ao seguro-desemprego e abono salarial, e desenvolvimento econômico (art. 239), às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical (art. 240)."[1]

A União, os Estados e os Municípios só podem cobrar os tributos que lhes são atribuídos pelo texto constitucional. A única exceção admitida é quanto à União, que possui competência residual, isto é, em casos excepcionais e por meio de lei complementar, poderá instituir novos impostos, desde que não invada as áreas de competência estadual e municipal, nem desrespeite princípios constitucionais. A rigor,

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os impostos de competência residual não podem ser cumulativos e nem podem ter fato gerador e base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição em seu artigo 154, inciso I.

A defesa da unidade nacional se expressa na proibição aos Estados e Municípios de fixarem tributos diferentes, em razão da procedência ou destino das mercadorias, sem prejuízo da liberdade na definição das alíquotas dos impostos de sua competência. A preocupação com a uniformidade dos tributos não se estende, porém, aos incentivos fiscais, já que a Constituição concede total liberdade para a sua concessão, tendo em vista as imensas desigualdades regionais.

A limitação dos casos de empréstimos compulsórios foi outra inovação que traz a Carta Magna em estudo visando garantir o cidadão contra o arbítrio dos governantes. Esse dito empréstimo consiste numa espécie de tributação especial que incide sobre rendimentos de grande vulto decorrentes de propriedades, vendas, aplicações financeiras, etc. A atual Constituição prevê três hipóteses para a sua adoção: calamidade pública, guerra e investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional e obriga a aplicação dos recursos arrecadados ao fim que os originou. Na Carta anterior, as possibilidades ficavam a critério de lei complementar e isso levou à fixação de impostos abusivos, que acabaram configurando verdadeiros confiscos.

No tocante à discriminação das rendas, foram mantidas todas as espécies tributárias previstas na Constituição de 1969: impostos, taxas, contribuição de melhoria (essas duas últimas são tributos de competência comum dos três entes políticos), e como já ressaltado, o empréstimo compulsório e contribuições especiais.

O empréstimo e as contribuições especiais (artigos 148 e 149[2]) são deferidos à competência privativa da União, com uma novidade: estas últimas, em caráter excepcional, poderão ser instituídas pelos Estados e Municípios, em benefício dos seus servidores públicos (artigo 149, parágrafo único). Nesta hipótese, as contribuições especiais alinham-se entre os tributos de competência comum.

Excepciona-se, também, a denominada Contribuição de Iluminação Pública, de competência exclusiva dos Municípios a teor da emenda nº 39, de 19 de dezembro de 2002, que, inovando no texto constitucional, criou o artigo 149-A.[3]

Perdeu-se uma grande oportunidade, com a referida constituição, em, efetivamente, dar ao sujeito passivo da obrigação tributária (leia-se toda a sociedade) um instrumento jurídico que lhe impedisse o Poder Público incessante busca de tributação sobre o seu patrimônio.

Considerado o princípio basilar da tributação moderna em todo mundo como sendo o princípio da legalidade (tomando de empréstimos expressões populares, poderíamos afirmar ser este princípio o pai - ou origem - de todos os demais), percebemos que na medida o texto constitucional exige que para a criação de um tributo se faça necessária a edição de uma lei por ente competente para fazê-lo, podemos constatar que a criação de contribuições pode ser, facilmente, engendrada, obedecendo-se, regiamente, os trâmites legislativos pertinentes e a competência tributária impositiva prevista na CF (mormente a da União Federal), poderíamos até assumir que o princípio da legalidade, isoladamente considerado, não seria barreira suficiente para frear ou refrear os ímpetos

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criativos do legislador (a mando ou não do poder executivo) na medida em que as contribuições especiais poderiam se amoldar ou se conformar a inúmeras fórmulas jurídicas instituidoras de tributos sem que houvesse porque afirmá-las Inconstitucionais.

No entanto, a despeito da previsão constitucional sobre as competências impositivas tributárias e as respectivas espécies tributárias de potencial criação, uma preocupação expressa do legislador constitucional foi estabelecer, junto às diretrizes de criação dos tributos, limitações para o seu exercício partindo de um pressuposto de ciência política que nos ensina que "aquele que detém o poder, tende a abusar do poder".

Diante de tal constatação erigiu-se várias limitações constitucionais ao poder de tributar, consubstanciadas em verdadeiros princípios constitucionais, estabelecendo-se verdadeiras barreiras jurídico-constitucionais para conter esta verdadeira ansiedade estatal em criar e mesmo majorar tributos.

1.2. LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Os princípios constitucionais revelam regras de garantia dos direitos individuais e coletivos, expressos, inclusive, no próprio preâmbulo da Constituição Federal. O texto constitucional de 1988 consagrou, como não poderia deixar de fazê-lo, os princípios tradicionais da história tributária brasileira que se sucedem, com suas vicissitudes e modificações terminológicas, desde os primórdios da 1ª Constituição, ainda sob o Império brasileiro.

Não obstante as dificuldades de estabelecer a amplitude da definição de princípio, mormente sua repercussão na seara tributária, sua leitura e aplicação se matiza conforme a ótica de seu intérprete, conforme ensina Paulo de Barros Carvalho, ao afirmar que:

O vocábulo "princípio" porta, em si, uma infinidade de acepções, que podem variar segundo os valores da sociedade num dado intervalo da sua história. No direito, ele nada mais é do que uma linguagem que traduz para o mundo jurídico-prescritivo, não o real, mas um ponto de vista sobre o real, caracterizado segundo padrões de valores daquele que o interpreta.[4]

Na verdade poderíamos defender o entendimento que qualquer princípio, implícito ou explícito, expresso em lei ordinária (fato raro) seja no texto constitucional (hipótese mais provável), deve servir como norte ao intérprete de um caso jurídico concreto que lhe é apresentado, uma vez que seria o ponto de partida para a apreensão e compreensão do conjunto ou do todo a ser apreciado e, finalmente, interpretado, conforme visão de Sacha Calmon Navarro Coêlho, in verbis:

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O que caracteriza os princípios é que não estabelecem um comportamento específico, mas uma meta, um padrão.Tampouco exigem condições para que se apliquem. Antes, enunciam uma razão para a interpretação dos casos. Servem, outrossim, como pauta para a interpretação das leis, a elas se sobrepondo.

.....omissis...

Pois bem, quando o princípio é constitucional, a sua aplicação é obrigatória. Deve o legislador acatá-lo, e o juiz, adaptar a lei ao princípio em caso de desrespeito legislativo...omissis...[5]

Em matéria tributária, os princípios visam, exclusivamente, restringir o poder estatal de tributar; com isso, assegurando os direitos fundamentais do sujeito passivo à segurança, ao bem-estar, planejamento familiar, à propriedade, atividade econômica e o próprio desenvolvimento sustentável do País, dentre outros. Nesta esteira, exempli gratia, foi instituído, o princípio da legalidade dos tributos que, por sua vez, influi na anterioridade e na anualidade. A eficácia desses princípios é extra-lege, sendo assim, não dependem de qualquer lei ordinária que os regulamente, podendo ser invocados a qualquer tempo. E mais, por serem cláusula pétrea da Constituição, esses princípios não podem ser alterados nem mesmo por Emenda Constitucional.[6]

Já Hugo de Brito Machado cria um divisor de águas quando estabelece a possibilidade de algumas normas insertas no Sistema Tributário Nacional serem, efetivamente, cláusulas pétreas e outras, por simplesmente se inserirem em um contexto mais abrangente quando ensina que:

Assim, como o direito é na verdade um sistema de limites, todas as normas que integram a denominada legislação tributária, em sentido amplo, são limitações ao exercício do poder impositivo. E todas as normas que, na Constituição, tratam da tributação, constituem limitações constitucionais ao poder de tributar. Tomada, assim, a expressão limitações constitucionais ao poder de tributar, nesse sentido abrangente, certamente não se pode dizer que essas limitações constituem cláusulas pétreas. Mas existem normas sobre tributação que, sendo limites, como são, dizem respeito aos direitos fundamentais.[7]

Abstraindo entendimentos distintos acerca de quais as limitações aos poder de tributar poderiam ser considerados cláusulas pétreas e enfatizando a importância dos princípios na senda tributária, Luciano Amaro ressalta que "... alguns dos chamados princípios tributários não são, como dizíamos, meros enunciados gerais carentes de normatização posterior para acentuar sua concretude; são já proposições que atingem um grau praticamente exaustivo de normatividade. Por exemplo, o princípio da anterioridade é uma regra de precisão matemática; a lei ou foi ou não foi editada até o último dia do exercício, o que se apura segundo critério puramente cronológico, que já decorre do

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próprio enunciado constitucional do dito "princípio", sem que haja necessidade de uma norma que dê contornos mais nítidos à proposição."[8]

Por sua vez, ao contrário dos princípios calcados no trinômio legalidade/anterioridade/ irretroatividade, a Constituição Federal nos apresenta princípios cuja exegese demanda do intérprete uma interlocução e ponderação mais cuidadosa considerando, especialmente, sua interpretação literal, descolada de uma situação concreta qualquer, cuja conclusão muitas vezes é inane.

Vejamos, por exemplo, o princípio da isonomia tributária[9]. Este princípio nada mais nada menos é do que o princípio da igualdade - inserto no artigo 5º, inciso I, do texto constitucional - aplicado no campo das relações jurídico- tributárias.

Mas como dimensionar esta igualdade nestas relações? Tratamos neste campo do direito de inúmeras exações tributárias, derivadas de vários entes políticos autônomos cujo espectro de irradiação se volta para incontáveis hipóteses ou potencialidades tributáveis cujas respectivas leituras podem criar dificuldade das mais diversas para o intérprete da lei cotejado o caso concreto.

O mesmo raciocínio se voltaria para a interpretação do princípio que veda a limitação do tráfego por meio de tributos.[10] Nesta limitação ao poder de tributar nos parece que o legislador constituinte deixou claro que a liberdade de ir e vir ou mesmo circulação jamais poderá ser cerceada ou mitigada por imposição tributária, seja ela de pessoas ou bens; entretanto a interpretação deste dispositivo constitucional exige do intérprete conhecimento dos vários e possíveis aspectos materiais de fatos geradores que poderiam, caso não restringidos, alcançar e impedir a mobilidade nacional.

O que causa espécie é o fato de que neste mesmo dispositivo se faz presente alusão a uma exceção. O denominado pedágio. No entanto o pedágio instituído e cobrado no Brasil hodierno tem natureza essencialmente contratual (preço público) causando, com isso, mais dificuldade ainda quanto ao alcance desta limitação ao poder de tributar.

Já em relação ao princípio que veda a utilização do tributo com efeito de confisco nos deparamos com sutilezas terminológicas de difícil depuração.

Todo tributo é na verdade um confisco à parte da propriedade do sujeito passivo ou de quem ele substitua. O legislador não pretendeu vedar este tipo de confisco que continua valendo e prevalecendo nas relações entre quem paga (a sociedade) e quem recebe ( o Estado).

O desiderato do legislador constituinte foi estabelecer vedação para um padrão de confisco que ultrapassasse determinados limites de, digamos, razoabilidade.

Que padrões seriam estes? Onde vamos buscá-los? São mutáveis? Haveria um enquadramento do denominado confisco conforme fosse dado tributo examinado? Ou só valeria para a carga tributária como um todo ou mesmo referente a dado ente político? Esta vedação alcançaria somente o tributo (interpretação literal) ou valeria mesmo para o crédito tributário, incluindo aí seus possíveis componentes, como o tributo, multas e juros de mora (interpretação teleológica) ? A interpretação do confisco tributário poderia ser mensurada a partir do texto constitucional ou se faria necessário

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buscar auxílio em outros textos legais ou mesmo ciências de entorno ou inter-relacionadas (economia, administração, contabilidade, sociologia ou mesmo ciência política).

Tentaremos responder, de forma sintética, a estes questionamentos.

1.3. O PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO NO CONTEXTO DA SEGURANÇA JURÍDIC -TRIBUTÁRIA DO SUJEITO PASSIVO NO BRASIL

Não se pode falar em segurança jurídica no Brasil sem atentarmos para a possibilidade de multifárias exações tributárias, de todos os entes tributantes (União Federal, Estado membro, Município e Distrito Federal) interferirem na vida (econômica) das pessoas (físicas e jurídicas), causando transtornos, dificuldades e empecilhos dos mais variados matizes.

Na medida em que a obrigação tributária (principal) busca parcela do patrimônio pecuniário do sujeito passivo, percebe-se que qualquer projeto de vida (pessoa física) ou objetivo empresarial (pessoa jurídica) tem que levar, necessariamente, em consideração sobremaneira redução de suas contingências econômicas para lograr sucesso a vista dos tributos que serão recolhidos no decorrer desta empreitada.

A sociedade como um todo tem pleno conhecimento da necessidade do adimplemento da carga tributária que lhe é imposta vis-à-vis a existência de um Estado carente de recursos financeiros para desenvolver suas inúmeras tarefas constitucionalmente previstas. No entanto, como já se salientou, criaram-se mecanismos, através de limitações ao poder de tributar, de proteção para que a interferência tributária sobre a vida das pessoas não seja absoluta ou absurda; permitindo que a convivência sociedade-tributo seja a menos traumática possível.

Dentre os mecanismos criados se apresenta aquele que estabelece um impedimento, digamos, radical contra a "agressão" do tributo contra a propriedade privada no Brasil.

A Constituição Federal prevê que na hipótese de criação de tributo, mediante competente lei, a referida cobrança não poderá ter natureza confiscatória[11].

Bem.. Onde chegamos? É óbvio que o Ente político tributário não iria instituir um tributo (ou uma coleção deles) que, simplesmente, transferisse toda a propriedade privada para o Estado. Neste caso viveríamos em um Estado socialista. Não é o caso do Brasil onde, bem ou mal, prevalece um sistema capitalista de mercado, inclusive com proteção constitucional à propriedade, herança e à livre iniciativa.

Neste sentido a configuração conceitual da vedação da utilização do tributo com efeito de confisco não pode passar por uma interpretação absolutamente literal (transferência da integralidade patrimonial do ente privado ao ente público) mesmo porque isto não interessa ao Estado tido como liberal já que ciente de sua incapacidade imanente de gerar, por si só[12], as receitas financeiras que lhe são indispensáveis

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Neste sentido se manifestou J.M.Othon Sidou;

"O Estado, pela mão de governos sábios e prudentes, não estanca nunca a fonte donde flui o tributo; estimula-a. Não porfia por descontentar, ou desencantar, o contribuinte, nem provoca a antipatia popular tornando insuportável a vida; contemporiza. Na metáfora do simplório César, não sacrifica a ovelha, tosquia-a, o que em língua moderna equivale ao não matar a galinha dos ovos de ouro.[13]

De fato o que se pensa quando discuti-se, em matéria tributária, o vocábulo confisco, é justamente o alcance, a dimensão, os limites da carga tributária para que seja considerada confisco.

No entanto como se torna muito difícil estabelecer como confiscatório o somatório de tributos cobrados no território nacional, muito embora já tenham transitado no Congresso Nacional proposta buscando estabelecer um percentual máximo de tributos sobre o Produto Interno Bruto (PIB), o que se questiona é se dado tributo, individualmente considerado, ou mesmo dada multa tributária, decorrente do inadimplemento de qualquer obrigação tributária (seja material-pecúnia ou formal- outras) podem denotar índole confiscatória.

Mas para que possamos estabelecer premissas sobre se determinado tributo ou mesmo penalidade tem natureza confiscatória (vedada pela Constituição) ou não devemos, inicialmente, fincar nossas raízes em um mínimo de consenso quanto à sua definição doutrinária a par da ausência de uma definição legal.

Existem, inclusive, autores que entendem seu conceito como sendo indeterminado como na visão de Garcia de Enterria e Ramón Fernandez,"La ley no determina com exactitude los limites de esos conceptosporque se trata de conceptos que no admiten una cuantificación o determinación rigorosas, pero em todo caso es manifiesto que se está refiriendo a um supuesto de la realidade que, no obstante La indeterminación Del cocepto, admie ser precisado em el momento de la aplicación"[14].

Não se nega que o conceito de tributo com efeito de confisco é fluido. Vai, naturalmente, depender do caso concreto em apreciação. Não poderia o legislador constitucional pensar de outra maneira. Se o fizesse inviabilizaria todo seu desiderato considerando, primordialmente, a impossibilidade fática de sopesar toda a carga tributária incidente sobre determinada pessoa ou atividade e, a partir daí, aferir a existência ou não de confisco.

Digamos que eventualmente seria possível fazê-lo para uma pessoa. Totalizaríamos todos os tributos direitos e indiretos incidentes sobre sua dinâmica de vida. Na hipótese de constarmos efetivo confisco sobre sua propriedade, inviabilizando sua vida econômica, o faríamos para determinado momento ou lapso temporal, mutável a cada sucessão dos aspectos temporais (instantâneo ou periódico) dos fatos geradores dos tributos por acaso enfocados. O que é válido para um mês, não o seria para o próximo.

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Digamos o que é valido para um semestre, não o seria para o outro. E assim por diante (ano, biênio, etc.).

Como a administração tributária, fragmentada em vários entes políticos, poderia somar esforços para mensurar, mesmo que anualmente, se a carga tributária total do País, incidente sobre dada pessoa ou segmento societário, se tornou confiscatória.

Não é razoável exigir ou discutir o impossível. Portanto o tributo com efeito de confisco deve ser analisado, sopesado ou mensurado a luz de um tributo específico sobre um caso concreto. De outra maneira impraticável qualquer consideração.

Este, no entanto, não é o entendimento de alguns autores, como Ives Gandra ao defender que:"na minha especial maneira de ver o confisco, não posso examiná-lo a partir de cada tributo, mas da universalidade de toda a carga tributária incidente sobre um único contribuinte. Se a soma de diversos tributos incidentes representa carga que impeça o pagador de tributos de viver e se desenvolver, estar-se-á perante carga geral confiscatória, razão pela qual todo o sistema terá que ser revisto, mas principalmente aquele tributo que, quando criado, ultrapasse o limite da capacidade tributária do cidadão. Há, pois, um tributo confiscatório e um sistema confiscatório decorrencial. A meu ver, a Constituição proibiu a ocorrência dos dois, como proteção ao cidadão.[15]

Sendo assim alguns autores nacionais, a partir de obras específicas sobre o assunto, tentaram apresentar de forma objetiva e didática, como o fez Paulo Cesar Baria de Castilho, que, assim, definiu o confisco em matéria tributária, in verbis:

"....omissis...é adequado afirmar que confisco tributário consiste em uma ação do Estado, empreendida pela utilização de tributo, a qual retira a totalidade ou uma parcela considerável da propriedade do cidadão contribuinte, sem qualquer retribuição econômica ou financeira por tal ato." [16]

Por sua vez Estevão Horvath tangencia o Instituto da propriedade ao tratar dos limites a serem estabelecidos para o tributo na senda tributária:

Por outro ângulo, poder-se-ia enxergar o princípio da vedação do confisco como uma garantia ao direito de propriedade. Realmente, se assegura este direito por via constitucional, somente nas hipóteses por esse mesmo texto contemplada é que poderão servir de exceção ao mencionado direito. Assim, embora autorizada a tributação, esta não pode servir como meio indireto de amesquinhar a propriedade privada sem compensação.[17]

Já Fabio Brun Goldschmidt demonstra a grande dificuldade na sua conceituação:

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O fato é que, em que pesem todas essas evidências, que apontam para o enquadramento do princípio da vedação ao efeito de confisco como um limite objetivo, há um fator fundamental que demonstra que, tal como ele se apresenta hoje no texto constitucional, deve ser classificado como valor: o princípio do não confisco é de dificílima identificação. O texto constitucional não oferece qualquer auxílio na penosa situação dos limites da tributação com efeito de confisco e, nem os juristas, nem o legislativo, nem o Judiciário lograram até agora fornecer qualquer subsídio objetivo na sua identificação. O traço de imediatidade de verificação, cerne da distinção entre valores e limites objetivos, naufraga diante do raso desenvolvimento desse princípio na práxis.[18]

Afinal de contas, para que possamos delimitar a figura do confisco, como elemento proibitivo quando da exação tributária, temos que inquirir a mens legislatoris do constituinte originário para apresentar algumas induções sobre o tema.

Não podemos olvidar que toda relação jurídico-tributária impõe materialmente, quando da cobrança da obrigação principal, um confisco, mesmo que mínimo, sobre o patrimônio do sujeito passivo. Confisco este definido com expropriação de um bem (no caso pecúnia) de ente (estatal) sobre outro (quase sempre privado). No entanto este verdadeiro confisco é permitido e não pode ser aquele previsto no texto constitucional.

O confisco previsto no texto constitucional, para impedir tributação abusiva, tem, é óbvio, outra conotação. Trata-se, também, de transferência compulsória de patrimônio de terceiro para o Estado; entretanto, sob outro enfoque. Existe, neste caso, verdadeiro poder de destruição e supressão de atividade ou vida econômica para aquele obrigado a suportar dado tributo.

Não se pode, entendemos, considerar, para efeito de confisco, carga tributária total do País ou total do ente tributante, pelas dificuldades absolutas na sua constatação. O que se deve, de fato, buscar é se dado tributo ou crédito tributário devidamente lançado ultrapassa determinada zona de estabilidade fiscal ou "aceitação" social.

Tal averiguação não pode fugir da apreciação de um tributo específico, observando o valor a pagar, a partir da conjugação ou não de base de cálculo e alíquota.

Entender-se-ia que qualquer tributo cujo valor a pagar ultrapasse 30% do seu aspecto material se torna abusivo e atesta-se confisco sem a necessidade de apurar a repercussão sobre a vida social e econômica do sujeito passivo.

Aceitar-se tributação, sob o rótulo de qualquer tributo, cujo resultado, independente do somatório de outros tributos, alcance quase 1/3 (um terço) da dinâmica do respectivo fato gerador deve, sempre, ser considerado confiscatório.

Esperar que a Administração Pública prove (jamais o fará) ou próprio sujeito passivo demonstre (utópico) que a carga tributária por ele responsável - seja em escala nacional, regional ou municipal - total ultrapassa os paradigmas de razoabilidade ou proporcionalidade na exação tributária é fazer tabula rasa desta figura protetiva constitucional.

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Vale dizer, inclusive, que a vedação à utilização do tributo com efeito de confisco deve, também, abranger, as multas decorrentes dos inadimplementos das obrigações tributárias. Seria um contra-senso cogitar da impossibilidade da tributação abusiva, através, digamos de alíquotas de 60 (sessenta) ou 80 (oitenta) por cento, se a legislação ordinária previsse (como rotineiramente o faz) percentuais de 100 (cem) ou 150 (cento e cinqüenta) por cento, como consectário penal do inadimplemento de tributo cujas alíquotas são infinitivamente menores.

O mesmo não se pode dizer dos juros de mora. Apesar de que, dependendo do tempo de início de contagem do inadimplemento de dado tributo, o valor atribuído a esta parcela do crédito tributário possa ser muito superior às multas acaso capituladas. Mas os discutidos juros não têm natureza tributária ou penal; portanto, o seu valor não pode, pelo menos a luz do dispositivo constitucional em comento, ser enquadrado como confiscatório.

Bem é certo que o objetivo primordial do legislador constituinte foi reduzir hipotética tributação abusiva sobre aqueles que têm o dever de carrear recursos ao Estado. Ao fazê-lo, mais do que preocupado com a possibilidade de deixar dada pessoa natural ou empresa à míngua econômica, pensou na eventualidade de tributar tanto uma pessoa ou atividade que esgotaria, a médio ou longo prazo, sua capacidade contributiva, efetivamente, exaurindo seus recursos e, daí em diante, furtando os cofres públicos da continuidade da fruição de seus recursos.

Nesta esteira a Constituição apresenta, na verdade, uma recomendação ao ente tributante. Não cobre demais porque as conseqüências imediatas podem ser positivas (aumento de arrecadação), porém as conseqüências mediatas podem ser contraproducentes (exaurimento da capacidade contributiva do sujeito passivo).

Entretanto, na medida em que esta vedação é considerada limitação ao poder de tributar - verdadeiro princípio vetor do ato de tributar- esta recomendação ou orientação se torna mais taxativa e imperativa na medida em que informa, nas entrelinhas, a possibilidade do Poder Judiciário, acaso constatado o abuso configurado como confisco, desconsidere a cobrança e inviabilize a arrecadação, pelo menos parcial, de dada tributação.

Neste diapasão na hipótese de indagarmos se um tributo (ou crédito tributário incorporando multa) é confiscatório. Devemos perquirir, por exemplo,: Se a tributação é sobre a propriedade (constitucionalmente protegida), se seu resultado inviabiliza seu exercício, configura-se confiscatória. Se a tributação é sobre a circulação de riquezas (ou de propriedade em conjunto), se ela se mostra obstaculizada ou restringida ao ponto de desmotivá-la, configura-se confiscatória. Se a tributação é sobre a atividade econômica (lucro, faturamento, etc.) se a atividade não tem sustentação ou incremento, graças à tributação, configura-se confiscatória.

Sendo assim, o intérprete da vedação da utilização do tributo como confisco, deve considerar se específica exação (em não conjunto de) inviabiliza institutos e valores constitucionais inerentes ao nosso sistema social e econômico como a propriedade, herança, família, livre iniciativa, desenvolvimento econômico, autonomia contratual e negocial, etc.Caso isto ocorra apura-se confisco. Vale dizer que não é um procedimento fácil ou tranqüilo se fazer. No entanto caso isto não seja feito este limitador ao poder de

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tributar será apenas um elemento charmoso e decorativo dentre os vários existente em nossa prolixa Constituição Federal.

1.4. APLICAÇÃO DO NÃO CONFISCO TRIBUTÁRIO SOB A ÓTICA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Muito embora constatemos inúmeras vertentes quanto à definição de confisco dada pelo Poder Judiciário, percebemos que, pelo menos o Supremo Tribunal Federal, tem entendido que caberia ao Judiciário, em atenção à denominada proporcionalidade e razoabilidade, estabelecer parâmetros de mensuração do que de fato definiríamos como confisco quando da instituição e cobrança de dado tributo.

Discuti-se, também, com relativa freqüência, se as multas tributárias, sejam elas decorrentes de inadimplemento de obrigação tributária principal ou acessória, poderiam se revelar confiscatórias.

O texto constitucional, quando veda a utilização do tributo como confisco, não utiliza a expressão "crédito tributário" cujo conteúdo pode abraçar não só o próprio tributo (como normalmente o faz) mas também o tributo, multas e juros de mora (acaso ocorra inadimplemento).

Deparamo-nos com decisões que fazem uma interpretação literal do texto constitucional quando declaram que a previsão por lei de multa teria, per si, não teria caráter confiscatório; estabelecendo, assim, como premissa, que a figura da multa não equivaleria à figura do tributo, não podendo, assim, ser qualificada como confiscatória, verbis;

"Tributário. ICMS. Multa com caráter confiscatório. Não ocorrência. Não se pode pretender desarrazoada e abusiva a imposição por lei de multa -que é pena pelo descumprimento da obrigação tributária -, sob o fundamento de que ela, por si mesma, tem caráter confiscatório." (RE 590.754-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 30-9-08, DJE de 24-10-08).

Em outro giro, encontramos decisões, também do STF, fazendo uso de uma interpretação teleológica, no sentido de que a abrangência da vedação ao confisco tributária poderia incluir também as multas ou penalidades tributárias:

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"É cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição da República. Hipótese que versa o exame de diploma legislativo (Lei 8.846/94, art. 3º e seu parágrafo único) que instituiu multa fiscal de 300% (trezentos por cento). A proibição constitucional do confisco em matéria tributária - ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias - nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (mesmo tratando-se da definição do quantum pertinente ao valor das multas fiscais), não pode agir imoderadamente, pois a atividade governamental acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade que se qualifica como verdadeiro parâmetro de aferição da constitucionalidade material dos atos estatais." (ADI 1.075-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-6-98, DJ de 24-11-06)

"Fixação de valores mínimos para multas pelo não-recolhimento e sonegação de tributos estaduais. Violação ao inciso IV do art. 150 da Carta da República. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua conseqüência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal." (ADI 551, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 21-10-02, DJ de 14-2-03)

Já sob o enfoque da delimitação numérico-percentual na quantificação de hipotético tributo, o STF tem, como dito, rotineiramente, feito uso dos vocábulos "razoabilidade' e "proporcionalidade" ao analisar casos concretos que lhe são postulados.

Acontece que, sob a vertente destes verdadeiros princípios norteadores de outros princípios, já que ninguém poderá se insurgir contra a aferição de proporcionalidade e razoabilidade na apreciação judicial tem-se permitido àquele R. Tribunal absoluta discricionariedade quanto a estes postulados.

Se a aferição da vedação à utilização do tributo com efeito de confisco passa, necessariamente, por este referencias semânticos e axiológicos, pode-se chegar à conclusões inerradáveis. Só haverá confisco, quando da cobrança de tributo, se a composição momentânea do STF assim o entender.

E para complicar tudo (ou simplificar), o mesmo STF entende que o confisco existiria abarcando a carga tributária total (mesmo que reduzida a um único ente político) incidente sobre determinado sujeito passivo, em um determinado período de tempo ou período.

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Nesta esteira percebe-se elemento dificultador por excelência. Quem ou qual órgão público, de determinado ente político, teria condições de aferir esta carga tributária total e aferir a existência de confisco, alua da previsão constitucional, a vista inclusive de seu conceito fluido ? E qual período seria este ? Se imaginarmos, por exemplo, que a União Federal, quanto aos impostos, pode instituir imposto de renda (IR), tributo cujo fato gerador é periódico e o imposto sobre produtos industrializado (IPI), tributo cujo fato gerador é instantâneo, como ficaria a delimitação temporal para afeito de certificação do confisco. Isso sem considerar as inúmeras contribuições especiais afetadas instituídas e cobradas pelo mesmo ente. Mesmo em relação à repercussão econômica do tributo, dividindo-se o tributo em direto (via de regra o caso do IR) e indireto (IPI), indagar-se-ia: Quem sofreria nos impostos ou tributos indiretos o confisco? Quem tem o dever legal de recolher o tributo ou aquele cuja repercussão econômica é destinatário? A solução para estes questionamentos o STF não dá e nem poderia partindo das premissas que apresenta (carga tributária global).

No entanto a leitura das ementas destes julgados, aparentemente, oferecer uma visão sábia daquele tribunal; porém nada acrescenta quanto ao equacionamento da interpretação da regra constitucional que veda a cobrança de tributo com efeito de confisco.

A seguir transcrevemos dois julgados do R. Tribunal cuja essência perpassa o discutido e criticado, in verbis;

"Tributação e ofensa ao princípio da proporcionalidade. O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. - A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado." (ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-03, DJ de 20-4-06)

"A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de a Corte examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade, consagrado no art. 150, IV, da Constituição. Precedente: ADI 2.010-MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello. A proibição constitucional do em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela

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Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade." (ADC 8-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13-10-99, DJ de 4-4-03). No mesmo sentido: ADI 2.551-MC-QO, Rel. Min. Celso de Mello,julgamento em 2-4-03, DJ de 20-4-06.

Apresentada alguns posicionamentos do órgão principal do Judiciário vislumbra-se, a despeito da mutabilidade constante do entendimento daquele órgão sobre inúmeras matérias, principalmente, quando ocorre mudança em sua composição, que temos, na jurisprudência pátria, um caminho árduo a percorrer para a consolidação de consenso mínimo sobre o alcance e abrangência do tributo (s) com efeito de confisco conforme vedação do artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente a sociedade civil convive, sem outras alternativas, com a inafastabilidade da cobrança de vários tributos a partir de dos mais diversos fatos geradores.

A partir da constatação que estamos sob a égide de um regime democrático de Direito, esta tributação foi permitida pelo seu próprio destinatário; renunciando-se, em prol do Estado, de parcela de seu patrimônio.

No entanto, ao mesmo tempo em que existe o permissivo legal para a instituição e cobrança de vários tributos, estabeleceu-se, expressamente, mecanismos, constitucionalmente previstos, para contrabalançar este pode de instituição, denominados como limitações ao poder de tributar.

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Estas limitações ao poder de tributar, considerado por muitos como verdadeiros princípios constitucionais regedores do comportamento estatal ou mesmo cláusulas pétreas, por isso insuscetíveis de supressão ou redução, se dividem entre aquelas de fácil intelecção e aplicação (como o princípio da anterioridade, legalidade, irretroatividade) e aquelas cuja densidade conceitual e irradiação jurídica dependem do esforço de interpretação e conjugação de valores dos intérpretes.

Dentre eles encontramos o denominado princípio que veda a instituição do tributo com efeito de confisco.

Discutimos as dificuldades de sua compreensão e efeito prático dadas as suscetibilidades de sua apreensão terminológica conjugada com sua devida definição.

Defendemos o entendimento que para se configurar o confisco, em matéria tributária, devemos considerar o tributo isoladamente (e não o seu conjunto ou carga tributária total) e que a vedação incluiria, também, as eventuais multas acaso capituladas e integrantes do crédito tributário exigido.

Acreditamos, também, que para se averiguar a existência de confisco, o intérprete, inicialmente, deve, ao focar determinado tributo, apurar se a sua cobrança torna inviável o exercício da propriedade ou mesmo a continuidade e desenvolvimento de atividade econômica.

Constatamos, finalmente, através de alguns julgados, que o Supremo Tribunal Federal ainda não se posicionou, de forma cristalina, quanto a efetividade desta vedação à tributação, se mostrando, muitas vezes, utilizando-se de vocábulos de conteúdo discricionário e inconsistentes, lacunoso e superficial na análise das questões desta matéria que lhe foram apresentados.

Fato é: Não interessa ao Estado brasileiro a consolidação de uma doutrina e jurisprudência bem fincada e fundamentada sobre o confisco em matéria tributária já que a ambigüidade e obscuridade desta limitação ao poder de tributar lhe permite, rotineiramente, ao cometimento de arbitrariedades na tributação, até mesmo através de confisco sob o enfoque da discutida proibição constitucional.

REFERÊNCIAS

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ENTERRIA, Garcia e Fernandez, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 4ª ed. Madrid: Civitas, 1984.

GOLDSHIMIDT, Fábio Brun. O princípio do não confisco no direito tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

HORVATH, Estevão. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: dialética, 2002.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Sistema Tributário na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.

MARTINS, Ives Gandra. Limitações ao poder impositivo e segurança jurídica - Pesquisas tributárias. Nova série: 11. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições sociais no sistema tributário. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.

[1] MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições sociais no sistema tributário. 5ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, pg. 23.

[2] Constituição Federal, artigo 149 - Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto no artigo 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no artigo 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.

§ 1º Os Estados, O Distrito Federal e os Municípios instituirão contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime previdenciário de que o artigo 40, cuja alíquota não será inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União.

[3] Constituição Federal, artigo 149-A - Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis , para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no artigo 150, I e III.

[4] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário, linguagem e método. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008 , pg. 248.

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[5] COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pg. 93.

[6] Artigo 60/CF - A constituição poderá ser emendada mediante proposta:

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV - os direito e garantias fundamentais.

Artigo 150/CF - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios

[7]MARTINS, Ives Gandra. .Limitações ao poder impositivo e segurança jurídica - Pesquisas tributárias. Nova série: 11, pg. 113.

[8] AMARO, Luciano. Direto tributário brasileiro. 12ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, pg. 110.

[9] Artigo 150/CF - Sem prejuízo...omissis...é vedado ....omissis:

II- instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos..

[10] Artigo 150/CF - Sem prejuízo...omissis....é vedado...omissis:

V- estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvado a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.

[11] Art.150/CF - Sem prejuízo de outras garantias ....omissis...é vedado....omissis...

IV - Utilizar tributo com efeito de confisco.

[12] Não estamos considerando aquelas hipóteses dos Países (normalmente Sultanatos árabes) cuja receita proveniente do petróleo permite que possam, até mesmo, renunciar às denominadas receitas derivadas; sobrevivendo (muito bem por sinal) apenas com as receitas originárias advindas da venda do ouro negro. Esta não é uma condição natural, tendo prazo de validade na medida em que este recurso natural é esgotável.

[13] BRITO, Edvaldo. Dimensão jurídica do tributo.São Paulo: Meio jurídico, 2003, pg. 371.

[14] ENTERRIA, Garcia e Fernandez, Tomás-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 4ª ed.. Madrid: Civitas, 1984, p.433.

[15] MARTINS, Ives Gandra da Silva. O Sistema Tributário na Constituição de 1988. São Paulo:Saraiva, 1989, p. 141.

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[16] CASTILHO, Paulo Cesar Baria de. Confisco tributário. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 2002, pg, 39.

[17] HORVATH, Estevão. O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: dialética, 2002, pg. 44.

[18] GOLDSHIMIDT, Fábio Brun. O princípio do não confisco no direito tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pg. 89.

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