o que se fala e o que se escreve

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 Recebido 22 de fevereiro de 2014 | Aprovado 01 de setembro de 2014 http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752015000100009 Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 55, p. 221-251, jan/abr 2015 O que se fala e o que se escreve Produção de presença e consciência histórica em uma família negra no litoral norte do Rio Grande do Sul What is Said and What is Written Production of Presence and Historical C onsciousness in a Black Family in the Northern Littoral of Rio Grande do Sul R A W Núcleo de Desenvolvimento Regional Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser Rua Duque de Caxias, 1691, s.702, Porto Alegre, RS, 90.010-283, Brasil [email protected] R Este artigo analisa as relações entre a palavra oral e a escrita por parte de uma comunidade negra no litoral norte do Rio Grande do Sul durante o século X X. Para tanto, enfocou-se uma família que possui documentos escritos desde ns do s éculo XIX e que os conserva cuida- dosamente, inobstante serem seus integrantes analfabetos. al situação suscita a questão sobre os signi cados emprestados à palavra esc rita e so- bre a relação por ela estabelecida com o discurso oral. Da mesma forma, analisa-se a presença dos ancestrais por meio da documentação escrita e propõe-se o papel dos guardiões destes do cumentos como in térpretes, por meio da noção de “consciência histórica”. A análise aqui realizada se dá, ela mesma, na intersecção entre escr ito e oral, uma vez que se ampara no cruzamento de entrevistas e o dito acervo documental, assim como na sua leitura para os familiares e interpretação de suas reações. P - oralidade, produção de presença, consciência histórica.

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Este artigo analisa as relações entre a palavra oral e a escrita por parte de uma comunidade negra no litoral norte do Rio Grande do Sul durante o século XX. Para tanto, enfocou-se uma família que possui documentos escritos desde fins do século XIX e que os conserva cuidadosamente, inobstante serem seus integrantes analfabetos.

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  • Recebido 22 de fevereiro de 2014 | Aprovado 01 de setembro de 2014 http://dx.doi.org/10.1590/0104-87752015000100009 Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 55, p. 221-251, jan/abr 2015

    O que se fala e o que se escreveProduo de presena e conscincia histrica em uma famlia negra no litoral norte do Rio Grande do Sul

    What is Said and What is WrittenProduction of Presence and Historical Consciousness in a Black Family in the Northern Littoral of Rio Grande do Sul

    Rodrigo de Azevedo WeimerNcleo de Desenvolvimento Regional Fundao de Economia e EstatsticaSiegfried Emanuel Heuser Rua Duque de Caxias, 1691, s.702, Porto Alegre, RS, 90.010-283, Brasil [email protected]

    Resumo Este artigo analisa as relaes entre a palavra oral e a escrita por parte de uma comunidade negra no litoral norte do Rio Grande do Sul durante o sculo XX. Para tanto, enfocou-se uma famlia que possui documentos escritos desde fins do sculo XIX e que os conserva cuida-dosamente, inobstante serem seus integrantes analfabetos. Tal situao suscita a questo sobre os significados emprestados palavra escrita e so-bre a relao por ela estabelecida com o discurso oral. Da mesma forma, analisa-se a presena dos ancestrais por meio da documentao escrita e prope-se o papel dos guardies destes documentos como intrpretes, por meio da noo de conscincia histrica. A anlise aqui realizada se d, ela mesma, na interseco entre escrito e oral, uma vez que se ampara no cruzamento de entrevistas e o dito acervo documental, assim como na sua leitura para os familiares e interpretao de suas reaes.Palavras-chave oralidade, produo de presena, conscincia histrica.

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    Abstract This paper analyzes the relations between oral and written words in a black community from the northern littoral of the Brazilian state of Rio Grande do Sul, during the 20th century. For that, we had in focus an extended family that owns written documents since the end of the 19th century. Although they are illiterate, they conserve those documents carefully. This situation raises the question of what were the meanings of the written word and its relations with the oral speech. We also analyze the presence of their ancestors through the written documentation and we propose the role of the guardians of those documents as interpreters, by the notion of historical consciousness. This analysis itself is done through the intersection between the written and the oral, since it is supported by the interlacement between interviews, that documental collection, the reading of those documents to the family and the interpretation of their reactions.Keywords orality, production of presence, historical consciousness.

    Era la historia de su familia, escrita por Melquades hasta en sus detalles ms triviales, con cien aos de anticipacin. La haba redactado en snscrito, que era su lengua materna, y haba cifrado los versos pares con la clave privada del emperador Augusto, y los impares con claves militares lacedemonias. (Mrquez, 2006)

    Neste artigo, pretendo discutir as relaes entre palavra escrita e ora-lidade estabelecidas por uma famlia pertencente comunidade rema-nescente de quilombos do Morro Alto. Localmente conhecida como gente da Felisberta por descender desta escrava e seu marido Ma-noel Incio , esta famlia, apesar de analfabeta, traa relaes muito complexas e sutis entre o escrito e o falado, e so elas que se analisar neste artigo.1 A oralidade um meio pelo qual narram suas histrias e

    1 So estas relaes, cuja natureza investigar-se-, que constituem aquilo que se define como prticas de letramento; desta maneira, elas independem do acesso alfabetizao.

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    as experincias vividas, por eles e pelas geraes pregressas, mas ela est em permanente relao dialtica com o texto escrito, ainda que este seja inacessvel por no haver o domnio do alfabeto. Uma reflexo desta natureza implica na anlise das concepes compartilhadas de memria, histria e registro escrito.

    Por outro lado, o pesquisador tambm participa do jogo deste di-logo e o proporciona ativamente , cruzando fontes orais e escritas. O enfoque da anlise realizada no se centrou tanto no contedo dos papis, mas, sobretudo, na observao dos significados simblicos atribudos aos mesmos. Atravs da noo de produo de presena (Gumbrecht, 2004), observou-se a relao estabelecida entre a documentao escrita e a presena dos ancestrais. Foi realizada a leitura, em voz alta, de do-cumentos pertencentes aos entrevistados (ou coletados por mim em arquivos estaduais) e observados seu comportamento e reaes diante de seu desvendar.

    A comunidade de Morro Alto situa-se na divisa entre os munic-pios de Osrio e Maquin (coordenadas geogrficas 29 S e 50 W), 2 litoral do estado do Rio Grande do Sul, fronteirio com o Uruguai e a Argentina. Seu ncleo encontra-se no entroncamento de um brao da estrada BR-101 e da RS-407, que segue para o balnerio de Capo da Canoa. Tratam-se de diversas localidades interligadas por prticas cul-turais compartilhadas e por relaes de parentesco. No extremo norte (porm no em continuum territorial) encontra-se a localidade da Prai-nha; no sul, Barranceiras. No sentido leste-oeste, os limites so o Faxinal do Morro Alto e Aguaps. No sculo XIX, havia l fazendas escravistas que produziam cana-de-acar e onde se criava gado.

    Parte significativa da descendncia dos cativos continuou habitando na mesma regio ao longo do sculo XX, de tal forma que em 1945 Dante de Laytano descreveu aquela localidade como habitat com as verdadeiras caractersticas de quilombo (Laytano, 1945, p.28). Na atualidade, os

    2 Osrio e Maquin so municpios oriundos da antiga Conceio do Arroio. Em 1934, o mu-nicpio mudou de nome para Osrio, por determinao do interventor federal Jos Antnio Flores da Cunha. Em 1992 o distrito de Maquin obteve sua emancipao.

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    moradores dedicam-se agricultura, pecuria, ao extrativismo mineral, alm de constiturem mo-de-obra sazonal para as praias de veraneio ga-chas. Por volta da dcada de 1950, diversos moradores migraram para centros urbanos em busca de emprego, melhores condies de vida e direitos trabalhistas. o caso das principais entrevistadas deste artigo, que se estabeleceram em Osrio por esta poca.

    Unidos por um passado comum presumido critrio, segundo Weber (2004, p.267-277), definidor das comunidades tnicas , nos dias de hoje reivindicam a titulao de suas terras por meio da figura constitucional de remanescentes de quilombos. Organizados neste sentido desde fins dos anos 1990, a investigao histrica acerca de seu passado ensejou uma revalorizao da palavra dos idosos, da memria da escravido e do ps-Abolio e, conforme veremos, de papis antigos guardados pelos moradores.

    O artigo 68 dos Atos das Disposies Constitucionais Transitrias da Constituio Federal de 1988 estabeleceu o reconhecimento e a ti-tulao dos remanescentes das comunidades de quilombos. Diante da mobilizao das comunidades negras rurais em busca deste direito constitucional, estabeleceu-se verdadeiro debate acerca da significao deste termo. Tem-se chegado a uma ressemantizao do termo quilombo, que vem sido entendido levando em conta uma relao tradicional com a territorialidade e no a dinmica de escravos fugitivos.3

    Segundo a legislao vigente no Brasil em 2014, estabelece-se como critrio de reconhecimento a auto-atribuio das comunidades; todavia, sua titularizao obedece realizao de um Relatrio Tcnico de Iden-tificao e Delimitao (RTID). Nos termos da Instruo Normativa n. 57/2009 do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA), rgo responsvel pela sua titulao, um Grupo Tcnico In-terdisciplinar deve ser contratado para realizar os estudos necessrios.

    3 Ver ODWYER, 2002; ALMEIDA, 2004, p.9-32; ARRUTI, 2006.

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    A senhora Aurora Incia Marques da Silva4 possui em sua casa, cui-dadosamente embalados, documentos dos sculos XIX e XX. Ela os herdou de sua me, que os ganhara de sua sogra e de sua cunhada, as quais haviam recebido, respectivamente, de seu marido e pai, conforme o organograma a seguir, no qual as flechas representam os circuitos de transmisso da documentao:

    Organograma Circuito de transmisso de documentos

    Libansn. ?

    ManuelIncion. 1847

    Felisbertan. m

    anos 1850

    PulquriaFelisbertan. 1881

    Belizrion. 1874

    AnglicaIncian. 1883

    RaquelIncian. 1884

    RosalinaIncian. 1885

    MariaIncian. 1889

    ManuelIncion. 1894

    MariaClarada Rosa

    MercedesIncian. 1896

    LadislauIncion. 1898

    EvaIncia

    Marques

    ManuelIncio

    Marques Neto

    GeniIncia

    Marques

    DivaIncia

    Marques

    MariaIncia

    Marques

    AuroraIncia

    Marques

    AmliaIncia

    Marques

    BentaIncia

    Marques

    ?

    Organograma criado pelo autor a partir dos relatos de histria oral.

    4 Optou-se pela utilizao dos nomes verdadeiros dos entrevistados por duas razes: porque em se tratando de uma comunidade mobilizada em busca de direitos constitucionais, dese-jvel sua visibilizao; alm disso, se obteve autorizao escrita para faz-lo. Aurora nasceu em Morro Alto em 1926. Poucos anos aps seu casamento, seu marido morreu de um ataque cardaco enquanto trabalhava em uma pedreira. Viva, dirigiu-se a Osrio onde trabalhou durante muitos anos, sem carteira assinada como empregada domstica ou cozinheira.

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    Hereditrios no eram apenas os papis, mas tambm o hbito de conserv-los. Conforme me confidenciou, a mania de guardar tambm era geracionalmente transmitida.5 Em certa ocasio,6 perguntei para Aurora com quem ela gostaria que ficassem os papis depois dela, e ela afirmou que deveriam permanecer com Manoel Incio Marques Neto, seu nico irmo homem. A deciso de deixar para ele explica-se pelo fato de ela no ter filhos, mas tambm por caractersticas individuais de Manoel: ele era muito interesseiro.7 Isso implica, portanto, que a conservao dos papis envolve interesses familiares. Veremos adiante de quais se trata.

    Meu primeiro contato com esse fundo documental deu-se em uma reunio, em 20 de julho de 2002, com a Associao Comunitria Rosa Osrio Marques, da comunidade da qual a famlia em questo parte integrante. Na mencionada reunio eu fazia parte da equipe interdis-ciplinar responsvel pela escrita do seu laudo de reconhecimento como remanescente de quilombos estvamos na reta final de concluso de nosso trabalho, e havamos solicitado aos moradores que levassem, para aquele evento, fotografias antigas e outros documentos que eventual-mente tivessem em seu poder. Eis que Aurora apareceu trazendo, no interior de uma sacola de supermercado anos mais tarde ela viria a guard-los em uma bolsa, o que no deixa de ser indicativo da valorizao tomada por tal documentao , um verdadeiro tesouro: convites para festas religiosas comunitrias, oraes manuscritas, correspondncias, recibos de donativos igreja local, guias de sepultamento, receiturios mdicos, anotaes de crditos e dbitos, notas de aquisies em em-prios e armazns, registros de dvidas, dentre outros...

    5 Dirio de campo de Rodrigo de Azevedo Weimer. Dia 9 de fevereiro de 2008 (LABHOI UFF).6 Entrevista com a senhora SILVA, Aurora Incia Marques da, Osrio, 23 jan. 2009 (LABHOI UFF). 7 Interesseiro, entre os moradores de Morro Alto, no tem o mesmo significado pejorativo

    da linguagem corrente, aproximando-se, ao invs, de interessado, porm com a nuance de denotar o indivduo com elevada capacidade de ir atrs de interesses individuais ou coletivos. Manoel j faleceu; no indaguei a Aurora quem seria o outro depositrio privilegiado.

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    Na semana seguinte, com vagar, dirigi-me sua residncia, em Osrio, e, com a sua autorizao, pesquisei seus papis. Realizei sua leitura e transcrevi parte deles, os que me pareceram mais relevantes do ponto de vista da pesquisa histrica ento empreendida, dada a diversidade da papelama. Particularmente dois foram utilizados no laudo de reco-nhecimento de Morro Alto como remanescente de quilombos: um recibo de terras adquiridas, em 1890, por seu av, o ex-escravo Manoel Incio de um integrante da famlia senhorial, Manoel Osrio Marques, e uma carta recebida por ele de Ana Osrio Nunes, outra ex-senhora.8

    O tempo urgia, e o prazo para concluso do relatrio estava-se esgo-tando. Assim, no foi possvel realizar uma pesquisa exaustiva naqueles ricos papis. Os anos foram passando, Morro Alto foi reconhecida, no entanto aquele fundo documental de inegvel valor histrico seguia pouco explorado. Ento, j em 2008, decidi deter-me novamente sobre eles, por entend-los merecedores de um investimento analtico consistente.

    Era necessrio reproduzir o corpo documental o quanto antes, pois aquele patrimnio poder-se-ia desagregar. Em uma de minhas visitas a Aurora, ela solicitou-me que lesse um documento para uma sua prima que ali estava presente, de visita. Constatando que era um bilhete de um ascendente da visitante, ela lhe deu de presente, como uma recordao!9 Aurora no compartilha da concepo de que acervos documentais so indivisveis, e como sua proprietria, pode d-los para quem bem entender. No entanto, o meu dever como historiador era viabilizar uma forma de conservao do corpo documental, o quanto antes.

    Percebendo-me interessado ou interesseiro, no termo positivado , esta senhora autorizou-me a xerografar seus documentos. No o fiz com todos, mas apenas com os mais antigos e de importncia considerada maior para a pesquisa de doutorado ento realizada. Fiz isso o ideal

    8 Estes documentos encontram-se reproduzidos em BARCELLOS, CHAGAS, FERNANDES, FUJIMOTO, MOREIRA, MLLER, VIANNA, WEIMER, 2004, p.470, 472-475.

    9 Por sorte, fiquei com uma transcrio do documento importante, um convite para partici-pao em uma festa de So Benedito e demanda por donativos. No uma cpia fotogrfica ou xerogrfica, mas melhor que nada.

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    teria sido reproduzir todos, independentemente de meus critrios subje-tivos para no abusar da confiana da senhora Aurora, permanecendo tempo demais afastado com a documentao. Afinal, ela deixou-me sozinho com um legado de seus avs, em um ato que me emociona at hoje. Essa confiana passa, evidentemente, por um bom uso das fontes que ela me estava disponibilizando, mesmo que no fizesse idia de em que consistia o meu trabalho,10 nem de porque, afinal, aqueles papis faziam de mim to interesseiro.

    O interesse familiar naqueles papis era claro e indubitvel. O de um estranho no podia ser explicado, por mais que eu me esforasse em dizer-lhe que eu gosto de saber das histrias dos antigos, e por mais que ela conhecesse o livro que foi publicado a partir da pesquisa que levou ao reconhecimento de Morro Alto. No entanto, nenhuma dessas justificativas parecia bastar, pertencendo, pelo contrrio, o acesso documentao ordem da confiana.

    Os documentos guardados dentro da bolsa

    Uma caracterstica marcante desse corpo documental a heterogenei-dade. composto por fragmentos juntados ao longo de dcadas, cuja relevncia era avaliada por indivduos incapazes de discernir o contedo de papis juntados ao conjunto. No h, aqui, qualquer inteno auto-biogrfica, conforme Artires (1998, p.11) props aos arquivos privados: trata-se de um testemunho ao mesmo tempo voluntrio e involuntrio, nos termos de Bloch (1987, p.52): voluntrio na inteno de compo-sio de um conjunto de papis potencialmente teis;11 involuntrio no controle sobre o que dele faria parte, afinal, aqueles que herdaram

    10 Os moradores frequentemente associaram a presente pesquisa com aquela empreendida para o seu reconhecimento como remanescente de quilombos, efetuada anos antes. Apesar dos repetidos esforos por explicar a verdadeira natureza do trabalho mais recente, frequente-mente vi-me obrigado a repetir este esclarecimento.

    11 Embora no na sua constituio como fonte histrica, como acervo passvel de consulta para recomposio de um passado.

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    aqueles papis no eram alfabetizados e no tinham pleno domnio do que ali estava registrado.

    So documentos incrveis, os quais o historiador interesseiro difi-cilmente ter condies de encontrar juntos, mas ao mesmo tempo de difcil trato, dada sua heterogeneidade. Sequer me proponho a dar conta de todas as possibilidades de anlise por eles abertas. Aqui discutirei o acervo como um todo, visando relao entre oralidade e palavra escrita. Meu problema so os motivos que, considerando o limitado acesso palavra escrita, levaram os integrantes dessa famlia conser-vao desses papis.

    A documentao particular, provavelmente devido aos grupos so-ciais que usualmente abrange, vem sendo mais explorada pela histria poltica e dos intelectuais, parecendo, portanto, uma contribuio inte-ressante utiliz-la para a escrita da histria social referente aos grupos populares. Ao possibilitarem a discusso da relao entre cultura escrita e oralidade, abrem uma janela para a histria da memria.12

    A caligrafia e a ortografia utilizadas nas correspondncias variam. Tomemos duas cartas dirigidas por Rosalina Incia Marques a sua me e comparemos os trechos apresentados das mesmas:13 eu istimo que por ai vom todos com saude lenbarnsas para todos da cazas um abraso a mia filhada [carta de 3/1/1930] so contrastantes com o trecho Saudaes e Felicidades. Em primeiro lugar desejo-te, saude e paz e prosperidade junto com sua querida famlia [carta de 8/2/1934].14

    Nessas cartas, h variados graus de domnio do idioma escrito por parte de uma mesma signatria. Outros documentos apresentam graus intermedirios entre extremos de maior e menor capacidade de grafia.

    12 Sobre a possibilidade de um estudo que historicize a memria, ver ROUSSO, 1998, p.93-101 e HARTOG, 2003.

    13 Optei pela transcrio dos trechos destas cartas sem corrigi-las ou atualizar ortografias, pou-pando-me ainda da redao de [sic], exatamente porque o objetivo de sua exposio propor-cionar uma comparao de escritas mais ou menos desviantes das normas formais de ento.

    14 Para relativizar esse contraste, bom lembrar que a caligrafia do documento mais antigo mais legvel do que aquela do mais recente, mesmo este tendo sido redigido por algum com maior domnio da linguagem escrita. No existe, portanto, correlao direta entre caligrafia e ortografia.

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    Caligrafias e ortografias so, em suma, heterogneas nas cartas que Ro-salina enviou a sua me. Raras so as missivas perceptivelmente redigidas pelo mesmo sujeito. Isso sugere que ela apelou a diversos indivduos ao longo da vida, solicitando-lhes que lhe escrevessem cartas. Para tanto, deve ter recorrido a quem oferecesse maior disponibilidade, levando em conta relaes micropolticas. A oportunidade de solicitar a escrita de uma carta para algum mais escolarizado nem sempre estava disponvel, tendo sido aproveitada quando surgiu.

    Em outras ocasies, pode-se ter apelado para sujeitos de escolari-zao desconhecida, bastando para a escolha saber escrever ou no, alm, claro, da confiana depositada. Pergunto aos leitores: qual cr-dito vocs confeririam para delegar a algum o poder de registrar suas palavras em caracteres inacessveis? A quem confiar essa tarefa? No questo simples, e certamente era cuidadosamente considerada pelos familiares dos entrevistados no momento de solicitar que escrevessem uma carta, confidenciando intimidades e pondo em suas mos a expec-tativa de uma transcrio fidedigna daquela mensagem que se pretendia fazer chegar.15

    Temos uma carta dirigida por Manoel Incio a seu homnimo Ma-noel Isabel em data ignorada.16 Escrita com uma letra elegante e sem erros ortogrficos, lembro-me de ter comentado tal fato para Aurora na primeira vez que fui em sua casa e transcrevi o documento. Ela asseverou-me que seu av era alfabetizado. No entanto, em seu inven-trio, que localizei posteriormente no Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul,17 Manoel Incio consta como analfabeto.

    15 Em um estudo etnogrfico contemporneo acerca de redatores de cartas para terceiros na Frana, h registros de queixas dos signatrios quando o contedo da mensagem escrita no era considerado fiel mensagem transmitida oralmente. NOGARD, 1997. Esse exemplo sugere a possibilidade de um controle das cartas redigidas por parte daqueles que delegaram a escrita.

    16 Esta correspondncia no se encontra datada.17 Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, Cartrio de rfos e Ausentes de Con-

    ceio do Arroio, caixa 027.0335, auto 814, estante 159, inventrio de Manoel Incio Osrio Marques, Ano 1906.

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    Dando uma cpia da transcrio do documento para aquela senhora, li em voz alta para ela, inclusive a parte de seu testamento em que ele se declarava incapaz de ler e escrever. Longe de ficar surpresa, Aurora su-blinhou que mesmo analfabeto, seu av atinou de fazer um testamento para assegurar para os filhos seu legtimo quinho, solicitando a algum que escrevesse para ele, o que era um sinal de sua inteligncia e viso. A delegao da escrita foi aceita com bastante naturalidade por sua neta, asseverando tratar-se de prtica corriqueira.

    Quanto ao plo receptor dos documentos escritos por delegao, Chartier (2004, p.100-101), ao analisar a circulao de textos escritos na Frana do Antigo Regime, sublinha que a relao com o escrito no implica necessariamente uma leitura individual, podendo ser mediada por uma leitura em voz alta. Acredito que seja o caso da famlia aqui analisada: a incapacidade da realizao da leitura de documentos no impediu a manuteno de atividades epistolares significativas. Consi-derando que no final das correspondncias sempre se enviavam beijos e abraos a variadas pessoas e lembranas a todos de casa, de se supor que a leitura das correspondncias pudesse ter uma audincia coletiva.

    Prticas de conservao da documentao

    Ao deparar-me com a documentao em poder de Aurora, a principal questo que me ocorreu foi o que motivou a conservao daquele acervo, considerando que as pessoas que o mantiveram so analfabetas. Uma boa maneira de aproximar-se desse problema foi iniciar pelos funda-mentos explicitamente admitidos, pela gente da Felisberta, para no se desfazer dos documentos deixados por seu av. Com a palavra, a senhora Aurora, indagada por mim acerca do perfil de quem deveria vir a cuidar dos documentos depois dela e dos motivos pelos quais mantinha os documentos em poder da famlia mesmo sem saber rea-lizar sua leitura:

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    Aurora Tem que ser uma pessoa cuidadosa que goste de guardar.Rodrigo E que mais que tem que ter essa pessoa? Como que tem que ser essa pessoa pra guardar e cuidar disso?Aurora Ah, tem que ser pessoa interesseira, n? Assim, que se interesse nas coisas do tempo antigo e guarde e no bote fora. (...) importante porque se a gente tem necessidade de alguma coisa, vai ali, procura e acha. (...) muito importante pra ns que somos da famlia. Muito importante. Porque a hora que a gente precisa a gente tem.Rodrigo E o que que eles representam?Aurora Se apresentam uma pessoa da gente que j morreu. Rodrigo E a senhora sabe o que que t escrito nesses documentos?Aurora No sei ler. No sei nada. No sei o valor disso a. S eu sei que eu tenho que guardar pra minha hora que eu precisar ou qualquer um da minha famlia.(...)Rodrigo Mas o que que a senhora acha que t escrito ali?Aurora Uma herana, n?(...)Rodrigo Herana do que, dona Aurora?Aurora Ah, dos avs.18

    Inicialmente descrevendo o perfil daquele que desejava que fosse o novo guardio dos papis em seu poder ele adequa-se a seu irmo, cuidadoso, gosta de guardar, interesseiro , Aurora explica a impor-tncia dos papis estarem disponveis para sua famlia em caso de ne-cessidade. De que necessidade se trata? Para efeitos de prova de uma suposta herana legada pelos avs possivelmente associada demanda fundiria de Morro Alto , chegamos aqui ao interesse familiar ante-riormente mencionado. isso que Aurora acredita estar escrito nos do-cumentos, e o que explicaria sua cuidadosa mincia em conserv-los. Aproximamo-nos, portanto, de motivos prticos para a preservao da

    18 Entrevista com a senhora SILVA, Aurora Incia Marques da, Osrio, 23 jan. 2009 (LABHOI UFF). Grifos meus.

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    documentao citada. Caberia conserv-los por seu valor de prova em um caso de eventual herana ali registrada.

    No entanto, como adverte o antroplogo Marshall Sahlins, conceben-do-se a criao e o movimento de bens somente a partir de suas quanti-dades pecunirias, ignora-se o cdigo cultural de propriedades concretas que governa a utilidade e assim continua incapaz de dar conta do que de fato produzido (Sahlins, 1979, p.185). Portanto, h que desconfiar da ideia de que a utilidade d conta do real, e investigar os cdigos culturais, os simbolismos latentes na conservao desses documentos.

    A prpria noo de herana s utilitria em termos aparentes. Legado dos antepassados, que atravs dela presentificam-se, conforme Hans Ulrich Gumbrecht (2004, p.94): A presentificao de mundos passados, isto , tcnicas que produzem a impresso (ou mais apropriadamente, a iluso) de que mundos do passado possam-se tornar novamente tangveis. Na condio de herana, o passado torna-se tangvel, readquire presena. Uma palavra de Aurora foi muito significativa ao atestar o fenmeno a que Gumbrecht refere-se: quando indagada do que representam esses documentos, respondeu que ali se apresentam uma pessoa da gente que j morreu (Grifos meus). Mais do que uma crena mstica na presena espiritual do ancestral, atravs do documento se teria uma presena mesmo fsica, que se torna tangvel atravs de uma referncia espacial (Gumbrecht, 2004). Esse o sentido do documento em questo, para alm dos caracteres nele impressos: nele, o ancestral apresenta-se.19

    19 Isso pode explicar, tambm, a intensa emoo que tomou conta de dona Aurora, sua irm e sua prima quando lhes entreguei os registros de batismo de integrantes de sua famlia ou quando li em voz alta cartas trocadas entre familiares (ver adiante). Foucault opina pela presena quase fsica do missivista na recepo de cartas. O caso aqui analisado nos leva a refletir acerca dessa presena se dar, tambm, entre aqueles que as guardaram ao longo de um sculo sem conseguir efetuar sua leitura. A carta faz o escritor presente quele a quem a dirige. E presente no apenas pelas informaes que lhe d acerca da sua vida, das suas actividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortnios; presente de uma espcie de presena imediata e quase fsica (...). Escrever pois mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto prprio junto ao outro. E deve-se entender por tal que a carta simultaneamente um olhar que se volve para o destinatrio (por meio da missiva que recebe, ele sente-se olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face-a-face (FOUCAULT, 2006, p.149-150).

  • Rodrigo de Azevedo Weimer

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    As fotografias guardadas como reminiscncias constituem um locus privilegiado de produo de presena, pelo que pude observar da re-lao estabelecida pelos entrevistados com as imagens: materializao da experincia vivida, doce lembrana do passado, memrias de uma trajetria de vida, flagrantes sensacionais, ou ainda, mensagens codi-ficadas em signos (Cardoso, Mauad, 1997, p.405). Cardoso e Mauad examinam as formas pelas quais as imagens, tais como os documentos, transformam-se em monumento, no sentido de que elas demonstram os aspectos que, no passado, se queria perenizar para o porvir (Cardoso, Mauad, 1997). As fotografias, certamente, constituem relquias familiares, tanto quanto os documentos escritos, e so frequentemente guardadas junto a eles, ou em lbuns cuidadosamente preservados. Certamente, todas minhas observaes acerca da documentao escrita podem ser extrapoladas s imagens, talvez em uma dimenso ainda mais intensa.

    Isso se d por dois motivos: em primeiro lugar, a presena fsica do ancestral produzida possui vigor ainda maior por ser acessvel de uma forma mais direta: inexiste a mediao de uma palavra escrita que no dominam. Em contraposio, porm, isso reduz a dimenso de mistrio latente. Alm do mais, o reconhecimento da fisionomia, da aparncia, qui a sugesto do gestual e da expresso corporal potencializa em muito a presena de um ancestral, sobretudo quando se o conheceu pessoalmente. Reconhecem os ancestrais e neles se reconhecem. A linha de continuidade postulada em relao ao passado a herana torna--se visvel.

    Voltando herana de Aurora, pode-se dizer que, se alm de inte-resse pecunirio, tambm existe produo de presena, h que des-tacar que o filsofo Gumbrecht postula uma oposio entre culturas de presena e culturas de significado, cujos termos de contraste20 consistem em uma contradio entre corpo e mente; significados ine-rentes ou acessveis apenas atravs de interpretao; espao e tempo. O evento, em culturas de significado, representa inovao e possui um efeito de surpresa. Em culturas de presena, contudo, a inovao

    20 No enumerei todos, apenas os julgados mais relevantes para minha argumentao.

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    necessariamente uma alterao ilegtima da ordem revelada das coisas representada pela cosmologia. A cultura de significado encontra nos debates parlamentares um ritual prototpico, j que envolve o debate coletivo e intelectual de idias visando deliberaes para um futuro ime-diato. O ritual prototpico da cultura de presena a Eucaristia, na qual no po faz-se presente o corpo de Deus (Gumbrecht, 2004, p.80-85). Ou ainda, em contraposio representao por mim indagada, Aurora postulou sua apresentao.

    Poderamos fazer severas ressalvas forma dicotmica como o autor reduz as culturas humanas em duas categorias e ao carter es-ttico por ele impresso ao que denominou de culturas de presena.21 Pelo contrrio, Marshall Sahlins demonstrou de forma magistral a dialtica entre a cosmologia e a histria no caso de sociedades usu-almente reconhecidas como mecnicas, ao que props, alternativa-mente, a noo de sociedades performticas, referindo-se socie-dade havaiana, por ele analisada, ressaltando, contudo, que sempre h combinao entre mecnica e performance:

    Todas as sociedades provavelmente se utilizam de alguma mistura desses modos recprocos de produo simblica. Mas existem sistemas com movimentos pre-dominantemente radcliffe-brownianos:22 grupos delimitados e regras obriga-trias que prescrevem anteriormente em muito a maneira pela qual as pessoas devem agir e interagir. Vamos cham-las de estruturas prescritivas. Por con-traste relativo, a havaiana seria uma estrutura performativa (Sahlins, 1990, p.47). (Grifos meus).

    Ao postular a existncia de estruturas performativas em contra-posio s prescritivas, Sahlins, portanto, no pretende propor nova dicotomia. Essas disposies perante o mundo combinam-se. Se admi-tirmos que todas as sociedades podem guardar algum grau de presena

    21 Mesmo que admitamos as formulaes do autor como tipos-ideais, possvel indagar a adequao de tipos to caricaturalmente dicotmicos.

    22 Isto , prescritivos.

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    e algum de significado como procuro demonstrar ser o caso daqueles que estudo , poderemos encontrar na anlise binria de Gumbrecht relativizando-a alguns elementos frteis para reflexo. A interpretao dos documentos no seria o mais importante diante da presena neles revelada dos ancestrais. Pelo contrrio, seu significado uma herana est revelado, e o esforo interpretativo, necessrio apenas na medida em que o confirme.

    O acervo legado por Manoel Incio chama vida um passado que se perpetua e presentifica. Nesse sentido, os esforos de interpretao de significados ora confirmam as expectativas em relao aos docu-mentos escritos, ora so desnecessrios, ora so concorrentes com a presena produzida atravs deles. Os papis guardados por Aurora Incia Marques da Silva seriam, portanto, um suporte material de uma memria objeto de sacralizao, a que me referia anteriormente como produo de presena.

    Algumas perspectivas mais recentes, por outro lado, so frteis na interpretao de uma situao em que memria e histria no necessa-riamente se embatem.23 Assim, uma cultura histrica acadmica bem vinda, por proporcionar a decodificao da palavra escrita at ento inacessvel e, at mesmo, conferir legitimidade pblica em um contexto de embates polticos e fundirios a uma oralidade que at recentemente no encontrava repercusso no aparato judicial.

    Em alguma medida, a incapacidade para realizar a leitura dos do-cumentos legados por Manoel Incio pode ter contribudo para a con-servao dos papis, e no para sua destruio ou extravio. Em outros termos, os documentos podem ter sido preservados por causa, e no apesar do seu carter inacessvel. Esses papis esto longe de ser objeto de manuseio cotidiano. Alm do alcance, so merecedores de um lugar prprio. Por outro lado, sua decodificao no irrelevante, pois a qual-quer momento as verdades atravs deles reveladas podem fazer-se teis.

    Independente da importncia que se lhes possa conferir a posteriori, documentao fundiria, correspondncias, recibos, oraes, ou outros

    23 CATROGA, 2001; RICUR, 2007; LORIGA, 2009.

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    documentos foram julgados relevantes quando incorporados quele fundo e, depois, preservados de forma indistinta pela dificuldade de discernimento de outros papis ali guardados.24 Encontramos, pois, uma famlia na qual a preservao de documentos legados por seus antepassados pode ser lida como uma prtica de produo de presena, evocando o ancestral que os produziu e transmitiu s geraes. Con-tudo, se oposio existe entre presena e significado, memria e histria grupais , seria castrador tom-la como absoluta. Apresentou-se uma oposio, que quero em seguida desconstruir, verificando como, na prtica, presena e significado, memria e histria circulam em lugar de polarizar-se.

    Mais frtil reconhecer a existncia de uma tenso produtiva entre esses aspectos. Equilibrando-se em uma tnue linha que separa o res-peito s expectativas e vicissitudes dos depoentes e o rigor metodolgico caracterstico de sua prpria disciplina, o historiador talvez necessite amparar-se no mesmo tipo de relao de confiana estabelecida, no passado, por aqueles que solicitaram a terceiros que lhes redigissem cartas e aqueles que as escreveram.

    Porm, mais do que uma tenso, existe um dilogo, no qual uma memria familiar expressa por meio da oralidade se alimenta e conversa com uma histria acadmica na mesma intensidade com que esta histria o faz com aquela memria. Nesse sentido, ao propor a interpretao de documentos escritos, a histria fonte para a me-mria familiar tanto quanto a recproca: ela se apropria deles e os pro-cessa (Catroga, 2001, p.50-51). Com efeito, para Enzo Traverso, inexiste memria literal, originria e no-contaminada (Traverso, 2005, p.29). Essa conversa, diga-se de passagem, assemelha-se ao ritual do debate, tpico das culturas de significado de Gumbrecht, e no da transmu-tao expressa pela eucaristia, caracterstica das culturas de presena.

    24 Chagas ressalta que, em uma comunidade na qual a maior parte dos octagenrios so anal-fabetos, os documentos escritos adquiriram uma importncia muito grande em sua defesa diante de investidas territoriais de elementos externos, o que contribui para a importncia dada palavra escrita. CHAGAS, 2005, p.127.

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    A histria conversa com a memria, a memria conversa com a histria: a atafona do Ramalhete

    Miriam Chagas, etnografando a comunidade de Morro Alto, e particu-larmente a relao por ela estabelecida com em um testamento legado pela senhora Rosa Osrio Marques,25 destaca a tenso existente entre o valor creditado palavra falada e palavra escrita.

    H uma permanente tenso que levantada sobre o valor creditado palavra. A autoridade de quem fala apoiada nos documentos que porta ou teve acesso. Nesses casos, quem dispe de recursos de letramento, como um livro, quem, espera-se, aponte os seus direitos. Nesta viso, os documentos metaforizam esse recurso necessrio para dispor desse ob-jeto inacessvel que o direito legal sobre as terras (Chagas, 2005, p.128).

    Embora a expresso escrita confira legitimidade a uma determinada narrativa, isso no implica na passividade do oral. Conforme Chagas, muitas vezes os termos expressos no testamento so conhecidos pela comunidade atravs da expresso oral, demonstrando o dilogo entre ambos. A autora assinala que em Morro Alto, a narratividade a respeito da prpria histria se interpe para alm do que teria sido documentado por escrito (Chagas, 2005, p.139). Alm disso, a expectativa depositada sobre a equipe de pesquisa, capacitada leitura da documentao, re-sidiria na descoberta de camadas, no desvendamento do escondido, e no na atribuio, ao escrito, de um carter evidente (Chagas, 2005, p.129-130). A documentao escrita vlida, mas a comunidade no lhe confere, ingenuamente, um estatuto de verdade inconteste: mais do que isso, trata-se de uma instncia de confirmao do oral ou de descoberta do implcito.

    25 Esta senhora escravista, no tendo filhos, doou terras no Morro Alto para 24 de seus escravos, atravs de testamento de 1887 e inventrio de 1888. Arquivo Pblico do Estado do Rio Grande do Sul, Cartrio de rfos e Ausentes Viamo, estante 24 e/c, caixa 030.0125, auto n. 108, inventrio de Rosa Osrio Marques, ano de 1888. A escrava Felisberta, av das entrevistadas, era uma das legatrias.

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    Pretendo, neste momento, exemplificar de que maneira o discurso falado dialoga, responde, e mesmo duvida da escrita, atravs de dois exemplos: quando entreguei fotografias de documentos pesquisados acerca de seus familiares seus registros paroquiais de batismo e civis de casamento e a carta de alforria de seu av e quando procedi leitura para a senhora Aurora Incia Marques da Silva, sua irm Diva Incia Marques Terra26 e a prima Eva Marques Correia,27 dos documentos dis-ponibilizados, a fim de verificar suas reaes. O contedo dos documentos por vezes reforava, por vezes ia contra suas convices, das quais no abriram mo acriticamente diante do poder da palavra escrita.

    Quando apresentei fotografias dos registros de batismo de suas mes, pais, tias, tios, avs e bisavs para as senhoras Eva, Diva e Aurora, a reao conjugou a um s tempo emoo e desconfiana. A reunio e a restituio daquele corpo documental ocasionavam uma evidente satisfao e nostalgia de entes queridos ali presentificados, mas tam-bm dvidas quanto possibilidade de que aqueles papis estivessem conservados durante tantos anos, reunidos em um mesmo lugar e, mais ainda, que eu tivesse tido o trabalho de fotograf-los para elas.

    Eva disse-me no sei no, e eu argumentei que encontrei no ar-quivo, ao que ela resignou-se ah, ento , aceitando o argumento.28 A referncia de que os papis vinham do arquivo pareceu suficiente para que aceitasse sua veracidade, ou, ao menos, julgasse que no mais valia a pena a questionar. Acreditando ou no na autenticidade do do-cumento, ela expressou a inteno de dar o registro de batismo de sua me Mercedes para sua filha Maria, que era muito puxa-saco da av.

    26 Diva nasceu em Morro Alto em 1929. Irm de Aurora, veio morar em Osrio aps seu casa-mento, pois ali trabalhava seu marido, Celso Rodrigues Terra, como motorista. Conhecida por ser uma excelente cozinheira, teve um restaurante.

    27 Eva nasceu em Morro Alto em 1922. Prima de Aurora e Diva, Eva estabeleceu-se no Caconde (rea rural de Osrio, na outra margem de uma lagoa que banha a localidade onde nasceu). Ali dedicou-se produo de farinha em uma atafona junto com seu marido, Pompeu Correia.

    28 Entrevista filmada com a senhora CORREIA, Eva Marques, Caconde, 12 mar. 2010 (LABHOI UFF).

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    A presena da ancestral evocada pelo documento estaria em boas mos junto quela que tinha vnculos afetivos muito slidos com ela: Eva preferia oferecer a uma filha muito ligada av, a presena pro-duzida pelo registro.

    Se concordo com Gumbrecht quanto existncia de produo de presena, discordo do autor quanto oposio dicotmica diante da produo de significados. Se meus entrevistados eventualmente reco-nheceram a presena de seus ancestrais nos documentos que lhes foram entregues, tambm os interpretaram criticamente a partir de critrios prprios e a partir deles produziram significados.29

    Por exemplo, no h dvidas sobre a sensibilidade de Diva quando entreguei uma fotografia da carta de alforria de seu av, um av, afinal, que ela nunca conheceu, mas em relao ao qual mantm uma relao de deferncia.30 No h dvidas de que o documento produziu pre-sena, e esta lhe suscitou autntica emoo. Porm, perceptivelmente, ela conferiu significados prticos a ele, pois, segundo acreditava, poderia servir para legitimar seu pertencimento familiar frente aos demais na reivindicao coletiva de Morro Alto.

    Outro exemplo foi quando entreguei os registros de batismos de seus familiares e ela estranhou a ausncia do batismo de seu tio Ladislau. Por alguma razo que ignoro ela sequer o conheceu, talvez por isso , pa-recia bastante ansiosa por seu batistrio, e por diversas ocasies, quando ia entregar algum documento, ela entusiasmava-se com a possibilidade de que se referisse a esse tio. Como justamente dele eu no encontrei o registro, Diva props-se a refletir sobre o motivo de sua ausncia, des-cartando a possibilidade de que no tenha sido batizado eram muito catlicos e concluindo que ele deve ter sido batizado em casa.

    29 Segundo Ricur, h interpretao em todas as fases de operao historiogrfica; at mesmo naquelas em que predomina a memria. RICOEUR, 2007, p.347; LORIGA, 2009, p.26.

    30 A aquisio de um terreno por este av, com as receitas advindas do ofcio de carpinteiro (aprendido durante a vigncia do regime escravista), assegurou um destino mais estvel e bem-sucedido para sua prole, o que contribuiu para uma situao de menor vulnerabilidade para aquela famlia. Manoel Incio , assim, percebido como um heri familiar.

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    Diva Ento faltou um, no foi batizado?Rodrigo No, ou eu no achei. Qual que... (...) O Ladislau?Diva .Rodrigo No achei o dele. No achei.Diva U. Rodrigo Mas que os livros de batismo no so completos, de repente eles, ele batizou num ano que t faltando livro, ou...Diva Ou batizou em casa.Rodrigo Batizou em casa, isso a no quer dizer.Diva O Joo [apelido do irmo de Diva] batizou em casa, o Joo meu irmo batizou em casa, o pai foi buscar o padre, ele tava muito mal e eles vieram e batizaram em casa.31

    A ausncia do registro de Ladislau dentre os que entreguei colocou um problema para o qual encontrou uma explicao aceitvel , j que era situao compartilhada por seu irmo. A senhora Diva interpretou a documentao a partir de um problema, mais do que nela apenas reconhecer a presena de seus familiares. Problema e interpretao diferentes daqueles dos historiadores, mas legtimos para os interessados na prpria histria.

    Existem casos em que a documentao escrita, mais do que propor pro-blemas, choca-se ou mesmo desautoriza a verso da histria tida como ver-dadeira no ncleo familiar. Tal foi analisado por Chagas, quando verificou, no que toca ao testamento de Rosa Osrio Marques, uma tenso entre o empenho que as famlias demonstravam na procura do direito e a pos-svel frustrao das expectativas pelo que poderia ser revelado atravs da pesquisa. Existiu uma decepo quando o registro escrito, cuja autentici-dade foi colocada sob questo, revelou uma dimenso exgua para a terra doada.32 A autora demonstra, assim, que para a comunidade a dimenso

    31 Entrevista filmada com a senhora TERRA, Diva Incia Marques, Osrio, 12 mar. 2010 (LABHOI UFF).

    32 Sempre lembrando que o fundamento de direitos territoriais tnicos no se confunde com o do direito hereditrio civil.

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    da terra legada s adquiria sentido se dela pudessem tirar o sustento. As-sim, a palavra escrita passvel de dvida (Chagas, 2005, p.150-152). Os relatos orais no so passivos nem se anulam de forma acrtica diante de narrativas escritas. Desse ponto de vista, sustento que o oral dialoga, mas irredutvel ao escrito. Como assinala Ricur, A histria pode ampliar, completar, corrigir, e at mesmo refutar o testemunho da memria sobre o passado, mas no pode aboli-lo (Ricoeur, 2007, p.505).

    Foi o que se verificou, em minha pesquisa, no que toca atafona que Manoel Incio possua no Ramalhete. O fato que Aurora e Diva sustentam que ele era proprietrio de um engenho nessa localidade33, segundo contava sua av Felisberta. Ao mesmo tempo, um dos docu-mentos em seu poder d a entender que ele permanecera cuidando do mesmo, sem ser proprietrio. No pretendo confrontar as duas informa-es, j que o documento no datado e possvel que tanto o escrito quanto o oral tenham seu quinho de verdade.34

    Independentemente da verdade, inacessvel neste caso, a famlia nutre a convico de que o Ramalhete lhes pertence, pois Manoel Incio o perdeu ao morrer em um enfarte enquanto ali trabalhava. Seus filhos eram muito pequenos para tocar aquele empreendimento, tomado por estranhos. A senhora Aurora assegurou que os proprietrios da terra ali no duravam muito, na expectativa da chegada terra de seus verdadeiros donos, os des-cendentes de Manoel Incio Marques.35 Trata-se de verificar a reao diante da discordncia constatada entre o registrado por escrito e o lembrado.

    Em um primeiro momento, essa discordncia no foi reconhecida como tal. Pelo contrrio, na primeira vez em que mostrei para elas esse documento, ainda l nos idos de elaborao do laudo de Morro Alto, meu prestgio aumentou por ter encontrado o documento que pro-vava sua propriedade sobre o Ramalhete.

    33 Situada na comunidade negra de Morro Alto.34 Por exemplo, Manoel Incio pode ter adquirido o terreno do Ramalhete depois de ter traba-

    lhado durante anos, a ttulo da famlia senhorial, como outros camponeses negros o fizeram. Ver, WEIMER, 2011.

    35 Dirio de campo de Rodrigo de Azevedo Weimer. Dia 9 de janeiro de 2010 (LABHOI UFF).

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    No momento da leitura do documento, nove anos mais tarde, cada palavra foi lida e interpretada no sentido de dar uma sustentao escrita ao relato familiar. Por exemplo, no texto do documento, Ana Osrio Nunes dirigia a Manoel Incio a ressalva de que s esse engenho alm de ser dos rfos o nico a que no paga arrendamento. Confesso desconhecer de que rfos trata-se aqui. Do ponto de vista de Eva Incia Marques (tambm irm de Diva e Aurora)36, no momento em que li para ela e sua irm o documento, trata-se, de forma evidente, dos filhos que Manoel Incio deixou no momento de sua morte.

    Eva E dos rfos era dos filhos. Hein. Os rfos eram os filhos dele, n, do Manuel Incio. Rodrigo No sei, eu t perguntando.Eva Com certeza. Ele diz ali dos rfos. N? Como , esses.(...)Aurora As crianas eram pequenas quando ele morreu. Eva Sim, eram tudo rfo. Pai sei l do que. rfo uma pessoa que morre e deixa os filhos. . Ah , ele morreu e deixou decerto os filhos, o falecido pai, a falecida minha madrinha, e por a por diante, n? Era os rfos. [pausa prolongada] Eles eram de quantos, Doca [Aurora]?Aurora Oito. Guri era dois, o falecido papai e o falecido tio Ladislau.37

    A esperana de retomar a atafona do Ramalhete, e a ateno des-pertada por esse assunto foi to grande que os assuntos continuaram orbitando sobre o assunto durante a leitura de outros documentos, como o inventrio de seu av. Estranhou-se a ausncia da atafona do Rama-lhete entre os bens arrolados,38 mas o estranhamento no representou

    36 Eva nasceu em 1936. Irm caula de Aurora e Diva, tambm migrou para a cidade de Osrio, onde trabalhou como empregada domstica. Nunca se casou.

    37 Entrevista realizada com a senhora SILVA, Aurora Incia Marques da, senhor TERRA, Celso Rodrigues e a senhora MARQUES, Diva Incia, Osrio, 28 nov. 2001.

    38 O que, de forma alguma, no indica ser inverdica a propriedade de Manoel Incio sobre o terreno, tendo em vista a profuso, na regio, de propriedades tidas sem o registro no cartrio de imveis, mas mediante modalidades informais. BARCELLOS, CHAGAS, FERNANDES,

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    um problema, na medida em que o fluxo discursivo seguiu em paralelo sua leitura.

    Quando realizei a leitura dos documentos, tinha a expectativa de apresentar uma grande contribuio, ao devolver aos portadores o do-mnio sobre seu contedo. Sem pretender minimizar a importncia tica deste ato, aprendi outra coisa fundamental: o discurso falado pode ser fugidio em relao s pautas propostas pela leitura dos documentos escritos. Os fluxos narrativos, especialmente na entrevista realizada com as irms Aurora e Eva, representaram um dilogo entre as duas que, se no foi indiferente leitura de documentos por mim procedida, tam-bm no foi uma simples resposta aos estmulos dados pelo escrito. Os relatos suscitados geralmente ganhavam asas, porque estavam pau-tados por curiosidades e interesses no necessariamente coincidentes com o registrado no papel.

    A reao espontnea diante da leitura dos documentos foi situar os per-sonagens mencionados dentro da rede de relaes de parentesco, estabe-lecendo familiaridade entre a palavra escrita e as relaes sociais vividas. Talvez porque Diva considerasse que o contedo dos documentos fosse autoevidente, ao contrrio, para mim, dos nomes mencionados. Apenas em um segundo momento, e se estimulada para tal, Diva prestou-se a uma reflexo acerca do contedo das cartas. Ela respondeu aos termos da leitura do documento que falava da atafona de seu av, porm relatando o que estava ausente no documento complementando-o e estabelecendo um di-logo entre o escrito e o oral , em lugar de comentar o que estava presente.39

    A retribuio pelos documentos cedidos expressa na leitura dos mesmos implicou em nova troca: ao mesmo tempo em que eu ajudava a deci-frar os caracteres ilegveis presentes no documento, elas ajudavam-me identificando quem eram os personagens envolvidos, quem eram seus

    FUJIMOTO, MOREIRA, MLLER, VIANNA, WEIMER, 2004, p.135-141. O terreno no Es-praiado, por ele adquirido para seus filhos foge a essa regra, pois foi registrado em inventrio e em diversas entrevistas seus descendentes afirmaram-me que ele tinha escritura.

    39 Entrevista com a senhora TERRA, Diva Incia Marques, Osrio, 16 jan. 2010 (LABHOI UFF).

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    tios, avs, padrinhos que pagaram impostos, assinaram cartas e recibos. Elas no se comportaram como receptoras passivas da verdade docu-mental, mas apresentaram sua contribuio ativa para que eu pudesse interpret-los e produzir significado.

    A oposio entre o registro escrito e a memria oral acerca da atafona do Ramalhete veio tona quando Aurora me solicitou ajuda jurdica para que a famlia recuperasse o domnio sobre aquele terreno. Expli-quei que minha competncia profissional no me permitia prestar tal assistncia, mas passei-lhe o contato de servios de assistncia jurdica gratuita.40 Fui obrigado, ainda, a ponderar sobre as implicaes do pleito individual de uma rea compreendida dentro de um todo maior reivin-dicado coletivamente e a indicar que o documento de Ana Osrio Nunes apenas referia a presena de Manoel Incio no local, e no sua proprie-dade, o que poderia tornar o pleito mais difcil. Mesmo com esse porm, Aurora considerou a carta valiosa por comprovar a presena de seu av na regio.41 Sendo assim, o documento adquiria uma importncia e uma utilidade prticas, em lugar da pura e simples produo de presena.

    Entrevistei a senhora Aurora uma vez mais depois dessa ocasio. Ela foi enftica em afirmar que seu av adquiriu o terreno no Espraiado para seus filhos e a atafona do Ramalhete para si.42 H dvida, sim, em relao palavra escrita, mas essa dvida resultado de um dilogo: apenas quando colocada sob questo, a oralidade pde reinventar e re-afirmar seus termos. A verdade expressa na tradio oral no se deixou dobrar perante a verdade expressa na leitura da fonte escrita. Isso no quer dizer que no dialogue ou seja insensvel a ela. Se Aurora enfa-tiza e reafirma sua verso, em dilogo e em contraposio leitura

    40 At o momento em que escrevi este artigo, dona Aurora tinha desistido de encaminhar esse pleito, por questes monetrias possivelmente custos de ligaes telefnicas e deslocamento para Porto Alegre , no obstante a gratuidade da assessoria jurdica.

    41 Entrevista com a senhora SILVA, Aurora Incia Marques da e MARQUES, Eva Incia, Osrio, 9 jan. 2010. Dirio de campo de Rodrigo de Azevedo Weimer. Dia 9 de janeiro de 2010 (LABHOI UFF).

    42 Entrevista filmada com a senhora SILVA, Aurora Incia Marques da, Osrio, 13 mar. 2010 (LABHOI UFF).

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    alternativa proporcionada pelo papel escrito. Os documentos de sua bolsa foram engordados por outros que pesquisei, tais como as fotografias dos registros de batismo e da carta de alforria de seu av, e a transcrio do inventrio que eu levei. O dilogo entre acervos escritos e oralidade possibilitou a redao deste artigo: a histria, analisando criticamente tal relao dialgica atravs de uma posio de distanciamento, capaz de colocar-se em equidade em relao memria (Loriga, 2009, p.27).

    Como na epgrafe supra, elas possuem documentos at recentemente no decifrados que, se no contam a histria da famlia em seus detalhes mais triviais, podem ser decodificados e contribuir para a conversa entre uma memria veiculada pela oralidade e uma histria que se prope an-lise do registro escrito. No me proponho ao feito de Aureliano Babilnia, que, cem anos depois, decifrou os manuscritos de Melquades. To-somen-te, relato algumas concluses a que cheguei lendo documentos antigos e batendo papo, em contextos formais de entrevistas ou no, e tomando caf em Osrio com meus entrevistados, intrpretes de documentos.

    Palavras finais

    Amos Funkenstein, ao realizar sua reflexo acerca da dicotomia entre histria e memria, props o conceito intermdio de conscincia his-trica, visando expressar uma postura investigativa de um grupo so-cial em face do prprio passado (Funkenstein, 1989). Essa postura no necessariamente coincide com aquela de uma histria com pretenses cientficas, e no raro est eivada de mistificaes ou mesmo falsificaes. No obstante, trata-se de um mirar o seu passado e indagar-se a respeito dele, de acordo, evidente, com demandas prprias no coincidentes com aquelas do pesquisador acadmico.

    Ainda que Funkenstein tenha centrado sua anlise sobre os povos hebreu e grego propugnando que a sua conscincia histrica pas-sava pela liturgia, pela poesia e pela lei , acredita-se ser possvel extrapolar algumas de suas observaes para sociedades iletradas.43

    43 Peter Seixas, ao propor em seu livro uma reflexo sobre a conscincia histrica, admitiu-o,

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    Em estudo anterior (Weimer, 2013), demonstrou-se haver nas pr-ticas de nomeao e nas experincias de racializao e at mesmo na reunio de idosos que no apenas narravam, mas tambm pro-blematizavam seu passado algo mais do que uma reproduo do passado, mas sobretudo um questionamento crtico a respeito deste.

    Reflexes da mesma natureza podem ser realizadas a respeito das complexas e sutis relaes entre palavra escrita e oralidade. As teias que os integrantes da famlia estudada teceram, vinculando suas re-cordaes a uma palavra escrita inacessvel por si, contriburam para a produo de uma conscincia histrica, no trnsito entre o sacro e o prtico, entre a presena e o significado. Ora evocando a presena ancestral, ora buscando interpretar aquilo a que se tinha acesso, ora adivinhando os diferentes significados latentes, ora equilibrando-se entre mais de uma dessas opes, os integrantes do grupo estudado apropriaram-se de um passado muitas vezes doloroso a escravido ou o racismo e, a um s tempo, indagaram-no a partir de questes contemporneas e atravs dele conferiram sentidos ao presente.

    Lista de alguns documentos

    Alguns documentos constantes no acervo em posse de Aurora Incia Marques da Silva:

    Guias de pagamentos de impostos territoriais pela famlia nos anos de 1899, 1903, 1904, 1905, 1907, 1908, 1909, 1911, 1912, 1913, 1914, 1915, 1916, 1917, 1918, 1924, 1925, 1926, 1927, 1928, 1929, 1930, 1931, 1932, 1933, 1934, 1936, 1937, 1938, 1939, 1940 e 1941.Recibo de aquisio de terras a Manoel Osrio Marques por Manoel Incio (5/8/1890).

    como Funkenstein, como um conceito intermdio entre a histria e a memria. Assim sendo, para o autor, inexiste aquisio de conscincia histrica por parte de povos dela supos-tamente desprovidos. Ao propor uma leitura inclusiva dessa noo, rejeita a ideia de que seria um fenmeno especfico da modernidade. Seixas, 2004, p.9.

  • Rodrigo de Azevedo Weimer

    248 Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 55

    Carta de Saturnino Bernardo de Souza a Manoel Incio (16/4/1894). Carta de Felice Quirici a Manoel Incio (28/3/1903).Carta de Alexandre Barbosa a Manoel Incio (13/5/1903).Carta de Joo Silveira Machado a Manoel Incio (4/10/1905). Carta de Ignacio Ramo da Silva a D. Felisberta (23/4/1929). Carta de Tibrio Jos da Silva a Exma. Sra. Felisberta (13/3/1934).Carta de autoria e destinatrio desconhecidos (15/8/1947).Carta de Ana O. Nunes a Manoel Igncio (sem data).Carta de Rosalina Felisberta Incia a sua me (14/6/1937). Carta de Manoel Isabel a Manoel Igncio (sem data). Carta de Deolinda Antnia da Silva a senhora Felisberta (sem data). Carta de Rosalina Felisberta a seu compadre (15/1/1924). Carta de Ladislau Manoel a sua me e irmos (3/8/1924). Carta de Rosalina Felisberta a uma comadre (26/7/1925). Carta de Rosa Felisberta da Silva a sua me (26/10/1926). Carta de Rosa Felisberta a sua me (3/1/1930). Carta de autoria no-identificada para Felisberta Sibirina (20/4/1933). Carta de autoria e destinatrio desconhecidos (8/2/1934).Carta de Rosalina a Diodcio (6/1/1937). Carta de Rosalina Felisberta a sua me (6/1/1937). (No verso do docu-mento anterior)Carta de Rosalina Felisberta a um compadre (6/1/1936).Poema de Erclia Incia Marques para sua madrinha Anglica (sem data).Carta de Rosalina Felisberta Marques a sua me (21/5/1938).Carta de autoria no identificada [provavelmente Rosalina] a sua me (16/8/1944).Carta de Manoel Igncio a Manoel Isabel (sem data). Carta de Rosalina a sua me (3/11 de ano no especificado).

    Agradecimentos

    O autor agradece o financiamento do CNPq, da CAPES e da FAPERGS.

  • O que se fala e o que se escreve

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