pensamento e batalha (camillo berneri, 2009)

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    Camillo Berneri______________________________________1

    Pensamento

    e Batalha

    Camil lo

    Berneri

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    2______________________________Pensamento e Batalha

    Porto Alegre, 2009.Traduo, reviso e diagramao: Evandro Couto.Capa: Oficina de Artes Grficas Polidoro SantosImpresso: Edies Combate. Publicaes e udio-visual.Distribuio: [email protected]

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    Camillo Berneri______________________________________3

    O anarquismo o viajante quevai pelos caminhos da histria,

    e luta com os homens tais como

    so e constri com as pedras

    que lhe proporciona sua poca.

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    NDICE

    Apresentao............................................................................................5

    Camillo Berneri, intelectual anarquista.................................................7

    Conscincia de partido...........................................................................15

    O marxismo e a abolio do Estado.....................................................17

    O Estado e as classes..............................................................................22

    A abolio e a extino do Estado.........................................................31

    A ditadura do proletariado e o socialismo de estado..........................35

    Carta aberta a companheira Federica Montseny................................38

    Cretinismo anarquista...........................................................................44

    Sovietismo, anarquismo e anarquia......................................................46

    Anarquismo e poltica............................................................................51

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    Camillo Berneri, ilustre desconhecido desses nossos tempos de luta, denossa gerao, o que publicamos aqui com ganas de fazer justia tirando dapoeira o pensamento e a batalha deste inesquecvel companheiro anarquista. Juntode Malatesta, Fabbri e outros mais, foi uma figura avanadssima do anarquismointernacional. Pertencente a formao militante mais crtica e lcida do comunismoanarquista que se deu na Itlia das primeiras dcadas do sculo XX, foi umpensador afiado da atualizao terica que reivindicava para o projeto libertrio

    e um combatente sem trguas das lutas de classe e da resistncia ao fascismo.Durante sua vida no pas, esteve integrado na Unio Anarquista Italiana,personanon grata pelo fascismo, emigrou pela Europa sem descanso e acabou nas filasda Revoluo Espanhola, combatendo com o fogo e a palavra.

    Engajado nos problemas sociais-histricos concretos de sua realidadeBerneri enfrentou-se com o dogmatismo, o purismo e outros vcios mais quedebilitavam o campo libertrio, deu polmica a altura com a estratgia bolcheviqueque disputava o movimento operrio, foi um ativo militante da concepo de um

    anarquismo com protagonismo nas massas e forte politicamente.Por essas e outras que o publicamos, fazemos o leitor conhecer nesta curtapublicao um pouco de sua histria e de suas idias combatentes, para marcarsua vigncia nas lutas pelo socialismo e a liberdade.

    APRESENTAO.

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    CAMILLO BERNERI,INTELECTUAL ANARQUISTA.

    Carlos M. Rama

    Berneri, que tinha se iniciado nas idias sociais ao ingressar no partidosocialista italiano em 1912, que tinha iniciado seu labor como periodista quandotinha apenas 17 anos, e que levado pela remoo provocada pela Primeira GuerraMundial, havia adotado o campo dos contrrios na Interveno da Itlia no conflito,

    e mais tarde aderido a causa da Revoluo Russa de 1917, terminar por seincorporar ao movimento libertrio.Seu discipulado anarquista com Errico Malatesta e Luigi Fabbri,

    simultneo a seus estudos universitrios na Universidade de Florncia, onde sedoutora sob a direo do grande historiador e destacado homem pblico GaetanoSalvemini. Ser acompanhando-lo que se inicia na luta clandestina antifascista,para resistir ao ascendente imprio mussoliniano desde 1922.

    Essa dupla vertente bem caracterstica de sua personalidade, em que levado

    por sua atitude moral e poltica participa da vida pblica como revolucionrio eantifascista, mas ao mesmo tempo nunca deixa de ser um universitrio, umintelectual humanista. exato que em Camillo Berneri se poderia exemplificar ocaso do intelectual revolucionrio, do militante de cepa universitria, do homemcomprometido, fiel ao mesmo tempo ao nvel superior de cultura de sua formaovital.

    Seus numerosos livros, folhetos e artigos (que poderiam sobradamente sealbergar em uns 15 ou 20 volmes), tratam temas de poltica imediata, (e at de

    ttica e estratgia revolucionria), mas mais amide versam sobre a histria dasidias, sobre a sociologia do trabalho, sobre sociologia religiosa, e incluso sobrepsicoanlise, sexualidade, antropologia cultural, etc. etc. Exilado desde 1926 viver

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    na Frana, Blgica, Holanda e Luxemburgo uma existncia azarosa em que asperseguies mussolinianas lhe levaro aos crceres, e aos estrados judiciais,suscitando campanhas solidrias em toda Europa, incluindo Espanha. Tambm

    ser este um tempo de misria, em que o proscrito se desempenhar amide comooperrio manual, apesar de seus diplomas e mritos intelectuais.

    Camillo Berneri e Espanha

    Durante essa etapa que vai de 1926 a 1936 Camillo Berneri se interessapelo tema espanhol, e por sua vez comea a ser conhecido na Espanha atravs daimprensa libertria. Na Revista Blanca de Barcelona dos Urales encontramos

    repetidas mostras de sua colaborao abordando temas como a questo agrria, arelao entre o trabalho manual e o intelectual, etc., mas mais que tudo denunciandode forma argumentada o horror do fascismo italiano. Tambm na mesma revistabarcelonesa - e um pouco em toda a imprensa afim - se faz campanha para defenderseu direito a vida e a liberdade, quando posto em priso e julgado porconspirao contra um governo estrangeiro, como ento se dizia.

    Simultneamente, Camillo Berneri edita, primeiro em Paris e depois emBruxelas, o peridico Guerra di Classe, rgo da Unio Sindical Italiana, central

    anarcosindicalista filiada na Associao Internacional dos Trabalhadores (AIT) eportanto equivalente da espanhola Confederao Nacional do Trabalho (CNT).

    Nesse perodo, por sua vez, Berneri e seus camaradas, fazem campanha afavor do grupo anarquista Los solidarios ento enjuizado em Paris, e do aconhecer aos trabalhadores italianos expatriados os problemas que afronta aEspanha ao final da ditadura de Primo de Rivera e nos primeiros tempos da SegundaRepblica. Era grande a simpatia e a solidariedade que os revolucionrios italianosantifascistas sentiam pela causa popular espanhola, e grandes as esperanas que

    faziam sobre seu triunfo, que poderia ser decisivo na batalha mundial que selivrava no mundo contra o fascismo internacional. Quando se produzem ashistricas jornadas eleitorais de 1936 em que disputaram o governo da Repblicaas coalizes rivais da esquerda e da direita, agrupadas respectivamente na FrentePopular e na CEDA, estes problemas foram considerados quase como prpriospor milhes de europeus e em particular pelos militantes e periodistas politicamentecomprometidos. Como notrio, dentro do movimento libertrio espanhol seviveu no perodo eleitoral de 1936 uma conjuntura muito particular, quando a

    corrente proletria se inclinava a participar a favor dos candidatos da FrentePopular, que incluam em seu programa a libertao dos milhares de presospolticos detidos por ocasio dos sucessos de outubro de 1934. Personalidades

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    como Diego Abad de Santilln, os Ascaso e muitos outros eram partidrios deque a CNT no fizesse propaganda abstencionista - como a que tinha feito em1933 - e nos fatos favoreciam a participao nas eleies a favor dos candidatos

    da esquerda.Naturalmente, no seio do cenetismo no faltava quem como Eusebio Carb,Liberto Callejas, Jos Peirats, mantivesse a posio clssica e ortodoxa hostil aqualquer interveno no plano eleitoral, e a polmica se manifestou na preparaodo histrico congresso extraordinrio de Zaragoza. Com efeito, em maio de 1936,ou seja poucos dias depois de cumprida a etapa eleitoral, que vai de 9 de fevereiroa 3 de maio, se reuniro na capital aragonesa os representantes dos sindicatoscenetistas e treintistas para proceder a sua reunificao, e a tnica respaldar

    as definies do comunismo libertrio. Essa polmica se estende ao exteriorpor bvias razes, e inicia em certa medida toda uma poca de tenses ideolgicasno seio do movimento anarquista, que v desafiados seus princpios tradicionaisem matria de Estado, Governo, poder e mtodos polticos representativos.

    Primeira polmica entre Berneri e Montseny

    Berneri se sente obrigado assim mesmo a participar, como fazem muitos

    dos principais idelogos do anarquismo internacional, entre os que se destacampor exemplo os franceses Sebastin Faure, o Dr. Pierrot, Paul Reclus, GastonLeval. Contestam-lhe na Espanha autores como Isaac Puente, Amparo Poch,Eusebio Carb e Federica Montseny, e o episdio interessante porque precedeem poucas semanas a instncia de julho de 1936 e o ingresso dos anarquistas empostos ministeriais de Madri e Barcelona. As opinies de Camillo Berneri foramexpostas no peridico anarquista italiano de Nova Iorque LAdunata deiRefrattari, e em espanhol se difundiram de Barcelona em uma pesquisa que

    promoveu sobre o tema a publicao dirigida por Eusebio Carb,Ms lejos.Creio - diz Berneri - que se pode por em dvida a utilidade da propaganda

    abstencionista em perodo eleitoral. Eu sempre me abstive de faz-la. Mas a

    maioria dos anarquistas italianos sempre escolheu o perodo eleitoral para sua

    propaganda abstencionista. No entanto, no curso das eleies polticas de 1921,

    abandonaram a habitual campanha abstencionista devido a que os fascistas e as

    foras policacas ameaavam e violentavam os eleitores e os candidatos de

    esquerda [1] .

    Entrando no caso espanhol de 1936, sobre o qual adverte Eu no posso, jque faltam muitos elementos de juzo para isso, julgar o movimento espanhol,mas estimo de utilidade comunicar minhas impresses, sua opinio a seguinte:

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    Segundo pude compreender, frente as eleies passadas, tomando em contaa excepcionalidade da situao, surgiu uma corrente favorvel a moderar a

    propaganda abstencionista. Essa corrente teria se pronunciado no sentido de

    deixar livres os trabalhadores da CNT para intervir ou no nas eleies. Se assim como se produziram as coisas, estimo que aquela corrente demonstrou

    uma notvel inteligncia poltica, na condio de que no ache que o triunfo

    eleitoral do bloco de esquerda constitui por si mesmo um passo at a revoluo

    social, em vez de significar, como significa, se apartar de um imediato perigo

    fascista.

    A Revue Anarchiste de Paris, em fevereiro, pouco antes das eleies, dirigiauma mensagem FAI e CNT aconselhando a astcia e os meios legais. Eu

    no teria chegado a tais extremos. Se tivesse me encontrado na Espanha, teriaaconselhado para a FAI uma atitude rigurosamente abstencionista apoiando acorrente favorvel a deixar liberdade de ao aos aderentes da CNT.

    Da passa a se colocar o problema terico do exerccio do poder, destacandoque os anarquistas so anarquistas precisamente porque negam o poder poltico,e, se h escrpulos pra vencer so aqueles que derivam da infiltrao individualistaou das infiltraes autoritrias que tem operado em nossa ideologia a merc dapropaganda de alguns pseudo-anarquistas.

    Conclui de uma maneira quase proftica afirmando que Mais que discutir,em abstrato, o problema da interveno dos anarquistas nos conselhos operriose camponeses e nas Comunas federadas, considero necessrio um exame sriodas experincias que oferecem as revolues europias - particularmente a russae a hngara -, o enfoque sistemtico dos problemas particulares da revoluoespanhola e uma elaborao realista daqueles elementos que constituem, em linhasgerais, o programa comunista libertrio espanhol, programa que deveria sercompreensvel incluso para aqueles espanhis no infludos por nossas

    propagandas. O movimento anarquista ibrico - conclui - tem tanto mais o deverde elaborar um programa vivel no marco econmico-social da prximarevoluo espanhola quanto que pode ser chamado a desempenhar o papel devanguarda de vastas correntes populares e de uma potente organizao sindicalcomo a CNT.

    Isto aparece em abril de 1936, e efetivamente trs meses mais tarde secumpre a augurada prxima revoluo espanhola... onde o problemarevolucionrio por excelncia no seio da corrente libertria espanhola no estava

    claro nem sequer no nvel de seus mximos dirigentes.Federica Montseny, nesta ocasio, apelou ortodoxia e fidelidade, aos

    princpios e em certa medida adiantou as concluses do Congresso de Zaragoza.

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    frente ao secretrio da CNT Horacio M. Prieto que tinha levado adiante ocolaboracionismo governamental e a dissoluo do Comit de Milcias daCatalunha, eram de forma resumida as seguintes :

    1. A guerra civil espanhola no uma guerra civil nacional, mas umaguerra civil internacional, e portanto so decisivos os fatores externos e a polticainternacional [2]

    2. A guerra civil espanhola um caso de guerra de classes e, neste contexto,do mesmo modo que a burguesia clerical-militar-fascista est representada emBurgos, dentro da Espanha republicana tem que se distinguir a luta do proletariado(que encabeam a CNT-FAI e a elite revolucionria do PSOE e do POUM) dapequena burguesia contrarrevolucionria. Ainda que antifascista. Agrupada na

    social-democracia, no PC e nos partidos republicanos e regionalistas.3. Por consequncia, e para assegurar a vitria, necessrio coletivizar agrande e mediana indstria, mas respeitando a pequena propriedade privada,assegurando assim a aliana com os antifascistas sinceros.

    4. No se pode separar a causa da guerra antifascista da revoluo social. Anica alternativa esta: vitria contra Franco por meio da guerra revolucionriaou a derrota, so suas palavras. Tem que ser recobrado o esprito de 18 de julho,de participao popular em defesa das conquistas sociais revolucionrias.

    5. Como consequncia contrrio a participao confederal no governo,ainda que admite um Comit Nacional de Defesa e o apoio ao Estado. Reclamaque a guerra seja levada de forma revolucionria, e at que os comits da CNTcorrijam sua bolchevizao e paternalismo, consultando as massas comocorresponde.

    Termina sugerindo a Federica Montseny que abandone o governo, e usesuas capacidades de oradora nas frentes e na retaguarda, levando a palavra daCNT ao povo.

    Os acontecimentos de Maio

    Como sabido, as opinies de Camillo Berneri no foram tomadas emconta e o movimento confederal, junto com o POUM e a direo largocaballeristado PSOE se viu empurrada ao beco sem sada dos acontecimentos de maio de1937, dos que em definitivo resultar a cada do governo com os quatro ministrosanarquistas.

    Hoje j possvel reconstruir a posio de Berneri nos acontecimentos demaio. No foi partidrio do enfrentamento, e at preparou um projeto de manifestode concrdia revolucionria. Ainda iniciada a luta no deixou de ler seu texto de

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    homenagem a memria de Antnio Gramsci, que tinha falecido em 27 de abril.Leva a cabo uma argumentada defesa do POUM, e ante tudo no participa naslutas de rua. No entanto, em maio encontrar a morte assassinado por uma patrulha

    de forma premeditada, e sem que at a data se saiba exatamente quem ordenousua execuo [3].Convertido em um tipo de mrtir do anarquismo, o fato provocou um

    renovado interesse em seus escritos, onde se procuram encontrar diversasexplicaes sobre seu misterioso assassinato.

    A partir da libertao da Frana em 1945, e pela mesma poca na Itlia, sereeditam seus trabalhos, agora em francs, italiano e espanhol, que alcanamlogo numerosas publicaes. Dentro da Espanha franquista um autor difundido

    pelos movimentos subversivos que procuram reconstruir o anarquismo de 1936.Uma das ltimas edies de Entre la guerra y las trincheras (textos de Guerradi classe) estar a cargo do MIL de Puig Antich, executado no final do franquismoem Barcelona.

    Por ento j pertence mais a legenda que a histria, mas est em tempo derecobr-lo em todas suas dimenses como militante poltico, como escritorrevolucionrio e at como estudioso dos problemas espanhis do sculo XX. Quetenha medido por duas vezes seus argumentos com Federica Montseny, um

    dado que deve ser considerado, tendo em conta a importncia simblica da faistaespanhola em 1936-1937.

    NOTAS:

    [1] Corresponde a Debates Pblicos, As pesquisas deMs lejos, O abstencionismoeleitoral, A tomada e o exerccio do Poder. Falam os Camaradas C. Berneri e Dr.Pierrot publicado na pg. 1 do nmero do citado peridico de 16 de abril de 1936

    em Barcelona. (Nota do Autor)[2] Temos estabelecido este resumo desenvolvendo as idias de Noam Chomsky,nas pginas 28 e 29 do citado ensaio Camilo Berneri e a revoluo espanhola,incluido na o. c. Guerra de clases en Espaa, 1936-1937. (N.A.)[3] Se aponta a GPU (polcia secreta estalinista) com a cumplicidade doscatalanistas liderados por Companys e Terradellas. (Nota do Tradutor)

    Texto extrado de:

    Camillo Berneri, guerra de clases en Espaa, 1936-1937,Barcelona, Tusquets. 1977.

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    CONSCINCIA DE PARTIDO.Camillo Berneri

    Somos imaturos. Demonstra o que tenha discutido a Unio Anarquistafazendo sutilezas sobre as palavras partido, movimento, sem entender que aquesto no de forma seno de substncia, e que o que nos falta no aexterioridade do partido mas a conscincia de partido.

    Que entendo por conscincia de partido?Entendo algo mais que o fermento passional de uma idia, que a genricaexaltao de ideais. Entendo o contedo especfico de um programa partidrio.Estamos desprovidos de conscincia poltica no sentido que no temos conscinciados problemas atuais e continuamos difundindo solues adquiridas em nossaliteratura de propaganda. Somos utpicos e basta. Que tenha editores nossos quesigam reeditando os escritos dos mestres sem agregar nunca uma nota crticademonstra que nossa cultura e nossa propaganda esto em mos de gente que

    tenta manter em p o prprio palanque em vez de empurrar o movimento a sair doj pensado para se esforar na crtica, no que est por se pensar. Que haja polemistasque tentem engarrafar o adversrio em vez de buscar a verdade, demonstra queentre ns h maons, em sentido intelectual. Agregamos os grafmanos para quemo artigo um desafogo ou uma vaidade e teremos um conjunto de elementos queestorvam o trabalho de renovao iniciado por um punhado de independentes queprometem.

    O anarquismo deve ser amplo em suas concepes, audaz, insacivel. Se

    quer viver e cumprir sua misso de vanguarda deve se diferenciar e conservar altasua bandeira ainda que isto possa lhe isolar no restrito crculo dos seus. Mas estaespecificidade de seu carter e de sua misso no exclui uma maior incrustrao

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    de sua ao nas fraturas da sociedade que morre e no nas construes apriorsticasdos arquitetos do futuro. Igual que nas investigaes cientficas a hiptese podeiluminar o caminho da indagao mas apaga essa luz quando resulta falsa, o

    anarquismo deve conservar aquele conjunto de princpios gerais que constituema base de seu pensamento e o alimento passional de sua ao, mas deve saberafrontar o complicado mecanismo da sociedade atual sem culos doutrinais esem excessivos apegos a integridade de sua f ()

    Chegou a hora de acabar com os farmacuticos das formulinhas complicadasque no vem mais alm de seus tarros cheios de fumo; chegou a hora de acabarcom os charlates que embriagam o pblico com belas frases altissonantes; chegoua hora de acabar com os simplrios que tem trs ou quatro idias cravadas na

    cabea e exercem como vestais do fogo sagrado do Ideal distribuindo excomunhes()O que tenha um gro de inteligncia e de boa vontade que se esforce com

    seu prprio pensamento, que trate de ler na realidade algo a mais do que l noslivros e peridicos. Estudar os problemas de hoje quer dizer erradicar as idiasno pensadas, quer dizer ampliar a esfera da prpria influncia como propagandista,quer dizer fazer dar um passo adiante, inclusive um bom salto de longitude, nossomovimiento.

    preciso buscar as solues se enfrentando com os problemas. precisoque adotemos novos hbitos mentais. Igual que o naturalismo superou a escolsticamedieval lendo o grande livro da natureza em vez dos textos aristotlicos, oanarquismo superar o pedante socialismo cientfico, o comunismo doutrinriofechado em suas casinhas apriorsticas e todas as demais ideologias cristalizadas.

    Eu entendo por anarquismo crtico um anarquismo que, sem ser ctico, nose contente com as verdades adquiridas, com as frmulas simplistas; umanarquismo idealista e ao mesmo tempo realista; um anarquismo, em definitivo,

    que enxerte verdades novas no tronco de suas verdades fundamentais, que saibapodar os ramos velhos.No um trabalho de fcil demolio, de niilismo hipercrtico, seno de

    renovao que enriquea o patrimnio original e lhe agregue foras e belezasnovas. Este trabalho temos de faze-lo agora, porque amanh deveremosreemprender a luta, que no encaixa bem com o pensamento, especialmente parans que nunca podemos nos retirar dos pavilhes quando recrudesce a batalha.

    Pagine Libertarie, Milo, 20 de novembro de 1922.

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    O MARXISMO E

    A ABOLIO DO ESTADO.No ambiente da emigrao italiana, faz algum tempo, e com frequncia, se

    ouve os anarquistas, durante as reunies pblicas, ou em discusses amistosas,atribuir ao marxismo uma tendncia de estadolatria, que se encontra com efeitoem algumas das correntes da socialdemocracia que se reclaman do marxismo,mas que no se constata, sem dvida, quando se vai diretamente origem dosocialismo marxista.

    Marx e Engels profetizaram claramente a desapario do Estado, e istoexplica a possibillidade que existiu no seio da Primeira Internacional de umaconvivncia poltica entre socialistas marxistas e socialistas bakuninistas,convivncia que teria sido impossvel sem aquela coincidncia bsica.

    Marx escrevia emA misria da filosofa:

    A classe trabalhadora substituir no curso de seu desenvolvimento aantiga sociedade por uma associao que excluir as classes e seu

    antagonismo. J no haver poder poltico propriamente dito, pois o poderpoltico precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedadecivil.

    Engels, por sua parte, afirmava noAnti-Dhring que:

    O Estado desaparecer inevitavelmente junto com as classes. Asociedade, que reorganiza a produo sobre a base da associao livre de

    todos os produtores em p de igualdade, relegar a mquina governativaao posto que lhe corresponde: o museu de antigidades,junto roda e omachado de bronze.

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    E Engels no diferia a extino do Estado de uma fase final da civilizao,seno que a apresentava estreitamente vinculada a revoluo social, e como sua

    inevitvel consequncia. En 1847 escrevia em um de seus artigos:

    Todos os socialistas esto de acordo em pensar que o Estado e aautoridade poltica desaparecero como resultado da futura revoluosocial, o que significa que as funes pblicas perdero seu carter polticoe se transformaro em simples funes administrativas, de supervisodos interesses locais.

    Os marxistas identificam o Estado com o governo, e frente a eles antepemum sistema em que o governo dos homens ser substitudo pela administraodas coisas, sistema que para Proudhon constitui a anarquia.

    Lenin, em O Estado e a Revoluo (1917), volta a confirmar o conceito dadesapario do Estado, quando afirma: Quanto a supresso do Estado comometa, ns (os marxistas) no nos diferenciamos, neste ponto, dos anarquistas.

    difcil descriminar o carter tendencioso, da tendncia desta afirmao,dado que Marx e Engels estavam em luta com a forte corrente bakuninista, e que

    Lenin em 1917 considerava necessria politicamente uma aliana entrebolcheviques e socialistas de esquerda revolucionria, influenciados pelomaximalismo e os anarquistas. Parece certo, contudo, que no excluindo atendenciosidade da forma e do momento em que se formula dita afirmao, estarespondia a uma tendncia real. A afirmao referente a extino do Estado estunida, muito intimamente a concepo marxista da natureza e a origem do Estado,e incluso deriva necessariamente dela como para lhe atribuir um carterabsolutamente oportunista.

    O que o Estado para Marx e para Engels? Um poder poltico ao servioda conservao dos privilgios sociais da explorao econmica.No prefcio da terceira edio da obra de MarxA guerra civil na Frana,

    Engels escrevia:

    Segundo a filosofia hegeliana, o Estado a realizao da Idia, esta,em linguagem filosfica, o reino de Deus sobre a terra, o domnio onde serealiza ou deve se realizar a verdade eterna, e a eterna justia. Da o respeito

    supersticioso frente ao Estado e de tudo o que se refere a ele, respeito quese instala mais facilmente nos espritos que esto habituados a pensar queos assuntos e intereses gerais de toda a sociedade no podem ser regulados

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    de forma distinta a como se tem feito at o presente, isto , por obra doEstado e sob suas ordens, devidamente instrumentalizadas. E j se achahaver feito um progresso verdadeiramente audaz quando se liberta da

    crena na monarquia hereditria para jurar sob a repblica democrtica.Mas, na realidade, o Estado no outra coisa que uma mquina de opressode uma classe sobre outra, seja em uma repblica democrtica, como emuma monarquia, e o mnimo que pode se dizer que um flagelo, que oproletariado herdar em sua luta para chegar a seu domnio de classe,mas o qual dever, como tem feito a Comuna, e na medida do possvel,atenuar seus efeitos mais nocivos, at o dia em que uma gerao crescidaem uma sociedade de homens livres e iguais poder se desembaraar do

    fardo do governo.

    Marx (Misria da filosofa) diz que, realizada a abolio das classes, jno haver poder poltico propriamente dito, pois o poder poltico precisamente

    a expresso oficial do antagonismo na sociedade burguesaQue o Estado se reduza ao poder repressivo sobre o proletariado, e ao

    poder conservador frente a burguesia, uma tese parcial, seja que se examine oEstado estruturalmente ou em seu funcionamento. Ao governo dos homens se

    associa, no Estado, a administrao das coisas, e esta segunda atividade a quelhe assegura sua permanncia. Os governos mudam, mas o Estado permanece. Eo Estado no tem sempre funes de poder burgus, como quando impe leis,promove reformas, cria instituies contrrias aos intereses das classesprivilegiadas e sua clientela, mais favorveis aos interesses do proletariado. OEstado alm do mais no s o gendarme, o juiz, o ministro. tambm aburocracia,potent, muito mais que o governo. O Estado fascista na atualidadealgo mais complexo que um rgo de polcia e que um gerente dos interesses

    burgueses, porque ligado por um cordo umbilical ao conjunto dos quadrospolticos e corporativos tem interesses prprios, nem sempre e nunca inteiramentecoincidentes com a classe que tem levado o fascismo ao poder, e a quem o fascismoserve para conservar o poder.

    Marx e Engels estavam enfrentados com a fase burguesa do Estado, e Lenintinha frente a si o Estado russo, em que o jogo democrtico era inexistente. Todasas definies marxistas do Estado do uma impresso de parcialidade e o quadrodo Estado contemporneo no pode entrar no marco das definies tradicionais.

    Incluso parcial a teoria sobre a origem do Estado, formulada por Marx eEngels. Exposta com palavras de Engels: Ao chegar a certa etapa dodesenvolvimento econmico, que est ligada necessariamente a diviso da

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    sociedade em classes, esta diviso fez necessria o Estado. Agora nos

    aproximamos a grandes passos de uma fase de desenvolvimento da produo, em

    que, a existncia destas classes no s deixa de ser uma necessidade, seno que

    se converte positivamente em um obstculo para a produo. As classesdesaparecero de um modo to inevitvel como um dia surgiram, com as classesdesaparecer assim mesmo o Estado.

    Engels retoma a filosofa do direito natural de Hobbes, cuja terminologiaadota, substituindo somente a necessidade de domesticar o homo homini lupus,pela necessidade de regular o conflito entre as classes.

    O Estado teria surgido, segundo Marx e Engels, quando j haviam seformado as classes e sua funo ser um rgo de classe. Arturo Labriola (Mais

    alm do capitalismo e do socialismo, Paris, 1931) expressa sobre este ponto:Estes problemas das origens so sempre muito complexos. O bom sentidoaconselharia lanar sobre eles alguma luz e reordenar os materiais que lhes

    concernem sem se iludir jamais de poder chegar ao final.A idia de possuir uma teoria das origens do Estado meramente fabulosa.

    Tudo o que pode se pretender indicar alguns elementos que na ordem histricaprovavelmente tenham contribudo a gerar o fato. Que surja das classes ou tenhacom elas uma relao evidente, mas se deve recordar as funes predominantes

    que o Estado teve no nascimento do capitalismo.Segundo Labriola, o estudo cientfico da gnese do capitalismo confereum carter de realismo, verdadeiramente insuspeito tese anarquista sobre a

    abolio do Estado. Ademais: Parece com efeito muito mais provvel a extinodo capitalismo como efeito da desapario do Estado, que a extino do Estado

    como consequncia da desapario do capitalismo.Isto resulta evidente dos estudos dos mesmos marxistas, quando se trata de

    estudos srios como de Paul LouisLe travail dans le monde romain (Paris, 1912).

    Deste livro surge claramente que a classe capitalista romana se formou como umparasita do Estado e protegida por ele. Dos generais saqueadores aos governadores,dos agentes de impostos as famlias de tesoureiros (argentari), dos empregadosde aduana aos abastecedores do exrcito, a burguesia romana se criou mediante aguerra, o intervencionismo estatal na economia, a fiscalizao estatal, etc...muitomais que de outro modo.

    E se examinamos a interdependencia entre o Estado e o capitalismo vemosque o segundo tem se beneficiado amplamente do primeiro por interesses estatais,

    e no precisamente capitalistas. To certo isto, que o desenvolvimento do Estadoprecede ao desenvolvimento do capitalismo. O Imprio Romano j era umvastssimo e complexo organismo quando o capitalismo romano era apenas uma

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    prtica familiar.Paul Louis no vacila em proclamar: O capitalismo antigo nasceu da

    guerra. Os primeiros capitalistas foram, com efeito, os generais e os publicanos.

    Em toda a histria da formao da fortuna privada est presente o Estado. E destaconvico de que o Estado tem sido e o pai do capitalismo e no somente seualiado natural, derivamos a convico de que a destruio do Estado a condiosine qua non da desapario das classes e da irreversibilidade dessa desapario.

    Em seu ensaio O Estado moderno Kropotkin observa:

    Reclamar de uma instituio que representa um desenvolvimentohistrico que destrua os privilgios que deve desenvolver, como se

    reconhecer incapazes de compreender o que significa na vida da sociedadeum desenvolvimento histrico. como esquecer aquela regra geral danatureza orgnica: as novas funes exigem novos rgos surgidos dasmesmas funes.

    Arturo Labriola, no livro antes citado, observa por sua vez:

    Se o Estado um poder conservador com respeito a classe que o domina,

    no ser a desapario desta classe o que far desaparecer o Estado, eneste ponto a crtica anarquista muito mais exata que a crtica marxista.Enquanto o Estado conserve as classes, dita classe no desaparecer.Quanto mais forte o Estado mais forte a classe protegida pelo Estado,isto , mais poderosa se faz sua energia vital e mais segura sua existncia.Uma classe forte uma classe mais fortemente diferenciada das outrasclasses. Nos limites dos quais a existncia do Estado depende da existnciadas classes, o fato mesmo do Estado -se a teoria de Engels verdadeira-

    determina a indefinida existncia das classes e portanto de si mesmo comoEstado.

    Uma grande, decisiva, confirmao da exatitude de nossas teses sobre oEstado gerador do capitalismo est dada pela URSS na qual o socialismo deEstado favorece o surgimento de novas classes.

    9 de outubro de 1936.

    Publicado no primeiro nmero de Guerra di classe.

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    O ESTADO E AS CLASSES.Em 1921, Lenin definia o Estado sovitico russo como um Estado operrio

    com uma deformao burocrtica, em um pas formado por uma maioria de

    camponeses.Essa definio hoje deve se modificar na seguinte forma: O Estado

    sovitico um Estado burocrtico em que est se desenvolvendo uma burguesia

    mdia burocrtica e uma pequena burguesia trabalhadora, enquanto sobrevive a

    classe mdia agrria.Boris Suvarin, em seu livro Stalin (Paris, 1935), traa o seguinte quadro do

    aspecto social da URSS:

    A sociedade chamada sovitica, repousa, de um modo que lhe prprio,sobre a explorao do homem pelo homem, do produtor por parte doburocrata, tcnico do poder poltico. A apropriao individual da mais-valia ser substituda por uma apropriao coletiva a cargo do Estado,

    estafa feita pelo consumo parasitrio do funcionalismo... A documentaooficial no deixa dvida alguma: sobre o trabalho da classe submetida,obrigada a um sistema extenuante e inexorvel, a burocracia retira umaparte indevida que corresponde mais ou menos ao antigo benefciocapitalista. Tem se formado pois, ao redor do partido, uma nova categoriasocial interessada na manuteno da ordem constituda e na perpetuaodo Estado, cuja extino, junto a desapario das classes sociais, predicavaLenin. Se o bolchevismo no tem a propriedade jurdica dos instrumentos

    de produo e dos meios de troca, detm a mquina estatal que lhe permitea espoliao mediante vrios procedimentos. A possibilidade de impor ospreos de venda, muito mais altos que os preos de custo, encerra por si

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    s o verdadeiro segredo da explorao tcnico-burocrtica, caracterizada,por outra parte, pela opresso administrativa e militar.

    O bonapartismo no outra coisa que o reflexo poltico da tendncia destanova burguesia, a conservar e acrescentar sua prpria situao econmica-social.No chamado do bolchevique-leninista Tamboy, dirigido ao proletariado mundialem 1935, pode se ler o seguinte:

    A tarefa da burocracia do partido consiste somente em isolar e torturaros opositores enquanto estes no tenham se destrudo publicamente, isto at quando no tenham se convertido em desgraados apolticos. Os

    burocratas, com efeito, no desejam que sejas um autntico comunista.No tem necessidade disto. Para eles nocivo e mortalmente perigoso.No querem comunistas independentes, querem miserveis servos,egostas e cidados de ltima categoria...

    Seria ento possvel, que, sob um verdadeiro poder proletrio, a lutaou um simples protesto contra a burocracia, contra os ladres e os bandidosque se apoderam impunemente dos bens soviticos, e que so os causantes

    da perda, pelo frio e a fome de centenas de milhares de homens, sejaconsiderada como um delito contra-revolucionrio?

    A formidvel tragdia da luta entre a oposio revolucionria e aortodoxia conservadora, um fenmeno completamente natural no quadro dosocialismo de Estado. A oposio leninista tem razo em assinalar ao proletariadomundial, as deformaes, as desviaes e a degenerao do stalinismo; mas se odiagnstico da oposio quase sempre preciso, a etiologia, em troca,

    frequentemente insuficiente.O stalinismo no outra coisa que o resultado de se ter posto em prtica oleninismo no problema poltico da revoluo social. Se lanar contra os efeitossem remontar-se causa, ao pecado original do bolchevismo (ditadura burocrticaem funo da ditadura do partido), significa simplificar arbitrariamente a cadeiacausal que da ditadura de Lenin passa ditadura de Stalin, sem maior soluo decontinuidade.

    A liberdade interior de um partido que nega o livre jogo da maioria (da

    pluralidade) entre os partidos de vanguarda no seio do sistema sovitico, seriahoje um espetculo milagroso. A hegemonia operria, o absolutismo bolchevique,o socialismo de Estado, o fetichismo industrialista: todos estes germes corruptores

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    s podiam dar frutos envenenados tais como o absolutismo de uma frao e ahegemonia de uma camada social. Trotsky, na atitude de So Jorge em luta contrao drago stalinista, no impede recordar o Trotsky de Kronstadt. A responsabilidade

    do atual stalinismo se remonta a formulao e a prtica da ditadura do partidobolchevique, assim como a iluso da extino do Estado como fruto da desapariodas classes a cargo do socialismo de Estado.

    Quando Trotsky escrevia, em 6 de setembro de 1935: O absurdo histricoda burocracia autocrtica em uma sociedade sem classes no pode se sustentar

    e no se sustentar indefinidamente, dizia uma coisa absurda no que se refere aoabsurdo histrico. Na histria no h absurdos. Uma burocracia autocrtica uma classe e consequentemente no absurdo que ela exista em uma sociedade

    na qual persistem as classes: a burocrtica e a proletria. Se a URSS fosse umasociedade sem classes, seria tambm uma sociedade sem autocracia burocrticae essa autocracia a resultante da subsistncia do Estado.

    por sua qualidade de partido dominante da mquina estatal que o partidobolchevique tem se convertido em um centro de atrao para os elementos pequeno-burgueses arrivistas e para os operrios preguiosos e oportunistas. A pragaburocrtica no se iniciou, nos fatos, com o stalinismo, pois simultnea a ditadurabolchevique. Basta ler as noticias de 1918 e 1919, publicadas na imprensa

    bolchevique.O Wecernia Isvestia de 23 de agosto de 1918, falando da desorganizaodo servio postal, constata que apesar da diminuio em uns 60% dacorrespondncia, o nmero de empregados, comparado ao perodo anterior darevoluo, havia aumentado uns cem por cento.

    Pravda de 11 de fevereiro de 1919 assinala a contnua criao de novasoficinas, de novas instituies burocrticas, para as quais tem se nomeado eestipendiado os empregados antes que as novas organizaes comearam a

    funcionar. Se todos estes novos empregados -diz Pravda de 22 de fevereiro de1919- invadem e ocupam palcios inteiros, por seu nmero efetivo seriamsuficientes algumas poucas estncias.

    O trabalho se faz lento e obstrucionista, incluso nas oficinas com funesindustriais. Um encarregado do Comissariado de Lipetzk-conta Isvestia de 29de novembro de 1918- para comprar nove pud de pregos ao preo de 417rubros tem que expedir vinte escritos, obter cinco ordens e 13 firmas, para

    conseguir isso teve que fazer ante-sala de dois dias, pois os funcionrios que

    deviam assinar eram inencontrveis. Pravda (nmero 281) denunciava a invasoem nosso partido de elementos pequeno-burgueses que faziam expropriaespara uso pessoal. No nmero de 2 de maro de 1919 o mesmo peridico

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    constatava:

    necessrio reconhecer que nos ltimos anos alguns companheiros,

    que no eram membros do PC nos primeiros tempos, comearam a recorrera mtodos de trabalho que so inadmissveis em nosso partido. Admitircomo sistema o costume de no se considerar atado a opinio dasorganizaes locais, enquanto tem ordens de atuar pessoalmente, em basea um mandato bastante limitado, e ordenar a torto e a direito, por exemplo.Da se origina uma tenso latente entre o centro e a periferia, impondocom sua ditadura individual vexames vrios.

    Falando da provncia de Pensa, o Comissrio do Interior, dizia:

    Os representantes locais do Governo central se conduzem, no comoos representantes do proletariado, mas como verdadeiros strapas. Umasrie de feitos e de provas atestam que os nicos representantes do Governose apresentam armados diante de gente mais pobre, levando presa e comela todo o necessrio, ameaando de morte no caso de protestos, castigandoa golpes. Os objetos roubados so revendidos, e com esse dinheiro se

    organizam bebedeiras e orgias (Wecernia-Isvestia, 12 de fevereiro de1919).

    Outro bolchevique, Mescerikov, escrevia:

    Cada um de ns v todos os dias infinitos casos de violncia, vexames,corrupes, cio, etc. Todos sabemos que em nossas instituies soviticastem entrado em massa pcaros e folgados. Todos lamentamos sua presena

    nas filas do partido, mas no podemos fazer nada para nos limpar destaimpureza.

    ...se uma instituio expulsa um pcaro, se encontra logo outra que otoma e lhe d um posto de responsabilidade. Em vez de ser castigado,termina por ser promovido (Pravda, 5 de fevereiro de 1919).

    Em um discurso pronunciado no Oitavo Congresso do Partido Comunista

    russo (11-12 de maro de 1919), Lenin confessava:

    Vemos por todas partes arrivistas, aventureiros, que tem se introduzido

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    entre ns. Eles se chamam comunistas, mas na realidade buscam nosenganar sobre suas verdadeiras idias. Isso sim, esto colados a ns, porquens somos o poder e porque os elementos burocrticos mais honestos

    recusam colaborar com ns por causa de suas idias atrasadas, enquantoeles no tem nem idias nem honestidade: so exclusivamente de reclame.

    O governo bolchevique se demonstra impotente frente a burocracia,pletrica, parasitria, prepotente e desonesta.

    De cinco milhes de burocratas se passou a dez milhes. En 1925 eram400.000 funcionrios nas cooperativas (Pravda, 20 de abril de 1926).

    Em 1927 a Federao russa de operrios da alimentao tinha 4.287

    empregados para seus 451.720 scios e o sindicato de metalrgicos de Moscouchega a 700 funcionrios para 130.000 carns sindicais (Trud, 12 de junho de1928).

    Esta pletrica burocracia no responde a uma intensa e eficaz atividadeadministrativa.

    A direo do aparato sovitico, da base ao mais alto grau, tem um carterpapeleiro. O comit provincial manda habitualmente uma ou duas

    circulares por dia sobre todas as questes imaginveis, e estima haverassim esgotado suas obrigaes.

    O nmero das circulares que do as diretivas recebidas nas clulas,oscila, em certos lugares, de 30 a 100 por ms (Pravda, 7 de junho de1925).

    Um alto funcionrio, Dzerginsky, escrevia:

    Se solicitam das empresas as mais diferentes informaes, informes,dados estatsticos, formando em conjunto um torrente de cartas que obrigaa manter um excessivo pessoal e asfixia o trabalho mais vital: se cria ummar de cartas em que se enredam centenas de pessoas; a situao dacontabilidade e da estatstica simplesmente catastrfica; as empresassuportam com desgosto o fardo de prover informaes sobre dezenas ecentenas de formas diferentes. Se mede agora a contabilidade ao peso

    (Pravda, 23 de junho de 1926).

    Uma oficina florestal reclama um clculo das perdizes, das lebres, ursos,

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    lobos, etc., habitantes no setor do funcionrio consultado, e isto no prazo de umasemana (Krasnaia Gazeta, 14 de maio de 1926).

    A direo provincial da agricultura de Viatka prescreve ao comit executivo

    do canto contar os vermes da terra encontrados no campo (Pravda, 1 de marode 1928).O informe do Comissariado de Comrcio, contm 27.000 solicitudes; um

    informe agrcola ucraniano contm 20.000 (Isvestia, 11 de dezembro de 1927).Um comit executivo local envia ao soviet do povo um questionrio com 348perguntas, e isto, durante a colheita do gro (Pravda, 18 de abril de 1928). Oinstituto de agronomia experimental publica uma folha de pesquisa de seis metrosde comprimento e totalmente cheia de interrogaes sobre tratores (Diednota, 1

    de abril de 1929).No XV Congresso do Partido, Stalin citou o caso, entre outros muitos, deum mutilado que teve que esperar sete anos um aparelho de prtese. Um operrioque deve fazer uma reclamao contra a administrao de uma empresa, devepassar por 24 formalidades burocrticas (Trud, 14 de janeiro de 1928). Uma oficinaprocessa 210 contratos por operrio admitido, e isto apesar de que o pessoal muito instvel (Trud, 5 de agosto de 1928). Um relgio importado na URSS passana aduana atravs de 142 formalidades (Isvestia, 9 de dezembro de 1928). Um

    inventor, chegado a Moscou para experimentar um descobrimento, deve fazer umtrmite para obter uma habilitao. Depois de um ano e meio ainda no a temobtido, mas tem reunido um conjunto de folhas burocrticas relativos a dito trmite:400 documentos (Vetchernaia Moska, junho de 1929).

    Os funcionrios do partido esto sobrecarregados de tarefas. Kamenev,antes de ser despedido, era membro do Comit Central e do Bureau poltico doPartido, presidente do Conselho do Trabalho e da Defesa, presidente do Soviet deMoscou, vice-presidente do Conselho de Comissrios do Povo, membro da

    presidncia coletiva do Conselho Econmico Superior, membro do Comit Centralexecutivo da Unio e do Comit executivo do Soviet da Repblica, diretor doInstituto Lenin, co-diretor de Bochevik, revista oficial do Partido, e certamente alista de suas tarefas ou cargos no est completa. At os pequenos dirigentesesto sobrecarregados de tarefas e de todo tipo de cargos. Um jovem comunistadeclarava ocupar sozinho dezeseis cargos (Pravda, 21 de maro de 1925).

    Com uma burocracia to pletrica, com um mecanismo administrativo tocomplicado, com um controle to mnimo e natural, se explica que o roubo seja

    uma das caractersticas da vida burocrtica da Rssia. Um alto funcionrio sindical,Dogadov, referia ao Conselho Central dos sindicatos em 1925, que quase a metade(47%) do oramento da confederao sindical russa (700 milhes de rublos)

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    devoravam os funcionrios (Pravda, 9 dezembro de 1926). Em um ano 5.323.000rublos eram dilapidados nas cooperativas (Torgovo-Promychlenaia Gazeta, 23 demaio de 1926). Toda a imprensa bolchevique dos anos seguintes est cheia de

    notcias das dilapidaes burocrticas nas cooperativas. Tomsky, agora presidenteda confederao dos sindicatos russos, dizia no VIII Congresso da central sindical:

    Onde se rouba... por todas partes: nos comits de fbricas, nas caixasde mtuo socorro, nos crculos, nas sees regionais, departamentais edistritais; por todas partes, em uma palavra. Existe incluso uma rbricacom o ttulo: Desconhecido, se roubado em alguma parte, mas nosabemos onde. E quem rouba? Para maior vergonha de nossa entidade,

    devo dizer que os presidentes so capitalistas. Como repartem os roubosdo ponto de vista poltico? De maneira desigual entre comunistas, etambm entre pessoas das quais desconhecida sua orientao poltica.No que concerne a juventude, a situao angustiosa. O ativo sindicalno compreende, em nenhum nvel, mais de 9% dos jovens, mas quantoaos ladres, chega a 12,2%.

    Em novembro de 1935 Il Risveglio de Genebra publica a carta de um

    empregado de hotel no qual, entre outras coisas, se l:

    Em 1925, em maro, durante uma feira internacional de Lyon, meencontrava no Nouvel Hotel, onde o proprietrio, fascista cem por cento,tinha recebido com as honras correspondentes a misso sovitica.Ocuparam as melhores habitaes, que o proprietrio cobrava 120 francosao dia por pessoa, preos que naquela poca eram exorbitantes, mas queos bolcheviques pagavam sem discutir. E bem, pude constatar que eles

    tinham os mesmssimos vcios da nobreza russa. Na janta, na mesa, seembriagavam de conhaque, e em nome da ditadura do proletariado faziamservir os melhores vinhos de Burdeos .

    O decoro conduz aos costumes luxuosos e viciosos, e esses costumesconduzem a corrupo.

    Pravda do 16 de outubro de 1935, denunciava dois casos de corrupoburocrtica dignas de ser assinaladas:

    A Indstria florestal, rgo do Comissariado do Povo para a IndstriaFlorestal, havia recebido dinheiro, de forma ilcita, do truste Ukrqiness,

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    do Departamento de Combustveis do Comissariado de Vias eComunicaes, e de outras organizaes econmicas. A Indstria ligeira,rgo do Comissariado do mesmo nome, havia recebido dinheiro, sempre

    de Kiev, do departamento algodoeiro do Comissariado de Agricultura, dotruste de algodo e do truste do coro e da pele.

    Os dirios russos esto cheios de notcias relativas a corrupo da burocracia,e de informaes sobre a depurao do partido. Efetivamente a depuraoconsiste na eliminao dos elementos que no esto na linha. Tem aqui algunscasos tpicos, extrados de Bolchevistskaia Petchat (nmeros 13 e 14 de 1935).Foi revogado o redator chefe de Kommunist de Seratov, secretrio da seo local

    do partido comunista, no porque -segundo o peridico- seguia uma linha polticaequivocada, mas porque o chefe de pessoal Davidovov tinha dado provas de suacriminal negligncia, admitindo corretores e redatores de origem no proletriaou suspeitosa: Goverdovski cujos pais tinham sido expulsos de Moscou, a cidadZnamenskaia filha de um oficial branco morto no curso da guerra civil, a cidadGonciarenev, expulsa de Moscou como contra-revolucionria, o literato Lardiexpulso do partido por decomposio completa (sic), ex-nobre, com uma tia naPolnia, o fotgrafo Kruscinski expulso do partido por ter estado na Letnia

    sem autorizao e tendo parentes nesse pas, a cidad Rounguis, parente de umamulher condenada por participar em uma associao de bandidos.Os funcionrios um pouco independentes e que so mais honestos e capazes,

    so eliminados sistematicamente, enquanto permanecem em seus postos osoportunistas, quase todos venais e incapazes.

    Inclusive os cargos do partido se converteram em sinecuras estveis. Arotao dos elementos dirigentes est atualmente abolida. Enquanto os estatutosdo partido comunista russo estabeleceram que a cada ano se mudariam os dirigentes

    do partido, dos sindicatos e dos soviets, certo Kakhiiani foi durante oito anosseguidos secretrio do Comit Central do partido comunista georgiano.Todo este estado de coisas favorece a consolidao da burocracia e da

    tecnocracia como classe.Em seu livro Vers lautre flamme (At a outra chama), aparecido em Paris

    em 1929, Panait Istrati expunha com dados esta situao, descrevendo as diversaspropores nas quais as distintas classes do povo russo haviam poupado edepositado suas poupanas nas caixas durante o ano 1926: 12% eram poupanas

    de operrios, 3,6% camponeses, enquanto os funcionrios e outras categorias noespecificadas haviam depositado 56,7 %.

    A nova categoria dos chefes operrios e dos operrios especializados

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    stajanovistas vem sustentar a nova burguesia tecno-burocrtica. Os operriosno especializados constituem o verdadeiro proletariado industrial. Em 1935 osalrio mdio daquela categoria, se se consideram os preos da alimentao nesse

    mesmo ano era um salrio de fome, porque estava em 100 e 150 rublos mensais.Em Moscou por exemplo, um quilo de po branco custava de 2 a 6 rublos, a carnecustava de 10 a 15 rublos o quilograma, e um quilograma de mantega de 28 a 30rublos. Uma passagem de bonde de 10 a 25 copecas (isto um quarto de rublo), euma passagem de mtro 50 copecas (isto , meio rublo).

    Isvestia de 9 de maio de 1935 anunciava que um chefe de oficina dosaltos fornos de Krivoirog (Ucrnia) tinha recebido por salrio (ms de abril) 3.300rublos. LHumanit, cotidiano bolchevique de Paris, em seu nmero de 16 de

    dezembro de 1935 falava de um operrio que recebia 4.361 rublos em 24 dias ede um operrio que tinha recebido 233 por um s dia de trabalho.Em 15 de dezembro de 1935 LHumanit anunciava que as caixas de

    poupana da URSS tinham uma reserva de 4.256.000 rublos superior a 1 dedezembro de 1934. Em 1936 (de 1 de janeiro a 11 de maio) o total da poupanaaumentou 403 milhes de rublos contra 261 milhes pelo perodo correspondentea 1935. Os senhores Lewis e Abramson, que estiveram na Rssia por conta doBIT (Bureau Internationale du Travail) de Genebra, recentemente publicaram um

    informe que confirma a acentuao da diferenciao nos salrios industriais.

    Na indstria metalrgica -informam- a escala de salrios maisfrequentemente aplicada compreende oito classes (ou categorias). A taxado operrio menos qualificado est representada pelo coeficiente 1, e oda classe seguinte pelo coeficiente 1,15 e progressivamente 1,32, 1,51,1,83, 2,17, 2,61 e finalmente 3,13.

    Trabalho por servio, escala de salrios, sistema de prmios: tudo isto estcriando uma pequena-burguesia que sustenta a burguesia mdia tcnico-burocrticae retarda a terceira revoluo, preconizada pela opinio revolucionria,consolidando a ditadura de um cl.

    Este fenmeno de reconstituio das classes mediante o Estado foiprevisto por ns, e denunciado claramente. A oposio leninista no consegueaprofundar o exame etiolgico do fenmeno e porque no chega a revisar aposio leninista frente ao problema do Estado e a revoluo.

    17 de outubro de 1936.Publicado no segundo nmero de Guerra di classe.

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    A ABOLIO E

    A EXTINO DO ESTADO.Enquanto ns, os anarquistas, queremos a extino do Estado mediante a

    revoluo social e a constituio de uma nova ordem autonomista-federal, osleninistas querem a destruio do Estado burgus, mas assim mesmo a conquistado Estado pelo proletariado. O Estado do proletrio -dizem- um semi-Estadoporque o Estado integral o burgus, destrudo pela revoluo social. Inclusiveeste semi-Estado, segundo os marxistas, deve a sua vez morrer de morte natural.

    Esta teoria da extino do Estado, bsica no livro de Lenin O Estado e arevoluo foi tomada de Engels, que em A subverso da cincia pelo senhorEugen Duhring, diz:

    O proletariado toma o poder do Estado e transforma imediatamente osmeios de produo em propriedade do Estado. Por este ato se destri a simesmo enquanto proletariado. Elimina as diferenas de classes e todas ascontradies de classes, e ao mesmo tempo incluso o Estado enquanto

    Estado.

    A antiga sociedade, que existia e existe, atravs dos antagonismos declasse, tinha necessidade do Estado, isto de uma organizao da classeexploradora de cada perodo histrico para manter as condies externasde produo. Em particular, o Estado tinha como tarefa manter pela foraa classe explorada em condies de opresso necessrias para o modo deproduo existente (escravido, servido, trabalho assalariado).

    O Estado era o representante oficial de toda a sociedade e sua expressosintetizada em uma realidade visvel, mas s porque era o Estado da classe

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    que, em cada poca, representava a totalidade real da sociedade: Estadoantigo dos cidados proprietrios de escravos; Estado medieval da nobrezafeudal; Estado moderno da burguesia de nossa poca, ao menos desde o

    sculo passado.

    No entanto se chegasse a representar a realidade de toda a sociedade, sevoltaria ele mesmo suprfluo. Desde que no era mais necessrio manternenhuma classe social oprimida, desde o momento que so eliminadasconjuntamente com a soberania de classe a luta pela existncia individual,determinada pelo antiga desordem da produo, e os conflitos e excessosque eram seu resultado, a represso se faz desnecessria, e o Estado deixa

    de ser necessrio.

    O primeiro ato pelo qual o Estado se manifesta realmente comorepresentante da sociedade inteira, ou seja a apropriao dos meios deproduo em nome da sociedade, ao mesmo tempo o ltimo ato prpriodo Estado. A interveno do Estado na vida da sociedade se volta suprfluaem todos os campos, um depois de outro, e cai por si mesmo em desuso.O governo dos homens substitudo pela administrao das coisas e a

    direo do processo de produo. O Estado no abolido, seno quemorre. Nesta perspectiva necessrio situar a palavra de ordem Estadolivre do povo, em um sentido de agitao que, em um tempo, teve direitoa existncia e em ltima anlise, cientificamente insuficiente. necessrio, igualmente, situar-se sobre esta perspectiva para examinar asreivindicaes dos chamados anarquistas, que querem abolir o Estado deum dia para outro.

    Entre oEstado de hoje e aAnarquia de amanh, estaria o semi-Estado. OEstado que morre e o Estado enquanto Estado, ou seja, o Estado burgus. E neste sentido que se toma a frase, que a primeira vista parece contradizer a tesedo Estado socialista. O primeiro ato em que o Estado se manifesta realmentecomo representante de toda a sociedade, ou seja a tomada dos meios de produo

    em nome da sociedade, ao mesmo tempo o ltimo do Estado.Tomada literalmente, e arrancada de seu contexto esta frase poderia

    significar a simultaneidade temporal da socializao econmica e da extino do

    Estado.Desta maneira inclusive, tomada literalmente, a frase referente ao

    proletariado destrutor de si mesmo como proletariado no ato de se apoderar do

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    poder do Estado, viria a significar a no necessidade do Estado proletrio. Narealidade Engels, sob a influncia do estilo dialtico, se expressa muito poucofelizmente. Entre o hoje burgus-estatal e o amanh socialista-anrquico, Engels

    reconhece uma cadeia de etapas sucessivas, em que Estado e proletariadocoexistem. Para lanar uma luz nessa obscuridade... dialtica, e a aluso final aosanarquistas que querem abolir o Estado de um dia para outro, ou seja que noadmitem o perodo de transio com respeito ao Estado, cuja interveno segundoEngels- se volta suprflua em todos os campos, um depois de outro, ou sejagradualmente.

    Creio que a posio leninista frente ao Estado coincide estreitamente coma assumida por Marx e Engels, quando se interpreta o esprito dos escritos destes

    ltimos, sem se deixar enganar pela ambiguidade de alguma formulao.Para o pensamento poltico marxista-leninista, o Estado o instrumentopoltico transitrio da socializao, transitrio pela essncia mesma do Estado,que a de um organismo de domnio de uma classe sobre outra. O Estado socialista,ao abolir as classes, se suicida. Marx e Engels eram metafsicos, aos quais ocorriacom frequncia esquematizar os processos histricos por fidelidade ao sistemaque haviam inventado.

    O proletariado, que se apodera do Estado, ao que encomenda toda a

    propriedade dos meios de produo, destruindo-se a si mesmo como proletariadoe o Estado enquanto Estado, uma fantasia metafsica, uma hiptese polticadas abstraes sociais.

    No o proletariado russo quem se apoderou do poder do Estado, mas opartido bolchevique, que no destruiu inteiramente o proletariado, e que criou,em troca, um capitalismo de Estado, uma nova classe burguesa, um conjunto deinteresses vinculados ao Estado bolchevique, que tendem a se conservar na medidaque se conserva aquele Estado.

    A extino do Estado est mais longe que nunca na URSS, onde ointervencionismo estatal cada vez mais vasto e opressivo, e onde as classes notem desaparecido.

    O programa leninista de 1917 compreendia estes pontos: supresso dapolcia e do exrcito permanente; abolio da burocracia profissional; eleiespara todas as funes e cargos pblicos; revogabilidade de todos os funcionrios;igualdade das remuneraes burocrticas com os salrios operrios; mximademocracia; pluralidade pacfica dos partidos no interior dos Soviets; derrogao

    da pena de morte. Nenhum destes pontos programticos foram cumpridos.Na URSS h um governo que uma oligarquia ditatorial. O Bureau Poltico

    do Comit Central (19 membros) domina o partido comunista russo, que por sua

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    vez domina a URSS. Toda cor poltica que no pertena aos sditos, tachada decontra-revolucionria. A revoluo bolchevique gerou um governo satrnico, quedeporta Riazanov, fundador do Instituto Marx-Engels, enquanto est dirigindo a

    edio integral e original de O Capital; que condena a morte Zinoviev, presidenteda Internacional Comunista, assim como Kamenev e muitos outros entre os maisaltos expoentes do leninismo, que exclui do partido, para enseguida expuls-loda URSS um chefe como Trotsky, que em suma castiga sem considerao e seenfurece contra oitenta por cento dos principais militantes leninistas.

    Lenin escrevia em 1920 um elogio da autocrtica no seio do PartidoComunista, mas falava dos erros, reconhecidos pelo partido, e no do direitodo cidado a denunciar os erros, ou o que lhe parece como tais, do partido do

    governo.Ainda sendo Lenin ditador, qualquer um que denunciasse oportunamenteaqueles mesmos erros que o prprio Lenin reconhecia retrospectivamente,arriscava, ou suportava, o ostracismo, a priso ou a morte. O sovietismobolchevique era uma atroz burla, tambm da parte de Lenin, que glorificava opoder demirgico do comit central do Partido Comunista russo em toda a URSSdizendo: Em nossa repblica no se decide nenhum assunto importante, seja deordem pblica, ou relativo a organizao de uma instituio estatal, sem as

    instrues diretivas que emanam do Comit Central do Partido.Quem diz Estado proletrio, diz capitalismo de Estado. Quem dizditadura do proletariado, diz ditadura do partido comunista.

    Leninistas, trotskistas, bordiguistas, centristas, s esto divididos pordiferentes concepes tticas. Todos os bolcheviques, qualquer que seja a fraoa que pertenam, so partidrios da ditadura poltica e o socialismo de Estado.Todos esto unidos pela frmula ditadura do proletariado, forma equvoca,correspondente ao povo soberano do jacobinismo. Qualquer que seja o

    jacobinismo est condenado sempre a desviar a revoluo social. E quando estase desvia se perfila a sombra de um Bonaparte.Se necessita ser cego para no ver que o bonapartismo stalinista, no

    mais que a sombra do ditatorialismo leninista.

    24 de outubro de 1936.Publicado no terceiro nmero de Guerra di classe.

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    A DITADURA DO PROLETARIADO E

    O SOCIALISMO DE ESTADO.A ditadura do proletariado um conceito marxista. De acordo com Lenin,

    marxista s aquele que estende o reconhecimento da luta de classes aoreconhecimento da ditadura do proletariado.

    Lenin tinha razo porque a ditadura do proletariado no , para Marx,mais que a conquista do Estado por parte do proletariado que, organizado emclasse politicamente dominante, chega mediante o socialismo de Estado a supresso

    de todas as classes.Na Crtica do programa de Gotha, escrita por Marx no ano 1875 se l:

    Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista existe um perodode transformao revolucionria de uma na outra. A este perodocorresponde tambm um perodo de transio poltica no qual o Estadono pode ser outra coisa que a ditadura revolucionria do proletariado.

    OManifesto Comunista (1847) diz:

    O primeiro passo da revoluo operria o ascenso do proletariado aclasse dominante...

    O proletariado utilizar seu domnio poltico para arrancar pouco a poucoda burguesia todo o capital e concentrar todos os instrumentos de produoem mos do Estado, ou seja, do proletariado organizado em classe

    dominante.

    Lenin, em O Estado e a Revoluo confirma a tese marxista:

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    O proletariado tem necessidade do Estado s por um certo tempo.Quanto a supresso do Estado como meta, no nos diferenciamos nesse

    ponto completamente dos anarquistas. Afirmamos que para alcanar estameta, indispensvel utilizar temporalmente contra os exploradores, osinstrumentos, os meios e os procedimentos do poder poltico, assim como indispensvel, para suprimir as classes instaurar a ditadura temporriada classe oprimida...

    O Estado se extingue na medida que deixamos de ser capitalistas, notemos mais classes, e no existe mais, por consequncia, a necessidade

    de aniquilar nenhuma classe.

    Mas o Estado no est todavia inteiramente morto, porque ainda osalvaguarda o direito burgus, que consagra, de fato, a desigualdade.Para que o Estado perea completamente, necessrio o advento docomunismo total.

    O Estado proletrio concebido como uma forma poltica transitria

    destinada a destruir as classes. O gradualismo na expropriao e a idia de umcapitalismo de Estado so as bases desta concepo. O programa econmico deLenin, na vspera da revoluo de Outubro, termina com esta frase: O socialismono outra coisa que um monoplio socialista estatal.

    Segundo Lenin, a diferena entre os marxistas e os anarquistas consisteno seguinte: 1) os marxistas, incluso propondo-se a destruio completa do Estado,

    no a acham realizvel seno depois da destruio das classes por obra da

    revoluo socialista, como um resultado do advento do socialismo, que terminar

    com a extino do Estado; os anarquistas querem a completa supresso do Estadode um dia para outro, sem compreender quais so as condies que a possibilitam.

    2) Os marxistas proclamam a necessidade para o proletariado da apropriao

    do poder poltico, de destruir inteiramente a velha mquina estatal e substitu-la

    por uma nova, consistente na organizao dos trabalhadores armados, ao estilo

    da Comuna: os anarquistas, reclamando a destruio da mquina estatal, no

    sabem exatamente com que coisa ser substituda, pelo proletariado, nem que

    uso far este do poder revolucionrio; chegam at a repudiar qualquer uso do

    poder poltico por parte do proletariado revolucionrio e rechaam a ditadurarevolucionria do mesmo. 3) Os marxistas buscam preparar o proletariado para

    a revoluo empregando em seu benefcio o Estado moderno, e os anarquistas

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    rechaam este mtodo.Lenin deforma a coisa. Os marxistas no se propem a destruio completa

    do Estado, e sim prevem a extino natural do Estado como consequncia da

    destruio das classes realizada pela ditadura do proletariado ou pelo socialismode Estado, enquanto os anarquistas querem a destruio das classes, medianteuma revoluo social que suprima o Estado junto com as classes. Os marxistas,alm do mais, no propugnam a conquista armada da Comuna por parte de todo oproletariado, seno a conquista do Estado por parte do partido que presumerepresentar o proletariado. Os anarquistas admitem o uso de um poder polticopelo proletariado, mas tal poder poltico entendido como o conjunto dos sistemasde gesto comunista, dos organismos corporativos, das instituies comunais,

    regionais e nacionais livremente constitudas fora e contra o monoplio polticode um partido, e tendendo mnima centralizao administrativa. Lenin, aos efeitospolmicos, simplifica arbitrariamente os termos das diferenas correntes entre osmarxistas e ns.

    A frmula leninista os marxistas querem preparar o proletariado para arevoluo utilizando em seu proveito o Estado moderno, se encontra na base dojacobinismo leninista, o mesmo que no parlamentarista e no ministerialismo social-reformista. Nos congressos socialistas internacionais de Londres (1896) e de Paris

    (1900), se estabeleceu que podiam aderir a Internacional Socialista s os partidose as organizaes operrias que reconheceram o princpio da conquista socialistado poder pblico por parte do proletariado organizado em partido de classe. Aciso se produziu sobre este ponto, mas efetivamente, a excluso dos anarquistasdo seio da Internacional, significou o triunfo do possibilismo, do oportunismo,do cretinismo parlamentar e do ministerialismo.

    Os sindicatos parlamentares, assim como algumas fraes comunistasreclamando-se marxistas, rechaam a conquista socialista pr-revolucionaria ou

    no revolucionria do poder pblico.Qualquer dia uma mirada retrospectiva da histria do socialismo, depoisda separao dos anarquistas, no poder deixar de constatar a gradual degeneraosofrida pelo marxismo como filosofia poltica atravs das interpretaes e a prticasocialdemocrata.

    O leninismo constitui, sem dvida, um retorno ao esprito revolucionriodo marxismo, mas tambm significa um retorno ao sofisma e a subtrao dametafsica marxista.

    5 de novembro de 1936.Publicado no quinto nmero de Guerra di classe.

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    CARTA ABERTA COMPANHEIRA

    FEDERICA MONTSENY.Querida companheira:Tinha a inteno de me dirigir a todos vocs, companheiros ministros, mas

    agora com a pluma na mo, espontaneamente, resolvi me dirigir a ti somente eno quero contrariar um impulso sbito, pois uma boa regra em tal gnero deassuntos seguir os instintos.

    No te maravilhe que no coincida sempre contigo, nem te irrite, alm domais tu tem te mostrado cordialmente esquecida de crticas que nem sempre foide teu gosto, e que haveria sido to natural como humano, considerar injustas eexcessivas. uma qualidade, e no pequena a meus olhos, e testemumha a naturezaanarquista de teu esprito. Essa certeza e temperamento compensa com eficcia,se entende para minha amizade, as discrepncias ideolgicas com alguns aspectosde teus artigos de estilo personalssimo e teus discursos de uma eloqunciaadmirvel.

    No tenho conseguido aceitar por exemplo tua identificao entre oanarquismo bakuninista e o republicanismo federalista de Francisco Pi y Margall,e no te perdo ter escrito que na Rssia no foi Lnin o verdadeiro construtorda Rssia, seno Stlin, esprito realizador, etc., etc. tenho aplaudido a respostade Volin publicada em Terre libre sobre tua inexata afirmao sobre o movimentoanarquista ruso.Mas no de tudo isto que quero hoje te falar. Sobre aquelas, eoutras muitas coisas nossas, espero um dia ou outro ter ocasio de discuti-laspessoalmente contigo. Se me dirijo a ti em pblico por assuntos infinitamente

    mais graves, para te reclamar enormes responsabilidades das quais poderia que tuno sejas consciente dada tua modstia.Em teu discurso de 3 de janeiro dizias:

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    Os anarquistas tem entrado no governo para impedir que a revoluo sedesviasse e para continu-la mais alm da guerra, e tambm para se opor a todaeventual tentativa ditatorial, seja qual seja.

    E bem companheira, em abril, depois de trs meses de experinciacolaboracionista, estamos em uma situao na qual sucedem graves fatos e seanunciam outros piores.

    Ali onde - como em Vasconia, Levante e Castilla-, o nosso movimento impotente emforas de base, isto que no tem criado sindicatos vastos e umapreponderante adeso das massas, a contra-revoluo oprime e ameaa esmagartudo. O governo est em Valncia, e dali partiram guardas de assalto destinados a

    desarmar os ncleos revolucionrios de defesa. Se recorda de Casas Viejas,pensando em Vilanesa. So da Guarda Civi1 e da Guarda de assalto os queconservam as armas, e aqui na retaguarda que devem controlar osincontrolveis, que ousam desarmar de alguns fuzis e revlveres os ncleosrevolucionrios. Entretanto a frente interna no eliminada. Isto se produz emuma guerra civil na qual todas as surpresas so possveis, e em uma regio naqual a frente est bem prxima, muito irregular em seu traado e no matematicamente seguro. Isto, enquanto que aparece clara a distribuiopoltica

    das armas, que tende a armar s na medida do estritamente necessrio.Estritamente necessrio, esperamos que se arme a frente de Aragn, escolta armadadas coletivizaes agrrias e contraforte do Conselho de Aragn e da Catalunha,a Ucrnia ibrica.

    T ests em um governo que tem oferecido a Frana e Inglaterra vantagensem Marrocos, enquanto desde julho de 1936 seria necessrio proclamaroficialmente a autonomia poltica marroquina. O que pensas, como anarquista,deste assunto ignbil e ademais estpido, eu imagino, mas entendo que tem

    chegado a hora de fazer saber que tu, e contigo os outros anarquistas, no concordacom a natureza e o teor de tais propostas.Em 24 de outubro de 1936 eu escrevia em Guerra di classe:A base de operaes do exrcito fascista Marrocos. Corresponde

    intensificar a propaganda a favor da autonomia marroquina sobretudo o setor deinfluncia pan-islmica. necessrio impor ao governo de Madri declaraesinequvocas de sua vontade de abandonar Marrocos, assim como proteger aautonomia marroquina. A Frana v com preocupao a possibilidade de

    repercusses insurrecionais na frica Setentrional e na Sria e a Inglaterra vreforada a agitao autonmica egpcia e dos rabes da Palestina. Correspondeaproveitar tais preocupaes, com uma poltica que ameace desencadear a revolta

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    do mundo islmico.Para tal poltica necessrio investir dinheiro e urge enviar emissrios

    agitadores e organizadores a todos os centros da emigrao rabe e em todas as

    zonas da fronteira do Marrocos francs. Nas frentes de Arago, do Centro, Asturiase Andaluzia, bastaro alguns marroquinos com funes de propagandistas,dispondo de rdio, impressos, etc.

    evidente que no se pode garantir os interesses dos ingleses e francesesno Marrocos, e ao mesmo tempo fazer obra insurrecional. Valncia continua apoltica de Madri. necessrio que isto mude. necessrio, para mudar, dizerclara e fortemente todo nosso pensamento, porque em Valncia atuam influnciastendentes a pactar com Franco.

    Jean Zyromsky escreve emLe Populaire de 3 de maro:Estas manobras so visveis e tendem a concluso de uma paz que, narealidade, significaria no somente deter a revoluo espanhola, mas incluso anularas conquistas sociais j realizadas.

    Nem Largo Caballero nem Franco, tal seria a frmula que expressariasumariamente uma concepo que existe, e eu no estou seguro de que ela notenha o beneplcito de certos meios polticos, diplomticos e inclusive

    governamentais na Inglaterra, e tambm na Frana.Estas influncias, estas manobras, explicam vrios pontos obscuros, comopor exemplo: a inatividade da marinha de guerra leal. A concentrao das forasprovenientes do Marrocos, a pirataria de Canarias e de Baleares; a tomada deMlaga, no so seno as consequncias. E a guerra no tem terminado! SeIndalecio Prieto incapaz e indolente, por que toler-lo? Se Prieto est ligado auma poltica que paraliza a marinha, por que no denunciar essa poltica?

    Vocs ministros anarquistas, do discursos eloquentes e escrevem brilhantes

    artigos, mas no com discursos e artigos que se vence na guerra e se defende arevoluo. Aquela se vence e esta se defende permitindo a passagem da defensiva ofensiva. A estratgia de posies no pode se eternizar. O problema no seresolve lanando consignas como: mobilizao geral, armas para a frente, mandonico, exrcito popular, etc. O problema se resolve realizando imediatamente oque pode se realizar.

    Segundo La Dpche de Toulouse do 17 de janeiro:A grande preocupao do Ministrio do Interior restabelecer a autoridade

    do Estado sobre os grupos e sobre os incontrolveis de todas as tendncias. evidente que, ainda que se comprometeram durante meses a buscar o

    aniquilamento dos incontrolveis, no se pode resolver o problema de eliminar

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    a quinta coluna. A eliminao da frente interna tem por prvia condio umaatividade de investigao e de represso que no pode ser cumprida seno porrevolucionrios experimentados. Uma poltica interna de colaboracionismo entre

    as classes e de adulao das classes mdias, conduz inevitavelmente a tolernciacom os elementos polticamente equvocos. A Quinta Coluna est constituda,no s por elementos pertencentes a formaes fascistas, mas ademais por todosos descontentes que aspiram a uma repblica moderada. So estes ltimoselementos os que se aproveitam da tolerncia dos caadores de incontrolveis.

    A eliminao da frente interna tem por condio prvia, uma atividadeampla e radical dos comits de defesa constitudos pela CNT e a UGT.

    Ns assistimos a penetrao nos quadros dirigentes do exrcito popular de

    elementos equvocos, no garantidos por nenhuma organizao poltica ou sindical.Os comits e os delegados polticos das milcias exerciam um controle saudvel.Hoje est debilitado pelo predomnio de sistemas centralizados de nomeamentose promoes, que se convertem estritamente em militares.

    necessrio reforar a autoridade destes comits e destes delegados.Assistimos ao fato novo, e que pode ter consequncias desastrosas, que batalhesinteiros esto mandados por oficiais que no desfrutam da estima e do afeto dosmilicianos. Este fato grave porque a maioria dos combatentes espanhis vale na

    batalha em proporo a confiana que tem em seu prprio comandante. necessrio portanto restabelecer a elegibilidade direta e o direito de destituiopela base.

    Poderia continuar sobre esse tema.Gravssimo erro tem sido aceitar frmulas autoritrias, no porque foram

    tais, mas porque nos levam a erros enormes e a fins polticos que nada tem a vercom as necessidades da guerra.

    Tenho tido ocaso de falar com altos oficiais italianos, franceses e belgas,

    e tenho constatado que eles tem, da necesidade real da disciplina, uma concepomuito mais moderna e racional da que certos neo-generais pretendem realista.Creio que hora de constituir o exrcito confederal, como o Partido

    Comunista tem constitudo seu corpo prprio: o Quinto Regimento das milciaspopulares. Creio que hora de resolver o problema do mando nico, realizandouma efetiva unidade do mando que permita passar a ofensiva na frente aragonsa.Creio que tem chegado a hora de terminar com o escndalo de milhares de guardascivis e de guardas de assalto, que no vo frente, porque se dedicam a controlar

    os incontrolveis. Creio que tem chegado a hora de criar uma sria indstria deguerra. E creio que hora de terminar com certas curiosidades, to flagrantescomo as do repouso dominical e a de certos direitos operrios sabotadores da

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    defesa da revoluo. necessrio, ante tudo, manter elevado o esprito doscombatentes. Luigi Bertoni, se fazendo intrprete dos sentimentos expressos porvrios companheiros italianos combatentes na frente de Huesca, escrevia no faz

    muito:A guerra da Espanha despojada de toda f nova, de toda idia detranformao social, de toda grandeza revolucionria, de todo sentido universal,no mais que uma vulgar guerra de independncia nacional, que necessrioafrontar para evitar o extermnio que a plutocracia mundial se prope.

    Fica a terrvel questo de vida ou morte, mas no mais uma guerra deafirmao de um novo regime ou de uma nova humanidade. Se diria que nemtudo est todavia perdido, mas na realidade est tudo ameaado e comprometido

    e os nossos tem uma linguagem de renunciadores, o mesmo que tinha o socialismoitaliano ante o avano do fascismo:Cuidado com as provocaes!, Calma e serenidade!, Ordem e

    disciplina! Todas as coisas que prticamente se resumem em: deixar fazer. Ecomo na Itlia o fascismo terminou por triunfar, na Espanha o antisocialismo,com vestimentas republicanas, no poder menos que vencer, a menos queacontecimentos que escapam a nossas previses se produza. Es intil agregar oque ns constatamos, sem condenar os nossos, cuja conduta no sabemos dizer

    como poderia ter uma alternativa diferente e eficaz, enquanto que a presso talo-alem cresce na frente e a bolchevizao na retaguarda.Eu no tenho a modstia de Luigi Bertoni. Tenho a presunso de afirmar

    que os anarquistas espanhis poderiam ter uma linha poltica diferente da queprevalece, e pretendo aconselhar algumas linhas gerais de conduta, atento asexperincias das grandes revolues recentes e ao que leio na prpria imprensalibertria espanhola.

    Creio que tu deves se colocar o problema de saber onde defendes melhor a

    Revoluo, se aportas uma maior contribuio luta contra o fascismo,participando no governo, ou se no seria infinitamente mais til levando a chamade tua magnfica palavra entre os combatentes e na retaguarda.

    Tem chegado a hora de esclarecer incluso a significao unitria que podeter vossa participao no governo. necessrio falar com as massas, e cham-lasa julgar se tinha razo Marcel Cachin, quando declara (LHumanit, 23 de maro):Os responsveis anarquistas multiplicam seus esforos unitrios e suas chamadasso escutadas de forma crescente; ou se tem razo Pravda e Izvestia, quando

    caluniam os anarquistas espanhis tratando-lhes por sabotadores da unidade.Chamar tambm as massas para julgar a cumplicidade moral e poltica do silncioda imprensa anarquista espanhola sobre os delitos ditatoriais de Stlin, das

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    perseguies contra os anarquistas russos, e nos monstruosos processos contra aoposio leninista e trotskista, silncio recompensado e com mrito pelasdifamaes deIzvestia contra Solidaridad Obrera de Barcelona.

    Chamar as massas a julgar se certas manobras de sabotagem aoabastecimento na entram no plano anunciado em 17 de dezembro de 1936 noPravda:

    E quanto a Catalunha, tem comeado a limpeza de elementos trotskistas eanarcosindicalistas, obra que ser levada com a mesma energia com que tem sidolevada na URSS.

    hora de dar conta se os anarquistas esto no governo para se fazer devestais de um fogo, quase extinto, ou bem se esto para servir de gorro frigio a

    politicastros que flertam com o inimigo, ou com as foras da restaurao daRepblica de todas as classes. O problema se coloca com a evidncia de umacrise que sobrepassa os atores representativos que hoje ocupam o cenrio.

    O dilema: guerra ou revoluo, j no tem sentido. O nico dilema este:ou a vitria sobre Franco graas a guerra revolucionria, ou a derrota.

    O problema para ti, e para os outros companheiros, o de escolher entre aVersalles de Thiers ou a Paris da Comuna, antes de que Thiers e Bismark faam aunio sagrada.

    A ti toca responder, porque tu s a luz escondida.Fraternalmente

    Camillo Berneri

    14 de abril de 1937.Editorial do peridico Guerra di classe.

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    O CRETINISMO ANARQUISTA.Ainda que choque associar as duas palavras, tenho que reconhecer que

    existe um cretinismo anarquista. So seus expoentes no s cretinos que no temcompreendido nada da anarquia e do anarquismo, mas tambm companheirosautnticos que tem se enredado nele no por misria de substncia parda, mas porcertas extravagncias de conformao cerebral. Estes cretinos do anarquismo tema fobia do voto ainda que se trate de aprovar ou desaprovar uma deciso

    estritamente ligada com as coisas de nosso movimento, tem a fobia do presidentede assemblia ainda que tenha se feito necessrio pelo mal funcionamento dosfreios inibitrios dos indivduos livres que dessa assemblia constituem avociferante maioria, e tem outras fobias que mereceriam um longo discurso, seeste tema no fosse demasiado candente de humilhao. O problema daestruturao espiritual da questo social no tem sido colocado e estudado osuficiente. Quando em uma reunio me encontro com algum que quer fumarainda que o ambiente seja estreito e sem ventilao, desinteressando-se das

    companheiras presentes ou dos doentes de bronquios que parecem presa de umatosse canina, e quando este indivduo responde as observaes, ainda cordiais,reivindicando a liberdade do eu, pois bem, eu que sou fumante e por acrscimoalgo tolstoiano no carter, queria ter os msculos de um boxeador negro pra fazersair voando do local o nico em questo, ou a pacincia de Job para lhe explicarque um cretino grosseiro. Se a liberdade anarquista a liberdade que no violaa dos demais, falar duas horas seguidas para dizer bobagens constitui uma violaoda liberdade do pblico de no perder tempo e se chatear mortalmente. Em nossas

    reunies, teria que se estabelecer a regra da condicional liberdade de palavra:renovvel a cada dez minutos. Em dez minutos, a no ser que no queiram seexplicar as relaes entre as manchas solares e a necessidade dos sindicatos, ou

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    as existentes entre a moral haeckeliana e a filosofia de Max Stirner, se pode, seno se deseja fazer gala de erudio ou de eloquncia, expor a prpria opiniosobre uma questo relativa ao movimento quando esta questo no seja de...

    importncia capital. O mal que muitos querem buscar as muitas, numerosas,variadas, mltiplas, inumerveis razes, como dizia um destes oradores de longametragem, em vez de buscar e expor as poucas e compreensveis razes queencontra e sabe comunicar qualquer um que tenha o costume de pensar antes defalar. Desgraadamente sucede que so necessrias reunies de horas e horas praresolver queste que com um pouco de reflexo e simplicidade de esprito seresolveriam em meia hora. E se algum prope, extremo remdio da babelvociferante, um presidente, nesse regulador da reunio que todavia tem menos

    autoridade que um rbitro em uma partida de futebol, certos vestais da Anarquiaveem... um duce. Para quem este discurso? Os companheiros da regio parisienseque tem afrontado recentemente o gasto e a fadiga de ir a uma reunio, delocalidades distantes, para assistir o espetculo de gente que gritavacontemporaneamente entrecruzando dilogos que se convertiam em monlogospela confuso imperante e delirante, regressando cabisbaixos a suas casas estavamde acordo em pensar que a jaula dos papagaios do zoolgico de Paris umespetculo muito mais interessante. Quando uns anarquistas no conseguem

    organizar um problema menos difcil que a quadratura do crculo, nem expor porturno seu pensament