o sistema político dos eua: implicações para suas políticas

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“[...] but suppose we were (as we might be) an influence, an idea, a thing intangible, invulnerable, without front or back, drifting about like a gas? Armies were like plants, immobile, firm-rooted, nourished through long stems to the head. We might be a vapour, blowing where we listed. Our kingdoms lay in each man’s mind; and as we wanted nothing material to live on, so we might offer nothing material to the killing.” 1 Introdução Este texto visa discutir características do sistema político nor- te-americano e valores enraizados na sociedade dos EUA que, ao longo do tempo, produziram fortes implicações para a atuação ex- terna deste país. Centrada nos interesses de longo prazo dos Estados Unidos da América, a discussão ressalta o modo como este país, ao 53 *Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovado para publicação em janeiro de 2006. **Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, n o 1, janeiro/junho 2006, pp. 53-100. O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas Externa e de Defesa* Antonio Jorge Ramalho da Rocha**

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Page 1: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

“[...] but suppose we were (as we might be) an influence,an idea, a thing intangible, invulnerable, without front orback, drifting about like a gas? Armies were like plants,immobile, firm-rooted, nourished through long stems tothe head. We might be a vapour, blowing where welisted. Our kingdoms lay in each man’s mind; and as wewanted nothing material to live on, so we might offernothing material to the killing.”1

Introdução

Este texto visa discutir características do sistema político nor-

te-americano e valores enraizados na sociedade dos EUA que, ao

longo do tempo, produziram fortes implicações para a atuação ex-

terna deste país. Centrada nos interesses de longo prazo dos Estados

Unidos da América, a discussão ressalta o modo como este país, ao

53

*Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovado para publicação em janeiro de 2006.**Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do Departamento deRelações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 53-100.

O Sistema Políticodos EUA: Implicaçõespara suas PolíticasExterna e de Defesa*Antonio Jorge Ramalho da Rocha**

Page 2: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

participar ativamente da construção da ordem e dos principais pro-

cessos políticos internacionais contemporâneos, projetou seus inte-

resses na arena internacional.

Ao difundirem no contexto internacional valores tipicamente carac-

terísticos da sociedade norte-americana, os EUA contribuíram – e

contribuem – para redefinir os termos que pautam a interação de

agentes no âmbito internacional. Reconfiguram-se, por assim dizer,

“as regras do jogo”. O ambiente global transformou-se em um espa-

ço mais favorável à concretização de práticas e relações sociais ou-

trora confinadas a territórios e populações historicamente marcados

pela ampla aceitação de valores democráticos e liberais2. Ao cabo,

normas e valores funcionam como instrumentos de projeção de in-

fluência no ambiente internacional.

O texto divide-se em duas partes, além de breves introdução e con-

clusão. A primeira parte apresenta o arcabouço conceitual a ser utili-

zado para analisar a influência de normas e valores sobre o comporta-

mento de agentes na esfera internacional e discute os processos por

meio dos quais os EUA nela inseririam normas e valores nor-

te-americanos. Refere-se, ainda, a marcantes transformações nas re-

lações internacionais contemporâneas, que resultaram, ao menos em

parte, da consolidação de padrões de relacionamento definidos no

contexto desse arcabouço normativo. A segunda parte examina valo-

res específicos da sociedade norte-americana e sua influência na

conformação de identidades e de interesses permanentes dos EUA,

tanto no que diz respeito à realização de suas potencialidades quanto

no que se refere à relação do país com outros Estados e sociedades.

Ao longo do texto, analisa-se, ainda, o modo como o governo nor-

te-americano buscou projetar valores no contexto internacional, vi-

sando construir um ambiente mais favorável à concretização de seus

objetivos.

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Agentes e Estruturas no

Contexto Internacional

Contemporâneo

Discursos sobre agentes e

estruturas na interdependência

Se existe um consenso entre os analistas das relações internacionaiscontemporâneas, é o entendimento de que a interdependência deEstados e sociedades no contexto internacional muito se ampliou aolongo dos últimos séculos. A dimensão e a profundidade deste pro-cesso, seus agentes principais, as forças que o promovem, suas impli-cações, tudo tem sido debatido à exaustão, havendo mesmo ensejadoo surgimento de um novo campo de estudo nas ciências humanas, odas Relações Internacionais.

Os termos por meio dos quais os analistas tentam conferir sentido aesse processo são muitos. Discursos normativos, declarações asserti-vas sobre como o mundo deve ser e sobre como os indivíduos devemse comportar, umas fundadas em convicções, outras em interesses,todas prenhes de intenções, explícitas ou não, de transformação darealidade. Assim, numerosos discursos ideológicos, religiosos ouapenas preconceituosos manifestam-se aprioristicamente favoráveisou contrários a esse complexo processo, que vulgarmente – ou nemtanto – se denomina “globalização”.

O texto de Huntington (1996) sobre o choque de civilizações relem-brou os analistas da necessidade de se considerarem as influênciasdeste tipo de discurso, por mais abstrato ou utópico, sobre a realidadepropriamente dita. Ao fazê-lo, reinseriu no debate, talvez não da me-lhor maneira, a consciência de que nenhuma avaliação profunda deprocessos sociais, especialmente na frágil sociedade internacional,pode desconsiderar o modo como estruturas normativas e axiomáti-cas interferem na formação de preferências e na produção de condi-ções de entendimento e espaços de negociação entre agentes sociais.

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Dessa maneira, contribuiu para que se revalorizassem explicaçõessociológicas das relações internacionais, abrindo espaço para apro-ximações construtivistas3.

De outro lado, há discursos científicos que também buscam interpre-tar, de forma rigorosa, esse processo de interdependência, suas ori-gens e suas implicações. Há autores que privilegiam explicações darealidade baseadas em causas econômicas; outros que enxergam naraiz do incremento da interdependência motivações políticas. Con-forme as presunções que se estabeleçam, obviamente, diferentes sis-temas conceituais serão utilizados para contar a história da intensifi-cação das relações internacionais nos últimos séculos. Parece haverconsenso, contudo, com relação à natureza multidimensional desseprocesso, de modo que convém utilizar mais de um sistema conceitu-al, de forma combinada, para conferir sentido a essa realidade tão di-fícil de se interpretar.

Uma maneira concatenada de empreender esse esforço consiste emorganizar a discussão em termos da interação de agentes e estruturas.Desde que se aceite a simultânea existência de diferentes estruturasno ambiente internacional4, e sua inter-relação, é possível analisar aextensão e a profundidade da interdependência que se observa nas in-terações de distintos agentes não apenas uns com os outros, mas de-les, coletivamente, com estruturas que nem sempre respeitam asfronteiras nacionais.

A discussão sobre agentes e estruturas não é, contudo, nova ou sim-ples5. Dela participam autores que concentram sua atenção nas inte-rações dos agentes, ressaltando que eles não agem no vácuo, mas in-termediados por um conjunto de estruturas que servem à projeção depoder em diferentes dimensões, da militar à tecnológica, da financei-ra à comercial6. De modo mais sutil, ainda com ênfase na mútua inte-ração de agentes, Nye, por exemplo, trabalha com a perspectiva de“poder brando”, visto como uma forma de projeção de valores desti-

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nada a permitir que o agente exerça influência pela via da atração,mais do que pela coerção7. Desse ângulo, os governos são vistoscomo agentes unitários e racionais, que buscam avançar seus interes-ses por meio da formação de agenda e estabelecimento de estruturasconducentes a beneficiar aqueles capazes de influenciar a definiçãodas posições de política externa do Estado (presumivelmente seusnacionais), em detrimento de outros agentes.

Participam também autores que se preocupam mais com a relaçãoentre agentes e estruturas, seja defendendo pontos de vista que afir-mam a possibilidade da governabilidade em diferentes áreas das re-lações internacionais sem a necessária constituição formal de um go-verno que exerça autoridade8, seja simplesmente identificando omodo como estruturas de idéias condicionam agendas, preferências,interesses e, em alguns casos, a própria identidade dos agentes(Wendt, 1987; 1999; Onuf, 1988).

As diferentes ênfases conferidas pelos analistas às dimensões da in-terdependência que se aprofunda entre governos e sociedades nãomudam, contudo, a complexidade do processo em si. Ao cabo, obser-va-se, de início, aprofundar-se a integração de mercados, das estrutu-ras produtivas e financeiras da economia global, engendrando o esta-belecimento de regras comuns para disciplinar o intercâmbio e osfluxos de bens e serviços, de ativos financeiros, de informações e depessoas; observa-se também, ato contínuo, o aumento do grau de in-terdependência na área de segurança, tradicionalmente reservada aosgovernos9.

No plano da economia política internacional, concretiza-se, em algu-ma medida, a previsão de Montesquieu: à proporção que se desenvol-ve o comércio internacional, amplia-se o custo político de realizarguerras, visto que não interessa a governo algum destruir a capacida-de produtiva de seu mercado consumidor ou de economias de outrospaíses que, como fornecedoras, se relacionem diretamente com seus

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nacionais. A interpenetração de mercados cria, assim, constrangi-mentos estruturais que tendem a fazer convergir os interesses dos go-vernos no plano interno e no plano internacional, reduzindo a proba-bilidade de ocorrência de conflitos armados10.

Ao fortalecer esse processo, emerge um conjunto de regimes interna-cionais que promovem a convergência de expectativas dos agentesem áreas específicas das relações internacionais. A homogeneizaçãode comportamentos contribui para consolidar estruturas produtivas ecomerciais, que se organizam em redes, movidas pela lógica de redu-ção de custos e de maximização de benefícios na alocação de recur-sos escassos, o que obviamente desconsidera as fronteiras políticas eimpõe aos governos constrangimentos para aderir à normativa inter-nacional (Krasner, 1983)11.

Esse fenômeno não deixa de produzir implicações políticas e sociais.Com efeito, de um lado, o livre fluxo de informações, bens e serviçospermite a utilização de agentes políticos e sociais domésticos por ou-tros governos, por meio ora de grupos de pressão, ora de redes produ-tivas e da possível manipulação da opinião pública. De outro lado, àmedida que os governos permitem que se amplie a participação deoutros agentes da sociedade em processos decisórios relevantes – eessa foi a tônica dos últimos dois séculos, especialmente pela via dademocratização nas relações políticas –, reduz-se a sua capacidadede decidir, autonomamente, sobre a realização de guerras.

O incremento da participação da sociedade nas decisões de políticaexterna de seus governos constitui fenômeno relativamente recente.Embora a Guerra do Vietnã seja por muitos considerada marco im-portante nesse processo, outros eventos também merecem destaque.De fato, já no início da Primeira Guerra Mundial, esse fenômeno re-cebeu a entusiástica adesão das populações européias à guerra “queporia fim a todas as guerras”; como é sabido, contudo, os desdobra-mentos da guerra e sua longa duração levaram as populações a desa-

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provar o conflito. A prevalecente leitura de que a Primeira Guerra re-sultou de acordos secretos mutuamente contraditórios, expressa naidéia de que a guerra seria muito importante para ser deixada a cargoapenas dos generais, e a decisão, ao seu final, de se criar uma institui-ção internacional destinada a proibir a guerra entre Estados e a tornarmais transparentes seus compromissos internacionais contribuírampara a difusão da idéia de que as sociedades não podiam permitir queos conflitos internacionais evoluíssem ao ponto de não-retorno.

Em outras palavras, tratava-se de evitar que se estabelecesse umacondição em que já não fosse possível resolver controvérsias pormeios pacíficos. Mas como fazê-lo? Como assegurar que os gover-nos não voltassem a realizar pactos que pudessem levar a um novoconflito de grandes proporções? A resposta parecia impor-se lógica,senão naturalmente: se o uso disciplinado da razão servira a produzirestimulantes resultados em tantas dimensões da vida humana, porque não o faria também no campo da política internacional? Afinal,em diversos países, a construção de instituições adequadas servira aorganizar formas menos violentas de intermediação de interesses ede solução de conflitos.

Nessas condições, a proposta de criação da Liga das Nações, emboracarregada de idealismo, veio a enraizar-se não apenas em uma cultu-ra fundacionista, mas também na clara convicção de que instituiçõesadequadas poderiam servir para construir ambientes políticos maisequilibrados.

Os Estados Unidos no

processo de organização

das relações internacionais

A proposta de criação da Liga das Nações, pelo presidente Wilson,em meio a um conjunto de pontos genuinamente realistas, não foi co-incidência: sua inspiração, fortemente marcada pela experiência nor-

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te-americana, veio ao encontro de um processo de ampliação da pre-sença dos EUA no cenário internacional – coroada, não é demaislembrar, pelo fim da Primeira Guerra Mundial. A idéia do constituci-onalismo, herdada de uma tradição do Direito Natural que Onuf(1998) denominou “republicanismo atlântico”, possibilitou que seconferisse personalidade jurídica a entes abstratos, que, uma vez re-conhecidos pelos demais como “pessoa”, habilitavam-se a assumircompromissos em nome de seus súditos12. A assunção de compro-missos, por sua vez, permitiu dar início a relações sociais, políticas eeconômicas que, afinal, serviram para consolidar a soberania dosEstados, ao conferir substância a suas interações.

Na Europa, esse artifício legal contribuiu para a consolidação do sis-tema westphaliano de Estados, amparado tanto nos interesses políti-cos dos soberanos de então – que tinham como pano de fundo a regu-lação de mercados em escalas compatíveis com as condições econô-micas da época –, quanto em fundamentos conceituais trabalhados,no plano da filosofia política, principalmente pelos contratualistas.No nascente âmbito internacional, refletiram sobre o assunto pensa-dores como Bodin, Vattel, Grotius e Kant. Obviamente, o benefíciodo mútuo reconhecimento da soberania nacional figurava fortementena maior liberdade dos soberanos para definir as regras do jogo paraos súditos e territórios reconhecidos como seus. Situações históricasespecíficas condicionaram a aceitação dos princípios de soberania eterritorialidade em graus e ritmos distintos, como ilustra a própriaconcessão de nacionalidade aos cidadãos baseada ora no local denascimento (jus soli), ora em laços sangüíneos (jus sanguinis)13.

Gradualmente, por meio de conceitos como o de territorialidade e so-berania, cindiram-se processos internos e internacionais, legitiman-do em textos legais a relação de cada governo com seus cidadãos e ade governos soberanos entre si. A Declaração de Independência dosEstados Unidos da América14 desempenhou, nesse contexto, papelrelevante. Por seu intermédio, em nome de valores abstratos de direi-

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to à vida, à liberdade e à busca da felicidade, além da prerrogativa decombater a opressão, e na condição de representante do povo das tre-ze colônias, um grupo de indivíduos desafiou a autoridade constituí-da, recorrendo a sofisticada argumentação para instituir um governoque deveria, a um só tempo, derivar sua legitimidade do consenti-mento da população e evitar usurpações de direitos – tipicamenteempreendidas por governos tiranos.

Embora a idéia de uma soberania parlamentar não fosse nova, comoressalta Teschke (2002), jamais se observara, historicamente, a estri-ta submissão do próprio Parlamento ao povo. Assim, pela primeiravez essas idéias ganharam concretude em uma situação real. Maisque isso, tratava-se de um contexto percebido como particularmenterico em condições para que se enraizassem instituições liberais, dadoque os oceanos protegiam indivíduos dispostos a viver “o sonhoamericano”. Nessas condições, fortaleceu-se a soberania popular e oprincípio da representação por meio da explícita constituição de umgoverno destinado a cumprir mandatos em benefício dos indiví-duos15. Principalmente, em essência, a proposta visava assegurar epromover liberdades individuais amparadas em instituições tipica-mente liberais. A Revolução Francesa, com sua ênfase na promoçãoda igualdade, muito contrastou com a independência dos EUA, acen-tuando-lhe as especificidades.

Na opinião dos Pais Fundadores, a constituição de uma entidade so-berana não podia prescindir de documentos que lhe registrassem aorigem e que lhe assegurassem condições de perpetuar os valores emnome dos quais se inaugurara, com sangue, sonhos e saberes, novaexperiência histórica. A novidade estava também, em alguma medi-da, na ausência de origem divina atribuída ao Estado: fazia falta, en-tão, outro mito fundador, espaço rapidamente ocupado pela idéia daconvergência de vontades dos cidadãos, logo simbolizada por umaespécie de contrato social. Fazia falta, com efeito, um registro desse

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pacto entre os cidadãos, relação que se buscou justificar pela cres-cente sofisticação do argumento contratualista: com Hobbes (1996),defendeu-se a necessidade de um artifício que constituísse a ordem epreservasse a vida; Locke (1952) deixou claro que não bastava umaordem qualquer, uma vez que os indivíduos careciam – presumia-seque haveriam sempre de carecer – de um ambiente no qual sua vida esua propriedade, fruto de seu trabalho sobre a natureza, estivessemprotegidas; Rousseau (1968), por fim, inseriu a noção de dinâmicasocial e, na linha do argumento de Maquiavel (1985) nos Discursos

sobre a Primeira Década de Tito Lívio, sugeriu formas de aperfeiço-amento das instituições.

Nesse contexto, a Declaração de Independência dos EUA não deixoumargem a questionamentos em relação à soberania dos indivíduos e ànecessidade de se constituir um arcabouço legal que os protegessedas prováveis tentativas de tiranização dos governantes. Os artigosfederalistas, em seguida, veicularam as discussões conceituais sobreas melhores instituições políticas, condensando experiências históri-cas e reflexões teóricas com vistas a produzir o arcabouço normativomais apto a promover a liberdade individual. A Constituição, porfim, perenizou, em seu preâmbulo, a vontade atribuída ao povo: “for-mar uma União mais perfeita, estabelecer Justiça, assegurar a tran-qüilidade doméstica, prover a defesa coletiva, promover o bem-estargeral e resguardar as bênçãos da Liberdade [Blessings of Liberty]para nós mesmos e para a posteridade”16.

Em outras palavras, a própria fundação dos EUA constituiu uma re-definição dos termos por meio dos quais os indivíduos se relaciona-vam com seus governos. Ao fazê-lo, inseriu entre os valores tidoscomo integradores da sociedade norte-americana a idéia de “destinomanifesto” da nação17. Ademais, conferiu à opinião pública papelrelevante na definição de prioridades políticas no âmbito interno e naesfera internacional.

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Essa transformação dos termos, que levou a discutir, publicamente, arelação entre súditos e soberanos, teve lugar em circunstâncias mar-cadas por peculiares dinâmicas políticas internacionais e domésti-cas: no plano internacional, prevalecia a independência dos Estadose a progressiva constituição do que Bull denominou “sociedade anár-quica”; no plano interno aos Estados, fortalecia-se, em várias socie-dades, a idéia de que era necessário proteger o indivíduo da concen-tração de poder pelo governo, em virtude da tendência dos governosde tiranizar os cidadãos. Estabelecer estruturas institucionais e nor-mativas eficazes afigurava-se, então, como instrumento adequadopara levar a efeito essa proteção, ao se restringir a capacidade dos go-vernos de utilizar a força (ou de ameaçar fazê-lo). Não por coincidên-cia, a experiência norte-americana tornou-se símbolo desse proces-so: afinal, a Declaração de Independência precedeu em mais de umadécada a Constituição norte-americana; esta, por sua vez, instituiu-seem meio a profundas desconfianças em relação à concentração depoder que se observaria em mãos de uma União que se criava com oobjetivo precípuo de defender a sociedade de ameaças externas.

Se as origens da maior participação da opinião pública em processosdecisórios internacionais podem ser localizadas na independêncianorte-americana e na Revolução Francesa, merece destaque a pro-gressiva organização das relações internacionais que teve lugar aolongo do século XIX, evidenciada no surgimento de organizações in-ternacionais e no uso de novas tecnologias de transportes e comuni-cações. Por sua vez, a aplicação pela Grã-Bretanha do conceito deguerra total, durante a Primeira Guerra Mundial, e suas implicaçõestransformaram as relações internacionais contemporâneas.

De início, os desenvolvimentos tecnológicos e sua aplicação marcial– parte dos quais se testou na Guerra Civil norte-americana – diluí-ram as fronteiras entre o campo de batalha e a cadeia de suprimentosnecessária para sustentar, com a contribuição de inovações logísti-cas, o esforço de guerra. Os conceitos de campo de batalha (front) e

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de retaguarda tiveram que ser revisitados e a capacidade econômicapassou a ser considerada tão relevante quanto a capacidade militarpropriamente dita, visto que esta não produziria todos os seus resul-tados sem o eficaz suporte daquela. Nessas condições, a populaçãocivil, outrora poupada pelos militares em nome de normas de comba-te ou, no mínimo, considerada alvo secundário, passou a ser extre-mamente relevante no esforço de guerra. Afinal, o corte de supri-mento, de munição ou de alimentos passou a ser mais diretamente re-lacionado ao objetivo militar, pouco importando que os funcionáriosdas indústrias fossem civis (menos ainda que fossem mulheres) in-corporados à força de trabalho em razão da inevitável escassez demão-de-obra causada pela guerra prolongada.

Como resultado, as populações mundo afora, cada vez mais bem in-formadas e educadas, tornaram-se parte importante dos conflitos in-ternacionais, passando a demandar também a capacidade de influen-ciar o curso dos acontecimentos que, afinal, diriam respeito a suaspróprias vidas. Guardadas as proporções, fenômeno semelhante ob-servou-se no campo do comércio e das finanças internacionais e nadefinição de políticas tendentes a promover a inserção das economi-as no mercado internacional18.

Se o século XIX viveu o debate sobre o melhor regime cambial a seradotado, finalmente vencido, incrementalmente, pela instalação deum regime internacional baseado no padrão-ouro, no século XX tevelugar a falência desse sistema de intermediação de trocas e a necessá-ria abertura de espaço em que pudessem operar agentes políticosquando da adoção de regimes cambiais específicos. Para não menci-onar as flutuações observadas ao longo dos vinte anos de crise quemarcaram o entreguerras, durante os quais os governos claramentecederam a interesses específicos de curto prazo que se entrechoca-vam em suas sociedades, o padrão ouro-dólar, adotado depois da Se-gunda Guerra Mundial, estabeleceu um sistema predominantementeliberal e relativamente previsível, marcado pela peculiaridade de as-

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segurar, sempre, a possibilidade de acomodação, pelos governos, deinteresses políticos específicos19.

Obviamente, a participação mais intensa das sociedades nos proces-sos decisórios dos governos não ocorreu – e não ocorre – de forma li-near e serena; tampouco resulta de concessões dos governos em res-posta a pacíficas reivindicações de suas populações. Demandas ine-rentes aos primeiros estágios da intensificação das relações econô-micas internacionais ensejaram, de início, intervenções dos Estadosnos mercados, seguidas de maior liberalização resultante da percep-ção, por parte destes mesmos Estados, de que seus interesses esta-riam mais bem atendidos pelo aproveitamento de vantagens compa-rativas. Surtos de crescimento levaram a uma integração de merca-dos que, se bem impulsionada por processos tecnológicos típicos daRevolução Industrial (tais como o telégrafo, a máquina a vapor e osnavios frigoríficos) e pela estabilidade dos valores relativos dos ati-vos financeiros proporcionada pelo padrão-ouro, só mostrou sua in-tensidade durante a crise de 1929.

Em meio à crise, as populações recorreram aos Estados, na esperançade que eles pudessem restabelecer condições capazes de proteger osinteresses coletivos. É certo que os movimentos nazifascista e comu-nista, na Europa, constituíram marcantes exemplos de centralizaçãodo poder, engendrando riscos às liberdades individuais, como ensi-nou Hayek (1994) no Caminho da Servidão; mas nos EUA o gover-no, inspirado em idéias keynesianas, também implementou políticastendentes a reduzir liberdades individuais. As políticas articuladaspelo New Deal e as tarifas comerciais dos anos 1930 ilustram a con-solidação de poder no âmbito do governo federal, cujo início costu-ma ser localizado pelos historiadores na promulgação da Constitui-ção, em 1787.

Entre os pontos de inflexão que caracterizaram o fortalecimento daUnião, em detrimento dos estados e das cidades, destacam-se a Guer-

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ra de Secessão e a era Roosevelt, cujas políticas, posteriormenteaprofundadas, em certos aspectos, por Johnson, passaram a requereruma redivisão da arrecadação tributária, em favor da União, destina-da a sustentar os programas federais.

Não obstante a concentração de poder nos Estados Nacionais, em de-trimento dos governos locais, observada em várias partes do mundodesde o fim da Primeira Guerra Mundial, a relação entre governantese governados transformou-se em favor destes. Em parte, esse fenô-meno contribuiu para que, organizada, a sociedade se valesse de no-vas condições de acesso a outros governos para perseguir seus inte-resses.

Outra dimensão desse processo foi motivada pelo estabelecimentode interesses privados que se organizaram através das fronteiras na-cionais, envolvendo parcelas crescentes das populações e das empre-sas aptas a garantir a arrecadação dos governos dos Estados Nacionais.Nessas codições, tais governos tenderam a produzir regras comunstanto para a organização de mercados unificados quanto para o com-bate a ameaças comuns. Entre as implicações dessa tendência, estevea alienação de parte da autonomia decisória dos governos em benefí-cio não apenas da criação de melhores condições de desenvolvimen-to para suas economias, mas também da ampliação das possibilida-des de responder, com eficácia, a ameaças oriundas de crimes trans-nacionais.

Em conseqüência, nunca antes se observou, na esfera internacional,tamanha fragmentação e complexidade nas relações de poder entreagentes políticos os mais diversos, que, ao interagir, engendram pro-cessos políticos que, contínua e dinamicamente, redefinem relaçõesde poder e de autoridade em várias áreas da vida internacional. Essafragmentação de poder decorre, em parte, das condições atuais docontexto internacional, em que agentes privados (não necessaria-mente interessados em lucro) lutam por suas demandas e requerem,

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de modo articulado, regras claras para disciplinar suas mútuas intera-ções20.

De outra parte, argumenta-se que a fragmentação de processos polí-ticos e a existência de múltiplos canais de acesso a núcleos de poderna arena internacional resultam da influência de normas e valoresnorte-americanos embutidos nas estruturas de regulação da ordemmundial. De alguma maneira, o papel central desempenhado pelosEUA ao longo do século XX terá contribuído para a consolidação deum ambiente regulatório marcado por instituições que permitem nu-merosas possibilidades de acesso a centros de poder, ora participan-do de instituições e de encontros sobre temas específicos, como seobservou na “década das conferências”, ora interferindo na agendapolítica internacional.

Nesse sentido, o ambiente internacional teria funcionado – e conti-nuaria a funcionar – como um veículo da influência dos EUA, já quenele se inserem os sistemas políticos de diversos Estados Nacionais.O cerne do argumento pode ser resumido da seguinte forma: os siste-mas nacionais necessariamente se relacionam com o ambiente exter-no, que, obviamente, constitui um sistema fechado; uma vez que neleprevalecem características da sociedade norte-americana, as trocasefetuadas entre os numerosos sistemas domésticos e o contexto inter-nacional terminam por promover maior homogeneização das rela-ções internacionais, diluindo idiossincrasias de cada comunidadepolítica – exceto as dos EUA, que se fazem presentes também na or-dem internacional.

No que concerne à economia política internacional, entre as melho-res análises da influência dos EUA sobre as estruturas internacionaisestá a de Strange (1989). De acordo com sua proposta de análise, opoder estrutural sobrepõe-se, como instrumento de influência sobreo comportamento de outros agentes, às tradicionais formas de pres-são, usualmente constituídas de estímulos positivos (promessas de

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benefícios) e negativos (ameaças), a que Olson deu o nome de incen-tivos seletivos. Para Strange (idem:168), “poder estrutural aproxi-ma-se da definição ampla (isto é, abrangente) de ‘regimes’ no debateque precedeu a coletânea de ensaios organizada por Krasner sobre otema. Em síntese, ela abrange costumes, usos e modos de operacio-nalização, em contraste com a definição mais restritiva que se referea acordos entre Estados e a instituições centradas nos Estados”.

Nesse contexto, ainda segundo Strange, a hegemonia norte-america-na revela-se no domínio de suas empresas sobre a economia global,na prevalência de suas técnicas administrativas, contábeis e de mar-keting21, na ampla difusão da cultura norte-americana pelo cinema,televisão e mídia, na enorme atração que seu sistema universitárioexerce sobre os melhores cérebros do mundo, enfim, na difusão,mundo afora, de práticas típicas da sociedade norte-americana.

Poder-se-ia acrescentar a esta enumeração a utilização das regras dasbolsas de valores norte-americanas como fundamento para as transa-ções internacionais e a absorção, por organizações internacionais, denormas cuja justificativa moral se fundamenta na cultura liberal,mais bem enraizada e desenvolvida nos EUA do que em qualquer ou-tra parte do mundo. Afinal, como se sabe, a semelhança entre opreâmbulo da Carta da Organização das Nações Unidas (We the peo-ples...) e a Declaração de Independência norte-americana não sedeve a uma coincidência. Em suma, para autores como Strange(idem:170)22, a presença norte-americana no mundo constitui novaforma de império, um império que já não requer definição territorial,visto que a autoridade “é exercida diretamente sobre o povo, não so-bre o território. Ela é exercida sobre banqueiros e executivos de em-presas, sobre investidores e poupadores em geral, sobre jornalistas eprofessores. Ela é também, obviamente, exercida sobre as mentes defuncionários dos governos aliados e associados, como ilustram as su-cessivas conferências de chefes de Estado”.

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Os anos de exercício do poder estrutural, especialmente do poderbrando, e de institucionalização de uma ordem internacional relati-vamente pluralista permitiram ampliar a presença dos EUA em prati-camente todas as partes do mundo, o que, a um tempo favoreceu aaceleração do desenvolvimento tecnológico e dele colheu frutos, es-pecialmente no que concerne à infra-estrutura de transportes e comu-nicações. Esse processo não reduziu, contudo, a capacidade do go-verno e da sociedade norte-americana de acumular recursos de poder(econômicos, culturais, tecnológicos, políticos e militares) suficien-tes para tornar sua liderança inquestionável no futuro previsível. Au-tores como Haas (2005) não apenas reconhecem o fenômeno, masdefendem a necessidade de os EUA aproveitarem essas condiçõespara concretizar, de forma permanente, sua liderança sobre uma so-ciedade marcada por instituições tendentes a preservar valores de li-berdade e democracia.

O fato de as estruturas sobre as quais se fundamentam os canais queservem para veicular as trocas internacionais não serem neutras, masfavorecerem a sociedade norte-americana (e/ou agentes nela forma-dos), contribui para que se observe crescente concentração de recur-sos nos EUA. As evidências estão no número dos registros de paten-tes, no generoso financiamento de déficits comerciais e públicos dosEUA, na crescente participação de empresas norte-americanas emáreas de fronteira tecnológica, na capacidade que sua sociedade pos-sui de polarizar, ora positiva, ora negativamente, as ações de gover-nos e de grupos organizados em todas as regiões do mundo.

Esse processo, contudo, também encerra custos para a sociedadenorte-americana. Por exemplo, os fluxos migratórios prevalecentesnos últimos anos vêm desequilibrando as proporções tradicionais degrupos étnicos e culturais na sociedade norte-americana, gerandotensões apenas parcialmente absorvidas pelo sistema político, comoilustrou o debate entre os candidatos às eleições majoritárias com apopulação de origem hispânica23. Além disso, observou-se o desen-

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volvimento de um novo tipo de imigrante, mais preocupado em ga-nhar dinheiro e retornar a sua terra de origem do que em realizar “osonho americano”. Não obstante essas tensões, fortemente acentua-das pelos acontecimentos de 11 de Setembro e, principalmente, pelareação do governo norte-americano, a projeção de interesses dosEUA no mundo vem se tornando não apenas mais profunda, mastambém mais complexa. Trata-se, com efeito, de uma espécie de in-fluência, um tipo de liderança que se constrói, de um lado, por meiode estruturas materiais, institucionais e normativas, capazes de esta-belecer regras para as interações internacionais que, embora negoci-adas e aceitas por todos, em larga medida privilegiam agentes já ha-bituados a atuar na sociedade norte-americana24.

Assim, não tem lugar propriamente uma imposição de interesses deum governo a outros, mas o estabelecimento de estruturas de gover-nança que, a exemplo de quaisquer outras, beneficiam alguns agentesem detrimento de outros, particularmente no que se refere a custos detransação25. Uma vez que se recoloca o problema em termos da rela-ção entre agentes e estruturas, nesse caso uma estrutura regulatóriadas relações comerciais, não se observa propriamente algo concretocontra o que possam lutar os que se sentem prejudicados no atualcontexto internacional. As condições que interessam ao governo e àsociedade norte-americana são definidas na forma de idéias (algu-mas embutidas em instituições de que a maioria dos governos é sig-natária, portanto responsável), alcançando um grau de intangibilida-de que lhes assegura melhores possibilidades de perpetuarem-se.

A anarquia própria ao sistema internacional contribui para que as re-lações de poder e de autoridade entre agentes internacionais se rede-finam continuamente, inclusive por meio do permanente questiona-mento das “regras do jogo” e de sua transformação. Assim como nasociedade norte-americana, no ambiente internacional prevalece umsistema político pluralista, relativamente aberto à participação de di-ferentes agentes dispostos a avançar seus interesses mediante efetiva

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participação na formulação de normas, na definição de agendas, noestabelecimento de instâncias recursais para as quais possam sertransferidos determinados temas sobre os quais não se consegue pro-duzir consenso.

Em resumo, na sociedade norte-americana e na esfera internacionalprevalecem instituições e normas que embutem formas de solução deconflitos fortemente associadas à cultura norte-americana; formasinclusive testadas ao longo da história dos EUA. Ao universalizaremum conjunto de idéias a respeito do modo como os agentes devem secomportar no plano político e das regras que devem servir a organizarum ambiente em progressiva integração, ao conferirem a agentes po-líticos dispersos geograficamente oportunidades de acesso a proces-sos decisórios internacionais, a sociedade e o governo nor-te-americanos exercem liderança sutil, mas não menos eficaz sobreprocessos sociais, políticos e econômicos no âmbito internacional.

Neste ambiente, idéias e valores tidos como universais (tais como oconceito de direitos humanos definidos em função dos indivíduos e arepresentação política por meio de partidos políticos em sistemaseleitorais)26 estruturam os processos políticos internacionais demodo a valorizar a capacidade de atuação de agentes isolados, osquais se relacionam com os Estados Nacionais por meio de cálculosde custos e benefícios em um ambiente marcado por regras que lhespermitem continuamente redefinir lealdades políticas em função deinteresses específicos, passíveis de serem contabilizados.

Em certo sentido, a “grande transformação” de que tratou Polanyi(1944) estende-se às relações internacionais: as instituições nor-te-americanas (desenhadas para proteger os indivíduos da tirania dosgovernos), que mais profundamente sedimentaram valores mercan-tis como instrumentos de intermediação de relações sociais, gradual-mente conformam as normas internacionais. Ao fazê-lo, defi-nem-lhes os valores principais e abrem espaço à evolução de proces-

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sos políticos que, contínua e dinamicamente, facultam a cada agentea possibilidade de alterar sua capacidade de interferir nos principaisprocessos internacionais27. Vejamos, então, de forma mais detida, aorigem e as características dos valores principais na sociedade nor-te-americana.

Valores no sistema político

norte-americano e sua

projeção na esfera

internacional

Nesta parte do texto, serão discutidos valores específicos da socieda-de e do sistema político norte-americano. Ao longo dos anos, essesvalores influenciaram fortemente a definição de interesses que, deforma permanente, fundamentaram a política externa dos EUA prati-camente desde o século XIX. Além da prevalência da idéia de destinomanifesto e da pragmática identificação de interesses nas relaçõescom outras nações, sobretudo no plano comercial, será discutida aidéia de fronteira em permanente expansão e, nesse contexto, a maiorimportância relativa dos indivíduos em seu relacionamento com ogoverno. Ao longo do texto, pretende-se aludir, ainda, à importânciaque tiveram esses valores para a construção da ordem internacionalcontemporânea.

O destino manifesto

A instituição do sistema político norte-americano deu-se com baseem ampla reflexão dos Pais Fundadores, cujas discussões públicas,em dia com a mais avançada produção no campo da filosofia políticada época, registraram preocupações com definir a identidade nacionale com estabelecer normas que perpetuassem os valores em nome dosquais se declarou a independência. Desde então, além dos documentoslegais, um conjunto de textos, entre os quais se destacam os Artigos

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Federalistas e discursos de presidentes como Washington, Jefferson eLincoln, influencia as decisões políticas nos Estados Unidos.

O famoso discurso de despedida de Washington28, por exemplo, re-vela clara consciência dos interesses de longo prazo dos EUA e danecessidade de bem conduzir suas relações desde o primeiro mo-mento. No que diz respeito aos objetivos a serem perseguidos na es-fera internacional, Washington sustentou a idéia de que deveria pre-valecer como regra o isolacionismo, temperado por bem escolhidasintervenções alhures, sempre que houvesse avaliação positiva decustos e benefícios. Principalmente, Washington sugeria a seus su-cessores que caberia evitar que se manifestassem, no seio da socieda-de norte-americana, preferências por países específicos, tais como asfacções que, favoráveis à França e à Grã-Bretanha (e em conflitoumas com as outras), em seu governo colocaram em risco a frágilUnião, tão duramente construída. Assim, segundo Washignton, paraque, fundada na religião e na moralidade, a “grande nação america-na” pudesse realizar o seu destino manitesto, isto é, “oferecer à hu-manidade o magnífico e novíssimo exemplo de um povo sempre gui-ado pelo sentido de justiça e benevolência [...] [N]ada é mais essenci-al do que evitar inveteradas antipatias permanentes contra naçõesparticulares, bem como de apegos apaixonados a outras; e, em seu lu-gar, devem ser cultivados apenas sentimentos de amizade para comtodas” (Washington, 1996).

A política externa dos EUA deveria guiar-se, pois, pelos interessesnacionais, “observando boa fé e justiça para com todas as nações”(idem) e definindo suas relações com base em análises racionais dosinteresses do país, visto que políticas influenciadas por sentimentosfacilmente criariam “a ilusão de [...] interesses comuns imaginários,onde não existem interesses reais” (idem). Estava claro que “a granderegra de conduta para nós com relação a nações estrangeiras consisteem estender nossas relações comerciais, de modo a ter com elas amenor conexão política possível” (idem). Envolver-se com a Europa,

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então, tenderia a trazer apenas prejuízos aos reais interesses nor-te-americanos: “Por que, ao entrelaçar nosso destino com o de qual-quer parte da Europa, comprometer nossa paz e prosperidade comprocessos políticos europeus marcados por ambição, rivalidade, in-teresses, humores ou caprichos?” (idem)

Embora alianças, desde que temporárias, pudessem ser necessáriaspara proteger os interesses nacionais em circunstâncias específicas,cabia tirar proveito de “nossa situação desapegada e distante [...] paraescolher paz ou guerra, tal como o nosso interesse, guiado pelo sensode justiça, deve aconselhar” (idem). Em síntese, tratava-se de “ga-nhar tempo para o nosso país estabelecer e tornar maduras suas jo-vens instituições, e progredir sem interrupções até o grau de força econsistência que é necessário para dar-lhe [...]. O comando de suaprópria fortuna” (idem).

O texto de Washington é emblemático porque explicita, de um lado, aintenção de projetar valores e interesses no sistema internacional, umclaro sentido de missão guiado por fortes convicções sobre o certo e oerrado, sobre ações e imagens positivas e negativas na esfera interna-cional. O discurso de George W. Bush em West Point, em junho de2002, cujos excertos permeiam a Estratégia de Segurança Nacionalem vigor, nada tem de novo, portanto. Sua linguagem explicitamentefundada em convicções sobre o “certo e o errado” apenas reafirma,com palavras, a disposição para continuar a agir em favor do cumpri-mento do destino manifesto da nação:

“A causa por que luta a nossa nação sempre foi mais ampla do que a sua de-fesa. Hoje, como sempre, nós lutamos por uma paz justa – uma paz que fa-voreça a liberdade. Nós defenderemos a paz contra as ameaças de terroristase tiranos. Nós preservaremos a paz ao construir boas relações com as gran-des potências. E nós estenderemos a paz ao encorajar sociedades livres eabertas em cada continente”29 (Bush, 2002).

É curiosa a semelhança entre a retórica norte-americana, que recolo-ca, em nome do interesse nacional e do destino manifesto, a necessi-

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dade de universalizar a democracia e as liberdades individuais, e aposição dos países europeus que se opuseram à intervenção nor-te-americana no Iraque. Afinal, por um lado, esses países basearamsua oposição no argumento de que a ação militar tenderia a produzirdesastre humanitário e fragilizaria as instituições internacionais pormeio das quais se vinha levando a cabo o mesmo processo de univer-salização de valores democráticos mundo afora. Por outro lado, osEUA não apenas foram o país que mais procurou fortalecer essas ins-tituições nas décadas subseqüentes à Segunda Guerra, mas tambémtentaram justificar sua ação em nome de resoluções anteriores doConselho de Segurança, fazendo uso de discursos fortemente marca-dos pela defesa da ordem multilateral30.

Ao cabo, fica claro que ambas as propostas visam induzir a transfor-mação de costumes e instituições (tradicionais em numerosos paí-ses) incompatíveis com valores democráticos e liberais. Ironicamen-te, políticas de difusão de valores democráticos e liberais são vistas,elas próprias, como incompatíveis com conceitos de democracia, oque alimenta, em países de cultura islâmica, resistências a esses valo-res e oposições aos EUA.

Nessas condições, observam-se tensões entre vários governos euro-peus e o governo norte-americano (e seus aliados). Freqüentementeatribuídas ao maior grau de unilateralismo associado à atual adminis-tração norte-americana, essas tensões têm elevado os custos de nego-ciações em processos políticos complexos e relevantes, sobretudoquando se negocia a necessária cooperação em assuntos relativos ànão-proliferação de armas de destruição em massa e às diversas di-mensões de combate ao terrorismo, entre as quais a lavagem de di-nheiro. Claramente, percebe-se a necessidade de a atual liderançanorte-americana buscar reaproximar-se de líderes de outras grandespotências: se parece ter sido fácil encontrar em Washington inspira-ção para discurso normativo, pode ser mais difícil buscar nele o senti-do de racionalidade necessário a evitar que as ações externas se dei-

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xem guiar por simpatias e antipatias, por convicções sobre interessesexternos que eventualmente são percebidos como norte-americanose que, em última instância, aparentemente têm servido apenas paraproduzir a oposição entre facções no seio da própria sociedade nor-te-americana.

As intervenções eventuais em outras partes do mundo foram maisfreqüentes no século XX, em contraste com o relativo isolacionismoque marcou os EUA durante o século XIX, quando prevalecia a opi-nião de que era preciso consolidar a União e produzir prosperidade.Como se sabe, isso implicou, entre outras decisões da sociedade nor-te-americana, a renúncia ao modelo de produção baseado nas gran-des propriedades, na produção agrícola extensiva e na escravidão,conforme brilhantemente analisado por Marx em artigos publicadosna época da Guerra de Secessão. Afinal, mais importante do que osargumentos morais em defesa da condição humana dos negros nor-te-americanos31, foi o fundamento econômico da guerra: subjacenteao confronto entre o Sul e o Norte, intensificava-se o conflito entremétodos de produção econômica contraditórios e o risco de que osdiferentes entendimentos sobre a melhor maneira de organizar a eco-nomia e a sociedade norte-americana levassem à secessão de umaUnião duramente promovida, como deixou entender Lincoln já emseu discurso de posse. De um lado, a escravidão; de outro, a cons-ciência de que era preciso assegurar a permanente expansão do mer-cado interno, dada a necessidade de crescimento da massa salarialsem a qual a industrialização não poderia prosseguir, sem a qual apromessa de prosperidade não se realizaria.

O resultado da Guerra de Secessão levou à redefinição da posição dosEUA no mundo. Uma redefinição que, na verdade, consolidou o con-traponto à posição relativamente isolacionista propugnada por Was-hington. Como bem observa Gaddis (2004) em seu mais recente li-vro, a resposta de John Quincy Adams ao ataque britânico à capitalnorte-americana que incendiou a Casa Branca, no início do século

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XIX, baseou-se em uma estratégia marcada pelo unilateralismo, pelabusca da hegemonia no plano regional e pela possibilidade de “ata-ques preventivos”. A própria expansão territorial foi fortemente in-fluenciada pela percepção de Adams de que cabia evitar que algo se-melhante ao que hoje se denominam “Estados falidos” utilizassemterritórios próximos às fronteiras norte-americanas para abrigar pos-síveis inimigos dos EUA, selvagens ou civilizados. Por essa razão,Adams pressionou a Espanha, durante o período em que ela contro-lou a Flórida, para que policiasse com eficácia seu território ou ce-desse ao governo norte-americano a província, já que isso lhe parecianecessário para assegurar os interesses nacionais norte-americanos.

O mesmo tipo de argumento seria utilizado, anos depois, por Theo-dore Roosevelt, William Taft e Woodrow Wilson em suas justificati-vas para intervenções na Venezuela, na República Dominicana, noHaiti, na Nicarágua e no México. Na mesma linha, seguiram os su-cessivos governos norte-americanos ao longo da Guerra Fria, ora emterras distantes, com a frágil “teoria do dominó” como argumentopara sustentar que era preciso conter o comunismo, ora no continen-te, por meio tanto de ações multilaterais no âmbito da Organizaçãodos Estados Americanos (OEA) quanto de iniciativas que, velada ouabertamente, implicavam imiscuir-se em assuntos políticos internosaos países situados em sua “área de influência”.

Em todos esses casos, o unilateralismo e a antecipação em relação aeventos cuja evolução apenas se podia presumir marcaram a políticaexterna norte-americana. Em todos eles, prevaleceu, na política ex-terna do país, a determinação de manter a preponderância em todasas dimensões de poder – tão criticada na atual estratégia de segurançanacional dos EUA –, em especial a militar. Em vez de apostar no fun-cionamento do equilíbrio de poder, tratou o governo norte-ame-ricano de combinar, ao longo da história, o isolacionismo, temperadopor pragmáticas relações comerciais com todas as nações, e a proje-ção de valores e instituições globais em conjunto com amplas inter-

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venções em momentos críticos. Além das alianças de guerra duranteos conflitos mundiais, a manifestação de uma supremacia inconteste,incorporada, nos dias que correm, na retórica que expõe a DoutrinaPowell e em ações tais como as duas guerras do Golfo.

Assim, além da decisiva participação nas duas guerras mundiais, su-cessivos governos dos EUA promoveram políticas externas maisagressivas, ora concentrando-se no hemisfério ocidental (Monroe,ainda no século XIX, e praticamente todos os governos do pós-Se-gunda Guerra, com variações na intensidade das intervenções), oraatuando em outras regiões do mundo. De sua parte, o governo norte-americano, republicano ou democrata, não se preocupa agora, e nãose preocupava no passado, em negar ou omitir esse interesse, definin-do como objetivos principais:

“[...] a sobrevivência dos Estados Unidos como uma nação livre e indepe-dente, com seus valores fundamentais intactos e suas instituições e povo se-guros. […] Os Estados Unidos buscam, sempre que possível de forma con-certada com seus aliados:

– deter qualquer agressão que possa ameaçar a segurança dos Estados Uni-dos e seus aliados e – no caso de falhar a distensão – repelir ou derrotar ata-ques militares e resolver conflitos em termos favoráveis para os EstadosUnidos, seus interesses e seus aliados;

– contra-arrestar efetivamente ameaças à segurança dos Estados Unidos,seus cidadãos e seus interesses, incluindo a ameaça do terrorismo interna-cional” (The White House, 1991).

Anos depois, documento análogo afirma:

“Este é um mundo em que distinções claras entre ameaças à segurança denossa nação oriundas do exterior de nossas fronteiras e desafios à nossa se-gurança originados dentro de nossos limites estão sendo misturados; emque a separação entre problemas internacionais e domésticos está se evapo-rando; e em que a linha entre política interna e política externa está se ero-dindo. [...] Nós não somos a polícia do mundo, mas, na condição de maiorpotência econômica e militar, e com a força de nossos valores democráticos,o engajamento dos EUA é indispensável para forjar relações políticas está-

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veis, para tornar o comércio mais livre e para avançar nossos interesses. [...]Nossa liderança deve enfatizar a diplomacia preventiva – por meios taiscomo o apoio à democracia, a assistência econômica, a presença militar noultramar, a interação entre militares norte-americanos e estrangeiros, e o en-volvimento em negociações multilaterais no Oriente Médio e em outraspartes do mundo – com vistas a contribuir para resolver problemas, reduzirtensões e esvaziar conflitos antes que eles se tornem crises. Essas medidasconstituem um sábio investimento em nossa segurança nacional porque elasoferecem a perspectiva de resolver problemas com o menor custo humano ematerial possível” (The White House, 1996).

Essa posição encontra, claro, sólidos precedentes. Em parte inspira-do em Mahan, em parte fundamentando suas ações em idéias próprias,Theodore Roosevelt, procurou transformar os EUA em agente deci-sivo na esfera internacional. De início, expandiu o poder naval nor-te-americano, engendrando o processo que transformou o país, empoucos anos, na maior potência naval do planeta, como se demons-trou na Primeira Guerra Mundial. Em seguida, perseguiu a políticade “Portas Abertas” na Ásia, especialmente na China. Em poucotempo, firmou importantes interesses econômicos e comerciais naregião. Ademais, mediou as negociações que puseram fim à guerraentre Rússia e Japão, cujas implicações se manisfestaram tanto naRevoução de 1917 quanto na redefinição do equilíbrio de poder naépoca, mediante a ascensão do Japão à condição de grande potência.Por fim, o famoso “Corolário Roosevelt” complementou, em termosconceituais, a Doutrina Monroe, indicando a percepção do governonorte-americano com relação a suas intenções no hemisfério e ser-vindo de inspiração ao que, na Guerra Fria, veio a ser definido como“esferas de influência”. Em outras palavras, como observam Witt-kopf e McCormick (2004) na introdução à excelente coletânea de ar-tigos sobre as fontes domésticas da política externa norte-americana,fatores culturais e institucionais contribuem, desde os primórdios daformação do país, para definir as linhas gerais de implementação dapolítica norte-americana. A seguir, um desses fatores será discutidode modo mais profundo.

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Fronteiras em expansão

As mudanças tecnológicas que transformaram o século XX, produ-zidas e desenvolvidas sobretudo – não por acaso – no dinâmico ambi-ente constituído pela sociedade e pela economia norte-americana,contribuíram para que se revisassem a natureza e o significado das re-lações de poder na esfera internacional. Em larga medida, esse pro-cesso foi responsável pelo resultado da Guerra Fria: a vitória dosEUA sobre a União Soviética no período que Gaddis chamou de“longa paz” foi causada tanto pela dimensão econômica e políticaquanto pela militar. Por seu turno, em grande medida, característicasda sociedade norte-americana, entre as quais cabe destacar a idéia defronteira em permanente expansão, contribuíram para que se desen-volvesse esse processo.

Nesse período, a Guerra do Vietnã constituiu evidência de que a defi-nição de interesses dos EUA no mundo e a condução de ações desti-nadas a concretizar esses interesses haviam se tornado processosbastante complexos. De um lado, a noção de segurança nacional jánão se construía com base exclusivamente na idéia de se garantir pro-teção ao território (fato que se agravou com o advento dos mísseis in-tercontinentais), abrindo espaço para que se identificassem interes-ses nacionais em todas as partes do globo. De outro lado, mesmo dis-tante geograficamente, pelas ondas do rádio e da televisão, a guerrafez-se presente nos lares norte-americanos, ensejando novo fortale-cimento da população em sua relação com o governo, até no que diziarespeito a temas de política externa.

A opinião pública norte-americana, que afinal levou seu governo acapitular diante da resistência vietnamita, viu-se ainda mais fortale-cida em sua capacidade de influenciar as decisões políticas depois darenúncia do presidente Richard Nixon. Em alguma medida, a idéiade uma fronteira em expansão, agora uma fronteira tecnológica, ser-viu de pano de fundo para essas mudanças. Como resultado, já que

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sempre se pode estender a fronteira, ganha força a percepção de umprocesso que funciona como uma espécie de jogo de soma variável epositiva, visto que, mesmo assimetricamente, todos poderão benefi-ciar-se dos frutos da expansão tecnológica.

A crescente consciência de que o conhecimento aplicado à produçãoexplica a forte expansão econômica e, pelo menos teoricamente, deque a capacidade de produzir bem-estar encontra seus limites na (in-finita?) criatividade humana, presente na obra de Locke (1952) e fi-nalmente demonstrada por Solow (2000), encontrou solo fértil na so-ciedade norte-americana. Com efeito, nela reuniram-se tradiçõesque explicam, em parte, seu dinâmico crescimento: sólidas institui-ções políticas, prolongada estabilidade econômica, razoáveis condi-ções de segurança e fortes expectativas de cumprimento de contratosuniram-se como fatores que, articulados, muito contribuíram para fa-vorecer inovações e investimentos de longo prazo. Baumol (2002)explica esse fenômeno de forma brilhante e sucinta.

Ademais, o espírito empreendedor típico da ética protestante, auxilia-do pela mentalidade de imigrante, facilitou a assunção de risco pelosagentes privados. Por sua vez, a permanente preocupação com melho-rias de infra-estrutura básica no país permitiu a mobilidade dos cida-dãos e a perfeita integração de mercados (entre os quais o mercado detrabalho), cujos dinamismo e inovação foram auxiliados por níveis deproteção tarifária historicamente baixos. Por fim, a competitividade eo fascínio exercido pelo ambiente acadêmico atraíram – e, a despeitodas duras regras de imigração estabelecidas no pós-11 de Setembro,continua a atrair – muitos dos melhores cérebros do mundo para osEUA, permitindo que lá se produza conhecimento de ponta.

Nessas condições, a fronteira que interessa se transforma substanti-vamente, migra para outras dimensões da realidade, mas permaneceem expansão. Não surpreende, portanto, que a crença na eficácia,efetividade e eficiência dos mecanismos de mercado como forma de

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solucionar conflitos se tenha firmado, ela própria, entre os valores dasociedade norte-americana.

No atual contexto internacional, as novas condições tecnológicas fa-vorecem a integração, em redes, de partes do território nor-te-americano às regiões mais dinâmicas do globo. O desafio, mundoafora, já não consiste em conquistar territórios e subjugar povos; me-nos ainda em recolher espólios de guerra ou extorquir antigos adver-sários. Trata-se, pelo contrário, de celebrar contratos em função denormas aceitas por todos e percebidas como universais; normasconstruídas, contudo, sobre valores mercantis.

Assim, consolida-se uma estrutura normativa de alcance global, aque voluntariamente aderem governos e outros agentes na esfera in-ternacional, quase todos sem ao menos questionar os valores embuti-dos nas normas desenhadas para uma sociedade atomizada, em queapenas a expectativa de cumprimento dos contratos fornece perspec-tiva de autocontenção do uso da força, que passa a funcionar comoprincipal instrumento de regulação eficaz dos níveis de violência.

Gradualmente, na esfera internacional, impõem-se estruturas nor-mativas cuja autoridade reside, a um tempo, no simples fato de seremnormas e na sua justificação fundamentada na adesão voluntária deindivíduos soberanos. De um lado, o simples fato de expressar umcomando universal, que prescreve ou proscreve um padrão de com-portamento, confere à lei uma posição de autoridade. A autoridadeda lei amplia-se à proporção que, por meio de um processo de mistifi-cação, os indivíduos que a ela se submetem presumem que esse co-mando tenha resultado de uma prévia relação de autoridade entreagentes políticos. O tema não é novo: Montaigne observou que ocumprimento da norma não se deve à presunção de sua justiça:

“[...] as leis conservam seu prestígio não por serem justas, mas porque sãoleis. Esse é o fundamento místico de sua autoridade; não têm outro. [...] Issolhes é muito proveitoso. Freqüentemente são feitas por tolos, mais freqüen-

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temente por pessoas que devido à aversão pela igualdade têm falta de eqüi-dade, porém sempre por homens – autores vãos e incertos” (Montaigne,2001, livro III, cap. XIII:434).

De outro lado, permanece o pacta sunt sevanda, a necessidade de seorganizarem as relações entre agentes livres e auto-interessados, cu-jas interações são difíceis e complexas, donde a necessidade de queos contratos se firmem na dupla presunção, quase sempre implícita,de que se está falando a verdade e de que os acordos serão honrados.A própria definição moral do que é certo passa a ser informada, as-sim, pelo cumprimento do compromisso voluntariamente estabele-cido por indivíduos livres32.

Nesse contexto, ganham relevo conceitos como o de “bem comum”,elaborado pela teoria da ação racional para explicitar o modo comocada integrante do grupo assente, mediante cálculos de custo e bene-fício, arcar com sua parcela de responsabilidade para que se atinja ointeresse coletivo. Obviamente, o “comportamento carona” é sempreuma possibilidade, razão pela qual cabe estabelecer estruturas de in-centivos seletivos adequadas a constranger cada integrante do grupoa alinhar seus interesses individuais aos da coletividade (Olson,1965; 1982; 2000). Não constitui coincidência, portanto, o fato deesse mecanismo de produção de ações coletivas ser mais estudado,conhecido e aplicado nos EUA do que em qualquer outra sociedade.Pouco a pouco, contudo, sua prática se torna universal. O amálgamadas relações sociais passa a definir-se, gradualmente, em função deinteresses individuais registrados em contratos, explícitos ou tácitos,capazes de fazer convergir as expectativas de agentes nas diversasáreas das relações internacionais33.

Se é verdade que a construção de uma ordem internacional fundadaem valores liberais constitui processo lento e contínuo (Ruggie,1982), não seria falso afirmar que houve pontos de inflexão nesseprocesso. Por exemplo, Pfaff (1993) argumenta que a nova ordem in-ternacional proposta por George Bush logo após o final da Guerra

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Fria se caracterizou por um reformismo institucionalista que “presu-me que uma assembléia de governos constitui, ao menos potencial-mente, uma forma de democracia mundial” (idem:205). Mas, já que

“[...] a vasta maioria dos membros das Nações Unidas é formada, na verda-de, por governos não-representativos, oligarquias vinculadas a classes ou ainteresses específicos, ditaduras ou, ainda, déspotas no sentido primeiro dapalavra, [...] ela se parece muito pouco com uma agência capaz de estabele-cer a democracia mundial e o respeito internacional pelos direitos huma-nos” (ibidem).

Ao considerar a Organização das Nações Unidas inapta a promover ademocratização das decisões internacionais, dado seu baixo grau delegitimidade democrática, Pfaff parece não se dar conta de que a pró-pria idéia de democratização por meio da representação de interessese posições políticas em instituições assemelhadas a assembléiasconstitui a extensão de um valor atlântico a outras culturas, nas quaisdistintas formas de representação de interesses – não raro fundadasem mitos de criação e em vinculações divinas – foram mais freqüen-tes ao longo da história. A criação racional de instituições políticasadequadas a mediar conflitos sociais sofreu influência mais forte daexperiência norte-americana do que de qualquer outra fonte. Namesma linha, sua dinâmica capacidade de adaptação também se vemtransferindo às instituições internacionais. Com efeito, como obser-va Scheffer (1989:1),

“[...] a exemplo da Constituição dos Estados Unidos, a Carta [das NaçõesUnidas] é um documento em permanente expansão que deve responder aum mundo em rápidas mudanças, em que o arranjo de segurança coletiva doimediato pós-Segunda Guerra Mundial entrou em colapso. Do ponto de vis-ta da escola dos aliados, as palavras genéricas da Carta devem ser lidas prag-maticamente à luz das circunstâncias em transformação em um mundo tur-bulento. Isso implica revisar o Direito Internacional de modo a torná-locompatível com os objetivos de política externa dos Estados Unidos e deseus aliados”.

Em outras palavras, de um lado, tem-se a forte presença dos EUA emtodos os processos decisórios relevantes no âmbito internacional –

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muitos dos quais têm lugar em instituições e por meio de regras cons-tituídas no pós-Segunda Guerra Mundial, sob os auspícios do Estadonorte-americano34. De outro lado, a difusão de práticas, valores e ins-tituições norte-americanas, que passou também a intermediar as in-terações de agentes políticos internacionais.

Uma vez que se ressalta a natureza universal das normas e a adesãovoluntária aos regimes internacionais – mas não seu inevitável viésaxiológico –, não se percebe a ordem internacional contemporâneapropriamente como uma imposição, sobretudo porque a relaçãoprincipal já não envolve apenas diferentes agentes, uns em perma-nente conflito e cooperação com os outros; a relação que fundamen-talmente define as estruturas de incentivos aos agentes – por conse-guinte, também suas agendas – tem lugar entre estruturas e agentes.Ocorre que, ao se submeterem coletivamente às estruturas vigentes,os agentes engendram processos que distribuem custos e benefíciosde forma assimétrica.

Não se trata, portanto, de uma “ordem justa”, por não serem justassuas normas; não se trata de uma ordem simples, pois não se identifi-ca claramente o modo como se exerce a dominação, como se influen-ciam as percepções e o comportamento de agentes específicos. Afi-nal, a influência se exerce por meio de idéias e valores, pela retóricadefesa da liberdade individual (ora referindo-se a Estados Nacionais,ora a seres humanos, conforme o nível de análise em que se constru-am os discursos) e pela promesssa de uma felicidade geral resultanteda soma das felicidades dos indivíduos atomizados – e não de laçosde solidariedade construídos em função de valores estranhos a cálcu-los de custo e benefício.

Não por acaso, a revolta diante do abismo entre expectativas e possi-bilidades nessa ordem predominantemente liberal, que efetivamenteproduz riqueza e desigualdade, volta-se também para os símbolosmais caros àqueles que são percebidos como os principais beneficiá-

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rios da “nova ordem mundial”. Nessas condições, bandeiras nor-te-americanas incendiadas em toda parte e ataques aos símbolos dopoder econômico e militar no 11 de Setembro; como resultado, pâni-co de novos ataques a cada data nacional e a perplexidade da classemédia norte-americana, que não consegue compreender a razão pelaqual, no mundo inteiro, retribui-se sua genuína solidariedade missio-nária, agora concretizada também em obras de fundações e empre-sas, com sentimentos crescentemente hostis aos EUA (Nye, 2004).Conseqüentemente, ainda, observa-se a silenciosa satisfação comque, em toda parte, há quem observe as dificuldades enfrentadas pe-los EUA no Iraque e em casa, em matéria de direitos civis, e o cres-cente chamado ao governo para fortalecer o multilateralismo indis-pensável à solução duradoura de seus principais problemas, nenhumdos quais se origina exclusivamente de fatores domésticos.

Afinal, em parte graças às peculiaridades do sistema político nor-te-americano, a intensa relação com os EUA produziu mudanças emvárias partes do mundo. Chettle (1995), por exemplo, argumentaque, ao longo dos anos, a dinâmica evolução do sistema político nor-te-americano

“[...] criou uma seqüência alternada de comportamentos do tipo ‘bom poli-cial – mau policial’que criou dificuldades não apenas para o relacionamen-to entre os EUA e seus oponentes, mas também se revelou profundamentedesestabilizadora para regimes ditatoriais. [...] [Assim,] porque não podiadar respostas de uma sociedade livre e poderosa, a única alternativa à dispo-sição dos déspotas consistia em isolar seu país de um contato com os Esta-dos Unidos ou tê-lo encapsulado pelos próprios Estados Unidos – em outraspalavras, transformar-se em algo como Cuba ou Coréia do Norte”(idem:4-6).

Para o autor, as distintas orientações de política externa em relação apaíses como África do Sul e União Soviética, resultantes da alternân-cia entre democratas e republicanos na Casa Branca e das mudançasde percepção da opinião pública sobre temas específicos, contribuí-

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ram para desestruturar as reações que os governos desses países en-saiavam esboçar às políticas norte-americanas.

Nessas condições, “a dialética da política externa norte-americana”(ibidem), fortemente influenciada pela defesa mais ou menos intensada idéia de liberdade individual, “é uma força muito poderosa, umatensão criativa que o sistema político norte-americano efetivamenteproduz” (ibidem). Ao longo do tempo, em relação à África do Sul, aalternância entre um engajamento construtivo e a imposição de san-ções contribuiu para fortalecer, no plano interno, os opositores dosgovernos autoritários, além de haver tornado pública a execração depráticas racistas, especialmente a partir dos anos 1970. Em sua rela-ção com a ex-União Soviética, por seu turno, o governo dos EUA al-ternou propostas de coexistência pacífica e fortes aumentos no orça-mento militar acompanhados de ameaças e de ambiciosos projetosde dissuasão. Por fim, “a estratégia dos Estados Unidos, como um re-sultado inconsciente de sua própria complexa natureza, ajudou a pro-duzir a desintegração desses dois sistemas de governo hostis, tornan-do possível uma mudança pacífica” (idem:18).

A instigante análise de Chettle não deixa de conferir maior relevân-cia ao comportamento do Estado, nesse caso considerado eficaz noque diz respeito à produção de resultados inesperados. Essa incons-tância no comportamento do governo decorre, em parte, do pluralis-mo de seu sistema político, preparado para preservar as fundamentaisliberdades de opinião, de associação e de acesso a processos decisó-rios relevantes. Sua projeção no exterior ocorre por meio da idéia defronteira, que continua norteando a atuação política do governo dosEUA, além de ser um valor subjacente na formação da sociedade nor-te-americana; em suma, um fator de identidade nacional.

Com efeito, o norte-americano-padrão tem sempre como valor a pos-sibilidade de expandir sua condição de vida, daí os EUA serem iden-tificados por antropólogos – e pelo senso comum – como uma terra

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de oportunidades. A natureza da fronteira, contudo, transformou-se.Já não se trata de um território a ocupar – embora em algumas cir-cunstâncias isso possa ser considerado algo necessário.

A idéia de fronteira concretiza-se hoje, de um lado, na conquista demercados, o que requer a homogeneização de normas e a aceitação,em diferentes jurisdições, dessas normas; de outro lado, a fronteira étambém tecnológica, e seu limite permanece em expansão: enquantohouver imaginação, é possível produzir novos conhecimentos, de-senvolver novas tecnologias, transformar a natureza em benefício dohomem, como defendeu Locke (1952) no Segundo Tratado, textoque influenciou fortemente as discussões dos Pais Fundadores. Paratanto, é preciso não só assegurar as liberdades individuais e o direitode propriedade como também criar condições para que os melhorescérebros possam radicar-se nos EUA ou, pelo menos, trabalhar emfunção de interesses que sejam convergentes com os norte-ame-ricanos.

Nos Estados Unidos, a expansão da fronteira deu-se, de início, pelaconquista do Oeste. À necessidade de ouro para atender à demandapor liquidez gerada pela revolução industrial, somaram-se as suces-sivas ondas de imigração e a percepção do governo de que a explora-ção da fronteira era um bom modo de promover a ocupação de seuterritório e sua eventual ampliação. Na prática, o papel da fronteiraserviu, historicamente, como uma espécie de válvula de escape parapressões políticas sobre o governo, pois os indivíduos tendem a assu-mir a responsabilidade pelo fracasso na obtenção de condições eco-nômicas mais satisfatórias. Na raiz de todo o processo, permanece aprofunda aceitação de valores igualitários, que enfatizam a autono-mia dos indivíduos (Wood, 1991).

Conclusão

A interdependência observada nas relações internacionais contem-porâneas caracteriza-se pela existência de vasos comunicantes entre

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agentes políticos internos e externos. Esses agentes, entre os quais seencontram os governos dos Estados Nacionais e os órgãos de suasburocracias, avançam seus interesses em ambientes regulados pornormas cujos efeitos não se restringem a esferas isoladas, seja a inter-na, seja a internacional. A definição das regras dos diferentes jogosem que se envolvem os agentes políticos – ela própria um processopolítico – requer dos agentes, no mínimo, a capacidade de compreen-der essa interpenetração de normas e valores; e, no máximo, a capa-cidade de atuar em diferentes arenas, de modo a, por exempo, buscarpor meio de processos tipicamente característicos de política externaatingir objetivos tradicionalmente concebidos como sendo de políti-ca doméstica35.

A depender do grau de abertura dos sistemas políticos a pressões e in-teresses específicos, agentes estrangeiros podem inserir em proces-sos decisórios domésticos suas demandas, que, se vierem a ser acei-tas pelos governos em vigor, passam a ser consideradas legítimas najurisdição em que pretendiam inserir-se ou até mesmo contempladaspelos orçamentos de que tencionavam participar.

Os EUA definiram, no pós-Segunda Guerra Mundial, estruturas re-gulatórias (algumas delas apoiadas por organizações internacionais)que embutem valores liberais, embora reservem espaço a eventuaisações dos governos, destinadas a conter pressões políticas internas.Ao longo desse período, observou-se a utilização da política externacomo instrumento de promoção de valores partidários, assim comode valores consensuais da sociedade norte-americana, o que contri-buiu para que, do exterior, se percebesse o governo dos EUA comopossuidor de vontades inconstantes.

Em contrapartida, verificou-se também a crescente presença de te-mas externos na política norte-americana, os quais ganham relevoem épocas eleitorais. Inevitavelmente, os partidos políticos buscamfortalecer sua identidade, veicular valores com os quais se identifi-

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cam, visando, internamente, aumentar a coesão de seus quadros e,em sua relação com a sociedade, conquistar votos.

Constata-se, nesse contexto, mudança na intensidade das influênciasque fatores externos podem exercer sobre processos políticos tipica-mente domésticos, mesmo nos EUA. É óbvio que tais influênciastêm lugar permanentemente, por meio de grupos de pressão, da orga-nização de comitês de eleitores, da participação em debates capazesde influenciar a opinião pública, dos próprios incentivos embutidosnas normas que disciplinam processos políticos mundo afora. Cons-tata-se também, ato contínuo, a elevação da influência que dinâmicasinternas, especialmente em países como os EUA, exercem sobre pro-cessos políticos internacionais.

Como se argumentou aqui, valores, práticas e instituições tipicamen-te norte-americanas podem ser identificadas nas normas e institui-ções internacionais, como resultado não apenas do relevante papeldesempenhado pelo país nas últimas décadas, mas também de suapolítica externa, empenhada tanto em alcançar seus interesses espe-cíficos quanto em contribuir para realizar o destino manifesto da na-ção. As contradições inerentes ao sistema político dos EUA e a ênfa-se na construção de um arcabouço institucional que protegesse os in-divíduos, de par com a importância conferida à idéia de fronteira empermanente expansão, contribuíram para fortalecer agentes privadosmundo afora, a um tempo tornando os processos políticos internacio-nais mais parecidos com os norte-americanos e trazendo temas ou-trora estranhos à sociedade norte-americana para o debate interno.

O resultado do processo foi sintetizado pelo escritor Gore Vidal(apud Strange, 1989:1): “O império norte-americano é uma das in-venções mais bem-sucedidas da História; e é ainda mais notável por-que ninguém se dá conta de que ele está por toda parte”.

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Notas

1. A citação indica a essência da estratégia estabelecida por Lawrence paracombater alemães e turcos, fortemente superiores, na península árabe (Lawren-ce, 1991:192).

2. Cabe lembrar que este processo se aprofundou a partir de fins dos anos 1970e início dos anos 1980, quando a chamada “revolução liberal” de Thatcher e Re-agan restabeleceu as condições de produtividade na economia mundial ao radi-calizar instituições liberais nesses países, contribuindo para fortalecer o papelda democracia como forma de organização política e o liberalismo como norteda organização de esforços produtivos mundo afora. Ao cabo, o processo contri-buiu não apenas para encerrar a Guerra Fria, mas também para acelerar o ritmodo processo de interdependência em âmbito global. A melhor análise do proces-so continua sendo a de Fukuyama (1992).

3. Embora o debate seja antigo (Hoffmann, 1959; Carr, 1964) e estivesse emcurso, mantinha-se restrito a estudiosos do Direito Internacional e de áreas es-pecíficas da análise das relações internacionais. Boa síntese e instigante argu-mento aparecem, por exemplo, em Kratochwill (1989).

4. Estruturas materiais e intangíveis; estruturas políticas, econômicas e sociais;estruturas de idéias, de normas e valores mais ou menos compartilhados por in-divíduos dispersos geograficamente, com múlltiplas lealdades políticas. VerWendt (1987) e Onuf (1998).

5. A primeira proposta de tratamento sistemático do tema surgiu a partir dadiscussão de Singer (1961) a respeito de níveis de análise.

6. Ver, por exemplo, Strange (1988). De outro ponto de vista, Milner (1997).

7. Ver Nye (1990; 2002). Essa preocupação tampouco é nova: Carr (1964)destacou a necessidade de se considerar o “poder sobre as idéias” como impor-tante instrumento de pressão na política internacional.

8. A discussão encontra-se em Rosow et alii (1994) e Rosenau (1997). Por ou-tro prisma, Keohane (1984a; 1984b).

9. Evidências empíricas deste processo abundam: dos números do comérciointernacional (não obstante a redução de fluxos observada entre fins da PrimeiraGuerra Mundial e o fato de Bretton Woods só ter funcionado plenamente nosanos 1960) à mundialização das estruturas produtivas; da homogeneização depadrões de consumo à circulação de informações em tempo real; da unificaçãodo sistema financeiro internacional à efetiva integração de redes de tráfico de

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drogas, armas e seres humanos... Em toda parte se constata o aprofundamentoda interdependência das sociedades e Estados e o crescimento da demanda peladefinição de regras globais para um mundo progressivamente integrado. Umaimplicação desse processo sobre a qual pouco se reflete é a demanda no sentidode se redefinir o próprio conceito de segurança, mediante, por exemplo, a asso-ciação da idéia de segurança à permanência de estruturas regulatórias (seguran-ça jurídica) ou à provisão de condições mínimas de bem-estar das populações(segurança humana).

10. Não por acaso, os documentos que resumem a estratégia de segurança na-cional dos EUA mencionam a necessidade de se promover a integração de mer-cados e a consolidação de democracias mundo afora, como forma de avançar osinteresses norte-americanos e de reafirmar sua liderança. Para mencionar ape-nas os principais textos, ver National Security Strategy (1991; 1996; 2002), dis-poníveis em <http://www.whitehouse.gov/>.

11. A respeito de redes, ver Castells (1996).

12. O primeiro autor a formular a hipótese impiíssima, então tida como absur-da por indicar a prescindibilidade de Deus na formação de um Direito das gen-tes, foi Grotius (2001), em De Jure Belli ac Pacis.

13. Neste exemplo, como em outros casos de Direito Internacional Privado, aadoção de um ou outro padrão pelas nascentes soberanias foi fortemente condi-cionada pelo grau de influência que sobre seus sistemas jurídicos exercia o Di-reito Romano tradicional.

14. Documento disponível em <http://www.archives.gov/national-archives-experience/charters/declaration.html>.

15. Via-se a experiência norte-americana não apenas como a primeira tentati-va de se implementar, em uma situação real, as idéias republicanas de um gover-no submetido aos cidadãos; nela, viam-se condições favoráveis a que se enrai-zassem nesse novo Estado instituições liberais: terra rica, proteção dos oceanose indivíduos dispostos a arriscar-se, já que, em sua maioria, fugiam de guerrasreligiosas e opressões políticas.

16. Ver Constituição dos Estados Unidos da América, disponível em<http://www.archives.gov/national-archives-experience/charters/constituti-on.html>.

17. O sentido de missão civilizadora (que ecoa tanto as motivações religiosasdos primeiros colonizadores quanto as noções racistas de “ônus do homembranco”, já observadas no início da fase mercantilista da colonização) marcariaa atuação externa dos EUA a partir de então, quer via políticas governamentais,

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quer por meio de iniciativas genuinamente sociais, entre as quais se destacaram– e se destacam – missões religiosas e obras assistenciais e educacionais de em-presas e fundações. Esse aspecto da inserção internacional dos EUA, de quevoltarei a tratar mais adiante, é bem resumido, por exemplo, por Ferreira (2000).

18. Boa síntese da evolução do sistema financeiro internacional encontra-seem Eichengreen (1996).

19. A respeito do Sistema de Bretton Woods e sua característica de prevalên-cia do liberalismo temperada por espaços para a absorção de pressões políticasespecíficas, ver Ruggie (1982).

20. Em sua instigante análise, Rosenau (1990; 1997) caracterizou o atual con-texto internacional como uma espécie de bifurcação de processos oriundos de“dois mundos”: em um deles, prevaleceriam as tradicionais relações internacio-nais, marcadamente influenciadas por agentes “dotados de soberania”; no ou-tro, agentes destituídos de soberania, mas nem por isso menos capazes de esta-belecer relações de autoridade com outros, seriam os principais responsáveispor iniciar processos e, dessa maneira, condicionar a agenda internacional.

21. A própria ausência de tradução para outros idiomas do conceito em inglêspode ser vista como evidência dessa dominação.

22. Suas idéias foram inspiradoras, mas podem ser mais bem desenvolvidascom o auxílio de argumentos teóricos como os de Nye, Onuf e Wendt, posterio-res a suas intuições.

23. Para não mencionar a mais recente polêmica inaugurada por Huntington(2004).

24. Dois exemplos saltam aos olhos, um no setor privado, outro envolvendoEstados Nacionais. De um lado, a necessária adoção, por empresas transnacio-nais de todas as origens, de padrões contábeis definidos em função do sistemanorte-americano implica vultosos custos operacionais; sem isso, contudo, seusbalanços não são levados em conta por investidores e sua condição passa a serconsiderada pouco transparente, fazendo com que suas ações não sejam negoci-adas em bolsas; por conseguinte, sua presença em mercados globais torna-se in-viável. No que concerne aos Estados, a definição das regras do comércio inter-nacional e os mecanismos de solução de controvérsias na Organização Mundialdo Comércio (OMC), claramente inspirados no Common Law, funcionamcomo uma espécie de extensão, aos países-membros da OMC, de processos earcabouço regulatório tipicamente característicos do sistema político nor-te-americano, inclusive no que diz respeito à possibilidade de se veicularempropostas de novas regras e interpretações por meio de ações de lobby.

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25. Isso não significa que essas estruturas não contribuam para reduzir custosde transação e assimetrias de informação, como demonstra o argumento neoli-beral institucionalista – ver, por exemplo, Keohane (1984a; 1984b) e Keohane eNye (2003). Entretanto, os custos de adequação a essas estruturas são diferenci-ados conforme os agentes, sendo que, na ordem internacional contemporânea,os privilegiados são os que já trabalham sob os padrões vigentes na sociedadenorte-americana.

26. Valores que, segundo Tocqueville (1977:540), permitiram aos habitantesda América instituir uma “sociedade nova”, em que “os bens e os males se repar-tem com razoável igualdade no mundo”.

27. Para outro prisma de análise, ver Grossi (2004).

28. Disponível em <http://www.yale.edu/lawweb/avalon/washing.htm>.

29. Embora a linguagem faça referência a “grandes potências”, em contrastecom a visão mais universalista de Washington (o que em parte retrata as diferen-ças entre a posição dos EUA daquela época e de agora), o crucial é a conscienteprojeção de valores nas relações com outras culturas, sempre fundada na con-vicção – não necessariamente correta – de que, ao fazê-lo, os EUA têm a seulado a justiça e a moralidade.

30. Curiosamente, embora o governo dos EUA tenha sido acusado de, pormeio da operação militar no Iraque, haver deslegitimado a Organização das Na-ções Unidas, desde o primeiro momento ele não apenas justificou sua ação combase na necessidade de fazer cumprir resoluções anteriores do mesmo Conselhode Segurança, como também planejou o ingresso de missão de paz imediata-mente depois das operações militares mais intensas. A incisiva postura diplo-mática dos neoconservadores que assessoram o presidente Bush, contudo, foipercebida por analistas e governantes como atitude arrogante, descompromis-sada com as instituições internacionais e mesmo com valores outrora caros aospróprios norte-americanos. Contribuiu, assim, para opor parte da opinião públi-ca internacional – notadamente na Europa – e muitos governos à decisão de in-tervir no Iraque, assim como para desgastar a imagem dos EUA na esfera inter-nacional.

31. Na verdade, um problema apenas parcialmente resolvido a partir dos anos1960, com os movimentos pelos direitos civis, inspirados pelo sonho de MartinLuther King, com as decisões da Suprema Corte e com o início de políticas deação afirmativa.

32. Ver Onuf (1989). Filosoficamente, o substrato da ordem enraiza-se, é cla-ro, em Locke.

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33. Não surpreende, portanto, o surgimento de extensa literatura sobre regi-mes internacionais, a começar pelo já clássico texto de Krasner (1983).

34. Para não mencionar o deliberado uso de seu “poder brando”, pela veicula-ção de mídia e pela oferta de bolsas de estudo, para proporcionar às elites domundo inteiro uma formação informada sobre e, na medida do possível, simpá-tica à cultura norte-americana. Sobre o declínio dessa capacidade, ver Nye(1990; 2002; 2004).

35. A esse respeito, ver Putnam (1988) e Milner (1997).

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Resumo

O Sistema Político dos EUA:Implicações para suas PolíticasExterna e de Defesa

O artigo discute a condição e o grau de interdependência prevalecente noatual contexto internacional e analisa, por diferentes perspectivas teóricas,suas origens e evolução recente. Ao argumentar que os EUA exercem forteinfluência na redefinição das “regras do jogo” no plano internacional, exa-mina as bases institucionais e culturais em que se fundamenta a política ex-terna norte-americana. Por fim, avalia a extensão em que os EUA utilizamnormas e valores como instrumentos de projeção de sua influência no ambi-ente internacional contemporâneo.

Palavras-chave: Estados Unidos – Política Externa Norte-americana –Interdependência – Normas Internacionais – Regimes Internacionais

Abstract

Influences of theAmerican Political System on USForeign and Defense Policies

This article examines, from different theoretical perspectives, thecharacteristics and the degree of interdependence that prevail in currentinternational relations. It argues that the US plays a key role in redefiningthe “rules of the game” in the international realm, while examining thecultural and institutional basis on which American foreign policy is rooted.Finally, it evaluates the extent in which the US government uses norms andvalues as instruments to project its influence in current internationalrelations.

Key words: United States – American Foreign Policy – Interdependence– International Law – International Regimes

Antonio Jorge Ramalho da Rocha

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Introdução

Este artigo objetiva analisar a relação entre as disciplinas de Rela-ções Internacionais1 e Direito Internacional2 em perspectiva históri-ca, com o intuito de melhor interpretar a reaproximação observadaentre as mesmas ao final da Guerra Fria. Como afirmou FriedrichKratochwil (2001:15):

“Precisamente porque a distinção de Carr entre ‘realismo’e ‘idealis-mo’tem logrado tanto sucesso em servir de suporte a certos compro-missos substantivos, ela estabeleceu as bases para que ‘realismo’ e‘legalismo’ informassem Relações Internacionais e Direito Interna-cional no que se refere às suas próprias compreensões enquanto dis-

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* Artigo baseado em dissertação de Mestrado homônima, aprovada pelo Instituto de Relações Internacio-nais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) em março de 2005.**Artigo recebido em dezembro de 2005 e aprovado para publicação em janeiro de 2006.***Mestre em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio e professor do IRI/PUC-Rio.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 101-166.

Dom QuixoteReencontra SanchoPança – RelaçõesInternacionais eDireito Internacionalantes, durante e depoisda Guerra Fria* **Igor Abdalla Medina de Souza***

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ciplinas. Desconstruir esta história disciplinar é, portanto, um dosprimeiros passos na direção de uma análise teórica mais frutífera dapolítica internacional e do Direito Internacional”.

A análise em perspectiva histórica é necessária para evitar que o estu-do da reaproximação observada entre Relações Internacionais e Di-reito Internacional no pós-Guerra Fria seja um mero subproduto es-tigmatizado das concepções mais arraigadas entre os teóricos da po-lítica internacional, entre elas, principalmente, a divisão da literaturade Relações Internacionais entre as correntes “realista” e “idealista”.

Os personagens criados por Miguel de Cervantes são metáforas querepresentam a forma como as disciplinas de Relações Internacionaise Direito Internacional são concebidas na historiografia dos estudosque têm por objeto o ambiente internacional. Desde o “PrimeiroGrande Debate” da disciplina de Relações Internacionais, as alcu-nhas de “idealista” e “realista” acompanham, respectivamente, asdisciplinas do Direito Internacional e de Relações Internacionais.

Nesses termos, o idealismo característico de Dom Quixote represen-ta o Direito Internacional, mais particularmente a interpretação dadaà sua vertente liberal, enquanto o pragmatismo de Sancho Pança serelaciona à concepção convencional do realismo na disciplina de Re-lações Internacionais. Como aqueles dois personagens, RelaçõesInternacionais e Direito Internacional opõem-se e complemen-tam-se em um típico movimento dialético. Assim como Miguel deCervantes utiliza esses dois personagens para desmistificar as anti-gas histórias medievais de cavaleiros, o estudo da relação entre Rela-ções Internacionais e Direito Internacional serve de mote para a des-mistificação e a revisão crítica da historiografia de Relações Interna-cionais.

O termo reaproximação pressupõe logicamente um período inicialde aproximação seguido de um período de afastamento. Nesse senti-do, a proximidade inicial remontaria ao período de formação das

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duas disciplinas, no final do século XIX e início do século XX, esten-dendo-se até o colapso da Liga das Nações e a eclosão da SegundaGrande Guerra. O afastamento corresponde ao período da GuerraFria, quando houve um distanciamento entre Relações Internacionaise Direito Internacional. Finalmente, após o término do período emque a bipolaridade foi a tônica da política internacional, as duas dis-ciplinas engendraram um movimento de reaproximação.

A reaproximação entre Relações Internacionais e Direito Internacio-nal será analisada com base em três teorias, criadas a partir da cola-boração entre teóricos da política internacional e juristas internacio-nais: institucionalismo, liberalismo e construtivismo. Argumenta-seque há um diálogo de crescente profundidade na ordem em que estasteorias são apresentadas. Não se argumenta que estas três teorias se-guem uma ordem cronológica, mas sim que, tomadas em separado ena ordem apresentada, representam um diálogo cada vez mais pro-fundo entre os teóricos das duas disciplinas. Não há nesta hipóteseuma noção teleológica de progresso no tempo.

O restante do artigo organiza-se da forma que se segue. A segundaparte analisa o período inicial de convergência das disciplinas emtorno das premissas liberais. Abordando-se, em primeiro lugar, o pe-ríodo de criação das disciplinas, faz-se uma revisão do liberalismoem Relações Internacionais e interpreta-se criticamente o “PrimeiroGrande Debate” desta disciplina. A terceira parte concentra-se sobreo afastamento entre Relações Internacionais e Direito Internacional.De início, expõe-se a visão cética desenvolvida no campo do DireitoInternacional, passando-se à articulação entre esse ceticismo e a cria-ção do realismo na disciplina de Relações Internacionais; posterior-mente, aborda-se a relativização da proposta realista, que a fez cami-nhar na direção da Escola Inglesa de Relações Internacionais; em se-guida, expõe-se o ápice do afastamento entre as disciplinas, resulta-do da confluência entre o behaviorismo no estudo da política interna-cional e a “decadência” do Direito Internacional. Na quarta seção,

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discorre-se sobre a reaproximação observada após o final da GuerraFria, sendo analisadas as teorias institucionalista, liberal e construti-vista. Finalmente, conclui-se o artigo, apresentando prospectos paraas disciplinas neste início do século XXI.

O Início das Disciplinas de

Relações Internacionais e

Direito Internacional – A

Proximidade Deturpada

pelo “Primeiro Grande

Debate”

No início, o Estado. A formação das disciplinas do Direito Internaci-onal e de Relações Internacionais é mais bem compreendida pormeio da análise do conceito de Estado desenvolvido na segunda me-tade do século XIX, resultado de desdobramentos intelectuais ocor-ridos no âmbito da então embrionária Ciência Política. Desde os seusprimeiros anos até a passagem para o século XX, a Ciência Políticaassistiu à construção de uma visão ortodoxa do Estado, expressa naformulação jurídica clássica segundo a qual a soberania consistia naautoridade suprema sobre uma comunidade política definida territo-rialmente3. A noção de soberania era o móbil que unia o conceito ju-rídico do Estado à descrição do objeto de estudo da política internaci-onal e das normas jurídicas internacionais. A referida definição im-punha conseqüências categóricas para as incipientes disciplinas deRelações Internacionais e Direito Internacional (Schmidt, 1998:79).

Para o estudo das relações internacionais, a noção jurídica do Estadoimpunha ontologia caracterizada pela multiplicidade de unidades in-dependentes entre si, sem a presença de um comando central, o queas colocava em situação análoga à dos indivíduos no “estado de natu-reza” hobbesiano. Com efeito, desde então, a “analogia doméstica”,criada no rastro da concepção jurídica do Estado, tornou-se uma das

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concepções mais freqüentemente associadas ao ambiente interna-cional.

Para o Direito Internacional, a concepção jurídica do Estado impu-nha um questionamento acerca do caráter jurídico das normas vigen-tes entre os Estados soberanos. A formulação mais célebre nesse sen-tido foi desenvolvida por John Austin, para quem o Direito Internaci-onal não possuía os caracteres jurídicos essenciais, posto que suasnormas não eram emanadas de um poder soberano.

A contestação, pelos juristas internacionais, da doutrina propugnadapor Austin e seus adeptos abriu as portas para a construção de umaontologia que liberava as disciplinas de Relações Internacionais eDireito Internacional das severas amarras impostas pela ortodoxaconcepção jurídica do Estado, esta última resultado de poderosa con-fluência entre hegelianismo, darwinismo, nacionalismo romântico epositivismo no final do século XIX e início do século XX. Nesses ter-mos, os juristas internacionais abriram o caminho para o estudo ge-nuíno das relações entre os Estados, conforme atesta Brian Schmidt(idem:123): “De 1900 até a eclosão da Primeira Grande Guerra, em1914, a área do Direito Internacional dominou o estudo e a análisedas relações internacionais”.

Seguindo essa perspectiva, determinados eventos levados a cabo noperíodo, como as Conferências de Haia de 1899 e 1907 e a fundaçãoda American Society of International Law, em 1906, com a conse-qüente criação do periódico American Journal of International Law(AJIL), ilustram a íntima relação entre as proposições dos juristas in-ternacionais e a formação de um ambiente para o estudo das relaçõesinternacionais de forma desvinculada do conceito jurídico ortodoxodo Estado.

As contestações à doutrina de Austin, objeto principal das ediçõesinaugurais do primeiro jornal de língua inglesa destinado exclusiva-mente ao Direito Internacional, acabaram por representar, nas pala-

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vras de Francis Boyle (1985:23), “o evento mais importante no de-senvolvimento de uma abordagem positivista jurídica para as rela-ções internacionais nos Estados Unidos”, abordagem esta que era“intencionalmente desvinculada das respectivas abordagens feitaspelos proponentes da teoria do Direito natural e dos cientistas políti-cos” (Schmidt, 1998:102).

Nesse contexto, surgiram duas formas de teorização sobre o ambien-te internacional. De um lado, Stephen Leacock (1906) e Paul Re-insch (1909; 1911) – concentrando-se sobre as uniões públicas inter-nacionais, os embriões das organizações internacionais do séculoXX – advogavam a tese de que os níveis de interdependência entre osEstados soberanos contrariavam empiricamente a concepção ontoló-gica que primava pela multiplicidade de unidades independentes: es-tavam lançadas as bases do perene debate que opõe independência einterdependência como traço caracterizador das relações entre asunidades que compõem o sistema internacional (Schmidt, 1998:84).De outro lado, observou-se um movimento público para a reforma daprática internacional com base no primado do Direito, sendo as raí-zes desse movimento intrinsecamente ligadas à própria criação doDireito Internacional.

Com efeito, Martti Koskenniemi (2002) apresenta os termos em quese deu a criação da profissão de jurista internacional ao final do sécu-lo XIX. Historicamente, o uso e a prática do Direito Internacional fi-caram a cargo de um amplo espectro de profissionais, entre embaixa-dores, representantes diplomáticos das mais diversas categorias, mo-narcas, ministros, generais, marinheiros etc. Ocorre que estas pesso-as, apesar de envolvidas no uso e prática do Direito Internacional,não concebiam a si mesmas como juristas internacionais, sendo o co-nhecimento da matéria um dos atributos requeridos para o plenoexercício de suas funções. Mesmo Henry Wheaton, autor do laurea-do Elements of International Law: With a Sketch of the History of the

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Science (1836), era diplomata e repórter do Direito (Simpson,2002:996).

Seguindo Koskenniemi (2002), é possível argumentar que, apenasno final do século XIX, a profissão de jurista internacional afir-mou-se como um grupo de pessoas que concebem a si mesmas comopertencentes a um nicho profissional específico e distinto dos demais,unidas por sua disposição em expor, desenvolver e envolver-se naconsecução prática de um corpo de conhecimento que é consideradominimamente coeso. Os ideais sustentados pelos responsáveis pelaformação da profissão de jurista internacional – jovens juristas comoGustave Rolin-Jaequemyns, Tobias Asser e John Westlake – são des-critos por Koskenniemi (idem:13) com base na expressão l’espritd’internationalité, “um novo espírito que ensinava as nações e raçasa seguirem certos princípios comuns não apenas em suas relaçõesmútuas, mas também em suas legislações domésticas”. Institucio-nalmente, os referidos juristas participaram da fundação da Associa-tion Internationale pour le Progrès des Sciences Sociales, em 1862, eacabaram por criar, em 1868, o primeiro jornal de Direito Internacio-nal – a Revue de Droit International et Legislation Comparée4.

O conteúdo exato dos ideais que motivaram os pioneiros da discipli-na acadêmica do Direito Internacional deve ser apreendido a partir dadistinção entre a expressão de língua francesa internationalité e a ex-pressão de língua inglesa internationalism:

“O conceito de internationalité foi além do conceito de internationa-lism, que significava um processo de crescente cooperação e desen-volvimento de interesses comuns entre Estados, processo este queera guiado por uma maior interdependência entre os últimos. O pri-meiro conceito também significava a humanização das políticas na-cionais e o desenvolvimento de um espírito liberal” (ibidem).

O conceito de internationalism associa-se a uma forma de pensar quepode ser identificada com o pensamento de Hugo Grocius, convenci-

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onalmente considerado o “pai do Direito Internacional” e fonte basi-lar da proposta de Direito entre os Estados, a qual vigorou durante sé-culos na Europa. Característica dessa concepção do Direito Interna-cional é o respeito à soberania dos Estados, acompanhado do reco-nhecimento de que os mesmos podem cooperar a partir da existênciade certos interesses comuns.

A pedra de toque da descrição feita por Koskenniemi (idem) da for-mação do Direito Internacional consiste precisamente no argumentode que a disciplina acadêmica destinada ao estudo do Direito entre osEstados somente adquiriu traços próprios e distintos das demais ati-vidades profissionais relacionadas ao ambiente internacional quan-do as idéias grocianas foram substituídas por uma proposta de refor-ma mais profunda da prática entre os Estados a partir de princípios li-berais, entre eles o primado do Direito.

Com efeito, “nenhum dos homens por detrás da Revue comungava datradição de Grocius, ou da escola do Direito Público Europeu, quedominou os escritos em Direito Internacional desde Vattel até mea-dos do século XIX” (idem:17). A associação comum entre os primór-dios da disciplina de Direito Internacional e o pensamento grocianodá lugar à constatação de que subsistia um verniz kantiano na mentedos homens responsáveis pela consolidação do estudo do Direito en-tre os Estados como disciplina acadêmica autônoma.

A distinção entre o pensamento grociano e o pensamento kantiano,implícita na apreensão exata do significado dos termos internationa-lism e internationalité, remonta à divisão do conhecimento em teoriainternacional levada a cabo por Martin Wight (1991), divisão estaque é particularmente familiar aos estudantes de Relações Internaci-onais. Wight (idem) dividiu o pensamento em teoria internacionalem três tradições: realismo, racionalismo e revolucionismo.

Apesar das diversas críticas de que é passível tal caracterização, deveser resguardado a Wight o mérito de ter compreendido a diferencia-

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ção entre o grocianismo e o kantianismo; Grocius e Kant encabeçam,respectivamente, as tradições racionalista e revolucionista. Tal dife-renciação coincide, por sua vez, com as supramencionadas vertentessobre o pensamento internacionalista até a Segunda Grande Guerra;grosso modo, os teóricos que argumentavam haver maior interde-pendência e cooperação entre os Estados eram informados por umadescrição grociana da realidade internacional, ao passo que aquelesque propugnavam uma reforma mais profunda da prática internacio-nal se associavam a uma proposta kantiana para a relação entre osEstados. Os grocianos tendem a enfatizar a cooperação intergover-namental típica das organizações internacionais, enquanto os kantia-nos tendem à ênfase cosmopolita, realçando a prevalência de uma ci-vitas maxima sobre a sociedade formada pelos Estados nacionais.

A despeito das patentes diferenças entre essas correntes, a concepçãode Edward Carr (1939), segundo a qual o pensamento em RelaçõesInternacionais teria sido marcado pelo “idealismo” ou “utopismo”nos anos posteriores à Primeira Grande Guerra, arraigou-se profun-damente no imaginário dos teóricos envolvidos com a disciplina.Dessa forma, estudos sobremaneira distintos, como a análise das or-ganizações internacionais e a proposta de reforma do sistema inter-nacional sobre bases liberais, foram unidos sob a égide de uma alcu-nha unitária, que, em nome de uma onipresente dicotomia, opõe“idealistas” e “realistas”.

A indistinção entre grocianos e liberais no período entreguerras, reu-nidos sob a alcunha quase pejorativa de “idealistas”, é pródiga emconseqüências no desenvolvimento posterior da disciplina de Rela-ções Internacionais. Deve-se a ela, em grande medida, a incapacida-de dos teóricos da disciplina em diferenciar as teorias institucionalis-ta e liberal no pós-Guerra Fria, disso resultando a distorcida nomen-clatura “institucionalismo neoliberal”, que, à moda da denominaçãode “idealistas”, reúne orientações teóricas sobremaneira distintas.

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Neste último caso, uma vez mais é possível recorrer à distinção entreas orientações teóricas grociana e kantiana para diferenciar instituci-onalistas de liberais: os primeiros, como o próprio nome indica, en-focam as instituições internacionais a partir de uma análise esta-do-cêntrica, sendo os Estados atores que cooperam movidos pelo au-to-interesse; os últimos, também denominados neokantianos, va-lem-se do vínculo fundamental apontado por Kant entre a organiza-ção política interna dos Estados e os resultados observados na políti-ca internacional para discriminar os Estados liberais dos Estadosnão-liberais em termos de comportamento na esfera internacional.

Basicamente, a partir da conversão de liberais e grocianos do entre-guerras em “idealistas”, seguiu-se uma notável negligência com rela-ção aos estudos das organizações internacionais no período posteriorà Primeira Grande Guerra; o liberalismo, por sua vez, a partir de suaassociação à experiência fracassada da Liga das Nações, foi deturpa-do a ponto de constituir uma defesa ingênua das organizações inter-nacionais e do Direito Internacional como forma de substituir a polí-tica de poder. Levando-se em consideração os efeitos das proposi-ções liberais do entreguerras sobre o imaginário dos teóricos de Re-lações Internacionais e o fato de o realismo ter surgido, nessa disci-plina, como resposta àquelas proposições, nos ateremos em maiorprofundidade ao projeto de reforma da prática internacional capita-neado pelo presidente norte-americano Thomas Woodrow Wilson.

Wilson, Kant e o

liberalismo em Relações

Internacionais

O liberalismo no entreguerras encontra-se intrinsecamente ligado àspropostas do presidente norte-americano Woodrow Wilson para a re-forma da prática internacional. Em poucas palavras, a doutrina pro-posta por Wilson associava um forte componente moral à crença naresolução racional para os conflitos, a partir da difusão do modelo

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das democracias liberais e da adesão das nações a princípios como oprimado do Direito.

A crença na resolução racional dos conflitos e a defesa da reforma dosistema internacional com base no primado do Direito explicam emgrande medida os pontos que tornam o pensamento wilsoniano emRelações Internacionais sobremaneira afinado às proposições dosteóricos pioneiros do Direito Internacional enquanto disciplina aca-dêmica, uma vez que ambos comungavam, em geral, das premissasliberais. As propostas de Wilson pressupunham o Direito como mó-bil para a consecução da paz internacional, motivo pelo qual algunsteóricos, como Fred Halliday (1994:10), denominaram essa teoria de“paz por meio do Direito”.

Ao término da Primeira Grande Guerra, a proposta de Wilson para aformação da Liga das Nações acabou por se tornar o epicentro dasdeturpações sofridas pelo liberalismo wilsoniano ao longo da histó-ria da disciplina de Relações Internacionais, a começar pelo enqua-dramento da Liga das Nações como a apoteose do pensamento “idea-lista”, em oposição ao pensamento “realista”. Como afirmou WalterMcDougall (1997:124), “as dicotomias familiares entre velha e novadiplomacia, isolacionismo e internacionalismo e idealismo e realis-mo distorcem a nossa imagem do debate acerca da Liga das Nações”.

A Liga das Nações foi concebida por Wilson como um concerto entreos países democráticos, que fariam valer o primado do Direito no sis-tema internacional, resolvendo as controvérsias de forma racional, oque, em última instância, aboliria os conflitos militares internacionais.Nesses termos, a receita para a paz contida na proposta da Liga dasNações representava, como afirmou John Ikenberry (2001:117),

“[...] uma organização mundial das democracias operando a partir deregras e obrigações mais fortes. As grandes potências ainda forma-riam o núcleo dessa comunidade democrática, mas a balança de po-

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der seria substituída por mecanismos mais jurídicos e regrados de ad-ministração do poder e resolução de conflitos”.

Wilson estava ciente de que a prevalência das democracias liberaisentre a virtual totalidade das grandes potências era condição necessá-ria para o sucesso da Liga das Nações; ele acreditava, à época, que osistema internacional estava em vias de atingir essa condição: “em1919, os principais Estados vencedores eram democráticos pela pri-meira vez na história” (idem:118). A crença do arquiteto da Liga dasNações ganhou mais substância à medida que se constatou que a Pri-meira Grande Guerra teve um efeito devastador sobre os impérios eu-ropeus; os impérios germânico, russo, turco-otomano e aus-tro-húngaro foram levados a termo até o final do conflito iniciado em1914.

Ocorre que os eventos posteriores na Europa se opuseram à previsãode Wilson de que governos democráticos se espalhariam pelo conti-nente; vários países moveram-se de governos democráticos para di-taduras. No caso específico da Alemanha, este movimento se deu emgrande parte em virtude da inobservância da proposição de Wilsonsegundo a qual deveria haver moderação nas punições impostas aopaís, tendo sido bastante difundido à época o seu bordão por “umapaz sem vencedores”.

Nas palavras de Andrew Moravcsik (1997:546): “Dada a teoria sub-jacente à proposta de Wilson, causa surpresa que a Liga tenha torna-do-se moribunda em 1936, após doze países europeus terem substi-tuído democracias por ditaduras?”. Nesse contexto, deixou de existiruma condição sine qua non para o sucesso da Liga das Nações, moti-vo pelo qual não surpreende, de fato, o seu fracasso. Deve-se refutar,contudo, a associação freqüentemente feita entre o fracasso da Ligadas Nações e a falsificação do liberalismo: o fracasso da Liga é plena-mente explicável e previsível a partir das premissas que suportaramas ações de Woodrow Wilson, que, por diversas vezes, afirmou ser a

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existência de governos democráticos entre as grandes potências umacondição essencial para a eficácia da organização.

A plena compreensão do conteúdo da teoria liberal em RelaçõesInternacionais e o seu enquadramento em um contexto filosóficomais amplo e denso trazem à baila o papel exercido pelo pensamentode Immanuel Kant no estudo da política internacional. Em poucaspalavras, a teoria liberal em Relações Internacionais deve a Kant oarcabouço filosófico que lhe serve de matriz; sendo Woodrow Wil-son um historiador e teórico político refinado, é impossível mensurara influência do pensamento kantiano sobre o presidente nor-te-americano. Salta aos olhos, contudo, o enquadramento do pensa-mento de Wilson nas linhas mestras do complexo sistema filosóficode Kant. Em termos gerais, ambos comungam do papel central con-cedido à moral e da crença no potencial da razão humana; especifica-mente, em termos de política internacional, há uma patente conver-gência em torno da tese central do liberalismo, segundo a qual a orga-nização jurídico-política interna dos Estados determina os resultadosproduzidos no sistema internacional.

Além disso, princípios como o primado do Direito e a autodetermi-nação dos povos fecham o círculo das premissas principais que selama convergência entre Wilson e Kant. Em última instância, o pensa-mento de Wilson pressupõe o sistema filosófico kantiano, uma vezque a própria noção de moral, por exemplo, fundamental para a dou-trina wilsoniana, somente adquire conteúdo a partir da teoria moraldo filósofo alemão, basilar para o pensamento ocidental nos últimosdois séculos. Assim como Wilson, Kant era um defensor sincero ecaloroso das ações morais.

O texto de Kant que mais influência exerceu sobre o estudo das rela-ções entre os Estados foi Esboço Filosófico: À Paz Perpétua, que, es-crito na esteira da Paz de Basiléia, celebrada entre França e Prússia,imitou ironicamente a forma dos tratados de paz da época. Diversas

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concepções presentes nesse trabalho revelam o pioneirismo de Kantcomo pensador internacionalista. Segundo Celso Mello (2002:475),foi o primeiro texto no qual se encontra expressamente o princípio danão-intervenção; também se encontram nesse escrito a noção de au-todeterminação dos povos e a concepção de que o Homem, sendo umfim em si mesmo, é sujeito de direitos, o que abre as portas para asdiscussões relativas aos direitos humanos.

O primeiro artigo definitivo para a paz perpétua assim dispõe: “Aconstituição deve ser, em todo Estado, republicana” (Kant, 1879:63).A república kantiana é definida com base na separação entre os Pode-res Executivo e Legislativo, sendo equivalente à noção de democra-cia liberal nos tempos atuais. O estabelecimento da democracia libe-ral para Kant era um imperativo moral, pois ela conjuga o autogover-no e a liberdade dos indivíduos; além disso, a democracia liberal éinerentemente pacífica. A liberdade associada à constituição repu-blicana e o seu caráter pacífico são decorrentes do fato de o indivíduoagir, na república, com base em leis que ele próprio consentiu segun-do um desejo racional de que elas se tornassem universais.

Kant formula, com o primeiro artigo definitivo, a pedra angular da te-oria liberal na disciplina de Relações Internacionais, a saber, o argu-mento de que a estrutura jurídico-política de um Estado mantém rela-ção intrínseca com o seu comportamento externo; atribui-se à organi-zação interna dos Estados a fonte dos resultados produzidos na polí-tica internacional. Uma vez que na república kantiana o consenti-mento dos indivíduos é considerado na consecução das medidas pú-blicas, o ingresso em conflitos torna-se menos factível, posto quecondicionado à anuência daqueles que arcam com os seus custos.Nas contundentes palavras de Kant expostas no trecho mais citado doensaio sobre a paz perpétua:

“Na constituição republicana, deve aparecer necessariamente o con-sentimento dos cidadãos para declarar a guerra. Nada mais natural,

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portanto, já que eles devem sofrer as conseqüências da guerra – os

combates, as despesas, a devastação, o peso desolador da dívida pú-

blica, que passa para os tempos de paz –, que pensem muito e vacilem

antes de decidirem-se a um jogo tão arriscado. Por outro lado, numa

constituição em que o súdito não é cidadão, numa constituição

não-republicana, a guerra é a coisa mais simples do mundo. O chefe

do Estado não é um concidadão, mas um senhor; e a guerra não per-

turba nada no seu sistema de vida faustosa, que decorre em banque-

tes, caçadas e nas estadias em castelos prazenteiros. A guerra, para

ele, é uma espécie de diversão: pode declará-la pelos mais leves mo-

tivos, ordenando imediatamente que o corpo diplomático – sempre

tão disposto – cubra as aparências e encontre uma justificação plausí-

vel” (idem:51).

Wilson diferia de Kant somente na medida em que propunha uma

agenda mais radical e intervencionista, em detrimento da proposição

pioneira de Kant acerca do princípio da não-intervenção. Kant acre-

ditava que o estabelecimento das democracias liberais aconteceria de

forma autônoma, à medida que os indivíduos progredissem no exer-

cício da razão; Wilson era mais propenso a utilizar a força para, de

certa forma, acelerar a história. A fundamentação para a necessidade

de radicalizar a agenda liberal é expressa em uma afirmação que as-

sombra pela acuidade com que Wilson percebeu as sementes da Se-

gunda Grande Guerra, um conflito ainda bem mais violento do que

aquele iniciado em 1914:

“O liberalismo precisa ser mais liberal do que nunca, ele deve ser até

radical para a civilização escapar da hecatombe... Eu não hesito em

dizer que a guerra na qual acabamos de nos envolver, apesar de ter

sido marcada por toda a sorte de terror, não pode ser comparada à

guerra que enfrentaremos da próxima vez” (apud Mcnamara e

Blight, 2001:168).

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O “primeiro grande

debate”: deturpações na

esteira da obra Vinte Anos deCrise

Se, tendo em vista o panorama dos estudos internacionais desde1900, é extremamente difícil defender o argumento de que a obra deE. H. Carr intitulada Vinte Anos de Crise (1939) constitui o texto fun-dador da disciplina de Relações Internacionais, mais difícil ainda éfugir da constatação de que a divisão proposta pelo historiador inglêsentre “idealismo” e “realismo” acabou por mostrar-se notavelmenteperene a ponto de, até os dias de hoje, envolver a historiografia con-vencional de Relações Internacionais e habitar o imaginário dos es-tudiosos da disciplina. Nos últimos anos, entretanto, críticas contun-dentes têm sido desferidas às concepções de “idealismo” e “realis-mo” sustentadas por Carr5.

Como observou Peter Wilson (1998:10), Carr não expõe de formaanalítica as principais proposições da corrente “idealista”; ao invésdisso, constrói um conjunto frouxo de asserções que, freqüentemen-te acompanhadas de inferências e insinuações, demonstrariam os de-feitos da referida corrente de pensamento. Em última instância, a ex-plicação de Carr acerca do “idealismo” é indissociável de sua críticadesta corrente, sendo o “idealismo” definido a partir dos seus defei-tos.

Nesse contexto, torna-se compreensível a deturpação sofrida pelo li-beralismo na disciplina de Relações Internacionais. A ênfase dos li-berais na organização jurídico-política interna dos Estados como fa-tor determinante para os resultados observados na política internaci-onal foi substituída – a partir da concepção do “idealismo” de Carr eda concentração deste sobre o fracasso da Liga das Nações – pelacrença na possibilidade de as organizações internacionais e o Direito

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Internacional banirem, de forma autônoma, a política de poder dosistema internacional.

O Afastamento entre as

Disciplinas – Ceticismo,

Realismo, Escola Inglesa e

Behaviorismo

Após o colapso da Liga das Nações e a eclosão da Segunda GrandeGuerra, observou-se um período de “decadência” do Direito Interna-cional (Koskenniemi, 2002), enquanto a disciplina de RelaçõesInternacionais assistia à criação do paradigma realista como respostaà escola liberal da “paz por meio do Direito” do período entreguerras.

A “decadência” do Direito Internacional deveu-se à prevalência, en-tre os teóricos desta disciplina, de uma visão extremamente céticaquanto ao seu escopo de atuação e à sua aplicabilidade. Este ceticis-mo estava lastreado em uma concepção assimétrica da relação entrepolítica e Direito, o que acabava por restringir sobremaneira o poten-cial do Direito Internacional em influenciar o comportamento dosatores internacionais.

O realismo em Relações Internacionais contrapunha-se à perspectivakantiana presente nesta disciplina até os eventos mencionados naabertura deste artigo. Em resposta à proposta de difundir o modelo dademocracia liberal e subsumir a política internacional em um arca-bouço normativo racionalmente concebido, o realismo pregava que anatureza humana trazia a irracionalidade ao centro da política inter-nacional.

A “decadência” do Direito Internacional e a criação do realismo emRelações Internacionais, longe de constituírem processos isolados,foram partes de um só e mesmo movimento. Tal proposição pode serapresentada a partir da trajetória intelectual de Hans Morgenthau, o

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maior expoente do ceticismo no Direito Internacional (Koskennie-mi, 1989:167-170) e o pai fundador da escola realista na disciplina deRelações Internacionais.

O Ceticismo no Direito

Internacional

Em 1929, a tese de doutorado de Morgenthau para a Faculdade de Di-reito da Universidade de Frankfurt versava sobre os limites das fun-ções judicial e arbitral em âmbito internacional6, tema recorrente en-tre os teóricos de Direito Internacional da época. Como pano de fun-do ao tema da dissertação, havia uma incipiente tentativa de lidarcom a relação entre Direito e política no cenário internacional. Basi-camente, as fragilidades do Direito Internacional eram explicadascom base em sua relação com a política internacional (Koskenniemi,2002).

Morgenthau argumentava que não fazia sentido conceber os assuntosinternacionais a partir da oposição entre as questões “legais” e asquestões “políticas”, em virtude de uma concepção particular do po-lítico: este não possuía substância fixa, apresentando-se como umaqualidade que aderia a qualquer objeto (idem:441). Assim, nenhumobjeto estaria essencialmente livre de se tornar político. O políticopoderia estar em todos os objetos, bem como em objeto algum; tudopoderia ser e nada era necessariamente político. Como afirmou Mor-genthau (apud Frei, 2001:124):

“A noção do político não é definida de forma rígida em seu conteúdo,sendo uma qualidade específica, uma coloração que pode aderir a di-versos conteúdos. Uma questão que tem caráter político hoje podeperder toda a sua significância política amanhã, enquanto uma ques-tão de significância mínima pode converter-se em uma questão polí-tica extremamente importante do dia para noite”.

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Dessa forma, o político somente pode ser oposto pelo não-político,

mas o não-político é potencialmente político. Além disso, quando o

político entra em cena, não há que se falar em resolução jurídica para

o conflito, pois o próprio Direito positivo é posto em questão. Disso

resulta um escopo reduzido para a atuação do Direito Internacional:

o objeto por este regulado poderia politizar-se a qualquer momento,

fugindo do escopo das normas jurídicas internacionais.

O teor das críticas formuladas por Morgenthau à perspectiva liberal,

que uniu teóricos do Direito Internacional e de Relações Internacio-

nais no entreguerras, pode ser compreendido por meio do contun-

dente artigo escrito pelo então professor-assistente de Direito e Ciên-

cia Política da Universidade de Kansas para o periódico da Socieda-

de Norte-Americana de Direito Internacional, The American Journal

of International Law, em 1940. Sob diversos aspectos, a crítica seve-

ra de Morgenthau aos liberais aponta claramente para as linhas mes-

tras que comporiam a crítica realista aos teóricos liberais daquele pe-

ríodo. Primeiramente, Morgenthau (1940) aborda a falta de corres-

pondência entre os postulados do Direito Internacional e a evidência

empírica disponibilizada pelo estudo da história, proferindo uma crí-

tica incisiva aos teóricos movidos por formulações a priori ditadas

pela razão:

“Todos os esquemas e instrumentos que humanitaristas e políticos

astutos engendraram para reorganizar as relações entre os Estados na

base do Direito não suportam o julgamento da história. Ao invés de

perguntarem se os seus instrumentos são adequados para os proble-

mas que eles se propõem a resolver, a atitude geral dos internaciona-

listas foi considerar a adequação dos seus instrumentos como dada e

culpar os fatos pelo fracasso. Quando os fatos se mostram contrários

às suas previsões, eles parecem dizer: ‘problema dos fatos’”

(idem:260).

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Morgenthau criticava a falta de uma espécie de mecanismo de feed-back entre os teóricos de Direito Internacional e a evidência empíricafornecida pela história. A noção de que a história deve funcionarcomo “mestra”, da qual se deveriam extrair ensinamentos, evitaria ainsistência dos teóricos do Direito Internacional da época em criaruma nova instituição tal qual a Liga das Nações, realizar uma terceiraConferência de Haia, defender a arbitragem como forma de litígiodos conflitos políticos e levar a cabo outra Conferência para o Desar-mamento.

Tais insistências faziam com que os juristas internacionais “se asse-melhassem aos feiticeiros das idades primitivas, em suas tentativasde exorcizar demônios sociais por meio de uma incansável repetiçãode fórmulas mágicas” (ibidem). Segundo Morgenthau (ibidem), odescompasso entre os postulados dos teóricos de Direito Internacio-nal e a realidade deveu-se à prevalência do positivismo jurídico nessadisciplina, às expensas do fato de tal perspectiva ter sido desacredita-da nas outras esferas do pensamento jurídico durante as primeiras dé-cadas do século XX.

Ainda para Morgenthau, o positivismo jurídico era demasiado for-malista. A validade de uma determinada regra internacional era res-pondida pelo positivista com base em elementos internos ao procedi-mento legal. O critério de validade defendido por Morgenthau funci-onava com base em fatos observáveis; nesse sentido, ele questionavaa validade de instrumentos legais como o Pacto da Liga das Nações, oPacto Briand-Kellogg e os Tratados de Paz de 1919.

O célebre artigo de 1940 acabou por representar um libelo antiforma-lista, declarando a necessidade de maior interdisciplinaridade no es-tudo do Direito Internacional. Morgenthau apresentou proposta dereforma que ele denominou de “ciência funcionalista” do DireitoInternacional, que tencionava produzir proposições sobre o Direito apartir de estudos puramente sociológicos. Morgenthau, contudo,

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nunca desenvolveu tal “ciência funcionalista”, o que é compreensí-vel dado o seu ceticismo quanto ao papel do Direito Internacional.Em vez de avançar a proposta reformista, ele acabou por tornar-se opai fundador do realismo na disciplina de Relações Internacionais.

O realismo em Relações

Internacionais

O paradigma realista na disciplina de Relações Internacionais emer-giu em um contexto de conflito entre duas formas distintas de teori-zação no âmbito das ciências sociais. Os teóricos que emigraram daAlemanha em virtude da ascensão do regime nazista encontraram, aoatravessar o Atlântico, um ambiente intelectual sobremaneira distin-to daquele observado no velho continente àquela época.

De um lado, a tradição acadêmica norte-americana, que se pautavapelo que Reinhold Niebuhr (1984:164; Frei, 2001:186) classificoucomo “otimismo histórico”, isto é, a crença na razão como soluçãode todos os problemas e chave para a compreensão dos seres huma-nos e do mundo. Stanley Hoffmann (1991:33) caracteriza essa tradi-ção a partir da “busca pela certeza”, do “desejo de calcular o incalcu-lável” e da “cruzada pela substituição das discussões sobre os moti-vos pelas discussões acerca de dados objetivos”.

De outro lado, a tradição germânica de pensamento em ciências soci-ais enfoca elementos como teoria e história, mostrando-se cética –desde Nietzsche – quanto ao papel da razão7. Apesar de a razão ins-trumental ter sido responsável pelo progresso das ciências naturais,tal não seria possível com relação às ciências sociais, pois o mundosocial responde a uma lógica distinta do mundo natural. A visão oti-mista da história como progresso mediado pela razão dá lugar à his-tória em sua dimensão trágica.

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Esse conflito se mostrou claro para Morgenthau a partir de 1943,quando ele trocou a Universidade de Kansas pela Universidade deChicago, baluarte do cientificismo norte-americano, onde já se mos-trava incipiente, por meio de nomes como Harold Lasswell, aquiloque viria a ser conhecido como a revolução behaviorista. Desse am-biente de conflito intelectual nasceu Scientific Man vs Power Politics(Frei, 2001:190). Em consonância com o diagnóstico de Niebuhr,Morgenthau, sobre a tradição intelectual norte-americana, afirmouque “a principal característica dessa filosofia era a sua confiança narazão” (apud idem:186). Ele se voltou contra o cientificismo – a cren-ça na equivalência entre as ciências naturais e sociais – prevalecenteno pensamento universitário nos Estados Unidos de uma forma ge-ral, buscando reafirmar a dimensão trágica da história e da condiçãohumana.

A partir do enquadramento desse argumento dentro da lógica da tra-dição germânica de pensamento em ciências sociais, é possível le-vantar dúvidas sobre a concepção do realismo como um paradigmadesenvolvido no interior do mundo anglo-saxão e atendendo aos seusprincípios. Com efeito, os enfoques mais recentes sobre os escritosde Morgenthau ainda em solo europeu apontam para a constataçãode que os seus escritos pós-1937 pouco ou nada acrescentam de novoao arcabouço construído antes de sua chegada aos Estados Unidos. Aprópria obra mestra do realismo, A Política entre as Nações, primei-ramente publicada em 1948, já havia sido planejada desde, pelo me-nos, 1933 (idem: 208).

Além da ausência de análises dos escritos da fase européia de Mor-genthau, outro fator induziu as historiografias de Relações Internaci-onais ao erro quanto às origens do realismo na disciplina: depois deingressar nos Estados Unidos, Morgenthau, conscientemente, ocul-tou as referências basilares do seu pensamento. Em vez de citar ospensadores alemães que lhe serviram de base para o desenvolvimen-to da teoria realista, Morgenthau optou por mencionar, em seus tex-

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tos, pensadores anglo-saxões, o que chega a ser compreensível emvirtude da intensa atmosfera antigermânica dos anos que se seguiramà Segunda Grande Guerra. Não constitui exagero supor que a dife-rença entre alemão e nazista não era clara para a maior parte das pes-soas àquela época. Nesse contexto, apresentar uma teoria políticacomo declaradamente germânica não era uma atitude das mais pru-dentes, sendo o caminho alternativo mais óbvio “citar autores an-glo-saxões e autoridades clássicas para conferir suporte à sua posi-ção” (idem:110-111).

Esse é o mote para a compreensão dos motivos que levaram diversosteóricos a supor que o desenvolvimento do realismo se deu dentro deparâmetros anglo-saxões, quando não se recorre aos clássicos da teo-ria política para explicar as suas origens, às expensas das diferençasentre os contextos políticos da aurora da modernidade e do séculoXX. No último caso, o realismo em Relações Internacionais é conce-bido como uma tradição que se estenderia, basicamente, aos escritosde Maquiavel e Hobbes. O enfoque recente na fase européia de Mor-genthau, no entanto, estimulou contestações a essa concepção, inten-samente enraizada na literatura da disciplina de Relações Internacio-nais. Como afirmou Fred Halliday (1994:14): “Normalmente conce-bido como uma evolução dentro do mundo anglo-saxão, o realismoveio a articular críticas à Liga das Nações que foram, desde a décadade 1920, formuladas pela direita alemã”.

A análise sobre as influências no pensamento de Hans Morgenthauindica que o realismo em Relações Internacionais deve as suas ori-gens a uma tradição do pensamento alemão em ciências sociais queabarcaria pensadores como Carl Schmitt, Max Weber e, principal-mente, Friedrich Nietzsche8. As principais características dessa tra-dição alemã, como já esboçado, seriam a crença na impossibilidadede resolução racional para conflitos de valores (Nietzsche/Weber), aconcepção da vida como luta pelo poder em virtude da natureza hu-mana, caracterizada pela “vontade de poder” (Nietzsche), e a tentati-

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va de estabelecer a autonomia do político como esfera particular davida social (Schmitt).

A visão otimista e teleológica da modernidade como progresso me-diado pela razão humana dá lugar à concepção da modernidade comotragédia: os avanços tecnológicos não podem conter os conflitos devalores, ao contrário, acabam por torná-los potencialmente mais pe-rigosos, acirrando a luta pelo poder. A medida do desenvolvimentodo racionalismo científico é a medida da preponderância da irracio-nalidade na cena política, esta última concebida como uma esfera davida social que responde por suas próprias leis, enraizadas, em últi-ma instância, na natureza humana. Em termos de Direito Internacio-nal e Relações Internacionais, os postulados dessa tradição resultamem visão fortemente assimétrica da relação entre o jurídico e o políti-co, o que relega o Direito Internacional a um espaço deveras restrito,em consonância com a abordagem de Morgenthau desde a sua dis-sertação de 1929.

A análise dos “diálogos escondidos” entre Morgenthau e Schmittilustra o traço distintivo da crítica destes juristas da República deWeimar ao pensamento liberal; ambos sustentavam que o uso do dis-curso moralista e legalista intensificava os conflitos (Koskenniemi,2002:462). A Liga das Nações não era de modo algum irrelevante –como supunham os teóricos pseudo-realistas mais bem representa-dos pela concepção de Edward Carr (1939) sobre a tradição realista–, mas potencialmente perigosa a partir do momento em que tendia aremover as barreiras que limitavam a violência entre as nações emsua luta pelo poder no sistema internacional. Expressões como “na-ções amantes da paz” e “nações criminosas” eram a tônica da novaguerra justa: algumas nações beligerantes teriam a sua participaçãoem conflitos apoiada pela ética e pelo Direito, enquanto outras sãoconsideradas como não-merecedoras do direito moral e legal de pe-gar em armas.

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Por meio da Liga das Nações, as potências líderes da nova ordem in-ternacional buscavam defender os seus interesses; para isso, procura-vam associá-los aos interesses da humanidade. Schmitt, em seu estu-do sobre a nova ordem anglo-americana, reconheceu que a tendênciaà universalização de interesses particulares era uma característicamarcante dessa nova ordem internacional. Nesse sentido, é bastanteelucidativa a sua citação de Proudhon: “Quem diz humanidade, pre-tende enganar” (Schmitt, 1992:81).

No mesmo sentido, Morgenthau (2003) profere crítica a essa tendên-cia à universalização de interesses particulares no quinto dos seusprincípios do realismo político: “O realismo político recusa-se aidentificar as aspirações morais de uma determinada nação com asleis morais que governam o universo” (idem:21). Ao invocar a huma-nidade para a defesa dos seus interesses particulares, as potências lí-deres da nova ordem acabaram por abrir o caminho para a remoçãode todas as barreiras que limitavam a violência dos conflitos interna-cionais. Como afirmou Schmitt (1992:81):

“O emprego do nome da humanidade, a apelação à humanidade, aconfiscação dessa palavra, tudo isso só poderia, já que não se podeafinal de contas empregar sem certas conseqüências tais nomes su-blimes, manifestar a terrível pretensão de que se deve denegar ao ini-migo a qualidade de Homem, declará-lo hors-la-loi e horsl’humanité e com isso levar a guerra à extrema desumanidade”.

Sob essa perspectiva, não é surpreendente o fato de o século XX terobservado, ao mesmo tempo, o emprego mais difundido do conceitode humanidade e um nível de atrocidade sem precedentes em termosde destruição de vidas em conflitos. Morgenthau (2003) ponderouque as guerras do século XX readquiriram o caráter religioso e ideo-lógico das cruzadas medievais, em oposição ao caráter secular im-posto pelo Direito Público Europeu desde o final da Guerra dos Trin-ta Anos. Nesse sentido, a restrição da violência atingida pela antiga

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ordem européia deu lugar aos conflitos ilimitados, à guerra total.Como resultado:

“O dever moral de poupar os feridos, enfermos e inimigos que se en-tregaram desarmados e de respeitá-los como seres humanos que sãotidos como inimigos exclusivamente por terem sido encontrados dooutro lado da cerca é suplantado pelo dever moral de punir e varrer daface da terra os professores e praticantes do mal” (idem:447).

Em termos de pensamento político em geral, Morgenthau concorda-va com Schmitt na maior parte de suas posições, entretanto, conside-rava que este não fora longe o suficiente, deixando de conectar a suateoria do Estado àquilo que para Morgenthau constitui a sua fonteprimordial, a natureza humana. Nesse sentido, “ao invés de penetrarnas raízes últimas do Estado como ele realmente é, Schmitt pára nomeio do caminho” (Frei, 2001:119), pois

“[...] toda reflexão sobre a realidade deve voltar-se para a base detudo aquilo que pertence ao âmbito político, tudo relacionado aoEstado, e essa base é o próprio Homem. Isso porque o reino da políti-ca [...] emerge da alma humana. Portanto, para qualquer um que seoutorgue a tarefa de compreender a realidade do Estado seriamente,o primeiro passo deve ser traçar esta realidade até as suas raízes psi-cológicas” (ibidem).

Nesse ponto, Carl Schmitt dá lugar a Friedrich Nietzsche, a maior re-ferência no pensamento de Morgenthau, o “pai oculto” do realismoem Relações Internacionais. A concepção que Morgenthau desen-volve da natureza humana está umbilicalmente ligada à sua interpre-tação dos escritos de Nietzsche, que se enquadra, por sua vez, na lei-tura que prevalecia da obra deste último no período entreguerras9.Morgenthau compartilhava com Nietzsche a obsessão pelo Homemcomo objeto de análise e a busca impreterível pela realidade da vidahumana e do mundo. O papel condicionante exercido pela naturezahumana no mundo social é expresso logo no primeiro dos princípios

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do realismo político elencados por Morgenthau (2003:4): “O realis-mo político acredita que a política, como, aliás, a sociedade em geral,é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza hu-mana”.

O duradouro envolvimento de Morgenthau com o pensamento ni-etzschiano foi trazido à tona por pesquisas recentes de seu materialpessoal. Apesar de suas obras publicadas não conterem referênciasnesse sentido, suas anotações pessoais elucidam o grau da influênciaexercida por Nietzsche na formação intelectual do pai fundador dorealismo em Relações Internacionais (ver Frei (2001), que realizaanálise copiosa dos arquivos de Morgenthau).

Para Nietzsche, o homem e o mundo estão longe de representar aquinta-essência da razão; ao contrário, ela é a exceção, não a regra nomundo social. A razão não passa de instrumento a ser guiado por umaintrincada rede de impulsos humanos, estes impulsos podendo ser re-duzidos, ao fim e ao cabo, à vontade de poder, o impulso básico quemove os seres humanos. A essência da vida reside na vontade de teralgo, e algo mais, indefinidamente: os objetivos das ações humanasestão voltados exclusivamente para as conquistas pessoais(idem:103).

Ocorre que a vontade de poder inerente aos Homens não pode jamaisser satisfeita, uma vez que ela não conhece limites. Disso resulta acondição trágica da vida humana, incapaz de acompanhar as exigên-cias da vontade ilimitada de poder: o Homem está condenado a vivero contraste imposto pela intensidade dos seus anseios em oposição àspossibilidades reais de realização dos mesmos. A onipresença da tra-gédia é o traço “irremediável, inevitável e inescapável” da vida(idem:105).

Em virtude da natureza humana, portanto, a razão pouco tem a ofere-cer em termos de explicação do mundo social. Nietzsche teria levadoàs últimas conseqüências a afirmação do papel do irracional. Fazen-

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do referência à discussão que nos é particularmente relevante, comefeito, talvez não haja oposição mais perfeita do que aquela represen-tada pelo Nietzsche “destruidor da razão” em relação a Kant. Nada émais ilustrativo nesse sentido do que os incessantes ataques de Ni-etzsche à moral, peça que se tornou nevrálgica em Kant a partir defundamentos racionais.

Enquanto Nietzsche, entretanto, considerava – ainda de acordo coma interpretação que lhe era dada pelos teóricos no entreguerras – queos sistemas normativos destinados a limitar os conflitos entre os Ho-mens configuravam mera hipocrisia, constituindo reles subterfúgiodos fracos para lidarem com os fortes, Morgenthau caracterizava-oscomo necessários para evitar a desagregação social. Como afirmouFrei (idem:107), ao mesmo tempo que Morgenthau permaneceu fiel-mente ligado ao analista, recusou-se a seguir o profeta: quando se tra-ta de prescrições normativas e valores primordiais, Morgenthau di-vorcia-se do pensamento nietzschiano. O ponto de desembarque deMorgenthau do pensamento nietzschiano é elucidado a partir da se-guinte passagem de A Política entre as Nações (Morgenthau,2003:422, ênfase minha):

“Por outro lado, a própria tradição da civilização ocidental, que tentarestringir o poder dos fortes em benefício dos fracos, foi combatidapor ser tida como efeminada, sentimental e decadente. Seus oposito-res têm sido aqueles que, como Nietzsche, Mussolini e Hitler, não sóaceitam o desejo do mando e a luta pelo poder como fatos sociais ba-silares, mas ainda enaltecem as suas manifestações desenfreadas epostulam essa ausência de restrições como um ideal para a sociedadee uma norma de conduta para o indivíduo”.

É precisamente a partir desse ponto de discordância em relação a Ni-etzsche que Morgenthau busca refúgio na ética da responsabilidadeweberiana. Como afirmou Rob Walker (1993:32), a ética da respon-sabilidade é o abrigo encontrado por Morgenthau para fugir tanto do

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idealismo como da política de poder em seu estado puro. As prescri-ções de Morgenthau aos estadistas estão sobremaneira próximas danoção de ética da responsabilidade e da concepção da política comovocação, cujas peculiaridades estão fora do alcance do público emgeral; a afinidade de Morgenthau com o conceito de ética da respon-sabilidade e o seu significado específico em termos da política inter-nacional tornam-se evidentes a partir da seguinte passagem de A Po-lítica Entre as Nações (Morgenthau, 2003), em que o autor justificapor que os interesses nacionais devem seguir uma lógica baseada nopoder e não em considerações baseadas em princípios morais abstra-tos:

“[...] é exatamente o conceito de interesse definido em termos de po-der que nos salva tanto daquele excesso moral como da loucura polí-tica, porque se considerarmos todas as nações, inclusive a nossa,como entidades políticas em busca de seus respectivos interesses de-finidos em termos de poder, teremos condições de fazer justiça a to-das elas. E estaremos fazendo justiça a todas em um duplo sentido:podemos julgar outras nações como avaliamos a nossa e, tendo julga-do deste modo, seremos capazes de executar políticas que respeitamos interesses das demais nações, ao mesmo tempo em que protege-mos e promovemos os nossos próprios interesses. Em política, a mo-deração tem necessariamente de refletir a moderação no julgamentomoral” (idem:22).

A concepção do realismo como teoria decorrente da tradição do pen-samento alemão em ciências sociais se mostra sobremaneira maisconsistente do que o recurso a leituras reificadas, simplistas e fora decontexto dos pensadores clássicos da Ciência Política, cujos objetosde estudo se associavam ao bem-estar no interior dos Estados. Hob-bes e Maquiavel, apontados por Carr como fundadores da teoria rea-lista em Relações Internacionais, voltavam seus escritos para a afir-mação do Estado nacional em um contexto de revolta contra o pensa-mento escolástico, típico da aurora da modernidade. É necessário

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grau considerável de violência para proceder à redução do pensa-mento desses autores à concepção amoral da política convencional-mente difundida entre os teóricos de Relações Internacionais.

Em termos da interface entre Relações Internacionais e Direito Inter-nacional, o paradigma realista da primeira destas disciplinas impõeprospectos exíguos de cooperação interdisciplinar, na medida emque, ao Direito Internacional, é reservado um escopo reduzido e umaaplicabilidade duvidosa nas relações internacionais. O desembarquede Morgenthau do pensamento nietzschiano no que se refere a ques-tões normativas, contudo, é pródigo em significados em termos dainterface entre Relações Internacionais e Direito Internacional, fa-zendo-o caminhar na direção de uma posição mais moderada acercado papel exercido pelas normas jurídicas internacionais.

Escola Inglesa e a busca

pela via media

A contraposição entre as propostas analítica e normativa apresenta-das por Morgenthau (2003) faz de A Política Entre as Nações um li-vro cujas proposições centrais se mostram contraditórias. De umlado, as leis fundamentais da política são determinantes no cenáriointernacional, conduzindo a um determinismo impossível de ser mo-dificado pela ação do estadista. De outro lado, a sensibilidade do es-tadista quanto aos interesses nacionais e à apreensão das característi-cas particulares de uma determinada situação é importante para aprodução de resultados na política internacional. Como apontouKoskenniemi (2002:470), “a afirmação simultânea do constrangi-mento e da liberdade foi crucialmente importante como o fundamen-to da técnica polêmica de Morgenthau”. A tentativa, por parte deMorgenthau, de conjugar elementos “realistas” e “idealistas” em suaobra magna fê-lo convergir, em importantes aspectos, na direção dosteóricos da chamada Escola Inglesa da disciplina de Relações Inter-nacionais.

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Para Martin Wight (1991), os realistas são aqueles teóricos que enfa-tizam e se concentram sobre o elemento da anarquia internacional, apolítica de poder e o estado de guerra. Os racionalistas enfocam oelemento da interação entre os Estados no cenário internacional,concentrando-se sobre as instituições criadas pelos mesmos parapossibilitar o intercurso mutuamente benéfico em ambiente anárqui-co. Os revolucionistas caracterizam-se por uma espécie de carátermissionário, concentrando-se, em última instância, em prescriçõesvoltadas para ideais de cunho cosmopolita.

Ao longo de sua carreira intelectual, Martin Wight demonstrou tra-ços incontrastáveis de sua preferência pela tradição racionalista e seuviés grociano, em detrimento das tradições capitaneadas por Maquia-vel e Kant. Hedley Bull seguiu o mesmo viés e ambos os teóricos sãoassociados comumente ao grocianismo e ao estudo da sociedadeinternacional. Wight (idem:21) caracteriza a tradição racionalistacomo uma espécie de via media entre os extremos representados pe-las tradições realista e revolucionista, síntese entre a política de poderpura apregoada pelos realistas e as prescrições idealistas propostaspelos revolucionistas: assim como Morgenthau, ele busca projetaruma fronteira teórica que se situe entre os extremos da política de po-der e do idealismo.

A convergência entre as propostas de Morgenthau e Wight, particu-larmente a busca por uma via media no estudo das relações internaci-onais, resulta da convergência desses teóricos em torno de valoresocidentais de matriz européia. O próprio Wight (1966:91) definiu abusca por um meio-termo, um juste milieu entre extremos, como aprincipal influência dos valores ocidentais no estudo das relações in-ternacionais, ao lado da filosofia política voltada para o estudo de go-vernos constitucionais. Com efeito, a busca pela via media é uma pe-rene característica do pensamento ocidental de matriz européia, sen-do que suas raízes podem ser traçadas até o conceito de justiça desen-

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volvido por Aristóteles, citado por Wight (idem:89) como o ponto departida da forma de pensar característica da civilização ocidental.

Segundo Aristóteles (1987), a justiça é uma virtude que engloba to-das as outras e se situa precisamente no meio-termo. Assim, a umapostura justa correspondem duas posturas injustas dispostas em ex-tremos opostos. A força dessa concepção pode ser aferida pelo fatode, até os dias de hoje, os ordenamentos jurídicos carregarem consi-go o brocardo “onde há justiça demais, há injustiça”, ou seja, a justiçanunca corresponde a uma atitude extremada, sendo sempre ditadapela moderação. Para ilustrar essa última colocação, é útil citar ima-gem muito comum em sede jurídica: associa-se uma situação justa aopêndulo de um relógio em sua posição central e a injustiça ao posici-onamento do pêndulo em qualquer das duas extremidades opostas.Na ânsia de se fazer justiça, é possível que, ao deslocar o pêndulo deuma extremidade para o centro, acabe-se por levá-lo à outra extremi-dade, permanecendo-se em uma situação injusta. Assim, a “justiçademais” corresponderia ao movimento de uma extremidade a outra,ou seja, de uma posição injusta a outra.

Não é difícil, ante ao exposto, estabelecer uma analogia entre a con-cepção aristotélica de justiça e a divisão levada a cabo por Wight(1991) do pensamento sobre as relações internacionais: as correntescapitaneadas por Maquiavel e Kant serviriam como extremos paraque a posição central, representante da moderação, acabe por ser pri-vilegiada, carregando toda a carga de um conceito de justiça que seencontra na base intelectual da civilização ocidental. Com efeito,Howard Williams e Ken Booth (1996:72) identificaram, na divisãoproposta por Wight, “um típico truque inglês”, que consiste em esta-belecer dois extremos implausíveis para realçar a preponderância domeio-termo.

A estrutura dos argumentos apresentados por Morgenthau e pelaEscola Inglesa também responde pela escolha do meio-termo em de-

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trimento de posições extremas: a sociedade de Estados independen-tes constitui forma de organização política da humanidade preferívelaos extremos representados pelo estado de guerra permanente e pelaconcepção normativamente voltada para o estabelecimento da civi-tas maxima; a noção de moralidade internacional criada no âmbito dasociedade européia de Estados é defendida por situar-se entre os ex-tremos representados pela raison d’état, relacionada à política de po-der em seu estado puro, e a conduta que segue o adágio latino fiat jus-titia et pereat mundus10, relacionado à defesa incondicional da práti-ca de ações condizentes com a moral individual.

Em termos da relação entre Relações Internacionais e Direito Inter-nacional, a influência dessa busca pelo meio-termo partilhada porMorgenthau e pelos teóricos da Escola Inglesa resulta em uma con-cepção do papel exercido pelas normas jurídicas internacionais quese situa entre os opostos claramente demarcados pelos seus negado-res, que não cogitam da existência de normas jurídicas em âmbito in-ternacional, e os kantianos, que postulam ser possível subsumir a po-lítica internacional em um arcabouço normativo racionalmente con-cebido por meio do Direito Internacional. A busca pelo meio-termo eo papel das normas jurídicas internacionais que dela resulta se reve-lam já na abertura do capítulo de A Política Entre as Nações (Mor-genthau, 2003) que se destina à análise do Direito Internacional:

“Deve-se relembrar, ao iniciarmos a discussão sobre direito interna-cional, o mesmo aviso de cautela contra os extremos com que foi ini-ciado o exame, respectivamente, da moralidade internacional e daopinião pública mundial. Um número crescente de autores expres-sam a opinião de que não existe o que se costuma chamar de direitointernacional. E, por outro lado, um número decrescente de observa-dores mantém a convicção de que, se fosse devidamente codificado eampliado, de modo a regular as relações políticas entre os Estados,ele poderia, graças à sua própria força intrínseca, transformar-se em

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algo que substituísse a disputa pelo poder no cenário internacional,ou pelo menos em uma influência limitadora da mesma” (idem:505).

Para Morgenthau e os teóricos da Escola Inglesa, o Direito Internaci-onal mostrar-se-ia eficiente como mecanismo regulador das áreasnas quais fosse observada convergência ou complementaridade entreos interesses dos Estados envolvidos, sendo incapaz de fazer prevale-cer seus comandos nos aspectos conflituosos da vida internacional.Seguindo essa perspectiva, as normas de Direito Internacional ten-dem a se concentrar sobre as regras básicas de coexistência entre osEstados, posto que haveria interesse comum na manutenção da or-dem internacional, constituída sob a forma de uma sociedade deEstados independentes, o que lança luz novamente sobre a união dosreferidos teóricos sob a égide dos valores europeus. Defende-se aconcepção grociana do Direito Internacional como instrumento vol-tado para a manutenção da sociedade européia de Estados resultantedo final da Guerra dos Trinta Anos, cujo traço marcante é o esta-do-centrismo: o Estado detém o monopólio da personalidade jurídi-ca internacional.

Behaviorismo e

“decadência”: o ápice do

afastamento

Bull (1969) identificou a tensão decorrente da existência de duasabordagens distintas sobre as relações internacionais, que ele deno-minou de clássica e científica. A abordagem clássica, característicade teóricos como ele próprio, Wight e Morgenthau, apregoava umaforma de teorização que derivava da Filosofia, da História e do Direi-to. Segundo Bull (idem), a adoção dos padrões estritos de verificaçãoe prova não produz resultados significantes quando o objeto de estu-do é a relação entre os Estados. Por sua vez, a abordagem científicaaspirava a uma teoria das relações internacionais cujas proposições

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fossem baseadas na prova matemática ou lógica ou, ainda, em proce-dimentos empíricos estritos de verificação. Esta forma de teorizaçãoera característica de nomes como Morton Kaplan, Thomas Schellinge Karl Deutsch, sendo possível relacioná-la às teorias dos sistemasinternacionais (idem:21).

Desse novo ambiente de conflito intelectual resultou, de acordo comas palavras de Kaplan (1969), um “novo grande debate” na disciplinade Relações Internacionais, entre os clássicos ou tradicionalistas e oscientíficos ou behavioristas (idem:39). As teorias tradicionalistaseram derivadas, em certa medida, dos escritos de autores mais anti-gos sobre Direito Internacional e reservavam espaço em suas aborda-gens ao papel das normas jurídicas internacionais, ao passo que asproposições lógicas, os modelos e os métodos quantitativos caracte-rísticos dos behavioristas acabavam por excluir a análise do papel doDireito Internacional dos estudos sobre política internacional.

Nesses termos, à medida que a disciplina de Relações Internacionaisse consolidava como “uma ciência social norte-americana” (Hoff-mann, 1991), no rastro da proeminência dos Estados Unidos, que ad-quiriram o status de superpotência ao final da Segunda Grande Guer-ra, prevalecia uma metodologia que resultava em um estudo da polí-tica internacional completamente alheio às considerações sobre oDireito Internacional. A partir dessa conjuntura, não surpreende queo livro Theory of International Politics, de Kenneth Waltz (1979), aobra mais influente que resultou do movimento behaviorista na dis-ciplina de Relações Internacionais, somente se refira às leis em suaconotação atinente às relações lógicas e explicações científicas (Kos-kenniemi, 2002:472). Waltz (1979) considerava que a anarquia dosistema internacional determinava o comportamento dos Estados,motivo pelo qual as normas – dentre elas aquelas emanadas do Direi-to Internacional – não exerciam qualquer efeito causal independentesobre os Estados.

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Não bastasse essa conjuntura, no campo do Direito Internacionalpredominava forte ostracismo no período, na esteira da “decadência”observada nesta disciplina na segunda metade do século XX, cujasraízes remontam ao ceticismo lançado por teóricos como Morgent-hau e Schmitt. Brian Simpson (2002:996) apontou, com base na lite-ratura norte-americana sobre o assunto, que a referida “decadência”se deveu a uma conjunção de fatores que acabaram por destruir ocompromisso com o primado do Direito e com o provimento de umajustiça imparcial. Dentre tais fatores, merecem destaque a ganância,o realismo, o pragmatismo, a irresponsabilidade das academias deDireito e o ativismo judicial.

A confluência entre a prevalência do neo-realismo na disciplina deRelações Internacionais e o período de “decadência” do DireitoInternacional representou brusco afastamento entre os estudiososdessas duas disciplinas; se, por um lado, os teóricos da política inter-nacional concentravam-se em estudos estritamente ligados às ques-tões de deterrence e das causas da guerra, por outro lado, os juristasocupavam-se cada vez mais do lado profissional do Direito, abdican-do das teorias sobre o ambiente internacional que marcaram os perío-dos mais proeminentes do Direito Internacional.

À medida que a Guerra Fria era levada a termo, contudo, as proposi-ções neo-realistas foram objeto de contestações por parte dos teóri-cos envolvidos com o estudo das relações internacionais. Argumen-tava-se, entre outras coisas, que as normas seriam elementos relevan-tes para o estudo da política internacional. Os juristas internacionais,por sua vez, buscando superar o estado de ostracismo que prevaleciano Direito Internacional, encontraram nas teorias sobre as relaçõesinternacionais elementos que se adequavam às problemáticas da dis-ciplina que se achavam intimamente ligadas à política internacional.Dessa forma, ao final da Guerra Fria, os teóricos de Relações Interna-cionais e do Direito Internacional reaproximaram-se, sendo neste

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contexto criadas as teorias institucionalista, liberal e construtivista,resultantes de empreendimentos interdisciplinares.

A Reaproximação ao Final

da Guerra Fria:

Institucionalismo,

Liberalismo e

Construtivismo

O institucionalismo

A contínua prevalência do realismo na disciplina de Relações Inter-nacionais passou a ser contestada pela observação da perenidade exi-bida por certos arranjos normativos internacionais às expensas dasvariações dos atributos de poder entre os membros do sistema inter-nacional. Esse descompasso representava anomalias empíricas da te-oria realista, posto que esta considera serem as instituições internaci-onais sempre o reflexo ou o espelho da distribuição de poder entre osatores do sistema internacional. Mais especificamente, à visão geral,segundo a qual haveria um declínio da hegemonia norte-americanaestabelecida desde o fim da Segunda Grande Guerra, contrapunha-sea constatação de que permanecia em funcionamento a estrutura cria-da ao final daquele conflito.

Nesse contexto, reabriu-se o diálogo entre os teóricos da política in-ternacional e os juristas internacionais, por meio da criação da teoriainstitucionalista11. A convergência em relação ao objeto de estudo doDireito Internacional pode ser aferida a partir da definição dos regi-mes internacionais produzida pelos teóricos institucionalistas: “regi-mes são conjuntos, implícitos ou explícitos, de princípios, normas,regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quaisconvergem as expectativas dos atores em uma determinada área dasrelações internacionais” (Krasner, 1982:2).

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A teoria institucionalista na disciplina de Relações Internacionais –capitaneada por Robert Keohane – surgiu como contrapartida à proe-minência lograda pelo neo-realismo. Contudo, assim como oneo-realismo, o institucionalismo deve ser compreendido dentro doambiente intelectual característico dos Estados Unidos, particular-mente a partir do consenso observado na academia norte-americanaquanto às premissas basilares que deveriam direcionar o estudo dapolítica internacional, a saber, o papel central concedido à estruturainternacional anárquica, a concepção do Estado como ator primordi-al e a caracterização deste como um ator que age baseado no au-to-interesse.

A última dessas premissas se relaciona com a adoção do modelo doator racional, conseqüência da revolução behaviorista que invadiu oestudo das relações internacionais e imprimiu um viés nitidamenteeconomicista nas teorias voltadas para a política internacional.Como pano de fundo à referida aplicação de métodos e idéias prove-nientes da Economia, residia o compromisso dos teóricos da políticainternacional com o método científico positivo. Em uma área de estu-dos relativamente recente como a política internacional, ciosa deatestar o seu caráter científico, nada mais conveniente do que a im-portação dos métodos da ciência social que observou a influênciamais avassaladora da metodologia proposta por Augusto Comte, tidacomo sinônimo de cientificidade por boa parte dos acadêmicos nor-te-americanos à época.

Ocorre que o positivismo impõe limitações ao debate interdisciplinarentre os teóricos da política internacional e os juristas internacionais,na medida em que dificulta a apreensão dos efeitos das normas nomundo social. Como afirmaram Friedrich Kratochwil e John Ruggie(1986), lançando as bases da crítica construtivista às teorias raciona-listas (realistas e institucionalistas), há complicações inerentes àconcepção das normas como ocorrências causais, o que dificulta a

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aplicação das relações de causa e efeito típicas do positivismo. Naspalavras destes autores:

“Normas podem ‘guiar’ o comportamento, podem ‘inspirar’ o com-portamento, podem ‘racionalizar’ o comportamento, podem expres-sar ‘expectativas mútuas’ sobre o comportamento, ou podem ser ig-noradas. Mas elas não correspondem a uma causa no sentido em queum projétil de arma de fogo ao atravessar o coração causa a morte ouum surto incontrolado na oferta de dinheiro causa inflação”(idem:355).

Além disso, a formulação de leis gerais característica do positivismo,a partir de constatações empíricas, também resulta em problemaspara uma análise do papel exercido pelas normas, uma vez que estassão válidas ainda que em termos contrafatuais. Mesmo em caso dedescumprimento, uma norma não perde a sua validade, ao contrárioda concepção de “lei” sustentada pelos positivistas. Dirigir embria-gado, por exemplo, não refuta a norma que proíbe os indivíduos dedirigir sob a influência do álcool. Segue-se a conclusão desses auto-res:

“O impacto das normas dentro dos regimes internacionais não é umprocesso passivo, que pode ser apreendido de forma análoga às leisnewtonianas que governam a colisão entre dois corpos. Assim, a prá-tica comum de tratarem-se as normas como ‘variáveis’ – sejam elasindependentes, dependentes, intervenientes, ou o que quer que seja –deve ser severamente repreendida” (idem:356).

De um lado, o fato de o institucionalismo incorporar as premissas ba-silares do neo-realismo permitiu que os seus proponentes evitassemuma reedição do debate entre “realistas” e “idealistas”, o que propor-cionou maior amplitude à reabertura do diálogo com os juristas inter-nacionais. De outro lado, contudo, ao adotarem as premissas basila-res do realismo, notadamente o seu enfoque estado-cêntrico, os insti-tucionalistas afastaram-se das questões mais prementes do estudo do

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Direito Internacional no pós-Guerra Fria, como o papel exercido pe-los atores domésticos e transnacionais e a análise de temas como di-reitos humanos e o acesso dos atores não-estatais aos tribunais inter-nacionais.

Além disso, os teóricos institucionalistas comungam com os realis-tas uma visão exógena dos interesses dos Estados. Em outras pala-vras, os interesses são “tomados como dados” a partir da proposiçãode que os Estados agem, necessariamente, baseados em sua concep-ção dos seus próprios interesses. Nesses termos, as normas jurídicasinternacionais são concebidas como instrumentos utilizados peloEstado para satisfazer o seu auto-interesse previamente formulado.Como resultado, o Direito Internacional, dentro do paradigma insti-tucionalista, apesar de ressurgir da completa obscuridade a que foirelegado pelo neo-realismo, restringe-se ao papel de variável inter-veniente, posicionando-se entre os fatores causais básicos – como in-teresse e poder – e os resultados produzidos no cenário internacional.

A discussão relativa aos motivos que conduzem os Estados à aquies-cência12 perante as normas jurídicas internacionais encontra a suaresposta, no âmbito da teoria institucionalista, na medida em que es-tas normas ajudam os Estados a satisfazer os seus interesses, porexemplo, ao aumentar o fluxo de informações ou ao reduzir os custosde transação e os incentivos para a violação dos acordos assumidosinternacionalmente.

Ao fim e ao cabo, os desafios impostos pelos institucionalistas aos re-alistas reabriram o diálogo entre Relações Internacionais e DireitoInternacional ao propor um enfoque da política internacional basea-do em elementos como normas, regras, princípios e procedimentosde tomada de decisão. Contudo, o compartilhamento de certas pre-missas, como o estado-centrismo e a visão dos interesses estataiscomo fixos e exógenos, com os mesmos teóricos realistas foi respon-sável, em grande medida, pela limitação dos estudos interdisciplina-

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res entre juristas internacionais e teóricos da política internacional.Apesar das limitações à reaproximação entre Direito Internacional eRelações Internacionais no âmbito do institucionalismo, o resgate doenfoque sobre elementos afinados com o objeto de estudo dos juris-tas internacionais abriu espaço para propostas interdisciplinaresmais profundas.

O liberalismo

Após o final da Guerra Fria, observou-se um movimento de resgatedas proposições da teoria liberal de Relações Internacionais, a partirdos trabalhos de juristas internacionais e teóricos da política interna-cional, notadamente Anne-Marie Slaughter (1993) e Andrew Mo-ravcsik (1997). No rastro da percepção de que a globalização acentu-ou a importância dos atores não-estatais, os liberais propõem o enfo-que sobre o papel dos atores sociais na formação dos interesses esta-tais, que não são mais considerados exógenos e fixos – como propu-nham realistas e institucionalistas –, mas determinados a partir dasrelações sociais estabelecidas em âmbito doméstico e transnacional.

Os liberais, resgatando a importância do vínculo estabelecido porKant e Wilson entre a organização política interna dos Estados e oseu comportamento na esfera internacional, enfatizam a importânciada política doméstica para os resultados produzidos no sistema inter-nacional. Como pano de fundo, subsiste a premissa de que o viés derepresentação presente nas instituições políticas é responsável pelaprodução de resultados subótimos para a população dos Estados con-siderada em sua totalidade, como as guerras e o protecionismo co-mercial, por exemplo, que oneram a maioria da população para o be-nefício de pequenos, mas influentes, grupos de interesse.

Andrew Moravcsik (idem), com o artigo “Taking Preferences Seri-ously: A Liberal Theory of International Politics”, buscou restabele-cer a teoria liberal na disciplina de Relações Internacionais, a partir

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de três proposições que comporiam o seu núcleo duro: 1) a primaziados atores sociais: os atores fundamentais na política internacionalsão os indivíduos e grupos privados, em média, racionais e avessosao risco; eles organizam trocas e ações coletivas de forma a promo-ver interesses diferenciados sob restrições impostas pela escassezmaterial, valores conflitantes e variações no poder de influência so-cial; 2) representação e preferências estatais: Estados (assim como asdemais instituições políticas) representam uma parcela da sociedadedoméstica e agem movidos pelos interesses desta parcela; 3) interde-pendência e o sistema internacional: a configuração das preferênciasde Estados interdependentes determina o seu comportamento. Emoutras palavras, apesar de os interesses estatais serem formadospré-socialmente, o seu comportamento é uma função dos interessesde outros Estados (idem:516-521).

A teoria liberal da política internacional apresentada por Moravcsik(idem) e adotada por Slaughter vai de encontro às concepções con-vencionalmente estabelecidas sobre o liberalismo na disciplina deRelações Internacionais (Slaughter, 2000:37). O liberalismo é co-mumente associado ao institucionalismo, associação esta que origi-nou a nomenclatura “institucionalismo neoliberal”. Slaughter e Mo-ravcsik, contudo, fornecem subsídios para a contestação dessa asso-ciação; o resgate do liberalismo por eles proposto está assentado so-bre premissas muito distintas daquelas sustentadas pelos institucio-nalistas.

O institucionalismo, à moda do realismo, adota o enfoque esta-do-cêntrico e deriva os resultados da política internacional a partir dehipóteses sistêmicas, diferindo dos realistas apenas na medida emque confere efeito causal independente às instituições internacionais,para as quais os institucionalistas voltam a sua análise, o que os fazconvergir para a perene orientação teórica grociana de estudos sobreo sistema internacional. O liberalismo, por outro lado, busca as hipó-teses explicativas dos resultados produzidos na política internacional

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a partir da ação da sociedade civil – doméstica e transnacional – so-bre os Estados. A deturpação decorrente da nomenclatura “instituci-onalismo neoliberal” nada mais é do que o resultado da crença dosteóricos de Relações Internacionais na existência do “idealismo” noperíodo entreguerras: à moda do “idealismo”, o “institucionalismoneoliberal” congrega orientações teóricas sobremaneira distintas en-tre si.

Em artigo clássico para a promoção do debate interdisciplinar,Slaughter (1993) propôs uma agenda dual para a cooperação entre osteóricos de Direito Internacional e de Relações Internacionais. A du-alidade correspondia às possibilidades abertas pelos paradigmas ins-titucionalista e liberal para o debate interdisciplinar. Ao contrário doinstitucionalismo, cuja opção pelo modelo do Estado como ator uni-tário impede teorizações a respeito das relações entre os atores soci-ais e os Estados, o liberalismo é capaz de incluir em sua proposta dedebate interdisciplinar temas como Direito Transnacional e direitoshumanos, neste último caso indo ao encontro da tendência observadano Direito Internacional Público de considerar o indivíduo comopessoa internacional.

Na esteira das possibilidades abertas para a contribuição recíprocaentre os teóricos de Relações Internacionais e do Direito Internacio-nal, desenvolveu-se, simultaneamente à reconstrução do paradigmaliberal em Relações Internacionais, uma agenda de pesquisa voltadapara o debate interdisciplinar. Deve-se observar que os teóricos insti-tucionalistas, gradualmente, observaram um movimento de desloca-mento de premissas próximas ao realismo a premissas mais afins aoliberalismo, a partir da constatação de que o estudo da política inter-na dos Estados constituiria um subterfúgio para o tratamento dasanomalias com as quais se deparava a teoria institucionalista. Provadisso é o fato de Slaughter e Moravcsik serem acompanhados, no es-tudo da “legalização”13 – um marco em termos do debate interdisci-plinar promovido sob a égide da teoria liberal – por teóricos como

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Robert Keohane e Judith Goldstein, expoentes do paradigma institu-cionalista.

O estudo da “legalização” possibilitou a análise de questões de inte-resse das disciplinas de Relações Internacionais e do Direito Interna-cional, como as conseqüências do acesso de atores não-estatais àsCortes Internacionais, o debate acerca das formas jurídicas “duras” e“suaves” e, ainda, a aquiescência. Com respeito a esta última, desta-que-se que o estudo da “legalização” amplia a sua análise ao permitira construção de hipóteses que se baseiam na política doméstica dosEstados. As normas emanadas do Direito Internacional não são maisconcebidas como instrumentos para satisfazer os interesses dos Esta-dos, mas podem transformar estes últimos na medida em que têm opoder de modificar a correlação doméstica e transnacional de forças:ao favorecer alguns grupos em detrimento de outros, as referidas nor-mas participam da constituição dos interesses dos Estados.

Como pode ser aferido por meio do estudo da “legalização”, entre-tanto, os teóricos liberais empregam, ostensivamente, a exemplo dosteóricos institucionalistas, a epistemologia positivista. As conse-qüências oriundas da presença de normas jurídicas internacionaisainda são apreendidas com base no modelo positivista, que se con-centra sobre as relações de causa e efeito e a formulação de leis geraisa partir de investigações empíricas. Nesse sentido, as críticas de Kra-tochwil e Ruggie (1986) à utilização da epistemologia positivista naanálise das normas também se aplicam, em grande medida, aos teóri-cos liberais.

Além disso, apesar de o liberalismo tornar endógeno os interessesdos Estados, os interesses dos atores sociais – fundamentais para osliberais – são exógenos e anteriores ontologicamente às normas jurí-dicas. Estas – ainda que não sejam concebidas como meros instru-mentos para concretizar os interesses estatais – são instrumentos queservem aos interesses utilitaristas dos atores sociais.

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Desconstruindo a anarquia

e as normas jurídicas – o

construtivismo e o debate

interdisciplinar

A derrocada pacífica da União Soviética, pondo fim à Guerra Fria,

impôs contundentes desafios aos estudiosos da política internacio-

nal, pois os paradigmas reconhecidamente dominantes à época – o

neo-realismo e o institucionalismo – não dispunham de instrumentos

analíticos para explicar a extinção não-belicosa de uma superpotên-

cia como o Estado soviético. À medida que crescia a percepção de

que o entendimento da origem dos interesses dos atores se mostrava

indispensável para a explicação dos resultados observados na políti-

ca internacional, abriu-se espaço, na disciplina de Relações Interna-

cionais, para perspectivas focadas em aspectos culturais e sociológi-

cos, que, enfatizando a construção social dos elementos basilares do

sistema internacional, acabaram por ser reunidas sob a nomenclatura

construtivismo (Katzenstein et alii, 1998).

Sintomaticamente, em 1989, ano da queda do Muro de Berlim, sím-

bolo do fim da Guerra Fria, duas obras lançaram as bases para a abor-

dagem construtivista na disciplina de Relações Internacionais, am-

bas enfocando o papel das regras, concebidas em sentido amplo, para

a compreensão da política internacional14. Concomitantemente ao

Muro de Berlim, começava a desmoronar a prevalência do paradig-

ma neo-realista no estudo das relações internacionais, uma vez que

este paradigma se encontrava envolvido em um oceano de anomalias

na esteira do fim da bipolaridade que marcara o sistema internacional

desde o final da Segunda Grande Guerra.

O enfoque construtivista sobre as regras e normas abre um vastocampo de análises para a conciliação entre os estudos sobre a políticainternacional e aqueles sobre Direito Internacional, como o papel

Dom Quixote Reencontra Sancho Pança –

Relações Internacionais e Direito...

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exercido pela legitimidade, pelo Direito costumeiro internacional e,inclusive, os efeitos que a variável poder exerce no cenário internaci-onal. Assim, não surpreende que Friedrich Kratochwil e NicholasOnuf apresentem em comum uma sólida formação intelectual nocampo do Direito. Da mesma forma que o liberalismo e, em menormedida, o institucionalismo, pode-se afirmar que o construtivismo,na disciplina de Relações Internacionais, constitui uma teoria desen-volvida a partir de esforços que uniram teóricos tanto do DireitoInternacional quanto de Relações Internacionais.

De um ponto de vista mais abrangente, o construtivismo deu seqüên-cia às contestações dos teóricos críticos da política internacional que,no rastro do “Terceiro Grande Debate” da disciplina de RelaçõesInternacionais, questionaram as bases sobre as quais se assentavamos paradigmas dominantes à época, o realismo e o institucionalismo(Reus-Smit, 1996). Os construtivistas desenvolveram a agenda críti-ca na medida em que forneceram os alicerces para uma concepçãoontológica alternativa da política internacional, na qual os elemen-tos-chave das relações internacionais – como poder, interesses emesmo a anarquia e os Estados – não eram tomados como dados, masproblematizados a partir da proposição de que são construções socia-is mediadas pelas ações dos atores da política internacional.

No que se refere ao debate interdisciplinar entre Relações Internacio-

nais e Direito Internacional, esse componente crítico do construtivis-

mo abre um canal de diálogo entre os construtivistas e os teóricos le-

gais críticos a partir do momento em que ambos, ao proporem a pro-

blematização dos conceitos que informam o estudo das disciplinas

de Relações Internacionais e do Direito Internacional, investigam o

papel das regras jurídicas na formação dos elementos basilares des-

tas disciplinas, como o poder, os interesses, a anarquia e os Estados.

Basicamente, os construtivistas e os teóricos legais críticos propõem

a existência de uma relação interativa entre as regras jurídicas e a for-

Igor Abdalla Medina de Souza

146 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 95: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

mação dos referidos elementos, alegando haver uma constituição

mútua entre estes e aquelas.

É precisamente a possibilidade de as normas adquirirem precedência

ontológica sobre os interesses dos atores que credencia o construti-

vismo a suplantar não somente o institucionalismo em termos de de-

bate interdisciplinar entre Relações Internacionais e Direito Interna-

cional, mas também o liberalismo. Para os liberais, as normas, apesar

de serem anteriores aos interesses dos Estados, são posteriores à for-

mação dos interesses pelos atores sociais, atores fundamentais da po-

lítica internacional segundo o paradigma liberal. No âmbito do cons-

trutivismo, três autores merecem destaque na abertura de um canal

de diálogo interdisciplinar: Alexander Wendt, Nicholas Onuf e Frie-

drich Kratochwil.

Alexander Wendt (1987; 1992; 1999) abriu espaço para estudos in-

terdisciplinares ao propor que os conceitos de interesse e poder são

constituídos a partir de idéias – parte delas normas. Essa abertura

permite cogitar da participação das normas jurídicas internacionais

na formação dos referidos conceitos, assim como da própria identi-

dade dos atores, fonte da qual emanam os seus interesses. A ênfase

desse autor nos efeitos constitutivos das normas permite transcender

a interpretação causal comumente dispensada às normas jurídicas no

estudo das relações internacionais.

Nicholas Onuf (1989), ao desenvolver uma versão do construtivismo

mais radical do que aquela proposta por Wendt, leva às últimas con-

seqüências o papel constitutivo das regras, que passam a ser respon-

sáveis pela constituição dos próprios atores internacionais. Onuf,

contudo, analisa o papel das regras jurídicas sob o enfoque das assi-

metrias geradas pelas mesmas, ou seja, as regras emanadas do Direi-

to Internacional – que nunca são neutras – são responsáveis pelas re-

lações de domínio presentes no sistema internacional.

Dom Quixote Reencontra Sancho Pança –

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Page 96: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

Ao enfocar as compreensões compartilhadas intersubjetivamente,

Kratochwil (1989) é conduzido ao papel da linguagem na construção

dos conceitos que compõem o estudo das relações internacionais. O

Direito é concebido como um processo argumentativo peculiar que

deita as suas raízes na tradição retórica fundada por Aristóteles, sen-

do relevante na medida em que é responsável, a partir de sua dimen-

são comunicativa, pela técnica segundo a qual os atores buscam per-

suadir uns aos outros no cenário internacional. Seguindo essa pers-

pectiva, Kratochwil (idem) propõe um entendimento mais frutífero

para a perene questão acerca do papel do Direito Internacional no sis-

tema internacional.

Movidos pelo potencial interdisciplinar apresentado pelo construti-

vismo, diversos teóricos empreenderam análises sobre objetos de in-

teresse das disciplinas de Relações Internacionais e do Direito Inter-

nacional: Helen McManus (2001) busca – baseando-se nas conver-

gências entre o construtivismo proposto por Alexander Wendt e a te-

oria legal crítica desenvolvida por Martti Koskenniemi – investigar o

papel interativo das normas jurídicas internacionais em sua relação

com o poder; Thomas Risse-Kappen (1995) formula explicações

construtivistas para a paz democrática; Martha Finnemore e Stephen

Toope (2001) desferem contundentes críticas às bases teóricas libe-

rais sobre as quais se assenta o estudo da “legalização”.

O maior potencial do construtivismo para o debate interdisciplinar

entre juristas internacionais e teóricos da política internacional

pode ser associado à sua dimensão crítica; os construtivistas carac-

terizam-se pela problematização dos conceitos-chave que infor-

mam o estudo das relações internacionais. Seguindo essa perspecti-

va, não somente os interesses dos atores, mas também a anarquia, o

poder e os próprios Estados são constituídos pelas regras e normas

jurídicas, que também são concebidas como construções mediadas

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148 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 97: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

pelas ações dos atores, prevalecendo, em última instância, a visão

de que há mútua constituição entre os supramencionados elemen-

tos. Essa dimensão crítica abre um canal de diálogo entre os cons-

trutivistas e os teóricos legais críticos, como Martti Koskenniemi,

para quem as normas jurídicas internacionais participam da cons-

trução de um conceito operativo de poder e são, ao mesmo tempo,

constituídas pelo poder.

Para além de Dom Quixote

e Sancho Pança – Relações

Internacionais e Direito

Internacional no Início do

Século XXI

Desde o “Primeiro Grande Debate” da disciplina de Relações Inter-nacionais, as alcunhas de “idealistas” e “realistas” acompanham,respectivamente, os juristas internacionais e os teóricos da políticainternacional, que acabaram por formar as suas identidades a partirdessa dicotomia que se encontra arraigada entre os internacionalis-tas. Essa oposição impede, contudo, uma compreensão mais profí-cua acerca da interface entre Relações Internacionais e Direito Inter-nacional, a começar pela deturpação das duas teorias que, historica-mente, mais influência exerceram no estudo da política internacio-nal: o realismo e o liberalismo. A partir da obra Vinte Anos de Crise,de E. H. Carr (1939), o realismo e o liberalismo foram sobremaneiradistorcidos, concebendo-se, desde então, o primeiro como uma tradi-ção que remonta aos escritos de Maquiavel e Hobbes e o último comouma defesa do potencial autônomo das organizações internacionais edo Direito Internacional para abolir os conflitos internacionais. O re-alismo e o liberalismo são reduzidos, respectivamente, à apologia deuma concepção amoral da política e à defesa utópica da prevalênciada harmonia de interesses entre os atores internacionais.

Dom Quixote Reencontra Sancho Pança –

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A dicotomia representada pelos termos “idealismo” e “realismo” detal forma descaracteriza a relação entre Direito Internacional e Rela-ções Internacionais que permite uma analogia com os personagenscriados por Miguel de Cervantes, Dom Quixote e Sancho Pança.Estes opõem entre si, de maneira caricatural, o extremo idealismo e oextremo realismo, compondo um típico movimento dialético em quea identidade de ambos é consolidada por meio da contraposição entreo desejo de mudança que, a partir da perda de contato com a realida-de, converte-se em loucura, e o pragmatismo que, a partir de um ceti-cismo radical, converte-se em apologia irrestrita, ainda que por vezesinvoluntária, das condições presentes.

Em última instância, se o “dever ser” de que se ocupam os juristas in-ternacionais é oposto radicalmente ao “é” de que se ocupam os teóri-cos da política internacional, a oposição que informa a própria identi-dade das disciplinas de Direito Internacional e Relações Internacio-nais as torna fadadas à inutilidade, pois o “dever ser” perde a preten-são de “ser” e o que “é” se torna impermeável àquilo que “deve ser”.Se os juristas internacionais tornam-se inúteis pela defesa de propo-sições irrealizáveis, os teóricos da política internacional tornam-seinúteis pelo fato de resumirem a sua função à descrição da realidadeincontornável do sistema internacional, que, não permitindo açõesalternativas, faz dos agentes políticos meros contempladores da rea-lidade.

O período de maior afastamento entre as disciplinas de Direito Inter-nacional e Relações Internacionais, resultante da conjugação entre arevolução behaviorista na última e a “decadência” da primeira, é umexemplo dos efeitos da separação radical entre Direito Internacionale Relações Internacionais. A derrocada da União Soviética, que acar-retou o final da Guerra Fria, mudança histórica de imensas propor-ções, passou ao largo dos juristas internacionais e dos teóricos da po-lítica internacional. Para os primeiros, a bipolaridade entre duas su-perpotências que não hesitavam em oferecer indícios de que o Direi-

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to Internacional não realizaria o ideal de regular o exercício do poderem âmbito internacional resultou em um forte ostracismo, que impe-dia as teorizações sobre o ambiente internacional que marcaram osperíodos mais proeminentes da disciplina. No caso dos teóricos dapolítica internacional, tornou-se patente a sua incapacidade em lidarcom temas como a mudança histórica, uma vez que se encontravamenvolvidos em uma metodologia que impunha uma apologia implí-cita às condições vigentes no período da Guerra Fria. Como afirmouRobert Cox (1986:248), em referência ao neo-realismo de KennethWaltz: “Há uma inequívoca qualidade panglossiana em uma teoriaque, publicada ao final da década de 1970, conclui que o mundo bi-polar é o melhor de todos os mundos possíveis”15.

As teorias realista e liberal, da forma como descritas neste artigo,conferem coerência às histórias das disciplinas de Relações Interna-cionais e do Direito Internacional a partir do seu enquadramento den-tro do panorama mais amplo da modernidade. Em termos filosófi-cos, o projeto moderno é expresso, inicialmente, na crença iluministana razão humana como fonte do progresso. Nesse sentido, as teoriasteleológicas que pregam o progresso social capitaneado pela razãohumana são a característica primordial dessa faceta otimista da mo-dernidade. Todavia, a descrença quanto ao papel da razão no mundosocial, mundo este caracterizado pela ação de forças irracionais liga-das à natureza humana, imprime à modernidade um tom trágico, for-mando a sua faceta pessimista, quando o progresso dá lugar a uma at-mosfera apocalíptica.

Como vimos, a formação das disciplinas de Direito Internacional eRelações Internacionais deveu-se, em boa medida, às propostas re-formistas liberais, principalmente à defesa do primado do Direito nosistema internacional. A idéia de subsumir a política internacionalem um arcabouço normativo racionalmente concebido sob a égidedo Direito Internacional, acompanhado da difusão do modelo da de-mocracia liberal, revela a crença dos primeiros teóricos de ambas as

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disciplinas na razão como força passível de governar as ações huma-nas em nível internacional. Não surpreende que, nesse período – degrande proeminência para o Direito Internacional e uma certa confu-são para Relações Internacionais, que deveria esperar pela criação doparadigma realista para a consolidação de sua identidade enquantodisciplina acadêmica autônoma –, o pensamento kantiano e a suacrença teleológica na razão humana como móbil para o progresso so-cial tenham prevalecido nessas disciplinas.

A crítica realista provida por Hans Morgenthau, apoiado em uma tra-dição alemã que remonta ao pensamento nietzschiano, pôs em xequeprecisamente o potencial da razão em governar o mundo social, deri-vando-se disso a incapacidade de o Direito Internacional regular aação humana em nível internacional por meio de um arcabouço nor-mativo racionalmente concebido. Esse movimento transformou aproeminência do Direito Internacional, do final do século XIX e iní-cio do século XX, em “decadência” no rastro de um período de forteostracismo na disciplina, ao mesmo tempo que consolidou a identi-dade da disciplina de Relações Internacionais, ao descartar a subsun-ção dos assuntos internacionais em temas legais, conseqüência querestaria inevitável em caso de realização do ideal do primado do Di-reito. Tampouco surpreende que o pensamento nietzschiano tenhaservido de pano de fundo para os ataques ao liberalismo que resulta-ram na formação do paradigma realista na disciplina de RelaçõesInternacionais. A concepção de Morgenthau como um discípulo deNietzsche para as disciplinas do Direito Internacional e de RelaçõesInternacionais nada mais faz do que posicionar as referidas discipli-nas na trilha filosófica de modernidade, da crença iluminista à des-crença trágica no papel da razão no mundo social.

Como conseqüência dessa afinidade entre a história das disciplinas eo pensamento moderno, modernos são os limites que se impõem a ju-ristas internacionais e teóricos da política internacional, no rastro da

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nova edição do debate que opõe realistas e liberais, sobremaneira se-

melhante àquele que teve lugar na República de Weimar na década

de 192016. Os internacionalistas encontram-se diante da escolha en-

tre dois pólos que se mostram igualmente insatisfatórios, pois, se a

partir do realismo acabamos por militar em favor da ética da respon-

sabilidade, que resulta em um particularismo indiferente, partindo

do liberalismo, seguimos a linha monolítica e impositiva que resulta

em um universalismo imperialista.

O caso paradigmático que expõe os limites impostos aos internacio-

nalistas pela escolha entre realismo e liberalismo é representado pe-

las intervenções humanitárias. Por um lado, a recusa em permitir a

violação do princípio da soberania em caso de desrespeito maciço

aos direitos humanos implica a condenável indiferença perante de-

mandas tão prementes quanto o restabelecimento do respeito às con-

dições básicas para a existência e o desenvolvimento da vida huma-

na. Por outro lado, a defesa da violação da soberania nos referidos ca-

sos abre as portas para que, a partir do discurso humanitário, as po-

tências mais poderosas imponham valores culturais, políticos e soci-

ais aos países menos poderosos, em flagrante desrespeito à autode-

terminação dos povos.

O próprio projeto moderno traz, entretanto, uma alternativa para con-

trapor o niilismo que pode decorrer da necessidade de escolha entre o

particularismo indiferente e o universalismo imperialista. Paralela-

mente ao projeto moderno que se volta para o progresso social por

meio da crença iluminista na razão, crença que vem sendo contestada

com maior contundência desde Nietzsche, desenvolveu-se uma tra-

dição de pensamento que busca a conscientização do Homem de que

as barreiras impostas ao desenvolvimento de suas potencialidades

são socialmente construídas, não constituindo barreiras naturais in-

transponíveis: trata-se do projeto crítico.

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O termo crítica foi utilizado primeiramente pelos humanistas e pelospregadores da Reforma Protestante; estes últimos utilizavam a críticados escritos bíblicos para contestar as práticas eclesiásticas vigentesà época; contudo, foi no período iluminista que a crítica atingiu a ma-turidade enquanto método, sendo ligada de forma clara à noção deque a falta de liberdade do Homem era decorrente de crenças e pensa-mentos distorcidos, que impediam a sua emancipação. Tendo em vis-ta o vínculo estabelecido entre a crítica e o exercício da razão no pen-samento iluminista, não surpreende que Kant seja uma vez mais oponto de partida. Nas palavras desse pensador:

“O iluminismo é a libertação do Homem da tutelagem a que ele pró-prio se submeteu. Tutelagem é a incapacidade de o Homem fazer usodo seu próprio entendimento sem o direcionamento dado por outroHomem. Essa tutelagem é auto-imposta se a sua causa não é a falta deentendimento, mas sim a falta de resolução e coragem para fazer usodele sem o direcionamento de outrem. O lema do iluminismo é, por-tanto: Sapere Aude! Tenha coragem de usar o seu próprio entendi-mento” (Kant, 1970:54).

O projeto crítico sofreu alterações durante o seu percurso, que abran-ge o pensamento de um poderoso conjunto de autores, como Hegel,Marx e os teóricos da Escola de Frankfurt. Contudo, a busca pelaemancipação do ser humano, a partir da conscientização do carátercondicional das barreiras a ele impostas, representa traço comumque une os críticos desde Kant. Na discussão que nos é particular-mente relevante, o projeto crítico associa-se, em seus pontos funda-mentais, às propostas dos teóricos construtivistas17.

O elemento essencial da orientação teórica construtivista consiste naconstatação de que o mundo tal como o conhecemos é artificial, ouseja, é resultado da ação dos atores, e não natural, isto é, independen-te da ação humana. Conceitos como “anarquia” e “norma jurídica”,concebidos como construções artificiais, deixam de carregar signifi-

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cados intrínsecos; como construções sociais, o conteúdo deles é con-ferido a partir das ações humanas que dão significado aos mesmos. Aprevalência do behaviorismo e do positivismo no estudo do ambien-te internacional, acompanhada da dicotomia entre “realistas” e “ide-alistas”, resultou na inversão dessa relação: ou o comportamento hu-mano era condicionado pela anarquia internacional, como sustenta-vam os “realistas”, ou era – ou deveria ser – condicionado pelas nor-mas jurídicas internacionais, como sustentavam os “idealistas”. A“anarquia” e as “normas jurídicas” eram consideradas como elemen-tos externos que determinavam a ação humana.

A convergência entre construtivistas e teóricos legais críticos em tor-no do enfoque sobre a relação constitutiva entre os conceitos que in-formam o estudo de Relações Internacionais e do Direito Internacio-nal conduz à consideração de que o poder e as normas jurídicas inter-nacionais são mutuamente constituídos. Assim, ao mesmo tempoque as normas jurídicas participam da construção de um conceitooperativo de poder, este constitui as normas jurídicas, ao imprimirnelas as assimetrias presentes no mundo social. Nesse sentido, a rela-ção entre poder e Direito deve ser aferida mediante o processo a partirdo qual a força bruta é imbuída em uma linguagem normativa que lheconfere legitimidade, quando a força bruta se consubstancia em exer-cício legítimo de poder. Ocorre que, no decurso desse processo, a lin-guagem normativa acaba por restringir as hipóteses em que se consi-dera haver exercício legítimo de poder, residindo nessa restrição agarantia da autonomia do Direito em face do poder.

Uma agenda crítica unindo teóricos de Relações Internacionais e doDireito Internacional pode ser traçada a partir do enfoque no referidoprocesso em que a linguagem normativa do Direito permite e restrin-ge o exercício legítimo do poder. Em um primeiro momento, essaagenda se voltaria para a proposta negativa que consistiria em des-construir conceitos como anarquia e norma jurídica, que mascaram,

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a partir de sua concepção como elementos neutros e de existência au-tônoma, as relações de poder existentes no sistema internacional.

A partir da vinculação de noções como anarquia e norma jurídica aoscontextos que lhe deram origem, torna-se possível expor as assime-trias presentes no cenário internacional: o exercício do poder, ocultosob o véu de elementos tidos como neutros e de existência autônoma,seria exposto à luz do dia. Uma vez exposto o exercício do poder e asassimetrias que se encontram por detrás dos conceitos basilares queinformam o estudo de Relações Internacionais e do Direito Internaci-onal, estaria aberto o caminho para que os profissionais envolvidoscom o ambiente internacional se conscientizassem do caráter contin-gente e gerador de assimetrias, não somente dos referidos conceitos,mas também de outros, como, por exemplo, do conceito de Estado.

Em um segundo momento, a exposição do poder – ao engendrar todaa resistência que caracteriza a reação que se segue quando o exercíciodo poder é perceptível a olho nu – pode fomentar a compreensão domecanismo por meio do qual a força bruta é consubstanciada em po-der legítimo. A compreensão desse mecanismo, por sua vez, tende aoferecer opções para o avanço do desejo normativo que norteia, his-toricamente, os estudiosos tanto do Direito Internacional quanto deRelações Internacionais, a saber, a restrição e a regulação do exercí-cio do poder de forma a enquadrá-lo dentro de padrões socialmentetoleráveis, resultando disso a redução nos níveis de violência obser-vados no cenário internacional. Esse desejo normativo, ainda quemais premente entre os teóricos do Direito Internacional, caracterizatambém os estudiosos de Relações Internacionais, como prova o his-tórico da disciplina, particularmente dos seus dois principais para-digmas: o liberalismo e o realismo.

Os liberais, após a Primeira Grande Guerra, propunham a implemen-tação de uma agenda que buscava restringir o exercício de poder nocenário internacional, a partir da difusão das democracias liberais e

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de um arcabouço normativo racionalmente concebido sob a égide doDireito Internacional. No rastro da constatação de que os níveis deviolência do conflito iniciado em 1914 transcenderam aquilo que seconcebia como socialmente tolerável, o liberalismo retirava a suaforça da crença de que, em última instância, as suas proposições seri-am responsáveis pela abolição dos conflitos internacionais.

Os realistas, após a Segunda Grande Guerra, contrapunham os libe-rais primordialmente a partir do argumento de que a agenda liberal,ao invés de restringir e até abolir os conflitos internacionais, faziacom que os mesmos ganhassem maior intensidade e violência pormeio do exercício desenfreado do poder, sendo a ação conforme aética da responsabilidade um imperativo moral destinado a limitar osconflitos. Os realistas, assim como os liberais, lastreavam a força desua teoria na proposição de que ela seria responsável pela reduçãodos níveis de violência observados no cenário internacional.

Sob a perspectiva do desejo normativo subjacente aos juristas inter-nacionais e aos teóricos da política internacional, constitui um para-doxo o fato de que o século que assistiu à consolidação do DireitoInternacional e de Relações Internacionais como disciplinas acadê-micas tenha sido caracterizado por níveis de violência que não co-nhecem precedentes na história. Ao liberalismo seguiu-se a catástro-fe da Segunda Grande Guerra, e o realismo não impediu, durante aGuerra Fria, o uso sem limites do poder pelas superpotências, que di-fundiram a violência e o terror pela periferia do sistema internacio-nal. O nível de violência e o exercício desenfreado do poder observa-dos durante o século XX atestam a incompetência dos teóricos deRelações Internacionais e do Direito Internacional na persecução dodesejo normativo que serve de base para ambas as disciplinas.

Ao final da Guerra Fria, a proposta de uma agenda crítica unindo teó-ricos de Relações Internacionais e do Direito Internacional apresen-ta-se como alternativa para se atingir o referido ideal a partir da con-

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junção entre as propostas negativa e positiva apresentadas. Essaspropostas permitem a implementação do projeto de conscientizaçãodo Homem – o verdadeiro e único agente no mundo social –, que dei-ta as suas raízes na tradição crítica fundada por Kant, ao mesmo tem-po que concretiza o ideal de restringir e regular o exercício do poderde forma a enquadrá-lo dentro de padrões socialmente toleráveis, re-sultando disso a redução dos níveis de violência observados no cená-rio internacional.

Notas

1. O termo “Relações Internacionais” refere-se à disciplina propriamente dita,enquanto o termo “relações internacionais” se refere ao seu objeto de estudo.

2. O termo “Direito Internacional” refere-se tanto à disciplina quanto ao con-junto do Direito objetivo. Esta indistinção é motivada pela consideração de queo termo “direito” se refere ao direito subjetivo correspondente a determinadodever jurídico.

3. Ao redor desta concepção do Estado, situaram-se teóricos como Gettell(1910) e Willoughby (1896) (Schmidt, 1998:79).

4. O jornal tornou-se um órgão do Institute de Droit International após a cria-ção deste, em 1873.

5. As críticas à concepção de “realismo” de Carr serão expostas na próxima se-ção.

6. O título traduzido para o português era A Função Judicial Internacional.Natureza e Limites.

7. A presença do irracional no pensamento alemão, na verdade, deita as suasraízes além de Nietzsche, estendendo-se aos românticos alemães, sobretudoSchelling; contudo, Nietzsche representou influência prepoderante, ligando-sede forma mais imediata e fundamental a teóricos como Max Weber, CarlSchmitt e Hans Morgenthau. A associação entre Nietzsche e o componente irra-cional no pensamento alemão deve-se a teóricos conservadores do entreguerras,bem como a algumas análises marxistas sobre o filófoso alemão, sendo a maisconhecida entre estas aquela feita por Georg Lukács (1967), primeiramente pu-

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blicada em 1953. Posteriormente, entretanto, observou-se movimento de revi-são da filosofia nietzschiana, notadamente a partir da análise feita por Gilles De-leuze (1981), inicialmente publicada em 1962 e freqüentemente apontada comoo marco inicial do pós-estruturalismo. Para nossos propósitos, interessa menosa controvérsia acerca da filosofia de Nietzsche do que a leitura que teóricoscomo Weber, Schmitt e Morgenthau dela fizeram, motivo pelo qual, doravante,as referências a Nietzsche associam-se às interpretações conservadora e mar-xista, prevalecentes à época da criação do paradigma realista em Relações Inter-nacionais.

8. A influência de Carl Schmitt é apresentada por Martti Koskenniemi (2002)e mostra-se particularmente relevante à luz da relação entre Relações Internaci-onais e Direito Internacional. Christoph Frei (2001), biógrafo de Morgenthau,apresenta indícios incontrastáveis de que a maior referência para o pensamentodo criador do realismo em Relações Internacionais é Friedrich Nietzsche. Mor-genthau (1984), em seu esboço de autobiografia (que não ultrapassou a página15), confere importância primordial a Max Weber. Frei (2001), entretanto, sus-tenta que a influência de Weber se subsume na influência de Nietzsche. A prece-dência concedida a Weber seria motivada pelo fato de este último ser um intelec-tual que adquiriu crescente respeito no ambiente acadêmico norte-americano,ao contrário de Nietzsche, cuja filosofia é cercada de polêmicas, sendo, inclusi-ve, associada ocasionalmente ao pensamento que serviu de base ao nacio-nal-socialismo.

9. A interpretação conservadora da obra de Nietzsche alinhava as proposiçõesdo filósofo àquelas da direita alemã, como fica claro adiante, quando Morgent-hau expressamente associa Nietzsche aos ditadores fascistas. Devidamente ali-mentada pelas alterações fraudulentas que a irmã de Nietzsche promoveu naobra deste filósofo, essa interpretação acaba por resultar em uma concepçãoparticular e simplista do conceito de “vontade de poder”, a despeito da contextu-alização do mesmo no complexo sistema filosófico nietzschiano.

10. Faça a justiça, ainda que o mundo pereça em razão disso.

11. O institucionalismo na disciplina de Relações Internacionais associa-se,sob variados apectos, ao surgimento das abordagens neo-institucionalistas naCiência Política, a partir da década de 1980, mediante a proposição de que asinstituições influenciam o comportamento dos agentes. Os neo-instituciona-listas dividem-se entre os adeptos da análise histórica e da escolha racional, sen-do os institucionalistas de Relações Internacionais tributários desta última cor-rente em particular.

12. Tradução do termo de língua inglesa compliance, sob cuja égide é travadoum longo debate de importantes implicações para as disciplinas de Relações

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Internacionais e Direito Internacional, sendo esta última a que concentra a mai-or parte da literatura sobre o assunto: ver Henkin (1968), Chayes e Chayes(1995).

13. O estudo interdisciplinar da “legalização” encontra-se na edição especialda revista International Organization, vol. 54, no 3, do ano 2000.

14. Friedrich Kratochwil, Rules, Norms, and Decisions – On the Conditionsof Practical and Legal Reasonig in International Relations and Domestic Affa-irs e Nicholas Onuf, World of Our Making. Além disso, no mesmo ano foi publi-cado o livro From Apology to Utopia, de Martti Koskenniemi, que defendia umaabordagem crítica para o Direito Internacional.

15. Cox faz uma ironia, utilizando o otimismo de Pangloss, personagem deCândido, romance satírico de Voltaire. Segundo Pangloss, que serve de mote àcrítica de Voltaire à filosofia de Leibniz, tudo sempre acontece da melhor formapossível no mundo.

16. No flanco realista, podem ser listados autores como Giorgio Agamben,Antonio Negri e Rob Walker, que se baseiam em Schmitt para a interpretação daatual realidade internacional; no flanco liberal, o destaque recai sobre Slaughtere Moravcsik, que adotam posição kelseniana, ainda com referência ao debateweimariano.

17. As contribuições de outras correntes, como o pós-modernismo, para a evo-lução do projeto crítico em Relações Internacionais não pode ser dispensada;contudo, considera-se que os construtivistas avançaram as propostas difusasapresentadas no “Terceiro Grande Debate” (Reus-Smit, 1996) ao desenvolve-rem ontologia para o estudo das relações internacionais que permite a contesta-ção empírica das teorias dominantes à época.

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Resumo

Dom Quixote Reencontra SanchoPança – Relações Internacionais eDireito Internacional antes,durante e depois da Guerra Fria

Este artigo aborda a relação histórica entre as disciplinas acadêmicas de Re-lações Internacionais e do Direito Internacional a fim de proporcionar com-preensão mais acurada acerca do atual debate interdisciplinar. Dessa forma,concepções convencionais sobre as principais teorias de Relações Interna-cionais – realismo e liberalismo – são discutidas, sendo estas teorias apre-sentadas sob novo enfoque. O liberalismo é concebido no contexto da con-vergência observada entre os estudiosos da política internacional e os juris-tas internacionais até o desenvolvimento de uma visão cética no campo doDireito Internacional, que é responsável pela criação do realismo em Rela-ções Internacionais. O debate interdisciplinar pós-Guerra Fria é abordadopor meio de três teorias distintas: institucionalismo, liberalismo e construti-vismo. Argumenta-se que o construtivismo oferece maiores oportunidadespara cooperação mais profunda entre estudiosos da política internacional ejuristas internacionais. Isso se deve às conexões entre o construtivismo e ateoria crítica, o que permite unir construtivistas e teóricos legais críticos emuma Agenda Crítica para Relações Internacionais e Direito Internacionalneste começo do século XXI.

Palavras-chave: Relações Internacionais – Direito Internacional – Libe-ralismo – Realismo – Construtivismo – Teoria Crítica

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Abstract

Don Quixote Meets Sancho Panzaagain – International Relationsand International Law before,during and after the Cold War

This article deals with the relation between the academic disciplines ofInternational Relations and International Law in a historical perspective, sothat an accurate comprehension of the current interdisciplinary debate canbe brought to the fore. Thus, conventional conceptions about the maintheories of International Relations – realism and liberalism – are discussed,and those theories are presented in a new light. Liberalism is conceived inthe context of the convergence of international politics scholars andinternational lawyers until the development of a skeptical view in the fieldof International Law, which is responsible for the creation of realism inInternational Relations. The post-Cold War interdisciplinary debate isfocused through three distinct theories: institutionalism, liberalism andconstructivism. We argue that constructivism is more able to develop adeeper cooperation between international politics scholars andinternational lawyers. That is due to the connections betweenconstructivism and critical theory, what allows joining constructivists andcritical legal theorists in a Critical Agenda for International Relations andInternational Law in this beginning of the Twentieth-First Century.

Key words: International Relations – International Law – Liberalism –Realism – Constructivism – Critical Theory

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A Flórida encontra-se no centro do palco das relações comerciaisentre Brasil e Estados Unidos e do drama da Área de Livre Comérciodas Américas (ALCA)1. O estado da Flórida funciona como um dosmaiores centros mercantis para as Américas e tem feito um lobby cui-dadoso para ser o local permanente do secretariado da ALCA. OBrasil é o principal parceiro comercial da Flórida e uma ameaça aosseus plantadores de laranja e de cana-de-açúcar. Protegidas efetiva-

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* Artigo recebido em dezembro de 2004 e aprovado para publicação em dezembro de 2005. Tradução deMarisa Gandelman – [email protected]**Ph.D em Ciência Política pela Universidade do Arizona e professor assistente no Departamento deCiência Política da Chapman University College. Gostaria de agradecer à Faculdade de Ciências Sociaise aos estudantes do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitó-ria, por promover minhas apresentações sobre política comercial dos EUA e relações EUA-Brasil emmaio de 2003 e novembro de 2004. Reconheço também as contribuições e a inspiração dos meus alunosdo Seminário Sênior na Chapman University College.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 167-221.

Será que as Laranjase a Cana-de-açúcarda Flórida Azedamo Livre Comércio?Uma Análise deRatificação de Nível IIda Política Comercialdos Estados Unidoscom o Brasil*Mark Langevin**

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mente das importações brasileiras, essas indústrias da Flórida têmmuito a perder se os Estados Unidos e o Brasil chegarem mais próxi-mo de um comércio livre de commodities agrícolas. Poderosos epersistentes, esses interesses econômicos modestos alcançam oauge de sua significação política por intermédio das negociações delivre comércio e se amplificam pelo papel-chave da Flórida na elei-ção presidencial. As indústrias de laranja e de cana-de-açúcar daFlórida simplesmente desafiam os negociadores ou azedam as rela-ções de cooperação econômica entre os Estados Unidos e o Brasil eatrapalham a ALCA?

A ALCA foi efetivamente paralisada no final dos anos 1990, durantea administração Clinton, pela falta de vontade do Congresso nor-te-americano de conceder ao Executivo autoridade de negociaçãofast track* (Bergsten, 2002; Blanton, 1996; Conley, 1999; Feinberg,2002; Phillips, 2003). Os interesses dos setores da cana-de-açúcar edos cítricos da Flórida desempenharam um papel importante na opo-sição ao fast track por sua entrada em uma ampla coalizão de forçasem favor do status quo (Avery, 1998:290). A decisão do Congressonorte-americano de premiar o presidente George W. Bush com “Au-toridade para Promoção de Comércio”, ou fast track, em 2002, reno-vou o processo da ALCA e recolocou os Estados Unidos na liderançada pressão para se levar à frente o processo de integração econômicadas Américas (Bergsten, 2002; Feinberg, 2002)2. A política de co-mércio não surgiu como um tema eleitoral primordial nas eleiçõespresidenciais de 2004, mas o candidato George W. Bush parecia an-sioso para empurrar adiante aquilo que seu pai havia prenunciado, ouaquilo em que ele apostara inadvertidamente em 1990: um acordo delivre comércio que se estendesse do Alasca à Terra do Fogo. No en-

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* Da mesma forma que a palavra commodities foi mantida em inglês por já ter sido incorporadaao português, optou-se por deixar a expressão fast track na língua original, em razão de ter sidorepetidamente apresentada e discutida em inglês, tanto nos veículos de informação especiali-zados e de massa, como nas discussões práticas de comércio e negociações internacionais e nostrabalhos acadêmicos na área de economia e comércio internacional. [N. da T.]

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tanto, o rompimento das barreiras às commodities agrícolas e a supe-ração do impasse com o Brasil e seus parceiros do Mercosul poderiaameaçar a busca do presidente em exercício pelos 27 votos do Colé-gio Eleitoral do estado da Flórida, essenciais para a vitória na eleiçãopresidencial dos Estados Unidos. Dada a influência das indústrias dalaranja e da cana-de-açúcar, o ganhador dos votos estaduais podebancar o livre comércio com o Brasil?

Este trabalho emprega a teoria de Putnam (1988) da barganha e ratifi-cação dos ajustes internacionais para delimitar a análise dessas ques-tões e explorar as relações entre Estados Unidos e Brasil dentro doprocesso em andamento de debates e negociações da ALCA. Emessência, a teoria de Putnam pressupõe que as negociações internacio-nais giram em torno “da distribuição de custos e benefícios entre osgrupos domésticos e da opinião doméstica dividida entre a melhor ma-neira de se relacionar com o ambiente externo (Evans,1993:397)”.

Evans (ibidem) efetivamente sumariza os fundamentos da teoria dePutnam:

“Se os negociadores agem estrategicamente, a barganha se dá na forma deum processo interativo, modelado simultaneamente pela busca de ganhosinternacionais e pela dinâmica de ratificação doméstica”.

Putnam teoriza que os negociadores de Nível I têm “conjuntos de ga-nhos” que são ratificáveis pelo Nível II e que refletem os interessesdas coalizões domésticas vencedoras da barganha. A sobreposiçãodos conjuntos de ganhos dos parceiros de barganha representa a pos-sibilidade de uma negociação bem-sucedida ser ratificada por todosos lados. Conjuntos de ganhos muito restritos diminuem ou elimi-nam a sobreposição, o que poderá precluir as negociações e a ratifica-ção. O propósito deste artigo não é fornecer uma análise abrangentesobre os problemas de ratificação nos Estados Unidos, mas, sim, fo-calizar na análise da problemática de interseção dos interesses dasduas facções mais bem organizadas da Flórida, laranja para concen-

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trados e cana-de-açúcar, e o papel desse estado na instituição políticapeculiar que é o Colégio Eleitoral dos Estados Unidos.

Os conflitos faccionais colocados pela organização política dos plan-tadores de laranja e de cana-de-açúcar da Flórida não são suficientespor si mesmos para encolher o conjunto de ganhos além do alcancede acordos ratificáveis. Para Putnam (1988:448), “a dimensão doconjunto de ganhos depende de instituições políticas”. As institui-ções políticas de Nível II podem determinar a ratificação. Putnamilustra sua proposição com o caso dos Estados Unidos, destacandoque a separação de poderes complica a ratificação de tratados, en-quanto o Ato de Expansão do Comércio de 1974 se empenha em re-novar a confiança dos parceiros de negociações. Conley (1999),Evans (1989) e Milner (1997:203-229) também tratam dos esforçosinstitucionais dos Estados Unidos para facilitar os procedimentos deratificação e renovar a confiança dos parceiros. No entanto, poucaatenção tem sido dada ao Colégio Eleitoral e seus impactos na políti-ca comercial e de ratificação de tratados. Este estudo sugere que, ha-vendo condições de grande incerteza eleitoral, essa instituição servepara ampliar a influência política dos interesses modestos, determi-nados territorialmente e faccionais, bem além de sua importânciaeconômica.

A análise que se segue emprega essa proposição para examinar a in-terseção pouco discutida entre os interesses dos setores da laranja eda cana-de-açúcar da Flórida e o papel único que este estado vem de-sempenhando ultimamente nas eleições presidenciais. Este estudocomeça com um breve resumo das relações comerciais entre EstadosUnidos e Brasil e detalha casos ilustrativos em que os interesses fac-cionais norte-americanos mantiveram aprisionadas as relações entreos dois países. A segunda seção detalha os interesses dos produtoresde laranja e de cana-de-açúcar da Flórida e examina sua influênciapolítica, especificamente sua participação nas eleições federais e nodesenho de políticas comerciais. A terceira parte descreve uma con-

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juntura única e crítica, que coloca os votos do Colégio Eleitoral daFlórida no centro dos resultados incertos para o Poder Executivo dopaís, intensificando, dessa forma, a influência política dos interessesdas indústrias da laranja e da cana-de-açúcar do estado, e reduzindo aárea de superposição na negociação dos Estados Unidos e do Brasil.A última seção analisa o impacto político e econômico desse conjun-to específico de obstáculos de ratificação do Nível II sobre o Brasil esuas relações com os Estados Unidos.

AS RELAÇÕES COMERCIAIS

ESTADOS UNIDOS–BRASIL

EM PERSPECTIVA

HISTÓRICA

As relações Estados Unidos–Brasil têm sido pontuadas por ondas decomércio que refletem a distribuição assimétrica de poder entre asduas maiores nações do hemisfério ocidental (Chandler, 1924;Odell, 1980; Wesson, 1981). O Gigante do Norte, no vocabuláriopróprio do Brasil, vem se empenhando constantemente em busca de(e de fato tem exercido) uma clara vantagem, por meio de esforçosdiplomáticos, de barganhas coercitivas e do indiscutível peso e al-cance de sua economia nacional. O Brasil também tentou aproveitaros recursos e o mercado dos Estados Unidos para seu próprio desen-volvimento, com resultados variados e muitas vezes frustrantes. Noentanto, como os dois países se esforçam para obter relações econô-micas mais cooperativas, eles enfrentam uma história de relaçõesfreqüentemente moldada pela dependência dos Estados Unidos emrelação a barganhas coercitivas nos temas de comércio e investimen-to. É com esse pano de fundo histórico que a credibilidade e a confi-ança são construídas ou perdidas.

A cooperação entre os Estados Unidos e o Brasil trouxe um comércioconvergente crescente enquanto os termos eram favoráveis aos inte-resses comerciais norte-americanos. Durante a maior parte do século

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passado, “[a]mizade e cooperação com os Estados Unidos se torna-ram meios de alcançar os objetivos brasileiros de política externa”(Weis, 1993:8). Entretanto, quando o Brasil demonstrou claras van-tagens comparativas em relação aos produtores norte-americanos nomercado dos Estados Unidos, ou quando suas estratégias de desen-volvimento nacional limitaram as oportunidades de mercado e de in-vestimento para as corporações norte-americanas, sucessivos gover-nos, muito freqüente e impetuosamente, adotaram táticas coercitivasde barganha para obter concessões do Brasil.

Talbot (1997) documenta o desenvolvimento da indústria de café ins-tantâneo e a tensão que este gerou entre os Estados Unidos e o Brasildurante os anos 1960. Como maior produtor e exportador mundial degrãos verdes de café, o Brasil tentou promover sua estratégia deIndustrialização por Substituição de Importação (ISI) por meio dapromoção das vendas de seus produtos industrializados como insu-mos para outras indústrias locais em vez de destiná-los à exporta-ção*. Esta estratégia rapidamente criou incentivos econômicos econdições de mercado para as fábricas de café instantâneo no Brasil,para atender tanto o mercado doméstico em crescimento como a ex-portação.

Por volta de 1969, “o pó de café do Brasil” abrangia 14% do mercadonorte-americano em crescimento (idem:125). A margem competiti-va do Brasil em café instantâneo desafiou a indústria dos EstadosUnidos e a empresa General Foods, a maior produtora de café instan-

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* No texto original, o autor usa o termo forward linkage para explicar a estratégia de ISI adota-da. Este termo tem uma expressão equivalente em português pouco usada. De acordo com o di-cionário Michaelis, a palavra linkage em seu uso técnico em economia significa: “capacidadede uma indústria de induzir a criação de outras. Esta integração desenvolve-se pela interdepen-dência de matérias-primas e bens acabados e semi-acabados. Quando uma indústria adquire in-sumo de outras, sem importar, o efeito é chamado encadeamento retrógrado (backward linka-ge); quando vende sua produção como insumos para outras indústrias, em vez de exportá-loscomo produtos acabados, o efeito é denominado encadeamento para a frente (forward linka-ge)” (reprodução do verbete do Dicionário Prático Michaelis, versão eletrônica). [N. da T.].

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tâneo para o mercado doméstico e a principal oponente do “pó decafé do Brasil”. Em nome da General Foods, o governo nor-te-americano ameaçou o Brasil com taxas compensatórias, dentro docontexto de renegociação do Acordo Internacional do Café de 1968.Os Estados Unidos alegavam que as exportações de café instantâneodo Brasil refletiam “concorrência desleal”. Em 1971, o Brasil ofere-ceu um acordo de conciliação que previa o envio de 560 mil sacos degrãos de café verde, isentos de taxas de exportação, todos os anos,para os produtores norte-americanos de café instantâneo (Odell,1980:224).

Ao longo dos anos 1970, os Estados Unidos continuaram sua campa-nha de restrições às importações brasileiras, por intermédio de san-ções de comércio com finalidade punitiva. Em 1972, Washington im-pôs taxas antidumping sobre o lingote de ferro fundido brasileiro eameaçou agir contra o vinil, assentos de veículos e álcool metílico(idem). Em 1974, os Estados Unidos impuseram taxas de compensa-ção sobre calçados, seguidas, um ano depois, por taxas sobre bolsas eóleo de mamona, e, ainda, ameaças contra o óleo de soja. O Congres-so norte-americano regulamentou cotas de importação para uma sé-rie de produtos especiais de aço. A campanha prosseguiu em 1976,determinando taxas sobre tesouras e fio de algodão brasileiro. Aolongo desta década, os Estados Unidos enfatizaram seus métodos debarganha coercitiva para regular as disputas comerciais com o Brasil.

Em 1985, o presidente Ronald Reagan expandiu a aplicação de san-ções comerciais para alavancar os mercados de exportação e as opor-tunidades de investimento para os produtores da América do Norte.Em 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, o presidente repu-blicano Reagan anunciou medidas de retaliação contra a política bra-sileira de reserva de mercado para produtores domésticos de máqui-nas e programas de computadores. O anúncio de Reagan, calculadopara fomentar as campanhas de médio prazo de seu partido no Con-gresso, foi o mesmo que declarar guerra econômica contra a estraté-

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gia de desenvolvimento do Brasil. A lei brasileira de reserva de mer-cado não era abrangente em seus limites. Ela protegia os empreendi-mentos nacionais emergentes e as subsidiárias estrangeiras, incluin-do a IBM, originária dos Estados Unidos, de uma lista seleta de im-portações, permitindo a entrada considerável de bens manufaturadosda indústria de computadores norte-americana. De fato, a exportaçãode computadores fabricados nos Estados Unidos para o Brasil cres-ceu 146% de 1979 até 1985, alcançando US$ 280 milhões (Evans,1989:215). O mercado brasileiro, o mais rápido em crescimento e ooitavo maior do mundo durante esse período, ainda mantinha oportu-nidades abundantes para os produtores norte-americanos que não ti-nham subsidiárias ou para empreendimentos conjuntos localizadosno Brasil. No entanto, a mudança do equilíbrio de comércio em favordo Brasil e a preocupação crescente da administração norte-ame-ricana com a notória redução da força de trabalho industrial instiga-ram o presidente Reagan a tomar uma posição pública para esvaziar apressão doméstica que antecedeu as eleições do Congresso em 1986.Este é um caso emblemático dos esforços unilaterais e freqüente-mente coercivos para preservar e expandir mercados exportadores ese defender da “industrialização ofensiva” do Brasil. Mais especifi-camente, o caso ilustra a inclinação norte-americana para a barganhacoercitiva, alimentada por interesses comerciais particulares e mol-dada no calor da disputa eleitoral.

Os Estados Unidos continuam a seguir a “terceira trilha” de políticacomercial, aplicando medidas punitivas para regular importantes te-mas de comércio com o Brasil. Atualmente, impostos de compensa-ção e antidumping estão em prática contra inúmeras importaçõesbrasileiras, inclusive uma série de produtos de aço, ferro e metal, as-sim como concentrado de suco de laranja e etanol. A preferência dosEstados Unidos por uma abordagem “agressiva e unilateral” (Zeng,2002) para resolver disputas de comércio consegue as concessõesexatas do Brasil, mas enfraquece os esforços políticos mais amplos

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para desenvolver uma parceria estratégica com o segundo maior paísdas Américas (Council on Foreign Relations, 2001). Hakim(2004:117) alega que: “O comércio poderia ser o aspecto ‘ou vai ouracha’ por ser muito central na visão dos Estados Unidos sobre suarelação a longo prazo com a América Latina e o resto do mundo, alémde ser extremamente importante para o futuro econômico do Brasil”.

Como poderia um interesse comercial tão modesto, como aquele dosprodutores de laranja e de cana-de-açúcar da Flórida, empurrar asalavancas coercitivas da política comercial dos Estados Unidos comtanto empenho, restringir as relações econômicas com o Brasil e aju-dar a descarrilar a ALCA?

INTERESSES FACCIONAIS

DE NÍVEL II

Os Estados Unidos estão abarrotados de conflitos faccionais, com-postos a partir de uma matriz complexa de interesses econômicos epolíticos. Produtores agrícolas querem subsídios contínuos e prote-ção contra importações mais baratas; trabalhadores e sindicatos que-rem proteção contra mão-de-obra barata e fontes externas de forneci-mento; a Microsoft quer garantir os direitos de propriedade intelectu-al; e exportadores e investidores querem mercados abertos, oportuni-dades e estabilidade econômica no exterior. Essa colagem nacionalde conflitos faccionais não desencoraja o presidente dos EstadosUnidos, nem os responsáveis por desenhar políticas, nem as autori-dades, de aclamar os benefícios do livre comércio e apontar o papelde liderança dos Estados Unidos (Destler, 2005). No entanto, os inte-resses dos setores da laranja e da cana-de-açúcar da Flórida testamesse apoio, fornecendo assim uma oportunidade única para se exami-nar as arestas mais agudas da política comercial dos Estados Unidoscom o Brasil.

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

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Putnam (1988) explica que o conjunto de ganhos de um agente debarganha é largamente determinado pela distribuição de poder den-tro do eleitorado doméstico, pela articulação de preferências e pelacomposição de coalizões. Conflitos menos faccionais aumentam oalcance do conjunto de ganhos, as probabilidades de alcançar umajuste de Nível I e a possibilidade de ratificação pelo Nível II. O con-flito faccional acirrado sobre interesses divergentes encolhe o con-junto de ganhos pela diminuição dos custos do fracasso em se alcan-çar um acordo. Isto é, um não-acordo e a manutenção do status quosão melhores do que um acordo custoso. Putnam afirma que as nego-ciações de comércio atiçam um grande interesse e apresentam um ín-dice de abstenção muito baixo, elevando a possibilidade de conflitose diminuindo a indiferença. Sob condições como essas, os negocia-dores de Nível I valem-se de “toma-lá-dá-cá” e “pagamentos parale-los” para reestruturar o interesse faccional e chegar a um acordo deNível I ratificável3.

O conflito faccional que surge de interesses econômicos e da organi-zação política da laranja e da cana-de-açúcar da Flórida coloca obstá-culos formidáveis para a barganha de Nível I, pelo estreitamento doconjunto de ganhos dos Estados Unidos e pelo incremento das possi-bilidades de deserção do entusiástico, porém fortemente restringido,Executivo norte-americano. Além disso, a organização política des-ses interesses serve em grande medida para definir resultados eleito-rais incertos para a presidência e o Congresso, representando amea-ças diretas sobre a credibilidade do Executivo dos Estados Unidos namesa de barganhas de Nível I com o Brasil.

Os Interesses da Indústria da

Laranja e da Cana-de-açúcar da

Flórida

As indústrias da laranja e da cana-de-açúcar da Flórida buscam pro-teção contra a competição internacional e têm sido extremamente

Mark Langevin

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bem-sucedidas na obtenção de um tratamento favorável do Congres-so e do Executivo norte-americanos. No entanto, em uma era deacordos de livre comércio (ALCs), ambas as indústrias ficam cadavez mais ameaçadas por importações mais baratas, principalmenteas brasileiras. O jornal local percebeu a crescente ansiedade dosplantadores de laranja em relação à proposta de livre comércio com oBrasil em uma reunião com os negociadores norte-americanos em2002:

“Os representantes oficiais dos cítricos da Flórida não mediram palavraspara discutir com o chefe do Departamento de Comércio dos Estados Uni-dos, Robert Zoellick, a respeito da ameaça de perderem a tarifa de importa-ção do suco brasileiro nas conversações de livre comércio que estavam porvir. ‘O encontro de hoje é o mais importante que a indústria dos cítricos ja-mais teve’, disse Bob Crawford, diretor executivo do Departamento de Cí-tricos da Flórida, em um encontro numa manhã de segunda-feira com Zoel-lick e cerca de outros 25 representantes agrícolas de estado. ‘Nos tornamosreféns do Brasil ao eliminar essa tarifa’” (The Ledger, 2002).

A despeito das preocupações, é difícil afirmar que as indústrias de cí-tricos ou de cana-de-açúcar são vitais para os Estados Unidos. Wer-nick (2004) está cansado de conhecer os efeitos da liberalização docomércio para a agricultura da Flórida, mas conclui que o Estadopode ser o maior beneficiário do livre comércio com a América Lati-na e o Brasil. Enquanto a agricultura norte-americana cria um exce-dente suficiente para a exportação, nem as laranjas nem o açúcar daFlórida constituem uma porção significativa de tais exportações.Ambas as indústrias servem mercados domésticos difusos, cujosconsumidores raramente percebem os custos adicionais dos subsídi-os de preços e medidas de proteção para reduzir ou eliminar as im-portações mais baratas. Sob condições de competição de mercado, osuco de laranja concentrado brasileiro e o açúcar refinado poderiamtomar o lugar ou forçar a reestruturação da maior parte da produçãonorte-americana, sem maiores prejuízos para a economia dos Esta-dos Unidos.

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

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Page 126: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

Produtos agrícolas representavam apenas 1,4% do produto nacionalbruto (PNB) norte-americano em 2001, e a agricultura da Flóridacontribuía com 1,6% do produto do estado no mesmo ano (U.S.A.,2005b). O índice de emprego na agricultura seguia a mesma propor-ção. O emprego da mão-de-obra rural nacional absorvia somente2,2% da força de trabalho civil acima de 16 anos em 2001 (U.S.A.,2005a). Em 1990, a agricultura, a silvicultura e a pesca da Flórida,combinadas, empregavam 2,88% da força de trabalho do estado(Hodges e Mulkey, 2005). Em 2000, essas categorias, juntamentecom a mineração, empregavam somente 1,3% (U.S.A., 2005a). Cer-tamente, a queda do índice de ocupação da força de trabalho na agri-cultura na Flórida traria privações para milhares de trabalhadores,muitos dos quais imigrantes que trabalham por salários mínimoscom poucas proteções legais. No entanto, tais privações não podemser entendidas como se representassem um desafio intransponível àexpansão das relações comerciais com o Brasil. Elas podem ser reti-ficadas por intermédio de “pagamentos paralelos” e políticas com-pensatórias, como Assistência de Ajuste de Comércio (AAC – TradeAdjustment Assistance/TAA), que serve para reestruturar o mercadode trabalho afetado e diminuir o impacto das causas externas à libera-lização do comércio4. Em resumo, os negócios do suco de laranja eda cana-de-açúcar não são suficientemente importantes em termosde valor agregado para a economia, ou como fontes de emprego, paradissuadir os Estados Unidos de promoverem a liberalização do co-mércio agrícola com o Brasil.

As laranjas da Flórida não são importantes para a saúde econômicados Estados Unidos. Até o momento, a indústria não gerou uma por-ção mensurável do produto doméstico e do emprego no estado. Aprodução de cítricos abastece quase 80% do mercado norte-ame-ricano (IFAS, 2001:1) e sua maior parte é destinada ao concentradode suco de laranja congelado e seu excesso serve aos mercados espe-cializados de cítricos, como os de grapefruits, tangerinas e outros. O

Mark Langevin

178 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

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Institute of Food and Agricultural Sciences (IFAS) da Universidadeda Flórida estimou o impacto econômico da indústria de cítricos noestado em US$ 9,13 bilhões, com US$ 4,18 bilhões de valor agrega-do, e a criação de 89.700 empregos (ibidem).

Cada vez mais as laranjas da Flórida são controladas por um númeromenor de empreendimentos. A produção de cítricos está concentradano sul da península do estado e se espalha por aproximadamente7.676 fazendas (idem:2). Existem 108 armazéns de embalagem e 52fábricas de processamento de cítricos espalhados ao longo da regiãoprodutora. A propriedade estrangeira das fábricas de processamentovem crescendo recentemente, incluindo a aquisição dessas fábricaspor firmas brasileiras como Sucocítrico Cutrale Ltda., Citrosuco Pau-lista S.A. e Cinbra-Frutesp. Estes produtores brasileiros adquiriramfábricas de processamento na Flórida com a finalidade de servir a umdos maiores distribuidores do mercado norte-americano, “MinuteMaid”, da Coca-Cola. Esta integração superficial é instigada pelosesforços para evitar a tarifa punitiva dos Estados Unidos de US$0,299 por libra e a Taxa de Equalização do Departamento de Cítricosdo estado da Flórida de US$ 0,0299 sobre o suco de laranja concen-trado importado do Brasil (Muraro e Spreen, 2003). Pela crescenteconcentração de propriedade e, em parte, por intermédio da integra-ção com os produtores brasileiros, cada vez mais um número menorde empreendimentos controla a indústria de suco de laranja concen-trado dos Estados Unidos, onde os plantadores dependem da prote-ção do governo para obter lucro.

A cana-de-açúcar da Flórida não fortifica a saúde da economia nor-te-americana, mas contribui para a economia do estado. Essa contri-buição se expandiu com o embargo imposto às importações de açú-car de Cuba em 1961. Antes deste, somente 20 mil hectares eram des-tinados à cana-de-açúcar. Durante a safra de 2000-2001, foram culti-vados 184.030 hectares, concentrados principalmente no Condadode Palm Beach (IFAS, 2004). Hoje, a Flórida é o maior produtor de

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

179

Page 128: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

açúcar dos Estados Unidos, contribuindo com aproximadamente22% do total da produção nacional de açúcar (idem).

De acordo com Robert Coker, vice-presidente da United States Su-gar Corporation e porta-voz da indústria açucareira, a cana-de-açú-car da Flórida emprega direta e indiretamente 25 mil trabalhadoresque produzem um impacto de US$ 3,1 bilhões na economia do esta-do (U.S.A., 2003). De fato, a maior parte do negócio de açúcar daFlórida, independentemente do número de plantadores e trabalhado-res, é controlada pela United States Sugar Corporation (que tambémdetém interesses significativos na laranja do estado por intermédioda Southern Garden Citrus) e pela Flo-Sun, da família cubano-ame-ricana Fanjul.

A Flórida, a United States Sugar Corporation e a Flo-Sun beneficia-ram-se enormemente do programa do açúcar do governo federal, queprotege produtores domésticos da competição internacional. O“Farm Bill” de 2002 dá poderes ao Departamento de Agriculturapara continuar a proteger os produtores de açúcar, garantindo taxasde empréstimos que viabilizem um retorno lucrativo ao investimentoe limitando as importações de açúcar às obrigações internacionais de1.532 toneladas, tanto pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio(The General Agreement on Tariffs and Trade – GATT) como peloAcordo de Livre Comércio da América do Norte (North AmericanFree Trade Agreement – NAFTA) (Tsigas e Boughner, 2003). Essasmedidas permitem aos produtores domésticos suprir 70% ou mais doconsumo nacional. Dessa forma, Orden (2003:10) conclui que o pro-grama do açúcar dos Estados Unidos “continua a ser administradocom restrições apertadas às importações, o que coloca o Farm Billfirmemente contra a liberalização do comércio”.

Os produtores brasileiros perdem duas vezes com o sistema protecio-nista dos Estados Unidos. O Brasil é o produtor mundial de açúcarmais eficiente, suprindo 25% do total das exportações mundiais. Ele

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180 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 129: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

também é o maior e mais eficiente produtor de etanol, um combustí-vel renovável e subproduto do refino da cana-de-açúcar. Contudo, apolítica norte-americana é fortemente restritiva ao acesso a essascommodities brasileiras. A Cota de Tarifa (Tariff Rate Quota –TRQ)5 do governo dos EUA para a importação de açúcar brasileiropermite a entrada de menos de 2% do excesso da produção (depois doconsumo doméstico) no mercado norte-americano sem taxas puniti-vas – calculadas por Orden (idem:Quadro 9:1). Apesar de o “Brasil[ter] o potencial para suprir o mercado inteiro dos Estados Unidos”(Tsigas e Boughner, 2003:5), ele está efetivamente trancado fora domaior e mais adoçado mercado do mundo.

O etanol brasileiro sofre um destino semelhante, apesar do crescentemercado para esse combustível renovável na América do Norte. Aprodução de etanol dos Estados Unidos está amplamente concentra-da entre os principais processadores de milho, tais como a ArcherDaniels Midland (ADM), que manufatura o adoçante de milho e oetanol. Estes produtores não somente se beneficiam do programa doaçúcar e dos altos preços, como também estão protegidos por umataxa de importação de US$ 0,54/galão do etanol brasileiro. A aprova-ção do Energy Bill (“Lei da Energia”) de 2005 assegura que o merca-do norte-americano de etanol vai continuar a se expandir por inter-médio de contínuos subsídios aos fazendeiros de milho e a regularmais amplamente as misturas de etanol (aditivos de energia renová-vel) para limitar as emissões de gases que provocam o efeito estufa. O“Energy Bill” de 2005 continua uma política de longo prazo para in-crementar o valor do milho, por meio de subsídios para a produção deetanol e das tarifas punitivas para limitar consideravelmente as im-portações brasileiras (Langevin, 2005a). O Brasil e os Estados Uni-dos são os maiores produtores e consumidores de etanol para com-bustível. No entanto, a proteção que os Estados Unidos dão aos pro-dutores domésticos de açúcar e milho preclui o tipo de sinergia inter-nacional requerida para se estabelecer padrões, desenvolver infra-es-

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

181

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trutura e deixar crescer um mercado global para um dos mais promis-sores combustíveis renováveis.

Em um mundo perfeitamente protegido, os plantadores de cana-de-açúcar da Flórida preferem o status quo. Em 2005, o “Energy Bill” ea ratificação do Congresso ao Acordo de Livre Comércio da AméricaCentral–República Dominicana (ALCAC–RD) forneceram um mo-mento único para se considerar as alternativas e a possível reestrutu-ração da indústria doméstica do açúcar. Os produtores de açúcar dosEstados Unidos e refinadores de etanol à base de milho opuseram-seao ALCAC–RD, principalmente para não estabelecer um precedentede abertura para o mercado doméstico de açúcar e limitar as importa-ções de etanol brasileiro processado pelas refinarias da AméricaCentral e do Caribe. No centro do debate a respeito das políticas deenergia e da ratificação do ALCAC, os plantadores de cana-de-açú-car asseguraram um modesto subsídio de US$ 15 milhões para pes-quisa e desenvolvimento da exploração da produção futura de etanol.Por enquanto, os esforços continuam focados na prevenção às impor-tações brasileiras de açúcar e etanol.

As Contribuições Políticas da

Laranja e da Cana-de-açúcar

Indústrias como as dos cítricos e do açúcar, que contam com ativos fi-xos (terra) e proteção de mercado, normalmente demonstram umacapacidade notável para articular seus interesses, liderar coalizões eassegurar a lealdade das autoridades eleitas (Avery, 1998; Baldwin eMagee, 2000). Com a aprovação da Autoridade para a Promoção doComércio em 2002 e os esforços subseqüentes do presidente Bushpara levar adiante a sua “liberalização competitiva” e garantir umNAFTA com modelo ALCA, os interesses dos setores da laranja e dacana-de-açúcar da Flórida duplicaram seus esforços para influenciara política comercial dos Estados Unidos a protelar a competição bra-sileira.

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182 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 131: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

As indústrias de cítricos e de cana-de-açúcar da Flórida buscavam in-fluenciar o Congresso por meio de sucessivos desafios legislativosdepois da ratificação do NAFTA em 1993 e sob a ameaça da expan-são do livre comércio das commodities agrícolas. Ambas as indús-trias fizeram contribuições desproporcionalmente gordas para can-didatos federais nas eleições intermediárias do Congresso em 1998 e2002, assim como nas eleições gerais e para presidente em 2000 e2004. As indústrias opuseram-se às negociações de autoridade fasttrack para os presidentes Clinton em 1998 e George W. Bush em2002, mas batalharam e ganharam uma legislação favorável por meiodo “Farm Bill” de 2002. Os plantadores de laranja da Flórida conven-ceram a Comissão de Comércio Internacional em 1999 e, outra vez,em 2005, a renovar as taxas alfandegárias de compensação contra oconcentrado de suco de laranja do Brasil. Além disso, a indústria deaçúcar opôs-se estridentemente às negociações da administraçãoBush do ALCAC–RD e sua ratificação em 2005, não atingindo o ob-jetivo por um voto na Câmara dos Deputados6.

Além de tudo, os interesses agrícolas dos Estados Unidos ficam entreo oitavo e o décimo lugares no total de contribuições para a campa-nha federal, entre quarenta setores da economia norte-americana, es-pecificados na base de dados das contribuições das eleições federaisdesenvolvida pelo Centro de Política Responsiva. Dentro deste setor,as contribuições dos produtores de cítricos e de cana-de-açúcar sãonotáveis. O Quadro 1 revela as contribuições agregadas feitas pelosComitês de Ação Política (CAPs) de quatro dos maiores empreendi-mentos de cítricos da Flórida para as eleições de 1998 a 2002. Duran-te os três ciclos de eleições reportados no Quadro 1, esses empreendi-mentos se colocaram entre os vinte primeiros dentro do subsetor defrutas e vegetais. A empresa A. Duda and Sons alcançou uma posiçãoentre os vinte primeiros em todos os três ciclos eleitorais reportados:13o em 2002 e 11o, tanto em 2000 como em 1998. A Florida CitrusMutual também conseguiu uma posição proeminente nos três ciclos,chegando ao 6o lugar em 2002. A Associação de Frutas e Vegetais da

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

183

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Flórida atingiu o 18o lugar em 2002 e 16o em 1998. Por fim, a LykesBrothers alcançou o 20o lugar em 2002. Além disso, a Southern Gar-dens Citrus, a plantadora de laranja subsidiária da United States Su-gar Corporation alcançou o 7o lugar em 1998 com US$ 50.250 emcontribuições para os candidatos republicanos (Center for Responsi-ve Politics).

Quadro 1

Produtores de Cítricos da Flórida, Posição no Subsetor de Frutas e Vegetais,e Contribuições para Campanha Federal

A. Duda &

Sons

Florida Citrus

Mutual

Associação

de Frutas e

Vegetais da

Flórida

Lykes

Brothers

2002

Posição no Setor de

Frutas e Vegetais

13 6 18 20

2002 Contribuições US$ 25.550 US$ 57.700 US$ 14.968 US$ 12.950

Distribuição por Partido (D) 23%

(R) 77%

(D) 61%

(R) 39%

(D) 30%

(R) 70%

(D) 54%

(R) 36%

2000

Posição no Setor de

Frutas e Vegetais

11 13 Não aparece

no ranking

Não aparece

no ranking

2000 Contribuições US$ 44.250 US$ 36.600 US$ 17.500 US$ 5.000

Distribuição por Partido (D) 10%

(R) 90%

(D) 36%

(R) 64%

(D) 29%

(R) 71%

(D) 40%

(R) 60%

1998 Posição no Setor

de Frutas e Vegetais

11 10 16 Não aparece

no ranking

1998 Contribuições US$ 36.250 US$ 42.550 US$ 21.750 US$ 2.000

Distribuição por Partido (D) 34%

(R) 66%

(D) 76%

(R) 24%

(D) 32%

(R) 68%

(D) 100%

Fonte: Center for Responsive Politics

(D) – Partido Democrata / (R) – Partido Republicano

A contribuição da indústria de cítricos da Flórida para a campanhapara cargos federais foi particularmente generosa durante as eleiçõesintermediárias do Congresso em 1998 e 2002, quando a legislação daautoridade fast track para o comércio foi marcada por debate e votos.

Mark Langevin

184 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 133: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

Durante o ciclo de 1998, cinco desses empreendimentos ocuparamum lugar entre os vinte primeiros contribuintes do setor de frutas evegetais. Em 2002, quatro se posicionaram entre os vinte primeiros.Durante esse ciclo eleitoral crítico, os produtores de cítricos da Flóri-da fizeram gordas contribuições às campanhas para o Congresso edistribuíram doações tanto para os democratas quanto para os repu-blicanos que prometeram proteger as laranjas da Flórida do livre co-mércio. Em 2002, como um subsetor com posições proeminentesdos produtores de laranja, o subsetor de frutas e vegetais destinou amaior parte de suas doações para os membros da Câmara dos Depu-tados que faziam oposição à legislação de fast track. Adam Putnam,um membro republicano da Câmara, recebeu US$ 30.050 (Centerfor Responsive Politics). Karen Thurman, uma democrata e oponen-te do livre comércio, recebeu US$ 25 mil para sua proposta contra orepublicano Ginny Brown-Waite7 favorável ao livre comércio. Emterceiro lugar, o democrata Boyd Allen, da Flórida, recebeu US$23.370 para se opor ao fast track (idem). Além disso, o deputadoMark Foley, também da Flórida, ficou em 17o lugar, com US$14.488 do subsetor de frutas e vegetais (idem).

Essas contribuições particularmente generosas tinham como alvo oscongressistas da Flórida que também tivessem assento em comitêsimportantes, com responsabilidade sobre comércio internacional elegislação agrícola. Adam Putnam tem cadeira em um Comitê Agrí-cola importante na Câmara. Tanto Thurman como Foley têm assentono crítico Comitê de Vias e Meios. Da mesma forma, E. Clay ShawJr., membro republicano da Câmara da Flórida e presidente do Sub-comitê de Comércio do Comitê de Vias e Meios da Câmara, recebeucontribuições notáveis dos produtores do estado: US$ 2.500 da “Flo-rida Citrus Mutual”, da Associação de Frutas e Vegetais da Flórida edo “Lykes Brothers” (idem). A indústria cítrica da Flórida confia tan-to no Comitê de Agricultura como no Comitê de Vias e Meios paraassegurar sua proteção contra as importações brasileiras.

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

185

Page 134: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

O Comitê de Finanças do Senado dos Estados Unidos também de-sempenha um papel crítico na formação da política de comércio e deratificação de tratados. O ex-senador democrata Bob Graham tinhauma cadeira no Comitê de Finanças do Senado e concorreu à reelei-ção em 1998. Ele recebeu contribuições notáveis dos interesses dosprodutores de cítricos e de cana-de-açúcar da Flórida durante este ci-clo eleitoral, incluindo as contribuições dos produtores A. Duda &Sons, Florida Citrus Mutual, Associação de Frutas e Vegetais da Fló-rida e Lykes Brothers (idem). Graham também aceitou apoio finan-ceiro dos seguintes produtores de açúcar da Flórida: Florida Crystals,Liga da Cana-de-açúcar da Flórida, Cooperativa de Plantadores deCana-de-açúcar da Flórida e a United States Sugar Corporation, as-sim como de uma série de outros interesses açucareiros da nação(idem). A posição privilegiada do senador Graham no Comitê de Fi-nanças assegurou às indústrias da laranja e da cana-de-açúcar da Fló-rida a proteção contra as desarticulações da globalização econômicae do avanço da liberalização do comércio.

Os interesses do setor açucareiro dos Estados Unidos exercem in-fluência considerável no Congresso. O Quadro 2 demonstra a exten-são da influência do açúcar nas campanhas de contribuições dosCAPs para os candidatos a cargos federais. As doações dos três maisimportantes contribuintes do setor açucareiro são demonstradas nes-te quadro. Flo-Sun e a United States Sugar Corporation são baseadasna Flórida. A American Crystal, sediada em Minnesota, onde produzbeterraba para ser processada, goza dos mesmos subsídios de preçose proteção que os produtores de açúcar da Flórida e trabalha juntocom outros produtores nacionais para renovar o programa do açúcardos Estados Unidos, protegendo a indústria de importações mais ba-ratas. Por esta razão, está incluída na análise que demonstra a in-fluência considerável da indústria como uma coalizão política.

Em 2002, a Flo-Sun ocupou a 9ª posição e a American Crystal a 15a

dentre toda a população de contribuintes no setor agrícola. Em 2000,elas ocuparam a 5a e a 13a posições, respectivamente. Em 1998, ocu-

Mark Langevin

186 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 28, no 1, jan/jun 2006

Page 135: O Sistema Político dos EUA: Implicações para suas Políticas

param o 16o e o 12o lugares, respectivamente, enquanto a United Sta-tes Sugar Corporation ocupava o 13o lugar nas contribuições da agri-cultura para os cargos federais. Esses grandes produtores de açúcarnorte-americanos doaram tanto para os democratas como para os re-publicanos. Durante os ciclos eleitorais intermediários, a indústriados cítricos reuniu contribuições de aproximadamente US$ 1,5 mi-lhão para 1998 e mais de US$ 1,5 milhão em 2002. Durante as acalo-radas eleições gerais para presidente e para o Congresso em 2000, aFlo-Sun, a American Crystal e a United States Sugar Corporation,juntas, deram mais de US$ 2 milhões em contribuições. Além disso,os produtores de açúcar deram US$ 2.835.339 em 1998, US$3.395.714 em 2000 e US$ 3.141.254 em 2002 (idem).

Quadro 2

Maiores Produtores de Açúcar dos EUA, Posição no Setor Agrícola eContribuições para Campanha Federal

Flo-Sun American

Crystal

United States Sugar

Corporation

2002

Posição no Setor Agrícola

9 15 Não aparece no

ranking

2002

Contribuições

US$ 766.031 US$ 536.761 US$ 250.778

Distribuição por Partido (D) 69%

(R) 31%

(D) 58%

(R) 42%

(D) 52%

(R) 48%

2000

Posição no Setor Agrícola

5 13 Não aparece no

ranking

2000 Contribuições US$ 1.013.600 US$ 673.720 US$ 386.539

Distribuição por Partido (D) 58%

(R) 42%

(D) 56%

(R) 44%

(D) 29%

(R) 71%

1998 Posição no Setor

Agrícola

16 12 13

1998 Contribuições US$ 423.740 US$ 514.000 US$ 500.380

Distribuição por Partido (D) 59%

(R) 41%

(D) 62%

(R) 38%

(D) 42%

(R) 58%

Fonte: Center for Responsive Politics.

(D) – Partido Democrata / (R) – Partido Republicano

Será que as Laranjas e a Cana-de-Açúcar da

Flórida azedam o Livre Comércio?...

187

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Em 2002, os membros da Câmara Mark Foley e Karen Thurman, quefazem parte do Comitê de Vias e Meios, e Adam Putnam, que integrao Comitê da Agricultura, fizeram a lista dos vinte principais recepto-res. Juntos, estes três membros da Câmara aceitaram US$ 94.217 dosinteresses açucareiros (idem). De fato, durante as eleições interme-diárias de 2002, enquanto o fast track se movia para dentro da Câma-ra e do Senado e o presidente Bush empurrava para frente o seu mo-delo para a ALCA, os produtores de açúcar dos Estados Unidos da-vam contribuições para 267 membros da Câmara e 44 senadores(idem). As contribuições para a Câmara chegaram a uma média deUS$ 5.378 e as para o Senado a US$ 12.159 (idem). Entre os benefi-ciários estava o membro da Câmara William Jefferson, um democra-ta do estado da Louisiana, produtor de cana-de-açúcar, que divide apresidência do grupo do Brasil com o republicano Phil English, daPensilvânia, que, por sua vez, também é responsável pelo grupo doaço (idem)8. Embora as contribuições dos interesses açucareiros parao Congresso não pudessem evitar a aprovação da Autoridade paraPromoção do Comércio em 2002 ou o ALCAC-RD em 2005, elas ga-rantiram que o mercado doméstico protegido dos produtores de açú-car continuaria fechado para as importações do maior e mais eficien-te produtor do mundo, o Brasil.

Os empreendimentos de cítricos e de cana-de-açúcar da Flórida tam-bém desempenharam um papel importante no financiamento dascampanhas presidenciais dos Estados Unidos, fazendo sinal para oestado, a nação e o mundo de suas preferências nas negociações deacordos de comércio. O Quadro 3 mostra a distribuição de contribui-ções de campanha de dois subsetores agrícolas, de frutas e vegetais ede açúcar, nas eleições de 1992, 1996, 2000 e 2004 e revela a indiscu-tível preferência por candidatos presidenciais republicanos. Os doissubsetores favoreceram os republicanos sobre os democratas poramplas margens. Em 1992, o presidente George Bush ganhou apro-ximadamente US$ 96 mil dos dois subsetores, enquanto o seu rival, o

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democrata Bill Clinton, recebeu menos de US$ 20 mil. Em 1996, aarrecadação de campanha do republicano Bob Dole fez o popularpresidente em exercício insuperável em contribuições de campanha,com US$ 111.050 contra US$ 12.500 para a campanha de Clinton.Durante a mais recente e muito contestada eleição de 2000, GeorgeW. Bush armazenou US$ 159.800 dos interesses em frutas e vegetaise açucareiros, enquanto o democrata Al Gore coletou irrisórios US$20.510. Este modelo se manteve em 2004, a despeito do entusiasmodo presidente Bush pelo livre comércio e a bem-sucedida negociaçãodo ALCAC–RD.

Quadro 3

Contribuições de Frutas/Vegetais e Açúcar para os Candidatos Presidenciais1992-2004

Frutas/Vegetais Açúcar

2004 George W. Bush (R) US$ 257.200 US$ 60.855

John Kerry (D) US$ 21.820 US$ 18.750

2000 George W. Bush (R) US$ 120.850 US$ 38.950

Al Gore(D) US$ 12.750 US$ 7.750

1996 Bob Dole (R) US$ 62.550 US$ 48.500

Bill Clinton (D) US$ 4.000 US$ 8.500

1992 George Bush (R) US$ 59.950 US$ 36.000

Bill Clinton (D) US$ 5.000 US$ 14.350

Fonte: Center for Responsive Politics.

(D) – Partido Democrata / (R) – Partido Republicano

O presidente Bush, em exercício, praticamente dobrou as contribui-ções recebidas do subsetor de frutas/vegetais em 2004, ao ganharUS$ 257.200 em doações, enquanto o democrata John Kerry recebeusomente US$ 21.820. Bush também juntou mais de US$ 60 mil vin-dos da indústria do açúcar, comparáveis aos US$ 18.750 para Kerry.O ex-senador Bob Graham, que concorreu contra Kerry nas eleições

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primárias do Partido Democrata, atraiu US$ 15.500 dos CAPs da in-dústria açucareira, mas, ao desistir da competição, seus apoiadoresdo açúcar rapidamente abandonaram a campanha presidencial dosdemocratas (idem). Tanto em 2000 como em 2004, o republicanoGeorge W. Bush foi majoritariamente favorito das indústrias de cítri-cos e de açúcar da Flórida.

De fato, os principais produtores da Flórida desempenharam um pa-pel estratégico nas campanhas do presidente Bush em 2000 e em2004. J. Nelson Fairbanks, diretor executivo (CEO) da United StatesSugar Corporation, foi um “desbravador” para Bush em 2000, quan-do ganhou o distintivo de honra depois de juntar mais de US$ 100 milem contribuições de campanha (idem). Associado ao Fairbanks,Charles W. Evers III também foi um “desbravador” de Bush no traba-lho de angariar fundos para a campanha. Ele é dono da Communica-tions Consensus, firma de relações públicas usada tanto pelos inte-resses cítricos como pelos açucareiros da Flórida (idem). O lobista daFlo-Sun, Wayne Berman, também foi um desbravador de Bush em2000. A campanha de Bush ainda se expandiu em 2004. A Flórida li-derou a nação em número de “Vigias”*, título conquistado pelos an-gariadores de fundos que conseguiram levantar US$ 200 mil ou mais.O plantador de laranja Emily Duda, da Duda & Sons, uniu-se às filei-ras, assim como os líderes da indústria de cana-de-açúcar J. NelsonFairbanks e Robert Edward Coker, da United States Sugar Corporati-on, e José “Pepe” Fanjul, dono da Flo-Sun. Charles Evers, represen-tante das duas indústrias, também fez parte da lista de angariadoresde fundos para Bush em 2004. Somados, os produtores de laranja ede cana-de-açúcar da Flórida decididamente desempenharam um pa-pel-chave no financiamento das duas campanhas presidenciais deGeorge W. Bush.

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* O termo usado originalmente foi “Rangers” que pode ser, além de vigia, guarda-florestal, solda-

do, policial [N. da T].

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Durante uma era de negociações de livre comércio para oALCAC–RD, a ALCA e a Rodada de Doha das deliberações naOrganização Mundial do Comércio (OMC), os produtores de laranjae cana-de-açúcar da Flórida adoçaram suas relações com o Congres-so, especialmente com aqueles membros que tinham assento nos co-mitês de agricultura e de comércio internacional. Além disso, elesapostaram pesado nos candidatos presidenciais republicanos, apesarda considerável incerteza eleitoral. Juntos ou separados, a influênciapolítica dos produtores de laranja e de cana-de-açúcar da Flórida éextraordinária: suplanta de longe suas modestas contribuições para aeconomia norte-americana e supera as preferências de livre comér-cio das indústrias de exportação modernas, de alto valor agregado,representadas por associações de comércio, tais como a Coalizão dasIndústrias de Serviços e o Conselho de Negócios Brasil–EstadosUnidos. Mesmo considerando-se as robustas contribuições de cam-panha, pergunta-se: como interesses faccionais tão modestos, de va-lor agregado tão baixo, poderiam amarrar as relações Brasil-EstadosUnidos no contexto da ALCA e das deliberações de Doha?

NÍVEL II: INSTITUIÇÕES

POLÍTICAS

De acordo com Putnam, o tamanho do conjunto de ganhos tambémdepende das instituições políticas que delineiam o processo de ratifi-cação. Por causa da dificuldade de ratificar tratados de comércio noSenado dos Estados Unidos, com a regra de dois terços prescritaconstitucionalmente, o Congresso decretou o Ato de Expansão doComércio de 1974 para espalhar o conjunto de ganhos relacionadoscom políticas de comércio, por meio da criação de comitês para “[...]aprimorar a comunicação entre os negociadores de Nível I e seuscomponentes de Nível II, cooptando efetivamente os grupos de inte-

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resse ao expô-los diretamente às implicações de suas demandas”(Putnam, 1988:448).

Essa etapa incluía também o desenvolvimento do voto “para cima oupara baixo”, tanto no Senado como na Câmara, para os tratados decomércio conhecidos como autoridade fast track de negociação. Estaautoridade efetivamente elimina esforços para emendar os acordosque se seguem a ajustes de Nível I. Com poderes como esses, enten-de-se que o Executivo exerce uma autonomia maior em relação aosinteresses faccionais e goza de conjuntos de ganhos mais amplos.

A renovação dessa autoridade cria uma conjuntura crítica para a for-mulação de preferências dos componentes, para o exercício do podere para a participação nos esforços de lobby das coalizões. Em parti-cular, esses momentos estimulam aqueles que se opõem à liberaliza-ção do comércio e preferem o status quo. A derrota desses interessese a obtenção da autoridade fast track podem colocar de lado aquelesque estão a favor do status quo. No entanto, as eleições presidenciaisdos Estados Unidos podem se permitir uma segunda chance para di-rigir o Executivo para longe da liberalização do comércio diante dahipótese de resultado incerto. Sob tal condição, os interesses faccio-nais do status quo arraigados no “campo de batalha” ou em um esta-do “oscilante” podem fazer ou arrebentar uma eleição presidencial.No caso dos produtores de laranja e de cana-de-açúcar da Flórida, oresultado incerto das eleições presidenciais em 2000 e 2004 serviupara ampliar a extraordinária influência política, precisamente por-que seus interesses estavam sob considerável ameaça. A dependên-cia de George W. Bush do apoio político desses interesses faccionaiso impedia de abrir mão de uma coalizão vencedora, tanto em 2000como em 2004, até mesmo a despeito da popularidade de seu irmãoJeb, que estava no comando como governador da Flórida nas duaseleições, reduzindo efetivamente tanto o conjunto de ganhos como aautonomia do Executivo dos Estados Unidos. Em vez de reestruturare cooptar essas indústrias, o Colégio Eleitoral deu poderes a elas.

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O Colégio Eleitoral

O presidente dos Estados Unidos é eleito indiretamente por um Colé-gio Eleitoral composto por 538 votos, dos quais o candidato vence-dor precisa obter uma maioria de 270 votos. Cada estado tem direito auma participação no Colégio Eleitoral equivalente ao seu respectivonúmero de senadores e deputados. A cada censo, a alocação de depu-tados na Câmara para cada estado é ajustada de acordo com a mudan-ça demográfica, algumas vezes alterando o número de votos por esta-do. Desde 1976, a participação da Flórida no Colégio Eleitoral cres-ceu substancialmente, de 17 para 27 na competição de 2004. O tama-nho crescente da participação desta no Colégio Eleitoral colaboroupara a incerteza do resultado tanto em 2000 como em 2004, produ-zindo, pelo desenho constitucional, resultados não intencionais.

O propósito dos autores da Constituição dos Estados Unidos em1787 foi criar uma instituição que elegesse um chefe do Executivoforte, capaz de governar efetivamente sob o sistema descentralizadodo federalismo9. De acordo com Judith Best, o Colégio Eleitoral“produz o vencedor certo, e o vencedor certo é o candidato que podegovernar este vasto país porque construiu uma ampla coalizão fede-ral nacional, uma vez que é capaz de ganhar o voto popular em esta-dos suficientes” (CQ Researcher, 2000:23).

Walter Berns (1992) alega que o Colégio Eleitoral produz resultadosdefinitivos ao amplificar o voto popular. Por essas razões, o candida-to vencedor, necessariamente, responde aos assuntos locais e estadu-ais, uma vez que costura sua coalizão entre cinqüenta estados e o Dis-trito de Columbia. Os candidatos que ganham ampla maioria no Co-légio Eleitoral são mais fortes, possivelmente mais autônomos dosinteresses locais e estaduais que contribuíram para suas vitórias nonível estadual.

Por exemplo, conforme o Quadro 4 indica, o presidente Reagan foireeleito em 1984 com uma margem de 512 votos no Colégio Eleito-

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ral, o que lhe concedeu o mandato para um segundo período. Suacampanha combinou interesses locais e estaduais ao longo de toda anação, incluindo uma vitoriosa campanha na Flórida, mas nenhumconjunto local de interesses foi essencial para a vitória de Reagan.Este caso se apresenta em contraste agudo com a eleição de GeorgeW. Bush em 2000 e 2004, quando os votos da Flórida no Colégio Elei-toral foram necessários para a vitória tanto sobre Al Gore como sobreJohn Kerry.

A despeito do desenho constitucional, o Colégio Eleitoral nem sem-pre produz um vencedor claro e um mandato presidencial. Ao longoda história desta instituição, muitas eleições foram decididas poruma pequena margem de vitória e, algumas vezes, sem a maioria su-ficiente. Os presidentes eleitos não ganharam o voto popular em1824, 1876, 1888 e 2000 (CQ Researcher, 2000:11). A instituiçãotambém não criou uma maioria vencedora em 1800, 1824 e 1876,quando foi criada dentro da Câmara dos Deputados uma comissãoespecialmente para presidir a seleção. Todas essas eleições ocorre-ram em condições de alta incerteza eleitoral, sem maioria, ou commargens de vitória muito estreitas. Sob tais condições, o ColégioEleitoral pode ampliar significativamente os interesses faccionais li-gados a um campo de batalha estadual muito além da proporção desua importância econômica nacional.

Nas recentes eleições presidenciais dos Estados Unidos, a Flóridavem sendo freqüentemente identificada por estrategistas de campa-nha e observadores informados como o estado campo de batalha ouestado balanço. De acordo com Shaw (1999), ela era vista tanto pelosestrategistas democratas como pelos republicanos como estado baserepublicano em 1988. No entanto, no que diz respeito a 1992 e 1996,o sistema de classificação de Shaw levou-o a calcular o estado comorepublicano “marginal” com menos certeza de vitória. Cada vez maiso resultado das eleições da Flórida é incerto e tanto os indicados re-publicanos como os democratas gastam consideráveis quantias de

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tempo e dinheiro para ganhar as eleições populares e assegurar os vo-

tos do estado no Colégio Eleitoral.

Quadro 4

O Papel da Flórida no Colégio Eleitoral, 1976-2004

Ano Votos da Flórida no

Colégio Eleitoral

Vencedor na

Flórida

Perdedor na Flórida Margem de Vitória

no Colégio Eleitoral

2004 27 George W. Bush (R) John Kerry (D) 34

George W. Bush

2000 25 George W. Bush (R)* Albert Gore (D) 4*

George W. Bush

1996 25 William Clinton (D) Robert Dole (R) 220

Clinton

1992 25 George Bush (R) William Clinton (D) 202

Clinton

1988 21 George Bush (R) Michael Dukakis (D) 325

George Bush

1984 21 Ronald Reagan (R) Walter Mondale (D) 512

Reagan

1980 17 Ronald Reagan (R) Jimmy Carter (D) 440 Reagan

1976 17 Jimmy Carter (D) Gerald Ford (R) 57

Carter

Fonte: U.S.A. – United States National Archive and Record Administration (2006).

(D) – Partido Democrata / (R) – Partido Republicano

* A margem reflete o total de 271 votos de George W. Bush, um a mais que a maioria de Albert Gore.

Conforme demonstrado no Quadro 4, em 1976 Jimmy Carter supe-

rou o presidente em exercício, Gerald Ford, por 57 votos no Colégio

Eleitoral, 17 dos quais vindos da Flórida. Em 1992, o presidente em

exercício George Bush ganhou os 25 votos da Flórida, mas perdeu

tanto no voto popular como no Colégio Eleitoral para Bill Clinton.

Em 2000, a Flórida desempenhou um papel de destruidor ao definir a

margem de vitória de George W. Bush no meio de uma grande incer-

teza eleitoral e de uma calorosamente contestada e questionada con-

tagem de votos. Em 2004, o presidente Bush prevaleceu em outra

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disputa acirrada na Flórida, requerendo todos os 27 votos do ColégioEleitoral para reassumir a presidência. Atualmente, a Flórida é umcampo de batalha fundamental.

A Flórida como um Estado

Campo de Batalha

Em 2000, a Flórida tornou-se um estado campo de batalha proemi-nente, onde os dois candidatos, George W. Bush e Al Gore, gastaramtempo e recursos consideráveis para ganhar o voto popular e os 25votos do Colégio Eleitoral do estado. Bush venceu a votação do esta-do por meros 537 votos, de acordo com o secretário de estado da Fló-rida, o suficiente para lhe dar os 25 votos do Colégio Eleitoral e a vi-tória nas eleições nacionais, com uma maioria ainda mais discreta noColégio Eleitoral de 271 votos. Não é adequado para essa análise su-gerir uma conclusão sobre o verdadeiro vencedor das eleições naFlórida em 2002, dada a ação da Suprema Corte para impedir uma re-contagem apurada. É imperativo demonstrar a alta incerteza eleitorale o papel pivô do estado no Colégio Eleitoral em 2000 e em 2004.

O surgimento da Flórida como estado campo de batalha nas eleiçõespresidenciais amplifica enormemente os interesses faccionais do es-tado e sua importância política nos assuntos nacionais. Sob condi-ções de campo de batalha, os interesses locais e estaduais podem fa-zer a diferença e eleger sua melhor escolha para negociador de NívelI. Além disso, os interesses faccionais agem para mobilizar seusconstituintes locais a apoiarem seus candidatos favoritos. Por exem-plo, a alta capacidade de levantar fundos para o presidente Bush dosprodutores de cana-de-açúcar da Flórida pode servir para alargar abase eleitoral do candidato, uma vez que um número maior de eleito-res da Flórida, muitos deles em posição de autoridade, investem napossível vitória do candidato. Dessa forma, estados campo de bata-lha, como a Flórida, apresentam as melhores oportunidades para osinteresses faccionais empurrarem suas preferências políticas, uma

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vez que os candidatos tentam se “enganchar” naqueles que os apói-am organizadamente e que prometem uma margem de vitória.

O interesse dos setores de cítricos e da cana-de-açúcar da Flórida fezcom que seus produtores colocassem seu dinheiro com um respeitá-vel grau de sucesso nos candidatos republicanos a presidente. Aoabraçar as campanhas vitoriosas de George W. Bush em 2000 e em2004, eles efetivamente “amarraram suas mãos” em relação às deli-berações de comércio mais amplas da ALCA e da Rodada de Dohada OMC. Esses interesses faccionais calcularam corretamente que oscandidatos democratas estão obrigados às preferências protecionis-tas do trabalho e dos movimentos ambientais. Sendo assim, eles seconcentram na dominação das inclinações ao livre comércio da ad-ministração republicana, dirigindo a liberalização competitiva dopresidente Bush para longe do livre comércio do suco de laranja con-centrado e do açúcar.

É duvidoso se os plantadores de laranja e de cana-de-açúcar poderi-am reunir tamanha influência para reduzir o conjunto de ganhos dosEstados Unidos sem o Colégio Eleitoral. Sob o efeito amplificadordessa instituição peculiar, tais interesses faccionais não somente tes-tam os negociadores como azedam as relações com o Brasil comoum todo.

IMPACTO SOBRE AS

RELAÇÕES ESTADOS

UNIDOS – BRASIL

O poder e a persistência dos produtores de laranja e de ca-na-de-açúcar da Flórida diante da elevação do fluxo de Áreas de Li-vre Comércio desempenham um papel importante na estruturação eformatação das relações bilaterais dos Estados Unidos e Brasil. A ta-rifa de compensação antidumping que os Estados Unidos impuseramao suco de laranja concentrado do Brasil restringe enormemente o

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acesso do produtor global mais eficiente ao maior e mais lucrativomercado nacional. Da mesma forma, o programa de açúcar dos Esta-dos Unidos e sua cota de importação extremamente restritiva reser-vam apenas uma parte microscópica do maior mercado nacional deaçúcar para o maior e mais eficiente país produtor do mundo10. Taismedidas têm um impacto significativo sobre o desenvolvimento eco-nômico brasileiro e desencorajam as instituições representativas danação a explorar o crescimento da cooperação com os Estados Uni-dos.

Impacto Econômico

Os produtores brasileiros de suco de laranja concentrado buscaramintegrar-se com a produção baseada nos Estados Unidos nos últimosanos. A sinergia de estilos é orientada pelas maiores empresas brasi-leiras que adquiriram fábricas de processamento na Flórida. Quatrodos cinco maiores processadores do Brasil adquiriram fábricas no es-tado norte-americano, com a Cutrale fornecendo para a MinuteMaid, o segundo maior distribuidor de suco de laranja dos EstadosUnidos. Essa reestruturação foi acompanhada de investimentos deempresas norte-americanas na produção brasileira. A Tropicana,maior distribuidora nos Estados Unidos, colabora com a Citrosucopara fornecer suco de laranja ao Mercosul. As empresas baseadas nosEstados Unidos, Cargill e Dreyfus, passaram a processar laranjaspara suco concentrado no Brasil. A integração, tanto dos processado-res brasileiros como dos norte-americanos é evidentemente muitosuperficial para aliviar os interesses faccionais que continuam a diri-gir os produtores de laranja da Flórida em busca de proteção contra osuco de laranja concentrado brasileiro. Os custos de produção maisbaixos do Brasil, especialmente os do trabalho, compensam a produ-tividade mais baixa (Graziano da Silva, 1997; Wade et alii, 2001),criando grande parte da diferença de preço entre o suco da Flórida e odo Brasil.

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A intrigante análise de Spreen (2003) sobre o possível impacto daALCA no mercado mundial de suco de laranja revela a extensão dosganhos que os produtores brasileiros poderiam esperar de umaALCA de longo alcance ou de tratados bilaterais que eliminassem osimpostos dos Estados Unidos sobre o suco de laranja concentrado doBrasil. Spreen emprega uma edição revisada do modelo de McClain(1989) para projetar mudanças no mercado global de suco de laranja.Os resultados da aplicação de Spreen são elucidativos. Uma elimina-ção de tarifas dos Estados Unidos sobre suco de laranja concentradoaumentaria as importações norte-americanas em 471%. O modelo deSpreen estima uma perda anual de US$ 278 milhões em receita paraos produtores da Flórida, um declínio de 25%. Com uma eliminaçãode tarifa imediata, a expectativa é de que o consumo aumente por in-termédio da redução de preço que a acompanha, de 14% para o sucoconcentrado. De acordo com esse modelo, a produção de laranja bra-sileira, situada, sobretudo, no estado de São Paulo e competindo coma cana-de-açúcar por terra e trabalho, iria se expandir levemente, in-dependentemente do acesso incrementado ao mercado nos EstadosUnidos e de preços possivelmente mais altos nos mercados tradicio-nais de exportação de suco do Brasil, a União Européia e a Ásia.

O modelo de Spreen pode exagerar as perdas de mercado dos planta-dores da Flórida ao subestimar o potencial para expandir o mercadodoméstico para suco fresco, mas, de toda forma, é importante para adiscussão a respeito do impacto econômico sobre o Brasil. Sem oacesso significativo aos Estados Unidos, o Brasil fica trancado forade um mercado que promete milhões de dólares em ganhos de expor-tação. Mais do que isso, a tarifa existente elimina também o potencialpara um impacto secundário multifacetado. Os benefícios poderiamincluir grandes lucros; produtividade incrementada a partir de inves-timentos adicionais e reestruturação da indústria; salários mais altospara os trabalhadores, se a produção para exportação continuar con-centrada no estado de São Paulo; ou empregos crescentes em estados

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com terra adequada para o cultivo comercial da laranja. O livre co-mércio de suco de laranja concentrado com os Estados Unidos pro-vavelmente levaria à dominação pelo Brasil deste mercado, mastambém estimularia uma maior integração econômica internacionalentre produtores e distribuidores, tanto dos Estados Unidos como doBrasil, para atender às demandas crescentes na Ásia, América Latinae Europa.

O programa dos Estados Unidos também impede o Brasil de aprovei-tar suas vantagens comparativas para expandir os ganhos de exporta-ção e atrair tecnologia e investimento direto estrangeiro, por intermé-dio de uma integração econômica mais aprofundada. O mercado nor-te-americano de açúcar é muito grande, ainda que as importações te-nham caído de mais de 4 milhões de toneladas para menos de 2 mi-lhões no final dos anos 1990 (Orden, 2003). A cota de índice de tarifa(CIT) dos Estados Unidos em 2001 para importações de açúcar tota-lizou 1.223,1 milhões de toneladas, com vários países recebendouma fatia preferencial deste total. A fatia do Brasil somou apenas152,7 mil toneladas, ou 12,2% do acesso mundial ao mercado nor-te-americano (idem:Tabela 9.1). Até mesmo uma liberalização gra-dual do mercado dos Estados Unidos iria impulsionar as exportaçõesde açúcar do Brasil11.

Muitos estudos tentam formatar o processo de melhoria de acesso aomercado de açúcar dos Estados Unidos. Tanto Borrell (1999) comoHaley (1998) predizem 5 milhões de toneladas de aumento nas im-portações, acompanhado de um substancial aumento de preços mun-diais de 38% e 100%, respectivamente. Enquanto se vaticina a quedados preços do açúcar dos Estados Unidos em 25%, o preço mundialaumentaria em virtude do processo de desvio de comércio em dire-ção ao mercado norte-americano. Tsigas e Boughner (2003) tambémtentam criar um modelo para os efeitos do livre comércio de açúcar epredizem a queda dos preços nos Estados Unidos, juntamente commaiores importações. Eles aplicam seus modelos para a liberalização

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completa da ALCA e prevêem uma redução de preço de 8% para oaçúcar refinado e 278% de aumento nas importações dos EstadosUnidos vindas das Américas. Para o livre comércio, paralelamente àcontinuidade dos subsídios aos preços praticados pelos Estados Uni-dos, Tsigas e Boughner (idem) prognosticam uma queda de 36% nospreços e um aumento de 100% das importações dos países da ALCA.As previsões desse modelo mostram o Brasil como o primeiro bene-ficiário de uma ALCA que abre o mercado de açúcar dos EstadosUnidos. Sob um regime contínuo de apoio aos preços, as exportaçõesde açúcar para os Estados Unidos cresceriam 143%, e a liberalizaçãocompleta detonaria um aumento maciço de 418%. Mais do que isso,Tsigas e Boughner (idem) calculam o impacto de bem-estar em dóla-res no caso de uma ALCA de açúcar. Eles explicam que, sob um con-tínuo regime de preços subsidiados, o Brasil esperaria um ganho lí-quido de apenas US$ 5 milhões. Sob uma liberalização completa, oimpacto de bem-estar adicional sobre o Brasil seria de US$ 163 mi-lhões por ano.

É difícil predizer de forma apurada qual seria o potencial dos ganhosdo Brasil sob a ALCA ou um tratado bilateral que incluísse uma aber-tura substancial ao mercado de açúcar dos Estados Unidos12. Mode-los preditivos, tais como aqueles usados por Tsigas e Boughner, pin-tam um cenário plausível para estimar a distribuição relativa de cus-tos e benefícios entre produtores e consumidores dessa commodity.Em cenários como esses, o Brasil aparece ganhando a maior parte domercado norte-americano, obtendo os maiores ganhos de exportaçãoe um impacto modesto de bem-estar, largamente concentrado no es-tado de São Paulo.

Somados, o impacto econômico de um acesso maior ao mercado dosEstados Unidos para o suco de laranja concentrado e o açúcar do Bra-sil (assim como o etanol) seria considerável. O acesso seguro e maiorao mercado dos EUA estimularia uma crescente integração econô-mica entre produtores e distribuidores, o que já ocorre lentamente na

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indústria de suco de laranja. Além disso, maiores oportunidades nomercado de exportação poderiam ser suficientes para mudar as áreasde produção dentro do Brasil com custos mais baixos de terra e traba-lho, uma vez que as forças de mercado de integração compelem amaior produtividade. Seria de se esperar que a produção brasileiradessas duas mercadorias aprofundasse a concentração nas mãos decada vez menos firmas com ligações internacionais expandidas. Umprocesso como esse poderia levar ao desenvolvimento de elos verti-cais mais profundos para ambas as indústrias, criando os benefíciosque derivam do incremento do número de atividades manufatureirasde valor agregado relacionadas com a produção agrícola. No míni-mo, um acesso maior ao mercado norte-americano para duas das ex-portações mais competitivas do Brasil contribuiria para a estabiliza-ção e desenvolvimento econômico do país, uma vez que completariaa transição de uma economia voltada para o mercado interno para aposição de comerciante mundial (Langevin, 2005b).

O acesso crescente ao mercado dos Estados Unidos também apro-fundaria e fortaleceria os laços econômicos entre Estados Unidos eBrasil. Firmas brasileiras já investem em processadores de suco delaranja baseados na Flórida e empresas norte-americanas fazem omesmo no Brasil para servir aos mercados do Mercosul. Uma maiorliberalização do comércio em commodities agrícolas expandiria eaprofundaria a integração entre as empresas brasileiras e nor-te-americanas, especialmente sob condições em que tais laços po-dem subordinar os custos brasileiros de terra e de trabalho mais bai-xos aos insumos de intensificação da produtividade patrocinados pe-los produtores dos Estados Unidos (Wade et alii, 2001). Uma rees-truturação como essa na produção de laranja e açúcar poderia ser mo-desta, dada a notória experiência do Brasil na produção dessas com-modities para ambos os mercados, doméstico e de exportação. Noentanto, mesmo uma pequena reestruturação da produção e distribui-ção de suco de laranja e açúcar promoveria integração e sinergia,

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abrindo portas para investimentos estrangeiros diretos mais volumo-sos no Brasil. Certamente, o acesso expandido ao mercado nor-te-americano também depende das concessões brasileiras aos nego-ciadores dos Estados Unidos, empenhados em defender direitos depropriedade intelectual e oportunidades não discriminatórias e segu-ras de investimento no setor de serviços.

O comércio expandido de mercadorias agrícolas e a integração eco-nômica não são determinantes para o desenvolvimento econômico esocial do Brasil. No entanto, tais resultados dariam aos elaboradoresde políticas em Brasília mais opções de desenvolvimento nacional.Especificamente, o melhor acesso aos mercados para as exportaçõesbrasileiras tornaria o débito do país mais leve em proporção às expor-tações (Gouvea e Hranaiova, 2003; Veiga e Castilho, 2003). Este re-sultado liberaria mais recursos, tanto públicos como privados, parainvestimentos produtivos e de bem-estar. Certamente, esse cenáriode reestruturação estreita e a integração econômica que a acompanhacontribuiriam para o processo apontado por aqueles que advogam opropósito da ALCA, no qual tanto os Estados Unidos como o Brasilsubordinam seus mercados domésticos e suas infra-estruturas produ-tivas em direção a um desenvolvimento estável e gradual das Améri-cas (Hakim, 2004; Hinojosa-Ojeda, 1998; Schott, 2003; Weintraub,1994; Williamson, 2002; 2003). No entanto, este processo dependedo reconhecimento de ambos os governos, do Brasil e dos EstadosUnidos, de pelo menos a mais estreita superposição de seus respecti-vos conjuntos de ganhos e de seus esforços para negociar um acordocapaz de obter ratificação tanto de Brasília como de Washington.

Impacto Político

A influência política dos produtores de cítricos e de cana-de-açúcarda Flórida sobre a política comercial dos EUA tem profundo alcancesobre o corpo político do Brasil, e complica o desenvolvimento dasrelações EUA–Brasil. O sucesso político desses interesses obstina-

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dos apoiou os argumentos dos “desenvolvimentistas”13 do Brasil,que concluem que os Estados Unidos querem proteção de ingressoao mercado e aos investimentos sem oferecer em troca maior acessoao mercado para as exportações brasileiras mais competitivas. Con-seqüentemente, as relações EUA–Brasil continuam cordiais, apesarde congeladas entre interesses de comércio divergentes e o desenvol-vimento de aliança estratégica entre as duas maiores nações dasAméricas14.

A distinção de Putnam (1988) entre conflitos de delimitação e facci-onais coloca um pouco de luz sobre o desenvolvimento político doBrasil dentro do contexto de relações bilaterais. Para Putnam, confli-tos de delimitação giram em torno de estratégias de barganhas bási-cas, entre os chamados “falcões” e “pombos”. Os falcões dirigembarganhas duras e ameaçam, visando a preservação do status quo,enquanto os pombos expressam uma vontade maior de resolver as di-ferenças e chegar a um acordo. Uma vez resolvidos os conflitos dedelimitação, os interesses faccionais servem como a variável primá-ria, influenciando a propagação do conjunto de ganhos em negocia-ção de um país.

As eleições do Brasil em 2002 serviram para resolver o conflito dedelimitação no que diz respeito às negociações dos EUA e da ALCA.Mesmo antes das eleições presidenciais, oponentes da versão nor-te-americana sobre a questão organizaram um plebiscito para que oscidadãos brasileiros pesassem suas opiniões e reduzissem o conjuntode ganhos do Brasil. A votação informal mandou um claro sinal deque os oponentes da ALCA no Brasil estavam organizados o bastantepara complicar qualquer processo futuro de ratificação. As eleiçõespresidenciais resultaram de um sentimento popular e serviram paraconsolidar a falconídea posição desenvolvimentista, e cristalizar oceticismo do país sobre a ALCA liderada pelos EUA. Ambos os can-didatos no segundo turno, Lula, do Partido dos Trabalhadores, e JoséSerra, do Partido Social Democrata Brasileiro, do presidente Fernan-

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do Henrique Cardoso, ofereceram posições eleitorais desenvolvi-mentistas no que diz respeito às negociações da ALCA. A coalizãovencedora do presidente Lula, composta do seu próprio partido, damaior parte dos partidos de esquerda e de setores industriais nacionaisrepresentados pelo Partido Liberal do vice-presidente José Alencar,foi equilibrada para dirigir uma estratégia de “barganha dura”.

O presidente Lula foi rápido ao afirmar sua posição em favor da “bar-ganha dura” e de um conjunto de ganhos estreito. Primeiramente, elecolocou Samuel Pinheiro Guimarães, um crítico ferrenho da ALCA,como o segundo encarregado do Ministério das Relações Exteriores.Guimarães havia argumentado que “o Partido dos Trabalhadores for-necerá continuidade à luta contra a ALCA e em defesa de uma inte-gração soberana e democrática das Américas” (Barr, 2003).

Em segundo lugar, Lula pôs-se a caminho de validar externamentesua liderança e fortalecer seu apoio como negociador de Nível I, visi-tando os membros do Mercosul – Argentina, Paraguai e Uruguai –,assim como as várias nações da Comunidade Andina e o Chile. Seudiscurso de uma América do Sul unificada e integrada foi bem rece-bido. O presidente Alejandro Toledo, do Peru, aderiu como um mem-bro associado do Mercosul, e o presidente Chavez, da Venezuela,também começou a guiar seu regime em direção ao Mercosul15. Emterceiro, a administração Lula continuou a dirigir suas abordagens de“barganha dura” ao longo do ano de 2003. Brasília levou adiante dis-putas contra os Estados Unidos (subsídios do algodão) e União Euro-péia (subsídios do açúcar), na OMC, e exigiu a eliminação dos subsí-dios agrícolas na reunião ministerial da Rodada de Doha, em Can-cun, México16. Em quarto lugar, a ofensiva do Brasil contra umaagenda da ALCA dirigida pelos EUA continuou seguindo o colapsodas conversações da OMC, em Cancun. Em Miami, os negociadoresda ALCA deveriam se encontrar para um acordo sobre uma minutade proposta da ALCA, focando nas negociações, antes do limite má-ximo de janeiro de 2005. O sucesso do Brasil na oposição aos Esta-

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dos Unidos e à União Européia em Cancun tornou-se mais forte emMiami, e passou por cima dos negociadores dos EUA, deixando aALCA no limbo17.

A estratégia de “barganha dura” do governo brasileiro levou ao con-fronto com os Estados Unidos e com a União Européia a respeito detemas centrais do comércio internacional; fez os Estados Unidos pa-rarem de impor uma ALCA no estilo NAFTA; e colocou o país emuma posição única de liderança regional, se não global. Além disso, oBrasil reverteu seu balanço negativo de comércio com os EstadosUnidos em 2002 e agora goza de uma margem que vem crescendo ra-pidamente. Para muitos, o status quo está prevalecendo, suportadopor uma estratégia de “barganha dura”. No entanto, dado o apareci-mento do Brasil como um negociante mundial e líder regional18, ostatus quo pode não ser suficiente para sustentar o crescimento e de-senvolvimento a longo prazo. Mesmo com o Mercosul fortalecido, oBrasil pode precisar revisar e refinar sua arquitetura de negociaçãopara dominar o choque dos interesses faccionais de seu Nível II comas prioridades de desenvolvimento nacional.

A arquitetura de negociação do Brasil está melhorando, mas conti-nua problemática. Lima e Santos (2001) examinam o vazio instituci-onal entre o Executivo brasileiro e o Congresso em matérias de ela-boração de política externa. Eles alegam que a “a abdicação do Con-gresso” enfraquece a credibilidade da política externa de comérciodo Brasil, coloca em risco a ratificação de tratados e, finalmente, di-minui o poder de barganha do Executivo. A estratégia de barganhadura pode proteger interesses faccionais, mas pode também fazerconsideráveis concessões quando o negociador de Nível I ofereceum conjunto de ganhos considerável, sancionado explicitamentepelo poder legislativo. Veiga (2002) reporta “uma inegável e consis-tente tendência” em direção ao refinamento dos mecanismos do Bra-sil para desenvolver uma política de comércio, em grande medida feitaem resposta às deliberações do Mercosul e da ALCA. Enquanto as

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Seções Brasileiras do Fórum Econômico e Social do Mercosul e aComissão Parlamentar Conjunta atuam para ratificar o desenvolvi-mento gradual desse bloco regional de comércio, seus participantesainda têm de mobilizar o Congresso Brasileiro para uma maior parti-cipação e responsabilidade na elaboração de políticas de comércio.De fato, a análise de Veiga (idem) é convincente, precisamente por-que ele não reporta qualquer nova iniciativa para institucionalizar asconsultas ao Congresso com órgãos do Executivo, tais como o Secre-tariado Nacional da ALCA (SENALCA). Sem uma participação doCongresso mais expressiva e esforços combinados para esboçar e de-talhar um conjunto de ganhos ratificável, a estratégia de “barganhadura” mostra-se pouco eficaz para a obtenção de qualquer concessãodos Estados Unidos.

A elaboração de políticas comerciais do Brasil está praticamente iso-lada do Congresso e dependente de consultas setoriais de cima parabaixo, que, freqüentemente, precluem as acomodações necessáriaspara se desenhar conjuntos de ganhos ratificáveis. A despeito da ex-pansão das consultas a partir do SENALCA e de outros mecanismosdo Ministério das Relações Exteriores, “deficiências consultivas en-tre o Executivo e o setor privado” continuam a contaminar a capaci-dade do governo de tecer uma política comercial por intermédio deinteresses faccionais e em direção às prioridades de desenvolvimentonacional (Barbosa, 2004:62). No que diz respeito aos exportadoresagrícolas, o Executivo brasileiro é cada vez mais efetivo na promo-ção de interesses no exterior e em abrir novos mercados. No entanto,a relativa fraqueza política desses interesses faccionais, incluindo osprodutores de suco de laranja concentrado, açúcar e etanol, impede oaumento do conjunto de ganhos do Brasil para sobrepô-lo às posi-ções em negociação pelos Estados Unidos19. Maiores esforços pode-riam ser feitos pelo Executivo, pelo Congresso e por exportadoresagrícolas para desenvolver uma política que estenda os benefícios daliberalização do comércio para mais e mais cidadãos, em particularos beneficiários da reforma agrária.

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Por exemplo, a política agressiva do Brasil para aumentar a produçãoe exportação de etanol proporciona um solo fértil para o tipo de elosde sinergia necessário para aumentar os conjuntos de ganhos e en-contrar uma maior área de sobreposição com os Estados Unidos. OCongresso brasileiro, as indústrias de cana-de-açúcar e etanol, aCUT e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) po-deriam desenhar uma moldura para a política de desenvolvimentorural que permitisse melhores oportunidades para as famílias de fa-zendeiros e trabalhadores rurais participarem dos ganhos que a lide-rança do Brasil no mercado global de etanol traz. Tal colaboração po-deria incrementar o apoio político à liberalização do comércio, inci-tar uma “reverberação persuasiva” nos aliados dos Estados Unidos,encorajar o Executivo norte-americano a explorar a reestruturação daindústria da cana-de-açúcar da Flórida, e contribuir para um acordode ruptura com os Estados Unidos, ou o que Schott (2003) chama de“fazer a ponte no espaço vazio”.

Existem razões compelindo o Brasil a preservar o status quo nas suasrelações comerciais com os Estados Unidos, incluindo os interessesinegociáveis defendidos pelos produtores de laranja e ca-na-de-açúcar da Flórida. A estratégia de liberalização competitiva de“dividir e regular” do governo, sua expectativa de deferência hege-mônica e sua propensão à barganha coercitiva com o Brasil não sãoum bom presságio para as relações entre os dois países. Para comple-tar, a preferência declarada do Brasil pelo Mercosul também reduzseu conjunto de ganhos em virtude da vulnerabilidade da Argentinaem expandir as exportações e serviços dos Estados Unidos20. O com-prometimento compreensível do Brasil com o Mercosul e sua parce-ria estratégica com a Argentina fortalecem os falcões da política co-mercial e complicam os esforços para detalhar um conjunto de ga-nhos crível. Se o Brasil não consegue fazer a ponte no vazio que exis-te entre dois grupos de posições de barganhas bilaterais, então o po-der político das indústrias da laranja e da cana-de-açúcar da Flórida

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continuará a tornar agudas as arestas coercivas da política comercialdos EUA, a opor-se à cooperação bilateral e a desempenhar um papelindesculpável na formatação das alternativas de desenvolvimento doBrasil.

CONCLUSÃO

Esta análise da influência política dos produtores de laranja e de ca-na-de-açúcar da Flórida sobre a política comercial dos Estados Uni-dos com o Brasil ilustra como a teoria da barganha internacional dePutnam (1988) pode ser aplicada para especificar as condições insti-tucionais que amplificam os interesses faccionais. As aplicaçõesdesta teoria têm delimitado o exame destes interesses, de problemasdomésticos e internacionais de ação coletiva e de coordenação, taiscomo a Autoridade para a Promoção de Comércio, criado para mini-mizar a influência política dos interesses faccionais sobre a formaçãodos conjuntos de ganhos e a ratificação de tratados. Este artigo revelao papel que o Colégio Eleitoral dos Estados Unidos pode desempe-nhar na amplificação da influência política de interesses faccionaissob condições de alta incerteza eleitoral. Uma vez que este exame selimita aos interesses dos setores da laranja e da cana-de-açúcar daFlórida, mais pesquisas são necessárias para uma melhor compreen-são do impacto do Colégio Eleitoral e de outras instituições eleitoraisna política comercial.

Esta análise serve também para detalhar precisamente como esses in-teresses protecionistas específicos impactam a formação da políticacomercial dos EUA no que diz respeito ao Brasil. Os produtores delaranja e de cana-de-açúcar da Flórida restringem o conjunto de ga-nhos e procuram “amarrar as mãos” do negociador de Nível I para seproteger de amplas importações brasileiras. Parece difícil imaginarque o Executivo dos EUA poderia virar as costas para os plantadoresde laranja e de cana-de-açúcar da Flórida diante de seu papel eleitoralpivô. Esses interesses faccionais ampliados poderiam manter reféns

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as relações comerciais EUA–Brasil, enquanto a Flórida poderia per-manecer como chave para ganhar a presidência norte-americana.Ironicamente, o estado da Flórida se beneficiaria do comércio ampli-ado com o Brasil. O Executivo dos EUA poderia escolher a reestrutu-ração da indústria da laranja da Flórida para exportação e o mercadodoméstico de suco fresco, enquanto induz a indústria da cana-de-açúcar a abraçar a produção de etanol. No entanto, uma escolha tãodifícil depende em parte dos esforços brasileiros para construir umaponte no vazio, e sem tais esforços as relações EUA–Brasil continua-rão a ser azedadas pelos interesses faccionais dos produtores de la-ranja e de açúcar da Flórida ainda por algum tempo.

Notas

1. O Centro de Estudos Brasileiros de Relações Internacionais, CEBRI(2001), demonstrou a importância do papel que os produtores de laranja e açú-car desempenham na formação da política de comércio dos Estados Unidos, eSader (2002) chamou atenção para a campanha agressiva das indústrias de cítri-cos para renovar a tarifa que protege seu suco de laranja concentrado do impor-tado brasileiro mais barato. Jeter (2003) inicialmente introduziu o termo “aze-dar” (ou “amargar”) na discussão sobre as relações Brasil/Estados Unidos emseu artigo intitulado “Tarifas do Açúcar dos Estados Unidos Azedam os Brasile-iros”, publicado no Washington Post Foreign Service.

2. Para uma descrição concisa a respeito de “Autoridade para Promoção deComércio”, ver Feldpausch e Smith (2002).

3. Orden (2003) explora possíveis políticas de reajustamento para a produçãode açúcar dos Estados Unidos em eventuais cenários da ALCA e propõe a refor-ma do amendoim de 2002 como um valoroso modelo para ser considerado.

4. Para uma revisão e análise de Assistência de Ajuste de Comércio (AAC),ver Kletzer e Rosen (2005).

5. A TRQ de açúcar permite que exportadores, tais como o Brasil, vendam pe-quenas quantidades relativamente livres de impostos. Exportações acima da

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cota, além daquelas distribuídas pela TRQ, estão sujeitas a tarifas muito altas de15,36 libras (Orden, 2003:13).

6. O republicano Mark Foley da Flórida, o maior receptor do Congresso dascontribuições de campanha da indústria do açúcar durante o último ciclo eleito-ral, deu seu voto a favor do ALCAC-RD. Parece que o voto de Foley, ainda quedesagradável para os interesses açucareiros, levanta seu prestígio junto ao presi-dente Bush e sua habilidade para proteger os interesses da indústria mais adian-te, na medida em que a administração continua a negociar Acordos de Livre Co-mércio (ALCs) bilaterais e subregionais.

7. Essa perda, não usual para quem está no exercício do poder, foi em parte re-sultado da nova distribuição por distrito que se seguiu ao Censo de 2000 e quepremiou a Flórida com dois votos adicionais na Câmara dos Deputados.

8. As conexões de financiamento de campanha entre os que dividem a presi-dência do grupo do Brasil e os protegidos produtores de açúcar e de aço dosEUA só podem servir para complicar ainda mais as relações de comércio com oBrasil.

9. Alexander Hamilton declarou sua intenção em O Federalista, número 68, p.205: “Era igualmente desejável que a imediata eleição fosse feita pelos homensmais capazes de analisar as qualidades adaptadas à estação, de agir sob as cir-cunstâncias favoráveis à deliberação, e de fazer uma combinação judiciosa detodas as razões e motivações que eram próprias para governar suas escolhas. Émais provável que um pequeno número de pessoas, selecionadas pelos compa-nheiros-cidadãos da massa em geral, detenha a informação e o discernimentoque são requisitos para a realização de investigações tão complicadas.”

10. Os exportadores brasileiros de açúcar de fato tiram proveito de enormesrendas da pequena cota de importação alocada para eles, com preços substanci-almente mais altos do que os preços do mercado doméstico ou mundial. Corren-temente, o Brasil apropria sua Cota de Tarifa para os produtores localizados noNordeste, mais pobre, como parte de sua política de desenvolvimento regional,o que cria as condições de, pelo menos, existir uma aliança tácita entre os produ-tores de açúcar dos EUA e aquelas firmas brasileiras que gozam de rendas ro-bustas do mercado dos EUA, restritivo, porém, de preços altos. No entanto, éduvidoso que tal aliança explique a ausência de um tratado ou acordo entre EUAe Brasil que inclua o açúcar.

11. Esta sugestão é contingente ao status quo no comércio de etanol. No entan-to, se o Brasil aumentar rapidamente sua produção de etanol para os mercadosdoméstico e global, sua capacidade de suprir o mercado norte-americano serácumprida. No momento, o Brasil utiliza aproximadamente 50% de sua ca-

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na-de-açúcar para a produção de etanol, com variações anuais de acordo com aregulação do governo brasileiro sobre a mistura de gasolina e etanol para as con-dições de mercado doméstico e de mercado global.

12. Hinojosa-Ojeda (1998) modela os possíveis resultados da ALCA, tantopara o Brasil como para os EUA, e conclui que os maiores ganhos em bem-estarde um pacto hemisférico de comércio poderiam ser assegurados a ambos os paí-ses. Schott (2003) também alega que a ALCA poderia incrementar substancial-mente o comércio e o bem-estar entre os dois países. Contudo, alguns poucosacadêmicos analisaram como tais ganhos em bem-estar seriam distribuídos noBrasil, que possui uma das distribuições de renda mais concentradas do mundo.

13. Os desenvolvimentistas, incluindo o ministro das Relações Exteriores Cel-so Amorim, querem essencialmente preservar a soberania do Brasil na formacomo se aplica, para a formulação de uma política de desenvolvimento nacio-nal, ou, como Amorim sugeriu em uma entrevista à Veja (2004), “queremosuma ALCA que respeite a capacidade das nações de preservar seus própriosmodelos de desenvolvimento”. Barbosa (2003) também identifica esse interes-se estratégico em relação às negociações da ALCA.

14. O encontro de gabinete sem precedentes, entre os presidentes Lula e Bush,em junho de 2003, demonstra que o conceito de uma aliança bilateral estratégi-ca é uma importante referência entre os líderes na elaboração da política externade ambos os países.

15. Para uma análise completa sobre integração econômica no Mercosul eAmérica do Sul, ver Carranza (2000).

16. Para uma explicação concisa das posições dos EUA e da UE sobre o comu-nicado conjunto levado a público na véspera da reunião de Cancun, ver Zedillo(2003). Discussões intrigantes sobre a reunião de Cancun encontram-se emHenwood (2003) e Mandle (2003).

17. Ver o Multinational Monitor (2003) para uma detalhada consideração deMiami.

18. Aggarwal e Espach (2003:41-42) propõem uma tipologia de estratégiasde comércio na América Latina e definem o Brasil como “líder regional”. Elesalegam que “o Brasil, massivo e crescente, ganhou prestígio ao adicionar lide-rança política regional à sua posição como motor econômico da América doSul”.

19. A fraqueza relativa dos exportadores agrícolas do Brasil refere-se ao equi-líbrio de poder em favor dos oponentes da ALCA, incluindo muitos industriaisnacionais e trabalhadores organizados sob a liderança da Central Única dos Tra-

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balhadores (CUT), assim como a esquerda da base de centro do Partido dos Tra-balhadores do presidente. No entanto, os exportadores agrícolas são bem orga-nizados para advogar em defesa de interesses domésticos pelo Ministério daAgricultura e pelo Congresso brasileiro (Helfand, 1999).

20. Ver Cason (2000), Keat (2002), Phillips (2003) e Ferreira Simões (2002)para tratamentos analíticos do Mercosul, e a relação entre Argentina e Brasil emparticular e dentro do contexto do processo da ALCA.

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RESUMO

Será que as Laranjas e aCana-de-açúcar da Flórida Azedamo Livre Comércio? Uma Análise deRatificação de Nível II da PolíticaComercial dos Estados Unidos como Brasil

O estado da Flórida e seus produtores de laranja e de cana-de-açúcar colo-cam-se no centro do palco das relações econômicas entre os Estados Unidose o Brasil e do drama da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Po-derosos e persistentes, esses modestos interesses econômicos têm sua im-portância política amplificada pelo papel de pivô da Flórida nas recenteseleições presidenciais dos Estados Unidos. Aumentado pelo papel de pivôdo estado no Colégio Eleitoral, os interesses dos setores de laranja e de ca-na-de-açúcar têm efetivamente restringido a autonomia do Executivo dosEUA. Este trabalho emprega a teoria de ratificação de acordos internacionaisde Putnam e examina as contribuições de campanha dessas indústrias paraexplorar os desafios de ratificação de Nível II associado à influência políti-ca das principais forças protecionistas da Flórida. Este exame demonstracomo os interesses faccionais e as instituições políticas podem se cruzarpara ampliar a importância de indústrias com interesses estreitos e prescri-tos territorialmente, sob condições de alta incerteza eleitoral. Por fim, o ar-tigo explora as implicações desses interesses inegociáveis sobre as relaçõesEUA–Brasil e a política comercial brasileira.

Palavras-chave: Política Comercial – Colégio Eleitoral – Integração Re-gional – Relações EUA-Brasil.

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ABSTRACT

Do Florida Oranges and SugarcaneSour Free Trade? A Level IIRatification Analysis of UnitedStates Trade Policy with Brasil

The state of Florida and its orange and sugarcane producers stand at thecenter-stage of United States – Brazil economic relations and the FreeTrade in the Americas (FTAA) drama. Powerful and persistent, the politicalimportance of these modest economic interests is amplified by Florida’spivotal role in United States’ presidential elections of late. Magnified by thethe state’s pivotal role in the Electoral College, Florida orange andsugarcane interests have effectively restricted the autonomy of the U.S.Executive. This paper employs Putnam’s(1988) international agreementratification theory and examines these industries campaign contributions toexplore the Level II ratification challenges associated with the politicalinfluence of Florida’s primary protectionist forces. This examinationdemonstrates how factional interests and political institutions can intersectto amplify the political importance of narrow, territorially prescribedindustries under conditions of high electoral uncertainty. Lastly, the articleexplores the implications of these intractable interests upon U.S.-Brazilrelations and Brazilian trade policy.

Key words: Trade Policy – Electoral College – Regional Integration –U.S.-Brazil relations

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Com o fim da URSS, as ex-repúblicas socialistas adquirem o statusde países independentes e dão início à construção de uma nova or-dem no leste da Europa. A instabilidade é esperada, pois a falênciada autoridade central soviética introduz os novos países no reino daanarquia. Nesse sentido, a emergência de Estados soberanos traz àtona uma série de conflitos de interesses que permaneceram latentesdurante o regime comunista e nos quais a Rússia está envolvida porcausa de sua extensão territorial, o tamanho de sua população e suaimportância militar. Além disso, algumas disputas envolvem as as-pirações de autonomia das antigas repúblicas, as quais passam a en-xergar a Rússia como sucessora da União Soviética no papel de

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*Artigo recebido em outubro de 2004 e aprovado para publicação em janeiro de 2006.**Este artigo é uma versão resumida de Mielniczuk (2004).***Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universi-dade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professor e coordenador da pesquisa Rússia e Seguran-ça Internacional na Unilasalle – RJ.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 223-258.

Identidade comoFonte de Conflito:Ucrânia e Rússia noPós-URSS* **Fabiano Mielniczuk***

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opressor. Por isso a postura russa em relação a seus vizinhos é cruci-al para a viabilidade da nova ordem regional.

O presente artigo trata da relação entre Rússia e Ucrânia nesse con-texto. Mais especificamente, sugiro que os conflitos que emergementre os dois países têm origem no modo como suas identidades sãoconstruídas a partir do fim da URSS. O texto está dividido em quatropartes. Na primeira, algumas contribuições teóricas sobre os confli-tos entre Ucrânia e Rússia são comentadas. Na segunda, um modeloconstrutivista para ser aplicado no caso em questão é sugerido. A ter-ceira parte consiste na aplicação deste modelo, a partir da análise dainteração entre Ucrânia e Rússia no imediato pós-URSS. Na quarta, arelação entre a Ucrânia, a Rússia e a Organização do Tratado doAtlântico Norte (OTAN) é analisada tendo em vista o que é apresen-tado nas seções anteriores. Algumas considerações finais concluemo artigo.

Os Conflitos entre Ucrânia e

Rússia no Pós-URSS

No pós-URSS, a intensidade e a abrangência dos conflitos da Rússiacom as demais ex-repúblicas socialistas variam de acordo com os pa-íses em questão. O conflito principal entre os três países do Báltico ea Rússia diz respeito ao estatuto das minorias na região. A Rússia re-ceia que o resgate dos valores nacionais na Letônia, Lituânia e Estô-nia resulte em discriminação contra as minorias russas. Por sua vez,os três países temem que a situação dos russos em seus territórios sejautilizada por Moscou como pretexto para justificar a ingerência daRússia nos seus assuntos internos (Lieven, 1999).

Já o conflito entre Rússia e Bielo-Rússia é econômico. A maior partedo petróleo e do gás natural consumidos pela Bielo-Rússia é forneci-da pela Rússia. Porém, por causa das precárias condições econômi-cas do país, o governo de Minsk tem dificuldades em pagar suas dívi-

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das. Todavia, o problema é facilmente administrado e as divergênci-as econômicas não afetam a cooperação em outras áreas (Burant,1995).

A indisposição entre Rússia e Moldávia é militar. Durante o processode dissolução da URSS é criada a Frente Popular da Moldávia, ummovimento político que busca a união do país com a Romênia. Commedo das conseqüências de uma provável anexação à Romênia, a po-pulação eslava que habita a região entre o rio Dniester e a fronteiracom a Ucrânia inicia uma guerra de secessão. Imediatamente, as for-ças armadas russas localizadas na região rebelde apóiam abertamen-te o movimento. Desde então, Moscou e Chisinau têm um relaciona-mento pouco amistoso (Garnett e Lebenson, 1998).

A relação da Ucrânia com a Rússia é mais complexa. Quase todas asdisputas envolvendo os dois países no pós-URSS são tratadas em umambiente de conflito. Assim como os países bálticos, a Ucrânia tam-bém teme que a preocupação com o status da minoria russa que viveem seu território seja utilizada pela Rússia como pretexto para inter-ferir na política interna ucraniana. Porém, a presença russa na Ucrâ-nia tem um potencial de desestabilização muito maior. Dos 50 mi-lhões de habitantes do país, 25 milhões falam russo como primeiroidioma e mais de 10 milhões são originários da Rússia. Essa “gran-de” minoria russa se concentra nas regiões leste e sul da Ucrânia, exa-tamente na parte que faz fronteira com a Rússia. Na Península da Cri-méia, por exemplo, 70% da população é de origem russa. As mani-festações da Rússia sobre sua diáspora são consideradas pela Ucrâ-nia como uma estratégia para incentivar o início de uma guerra civilentre russos e ucranianos. Desse modo, seria mais fácil para a Rússiaincorporar as regiões ucranianas habitadas por russos ao seu territó-rio (Garnett, 1997).

Assim como ocorre com a Bielo-Rússia, a Ucrânia também enfrentaproblemas com a Rússia na esfera econômica. Aproximadamente

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Rússia no Pós-URSS

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70% do petróleo e 90% do gás natural consumidos no país são forne-cidos pela Rússia. Em situação econômica frágil, a Ucrânia nemsempre tem condições de efetuar os pagamentos em dia. A Rússiautiliza sua condição de credora como trunfo nas negociações que en-volvem outras disputas com o país. Caso a Ucrânia não aceite suasdiretrizes, a Rússia ameaça cortar o fornecimento de energia – o queé feito geralmente durante o inverno. Os ucranianos temem que a in-terrupção do fornecimento mergulhe o país no caos econômico. Nes-se cenário, é difícil manter a lealdade da minoria russa à Ucrânia1. Natentativa de dissuadir a Rússia, a Ucrânia lança mão do único recursoque possui nesse âmbito: sua localização geográfica. O país aumentaas taxas de passagem do petróleo e do gás russos, exportados para aEuropa pelos dutos localizados em território ucraniano. A medidaforça o restabelecimento do diálogo, mas não soluciona o problema.O círculo vicioso é reiniciado, e a cooperação torna-se ainda mais di-fícil (Balmaceda, 1998a; Smolanski, 1995).

Ucrânia e Rússia também enfrentam problemas na esfera militar. Aparticipação russa na guerra da Moldávia – que ocorre na fronteiraocidental da Ucrânia – demonstra a disposição da Rússia em garantirpela força seus interesses no “estrangeiro próximo”. Com essa per-cepção, a Ucrânia obstrui as negociações sobre seu desarmamentonuclear com a Rússia, e exige a participação dos EUA como garanti-dor dos Tratados (Papadiuk, 1996). No momento em que os acordossão firmados, o país quer salvaguardas da comunidade internacionalsobre a sua integridade territorial após a desnuclearização. Além dis-so, a Ucrânia procura integrar-se à OTAN, o que é visto pela Rússiacomo um ato de provocação, uma vez que a Rússia não aceita a ex-pansão da Aliança para os países do leste europeu. Mas os conflitosmais intensos ocorrem por causa do estatuto de Sevastopol e da divi-são da Frota do Mar Negro (FMN). Depois de anos de difíceis nego-ciações e de algumas ameaças de uso da força, as partes aceitam umasolução provisória. Por não ser definitiva, é mantida a possibilidade

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de que conflitos militares irrompam entre os dois países no futuro(Sherr, 1997).

Conclui-se que o relacionamento entre a Ucrânia e a Rússia nopós-URSS beira uma conflagração geral, pois há divergência de inte-resses em quase todos os seus aspectos. Por isso, é difícil formularuma hipótese que dê conta da permanência do conflito entre os doispaíses. Mesmo assim, algumas delas são sugeridas.

Para Morrison (1993), o relacionamento entre Rússia e Ucrânia éafetado pelo caráter inaudito da situação pós-URSS, dado que ambosjamais haviam coexistido como Estados totalmente independentes.Por isso, os países recorrem à própria história a fim de definir a manei-ra como proceder na interação. Segundo o autor, é o Tratado de Pere-yaslav (1654) que melhor representa a utilização de mitos do passadopara orientar a ação dos Estados no presente. Os ucranianos o assi-nam como um acordo de responsabilidades mútuas, no qual receberi-am proteção contra os poloneses em troca da lealdade ao czar. Na vi-são russa, trata-se do início de mais uma anexação do império. Emconseqüência, os sentimentos atuais em relação a Pereyaslav variam.Para os ucranianos, ele ensina que não se deve confiar na Rússia, por-que sua aparente boa vontade esconde o desejo de conquista. Para osrussos, o Tratado representa a união da Rússia com seus “irmãos me-nores,” e repara uma separação artificial ocorrida no século XIII,quando os mongóis conquistam a região. Assim, no momento da in-dependência, tanto a Ucrânia quanto a Rússia não se consideram in-terlocutores legítimos. O resultado são os conflitos entre os dois paí-ses a partir de então.

Uma outra explicação é oferecida por Kuzio (2001). Os conflitos en-tre Rússia e Ucrânia têm origem na crise de identidade que assola osdois países com o fim da URSS. Definida em termos territoriais, étni-cos e culturais, a identidade é construída em um processo de disputaentre as elites, internamente, e tem como ponto de referência um ou-

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Rússia no Pós-URSS

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tro Estado. A elite da Rússia não aceita a identidade da Ucrânia comopaís independente. Essa postura acirra a disputa entre a elite ucrania-na, que se divide entre os que apóiam a vinculação com a Rússia e osque preferem o afastamento. De acordo com o autor, a inabilidadedas elites russas em aceitar a separação da Ucrânia é responsável pelaênfase dada pela elite ucraniana no governo à diferenciação em rela-ção à Rússia. Esse processo origina os conflitos entre os dois países.

De acordo com Kincade e Melnyczuk (1994), os conflitos entreUcrânia e Rússia são conseqüência da crise de legitimidade que asso-la a URSS durante seu fim, que acaba ficando como herança para asrepúblicas sucessoras. A lógica de seu argumento é a seguinte: com alegitimidade em baixa, os líderes políticos utilizam a estigmatizaçãodo adversário como um recurso para aumentar o seu prestígio. Nessesentido, os problemas entre Ucrânia e Rússia são causados porex-comunistas recém convertidos aos ideais nacionais. Formadospor membros da antiga nomenklatura, esses políticos não avaliam osriscos da prática agressiva empregada na defesa de seus interesses. A“guerra fria” entre Ucrânia e Rússia que se segue após o final daURSS decorre dessa situação. Em ambos os países, os líderes bus-cam diminuir a contestação sobre sua legitimidade criando crises po-líticas para distrair a atenção da população.

As três explicações contribuem muito para o entendimento das rela-ções entre Ucrânia e Rússia. A ênfase dada por Morrison (1993) aopapel da história nas relações entre os dois países é válida, mas a his-tória é utilizada por ele de modo inadequado. Ao privilegiar um even-to ocorrido há 350 anos, o autor reifica o significado que o episódiotem na época e o transporta para o final do século XX. Assim, as dife-renças entre o contexto original de Pereyaslav e o contexto atual nãosão respeitadas. Isso implica a menor capacidade de indicar alternati-vas ao padrão de conflito existente pós-URSS. Uma abordagemcomplementar deve privilegiar o papel da história respeitando a ma-neira como ela é interpretada em perspectiva. Dessa maneira, a ênfa-

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se recai sobre o modo como o passado dá origem a novos significa-dos no presente. Para alcançar esse objetivo, é necessário priorizar oestudo da interação entre Ucrânia e Rússia na atualidade.

A ênfase dada ao papel da identidade estatal é a maior contribuiçãode Kuzio (2001), que indica o processo de construção das identida-des da Rússia e da Ucrânia como fonte do conflito entre os dois paí-ses. Todavia, a identidade é entendida como um sentimento comumcompartilhado por setores da elite dentro da Ucrânia, os quais lutampelo poder estatal com o objetivo de impor a sua identidade sobre osdemais. Nesse processo, a percepção que se tem sobre a Rússia é fun-damental. Assim, a abordagem do autor não permite entender porque a Ucrânia não se fragmenta em vários Estados, com limites esta-belecidos em congruência com as diferentes identidades em disputa.A partilha da Ucrânia seria muito mais cômoda e menos custosa doque as disputas pelo governo de um Estado com várias identidades. Oproblema sugere a existência de uma identidade mais ampla quemantém unidos os diferentes setores da elite ucraniana. Uma aborda-gem complementar deve considerar essa identidade na análise.

O mérito de Kincade e Melnyczuk (1994) está em ressaltar a impor-tância das representações a respeito do outro para o início e, posteri-ormente, a manutenção dos conflitos entre Ucrânia e Rússia. Entre-tanto, o modo como a representação é construída em sua abordagemé problemático. É facultada aos políticos a capacidade de estigmati-zar um outro Estado para aumentar seu prestígio e desviar a atençãosobre seu déficit de legitimidade. Assume-se que estão em jogo ape-nas os interesses desses líderes, sendo difícil explicar por que os rus-sos que vivem na Ucrânia aceitam a representação negativa da Rússiafeita pela elite ucraniana. Essa falha pode ser superada por uma abor-dagem que privilegie os interesses do Estado, em vez dos interessesde grupos que atuam dentro do Estado. Por um lado, seria possívelsubstituir a visão instrumental segundo a qual a elite da Ucrânia ma-nobra a política externa a fim de se manter no poder. Por outro, a

Identidade como Fonte de Conflito: Ucrânia e

Rússia no Pós-URSS

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abordagem permitiria entender por que a maior parte dos russos daUcrânia deseja a manutenção da soberania do país e aceita a repre-sentação da Rússia como uma ameaça.

No presente artigo, propõe-se que a origem dos conflitos entre Ucrâ-nia e Rússia no pós-URSS seja buscada a partir de uma abordagemconstrutivista. Nela, a história da interação entre Rússia e Ucrâniaimediatamente após o final da União Soviética é crucial para a defini-ção da representação que um país tem do outro. A partir dessa intera-ção, são construídas as identidades estatais de ambos, que não podemser reduzidas às identidades das elites que disputam o poder políticodentro dos Estados. Essas identidades dão origem a interesses, quetambém não podem ser reduzidos aos interesses das elites de Ucrâniae Rússia. As identidades demonstram o que os Estados “são,” e os in-teresses indicam o que os Estados “querem”. Logicamente, não épossível “querer” algo sem “ser” alguma coisa. Portanto, a aborda-gem teórica pressupõe a determinação dos interesses pelas identida-des dos Estados.

O Construtivismo Social de

Wendt

Pós-modernos e pós-estruturalistas consideram o Estado uma narra-tiva. Para Campbell (1992), a ameaça externa é o pretexto para se es-crever constantemente a história da identidade estatal. Em McSwee-ney (1999), são os indivíduos que a recontam por intermédio de suasescolhas a fim de satisfazer seus interesses. Ambas as abordagenssão nominalistas. Como as ações dos Estados só são percebidas porintermédio das ações individuais, os nominalistas tendem a igualar oEstado ao governo (Wendt, 1999:219). Para Wendt (idem), isso é umerro. O autor afirma que os Estados são reais, mesmo que não obser-váveis, pois sua estrutura gera efeitos que podem ser observados comclareza (idem:216). Contra o nominalismo, são apresentados dois ar-gumentos. O primeiro é que os indivíduos são socializados às estru-

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turas sociais e as reproduzem em suas ações. Por isso elas persistemao longo do tempo, mesmo que os indivíduos não sejam mais os mes-mos. O segundo afirma ser impossível atribuir legitimidade aos indi-víduos que se dizem governo sem considerar o papel constitutivo daestrutura estatal sobre eles.

A partir dos efeitos observáveis, Wendt (1999:198) infere que existeum Estado essencial que é caracterizado por ter uma ordem instituci-onal-legal, soberana e detentora do monopólio legítimo do uso da vi-olência organizada sobre a sua sociedade, em um determinado terri-tório (idem:213). Entretanto, considerá-lo dessa maneira não impli-ca negar a importância dos discursos. Os Estados só são o que sãoporque possuem uma base material e um grupo de indivíduos capazde vinculá-la a uma narrativa. Todavia, trata-se de uma narrativa ine-rente ao Estado, que não depende da interação com outros Estadospara se constituir. Juntas, base material e narrativa, dão origem àidentidade corporativa que é a responsável por definir quem é o Esta-do, sendo que a sobrevivência estatal depende de sua preservação.Por isso a necessidade de preservação gera interesses objetivos para areprodução da identidade corporativa. Estes são a sobrevivência físi-ca, a autonomia para fazer escolhas e alocar recursos, o bem-estareconômico e a auto-estima coletiva. Se esses objetivos não forem al-cançados, o Estado deixa de existir (idem).

A identidade corporativa é uma plataforma para a constituição de umoutro tipo de identidade: a identidade social que é definida como osignificado que o Eu se atribui ao enxergar a si mesmo pela perspecti-va do Outro (Wendt, 1994:385). Nesse sentido, as identidades sociaissão narrativas que podem ser contadas apenas no processo de intera-ção entre o Eu e o Outro e por isso adquirem múltiplas formas. Elastambém originam interesses objetivos necessários à sua reprodução,cujo conteúdo varia conforme o tipo de identidade. Assim como emrelação à identidade corporativa, erros repetidos na maneira de inter-

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pretar os interesses necessários à reprodução podem resultar na“morte” de determinada identidade social (Wendt, 1999:232).

Limites à ação estatal também são impostos pela estrutura do sistemade Estados. Analiticamente, ela é formada por dois níveis, o micro e omacro. A microestrutura refere-se à interação entre as unidades quecompõem uma parte do sistema, e nela, as propriedades dos atorescontribuem para a constituição da natureza da interação, mas é a es-trutura da situação que determina os resultados. Nesse nível, é possí-vel explicar tanto o comportamento de um ator isoladamente, quantoo dos outros atores que interagem na mesma situação. Por sua vez, aspráticas ocorridas na microestrutura são responsáveis pela produçãoe reprodução da macroestrutura. Porém, por ser realizável de múlti-plas maneiras, a macroestrutura não é determinada pela micro. A re-lação entre ambas é de superveniência: as macroestruturas não sãoreduzíveis às micro, mas dependem delas para existir. Uma análisefeita a partir desse nível permite explicar o comportamento agregadodos atores no sistema (idem:148-156).

Em termos sociais, a microestrutura é constituída por conhecimentocomum. Neste, cada ator conhece as crenças dos demais, e o aspectointersubjetivo limita as preferências dos envolvidos. Mas o conheci-mento comum também é subjetivo, pois as crenças que sustentam ainteração dependem dos atores. É o tipo de conhecimento presente,por exemplo, no dilema do prisioneiro. Já a macroestrutura é consti-tuída por conhecimento coletivo que também é intersubjetivo, porémnão pode ser reduzido a crenças individuais, pois é um tipo de repre-sentação coletiva. A principal diferença entre conhecimento comume coletivo está na forma como eles se relacionam com as crenças indi-viduais. O conhecimento comum é reduzível ao que está na “cabeça”dos atores. Sem as crenças, ele não existe. Por outro lado, a relaçãocom o conhecimento coletivo é de superveniência. Ele depende das“cabeças,” mas não é determinado por elas.

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Na abordagem construtivista, a estrutura só existe porque é sustenta-da pelas práticas sociais dos atores nos processos de interação. Po-rém, tais processos precisam criar padrões de comportamento está-veis a fim de que possam ser identificados como estrutura (idem).Nesses termos, a macroestrutura do sistema é entendida como umaestrutura de papéis que comporta a existência de várias lógicas deanarquia, cada uma regida por diferentes princípios ideacionais.

Wendt apresenta três tipos de macroestrutura: a cultura hobbesiana,cujo princípio é a inimizade; a cultura lockeana, cujo princípio é a riva-lidade; e a cultura kantiana, baseada no princípio da amizade. Nelas, ospapéis que definem a relação entre o Eu e o Outro são os de inimigo, ri-val ou amigo, respectivamente. Porém, esses papéis não são reifica-ções. Eles são reproduzidos ou transformados em um processo de per-manente definição do Eu e do Outro, no plano da microestrutura.

Nesse processo, a definição das identidades ocorre por meio da sele-ção cultural, constituída pelos mecanismos da imitação ou do apren-dizado social. A imitação corresponde à maneira como os atores re-produzem padrões culturais de sucesso que ditam o comportamentoadequado entre eles. O aprendizado social é a forma pela qual asidentidades são aprendidas em resposta ao modo como o Eu é tratadopor um Outro significativo (idem:325-327).

A seleção cultural é duplamente condicionada. Por um lado, tanto aimitação quanto o aprendizado social são maneiras pelas quais osEstados definem o Eu em conformidade com sua identidade corpora-tiva. Por outro, por ocorrerem na microestrutura, as práticas sociaissão condicionadas pela macroestrutura. Entretanto, reconhecer ocondicionamento não é o mesmo que afirmar a determinação, pois ainteração entre as unidades afeta suas propriedades, e não apenas seucomportamento. Assim, as práticas de representação do Outro noprocesso de redefinição das fronteiras cognitivas do Eu são variáveis.Elas vão do extremo da realpolitik, na qual o Outro é tratado como

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inimigo, ao extremo pró-social, no qual o Outro é amigo. Sua varia-ção é explicada pela relevância da própria ação estatal, pois as práti-cas sociais atreladas a um tipo de identidade podem dar origem a umaidentidade diferente2.

Em resumo, o construtivismo social de Wendt afirma a dependênciados interesses em relação às identidades, pois assume que os Estadospossuem uma identidade corporativa anterior à interação com outrosEstados3. Por ser uma plataforma para as identidades sociais, a iden-tidade corporativa condiciona os interesses dos atores, não sendopossível manter o argumento de que os indivíduos são livres para fa-zer as escolhas que desejarem em política internacional. Além disso,são propostos modelos de estrutura que condicionam a interação en-tre os atores a partir de três princípios: a inimizade, a rivalidade e aamizade. Eles correspondem, respectivamente, à cultura hobbesia-na, à cultura lockeana e à cultura kantiana. A existência de tais cultu-ras depende das práticas de representação do Outro, as quais são esta-belecidas a partir do processo de interação entre as unidades. É a ên-fase nas práticas sociais que garante a possibilidade de mudança.

Um modelo de construção da

identidade estatal

Conforme Wendt (idem), a interação entre dois Estados é fundamentalpara a constituição de suas identidades. Por sua vez, estas dão origemaos interesses implementados pela prática da política externa. Se asidentidades forem cooperativas, é bem provável que os interesses de-correntes não sejam conflituosos. Porém, mesmo que tenham interes-ses contraditórios, dois países amigos irão resolver as disputas de for-ma amigável. Por outro lado, identidades construídas em oposição aoOutro dão origem, com maior freqüência, a interesses conflitantes.Para entender as causas que levam a relações amistosas ou beligeran-tes, é necessário um modelo que explique a formação das identidades.Com base no construtivismo social, sugere-se o seguinte.

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A formação da identidade social do Estado é abordada a partir da no-ção de “avaliações refletidas”. Na interação, o Eu projeta no Outro arepresentação que o Outro faz do Eu. Esse processo pode ser compre-endido da seguinte maneira. O Eu traz consigo alguns preconceitosanteriores ao início da interação com o Outro. Se o Eu e o Outro fa-zem parte da mesma cultura, as duas fontes de preconceito são aidentidade corporativa dos Estados e a própria experiência anteriorde interação entre eles (idem:328). Como a identidade corporativados Estados impõe as mesmas restrições a ambos, ela não é conside-rada. Resta a experiência anterior. Com base nela, o Eu define o seupapel na interação, e, ao mesmo tempo, acaba definindo o papel doOutro. Assim, Eu e Outro definem a situação de interação (idem).

A interação pode ser dividida em quatro atos. No primeiro, o Eu agepara demonstrar o papel que está conferindo ao Outro. Essa primeirainteração é vista como a tentativa do Eu de ensinar sua definição dasituação para o Outro. No segundo ato, o Outro pondera a ação do Eue avalia se aceita ou não ocupar o papel que lhe foi oferecido. O tercei-ro corresponde à ação do Outro, tendo em vista sua ponderação sobrea ação do Eu. O quarto é a avaliação do Eu no que diz respeito à açãodo Outro. E assim sucessivamente até que a interação termine. No fi-nal do processo, Eu e Outro terão reforçado ou transformado os pa-péis de cada um na interação e, conseqüentemente, as suas identida-des (idem).

Suponha que a definição da situação seja dada pelo Eu que representao Outro como uma ameaça. Portanto, o Eu assume uma atitude inimi-ga, de desrespeito em relação ao Outro. No segundo ato, o Outro ava-lia o papel que lhe fora concedido pelo Eu. Por sentir sua identidadecorporativa em risco, o Outro responde ao Eu de acordo com a práticada avaliação refletida, ou seja, projeta o Eu também como inimigo. Oterceiro ato, portanto, é a ação do Outro em relação ao Eu. No quarto,a atitude do Outro confirma a expectativa do Eu, e reforça o papel deinimigo que havia sido estabelecido na definição da situação. Desse

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modo, cria-se entre os dois a identidade de inimigo e os interesses de-correntes de tal identidade, por serem conflitantes, contribuirão paraque ambos reproduzam as fronteiras cognitivas da inimizade. Quan-do a interação entre Eu e Outro é recorrente, a definição prévia daspráticas representacionais funciona como um “estoque” de conheci-mento, e contribui para a reprodução da estrutura de interação(idem).

Nesses casos, o conceito de articulação proposto por Weldes (1996) éde grande valia. A articulação é a maneira como diferentes recursoslingüísticos são relacionados em cadeias de significados com objeti-vo de criar representações do mundo. Estas são contextuais e contin-gentes e têm como alvo objetos, eventos ou relações sociais. Assimcomo na definição das identidades, os significados precisam ser con-tinuamente reproduzidos. Caso isso não ocorra, a cadeia de elemen-tos lingüísticos associados a um significado pode ser desfeita e rearti-culada, dando origem a outros significados. Porém, Weldes (idem)reconhece que a realidade impõe restrições à construção de represen-tações pelo processo de articulação, o que permite utilizar o conceitode articulação em conformidade com a identidade corporativa dosEstados.

Em suma, o modelo sugere que a interação entre Eu e Outro é funda-mental para a construção das identidades. Por sua vez, o processo deformação das identidades é regido pelo princípio das “avaliações re-fletidas”. No início, os atores trazem consigo identidades definidasem interações anteriores e a partir delas é definida a situação de inte-ração. Durante o processo interativo, as identidades são reproduzidasou transformadas, dependendo do quanto os atores aceitam os papéisconferidos pelo Outro. Subjacente à interação está a lógica da articu-lação, que explica como as práticas de representação do Outro sãoconstruídas a partir dos recursos lingüísticos disponibilizados pelacultura.

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A Identidade Social entre

Ucrânia e Rússia no

Pós-URSS

No caso em questão, as estratégias de interação adotadas a partir dodesmembramento da URSS são cruciais para a construção da relaçãoentre as ex-repúblicas socialistas, pois é de acordo com elas que a si-tuação de interação é definida. A falta de reconhecimento da sobera-nia de um país afeta a sua auto-estima coletiva, na medida em queesta depende de imagens positivas ou negativas que um outro país fazdele. Assim, quando o reconhecimento ocorre de imediato, é prová-vel que as relações entre os países sejam mais cooperativas e menoscompetitivas, pois as identidades não são constituídas em oposiçãouma à outra (Wendt, 1999:237). Como será visto, não é isso queocorre na relação entre Ucrânia e Rússia.

A fim de facilitar a aplicação do modelo, a avaliação e a ação são reu-nidas em um único ato. Desse modo, é possível identificar quatro eta-pas no processo de construção da identidade social na relação entreRússia e Ucrânia. Assume-se que a Rússia incorpora o papel de Eu ea Ucrânia o papel do Outro.

Primeira etapa: a Ucrânia como

parte da Rússia

Após o fim da URSS, a Rússia não aceita a independência da Ucrâ-nia, pois considera que, junto com a Bielo-Rússia, os três países com-põem uma mesma nação eslava (Rumer, 1994). Nesse sentido, a de-claração de independência da Ucrânia é respondida com uma notaemitida pelo escritório de imprensa da Presidência da Rússia, segun-do a qual o país se reservava o direito de questionar as fronteiras comos demais países da antiga URSS, menos com as Repúblicas do Bál-tico (Tolz, 2002). A atuação russa no âmbito da Comunidade dos

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Rússia no Pós-URSS

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Estados Independentes (CEI) é reflexo dessa postura (D’Anieri etalii, 1999).

Nesse sentido, a criação da Comunidade “[...] foi, indubitavelmente,motivada pelo desejo da Rússia de defender seus interesses e influên-cia nas partes-chave da antiga União” (Rakowska-Harmstone,1992:545). Sob pressão russa, o documento que dá origem à CEI pre-vê a manutenção de um espaço econômico e militar unitário, englo-bando as Repúblicas da antiga URSS, menos a Letônia, a Lituânia e aEstônia. O acordo também prevê uma política exterior comum a to-dos os países (Morrison, 1993:689). Todavia, é o princípio da trans-parência das fronteiras dentro da Comunidade que afasta a Ucrâniadas estruturas da organização. Tal princípio significa, na prática, queos países da CEI não têm direito ao reconhecimento de sua integrida-de territorial pelos outros membros (Tolz, 2002).

Segunda etapa: a “doença

imperial” da Rússia

A intenção de se afastar da influência russa é anunciada logo no dis-curso de posse de Kravchuk, no dia 5 de dezembro de 1991, no qual opresidente ucraniano se refere ao seu país como o mais novo Estadoeuropeu, o que busca se integrar às estruturas européias (Solchanyk,1991). Essa vontade se faz sentir ao longo do mês, por causa da pos-tura ucraniana em relação à CEI. A Comunidade é percebida pelaUcrânia como instrumento capaz de proporcionar um “divórcio civi-lizado” entre os antigos membros da URSS, no âmbito da qual ape-nas as decisões referentes ao desarmamento nuclear devem ser con-sideradas com zelo.

Algumas medidas ilustram essa posição. Uma semana após o encon-tro de Minsk, o parlamento ucraniano ratifica a criação da CEI comuma emenda que enfatiza o direito da Ucrânia de abandonar a estru-tura de defesa comum da Comunidade após o desarmamento nuclear

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do país (Mihalisko, 1991). No dia 17 de dezembro de 1991, o entãopresidente da Comissão de Relações Exteriores do parlamento ucra-niano e conselheiro de Kravchuk, Dmitrii Pavlychko, reforça essapostura ao definir a CEI como um sistema temporário que poderia serdescartado após a destruição dos armamentos nucleares (Sheehy,1991). O próprio presidente manifesta suas reservas quanto à CEI.Às vésperas do encontro de Alma-Ata, realizado no dia 21 de dezem-bro, Kravchuk reitera que a Ucrânia só faria parte da Comunidade seela não se transformasse em um Estado (Nahaylo, 1991). Nesse sen-tido, além do ingresso das outras ex-repúblicas soviéticas, o encontrode Alma-Ata traz resultados positivos apenas na questão do desar-mamento nuclear. Ucrânia, Bielo-Rússia e Cazaquistão comprome-tem-se a entregar suas ogivas nucleares para que sejam desmontadasna Rússia, sob supervisão conjunta (Clarke, 1991).

Por considerar a CEI dessa forma, a Ucrânia trata de assegurar umapostura independente em relação às suas próprias forças convencio-nais de defesa. No dia 13 de dezembro de 1991, Kravchuk assina umdecreto criando as forças armadas do país a partir das instalações mi-litares soviéticas, inclusive da FMN (Mihalisko, 1991). Tal medida,porém, não é aceita pelos membros da CEI, pois a FMN é equipadacom armamentos estratégicos. Na polêmica acerca da FMN, três po-sições se destacam: a Ucrânia defende sua legitimidade em reclamaro controle da FMN, uma vez que esta está localizada em seu territó-rio; a Rússia também alega ter direito à FMN, reafirmando a impor-tância histórica de Sevastopol para o passado russo; já o comandomilitar da CEI afirma que a Frota deve ficar sob sua jurisdição, poisos acordos militares firmados em Alma-Ata estabelecem que arma-mentos estratégicos fiquem sob controle conjunto dos países-mem-bros da Comunidade.

Nesse contexto, no dia 8 de janeiro de 1992, a Agência Nacional deInformação da Ucrânia divulga um protesto contra a tendência de al-guns membros da CEI a transformar a Ucrânia em bode expiatóriopara os problemas existentes entre seus membros. De acordo com a

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nota, a Ucrânia estaria sendo acusada de violar os acordos da CEI naesfera militar, especificamente no que se referia à FMN. Pela primei-ra vez, líderes russos são acusados de tentar recriar estruturas milita-res imperiais, ao exigirem que forças militares estacionadas em terri-tório ucraniano não obedecessem ao comando de Kiev (Mihalisko,1992a).

No dia 10 de janeiro, Kravchuk afirma que Boris Yeltsin e outros líde-res russos deveriam “abandonar o hábito de pensar imperialmente”,referindo-se às pretensões russas sobre a FMN (Nahaylo, 1992a). Pou-cos dias depois, em um comunicado veiculado pela TV e pelo rádio àpopulação ucraniana, o presidente avisa que os interesses imperiaisrussos haviam chegado ao limite do desrespeito ao Estado ucraniano(Solchanyk, 1992a). Quando as pretensões russas em relação à FMNincluem a discussão sobre o estatuto da Criméia, Kravchuk refere-se àpostura da Rússia como “doença imperial” (Solchanyk, 1992b).

Terceira etapa: pretensões russas

sobre a Criméia

No momento em que a Ucrânia reafirma sua vontade de controlar aFMN, o parlamento russo inicia o debate acerca da legitimidade datransferência da Criméia da URSS para a Ucrânia, ocorrida em 1954.Já em tramitação pelas comissões parlamentares, o assunto é reintro-duzido na pauta de discussão como resposta às assertivas ucranianas.Caso a Criméia não fosse considerada parte da Ucrânia, o argumentoucraniano de que a FMN deveria ser controlada por ela por estar loca-lizada em seu território perderia a validade. Assim, no dia 23 de janeirode 1992, o parlamento russo instrui as comissões de relações exterio-res e de legislação para que se manifestem sobre a legitimidade datransferência até o início de fevereiro. Na mesma sessão, os deputa-dos russos pedem ao parlamento ucraniano que também se debrucesobre o tema. Além disso, um outro pedido é feito: os russos queriam

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que o processo de negociação sobre a FMN fosse acelerado pelos co-legas da Ucrânia (Sheehy, 1992a).

A vinculação entre os dois temas não havia sido fruto do acaso. Con-forme relatado pelo Toronto Globe and Mail, uma carta secreta envi-ada pelo presidente da comissão de relações exteriores do parlamen-to russo, Vladimir Lukin, para o presidente da Casa, Ruslan Khasbu-latov, sugeria que os dois assuntos fossem tratados simultaneamente.Assim, seria possível pressionar a Ucrânia a escolher entre o controleda FMN ou a manutenção da Criméia como parte de seu território(Sheehy, 1992b).

Não é apenas no parlamento russo que a discussão ganha destaque. Aimportância dessas questões para a política externa fica evidente nodia 30 de janeiro de 1992, quando o ministro das Relações Exterioresda Rússia emite uma nota sobre o assunto. Esta afirma que a decisãodo parlamento de rever a transferência da Criméia para a Ucrânia nãotem a intenção de incentivar o confronto entre os dois países. Para ochanceler russo, a atitude é construtiva, o que fica claro com a solici-tação para que o parlamento ucraniano também aprecie a questão.Por fim, a nota afirma a disposição do governo russo em resolver asquestões bilaterais com a Ucrânia por meios pacíficos, citando que aausência de diálogo estaria atrasando a resolução das disputas sobrea Criméia e a Frota do Mar Negro (Solchanyk, 1992c).

O tom apaziguador da declaração russa não surte o efeito esperado,pois na Criméia (o pomo de discórdia entre os dois países) tem iníciooutra campanha de coleta de assinaturas para a realização de um refe-rendo sobre a independência da região (Solchanyk, 1992d). Organi-zada pelo Movimento Republicano da Criméia (MRC), compostomajoritariamente por russos nacionalistas, a campanha obtém resul-tados significativos em um curto espaço de tempo. Em dez dias, maisde 20 mil assinaturas são coletadas (Solchanyk, 1992e). No parla-mento da Criméia, o MRC pressiona para que medidas afastando aRepública do controle ucraniano sejam adotadas. Nesse sentido, o

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parlamento inicia a discussão de uma nova Constituição e altera onome da República, que passa a se chamar apenas República da Cri-méia. A mudança implica a omissão da referência ao seu caráter derepública “autônoma” dentro da Ucrânia (Solchanyk, 1992f).

Quarta etapa: a questão nuclear

A resposta ucraniana às pretensões imperiais russas é dramática. Deacordo com o estabelecido em Alma-Ata, as armas nucleares locali-zadas na Ucrânia deveriam ser transportadas para a Rússia a fim deque fossem desmanchadas. Esse processo tivera início em janeiro,com encerramento previsto para julho de 1992. Porém, no dia 12 demarço, a Ucrânia anunciou que a transferência havia sido cancelada.Segundo Kravchuk, uma vez em território russo, não existiam garan-tias de que as armas seriam realmente destruídas, de que estariam sobo controle adequado, ou mesmo de que não cairiam em mãos erradas(Mihalisko, 1992b). A incerteza sobre esses pontos, bem como acrescente instabilidade política na relação entre os dois países são osaspectos citados pelo presidente ao justificar sua decisão.

A Ucrânia teme que a Rússia esteja estocando as armas nucleares aoinvés de desmanchá-las, o que enfraqueceria o país caso fosse neces-sário recorrer ao “equilíbrio do terror” para se contrapor às preten-sões territoriais russas. Mykola Mykhalchenko, assessor presidenci-al para assuntos de segurança, afirma que a transferência das armaspara a destruição só seria reiniciada caso o Ocidente pudesse monito-rar seu destino em território russo. De acordo com ele, a Ucrânia tem“todos os motivos para não confiar nos líderes da Rússia” (Nahaylo,1992b).

Os eventos ocorridos em abril ilustram bem esses motivos. No dia 4,durante visita à Criméia, o vice-presidente da Rússia, AleksandrRutskoi, afirma que a FMN havia sido e iria continuar sendo russa(Clarke, 1992a). Dois dias depois, o presidium do Soviete Supremo

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ucraniano acusa o vice-presidente russo de interferência direta nosassuntos internos da Ucrânia. No mesmo dia, Kravchuk emite um de-creto afirmando que todas as formações militares em território ucra-niano deveriam obedecer ao ministro de Defesa do país (Clarke,1992b). No dia seguinte, um decreto assinado por Yeltsin transfere aFMN para a jurisdição da Rússia. O ministro da Defesa russo argu-menta ao parlamento que o documento era uma resposta direta ao de-creto de Kravchuk do dia anterior (Mihalisko, 1992c), pois com ele aUcrânia passaria a controlar a FMN. O presidente da Ucrânia acusa aRússia de tratar o seu país como um inimigo e defende-se afirmandoque seu decreto havia sido necessário para garantir o controle sobreas armas nucleares em território ucraniano (Mihalisko, 1992d).

No dia 8 de abril, o parlamento ucraniano emite um comunicado afir-mando que o decreto de Yeltsin deveria ser entendido como “umaverdadeira declaração de guerra contra a Ucrânia independente”(Mihalisko, 1992e). Um dia depois, o Soviete Supremo da Ucrâniaratifica a suspensão da transferência de armamentos nucleares daUcrânia para a Rússia (Mihalisko, 1992f).

A relação entre o comunicado do parlamento e a ratificação das me-didas de Kravchuk é evidente: a fim de proteger a sua integridade ter-ritorial, a Ucrânia reforça sua posição para garantir que os armamen-tos nucleares permanecessem sob seu controle. Desse modo, o fatornuclear deveria ser levado em conta pelos russos antes que qualquerameaça contra o país pudesse ser concretizada.

Com a iminência de uma guerra, Kravchuk e Yeltsin concordam emanular seus decretos sobre a FMN e em estabelecer uma comissão par-lamentar conjunta para resolver a disputa (Clarke, 1992c). Após o en-tendimento, e em grande parte por causa da forte pressão internacio-nal, a Ucrânia reinicia a transferência das armas nucleares para o des-monte na Rússia, no dia 17 de abril (Clarke, 1992d). Porém, a insegu-rança quanto ao país vizinho permanece. No dia 28, Kravchuk pede ao

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Ocidente que garanta a integridade territorial ucraniana quando estanão contar mais com as armas nucleares, pois o presidente temia que aUcrânia acabasse vítima de “chantagem nuclear” da Rússia. Segundoele, as pretensões da Rússia sobre o território ucraniano seriam moti-vos suficientes para o receio (Mihalisko, 1992g).

Ucrânia, Rússia e OTAN

A expansão da OTAN é vista com receio por alguns analistas. Segun-do eles, o maior perigo é a divisão entre países-membros e paísesnão-membros, e as implicações que tal diferenciação pode ter para asegurança do continente (Garnett, 1997). A suposta linha divisóriacria duas categorias de Estados. Os outsiders são os Estados que nãofazem parte da organização e os insiders são os seus membros efeti-vos. O risco está nos efeitos que o sentimento de exclusão pode exer-cer sobre a percepção que os outsiders têm a respeito de sua seguran-ça (Light et alii, 2000).

Nesse contexto, a oposição da Rússia à expansão da Aliança é funda-mental. Em decorrência da postura russa, Estados localizados entre aOTAN e a Rússia receiam os efeitos que as medidas adotadas pelopaís para contrabalançar o avanço da organização possam ter sobreeles. Por isso, o ingresso da Polônia, da Hungria e da RepúblicaTcheca, em 1999, e dos países do Báltico, da Romênia, da Eslová-quia e da Bulgária, em 2004, afeta diretamente as percepções de se-gurança da Bielo-Rússia e da Ucrânia. Diante desse quadro, esses pa-íses podem optar por uma política externa orientada para o ingressona OTAN, ou por uma política externa voltada para o estreitamentodos laços militares com a Rússia no âmbito da CEI. Dada sua impor-tância regional, a opção por uma dessas alternativas reflete o modocomo a identidade social desses Estados é construída na relação coma Rússia.

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Duas posturas são esperadas. Os Estados que não percebem sua iden-tidade corporativa ameaçada pela Rússia tendem a desenvolver rela-ções amistosas com o país. A partir destas, consolida-se uma identi-dade social regida pelo princípio da amizade. Como as identidadesdeterminam os interesses, as relações entre amigos envolvem inte-resses comuns. Desse modo, a percepção de ameaça à identidadecorporativa por parte da Rússia é compartilhada por um Estado ami-go e ambos tomam precauções para se proteger do perigo. O Estadoamigo alinha-se à Rússia e busca fortalecer os interesses comuns noâmbito da CEI. Por sua vez, os Estados que enxergam a Rússia comouma ameaça interagem com ela a partir do princípio da inimizade.Nesses casos, a identidade social construída na interação é a de ini-migo. Identidades conflitantes originam interesses divergentes, oque explica por que a opção dos países que temem a Rússia é a buscade laços mais estreitos com a OTAN.

A relação entre Ucrânia e Rússia enquadra-se no segundo caso, poisa identidade social construída entre os países no pós-URSS é regidapelo princípio da inimizade. Por isso a aproximação da Ucrânia coma OTAN é paulatina. Ao declarar sua independência, o país anunciasua adesão ao princípio da neutralidade em questões militares. Porum lado, o princípio é utilizado para não despertar maiores temoresna Rússia em relação a um possível ingresso imediato da Ucrânia naorganização. Por outro lado, a posição de neutralidade impede umacordo militar no âmbito da CEI, o que resguarda o país da influênciarussa (Balmaceda, 1998b). Desse modo, a Ucrânia supera um mo-mento delicado, protegendo-se da Rússia, ao mesmo tempo que for-talece seus laços com a Aliança sem aderir formalmente a ela. Naépoca da independência, os custos de uma adesão imediata à OTANpoderiam superar os benefícios, uma vez que os países ocidentais re-agem com apreensão ao fim da URSS (Arel, 1999).

A Ucrânia é o primeiro país da CEI a integrar o projeto Parceria paraPaz (PfP, em inglês)4. Esse feito ilustra bem sua estratégia. Ingressar

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Rússia no Pós-URSS

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no PfP é ter a garantia de que ameaças ao país são discutidas na Ali-ança por intermédio de consultas com seus membros. Embora osmembros que ingressaram no projeto não façam parte formalmentede um mecanismo de segurança coletiva, o envolvimento das partesdá origem a um compromisso moral. De fato, um ano após o ingressoda Ucrânia no PfP, o Conselho do Atlântico Norte (NAC, em inglês)manifesta o apoio a sua soberania, a sua independência política e asua integridade territorial. Ao mesmo tempo, o Conselho pressiona opaís para estabelecer relações harmoniosas com seus vizinhos. Aameaça da Rússia de se retirar do Tratado sobre Forças Convencio-nais na Europa (CFE, em inglês) e de não ratificar o Tratado para Re-dução de Armamentos Estratégicos (START II, em inglês) é uma re-ação a esse tipo de relacionamento. Com sutileza, os participantes doPfP estabelecem vínculos com a OTAN que superam a pretensa neu-tralidade dos chamados “mecanismos de consulta”.

No começo de 1997, o “Conceito de Segurança Nacional” é aprova-do pelo parlamento ucraniano. O documento indica o abandono doprincípio da neutralidade e a vontade do país de pertencer a estruturasde segurança internacional (Balmaceda, 1998b). Em vez de represá-lias russas, a Ucrânia é brindada com um tratado em que ambos os pa-íses reconhecem a integridade de seus territórios. A reação inespera-da ocorre porque as negociações sobre o Ato Fundador das RelaçõesMútuas com a Rússia e a Parceria Distinta com a Ucrânia estão emcurso com a OTAN. Para que estes acordos bilaterais sejam concluí-dos, é necessário que Rússia e Ucrânia reconheçam a inviolabilidadede suas fronteiras, pois a organização não se compromete com paísesenvolvidos em disputas territoriais (Arel, 1999). Assim, a Aliançaacaba sendo um fator-chave para a assinatura do tratado. No ano emque a Ucrânia abandona a neutralidade, a Rússia reconhece sua inte-gridade territorial.

À proporção que os laços entre OTAN e Ucrânia se fortalecem, ocomprometimento moral consolida-se. Com o tempo, a relação ten-

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de a institucionalizar-se. Um exemplo desta institucionalização é aCarta sobre Parceria Distinta. Nela, a garantia buscada pela Ucrâniaé enunciada em um de seus princípios. De acordo com ele, Ucrânia eOTAN concordam que é inaceitável a existência de esferas de in-fluência no continente. A defesa desse princípio é uma maneira de aUcrânia se opor aos interesses russos na Europa do Leste. Portanto, aCarta representa um avanço em direção ao que a Ucrânia espera daOTAN: proteção contra a ameaça russa. Por isso, após sua assinatu-ra, as relações com a organização deslancham. Outros exemplos deinstitucionalização compreendem o I Programa Nacional de Coope-ração da Ucrânia com a Aliança (em 1998), a designação da Área Mi-litar de Yaroviv como Centro de Treinamento do PfP (em 1999) etc.

O contraste com a relação entre a OTAN e a Rússia é nítido. O paísaproxima-se da Aliança para tentar interferir nas decisões que afetamseus interesses, e não para se proteger de algum perigo. De fato, o AtoFundador das Relações Mútuas indica que a maior ameaça às partessão elas próprias. Nele, em um dos princípios que regem suas rela-ções, Rússia e OTAN comprometem-se a não utilizar a força contraelas mesmas. Em outro, ambas aceitam que haja transparência na cri-ação e implementação de doutrinas militares e políticas de seguran-ça. Por se basear na desconfiança mútua, a estrutura criada a partir doAto Fundador torna-se ineficaz em momentos de crise, conforme de-monstrado nas operações militares da organização no Kosovo.

Em 2001, o terrorismo global surge como uma ameaça capaz de es-treitar os laços entre a Rússia e a Aliança. Nesse sentido, os atentadosde setembro dão impulso para a cooperação. Com a nova situação, aestrutura obsoleta do Conselho de Parceria Conjunta (JPC, em in-glês) é substituída pelo Conselho OTAN-Rússia (NRC, em inglês).Porém, as ressalvas da Rússia quanto à organização persistem. Acondição de que os países do Báltico devem aderir ao CFE antes doingresso na OTAN é um sinal de que a velha percepção russa sobre aexpansão da Aliança ainda persiste.

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Em resumo, a identidade social na relação entre Ucrânia e Rússia é ade inimigo. Nesse sentido, as percepções sobre seus interesses diver-gem: ambas vêem a expansão da OTAN de modo diferente. No casoda Ucrânia, a percepção da Rússia como ameaça leva o país a estrei-tar os laços com a OTAN e a apoiar sua expansão, em busca de prote-ção à sua identidade corporativa. Implementada de modo gradual, aestratégia de aproximação dá resultados na medida em que o com-promisso moral entre a Ucrânia e a organização se fortalece. Aospoucos, o comprometimento moral institucionaliza-se em atos de co-operação. Por outro lado, a Rússia percebe a expansão da OTANcomo uma ameaça, pois a organização é capaz de garantir a identida-de corporativa dos antigos membros da URSS. Isso vai de encontroaos interesses russos, principalmente em relação aos países com osquais a Rússia não tem bom relacionamento. Sua desconfiança sobreas intenções da Aliança determina a fragilidade dos vínculos com aorganização.

Considerações Finais

Quando ocorre a declaração de independência da Ucrânia, a Rússianega a existência autônoma desta. A postura russa fundamenta-se naexistência de uma suposta “nação eslava”, constituída pela Rússia, aUcrânia e a Bielo-Rússia. Em virtude disso, a Ucrânia é consideradacomo uma parte da Rússia, sem direito à independência. O fato de25% da população ucraniana ser de etnia russa e de 50% da popula-ção do país falar russo como primeira língua contribui para essa per-cepção. A Ucrânia denuncia a “mentalidade imperial” russa e boico-ta os acordos da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), con-siderada um instrumento para a promoção dos desígnios da Rússia.Os documentos que dão origem à Comunidade prevêem a manuten-ção de um espaço econômico e militar unitário, bem como a elabora-ção de uma política exterior comum. Para a Ucrânia, aceitar essascondições é abandonar o desejo de independência. Em resposta à

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postura ucraniana, a Rússia inicia o processo de revisão da transfe-rência da Criméia para a Ucrânia. Na região, cuja população russachega a 70%, russos nacionalistas coletam assinaturas visando à rea-lização de um referendo sobre sua independência. A Rússia tambémexpressa sua decisão de manter a posse da FMN. Com medo das pre-tensões russas, a Ucrânia assegura temporariamente a posse de seuarsenal nuclear para se defender, o que implica romper com os acor-dos sobre a remoção das armas nucleares da Ucrânia para a Rússia afim de que fossem desmanchadas. Esta decisão é ratificada pelo par-lamento ucraniano em meio a uma “guerra de decretos” entre os doispaíses sobre a posse da FMN. Na iminência de uma guerra real, aUcrânia reforça sua posição para garantir que os armamentos nuclea-res permaneceriam sob seu controle.

Definida nesse processo, a identidade social construída na interaçãoentre Ucrânia e Rússia é de inimigo. A afirmação é ainda mais rele-vante quando a segurança de ambos está em jogo. Esse é o motivopelo qual a reação dos dois países à expansão da OTAN é utilizadapara ilustrar o argumento central do artigo. Todavia, a aplicação domodelo não deve se restringir a essa análise. Estudar as relações entreUcrânia e Rússia a partir da perspectiva proposta implica localizar ascausas dos conflitos das áreas militar, econômica, social e política nomodo como as identidades são construídas. Algumas consideraçõessobre um episódio recente entre Ucrânia e Rússia ilustram as possibi-lidades aceitas pelo modelo.

De setembro de 2003 a janeiro de 2004, Ucrânia e Rússia enfrentamuma de suas piores crises após a tumultuada década de 1990. Nesseperíodo, a Rússia inicia a construção de uma represa entre a costarussa de Krasnodar e a Ilha de Tuzla, pertencente à Ucrânia. Para aRússia, a construção da represa é justificada para evitar a erosão dacosta no lado russo. A Ucrânia envia tropas à Ilha, pois a represa afe-taria a navegação no Estreito de Kerch, que liga o Mar Negro ao Marde Azov, de onde o país retira algumas receitas ao cobrar taxas de

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passagem dos navios russos. Apenas em janeiro de 2004 a Rússia or-dena que a construção da represa seja paralisada. Isso ocorre depoisque um incidente entre navios russos e ucranianos obriga o presiden-te da Ucrânia a interromper uma viagem que fazia pelo Brasil e o for-ça a voltar imediatamente para Kiev a fim de se encontrar com o pre-sidente russo. Na época, é cogitada a possibilidade de um conflitomilitar localizado entre os dois países. Felizmente, este é contorna-do. Porém, as causas do incidente em Tuzla revelam que as relaçõesentre Ucrânia e Rússia continuam marcadas pela desconfiança. Mos-cou utiliza a construção da represa como pretexto para controlar oEstreito de Kerch, pois os russos temem que a Ucrânia aprove umalei conferindo ao Mar de Azov o mesmo status conferido ao Mar Ne-gro, no que diz respeito às fronteiras da Ucrânia com a Rússia. NoMar Negro, a fronteira marítima entre os dois países é separada poruma zona neutra de águas internacionais. Isso permite que qualquertipo de embarcação, inclusive navios de guerra da OTAN, naveguempela região. A possibilidade de navios da OTAN em águas tão próxi-mas faz a Rússia tomar medidas para controlar o Estreito de Kerch,na expectativa de que o governo da Ucrânia aceite um acordo frontei-riço favorável aos interesses russos. Aparentemente, os princípios deum acordo político alcançado após o incidente favorecem os dois pa-íses. A vantagem da Ucrânia é que as fronteiras do Mar de Azov se-rão finalmente demarcadas, após anos de protelação russa. Para sa-tisfação russa, não haverá uma zona neutra de águas internacionais, eo Estreito de Kerch ficará sob o controle conjunto dos dois países.Assim, a Rússia pode vetar a passagem de navios de guerra da OTANpelos canais de navegação (Krushelnicky, 2004).

O incidente demonstra que o princípio de inimizade ainda rege as re-lações entre os dois países, pois nas formas de negociação convenci-onal a pressão militar não é usada para forçar o outro a fazer conces-sões. Recorrendo a esses expedientes, os dois países reconhecem quesua relação é diferente daquelas envolvendo países amigos ou rivais.

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Desse modo, acabam reproduzindo o padrão de inimizade caracterís-tico de seu relacionamento. Romper com esse ciclo implica introdu-zir novas práticas entre os dois países, o que, por sua vez, dependedos novos significados que algumas práticas sociais adquirem aolongo da interação. Só assim será possível transformar a identidadesocial da relação entre eles. Só assim Ucrânia e Rússia deixarão deser inimigas para se tornarem rivais e, talvez algum dia, amigas.

Notas

1. Vale lembrar que a minoria russa permanece na Ucrânia após sua indepen-dência por causa da promessa de que a prosperidade econômica do país viria an-tes e seria mais duradoura do que a da Rússia.

2. “Os atores podem fazer coisas mesmo que eles ainda não possuam as identi-dades que essas práticas originariam. Os Estados podem, inicialmente, se enga-jar em práticas pró-sociais por motivos egoístas, por exemplo [...], mas, se sus-tentadas ao longo do tempo, tais práticas erodem as identidades egoístas e criamidentidades coletivas.” (Wendt, 1999:342).

3. Diferindo de Wendt (1987), Wendt (1999:198) afirma que os Estados sãoentidades anteriores ao sistema.

4. O PfP foi criado em 1994 com o objetivo de promover a cooperação entre osantigos membros do Pacto de Varsóvia e a OTAN.

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Resumo

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O objetivo principal deste artigo é mostrar que o processo de interação entreUcrânia e Rússia no pós-URSS origina a identidade social de inimigo, que éa fonte dos conflitos de interesse entre os dois países. Para sustentar o argu-mento, propõe-se um modelo teórico com base na importância das idéiaspara a constituição dos interesses e na crença de que os interesses são deter-minados pelas identidades. Depois, demonstra-se por que a identidade en-tre os dois países é de inimigo. A reação destes à expansão da Organizaçãodo Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é utilizada para ilustrar as conse-qüências da inimizade. Como as identidades determinam os interesses, asrelações entre Estados amigos envolvem interesses comuns, e, entre inimi-gos, interesses divergentes. Assim, a percepção de ameaça é compartilhadaentre amigos e, entre inimigos, o amigo de um se torna o inimigo de outro.Por isso a Ucrânia coopera com a OTAN em busca de proteção, enquanto aRússia não aceita sua expansão. A fim de evitar que os conflitos entre Ucrâ-nia e Rússia representem uma ameaça à segurança da Europa, é necessárioque a identidade construída na interação entre eles seja transformada.

Palavras-chave: Segurança Internacional – Construtivismo – Ucrânia -Rússia

Abstract

Identity as a Source of Conflict:Ukraine and Russia in thePost-USSR

The main argument of this paper is that the process of interaction betweenUkraine and Russia generates a social identity of enmity, which is thesource of the conflict of interests between the two countries. In order todefend the argument, a theoretical model is proposed based on theimportance of ideas to the constitution of interests and on the belief thatinterests are determined by identities. The next task is to demonstrate whythe identity between the two countries is one of enmity. The reaction of both

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countries towards NATO expansion is used to illustrate the consequencesof enmity. Because identities determine interests, the relationship betweenfriend States involves common interests and between foes divergentinterests. So the perception of a threat is shared by friends while betweenenemies the friend of one becomes the enemy of the other. That is whyUkraine cooperates with NATO and Russia does not accept its expansion.In order to avoid that the conflicts between Ukraine and Russia become athreat to Europe’s security, it’s necessary to change the identity constructedin through their interaction.

Key words: International Security – Constructivism – Ukraine - Russia

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A disciplina de Relações Internacionais vem passando por algumasmudanças bastante significativas desde o final dos anos 1980. A in-capacidade das teorias tradicionais da área de preverem o fim sur-preendentemente pacífico da Guerra Fria, a Guerra do Golfo e o des-mantelamento da União Soviética colocou em questão os métodosde produção do conhecimento na disciplina (Gaddis, 1992:5).

A insatisfação com as teorias tradicionais, somada a questionamen-tos de ordem epistemológica, ontológica e metodológica que vinhamacontecendo nas ciências humanas em geral, abriram espaço paraque acontecesse na disciplina de Relações Internacionais o que foichamado de “virada sociológica” (Katzenstein et alii, 1999:38), cujaprincipal característica é a introdução à área de perspectivas analíti-

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*Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas de Pós-gradução em RelaçõesInternacionais da PUC-SP/Unesp/Unicamp e professora de Relações Internacionais das Faculdades Tan-credo Neves.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 259-267.

ResenhaConstructivism inInternational Relations,the Politics of RealityMaja Zehfuss. Cambridge, Cambridge University Press, 2002, 289 páginas.

Mariana de Oliveira Barros*

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cas pós-positivistas, críticas ao pensamento racionalista tradicionalnas teorias de relações internacionais.

As abordagens pós-positivistas distinguem-se das teorias racionalis-tas principalmente por proporem a idéia de que o mundo é social-mente construído, e não dado. Enquanto os racionalistas entendemuma realidade existente “lá fora”, a qual tentam explicar a partir deuma metodologia positivista que julga possível a análise objetiva doscomportamentos, os pós-positivistas acreditam que a realidade estásempre em construção. Desconfiando dos métodos científicos utili-zados para a explicação dos acontecimentos na política internacio-nal, os pós-positivistas, em vez de tentar explicar, tentam interpretar,entender o mundo.

São diversas as abordagens pós-positivistas em Relações Internacio-nais. Entre as mais conhecidas, temos o construtivismo, o pós-mo-dernismo, a teoria crítica e as teorias feministas (Smith, 2001:228).Por se propor um “caminho do meio” (Adler, 1999:205), uma “inter-seção” (Smith, 2001:242) entre os racionalistas e os pós-positivistas,o construtivismo é sem sombra de dúvida a corrente pós-positivistade maior aceitação entre os estudiosos da área, principalmente entreos representantes das correntes tradicionais.

O livro de Maja Zehfuss ora resenhado se propõe a discutir as aplica-ções do construtivismo para as análises das relações internacionais.Sendo a autora seguidora de uma linha pós-positivista consideradamais radical, a pós-estruturalista ou pós-moderna, seu livro é umacrítica ao construtivismo. A obra é indicada àqueles estudantes deRelações Internacionais que reconhecem o desenvolvimento das teo-rias pós-positivistas a partir da década de 1980 e a importância queelas vêm adquirindo na disciplina.

O principal argumento desenvolvido por Zehfuss em seu livro é que,ao tentar se colocar como meio-termo entre os racionalistas e ospós-positivistas, o construtivismo acaba por fazer concessões meto-

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dológicas que o afastam dos pós-positivistas e o aproximam das cor-rentes tradicionais: “o famoso caminho do meio está muito mais per-to do racionalismo do que dos pós-positivistas” (:5)1.

Para Zehfuss, o construtivismo é uma corrente que percebe a caracte-rística “construída” da realidade, mas que ainda assim define uma re-alidade a priori para iniciar suas análises. A instituição dessa realida-de, mesmo que em última instância, é responsável por possibilitar odiálogo entre racionalistas e construtivistas. Não obstante, é tambémresponsável pela perda da característica crítica a que se propõe oconstrutivismo.

Maja Zehfuss desenvolve também o argumento da “utilização estra-tégica do construtivismo” pelas correntes dominantes. Segundo a au-tora, quando representantes das correntes tradicionais abrem espaçopara a aceitação de uma perspectiva analítica dita crítica, mas queainda assim propõe um meio-termo, isentam-se de discutir as outrascorrentes críticas: “Logo, o construtivismo é importante não somen-te pelo papel de mediador que procura exercer, mas também pelapossibilidade de ser utilizado estrategicamente para encobrir a ne-cessidade de concessão de espaço para perspectivas mais radicais”(:6).

A autora utiliza para o desenvolvimento de sua crítica o exemplo daAlemanha e seu engajamento militar no exterior a partir do fim daGuerra Fria. Quando chamada a intervir no conflito do Golfo em1991, a Alemanha recusou-se a participar, alegando que sua Consti-tuição proibia o uso da força por tropas alemãs no exterior. No entan-to, no ano de 1995, aceitou participar militarmente do processo de in-tervenção na Bósnia. Na tentativa de explicar essa mudança de com-portamento na política externa alemã, Maja Zehfuss vai aplicar asanálises de Alexander Wendt, Friedrich Kratochwil e Nicholas Onuf,os três principais autores construtivistas em Relações Internacionais,

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procurando mostrar as contradições internas dessas análises e as li-mitações de cada uma delas.

No caso de Wendt, a autora começa sua análise a partir da questãocentral do construtivismo, a identidade. Isto é, ela tenta explicar amudança do comportamento alemão por meio da mudança da identi-dade alemã. No entanto, aponta para dois pontos críticos do constru-tivismo de Wendt. O primeiro é que, para ele, a mudança da identida-de vem a partir de forças externas que fazem com que a identidade dopaís se modifique, ou seja, Wendt negligencia as questões internas.Ele faz uma clara separação entre a política externa e a doméstica,sendo a primeira responsável pelas mudanças na segunda. O segundoponto é que, para Wendt, a identidade envolve expectativas estáveisquanto ao comportamento de um país. Para ele, a identidade é está-vel, ou é a realidade a priori a partir da qual as análises sobre o funci-onamento das relações internacionais podem ser feitas (:61). A críti-ca de Zehfuss é que Wendt é incapaz de perceber as questões políti-cas que envolvem a própria construção das identidades. Ao tomar aidentidade como realidade última, Wendt deixa de lado questõescomo: de que identidade estamos falando? A quem interessa a toma-da dessa identidade como realidade? Zehfuss procura mostrar comoaté mesmo a opção por determinada identidade em detrimento de ou-tra é, no fim, uma manifestação político-normativa (:87).

Com relação ao construtivismo de Kratochwil, a autora é menos en-fática quanto às contradições internas do pensamento do autor, mas ocritica por não ter levado até o fim a desconstrução do papel das nor-mas na política. Kratochwil é conhecido por sua crítica à pobrezaepistemológica da disciplina de Relações Internacionais. Ele dágrande destaque ao papel da linguagem na formação dos conceitos esuas análises estão sempre voltadas para as regras e normas que orga-nizam a vida política. Segundo Kratochwil, as normas influenciam aconduta humana; portanto, estudando as normas, poderemos com-preender o comportamento humano. Para tanto, ele parte do pressu-

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posto habermasiano de racionalidade que acredita em um “senso co-mum”, ou entendimento intersubjetivo, que permite o estabeleci-mento de tais normas. Nesse sentido, para tentar entender a mudançado comportamento alemão em relação às intervenções militares soba ótica do construtivismo de Kratochwil, Maja Zehfuss parte parauma análise da constituição alemã e de seus efeitos sobre o compor-tamento dos políticos alemães.

Diferentemente do que nos faria crer o pensamento de Kratochwil,Zehfuss revela que mesmo o entendimento intersubjetivo que leva aoestabelecimento e entendimento das normas é uma questão de esco-lha política. Isto porque as normas podem ser interpretadas de dife-rentes maneiras e a escolha por determinada interpretação em detri-mento de outra está ligada à força política de imposição de uma nor-ma, ou conduta ética, como a mais apropriada. Como podemos en-tender a conduta humana pelas normas se as normas podem ser en-tendidas de diversas maneiras (:117)? Isto é, Zehfuss argumenta quea intersubjetividade não é uma ferramenta política neutra, como Kra-tochwil parece nos apresentar, mas sim uma construção política. Paraa autora, Kratochwil, ao entender o “senso comum” como realidadea priori, separa o normativo do político e rende-se à política da reali-dade, mesmo que intersubjetiva.

O último construtivismo analisado por Zehfuss é o de Onuf, conheci-do por sua intenção de criar um novo paradigma para a teoria de Rela-ções Internacionais, que leve em conta seu caráter político, e por seuintenso envolvimento com as questões da linguagem. Até certo pon-to da análise de Zehfuss, somos levados a acreditar que Onuf será ca-paz de resolver as questões não contempladas por Kratochwil. Masnão é o que acontece. Apesar de reconhecer que Onuf vai fundo nasquestões de análise dos discursos que criam as “verdades”, entre elasas normas e as regras, e por isso conseguir explicar as característicaspolíticas dessas supostas verdades, Zehfuss critica Onuf por enten-der como materiais os limites que determinam certas escolhas e não

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outras. “Não podemos construir qualquer coisa que quisermos, a rea-lidade material é um limite” (Onuf apud Zehfuss:182). Ou seja, ain-da que o construtivismo de Onuf trate das construções sociais, inclu-sive dos discursos que constroem as regras, o autor acredita que exis-te um limite material que determina a escolha de certas construçõesem detrimento de outras, enquanto que, para Zehfuss, inclusive os li-mites materiais são escolhas políticas. Ela mostra isso citando oexemplo de que mesmo em condições adversas, como o problema doexército alemão não estar apropriadamente armado (limite material),a escolha em 1995 foi pela intervenção. Logo, para Zehfuss, as con-dições materiais nem sempre são o problema (:183). Mais uma vez, aquestão é política, ou de vontade política. “Ao nos apresentar a reali-dade material como um limite, Onuf tende a privilegiar o mundocomo este nos é apresentado, isto é, Onuf privilegia o status quo”(:195).

No quinto capítulo, depois de feitas as críticas aos diferentes autoresconstrutivistas, Maja Zehfuss expõe claramente o argumento quevem sendo trabalhado desde o início do livro: ainda que responsávelpor grandes mudanças na disciplina de Relações Internacionais pordemonstrar o caráter construído da realidade social, o construtivismosempre faz concessão para a existência de alguma realidade a priori,seja ela identidade, intersubjetividade ou fatores materiais. O cons-trutivismo acaba por endossar a “política da realidade”, defendidapelas correntes dominantes.

No intuito de construir possíveis caminhos, uma vez desconstruídasas análises construtivistas, Maja Zehfuss propõe-nos algumas solu-ções derridarianas para o combate à política da realidade. Entre elas,o que poderíamos chamar de política da responsabilidade viabilizadapela experimentação do impossível. Isto é, para a autora, quando ale-gamos a existência de uma realidade independente, de “um mundo láfora”, estamos na verdade tentando nos eximir da responsabilidadede criarmos uma realidade diferente daquela já existente. Só que esta

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realidade existente “lá fora” é sempre responsável por sustentar posi-ções políticas particulares. A única solução seria, portanto, a expe-riência do impossível, daquilo que não existe, daquilo que estará sen-do criado no momento da decisão e que não seja aplicação de solu-ções já pensadas. Para Zehfuss, “o construtivismo opera na base deaceitação da realidade como limite” (:246). A única forma de desvin-culação desse limite é a superação das barreiras que entendemoscomo reais por meio de nossa libertação para pensar a possibilidadedo (que nos parece em princípio) impossível. “A experiência do im-possível nos é crucial, e, segundo Derrida, qualquer tentativa de nosabstermos dela nada mais é do que a negação da nossa responsabili-dade para com o mundo” (:231).

O livro de Zehfuss é um livro bastante denso, que pode apresentar al-guma dificuldade para os leitores não muito familiarizados com asnovas perspectivas analíticas das Relações Internacionais. É tambémum empreendimento bastante ambicioso, já que se dispõe a criticarem um único grande fôlego os três principais nomes do pensamentoconstrutivista da atualidade. Ainda assim, Maja Zehfuss conseguetransmitir ao leitor de forma bastante didática uma nova abordagemdas relações internacionais, abordagem essa que por vezes é negli-genciada exatamente pela dificuldade inerente ao seu conteúdo.

No entanto, é importante perguntar até que ponto é viável tratar, emum mesmo livro, de três autores que, apesar de se denominaremconstrutivistas, possuem propostas de trabalho tão distintas umas dasoutras. É extremamente válida a demonstração das idéias construti-vistas por meio do exemplo das mudanças na política externa alemãdesde o pós-Guerra Fria, mas muitas idéias importantes que podemser encontradas em Wendt, Kratochwil e Onuf acabam sendo deixa-das de lado. Cabe ao leitor que se sentir atraído pelo pensamentopós-positivista procurar as obras desses autores e lhes dedicar umaleitura mais aprofundada.

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Não obstante, o livro de Zehfuss cumpre bem a tarefa de chamar aatenção para a abordagem das Relações Internacionais feita pela cor-rente pós-moderna. Devido ao grande sucesso que vem sendo alcan-çado pelos construtivistas entre as correntes dominantes das Rela-ções Internacionais e, para utilizar uma idéia de Wendt, a identidadeque foi imposta aos pós-modernos, que os caracteriza como radicais,a corrente pós-moderna ficou renegada ao gueto da relativização in-frutífera. É verdade que não é fácil entender e aplicar as propostas dapolítica do impossível mencionada por Zehfuss; e ainda mais difícil ésabermos exatamente o que ela nos pede quando fala da necessidadedas “novas atitudes” (:258), mas não podemos negar o espaço abertoà construção de novas e inumeráveis realidades que o pós-modernis-mo nos oferece.

Nota

1. Todas as citações foram livremente traduzidas pela autora desta resenha.

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Robert S. Strauss, um dos negociadores mais hábeis dos EstadosUnidos no The General Agreement on Tariffs and Trade (GATT)(em português, Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), afirmava,com a autoridade de sua experiência na Rodada Tóquio, que o cami-nho mais rápido para o fracasso em negociações comerciais interna-cionais é excluir as forças políticas domésticas desse processo. Defato, a necessidade de criar coalizões de constituintes para apoiar oprocesso negociador levou-o a devotar mais tempo negociando como Congresso americano, empresários e trabalhadores do que nas ne-gociações internacionais. Strauss foi considerado um “animal polí-tico”, no sentido de que seu carisma e sua vasta rede de contatos pos-sibilitaram o sucesso das negociações, trabalhando na margem entreos constrangimentos internos à aceitação do acordo internacional eas necessidades externas de manutenção de um comércio internacio-nal menos susceptível a pressões protecionistas (Strauss,1987:ix-xi;Dryden, 1995:208).

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*Resenha recebida em março e aceita para publicação em abril de 2006.**Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 269-276.

ResenhaTrading Voices: TheEuropean Union inInternational CommercialNegotiations*Sophie Meunier. Princeton, Princeton University Press, 2005, 238 páginas.

Rogério de Souza Farias**

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Uma das lições do negociador americano é a importância das intera-ções que se deslocam no eixo doméstico/externo e que criam deman-das crescentes para os analistas das relações internacionais compre-enderem como se desenvolvem processos que não podem ser expli-cados sem uma análise das interações entre política doméstica e in-ternacional (Moravcsik, 1993:4). No campo específico das negocia-ções comerciais multilaterais, essa abordagem não é novidade, poistrabalhos seminais já lidavam, com variado grau de sucesso, com es-ses parâmetros (Aaronson, 1996; Destler, 1995; Evans, 1971; Preeg,1970; Winham, 1986).

De certa forma, esses livros avançam a idéia de que a compreensão daatuação americana no sistema multilateral de comércio deve levarem conta grupos de interesses e forças institucionais domésticas, enão somente argumentos sistêmicos. Se, por um lado, o caso ameri-cano já foi muito estudado, por outro, a análise de como forças insti-tucionais e grupos de interesses são importantes para explicar o re-sultado da interação de barganhas em outros países ainda é limitada,mesmo em países desenvolvidos (Nau, 1989:3). Para se ter idéia, sesomarmos teses de doutorado e livros, em língua inglesa, que tratamde aspectos domésticos da inserção do Canadá, Austrália, Japão eUnião Européia no GATT, teremos menos de duas dezenas de traba-lhos de grande relevo (alguns exemplos são Capling, 2001; Vahl,1997; Davis, 2003; Stone, 1984; Hart, 1998; 2002; Manyin, 1999;Searight, 1999; Blaker et alii,: 1978)*.

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* As fontes para este levantamento foram os sistemas EBRARY, JSTOR, EBSCO, OVID,Proquest Academic Research Library, Proquest Dissertations e a Thesis/Library of CongressOnline Catalog. Foram realizadas visitas à Biblioteca da Universidade de Maryland (EUA) e àBiblioteca do Congresso Americano para a harmonização e prospecção das referências encon-tradas entre dezembro de 2005 e janeiro de 2006. Percebeu-se, com essa pesquisa, que essessistemas só alcançam, com acurácia, no máximo referências produzidas após a década de1970. Sendo assim, foram utilizados a referência The GATT Bibliography e os seus dezesseissuplementos, publicados pela secretaria do GATT para abarcar o período de 1946 a 1970. Parao período que vai de 1970 a 1976 foi utilizada a compilação feita por Richard Ford. Tanto a bi-bliografia editada pelo GATT como a compilada por Richard Ford estão disponíveis no site<http://gatt.stanford.edu>.

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A lacuna mais crítica, contudo, talvez seja a dos trabalhos que lidamcom a atuação da União Européia em negociações comerciais multi-laterais – a entidade mais importante no comércio internacional apósos Estados Unidos. De fato, desde 1958 a integração européia temsido peça-chave na própria evolução do GATT e é por esta razão queo trabalho de Sophie Meunier já é uma contribuição louvável, tendolugar cativo na bibliografia de apoio das disciplinas de comércio enegociação internacional. O livro, contudo, não vem trabalhar emterreno estéril, já que não é a primeira produção da autora sobre otema (Meunier e Nicolaidis, 1999; Meunier, 2000; 2003). Com efei-to, desde sua tese de doutorado, Sophie Meunier preocupa-se com osfundamentos do processo decisório europeu na arena comercial ecomo as instituições européias impactam na harmonização das posi-ções dos países-membros para a formação de uma única “voz” nasnegociações do sistema GATT (em português, Organização Mundialdo Comércio – OMC).

O livro procura responder questões semelhantes, principalmentequais são os efeitos esperados da transferência de autoridade para aformulação da política comercial para o nível supranacional. Paratanto, de acordo com a autora, uma abordagem institucionalista seráo diferencial relevante no texto, principalmente pela tentativa derompimento de uma ortodoxia central nos estudos sobre a ação euro-péia no sistema multilateral de comércio. Sophie Meunier, assim,afirmará que, geralmente, esses textos explicam a força externa euro-péia por meio da premissa de que os resultados distributivos de nego-ciações são definidos por categorias como poder, preferências, natu-reza da negociação e habilidade dos negociadores – “sendo a tese deque quanto mais integrado, mais poder o arranjo regional poderáexercer” (2000:40) a idéia subjacente à maioria das variáveis.

Dessa forma, de acordo com a autora, a estrutura institucional com-plexa da União Européia e a necessidade de existir arranjos processu-ais internos para negociar acordos comerciais internacionais com

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uma única voz é que teriam um impacto importante, e por vezes deci-sivo, nas negociações comerciais. Utilizando uma idéia avançadapor Thomas Schelling e Robert Putman, a autora vai afirmar que nemsempre um negociador que tem liberdade para atuar consegue resul-tados mais vantajosos. Na verdade, divisões internas e instruções li-mitadas podem ser mais vantajosas que a liberdade completa para seter maior poder de barganha em negociações comerciais multilaterais– ou seja, as instituições supranacionais nas quais as preferências dosEstados-membros são agregadas influenciam os resultados.

Meunier utilizará duas variáveis que, dentro da categoria “estruturainstitucional”, contribuem para explicar o poder de barganha externona União Européia. A primeira é o nível de competência supranacio-nal do bloco, que seria a conjunção dos procedimentos de votação in-ternos e o grau de delegação supranacional da questão. Dessa forma,ao utilizar regras de unanimidade, por exemplo, como procedimentode decisão interno para solucionar uma questão, seria dado mais pesoàs posições dos membros que têm mais a perder em uma determinadaquestão do que se fossem utilizados procedimentos de maioria. Ograu de delegação de uma questão, por seu turno, significa o quantouma competência foi delegada pelos Estados-membros aos negocia-dores da Comissão Européia.

A segunda variável do trabalho da autora é a natureza do contexto ne-gociador. Assim, a distribuição de preferências da União Européiacom os seus parceiros negociadores determina situações negociado-ras distintas que, por seu turno, influenciam o impacto dos mecanis-mos institucionais do bloco em sua capacidade externa de barganha.

Apesar de parecer confuso e abstrato, a autora realizará quatro estu-dos de negociações da União Européia com os Estados Unidos paratestar a correlação dessas duas variáveis na explicação de que o poderde barganha do bloco europeu não é uma função linear de seu grau deintegração.

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Cabe aqui ressaltar dois casos de especial relevo: a negociação agrí-cola da Rodada Kennedy (1963-1967) e a negociação agrícola daRodada Uruguai (1993-1994).

“No primeiro caso, a crise da cadeira vazia, na qual os franceses levaram asuspensão de todas as atividades da Comunidade Econômica Européia emmeados de 1965, serviu para mudanças no processo decisório do ConselhoEuropeu, em que os membros eram autorizados a manter posição de veto seuma questão de vital importância para eles fosse decidida desfavoravelmen-te” (2000:91).

Assim, se no início da Rodada Kennedy a pressão americana aponta-va para uma mudança substantiva da política agrícola européia, nomomento subseqüente, a França, que mantinha a ameaça de veto so-bre a questão, conseguiu manter uma vigilância dos negociadores daComissão Européia que impediu qualquer concessão nas negocia-ções da Rodada. Dessa forma, ao mudar o processo para uma unani-midade explícita e diminuir o grau de delegação para a Comissão Eu-ropéia, os procedimentos internos da Comunidade Econômica Euro-péia contribuíram de forma considerável para que o resultado da Ro-dada fosse mais favorável à posição mais protecionista existente den-tro do bloco europeu.

Na Rodada Uruguai, ocorrência de natureza semelhante voltaria ademonstrar o impacto negativo das instituições domésticas européi-as nas negociações. De 1986 até 1992, os EUA não conseguiram de-mover os negociadores europeus de suas posições iniciais de defesado protecionismo agrícola. Somente com o início da reforma da polí-tica agrícola comum de 1992, combinada com uma maior autonomiada Comissão Européia, é que um acordo foi possibilitado na área. AFrança e demais países mais protecionistas na área, contudo, não fi-caram satisfeitos com o resultado final das negociações. Ao lutarempor modificações nos procedimentos internos, conseguiram limitar aautonomia e autoridade da Comissão para negociar externamente e,com isso, reabriram a negociação com os EUA. Com a proximidade

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da expiração da autoridade americana para negociar, o que se encai-xa na variável contextual da autora, os negociadores americanos aca-baram renegociando certos elementos para acomodar as posiçõesmais protecionistas do bloco europeu (2000:123).

O poder de barganha da União Européia, portanto, não é uma funçãolinear do seu grau de integração. A autora, com sucesso, demonstraque a força externa européia é derivada, em grande medida, dos pro-cedimentos internos que definem a relação de autonomia e autorida-de da Comissão Européia perante os membros mais protecionistasdo bloco, além do contexto no qual o bloco negocia. A conclusão,para os que desejam mudar as políticas conservadoras da Europa, é,portanto, clara: não é somente o foco nas coalizões de interesses do-mésticos, como poderia ser deduzido de Robert Strauss, que é rele-vante para entender e poder fortalecer tendências liberalizantes nosistema multilateral de comércio. Deve-se acreditar, logo, que a es-trutura institucional da União Européia, por suas implicações na ne-gociação de acordos comerciais internacionais, é bastante relevantepara gerar o coeficiente de força necessário para se alcançar resulta-dos menos protecionistas nas negociações do sistema GATT/OMC.

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Em 2004, relembrou-se, em todo o mundo, os vinte anos daqueleque se tornou o pior acidente industrial da história. Na noite do dia 2de dezembro de 1984, na cidade de Bhopal, capital do estado india-no de Madhya Pradesh, um problema de elevação da temperatura eda pressão em um dos reservatórios de gás da fábrica da UnionCarbide India Limited (UCIL) – o de número 610 – já era aparente.Pouco depois da meia noite, os superiores do operário responsávelpelo turno foram avisados. Ao chegarem à fábrica, cinco toneladas

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* Artigo recebido em agosto e aprovado para publicação em novembro de 2005.** Doutoranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Uni-versidade Católica (IRI/PUC-Rio), professora da graduação em Relações Internacionais doIRI/PUC-Rio e pesquisadora visitante da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da FundaçãoOswaldo Cruz (Fiocruz).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 28, no 1, janeiro/junho 2006, pp. 7-51.

O Local e o Global naEstrutura da PolíticaAmbientalInternacional: AConstrução Socialdo Acidente QuímicoAmpliado de Bhopale da Convenção 174da OIT*Aletheia de Almeida Machado**

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de emanações do gás isocianato de metila (MIC) já haviam sido lan-çadas na atmosfera, na região densamente povoada onde se encon-trava a planta industrial. O sistema de segurança para impedir o va-zamento não funcionou, o que permitiu o espalhamento de uma nu-vem tóxica pela zona urbana adjacente de 6.500 hectares. Quarentatoneladas de gás vazaram da fábrica produtora de pesticidas, provo-cando a morte de 8 mil pessoas nos três dias subseqüentes ao aciden-te1. Mais de 520 mil indivíduos foram expostos aos efeitos dos gasese até hoje, vinte anos após o acidente, 150 mil permanecem cronica-mente doentes2. Estima-se que 20 mil pessoas já tenham morridocomo resultado desse acidente. Muitas, instantaneamente; outras,em decorrência de diagnósticos inadequados, de tratamentos inefi-cientes e da liberação precária de informações por parte da empresamultinacional envolvida.

Para a política internacional, em termos analíticos, destaca-se, porum lado, o caso de Bhopal por conta de sua gravidade e, sobretudo,de suas peculiaridades políticas e sociais. O acidente enfocado nesteartigo se reveste de carga simbólica considerável, uma vez que a par-tir do mesmo há uma mudança no enfrentamento do problema dosacidentes químicos ampliados3. Longe de ser o único evento dessanatureza a deixar passivos humanos, sociais e ambientais, Bhopal es-tabelece uma espécie de limite de tolerância da sociedade civil inter-nacional. Passa-se a demandar responsabilidade, por parte da indús-tria química, sobre seus processos produtivos. Transplantar filiais apaíses cujas legislações ambientais sejam pouco rígidas não podemais ser sinônimo de exportação de padrões de poluição e de riscoquímico às comunidades daqueles países. Tampouco pode significarimpunidade. A partir de Bhopal, empresas multinacionais da indús-tria química começam a ser julgadas, inclusive em seus países-sede,geralmente a quilômetros da tragédia. O legislador passa a impor pa-drões rígidos para a atuação daquele segmento empresarial. A pró-pria indústria adere a novos padrões de conduta e advoga pelo cum-primento das normas: afinal, quer compartilhar, com todo o setor, oscustos da adoção de padrões seguros de produção.

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Por outro lado, os desdobramentos desse acidente químico se confi-guram em oportunidade para um exercício analítico que pode contri-buir para a diversificação da agenda de pesquisa das Relações Inter-nacionais (RI) para o meio ambiente. Usualmente, os temas ambien-tais, em RI, são analisados sob o prisma da literatura de regimes, que,do ponto de vista epistemológico, representa uma retomada das pre-ocupações normativas no campo disciplinar. O problema com aque-les estudos que partem, no entender de Ruggie (1998), de uma onto-logia neo-utilitária é que oferecem pouco espaço para a análise apro-fundada do papel constitutivo da ação social, dos fatores normativose ideacionais. Estes, quando examinados a partir daquela ontologia,são vistos de forma instrumental, como constrangimento à ação hu-mana, no processo de consecução de interesses tipicamente materiaise egoístas4. A proposta analítica que se apresenta demanda uma vi-são ampliada sobre o papel das idéias, em que se reconheça o caráterconstitutivo da intencionalidade coletiva e das regras. A ausência deuma discussão aprofundada sobre a transformação no ambiente in-ternacional e, conseqüentemente, sobre a capacidade de agir e intera-gir dos agentes restringe a possibilidade de aplicação dos resultadosanalíticos, produzidos por neo-liberais institucionalistas.

Por isso, neste trabalho, adota-se a abordagem construtivista das RIpara analisar os impactos do acidente químico de Bhopal, privilegian-do-se, exatamente, o papel constitutivo da ação humana no processode construção social da política internacional. O relatório do Programadas Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), intitulado Glo-bal Environmental Outlook (GEO-2003, 2003:273), reconhece que osimpactos de acidentes ampliados, como esse de Bhopal, muitas vezestranscendem as fronteiras nacionais quer na forma de efeitos ambien-tais e humanos, quer na forma de ativismo político ou de negociaçõesmultilaterais. Esse relatório aponta para o fato de que alguns desses de-sastres resultaram em normas de caráter voluntário ou mandatório, es-sencialmente preventivas. Analisar esses impactos, a partir de umaabordagem construtivista, é reconhecer uma dimensão intersubjetiva

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da ação humana. Em consonância com essa opção metodológica, osindivíduos são vistos como seres culturais e autônomos que empres-tam significado ao mundo. Da construção dos significados é que sur-gem os fatos sociais que, por sua vez, dependem da anuência coletiva edas próprias instituições humanas. Em última instância, emprega-seaquela abordagem porque possibilita investigação acurada quanto aopapel da consciência humana na vida internacional. É esta consciênciaque contribui para a construção de identidades e de interesses dos ato-res que, por isso, serão analisados em associação com a estrutura idea-cional gerada – com a ressalva de que as identidades e os interesses re-alizam movimento inverso que deve ser observado, influenciando acapacidade e a vontade humanas.

A aplicação da abordagem construtivista concretiza-se com umaproposta de articulação conceitual entre ferramentas analíticas, ofe-recidas por tal abordagem. De modo geral, pretende-se caracterizar aestrutura de idéias e de normas em que se incruste o acidente5; de for-ma mais específica, almeja-se compreender a maneira pela qual oevento local é construído socialmente, tendo por referência a referidaestrutura, e como gera impactos políticos, sociais e normativos emnível global. O argumento que permeia a discussão proposta é o deque eventos locais ambientais podem imprimir marcas sociais e nor-mativas na política internacional. Em Bhopal, não há efeitos ambien-tais transnacionais, como, por exemplo, o espalhamento de uma nu-vem tóxica por países adjacentes ao local do acidente; ainda assim, oevento é alçado à cena internacional, mobilizando amplos setores dasociedade. Isso contribuiu para que se adotasse a opção teórica doconstrutivismo, uma vez que, usualmente, as abordagens utilitáriastratam da criação de regimes ou da opção pela cooperação quando háproblemas comuns a serem combatidos. Explicita-se, assim, o argu-mento de que se evidenciaram os elementos de globalidade, perten-centes ao evento local, somente porque se verifica um processo deamadurecimento ideacional e normativo que tem como marcos polí-ticos a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Huma-

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no, realizada em Estocolmo em 1972, e a Conferência das NaçõesUnidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Riode Janeiro, em 1992.

A partir da abordagem teórica indicada, este artigo pretende compre-ender a construção social do acidente ou a transformação de umaocorrência local em um fato social relevante para a Política Ambien-tal Internacional (PAI) (Greene, 1997; Hurrel, 1995)6. Por que o aci-dente de Bhopal merece atenção analítica das RI e como foi alçado àagenda de política internacional são perguntas balizadoras da análiseproposta. Esta, ao basear-se no construtivismo, intenta diversificar osobjetos da PAI e as formas de refletir sobre os mesmos em RI. Assim,emprega-se articulação de conceitos, útil na visualização da estrutu-ra em que está inserido o evento local e, também, do processo deconstrução social tanto do evento quanto da norma internacional ne-gociada a partir da ocorrência estudada. É essencial ter em mente quenem estrutura, nem fatos sociais podem ser analisados isoladamente;naturalmente, o pressuposto é o de que prevalece a co-constituiçãoentre estruturas e agentes – responsáveis pela construção social doevento – e de que, portanto, não se pode prescindir desses elementos,tampouco dos elos que os unem.

Na primeira parte do artigo, destaca-se o contexto cultural e institucio-nal da cena ambiental como um todo. Sem a apreensão das variaçõescognitivas e institucionais, do período de 1972 a 1992, relativas, emgeral, ao meio ambiente e, mais especificamente, aos acidentes, nãoseria possível compreender a construção social de Bhopal. Parte-seda afirmativa de que a consciência ambiental amadurecida da socie-dade internacional – que passa a repudiar com veemência acidentescomo esses – viabiliza a construção social do acidente, por meio daatuação de ativistas políticos e de empreendedores de normas. A ma-terialidade do evento local é transformada e ressaltada pelas idéiasreferidas ao desenvolvimento sustentável e à segurança química7,além de ser conduzida em forma de fato social às relações internacio-nais por meio daquela atuação que encontra reverberação na socieda-

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de civil cada vez mais preocupada com os temas ambientais. Na se-gunda parte, evidencia-se o veio condutor do processo de construçãosocial enfocado: a relação local/global na área ambiental. Parte-se deum evento, cujos efeitos e causas imediatas se encontram em um ter-ritório específico – o acidente ampliado de Bhopal –, mas que ense-jam elementos que ultrapassam os interesses locais, adquirindo, pos-teriormente, uma interface internacional, com a negociação de uminstrumento multilateral – a Convenção 174 da Organização Interna-cional do Trabalho (OIT) para a prevenção de acidentes industriaismaiores. É a materialidade do local, transformada pela intersubjeti-vidade dos agentes, influindo na estrutura normativa global. Con-clui-se esta parte com a defesa de uma visão mais social do ambienteinternacional em que emergiu a norma em questão. Na terceira parte,focaliza-se o papel da OIT como agência líder na discussão da segu-rança química, internacionalmente, a fim de indicar por que a cons-trução normativa enfocada se verifica no fórum daquela Organiza-ção Internacional (OI). Nas observações finais, apresenta-se uma ar-ticulação de conceitos do construtivismo como ferramenta útil para aanálise de questões ambientais, nas RI, sobretudo ao apontar parafontes normativas que a disciplina poderia desconsiderar por restrin-girem-se, geograficamente, a um espaço local.

A Estrutura Social da

Política Ambiental

Internacional: Como se

Construíram as Idéias que

Colaboraram para Demarcar

os Contornos Sociais do

Evento Local e que Estão

Sintetizadas na Norma

Global

A degradação do meio ambiente faz parte da história da humanida-de8. Os efeitos dessa degradação, no entanto, somente adquiriram

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uma dimensão global no século XX. Na verdade, o processo de glo-balização da temática ambiental é marcado, principalmente a partirdos anos 1990, por mudanças fundamentais no Sistema Internacio-nal (SI) – o fim da Guerra Fria e a intensificação da globalização dasformas de comunicação e dos meios de transporte, entre outros – e,também, por avanços científicos que permitiram detectar e divulgar,com maior precisão, os efeitos deletérios de séculos de exploraçãopredatória do meio ambiente.

O século XX presenciou não apenas a intensificação da industrializa-ção e a ampliação dos efeitos negativos da exploração dos recursosnaturais do planeta. Diante da realidade concreta do aumento da es-cassez de recursos naturais, dos acidentes industriais ampliados, dosgrandes vazamentos de navios, da chuva ácida, do buraco na camadade ozônio, do efeito estufa, da produção de lixo atômico e tóxico, dosdesequilíbrios climáticos – entre outros –, verificou-se a edificaçãode uma consciência ambiental global ou, em termos teóricos, a cons-tituição de uma estrutura de idéias referentes à proteção ambiental.Tal consciência teria surgido paulatinamente, pois foi apenas nas dé-cadas de 1960 e 1970 que a questão “meio ambiente” adquiriu umadimensão verdadeiramente internacional, tornando-se global à me-dida que os problemas ambientais se diversificaram e seu impacto seampliou e se aprofundou. Em termos políticos, é com a Conferênciade Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano (1972) e com a Confe-rência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimen-to (1992)9 que o tema ambiental se torna, primeiro, internacional e,posteriormente, global, ingressando definitivamente na agenda polí-tica dos atores relevantes da cena internacional10.

Nesse intervalo de vinte anos, tomaram corpo idéias e instituiçõesque visavam estancar o curso da degradação planetária e que termi-naram por compor uma estrutura em que se desenrolam as ações hu-manas no que se refere ao meio ambiente. Tais considerações iniciaistêm especial relevo para este trabalho, na medida em que corroboram

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o argumento proposto de que Bhopal é construído socialmente e al-çado à cena internacional, tendo por referência essas idéias e institui-ções que contribuíram para demarcar os contornos sociais do eventoe para gerar uma síntese normativa, por meio dos ativistas políticos edos empreendedores de normas. Assim, lança-se mão de um certohistoricismo para se ter um alcance do processo de constituição dessaestrutura. Essencialmente, é significativo identificar a forma comose deu a entrada do tema ambiental na agenda política e social dasNações Unidas.

Aliás, apesar da reação institucional verificada de início, o ambienteorganizacional do Sistema da Organização das Nações Unidas (ONU)teria demonstrado certa reticência quanto à assimilação definitiva dotema à sua agenda. Ricardo Neiva Tavares (1999:95-110), por exem-plo, considera que, antes da Conferência de Estocolmo, as questõesambientais teriam recebido tratamento limitado dentro das NaçõesUnidas. Guido Fernando Silva Soares (2003), por sua vez, vai alémao afirmar que seria inútil buscar, em épocas anteriores à segundametade do século XX, qualquer manifestação do fenômeno da regu-lamentação internacional global do meio ambiente. Isso porque, se-gundo este autor, a deterioração desse meio ambiente, no âmbito dasrelações internacionais, começa a constar das preocupações dosEstados somente na década de 1960. Para esse autor ainda, os anosque antecederam a Conferência de Estocolmo foram marcados exa-tamente pela intensificação da degradação ambiental e de seus efei-tos, bem como pela ampliação da divulgação de casos emblemáticose do conseqüente repúdio internacional aos mesmos. Isso é que teriaprovocado, em última instância, a tomada de posição da ONU. Caberessaltar que Soares está preocupado com a “regulação internacionalglobal”, com a realidade internacional objetiva da confecção de do-cumentos, de leis ou da ordem normativa propriamente dita. Este tra-balho, ao sugerir uma reflexão teoricamente alternativa sobre o temaambiental, enfatiza, de maneira especial, os acontecimentos de natu-

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reza política e social e os processos de construção daí decorrentesque influenciaram a atuação de agentes internacionais relevantes e agênese normativa.

Constatação fundamental para a identificação de uma ampliação daagenda de preocupações ambientais entre as Nações Unidas é o sur-gimento, na última metade do século XX, de um conjunto considerá-vel de tratados e convenções internacionais multilaterais referentesao tema e à proliferação de organizações não-governamentais(ONGs) ambientais (Soares, 2003; Litfin, 1999). Segundo Litfin(1999:329-330), em 1969, havia cinqüenta tratados multilateraiscuja temática era o meio ambiente; em 1994, essa quantidade maisque triplicou, alcançando 173. Paralelamente, verificou-se uma ex-plosão no número de ONGs ambientais: de 174, em 1909, para quase30 mil, em 1993. Tais números seriam evidências de que a agendaambiental, internacionalmente, sedimentou-se gradativamente. E – oque é ainda mais relevante – que a estrutura política e social em queinteragem os agentes envolvidos – Estados, indivíduos, sindicatos,associações – complexificou-se, modificando, conseqüentemente,os processos políticos subseqüentes. Há, sobretudo, indicação de queestá em curso uma mudança de mentalidade que desencadeia a mobi-lização da sociedade civil. Naturalmente, são muitas as influênciasnesse processo, entre as quais a publicação de livros e artigos para-digmáticos para a tomada de consciência da comunidade internacio-nal quanto à questão ambiental. Trata-se, essencialmente, de doismarcos que incorporaram o espírito da época e, como tal, impulsio-naram o surgimento do moderno movimento ambiental: o livro deRachel Carson, Silent Spring (2002), de 1962, que alertava para o usoindiscriminado de DDT e de outros pesticidas e o artigo “The Tra-gedy of the Commons”, de Garrett Hardin (1968), que propunha ummodelo particularmente influente para a explicação das causas da su-perexploração de recursos ambientais comuns, mesmo diante do re-conhecimento das conseqüências danosas de longo prazo dessa su-

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per exploração. Além dessas duas publicações, que obtiveram im-pacto internacional, é importante lembrar o estudo produzido peloClube de Roma sobre o futuro do planeta, intitulado The Limits toGrowth (Meadows et alii, 1972), que apontava para um cenário ca-tastrófico, caso não se repensasse os níveis de crescimento econômi-co e populacional.

Dessa forma, é preciso destacar que a convocação da Conferência deEstocolmo, em 1972, seria fruto desse contexto efervescente de to-mada de consciência mundial. O objetivo da Conferência era promo-ver uma abordagem mais coordenada para o tratamento das questõesligadas ao meio ambiente (Greene, 1997:316). Trata-se de um pontode inflexão fundamental para o desenvolvimento da política ambien-tal internacional, em geral, e para o exame desse tema pelo Sistemadas Nações Unidas (Tavares, 1999:95), em especial. O evento reuniupaíses desenvolvidos e em desenvolvimento e contou com a partici-pação (limitada) da comunidade científica e, pela primeira vez, deobservadores credenciados, de ONGs.

Quanto ao alcance e à magnitude da PAI como um todo, a Conferên-cia de Estocolmo foi o ponto de partida institucional para um proces-so de amadurecimento ideacional e normativo que se estendeu pelosvinte anos posteriores. Ainda assim, é preciso notar que as ações, en-gendradas pela ONU na área ambiental, em seguimento às decisõesda Conferência de 1972, tiveram significado muito mais simbólicodo que prático. Isso porque, por um lado, indicaram claramente oamadurecimento dessa conscientização global quanto ao tema –principalmente, dos Estados que sofriam pressões crescentes de suassociedades –, mas, por outro, não objetivaram o reexame dos padrõesde produção, de comércio e de consumo que estão no cerne da ques-tão ambiental. Os acordos do período focalizavam a proteção ambi-ental e a poluição, deixando de lado as questões mais intimamente re-lacionadas ao vínculo existente entre meio ambiente, processos pro-dutivos e desenvolvimento. Aquelas ações não buscaram iniciar dis-

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cussões quanto à possibilidade, na cena internacional ambiental, dese atribuir aos Estados a responsabilidade por danos ambientais.Além disso, ao PNUMA, criado na reunião de Estocolmo, faltava opeso institucional exigido para a coordenação efetiva das agendasdentro do Sistema da ONU. Se a cooperação internacional na área defato se intensificou, tornaram-se evidentes, também, várias lacunasinstitucionais no âmbito das Nações Unidas.

O estabelecimento da Comissão sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-mento, na década de 1980, serviria para sanar os problemas que sur-giam com o estreitamento dos laços cooperativos e a intensificaçãoda troca de informações entre os países. As discussões, dentro do Sis-tema da ONU, sobre as atribuições da Comissão iniciaram-se em1982. No ano seguinte, o secretário-geral das Nações Unidas encar-regou Gro Harlem Brundtland, primeira-ministra da Noruega, de cri-ar e presidir esse órgão especial e independente. A Comissão tratariada proposição de estratégias ambientais de longo prazo, de maneirasde se estabelecer a cooperação entre os países em estágios de desen-volvimento diferentes, bem como de noções comuns sobre a prote-ção ambiental que ajudassem as nações a tratar, com êxito, de proble-mas igualmente comuns. A Comissão reuniu-se pela primeira vezem outubro de 1984 (Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e De-senvolvimento, 1991). O resultado mais marcante da Comissão foi olançamento de uma agenda para o setor e a confecção, em 1987, doRelatório Brundtland, intitulado Nosso Futuro Comum, que lançouas bases do conceito de desenvolvimento sustentável.

Foi nesse contexto e em prosseguimento à Convenção de Estocolmoque a Assembléia Geral da ONU se decidiu pela convocação, em de-zembro de 1989, da Conferência do Rio de 1992. A cooperação inter-nacional, a partir dos documentos aprovados nesse evento – que con-templavam de forma clara e consolidada a idéia de desenvolvimentosustentável e abrangiam 27 princípios, guias para as ações na área demeio ambiente e desenvolvimento –, mudou de feição, experimen-

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tando um aprimoramento conceitual significativo. Os princípios daDeclaração do Rio (1992), como o de “responsabilidades comuns,porém diferenciadas” (Princípio 7) e o da precaução (Princípio 15),passaram a compor as ações cooperativas na área ambiental. ARio-92 é considerada a maior reunião internacional realizada pelaONU e, principalmente, um marco fundamental para a política inter-nacional, após o fim da Guerra Fria. A partir daquele evento, com aintensificação da constituição de redes de ativistas em torno dasONGs, começam a delinear-se os conceitos de “sustentabilidade” ede “futuridade”11 que marcarão os acordos ambientais subseqüentes,bem como a própria manifestação de globalidade ambiental.

O conceito de desenvolvimento sustentável havia sido formuladopelo Relatório Bruntland, que, juntamente com o Relatório do Clubede Roma sobre os Limites do Crescimento (1968), a Declaração deEstocolmo (1972), a Declaração do Rio e a Agenda 21 (ambos de1992), constituem-se nos documentos referenciais de uso e difusãopara a consolidação da idéia de desenvolvimento sustentável. Hoje,essa é uma idéia basilar para a política de cooperação internacional,em matéria de meio ambiente, e para o uso racional dos recursos na-turais a fim de se evitar a deterioração do capital ecológico mundial.Acima de tudo, o desenvolvimento sustentável implica a inclusão deconsiderações socioambientais no processo de tomada de decisãotanto político quanto econômico com vistas ao desenvolvimento dasnações.

A contribuição das ONGs, tanto no processo preparatório, quanto du-rante a Rio-92, merece destaque ao indicar a países desenvolvidos eem desenvolvimento a oportunidade de defender a existência de umacorrelação entre desenvolvimento e meio ambiente e de demonstrarque os problemas ambientais podem decorrer tanto da pobreza, quantodos processos de industrialização. Mais que isso, há uma contribuiçãoteórica a se destacar que vai além da conscientização e da mobilização.A partir da atuação desses atores não-estatais, o processo de constru-

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ção da estrutura ideacional e normativa, referente à proteção ambien-tal, é definitivamente selado. Dada a atuação da sociedade civil, aConferência foi, essencialmente, uma ampla e pragmática negocia-ção, uma troca de compromissos que deixaria de lado o exercício as-sistencialista da ajuda externa, as reivindicações confrontadoras ou,ainda, a tentativa de reduzir os problemas ambientais a discussões téc-nicas, retirando-lhes seu caráter político e social.

Em suma, a Conferência de Estocolmo e a Rio-92 são os alicerces(Soares, 2003) desse processo amplo de construção normativa e ide-acional. A quantidade de atos internacionais multilaterais, produzi-dos a partir da Conferência do Rio (acordos de segunda geração), so-mados àqueles negociados a partir de 1972, permite identificar oaprimoramento de idéias e instituições referentes à proteção ambien-tal. É esse aprimoramento que confere significado especial ao aci-dente em Bhopal, que ocorre, exatamente, em um momento de forteefervescência tanto social quanto política. Especificamente, quanto àsegurança química, é fundamental notar que esta é abordada de ma-neira mais explícita como um tema da agenda política das relaçõesinternacionais, a partir, também, de 1992. O crescimento dramáticoda produção e de comércio de substâncias químicas – não acompa-nhado da adoção de medidas adequadas e suficientemente eficazesde prevenção de acidentes e de promoção da segurança química –,verificado desde a década de 1970, chamou a atenção da sociedadecivil e dos Estados para os riscos potenciais embutidos no manuseiodessas substâncias perigosas e dos pesticidas. Antes de 1992, verifi-cou-se intensa mobilização por parte da sociedade civil, em decor-rência da ampliação no número de acidentes graves que acompa-nhou, naturalmente, o crescimento da produção e do comércio. Du-rante a elaboração do Relatório Brundtland, por exemplo, entre 1984e 1987, ocorreram casos que ganharam grande repercussão na mídiainternacional: o acidente em Bhopal; a explosão de tanques de gás li-quefeito na Cidade do México; a explosão do reator nuclear em Cher-

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nobyl; o incêndio de um depósito na Suíça que ocasionou a contami-nação do rio Reno com produtos químicos (Comissão Mundial sobreMeio Ambiente e Desenvolvimento, 1991).

A estrutura de idéias referidas à segurança química está, sem dúvida,vinculada à estrutura ideacional ambiental mais ampla. Partindo da-queles princípios e idéias acerca do desenvolvimento sustentável,cabe destacar o processo paralelo de construção institucional, cujoobjetivo seria o controle do uso e o manuseio adequado e seguro desubstâncias químicas por meio da criação de normas, regras, proce-dimentos e padrões que acompanhassem a nova realidade. Tal pro-cesso pode ser observado quando se evidencia a colaboração, na áreade segurança química, entre o PNUMA, a OIT e a Organização Mun-dial da Saúde (OMS) no Programa Internacional sobre a SegurançaQuímica (PISQ), desenvolvido desde 1980 – no ano seguinte, a OITaprovou a Convenção e a Recomendação sobre Saúde e SegurançaOcupacional. Também pode ser observado quando se faz referênciaaos programas da década de 1980, relativos à troca voluntária de in-formações sobre aquelas substâncias, desenvolvidos pelo PNUMA,em associação com a Organização das Nações Unidas para a Ali-mentação e a Agricultura (em inglês, Food and Agriculture Organi-zation – FAO). Em 1985, a FAO lançou seu Código de Conduta Inter-nacional para a Distribuição e o Uso de Pesticidas. A solidificaçãoinstitucional também pôde ser detectada quando o PNUMA, em1987, estabeleceu as Diretrizes de Londres para a Troca de Informa-ções sobre as Substâncias Químicas no Comércio Internacional.Além disso, houve o debate suscitado na Assembléia Geral da ONUsobre a prevenção do tráfico ilegal de produtos e resíduos tóxicos eperigosos, cujo resultado foi a aprovação da Resolução 44/226 de22/12/1998.

Quanto à construção conceitual, os Princípios 13 (Responsabilida-de), 14 (Duplos Padrões), 15 (da Precaução) e 16 (Poluidor Pagador)da Declaração do Rio (1992) serviram para fortalecer a defesa de pa-

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drões mais sustentáveis para a produção de substâncias químicas,bem como para se advogar o dever da responsabilidade e o direito decompensação a vítimas de acidentes ambientais. Além disso, essedocumento admite a noção de notificação e consulta prévia (Princí-pio 19) em caso de dano de impacto transfronteiriço. A partir daRio-92, com a adoção da Agenda 21 (1992), determina-se aberta-mente as diretrizes e os preceitos de política a serem seguidos pelospaíses, no século XXI, para o “Manejo ecologicamente saudável dassubstâncias química tóxicas, incluída a prevenção do tráfico interna-cional ilegal dos produtos tóxicos e perigosos”(Agenda 21, 1992: ca-pítulo 19). Consolida-se, definitivamente, o cabedal conceitual dasegurança química, que, por sua vez, define-se como um tema daagenda política internacional. A fim de assegurar aquele manejo am-bientalmente saudável, reafirmam-se princípios, tais como os do de-senvolvimento sustentável e da melhoria da qualidade de vida. Reco-nhece-se, sobretudo, o direito (aliás, decorrente do princípio da pre-caução), tanto das comunidades, quanto dos trabalhadores, de se co-nhecer os riscos a que estão expostos, bem como o direito das indús-trias de proteger informações comerciais confidenciais. O capítulo19 recomenda a realização de esforços no plano internacional, a fimde se buscarem soluções para dois problemas principais decorrentesda presença de produtos químicos tóxicos no meio ambiente, parti-cularmente nos países em desenvolvimento: (1) a ausência de dadoscientíficos para a avaliação dos riscos inerentes à utilização de taisprodutos e (2) a falta de recursos para a análise de risco dos produtoscujos dados científicos já se encontram disponíveis. Defende-se aminimização da produção de resíduos por meio da transformaçãodos métodos de produção e reciclagem, a promoção do armazena-mento seguro dessas substâncias e a necessidade de restringir ou pro-ibir o transporte delas. Recomenda-se, expressamente, que, nos paí-ses que recebam suas filiais, as multinacionais não adotem critérios epadrões menos rígidos do que aqueles que prevalecem em seus paí-ses-sede. Além disso, defende-se a posição de que os governos não

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devem favorecer a exportação de produtos proibidos ou de uso restri-to em território nacional.

Não se pode deixar de identificar a relação de co-constituição entreestrutura e fatos sociais: se a consciência ambiental – de Estados e so-ciedades – viabiliza e reforça o ativismo político e o empreendedo-rismo normativo, tornando Bhopal evidente aos olhos do mundo, in-questionavelmente Bhopal contribuiu para aqueles amadurecimentoideacional e aperfeiçoamento conceitual, cuja expressão essencial éo capítulo 19 discutido. Bhopal representa um limite: a sociedade in-ternacional passa a ver como inaceitável a continuidade de acidentesindustriais, vitimando um número cada vez maior de pessoas e ge-rando passivos ambientais incalculáveis para as gerações presentes efuturas, sem, contudo, haver imputação de responsabilidade. A dra-maticidade daquela ocorrência e a ausência de regras quanto à res-ponsabilidade, ao direito a compensações ou ao direito a informa-ções acerca dos processos produtivos conclamavam as nações a criare consolidar normas, regras, procedimentos e princípios que auxi-liassem na prevenção de novos acidentes.

Até aqui se tratou da construção normativa e institucional que envol-ve os Estados como agentes, uma vez que se focalizam os alicercespolíticos e normativos da PAI. Mas esse processo de construção, na-turalmente, tem uma base ideacional e um contexto social influente.É a consciência ambiental amadurecida da sociedade internacionalque viabiliza a construção social dos eventos materiais que com-põem aquela estrutura, sobretudo do acidente local que se focaliza. Amaterialidade do evento local é transformada pelos afetados, pelosativistas e pela própria indústria, cujas consciências ambientais fo-ram constituídas ao longo do processo de globalização da estruturade idéias referidas ao desenvolvimento sustentável e à segurança quí-mica. Trata-se do que Adler (1997) chama de evolução cognitiva emque fatos sociais ganham relevo na cena internacional. Retornar à in-ternacionalização e à globalização da estrutura ideacional e normati-

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va referida ao meio ambiente – a PAI –, como proposto neste traba-lho, é constatar essa evolução cognitiva, atentando para o processode aprendizagem de novas idéias. Nesse, os decisores adotam novasinterpretações da realidade, na medida em que essas interpretaçõessão criadas e introduzidas no sistema político por agentes propaga-dores de idéias, a partir do aprimoramento da PAI.

Constata-se que os processos de construção social e ideacional anali-sados são viabilizados por uma dada linguagem, por uma criação econsolidação conceitual, cuja expressão mais significativa é a inven-ção do desenvolvimento sustentável ou da própria segurança quími-ca. A linguagem é, em última instância, um amálgama naqueles pro-cessos sociais e, como tal, é considerada ponto de partida da gênesenormativa. Novamente, a co-constituição: a linguagem é influencia-da pelo mundo em que se vive, determinando-o, igualmente. Nessesentido, é preciso reconhecer que a linguagem não emerge natural-mente: surge da partilha coletiva de significados. Não é por outra ra-zão que fato social e estrutura ideacional, bem como as dimensões lo-cal e global são indissociáveis porque mutuamente constitutivas.

Na seção seguinte, tendo em mente essa evolução cognitiva e ideacio-nal, base da estrutura destacada, bem como a linguagem utilizada porempreendedores de norma, analisa-se a construção social do aciden-te. Parte-se do pressuposto de que é esse contexto internacional maissocial, em que se verifica o amadurecimento de uma consciência am-biental e da própria PAI, que conduz o acidente do âmbito local aoglobal.

A Relação Local/Global e o

Processo de Construção

Social do Acidente Químico

Ampliado de Bhopal

O ano de 1984 delineou-se, na verdade, como um ano de tragédiapara a segurança química em todo o mundo. Para David Weir e Mar-

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tin Abraham (1985:6), é o ano em que, em muitos países em desen-volvimento, começa a tomar forma um ciclo “Bhopal sem fim”. Porexemplo, em fevereiro, explosões e incêndio no gasoduto da Petro-bras, ocasionados por vazamento de gás, vitimaram, aproximada-mente, quinhentas pessoas na Vila Socó, em Cubatão, São Paulo,Brasil. Na verdade, não se sabe exatamente o número total de víti-mas. Muitos dos corpos foram dizimados ou não puderam ser identi-ficados por falta de documentos. Tratava-se, aliás, de um assenta-mento clandestino. A questão é que o “Bhopal brasileiro” não só nãogerou efeitos normativos nacionais ou internacionais, como tambémnão resultou em indenizações. Além disso, as vítimas foram tidascomo os únicos culpados. Em novembro, na Cidade do México, ou-tro evento sobre o qual se disse que o “céu pegou fogo”. Um vaza-mento de gás liquefeito de petróleo, em um dos tanques de uma refi-naria, provocou sucessivas explosões, ocasionando outras quinhen-tas mortes e ferindo 4 mil pessoas. Em dezembro, Bhopal. Nem todoevento local, no entanto, gera impactos globais. Carlos Freitas et alii(2000:28), ao citarem análise dos acidentes registrados na base dedados Major Hazard Incident Data Service (MHIDAS), no períodode 1981 a 1986, revelam que mais de 1.400 acidentes químicos am-pliados ocorreram em todo o mundo, o que revela a multiplicidade ea globalidade do problema.

Como recorrer à disciplina de RI para analisar problemas locaiscomo esses? Aparentemente, tais problemas não seriam enfocadoscomo uma preocupação. Concretamente, no entanto, o contexto in-ternacional, interligado e interdependente, não apenas comportaeventos dessa natureza, como os ressalta e lhes confere importânciacrescente e global. É certo que a maioria dos eventos ou catástrofesambientais constitui realidade transfronteiriça. É igualmente certo,entretanto, que há aqueles acidentes industriais ambientais que –mesmo tendo causas e gerando efeitos imediatos no território de umúnico Estado – abrangem elementos internacionais relevantes, que

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ultrapassam os interesses locais, adquirindo, dessa forma, interessegeral e, às vezes, universal. Aliás, é exatamente pelo fato de o mundoapresentar-se cada vez mais interligado que eventos locais, como osacidentes, ganham relevo na contemporaneidade. Eventos aparente-mente localizados não podem ser tratados como assunto domésticoexatamente porque o meio ambiente é uma realidade sem fronteiras.Além disso, há vínculos dos acidentes com a economia global – umavez que resultam de atividades econômicas de grandes corporações –e com a própria sociedade civil – porque seus efeitos provocam a mo-bilização de amplos setores de sociedades locais e nacionais, em de-fesa dos indivíduos afetados.

Veja-se, por exemplo, o caso do acidente ocorrido na cidade de Seve-so, no norte da Itália, em 1976, em que a fusão da válvula de seguran-ça de um reator químico da fábrica Icmesa provocou um vazamentode dioxina. Uma nuvem tóxica cobriu Seveso e outras quatro munici-palidades da região lombarda do país, estendendo-se por 1.970 hec-tares. Este acidente e seus desdobramentos em termos de contamina-ção ambiental e lesões humanas ocasionaram a negociação e a apro-vação de uma norma regional, no âmbito da União Européia. A cha-mada Diretiva de Seveso é considerada um modelo de norma de pre-venção de acidentes químicos. Seveso, assim como Bhopal, guardatraços de globalidade essenciais, o que assegura um impacto norma-tivo a esses acidentes.

É fundamental observar que processos de construção normativa nãosão conseqüências imediatas de cada um dos acidentes. Seveso eBhopal são, na verdade, casos-síntese que desencadearam, em tornode si, extensa e intensa mobilização da sociedade. Devido às caracte-rísticas do processo de industrialização mundial, até a década de1970, constata-se que a maior incidência de acidentes se verificavanos países ditos industrializados. A partir dos anos 1980, as maioresocorrências passam a ser observadas nos países desenvolvidos. Porum lado, o aperfeiçoamento dos processos produtivos, de transporte

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e de armazenagem, associados à mobilização social e à aprovação deleis rígidas, nos países em desenvolvimento, ocasiona a exportaçãode padrões de poluição aos países que iniciam a promoção de seusprocessos de desenvolvimento. A evidência dessas transformaçõesocasionou os debates que contribuíram para reforçar a inclusão dosPrincípios das Responsabilidades Comuns porém Diferenciadas, doPoluidor Pagador e da Precaução, na Declaração do Rio (1992).

Na tentativa de evitar “novos Bhopais” e na esteira daquele processode construção ideacional iniciado em Estocolmo, há mobilizações,em todo o mundo, o que permite refletir sobre o próprio processo deconstrução social do acidente de Bhopal. No momento em que, pormeio da imprensa, tomou-se conhecimento das dimensões amplia-das do acidente indiano e, posteriormente, das lacunas normativasdomésticas e internacionais acerca da possibilidade de imputar res-ponsabilidades e garantir indenizações às vítimas, o acidente nãomais se restringiu às dimensões locais. A principal discussão, decor-rente do evento, referiu-se ao “foro adequado” para lidar com asquestões de culpabilidade e de compensações. Quem representariaas vítimas? Onde julgar a Ucil? Em seu país-sede ou no local da tra-gédia em que se encontravam as vítimas e o passivo ambiental? Essasindagações remeteram, imediatamente após o acidente, a um proble-ma evidente de soberania: para que o governo indiano, como a partedemandante, conseguisse que o caso Bhopal fosse julgado em corteestrangeira, seria necessário que persuadisse essa corte de que a ju-risdição da Índia era incapaz de sanar os litígios, que se assomavamem seu território, de cidadãos contra uma empresa norte-americana.Aliás, analiticamente, esse é apenas um dos problemas de soberaniaque o acidente de Bhopal, com suas quase 3 mil mortes instantâneas,suscita12.

A partir da constatação da existência de um lapso institucional e nor-mativo, há uma intensificação clara do ativismo político em torno docaso. Se, por um lado, já havia indícios da relevância internacional

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daquele acidente local, dado o envolvimento de elementos políticosfundamentais, como o exercício de atividades econômico-comer-ciais de uma empresa multinacional em um país em desenvolvimen-to, a transferência de atividades produtivas perigosas para determi-nado país a fim de abandonar os padrões rígidos de vigilância e de se-gurança, verificados nos países de onde se derivam os processos glo-bais de industrialização, e a mobilização de organismos internacio-nais para o tratamento da segurança química em seus foros; por ou-tro, a incapacidade de um Estado nacional prevenir a tragédia e, pos-teriormente, defender os direitos de seus cidadãos teve o efeito deprecipitar as ações de redes transnacionais de defesa e de empreende-dores de normas (Keck e Sikkink, 1998; Finnemore e Sikkink,1998). É possível citar a atuação de diversos atores internacionais,como a International Organization of Consumers Unions (IOCU) e aInternational Confederation of Free Trade Unions (ICFTU); deagentes indianos, como a Drug Action Network, o Medico FriendCircle, a Afogya Dakshatha Mandal, o Delhi Science Forum, Eklav-ya, Kishore Bharathi, Lok Vignam Sangatana e Karnata Rajya Paris-hath; e de grupos nacionais que, a partir do caso Bhopal, passaram ase preocupar mais de perto com a situação do setor químico em seuspaíses, como a Australian Consumers Association, a US NationalWildlife Federation (NWF), o Worker’s Policy Project e o Highlan-der Center13.

Constata-se a constituição do que Margaret Keck e Kathryn Sikkink(1998) denominaram de padrão bumerangue de influência. As asso-ciações da sociedade civil locais contornaram as fronteiras do Estadonacional, procurando diretamente, no ambiente internacional, alia-dos ou vítimas em potencial que pudessem pressionar aquele Estado,de fora para dentro de suas fronteiras. Trata-se de uma flexibilizaçãoda noção tradicional de soberania estatal, expressa na recanalizaçãoda relação entre indivíduos, Estado e Sistema Internacional (SI).Uma das formas de contornar as fronteiras nacionais, no caso de

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Bhopal, foi a realização de campanhas em que o empreendedor polí-tico, cujas ações compunham aquela rede de defesa, teve papel fun-damental.

Cabe refletir sobre a forma como essas campanhas rearticulam as di-mensões global e local, flexibilizando a noção tradicional de sobera-nia e criando espaços políticos complexos por meio dos quais novasformas de autoridade emergem (Shaw, 2004). Quando discute a inter-relação entre a política ambiental global e a local, no caso das áreasde proteção de florestas canadenses, Karena Shaw (idem) parte dadelimitação de uma estratégia de campanha dos grupos de ativistasque passaram a se ocupar da defesa daquelas áreas. O objetivo, nocaso em questão, é mudar as concepções do mercado, das grandesempresas compradoras de papel e celulose. Almeja-se, sobretudo,tornar inaceitável o consumo de produtos advindos de florestas anti-gas ou ameaçadas de extinção. No caso de Bhopal, não havia um gru-po-líder ou uma estratégia claramente definida. Havia uma diversi-dade de ações que visavam modificar os padrões da indústria quími-ca, principalmente por meio da conscientização da sociedade inter-nacional quanto aos riscos associados aos processos produtivos da-quele segmento da indústria.

Outro Bhopal, em qualquer outro lugar, não seria mais aceitável. É alinguagem dos afetados e dos ativistas, expressão da evolução cogni-tiva apontada anteriormente, que se articula nas campanhas e que trazà tona a questão da responsabilidade corporativa, do direito à infor-mação, da necessidade de se garantir padrões seguros no manejo dassubstâncias químicas, do imperativo de se proibir a exportação de pa-drões de poluição aos países em via de desenvolvimento, da necessi-dade de se submeterem as empresas multinacionais ao direito inter-nacional, do direito das vítimas a indenizações adequadas. Os novosconceitos que surgem desse processo de construção social são umasíntese da norma aprovada e, como tal, passam a compor aquela es-

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trutura ideacional referente à proteção ambiental, estrutura esta que,em primeiro lugar, possibilitou essa emergência conceitual.

A esse respeito, a mobilização gerada, a partir do evento indiano, tevetodos os elementos das táticas de campanha (Keck e Sikkink, 1998)que serviram à transformação daquele acidente local em um fato so-cial de relevo para a política ambiental internacional. Esses elemen-tos incluem políticas de informação, de criação de símbolos, de res-ponsabilidade e de poder. Assim, realizaram-se congressos e reu-niões de expressão mundial, mobilizações em frente às instalaçõesda Union Carbide Corporation (UCC), campanhas pelo boicote aosprodutos dessa empresa multinacional – como as baterias Eveready eos pesticidas Sevin e Temik –, pressão sobre os organismos internacio-nais – como a ONU e a OIT – para aprovação de resoluções com vis-tas à promoção de medidas preventivas. Instituíram-se redes de defe-sa transnacional, relacionadas à tragédia, entre as quais aquela intitu-lada “No-More-Bhopal Network”. Criou-se, ainda, um dia especialem homenagem às vítimas do acidente – 3 de dezembro. Este dia de-veria ser marcado por conferências; seminários para a disseminaçãode informações e promoção de diálogo entre o setor produtivo, go-vernos e a sociedade civil; alertas sobre outros casos potenciais; pres-são sobre a UCC e outras empresas multinacionais do setor para quepublicassem informações acerca dos riscos associados as suas ativi-dades; e campanhas contra a exportação de tecnologias perigosas aospaíses em desenvolvimento. A partir de então, o dia 3 de dezembro fi-cou conhecido como o “Dia de Bhopal” ou, mais recentemente, coma realização da Conferência Mundial das Nações Unidas sobre De-senvolvimento Sustentável (ocorrida em Johannesburgo em 2002) –a Rio+10 –, como o Dia Internacional de Ação contra o Crime Cor-porativo. Em 2003, foram cinqüenta mobilizações, em dezesseispaíses, no âmbito da Campanha Internacional pela Justiça em Bho-pal, organizada por uma coalizão de ativistas. No Brasil, em 2004, oGrupo de Estudos Tripartite da Convenção 174 da OIT promoveu na-

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quele dia eventos em Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Salvadore São Paulo, em memória aos vinte anos do acidente e como forma dereflexão sobre o compromisso de todos os setores da sociedade coma prevenção de acidentes ampliados.

O amadurecimento das idéias referidas ao desenvolvimento susten-tável foi fundamental para que a atuação de ONGs e de redes de defe-sa transnacionais obtivesse o apoio da sociedade internacional. Foifundamental, sobretudo, na transformação de mais uma ocorrêncialocal em um fato social de contornos socioeconômico-políticos in-ternacionais. A internacionalização da PAI viabilizou aquela atuaçãoe a possibilidade de se destacar elementos de globalidade naqueleevento local. Será o Princípio da Precaução que balizará, posterior-mente, a defesa por instrumentos normativos eficientes para a pre-venção de novos Bhopais. Em especial, em localidades receptoras depadrões poluidores e inadequados de produção, estocagem e trans-porte de substâncias químicas. Aperfeiçoavam-se as percepções e re-flexões que construíram o Princípio do Poluidor Pagador, que tradu-zia o repúdio da sociedade internacional à fraude, ao embuste, à ilu-são promovidos pelas empresas multinacionais com relação a seusprocessos produtivos. Foi a partir da constituição desses elos de diá-logo, pressão e ativismo, que unem o acidente ao debate político in-ternacional, que a indústria química passou a adotar, em todo o mun-do, programas de atuação responsável14.

Aqueles agentes procuraram transformar os termos e a natureza dodebate político internacional, criando, dessa forma, novos conceitose linguagem. Percebe-se que os grupos sociais ajudam a transformara prática da soberania nacional, a atuação das OIs, além do própriosistema internacional. Quanto à linguagem e aos conceitos, obser-vou-se que as redes influenciaram o estabelecimento da agenda polí-tica internacional – muitas vezes determinadas por comunidades deespecialistas –, ao moldarem a questão da segurança química, tor-nando-a compreensível a públicos-alvo, atraindo a atenção e incenti-

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vando a ação da sociedade. Trouxeram à tona do debate político no-vas idéias, discursos e normas, contribuindo para alterar as percep-ções dos Estados e demais atores sociais sobre suas próprias identi-dades, interesses, preferências e posições discursivas; concorrendo,ainda, para modificar procedimentos, políticas e comportamentos.As empresas multinacionais, neste caso, também exerceram influên-cia sobre a norma negociada, uma vez que lhes interessava a defini-ção de contornos adequados ao instrumento, que minimizassem cus-tos e amenizassem deveres e obrigações, tanto quanto fosse possível.

Evidencia-se que a norma gerada tem caráter constitutivo porque de-termina uma nova realidade social tanto para a sociedade internacio-nal, quanto para as empresas multinacionais do setor químico que ti-veram que mudar seus padrões de relacionamento com a sociedade ecom o meio ambiente. Quanto à linguagem, ainda, constata-se, nosvinte anos de amadurecimento da PAI, um aperfeiçoamento concei-tual dos agentes sociais envolvidos, mas também dos próprios agen-tes políticos, alvo das estratégias de disseminação.

Esta visão mais social do ambiente internacional permite caracteri-zar o acidente químico de Bhopal como um fato social, construído apartir de redes cognitivas criadas por agentes sociais a fim de ofere-cer significado ao mundo material. A construção social do acidente éviabilizada pelo amadurecimento de uma conscientização ambiental(entre 1972 e 1992) ou pela anuência coletiva em torno do desenvol-vimento sustentável e da segurança química. Defende-se que essaconscientização se intensificou, resultando em significativa mobili-zação social, a partir da repetição – primeiro nos países industrializa-dos e, posteriormente, naqueles em via de desenvolvimento – daque-le tipo de evento. Daí decorre que os mais influentes agentes de pro-pagação das idéias enfocadas neste trabalho tenham sido as organi-zações da sociedade civil, novos atores sociais da cena internacionalque contribuíram para oferecer o contorno social ao evento e para

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sintetizar aquelas idéias na norma gerada. Na adoção desse tipo devisão, é fundamental, por um lado, incorporar o contexto cultural einstitucional à análise da construção social e normativa; e, por outro,recorrer à evolução cognitiva evidenciada na construção do acidentecomo um fato social. Por isso, recorreu-se à reconstrução da estrutu-ra de idéias referidas ao meio ambiente e à segurança química. Mere-ce destaque, também, nesse mundo social enfocado, os processos deaprendizagem de novas idéias e conceitos, entendidos como a ado-ção, por parte dos decisores, de novas interpretações da realidade, namedida em que estas são criadas e introduzidas no sistema políticopelos agentes sociais. Nesse processo são selecionadas premissasepistêmicas e normativas, que se revelarão robustas conforme foremcompartilhadas intersubjetivamente entre as instituições.

A linguagem é, sem dúvida, fonte de significados para a compreen-são da gênese da norma. É a estrutura de interação discursiva quecontrola os significados sociais: os fatos institucionais somente ad-quirem sentido quando são considerados os contextos sociolingüísti-cos em que estão inseridos. Passa pela linguagem a investigação decomo e por que determinadas idéias se tornam politicamente domi-nantes e são sintetizadas em normas constitutivas.

Implicações Normativas

Globais do Evento Local: A

Construção Social da

Convenção 174 da OIT

Normas, identidades e interesses são mutuamente constitutivos. Issoporque as normas estão incrustadas em estruturas sociais e ideacio-nais que demarcam valores e intencionalidades coletivas. Para secompreender o processo de construção normativa, faz-se necessáriorecorrer à análise das ações de agentes relevantes e, também, dasidéias defendidas naquele processo, além de localizar agentes e es-trutura em contextos históricos específicos. As normas resultam em

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práticas; são a síntese das idéias em debate e das ações dos diferentesatores sociais. Indagar sobre que normas existem é indagar sobre queidéias prevaleceram, quem eram seus proponentes e a partir de quebase material essas normas emanaram. Isso porque as normas nãosurgem em vácuos normativos ou institucionais. Surgem, outrossim,em contextos de efervescência ideacional em que prevalece a disputapela prerrogativa de se determinar as características da norma consti-tutiva negociada. A linguagem e a estratégia de disseminação deconceitos são essenciais para a predominância de plataformas orga-nizacionais específicas e para a conseqüente concretização de deter-minados projetos normativos. Afinal, “[n]ormas não surgem donada. São ativamente construídas por agentes que têm noções conso-lidadas sobre que tipos de comportamentos são apropriados ou dese-jáveis na comunidade” (Finnemoree Sikkink, 1998:896). Assim,neste artigo, defende-se que não é possível prescindir do exame deum contexto ideacional e normativo mais amplo, em que se insere oacidente e em que se negocia a Convenção 174 da OIT. Tampouco épossível prescindir do exame da atuação dos empreendedores naque-le contexto, uma vez que são esses agentes que chamam a atençãopara determinadas questões às vezes aparentemente sem grande rele-vo para as relações internacionais – como um acidente e suas impli-cações sociais, políticas, jurídicas e econômicas.

O acidente químico de Bhopal adquiriu contornos sociais devido, emgrande medida, à atuação de ativistas e da própria indústria que trans-forma seu discurso, assimilando a noção de responsabilidade social.Os ativistas não apenas participam da construção social do acidente,como também tentam ampliar as possibilidades de gênese de normas –principalmente onde há lacuna institucional e normativa, como nocaso observado – e, posteriormente, o escopo da mesma. As empresasmultinacionais, por sua vez, também influenciam a definição dos con-tornos da norma a fim de tentar construir normas das quais possam be-neficiar-se, quer pela definição mais amena de deveres e obrigações

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para com o meio ambiente e a saúde humana, quer pela determinaçãodos menores custos possíveis. É essencial, nesse sentido, perceber ocaráter constitutivo das normas negociadas. Uma nova realidade deli-neia-se para a sociedade internacional e para as empresas multinacio-nais que deverão modificar seus padrões de relacionamento comaquela mesma sociedade e com o meio ambiente circundante.

Para tanto, utilizam linguagem que nomeia essas questões, oferecen-do-lhes contornos sociais a partir de quadros cognitivos específicos.No caso enfocado, foi a partir desses quadros que as sociedades in-dustrializadas perceberam o acidente de Bhopal como inaceitável enão passível de repetição. Bhopal não era um caso isolado, em umaterra distante, resultante de condições e fatores endêmicos de paísesem desenvolvimento. A construção de percepções é componente es-sencial das estratégias políticas daqueles empreendedores, uma vezque, a partir dos entendimentos instituídos, atingem o público e cri-am novas formas de se compreender a realidade. Na construção da-queles moldes de conhecimento, os empreendedores de norma estãosempre diante de compreensões alternativas quanto ao que é apropri-ado e ao que interessa a suas organizações. Assim, é possível afirmarque as normas não surgem de vazios institucionais, mas de espaçosem que ocorre o embate político entre diversas percepções sobre qualseria a norma mais adequada a se criar. A nova norma emerge de umaestrutura ideacional, institucional e normativa: as idéias, as institui-ções e as normas que a antecederam ditam os padrões do que é apro-priado ou não.

Os empreendedores de norma, sem dúvida, necessitam de platafor-mas organizacionais a partir das quais promoverão determinadaspercepções sobre as normas a serem adotadas. Nem sempre, no en-tanto, esses empreendedores atuam por meio de organizações da so-ciedade civil ou de redes de ativistas, compostas por essas organiza-ções. Muitas vezes, atuam em organismos internacionais que, aindaassim, contam com propósitos e agendas mais abrangentes que a pro-

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moção específica de normas15. De qualquer forma, seja qual for a or-ganização ou a plataforma adotada, o empreendedor não pode pres-cindir do apoio dos atores estatais – entes que negociam e firmam asnormas – para endossar a proposta normativa apresentada ou, ainda,para incluir, nas agendas governamentais, a adesão posterior àquelanorma. No máximo, podem persuadi-los a avaliar e, posteriormente,adotar determinada opção normativa. Esse processo de aprendizadoinstitucional não está baseado em princípios externos coercitivos,mas em elementos de convencimento sobre a melhor alternativa depolítica a se adotar. A formação das identidades e dos interesses dosatores estatais pode ser verificada somente nesse contexto ideacio-nal, institucional e normativo. Tal é o caso, claramente, da negocia-ção da Convenção 174 da OIT.

Neste trabalho, não se pensou a ligação entre o acidente e a norma deforma unívoca. Tanto é assim que se teve o cuidado de atentar para ocontexto estrutural mais amplo e para a ocorrência de outros aciden-tes. Isso porque os acidentes contribuíram para a ampliação da cons-ciência global quanto aos perigos associados à produção de substân-cias químicas, para a reestruturação da indústria química em todo omundo, bem como para a negociação de diversas normas ambientais.Optou-se, no entanto, a fim de melhor estudar os processos de cons-trução social nas RI, em especial na área ambiental, por tratar de ma-neira mais específica essa questão. Em outras palavras, optou-se poranalisar a construção normativa nas RI a partir da relação entre o aci-dente de Bhopal e a Convenção 174 da OIT.

O impacto do acidente – em termos de perdas humanas e de consci-entização quanto aos riscos associados àquelas atividades industriaise à necessidade de se gerarem informações fidedignas – serviu parapavimentar o caminho para a adoção de medidas que pudessem evi-tar a reincidência de eventos daquela magnitude. No âmbito interna-cional, foi negociada a Convenção 174 da OIT para a prevenção deacidentes industriais maiores. Em 1993, esta Convenção foi assinada

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e conta, hoje, com onze ratificações16 dos seguintes países: Albânia,Arábia Saudita, Armênia, Bélgica, Brasil, Colômbia, Estônia, Líba-no, Holanda, Suécia e Zimbábue. De acordo com o item 2 do Artigo24 daquele instrumento internacional, a entrada em vigor do mesmoocorreu doze meses após a data em que se registraram as ratificaçõesde dois membros da OIT. A Convenção 174 é um instrumento essen-cialmente preventivo, cujo esboço reflete a consolidação, na PAI, doprincípio da precaução. Insta aos países que elaborem legislações na-cionais mais rígidas para a prevenção de acidentes ampliados.

Por que a OIT passa a ser o fórum para a negociação de uma normapreventiva de novos Bhopais e qual a relação da Organização com oambiente social internacional analisado? Desde a Conferência deEstocolmo, e esse foi um de seus objetivos, pretendia-se promoveruma abordagem mais coordenada para o tratamento das questões li-gadas ao meio ambiente. Constituiu-se, naquela Conferência, oPNUMA – aliás, um de seus resultados mais duradouros. No entanto,com a efervescência e o amadurecimento da consciência ambientalmundial e com a conseqüente ampliação e aprofundamento da coo-peração internacional nessa área, faltava àquele Programa das Na-ções Unidas o peso institucional exigido para a coordenação efetivadas agendas ambientais dentro do Sistema da ONU. Se a cooperaçãointernacional na área de fato se intensificou, tornaram-se evidentes,também, várias lacunas institucionais no âmbito da ONU. A coorde-nação política é um tema que extrapola a área ambiental; a dificulda-de de se empreenderem ações cooperativas e complementares nessesetor, entretanto, é emblemática da realidade de superposição de fun-ções e de desperdício de esforços em que se tornou a cooperação fun-cional no Sistema da ONU. Ainda assim, é preciso destacar que essarealidade está presente nas considerações de reforma deste Sistema.A proposta de 1997 do secretário-geral de reforma administrativa daOrganização estabelece, entre várias prioridades, a ampliação da co-ordenação de ações no Sistema.

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A Agenda 21 (1992), em seu capítulo 19, incorpora também propos-tas destinadas a reforçar as ações coordenadas que promovem a segu-rança química a níveis internacional e nacional. A colaboração naárea de segurança química tem impulso considerável a partir da apro-vação daquele documento com a constituição, em 1980, do PISQ.Outra expressão da coordenação das políticas, no Sistema, para essaárea, é o Inter-Organization Programme for the Sound Managementof Chemicals (IOMC). Estabelecido, em 1995, este programa objeti-va fortalecer a cooperação entre os organismos internacionais envol-vidos no campo da segurança química, possibilitando, também, o in-cremento dos programas de cada organismo para esse campo. Pro-move a coordenação de políticas e atividades, desenvolvidas conjun-ta ou separadamente, a fim de se alcançar padrões sustentáveis de uti-lização das substâncias químicas em relação à saúde humana e aomeio ambiente. Está composto pela OIT, pela FAO, pelo PNUMA,pela Organização das Nações Unidas para o DesenvolvimentoIndustrial (em inglês, UNIDO), pela Organização para Cooperação eDesenvolvimento Econômico (OCDE) e pela OMS. Em 1997, oInstituto das Nações Unidas para o Treinamento e a Pesquisa (em in-glês, UNITAR) associou-se ao Programa, que conta, ainda, com aparticipação, como observadores, do Programa das Nações Unidaspara o Desenvolvimento (PNUD) e do Banco Mundial.

Esses seriam os núcleos da cooperação e da colaboração internacio-nal para o manejo ambientalmente saudável dos produtos químicos.Na verdade, a possibilidade de se delinearem planos de ação conjun-ta entre o PNUMA, a OIT e a OMS já havia sido identificada pelo Co-mitê Preparatório da Rio-92. Este Comitê convidou o PISQ a apontarmecanismos intergovernamentais para a avaliação de risco e o geren-ciamento de substâncias químicas. Assim é que se realiza, em Lon-dres, em dezembro de 1991, uma reunião de especialistas a fim deconceber uma estratégia internacional e uma proposta para o estabe-lecimento de um mecanismo intergovernamental. Dessa reunião, re-

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sultou uma recomendação do Fórum Intergovernamental de Segu-rança Química (FISQ) que se transformou em um instrumento amplode cooperação e de fomento, voltado para o desenvolvimento de es-tratégias e parcerias entre os Estados, as OIs e os organismosnão-governamentais na avaliação dos riscos, dos pontos de vista eco-lógico e humano, e na gestão segura dos produtos químicos.

Tanto as diretrizes preconizadas pelo capítulo 19 da Agenda 21(1992) quanto os debates ocorridos no FISQ englobam questões re-lacionadas a estratégias de gerenciamento químico, classificação erotulagem, fortalecimento institucional e procedimentos para a trocade informações seguras sobre o risco de substâncias químicas, esto-ques obsoletos de pesticidas, sistemas nacionais para a prevenção deacidentes industriais ampliados e para o preparo e a resposta a emer-gências, inventário de emissões, prevenção de tráfico ilegal de pro-dutos tóxicos e perigosos, harmonização de princípios para a avalia-ção de risco, classificação e código de conduta para a distribuição e ouso de pesticidas. Diversos tratados internacionais resultaram da dis-cussão e da institucionalização política, em âmbito internacional, en-tre os quais a Convenção 174 da OIT.

Percebe-se, pela enumeração dessa diversidade de mecanismos, queas OIs desempenham papel atuante na área da segurança química. Aolongo do tempo, a OIT, entre essas OIs, tornou-se uma agência líder nadiscussão internacional desses temas, juntamente com o PNUMA e aOMS, cada qual, em seu campo de atuação, procurando padronizar eregulamentar a utilização de substâncias químicas. A OIT é uma agên-cia especializada da ONU, fundada em 1919 e assimilada pelo Siste-ma da ONU em 1946. Objetiva a promoção da justiça social e o reco-nhecimento, a nível internacional, de direitos laborais e humanos. For-mula padrões internacionais de trabalho, sob a forma de Convenções eRecomendações. Em decorrência da sua constituição, em que cadaEstado-membro é representado por delegados do governo, do setor pa-tronal e de sindicatos, a OIT tornou-se permeável ao ambiente social

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internacional em que as OIs estão inseridas. É preciso destacar, nessesentido, o processo de aprendizagem a que estão submetidos os deci-sores de organizações internacionais como a OIT. Esse processo é oque conecta o organismo à estrutura ideacional analisada neste traba-lho. As pressões externas para que esses organismos utilizem sua auto-ridade racional-legal (Barnett e Finnemore, 1999), fonte criadora denormas e, conseqüentemente, de conhecimento, desencadeiam pro-cessos de aprendizagem que, por sua vez, mobilizam as burocracias noestabelecimento de tarefas comuns, na definição de novas categoriasde atores, no delineamento de novos interesses e, sobretudo, na deter-minação de padrões de organização política.

Especificamente quanto ao acidente de Bhopal, na sessão número229 do Conselho de Administração, ocorrida entre 25 de fevereiro e1º de março de 1985, o diretor-geral da OIT, Sr. Francis Blanchard,apresentou o relatório intitulado Issues of Concern to the ILO Ari-sing out of Recent Industrial Accidents in Bhopal and Elsewhere.Este relatório oferece um panorama das pressões externas, vindas deativistas políticos, para se prevenir ocorrências como aquela de Bho-pal.

“Desde a tragédia de Bhopal, o Escritório vem recebendo várias cartas, con-clamando à adoção de medidas por parte da OIT. Receberam-se duas repre-sentações da International Confederation of Free Trade Unions (ICFTU) eda World Federation of Trade Unions (WFTU). A ICFTU propôs que se rea-lizasse uma investigação independente das causas do desastre, em conso-nância com a Declaração Tripartite da OIT sobre Multinacionais; além dis-so, que se organizasse, em caráter de urgência, uma reunião internacionaltripartite de especialistas a fim de examinar os perigos a que estão sujeitostrabalhadores e comunidades vizinhas às fábricas que produzem substânciasquímicas e, posteriormente, de desenvolver padrões apropriados. A WFTUtambém propôs que a OIT investigasse, em cooperação com o governo daÍndia e o movimento sindical daquele país, as causas do acidente e a respon-sabilidade da Union Carbide no que se refere à observância de padrões desegurança. Ademais, a OIT deveria examinar os aspectos relacionados à se-gurança das tecnologias utilizadas na manufatura de produtos químicos pe-rigosos, como os pesticidas, em cooperação com a OMS, o PNUMA e ou-

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tras agências da ONU [...]. A OIT foi informada, pela International Federa-tion of Chemical, Energy and General Workers' Unions, das propostas en-viadas ao governo indiano para que se apontasse uma comissão indepen-dente de inquérito, composta de representantes da OIT e da OMS, para in-vestigar o acidente. A OIT recebeu, também, comunicação do CentralCouncil of Bulgarian Trade Unions referindo-se aos aspectos corporativosdo acidente e demandando intervenção apropriada da OIT. O Escritório re-cebeu um grande número de petições de membros do grupo francês RéseauSolidarité com o mesmo tipo de conteúdo” (Governing Body/InternationalLabour Organization, 1985:3).

Nesse relatório, o diretor-geral insiste em lembrar que Bhopal não éum evento isolado, enumerando outros acidentes semelhantes (Flix-borough, Inglaterra, em 1974; Seveso, Itália, em 1976; Cidade doMéxico, México, em 1984) que também deveriam ser consideradosna elaboração de medidas preventivas de acidentes ampliados. A par-tir das discussões sobre o desastre de Bhopal, a Conferência Interna-cional do Trabalho adotou, em junho de 1985, uma resolução sobre apromoção de medidas contra os riscos de acidentes, ocasionadospela utilização de substâncias e procedimentos perigosos por parteda indústria química. Em decorrência dessa resolução, a OIT deu iní-cio a uma série de ações, como: (1) a organização de reuniões ad-hocsobre o tema; (2) a preparação de um manual sobre o controle de ris-cos de acidentes maiores; (3) a elaboração de um repertório de reco-mendações práticas sobre a prevenção de acidentes industriais maio-res; (4) a organização de seminários nacionais e regionais sobre otema; (5) o oferecimento de assessorias técnicas para o estabeleci-mento de sistemas nacionais de controle de risco de acidente; (6) odesenho e a execução de projetos de cooperação técnica. Negoci-ou-se, posteriormente, a Convenção 170 sobre substâncias químicase elaborou-se e aprovou-se a Recomendação 177 sobre substânciasquímicas, ambas no ano de 1990.

Os desdobramentos do acidente de Bhopal, em termos de perdas hu-manas, de passivo ambiental, de ativismo político, demonstraram

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para as nações e, sobretudo, para as burocracias detentoras de autori-dade racional-legal, que seria necessário coordenar esforços a níveisnacional e internacional para garantir a proteção aos trabalhadores,às populações e ao meio ambiente. No âmbito da OIT, foi instituídaem 1992 pela Conferência Internacional do Trabalho a Comissãopara a Prevenção de Desastres Industriais. A primeira discussão,com vistas à elaboração de um instrumento internacional para a pre-venção de acidentes industriais ampliados, teve lugar na septuagési-ma nona reunião daquela Conferência, ocorrida em Genebra, em1992. Naquela ocasião, aprovaram-se propostas para a elaboração deuma Convenção e uma Recomendação relativas à prevenção de aci-dentes industriais ampliados. Concordou-se em inscrever a segundadiscussão sobre a adoção daqueles instrumentos na próxima reuniãoordinária da Conferência. Nesse ínterim, e de acordo com o artigo 39do Regulamento da Conferência, o Escritório Internacional do Tra-balho preparou e enviou aos governos dos Estados-membros um in-forme – Informe IV (1), intitulado “Prevenção de Acidentes Industri-ais Maiores” – em que constava um projeto de Convenção e um deRecomendação. Cinqüenta e sete Estados enviaram emendas ou ob-servações àquelas propostas, sendo que 36 declararam haver consul-tado as organizações mais representativas de empregadores e traba-lhadores. Essas propostas refletiam os interesses e as identidades dosatores estatais, e aquelas emendas serviram de sustentação à discus-são sobre as propostas de texto que viria a se tornar a Convenção 174.

O texto da Convenção foi aprovado na reunião subseqüente da Con-ferência. Era a síntese do processo de construção social que culminacom a transformação de Bhopal em um fato social relevante para aPAI. Bhopal expressava, em grande medida, os anseios das comuni-dades afetadas naquela localidade e em outras tantas que já haviamsido acometidas por tragédias semelhantes nos vinte anos de amadu-recimento de uma consciência ambiental global. Visava-se, com anegociação de uma norma internacional, no âmbito da OIT, prevenir

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novas ocorrências, sobretudo com as dimensões de Bhopal, e mini-mizar os riscos e os efeitos de novos acidentes ampliados; além dis-so, era imprescindível definir a responsabilidade de empregadores,de autoridades competentes com relação ao preparo, em caso deemergências, dos Estados exportadores; bem como o direito e asobrigações dos trabalhadores e de seus representantes.

Considerações Finais

Teoricamente, a análise proposta por este estudo partiu de uma arti-culação de conceitos do construtivismo para observar os laços queunem o acidente de Bhopal a uma estrutura ideacional, normativa einstitucional mais ampla, referente ao desenvolvimento sustentável.Essa articulação pode ser visualizada, esquematicamente, a seguir.

Essa articulação conceitual foi útil para refletir sobre a relação deco-constituição entre estrutura e eventos nas relações internacionais.Se, por um lado, os agentes transformam o evento material em fatosocial, a partir do amadurecimento das idéias, normas, instituiçõesque compõem aquela estrutura ou de uma evolução cognitiva; poroutro, aquela estrutura é transformada por esse processo de constru-ção social, em que novos conceitos, novas categorias de direitos e deatores são constituídos. Essa relação de co-constituição passou a serpercebida por meio da relação entre o local e o global na PolíticaAmbiental Internacional. Mais precisamente, a ilustração esquema-tiza a forma como parte dos protestos locais se consolidaram comouma norma global, uma vez que se enfocaram apenas os impactosnormativos para a segurança química verificados em um organismointernacional que trata da regulamentação na área do trabalho.

Os ativistas políticos ou empreendedores de norma, reunidos nas re-des de defesa transnacional, são acionados na medida em que, após aocorrência do evento local, revelam-se lacunas normativas ou lapsosde exercício de soberania estatal. Os cidadãos afetados, forçosamen-

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te, tiveram que recorrer a essas redes a fim de aceder aos recursos depoder disponíveis no SI, chamando atenção da sociedade internacio-nal para o acidente químico que os havia afetado. O canal estatal en-contrava-se bloqueado, e uma resposta imediata à tragédia urgia.Nesse processo de recanalização entre cidadãos, Estados e SI, ga-nham relevo as campanhas e a linguagem de persuasão, concebidaspelas redes. Desencadeia-se um embate entre plataformas organiza-cionais a fim de determinar as diretrizes do processo de aprendiza-gem acerca daquele evento e, sobretudo, a síntese que comporia umanorma que visasse prevenir aquele tipo de ocorrência.

Esse processo de aprendizagem abarcou toda a sociedade internacio-nal; entretanto, neste trabalho, enfocou-se apenas a forma como aOIT teve sua autoridade racional-legal pressionada por esse processode aprendizagem, no caso institucional. Na verdade, procurou-se en-fatizar que, naquele processo de evolução cognitiva, que vai da Con-ferência de Estocolmo de 1972 à Conferência do Rio de 1992, o temada segurança química consolidou-se como um item da agenda políti-ca da PAI. A Convenção 174 foi negociada sob a sombra da tragédiade Bhopal, mas é o resultado do amadurecimento ideacional, norma-tivo e institucional abordado neste trabalho; da mesma forma, o pro-cesso de construção social de Bhopal somente foi possível por contadesse amadurecimento. À Política Ambiental Internacional, após aocorrência do evento local e da negociação da norma global, acres-centaram-se novas categorias de atores, conceitos e procedimentos.

Em última instância, o processo de construção enfocado na área am-biental lança luz sobre novas fontes normativas e, sobretudo, sobrenovas formas de exercício da política internacional, em que o concei-to de soberania, baseado na territorialidade, é necessariamente rea-valiado.

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Notas

1. A maioria das vítimas vivia em favelas ao redor da fábrica. Quando ocorreuo acidente, ao soar o alarme de emergência, os moradores não imaginavam quese tratava de uma catástrofe. Isso porque a mesma sirene era usada para anunciarmudança de turnos de trabalho na planta (Cummings, 1986:110). Para uma in-vestigação jornalística consistente sobre o acidente e suas conseqüências, con-sultar Lapierre e Moro (2002).

2. Segundo dados do relatório do Greenpeace, intitulado Crimes AmbientaisCorporativos (disponível em: <http://www.greenpeace.org.br/toxicos/pdf/cor-porate_crimes.pdf>), a cada dois dias, uma pessoa morre, ainda em conseqüên-cia daquele evento. As principais doenças que afetam a população são: fibrosepulmonar, problemas de visão, bronquite asmática, tuberculose, falta de ar, per-da de apetite, fortes dores no corpo, ciclos menstruais irregulares, febre recor-rente, tosse persistente, desordens neurológicas, fadiga, cansaço, ansiedade edepressão. Ainda segundo o relatório do Greenpeace, muitas das crianças quenasceram após o desastre enfrentam problemas de crescimento e distúrbios hor-monais. Verificam-se, ainda, aberrações genéticas na população exposta que in-dicam grande probabilidade de má-formação congênita nas próximas gerações.

3. Há uma discussão a respeito da adequação do termo “acidente maior”, ado-tado internacionalmente pela Diretiva de Seveso (<http://www.europa.eu.int/eur-lex/pt/>), pela Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho(OIT) (<http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convde.pl?C174>) e pela Conven-ção sobre os Efeitos Transfronteiriços de Acidentes Industriais (<http://www.unece.org/env/teia/text.htm>). No Brasil, optou-se pelo conceito de acidenteampliado para designar “eventos agudos, como explosões, incêndios e emis-sões nas atividades de produção, isolados ou combinados, envolvendo uma oumais substâncias perigosas com potencial para causar simultaneamente múlti-plos danos, sociais, ambientais e à saúde física e mental dos seres humanos ex-postos” (Freitas, Porto e Machado, 2000:28) por se considerar que este expressamais adequadamente a possibilidade de ampliação espacial e temporal das con-seqüências desses eventos para a saúde humana e para o meio ambiente.

4. Para abordagem tradicional do tema ambiental pela literatura de regimes,ver Young (1989).

5. Sobre o tema da causalidade das idéias, ver Yee (1996).

6. A caracterização do acidente como um fato social tem inspiração na obra deSearle (1995).

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7. A segurança química refere-se à prevenção dos efeitos adversos, para a saú-de humana e para o meio ambiente, decorrentes da produção, armazenagem,transporte, manuseio e descarte de produtos químicos. Acredita-se na existên-cia de quase 10 milhões de substâncias químicas das quais cerca de 100 mil sãode uso difundido. Dessas, apenas uma parte reduzida foi submetida à avaliaçãode risco. Sobre o tema “Saúde e Ambiente”, ver o site da OrganizaçãoPan-Americana da Saúde (OPAS), disponível em <http://www.opas.org.br>.

8. Para uma abordagem sócio-histórica da evolução do ambientalismo global,ver McCormick (1989).

9. Conhecida como Rio- 92 ou pela sigla UNCED, que substitui a nomencla-tura inglesa United Nations Conference on Environment and Development.

10. A globalização da temática ambiental, na verdade, é um processo contí-nuo de construção ideacional do qual merecem destaque dois outros marcos ins-titucionais: a Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas para re-visão e avaliação da implementação da Agenda 21 (Nova Iorque, junho de1997), em seguimento à Rio-92, a Rio+5; e a Conferência Mundial das NaçõesUnidas sobre Desenvolvimento Sustentável (a United Nations World Summiton Sustainable Development – WSSD), ocorrida em 2002, em Johanesburgo – aRio+10. Em ambos os eventos, há uma preocupação generalizada em resgatar erealimentar o momentum global vivido pela temática ambiental, com a realiza-ção da Conferência do Rio de Janeiro de 1992. Não apenas isso: é clara a inten-ção dos líderes mundiais e da sociedade civil global de vocalizar uma mensa-gem de ativismo e de produção de resultados no que se refere à assimilação dasdiretrizes contidas na Agenda 21 (1992) e à ratificação de acordos essenciaispara a construção normativa da área – o Protocolo de Kyoto, em especial.

11. A noção de futuridade abarca as preocupações com os efeitos futuros deiniciativas políticas ou normativas, na área ambiental. Mais especificamente,trata-se da preocupação com as gerações futuras que corrobora a idéia de que épreciso fortalecer o princípio da precaução (Soares, 2003:37-38).

12. Ver Cummings (1986), Rosencranz (1988), Sax (1985) e Abraham e Abra-ham (1991).

13. Para as diversas estratégias adotadas pelos movimentos sociais em repú-dio à tragédia de Bhopal, ver <http://www.bhopal.net> e o Report of the Inter-national Confederation of Free Trade Unions (ICFTU) Mission to Study theCauses and Effects of the Methyl Isocyanate Gas Leak at the Union CarbidePesticide Plant in Bhopal, India, on December 2nd/3rd, 1984, disponível em<http://www.bhopal.net/documentlibrary/unionreport1985.html>. Ver aindaIOCU (1985).

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14. Os embates entre ativistas políticos e empresas mundiais mantêm-se. Ademanda do Greenpeace pela construção de mecanismos normativos que tra-tem de crimes corporativos e não apenas de atuação responsável pode ser vistaem <http://www.greenpeace.org.br/toxicos/pdf/corporate_crimes.pdf>.

15. Nem todos os organismos internacionais estão desenhados para a promo-ção de normas, mas alguns, como o Banco Mundial, contam com a vantagem dedispor de recursos e de poder para exercer pressão em prol de determinadas op-ções normativas (Finnemore e Sikkink, 1998:900).

16. Para lista atualizada das ratificações a essa norma, ver <http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/ratifce.pl?C174>.

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Resumo

O Local e o Global na Estrutura daPolítica Ambiental Internacional:A Construção Social do AcidenteQuímico Ampliado de Bhopal e daConvenção 174 da OIT

Neste artigo, adota-se a abordagem construtivista das Relações Internacio-nais (RI) para analisar o impacto normativo internacional do acidente quí-mico de Bhopal, privilegiando-se o papel constitutivo da ação humana naPolítica Ambiental Internacional (PAI). Emprega-se articulação de concei-tos construtivistas, útil na visualização da estrutura em que está inserido oevento local e, também, do processo de construção social tanto do eventoquanto da norma internacional que precipitou.O pressuposto é o de que pre-valece a co-constituição entre estruturas e agentes – responsáveis pela cons-trução social do evento – e de que, portanto, não se pode prescindir desseselementos, tampouco dos elos que os unem. Almeja-se, por um lado, com-preender a maneira pela qual o evento local é construído socialmente, tendopor referência a estrutura de idéias e de normas, referidas à proteção ambi-ental e ao desenvolvimento sustentável; e, por outro, como a ocorrência lo-cal gera impactos políticos, sociais e normativos em nível global. Assim,evidenciam-se elementos de globalidade, pertencentes ao evento local, so-bretudo quando se verifica um processo de amadurecimento ideacional enormativo que tem como marcos políticos a Conferência de Estocolmo so-bre o Meio Ambiente Humano de 1972 e a Conferência das Nações Unidassobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, ocorrida no Rio de Janeiro, em1992. Assim, destaca-se o contexto cultural e institucional da cena ambien-tal como um todo, evidenciando-se o veio condutor do processo de constru-ção social enfocado: a relação local/global na área ambiental. Focaliza-se,também, o papel da Organização Internacional do Trabalho (OIT) comoagência líder na discussão internacional da segurança química a fim de indi-car por que a construção normativa enfocada se verifica no fórum daquelaOrganização Internacional (OI).

Palavras-chave: Relações Internacionais – Política Ambiental Interna-cional (PAI) – Construtivismo – Bhopal– Convenção 174 da OIT – RelaçãoLocal/Global

Aletheia de Almeida Machado

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Abstract

The Local and the Global in theInternational EnvironmentalPolitics Structure: The SocialConstruction of the Bhopal MajorChemical Accident and the ILOConvention 174

The present article utilizes the constructivist approach of InternationalRelations (IR) to analyze the international normative impact of the Bhopalchemical accident, focusing on the constitutive role of the human action onthe International Environmental Politics (IEP). It adopts an articulation ofconstructivist concepts, useful to visualize the structure in which the localevent is embedded, as well as the social construction process of either theevent and the international norm launched. The assumption is that aco-constitution relation between structure and agents, who are responsiblefor the social construction of the event, is preponderant and that,consequently, it is impossible to exclude these elements or their connectinglinks from the analysis. The article aims at understanding, on the one hand,the way in which the event is socially constructed, referring to theideational and normative structure of environmental protection andsustainable development; and, on the other, how the local event producespolitical, social and normative impact at international level. As a result, theglobal features of local events become evident, specially considering theideational and normative fulfillment of an environment consciousness,whose political milestones are the Stockholm 1972 United NationsConference on the Human Environment and the 1992 United NationsConference on Environment and Development, held in Rio de Janeiro.Therefore, the article emphasizes the cultural and institutionalenvironmental context as whole, pointing out the local/global relationship.It also focuses on the role of the International Labour Organization (ILO) asa leader agency in the chemical safety field, in an attempt to indicate whythe normative construction process has taken place on the forum of thatInternational Organization (IO).

Key words: International Relations – International Environmental Poli-tics (IEP) – Constructivism – Bhopal – ILO Convention 174 – Local/GlobalRelations

O Local e o Global na Estrutura da Política

Ambiental Internacional...

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Autores

Aletheia de Almeida Machado Doutoranda em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica (IRI/PUC-Rio), professora da graduação em Relações Internacionais do IRI/PUC-Rio e pesquisadora visitante da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)

Antonio Jorge Ramalho da Rocha Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Fabiano Mielniczuk Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professor e coordenador da pesquisa Rússia e Segurança Internacional na Unilasalle – RJ.

Igor Abdalla Medina de Souza Mestre em Relações Internacionais pelo IRI/PUC-Rio e professor do IRI/PUC-Rio.

Mariana de Oliveira Barros Mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas de Pós-gradução em Relações Internacionais da PUC-SP/Unesp/Unicamp e professora de Relações Internacionais das Faculdades Tancredo Neves.

Mark Langevin Ph.D em Ciência Política pela Universidade do Arizona e professor assistente no Departamento de Ciência Política da Chapman University College.

Rogério de Souza Farias Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB).