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O QUE OS FILÓSOFOS CHINESES NOS PODEM ENSINAR SOBRE A ARTE DE BEM VIVER MICHAEL PUETT CHRISTINE GROSS-LOH The Path What Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life Traduzido do inglês por Margarida Periquito

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O QUE OS FILÓSOFOS CHINESES NOS PODEM ENSINAR SOBRE

A ARTE DE BEM VIVER

MICHAEL PUETTCHRISTINE GROSS -LOH

The PathWhat Chinese Philosophers Can Teach Us About the Good Life

Traduzido do inglêspor Margarida Periquito

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Conteúdos

Prefácio :: 13

Introdução :: 19

1 A Era da Resignação :: 23

2 A Era da Filosofia :: 33

3 Das Relações: Confúcio e os Rituais «Como Se» :: 41

4 Das Decisões: Mêncio e o Mundo Inconstante :: 71

5 Da Influência: Lao -Tsé e a Criação de Mundos :: 101

6 Da Vitalidade: O Inward Training

e Ser Como um Espírito :: 129

7 Da Espontaneidade: Zhuangzi e um Mundo de

Transformações :: 149

8 Da Humanidade: Xunzi e Padronizar o Mundo :: 169

9 A Era da Possibilidade :: 187

Agradecimentos :: 203

Fontes e Leituras Complementares :: 205

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PrefácioCHRISTINE GROSS LOH

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13O CAMINHO DA VIDA :: MICHAEL PUETT, CHRISTINE GROSS-LOH

Prefácio

Numa manhã fresca e soalheira do outono de 2013, assisti

a uma aula de Filosofia Chinesa na Universidade de Harvard.

Encontrava -me lá porque queria escrever um artigo para o Atlan-

tic sobre as razões por que uma cadeira para não licenciados, sobre

um assunto tão arcano, se tornara a terceira mais apreciada da

faculdade, logo a seguir às previsíveis preferências por Introdução

à Economia e Ciências Informáticas.

No palco do Anfiteatro Sanders, o Professor Michael Puett,

um homem alto e cheio de energia, de quarenta e muitos anos,

falava animadamente para mais de setecentos alunos. As suas

palestras, que gozam da fama de serem interessantes, são feitas

sem recurso a apontamentos ou diapositivos: cinquenta minu-

tos de pura conversa, de cada vez. Os alunos não são obrigados

a quaisquer leituras, exceto as palavras, traduzidas, dos próprios

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filósofos: os Analectos de Confúcio, o Tao Te Ching, os textos de

Mêncio. Não se espera que tenham qualquer conhecimento pré-

vio de história ou filosofia chinesas ou qualquer interesse especial

por essas matérias; precisam simplesmente de ser recetivos e de

ter vontade de se dedicar a estes textos antigos. O curso é bem

conhecido pela promessa arrojada que o professor faz todos os

anos, no primeiro dia de aulas: «Se vocês levarem a sério as ideias

contidas nestes textos, elas mudarão a vossa vida.»

Eu tinha um doutoramento em História do Extremo Oriente

em Harvard e, depois disso, começara a ensinar Filosofia Chinesa

aos licenciandos. Aquela matéria não era nova para mim. Mas, ao

ouvir Michael naquele dia e ao longo das semanas que se segui-

ram, vi -o dar vida a essas ideias de uma maneira como eu nunca

as sentira. Ele pedia aos alunos que não se limitassem a agarrar

as ideias dos pensadores, mas que permitissem também que tais

ideias desafiassem alguns dos seus conceitos a respeito de si pró-

prios e do mundo em que vivem.

Michael também fala sobre filosofia chinesa noutras universi-

dades e organizações em várias partes do mundo. Depois de cada

palestra as pessoas invariavelmente vão ter com ele, ansiosas por

saber como é que essas ideias se podem aplicar às suas vidas e

a questões reais como os seus relacionamentos, carreiras, desa-

venças familiares. Chegam à conclusão de que esses princípios

apresentam uma nova perspetiva sobre o que significa viver uma

vida boa e com sentido; uma perspetiva que contradiz em grande

parte aquilo que tinham assumido como certo.

É uma perspetiva que influenciou muitos deles de forma

positiva. Os alunos de Michael contaram-me histórias que mos-

tram como as suas vidas foram alteradas por essas ideias. Alguns

disseram -me que passaram a olhar de outra maneira para os seus

relacionamentos, reconhecendo agora que as mais simples ações

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se repercutem neles próprios e em quem os rodeia. Como foi dito

por um aluno, «o Professor Puett abriu as portas a uma forma

diferente de interagir com o mundo que me rodeia, de processar

os meus sentimentos, de estabelecer comigo próprio, e com os

outros, uma sensação de calma que antes nunca sentira.»

Estes jovens brilhantes, vocacionados para serem futuros

líderes, fosse qual fosse a carreira que seguissem, disseram -me que

essas ideias mudaram o seu modo de abordar as principais deci-

sões da vida e a sua própria trajetória. Quer decidissem ir para

Gestão Financeira ou para Antropologia, Direito ou Medicina,

tais ideias apetrechavam -nos com ferramentas diferentes e uma

visão diferente do mundo, em relação àquelas com que haviam

crescido, abrindo uma nova janela para o objetivo de vida e as suas

infinitas possibilidades. Um estudante disse -me: «É muito fácil

termos a convicção de estar a construir algo com vista a um obje-

tivo supremo e a subir um escadote para alcançar algum sonho,

seja ele uma determinada posição ou um determinado lugar na

vida. Mas esta mensagem é de facto poderosa, ou seja, se vivermos

a nossa vida de forma diferente, podemos estar recetivos a cir-

cunstâncias que nunca imaginámos sequer que eram possíveis.»

E não são apenas os textos filosóficos que influenciam estes

estudantes. O próprio Michael é uma inspiração. Ele é conhecido

pela generosidade, humildade e dedicação com que ajuda os seus

alunos a progredir. Características essas que são o resultado de

décadas de concentração no pensamento chinês. «Ele personifica

completamente essas doutrinas», afirmou um estudante.

O que é que existe nessas filosofias para terem semelhante

impacto naqueles que as estudam? Nenhuma destas ideias tem

a ver com a aprender a «aceitarmo -nos», a «encontrarmo -nos»,

nem implica seguir uma série de instruções para alcançar um

objetivo claro. Na realidade, são a perfeita antítese desse tipo de

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pensamento. Não são específicas, nem impostas, nem de caráter

superior. Têm mais a ver com mudanças estruturais, feitas de for-

mas imprevisíveis e inimagináveis. Um estudante explicou como

era libertador reconhecermos que aquilo que julgamos que é

enraizado e inerente, na verdade, não o é: «Podemos adotar novos

hábitos e alterar literalmente a maneira como compreendemos o

mundo, como reagimos a ele, e como interagimos com as outras

pessoas. Aprendi que somos capazes de controlar essa força do

hábito, ou “ritual”, para conseguirmos coisas que nunca pensámos

que fossem possíveis, tendo em conta o que julgávamos que éra-

mos.»

Durante muito tempo olhámos para o pensamento chinês

de uma forma errada, vendo -o como sendo algo indestrinçável

de um «mundo tradicional» e, portanto, considerando -o irre-

levante para a nossa vida atual. Porém, como estes estudantes

podem confirmar, os ensinamentos dos antigos filósofos chineses

obrigam -nos a questionar muitas das crenças que tomamos como

certas. As suas ideias acerca da maneira como as pessoas enca-

ram o mundo – como se relacionam com os outros, como tomam

decisões, como lidam com os altos e baixos da vida, como tentam

influenciar os outros, como decidem levar a vida – são tão rele-

vantes hoje como eram há dois mil anos. Na realidade, são mais

relevantes do que nunca.

Eu e Michael concluímos que tais ideias têm algo a dizer a

todos nós, e foi assim que este livro nasceu. Nas páginas que se

seguem, mostraremos em que medida os ensinamentos desses

filósofos chineses nos oferecem a possibilidade de pensarmos de

uma maneira nova a nosso respeito e a respeito do nosso futuro.

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O Caminho da Vida

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19O CAMINHO DA VIDA :: MICHAEL PUETT, CHRISTINE GROSS-LOH

Introdução

Confúcio. Mêncio. Lao -Tsé. Zhuangzi. Xunzi. Alguns destes

pensadores poderão ser -vos familiares; de outros, talvez nunca

tenham ouvido falar. Um deles foi um burocrata -transformado-

-em -professor, que passou a vida a ensinar um reduzido círculo de

discípulos. Outro deambulava de região em região, dando orien-

tações aos governadores locais. Outro ainda, mais tarde, foi con-

siderado um deus. Hoje, as suas vidas e os seus escritos parecem-

-nos obscuros, muito distantes das nossas vidas modernas.

Afinal, o que é que alguns filósofos chineses que viveram há

mais de dois mil anos podem ter para nos ensinar acerca da arte

de viver? Provavelmente imaginam -nos, se é que alguma vez o

fizeram, como plácidos homens sábios que pregavam afáveis tri-

vialidades sobre harmonia e natureza. Entretanto, nós hoje leva-

mos vidas ativas, livres, modernas. Os nossos valores, costumes,

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tecnologias e convicções culturais são totalmente diferentes dos

deles.

E se vos dissermos que cada um desses pensadores apresenta

uma perspetiva totalmente inesperada sobre o modo de nos tor-

narmos um ser humano melhor e de criarmos um mundo tam-

bém melhor? E se vos dissermos que, se os levarem a sério, as

ideias que se encontram nesses textos extraordinários da China

clássica têm a capacidade de alterar a maneira como se vive? É este

o tema central deste livro: que os ensinamentos desses filósofos

chineses antigos, que davam resposta a problemas muito seme-

lhantes aos nossos, apresentam perspetivas novas e radicais sobre

o modo de ter uma vida boa.

A maior parte de nós pensa estar a agir corretamente quando

olha para dentro de si, e se encontra, e determina aquilo que a

sua vida deverá ser. Calculamos que tipo de carreira se coadu-

naria melhor com a nossa personalidade e as nossas inclinações.

Imaginamos que género de pessoa seria um bom companheiro

para nós. E pensamos que, se encontrarmos essas coisas – o nosso

verdadeiro eu, a carreira que queríamos ter e a nossa alma gémea

– teremos uma vida plena. Alimentaremos o nosso verdadeiro eu

e colocaremos em prática um plano para termos felicidade, pros-

peridade e satisfação pessoal.

Quer alcancemos isso quer não, essa visão do modo de cons-

truir uma vida boa está enraizada na história, especificamente

nas ideias calvinistas do século XVI acerca de predestinação, de

um «eleito» escolhido, e de um Deus que traçou um plano para

cada indivíduo executar. Os calvinistas recusaram -se a seguir

um ritual, que consideraram vazio e formulista, preferindo real-

çar a sua fé sincera nessa divindade superior. Hoje já não pen-

samos em termos de predestinação, de um eleito escolhido, e

alguns de nós nem sequer em Deus. Mas grande parte do nosso

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pensamento atual é o legado desses primitivos modos de ver dos

protestantes.

Hoje em dia, acreditamos que cada pessoa devia ser um indi-

víduo singular que se conhece a si próprio. Cremos que devíamos

ser autênticos, leais a uma verdade que hoje tendemos para situar,

não numa divindade superior, mas dentro de nós. Esforçamo -nos

para agir de acordo com o «eu» que tencionámos ser.

Mas e se essas ideias, que nós julgamos que enriquecem as

nossas vidas, na realidade nos estão a limitar?

Muitas vezes associamos a filosofia a ideias abstratas ou,

mesmo, sem qualquer préstimo. Mas a força dos pensadores de

que este livro fala reside no facto de eles muitas vezes exemplifica-

rem os seus ensinamentos através de aspetos concretos e comuns

da vida diária. Estavam convencidos de que é a esse nível do quo-

tidiano que ocorrem as maiores mudanças e que uma vida plena

tem início.

Ao pesquisarmos esses pensadores, temos a esperança de que

o leitor permita que eles desafiem algumas das suas convicções

mais arreigadas. Algumas das ideias que manifestam podem fazer

sentido de forma intuitiva; outras, não. Não esperamos necessa-

riamente que o leitor esteja de acordo com tudo o que lê. Mas o

próprio confronto com ideias tão diferentes das nossas permite-

-nos reconhecer que as nossas convicções acerca de um bom

modo de viver são apenas uma entre muitas. E, depois de reco-

nhecermos isso, não é possível que voltemos à nossa velha vida

inalterados.

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1

A Era da Resignação

Uma determinada visão da história tornou -se senso comum.

Até ao século XIX os seres humanos viveram em sociedades a que

chamamos tradicionais. Nessas sociedades sempre lhes foi dito o

que haviam de fazer. Nasciam no seio de uma estrutura social já

existente que determinava as suas vidas: se nasciam camponeses,

permaneciam camponeses; se nasciam aristocratas, permaneciam

aristocratas. A família a que pertenciam determinava o dinheiro e

o poder que detinham, e assim as trajetórias das suas vidas esta-

vam fixadas desde o dia em que nasciam.

A história continua: na Europa do século  XIX, as pessoas

finalmente libertaram -se destes constrangimentos. Pela primeira

vez, concluímos que todos somos indivíduos capazes de pensar

de modo racional. Podemos tomar as nossas próprias decisões

e controlar as nossas vidas. Como seres racionais podemos criar

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um mundo de oportunidades sem precedentes. Com estas con-

clusões, diz a história, teve início o mundo moderno.

Mas se alguns se libertaram, outras culturas ficaram para trás

– ou assim pensamos. Para muitos de nós a China clássica repre-

senta a última sociedade tradicional em que as pessoas tiveram de

desempenhar funções sociais rigidamente definidas, para pode-

rem viver num mundo estratificado e ordenado.

Logo, deve ser um mundo que não tem nada para nos ensinar.

É claro que, por vezes, esta leitura das sociedades tradicio-

nais em geral, e da China em particular, teve uma interpretação

romantizada: Hoje vivemos afastados uns dos outros, mas no mundo

tradicional as pessoas acreditavam que viviam em harmonia com o

universo. Afastámo -nos do mundo natural e procuramos controlá -lo

e dominá -lo, mas no mundo tradicional as pessoas tentaram viver de

acordo com os modelos da natureza.

Esta visão sentimental de um mundo tradicional também não

tem nada para nos ensinar. Simplesmente transforma as chama-

das sociedades tradicionais em algo semelhante a imagens nostál-

gicas. Podemos ir a um museu, ver uma múmia egípcia e pensar:

Que estranho. Ou ver um artefacto chinês e concluir: Que esqui-

sito. Olhamo -los com curiosidade, mas não desejamos regressar

àquele tempo – ao mundo que eles representam. Não queremos

viver nele, nem receber lições desses mundos tradicionais, porque

eles não são modernos. Fomos nós, e não eles, quem acabou por

perceber como as coisas são.

Mas, como vão acabar por perceber, muitos dos nossos este-

reótipos acerca dessas sociedades «tradicionais» estão errados.

E podemos aprender muito com o passado.

O perigo da nossa visão da história não é apenas ela ter -nos

levado a descartar grande parte da existência humana como sendo

irrelevante, mas também pensarmos que as ideias que hoje pre-

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dominam são as únicas que incentivam as pessoas a determinar

as suas vidas; ou seja, que as ideias atuais são as únicas corretas.

O facto é que tem havido uma vasta gama de opiniões sobre

a forma como os seres humanos podem construir a vida a seu

modo. Ao reconhecermos isso, podemos ver o «moderno» como

ele realmente é: uma narrativa entre muitas, construída a partir

de um tempo e de um lugar específicos. Um mundo inteiro de

pensamento fica assim ao nosso dispor, um mundo que desafia

alguns dos mitos mais cultivados.

Mito: Vivemos numa Época de Liberdade Como Nenhuma Outra

A maior parte das pessoas julga -se essencialmente livre, de

formas que os nossos antepassados o não eram. Depois de nós, no

Ocidente, termos cortado relações com o mundo tradicional no

século  XIX, adquirimos finalmente a capacidade de decidirmos

sozinhos como organizar o mundo. Passámos dois séculos a lutar

com várias ideologias concorrentes: socialismo, fascismo, comu-

nismo e capitalismo democrático. E quando todas essas ideias,

com exceção de uma, foram amplamente desacreditadas, chegá-

mos finalmente ao «final da história». Com a queda do Muro de

Berlim em 1989, o neoliberalismo pareceu ter triunfado como a

forma correta de organizar o mundo, ou seja, aquela que melhor

permite aos seres humanos florescer e prosperar.

Mas o que fazemos nós, então, da infelicidade, do narcisismo

e da ansiedade que surgem no mundo desenvolvido? Dizem -nos

que o trabalho árduo leva ao sucesso, porém, a distância entre

ricos e pobres aumentou drasticamente, e a mobilidade entre clas-

ses sociais está em declínio. As nossas vidas são mediadas por

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toda a espécie de sedutoras e impressionantes invenções, a medi-

cina alcançou avanços sem precedentes e, no entanto, enfrentamos

crises ambientais e humanitárias a um nível assustador. Várias

décadas passadas, o nosso grande otimismo desapareceu. Já não

nos sentimos tão confiantes como antes em relação à forma como

estruturámos o nosso mundo.

Portanto, até que ponto havíamos percebido como as coisas

são? Irão os historiadores olhar para trás, para esta época, como

sendo de prosperidade, igualdade, liberdade e felicidade? Ou defi-

nirão antes o início do século XXI como uma era de resignação:

um tempo em que as pessoas estavam infelizes e insatisfeitas, em

que testemunharam crises em desenvolvimento, mas não foram

capazes de reagir, sentindo que não havia alternativas viáveis?

Os textos filosóficos chineses descritos neste livro apresen-

tam alternativas a esta Era de Resignação. Mas não são ideolo-

gias coerentes que possam, por exemplo, substituir a democracia.

São ideias inesperadas acerca do «eu» e do seu lugar no mundo.

E muitas delas foram de facto desenvolvidas em oposição à ideia

de se viver de acordo com qualquer sistema dominador de pen-

samento.

Aproximadamente entre os anos 600 e 200 a. C., uma explosão

de movimentos filosóficos e religiosos nas regiões euro -asiáticas

originou uma grande variedade de opiniões que visavam o flores-

cimento da raça humana. Durante esse período, que veio a ser

chamado Era Axial, muitas das ideias que se desenvolveram na

Grécia também despontaram na China e vice -versa. Com efeito,

na China, como adiante veremos, surgiram algumas crenças que

eram muito semelhantes às que hoje são comuns no Ocidente.

Mas na China essas doutrinas perderam terreno, enquanto outras

ideias opostas nasceram, preconizando um caminho muito dife-

rente para uma vida boa.

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O que estamos a analisar aqui não deve ser interpretado

como pontos de vista «chineses» em oposição a pontos de vista

«ocidentais», nem como ideias tradicionais em oposição a ideias

modernas. À medida que formos explorando estes conceitos, vere-

mos que as pessoas começaram a discutir qual a melhor forma de

organizar o mundo muito antes da era moderna e, também, que

existem verdadeiras alternativas de pensamento sobre o modo de

viver bem.

Mito: Sabemos Determinar a Direção que a Nossa Vida Tomará

Quando se trata de fazer planos com vista à felicidade e à pros-

peridade no Ocidente, ensinam -nos a confiar nas nossas mentes

racionais, na certeza de que encontraremos uma solução através

de cuidadosos cálculos. Perante a incerteza da vida, consolamo-

-nos com a crença de que vencendo a emoção e as inclinações

temperamentais, e reduzindo a nossa experiência a dados limita-

dos, conseguimos dominar a sorte e desafiar o destino. Pensemos

na nossa mais popular abordagem aos dilemas morais e éticos:

inventar uma hipotética situação representativa e penetrar nela

de forma racional. Na famosa experiência da vagoneta, dizem -nos

para imaginarmos que nos encontramos num pátio de manobras

ferroviárias e avistamos uma vagoneta desgovernada que avança

pelos carris. Vemos que ela vai atingir cinco pessoas que estão

mais à frente, na linha. Mas se acionarmos a agulha podemos des-

viar a vagoneta para outra linha, onde se encontra só uma pessoa.

Deixamos que a vagoneta ceife aquelas cinco pessoas, ou acio-

namos a agulha para as salvarmos, escolhendo conscientemente

matar a pessoa que está sozinha?

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O que é acertado fazer?

Este género de questão deu que pensar a filósofos e estu-

diosos de ética ao longo das suas vidas. Escreveram -se inúmeros

ensaios – e até um livro ou dois – sobre as suas implicações. O

cenário permite -nos reduzir a tomada de decisão a uma simples

série de dados e uma única escolha. Muitos pensam que é assim

que as decisões são tomadas.

Estas experiências de pensamento também foram feitas na

China clássica. Mas os nossos pensadores chineses não estavam

tão intrigados. Este jogo intelectual é bom, concluíram, mas pode-

-se fazer estes jogos o dia inteiro sem que eles tenham qualquer

impacto na forma como vivemos as nossas vidas diárias normais.

Absolutamente nenhum.

O modo como pensamos estar a viver as nossas vidas não é o

modo como as vivemos. O modo como pensamos que tomamos

decisões não é o modo como as tomamos. Mesmo que algum dia

nos encontrássemos naquele pátio ferroviário, prestes a ver alguém

ser morto por uma vagoneta desgovernada, a nossa reação não teria

nada a ver com o cálculo racional. As nossas emoções e instintos

assumem o comando nestas situações, e orientam também as nos-

sas decisões menos espontâneas, mesmo quando pensamos que

estamos a ser muito decididos e racionais: O que hei de fazer para

o jantar? Onde é que eu devia viver? Com quem devia casar?

Ao verem as limitações desta abordagem, esses filósofos

chineses foram à procura de alternativas. Para eles, a resposta

está em apurar os nossos instintos, treinar as nossas emoções, e

empenharmo -nos num processo constante de autoeducação, para

que na altura própria – em momentos cruciais ou triviais – seja-

mos capazes de reagir de forma correta e ética a cada situação

em particular. Através dessas reações induzimos reações positi-

vas naqueles que nos rodeiam. Esses pensadores ensinaram que,

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dessa maneira, todos os encontros e experiências proporcionam

uma possibilidade de criar conscientemente um mundo novo e

melhor.

Mito: A Verdade do Que Somos Está Dentro de Nós

O colapso das velhas instituições religiosas aristocráticas

deixou as pessoas em busca de novas fontes de verdade e sentido.

De modo idêntico, no nosso tempo, sentimos que nos libertámos

de formas de pensamento velhas e limitadoras e andamos à pro-

cura de novas fontes de sentido. Têm -nos dito, cada vez com mais

frequência, para procurarmos essa verdade mais elevada dentro

de nós. O objetivo de uma pessoa atualizada é, agora, encontrar-

-se a si própria e viver a sua vida «autenticamente», de acordo

com uma verdade interior.

O perigo disto está em acreditar que todos reconheceremos

a nossa «verdade» quando a virmos, e depois vivermos as nossas

vidas nos limites dessa verdade. Com todo este investimento na

nossa autodefinição, arriscamo -nos a construir o futuro com base

numa interpretação muito limitada daquilo que somos – aquilo

que consideramos serem as nossas forças e fraquezas, os nos-

sos gostos e aversões. Muitos pensadores chineses podiam dizer

que, ao proceder assim, estamos a olhar para uma parte muito

pequena do que somos potencialmente. Estamos a pegar num

número limitado das nossas capacidades emocionais durante um

certo tempo e lugar e a permitir que elas nos definam para sem-

pre. Pensando na natureza humana como monolítica, imediata-

mente limitamos o nosso potencial.

Mas muitos dos pensadores chineses argumentariam que não

somos, nem devíamos pensar em nós como sendo seres singulares

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e invariáveis. Digamos que se considera uma pessoa temperamen-

tal, uma pessoa que se irrita facilmente. Os pensadores que vamos

conhecer alegariam que não devia dizer: «Eu sou assim e pronto»

nem alinhar numa ideia definida do que é. Como veremos, talvez

não seja propriamente uma pessoa irritadiça. Talvez tenha apenas

caído numa rotina – padrões de comportamento – e deixou que

esses padrões o definissem como a pessoa que pensava que era.

A verdade é que tem tanto potencial para ser amável e compla-

cente, como para ser irritadiço.

Esses filósofos insistiriam connosco para que reconhecêsse-

mos que somos complexos e que estamos sempre a mudar. Todas

as pessoas têm disposições emocionais diversas, desejos e formas

de reagir ao mundo, muitas vezes contraditórias. As nossas dis-

posições emocionais revelam -se quando olhamos para o mundo

exterior e não para dentro de nós. Não se desenvolvem quando

nos retiramos do mundo para meditar ou para ir de férias. Na

prática, formam -se através das coisas que fazemos na nossa vida

de todos os dias: a forma como interagimos com os outros e as

atividades a que nos dedicamos. Por outras palavras, não somos

apenas o que somos, podemos efetivamente tornar -nos pessoas

melhores em qualquer altura.

Claro que isso não é tarefa simples. Requer que mudemos

a nossa mentalidade acerca da forma como agimos e acerca

da maneira como a verdadeira mudança acontece. Também

não é um processo rápido: a mudança ocorre sucessivamente,

através da perseverança. Vem como resultado de trabalharmos

no sentido de alargar a nossa perspetiva, de modo a que pos-

samos compreender o complicado enredo de fatores (os nos-

sos relacionamentos, as nossas companhias, os empregos que

temos, e outras circunstâncias da vida) que molda qualquer

situação e, aos poucos, vai alterando as nossas interações com