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139 ARTIGO ARTICLE A relação assimétrica médico-paciente: repensando o vínculo terapêutico Asymmetric doctor-patient relationship: rethinking the therapeutic bond 1 Universidade Estadual do Ceará, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Pública. Av. Paranjana 1700, Itaperi, 60740-000, Fortaleza CE. [email protected] Andrea Caprara 1 Josiane Rodrigues 1 Abstract Doctor-patient relationship encoun- ters a renewed interest in scientific production, medical education, and clinical practice, with the application of communication techniques that improve the quality of communication. The pre- sent article discusses about factors affecting the relationship through a literature review and the research results on doctor-patient relationship in the Family Health Program of the Ceará State. A better doctor-patient relationship doesn’t have only positive effects on users’ satisfaction and health services quality, but it influences directly the health state of patients. This demand requires the introduction of changes seeking the acquisi- tion of competences in doctors’ training. Key words Medical humanities, Doctor-patient communication, Medical education, Family health Resumo A relação médico-paciente é uma te- mática que hoje encontra um renovado interesse na produção cientifica, na formação e prática clí- nica com a aplicação de técnicas comunicacionais que podem proporcionar uma melhor qualidade na relação. O presente artigo, por meio de uma revisão da literatura e da apresentação dos resul- tados de uma pesquisa que realizamos sobre a re- lação entre médicos e pacientes no Programa de Saúde da Família no Estado do Ceará, se propõe a refletir sobre quais os fatores que estão na raiz desta problemática. Uma melhor relação médico- paciente não tem somente efeitos positivos na sa- tisfação dos usuários e na qualidade dos serviços de saúde, mas exerce também uma influência di- reta sobre o estado de saúde dos pacientes. Esta demanda exige a implementação de mudanças visando à aquisição de competências na formação dos médicos. Palavras-chave Humanidades médicas, Rela- ção médico-paciente, Formação médica, Saúde da família

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A relação assimétrica médico-paciente:repensando o vínculo terapêutico

Asymmetric doctor-patient relationship:rethinking the therapeutic bond

1 Universidade Estadual do Ceará, Centro deCiências da Saúde,Departamento de SaúdePública.Av. Paranjana 1700, Itaperi,60740-000, Fortaleza [email protected]

Andrea Caprara 1

Josiane Rodrigues 1

Abstract Doctor-patient relationship encoun-ters a renewed interest in scientific production,medical education, and clinical practice, with theapplication of communication techniques thatimprove the quality of communication. The pre-sent article discusses about factors affecting therelationship through a literature review and theresearch results on doctor-patient relationship inthe Family Health Program of the Ceará State. Abetter doctor-patient relationship doesn’t haveonly positive effects on users’ satisfaction andhealth services quality, but it influences directlythe health state of patients. This demand requiresthe introduction of changes seeking the acquisi-tion of competences in doctors’ training.Key words Medical humanities, Doctor-patientcommunication, Medical education, Family health

Resumo A relação médico-paciente é uma te-mática que hoje encontra um renovado interessena produção cientifica, na formação e prática clí-nica com a aplicação de técnicas comunicacionaisque podem proporcionar uma melhor qualidadena relação. O presente artigo, por meio de umarevisão da literatura e da apresentação dos resul-tados de uma pesquisa que realizamos sobre a re-lação entre médicos e pacientes no Programa deSaúde da Família no Estado do Ceará, se propõea refletir sobre quais os fatores que estão na raizdesta problemática. Uma melhor relação médico-paciente não tem somente efeitos positivos na sa-tisfação dos usuários e na qualidade dos serviçosde saúde, mas exerce também uma influência di-reta sobre o estado de saúde dos pacientes. Estademanda exige a implementação de mudançasvisando à aquisição de competências na formaçãodos médicos.Palavras-chave Humanidades médicas, Rela-ção médico-paciente, Formação médica, Saúdeda família

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Introdução

O tema da relação entre médicos e pacientesnão é novo para a profissão médica. Na metadedo século 20 este aspecto foi abordado por au-tores como Jaspers (1991), Balint (1988), Par-sons (1951), Donabedian (1990), mas é a pró-pria história da medicina que traz no seu bojoesta questão, como um indicador dos proces-sos de mudanças a que vem se submetendo.Edward Shorter enfatiza como a descobertados sulfamídicos e da penicilina, nos anos 30-40, influenciou uma importante transformaçãoseja na prática, seja na formação médica. O de-senvolvimento da bioquímica, da farmacologia,da imunologia e da genética também contri-buiu para o crescimento de um modelo biomé-dico centrado na doença, diminuindo assim ointeresse pela experiência do paciente, pela suasubjetividade. As novas e sempre mais sofisti-cadas técnicas assumiram um papel importan-te no diagnóstico em detrimento da relaçãopessoal entre o médico e o paciente. A tecnolo-gia foi se incorporando no exercício da profis-são, deixando-se de lado o aspecto subjetivo darelação.

Enquanto os avanços tecnológicos mostra-vam-se significativos, não se percebiam mu-danças correspondentes nas condições de vida,como também, não se verificava o aperfeiçoa-mento das práticas de saúde, como práticascompostas pela comunicação, pela observação,pelo trabalho de equipe, por atitudes funda-mentadas em valores humanitários sólidos.Atualmente, existem recursos para lidar comcada fragmento do homem, mas falta ao médi-co a habilidade para dar conta do mesmo ho-mem em sua totalidade (Jaspers, 1991).

Hoje, a temática sobre a relação médico-pa-ciente encontra um renovado interesse na pro-dução cientifica, na formação e prática clínicabuscando proporcionar uma melhoria da qua-lidade do serviço de saúde. Um trabalho publi-cado recentemente mostra que cerca de 1.000 a1.200 das publicações científicas por ano sãoreferentes ao tema (Tagliavini e Saltini, 2000),com a aplicação de técnicas comunicacionaisque podem proporcionar um melhor atributona relação. A maior parte da produção apresen-ta resultados de pesquisas empíricas (Fallow-field et al., 1990) e a aplicação de instrumentosde observação e avaliação (Brown et al., 1994).Outras publicações tocam a necessidade de for-mular programas de formação (Branch et al.,1991; McManus et al., 1993), constituindo-se

manuais práticos de referência (Lloyd e Bor,1996; Neighbour, 1996; Pendleton et al., 1997;Silverman et al., 1999; Maguire, 2000; Tatarelliet al., 1998). Essa vasta produção sobre o temano contexto anglo-saxônico se contrapõe a umnúmero ainda limitado de pesquisas no Brasil(Sucupira, 1982; Schraiber, 1993; Caprara eFranco, 1999; Goulart, 1998).

Inicialmente, o presente artigo pretende,através de uma revisão da literatura, analisaralguns fatores que acreditamos estar na raizdesta temática. Apresentando, em seguida, osresultados de uma pesquisa que realizamos so-bre a relação entre médicos e pacientes no Pro-grama de Saúde da Família no Estado do Cea-rá, tentaremos identificar as principais caracte-rísticas da relação definindo os principais pro-blemas e algumas possíveis soluções. Por fim,abordaremos alguns programas de formaçãoque mostram a importância dessa temática nãosomente para a melhoria da qualidade dos ser-viços de saúde, mas também pela influência di-reta sobre o estado de saúde dos pacientes.

As raízes da problemática

Assim como apresentado por Le Fanu (2000),uma série de paradoxos acompanha a históriarecente da medicina. Por exemplo, espera-seque os sucessos da medicina sejam acompa-nhados por um aumento do grau de satisfaçãodos médicos que escolhem a carreira de medi-cina; estudos recentes, no entanto, mostramque um número crescente deles está mais desi-ludido e insatisfeito. Um segundo paradoxo es-tá ligado aos benefícios derivados da práticamédica que poderiam reduzir os medos e an-siedades das pessoas. Mas, ao contrário, elas es-tão sempre mais preocupadas por uma série deriscos atrelados ao estilo de vida, em um pro-cesso de procura obsessiva de um estado deperfeita saúde (Healthism), sempre mais preo-cupante. Outro paradoxo está associado ao fatode que a eficácia e os sucessos da medicina mo-derna teriam de ser acompanhados pelo desa-parecimento das outras formas de medicina. Oque acontece é o oposto, observa-se um au-mento impressionante em todo o mundo oci-dental da utilização das medicinas não-con-vencionais. Enfim, apesar dos sucessos da me-dicina moderna, os custos da saúde continuamaumentando em um verdadeiro processo deexplosão dos gastos da assistência sanitária (LeFanu, 2000).

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Entre os fatores determinantes desta situa-ção, apresenta-se a necessidade de melhorar aqualidade dos serviços de saúde, o ponto devista dos usuários, e da população que em geralé considerado um elemento fundamental desteprocesso (Lewis et al., 1995; Rosenthal et al.,1997; Gattinara et al., 1995). A partir dos estu-dos de Donabedian, nas décadas de 1970 e1980, se conhece que a qualidade dos serviçosde saúde, assim como percebida pelos pacien-tes, depende de 30 a 40% da capacidade diag-nóstica e terapêutica do médico, e de 40 a 50%da relação que se estabelece entre profissionaisde saúde e usuários, em particular entre médi-co e paciente (Donabedian, 1990). Hoje não émais suficiente organizar os serviços de saúdemais eficientes, e sim considerar, como afirmaSpinsanti em seu recente trabalho: o respeitodos valores subjetivos do paciente, a promoção desua autonomia, a tutela das diversidades cultu-rais (Spinsanti, 1999).

Um segundo aspecto se refere à racionali-zação científica da medicina moderna, baseadanuma mensuração objetiva e quantitativa, bemcomo, na visão dualista mente-corpo (Helman,1984). Esse modelo subestima a dimensão psi-cológica, social e cultural da relação saúde-doença, com os significados que a doença assu-me para o paciente e seus familiares. Os médi-cos e pacientes, mesmo pertencendo à mesmacultura, interpretam a relação saúde-doença deformas diferentes. Além dos aspectos culturaistemos de enfatizar que eles (médicos e pacien-tes) não se colocam no mesmo plano: trata-sede uma relação assimétrica em que o médicodetém um corpo de conhecimentos do qual opaciente geralmente é excluído (Arrow, 1963).

Enfim, propomos analisar que, no processodiagnóstico e terapêutico, a familiaridade, aconfiança e a colaboração estão altamente im-plicadas no resultado da prática médica. O mé-dico não é ativamente estimulado a pensar opaciente em sua inteireza, como um ser bio-psicossocial, e a perceber o significado do adoe-cer para o paciente.

Diferentes autores, como Gadamer (1994)e Wulff, Pedersen e Rosemberg (1995) expres-sam a necessidade de um processo de humani-zação da medicina, em particular da relaçãoentre médicos e pacientes, reconhecendo a ne-cessidade de uma maior sensibilidade diantedo sofrimento da doença. Esta proposta aspirapelo nascimento de uma nova imagem profis-sional, responsável pela efetiva promoção dasaúde ao considerar o paciente em sua integri-

dade física, psíquica e social e não somente deum ponto de vista biológico. Para esses auto-res, o desenvolvimento dessa sensibilidade esua aplicação na prática médica constituem omais importante desafio para a biomedicina doséculo 21. No momento em que nos encontra-mos, a medicina não está preparada para en-frentar este novo desafio (Caprara & Franco,1999).

Os problemas que enfatizam a assimetriana relação: médicos e pacientes noPrograma de Saúde da Família no Estadodo Ceará

Em 1994 foi realizado um encontro que tevecomo foco da discussão a relação médico-pa-ciente e suas dificuldades, concluindo-se comuma declaração de consenso conhecida inter-nacionalmente como Toronto Consensus Sta-tement (Simpson et al., 1991). Entre os dadosapresentados podemos destacar que 54% dosdistúrbios percebidos pelos pacientes não sãotomados em consideração pelos médicos du-rante as consultas (Stewart et al., 1979), bemcomo 50% dos problemas psiquiátricos e psi-cossociais não são considerados (Schulberg etal., 1988; Freeling et al., 1985). Em 50% dasconsultas, médicos e pacientes não concordamsobre a natureza do problema principal (Star-field et al., 1981), e 65% dos pacientes são in-terrompidos pelos médicos depois de 15 se-gundos de explicação do problema (Beckmanet al., 1984).

Seguindo esses dados, apresentaremos osresultados de uma pesquisa que realizamos so-bre a relação entre médicos e pacientes no Pro-grama de Saúde da Família no Estado do Cearámostrando os principais problemas no contex-to da atenção primária no Brasil (Caprara etal., 2001).

Essa pesquisa foi realizada no período de1999 a 2001, tendo o apoio do CNPq, comoparte do Programa Nordeste de Pesquisa e Pós-graduação, projeto no 52.1228/98-0. Foram uti-lizados métodos qualitativos como entrevistasabertas, observação participante, e métodosquantitativos: observações estruturadas da re-lação médico-paciente utilizando uma guia deobservação. Nas fases iniciais da pesquisa fo-ram analisados alguns instrumentos observa-cionais da relação médico-paciente que eramutilizados em nível internacional, e depois deuma análise atenta, foi decidido utilizar o ins-

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trumento desenvolvido por Grol e Lawrence(1995). Este instrumento é dividido em 4 cate-gorias: a) estrutura da consulta; b) conduçãoda relação médico-paciente; c) performanceclínica; d) ação psicossocial. Para cada umadessas categorias foram observados diferentesperíodos da consulta: a) investigação do pro-blema; b) esclarecimento do problema; c) defi-nição do problema; d) formulação de um pla-no. Decidiu-se adaptá-lo para ser utilizado nocontexto do Ceará. Foi adotada uma metodo-logia de tradução e adequação do instrumento,seguindo em parte as guias da OrganizaçãoMundial da Saúde na tradução de instrumen-tos (Sartorius e Kuyken, 1994).

A amostra foi composta por 400 consultasrealizadas por 20 médicos: 200 foram realiza-das em áreas rurais e 200 na área urbana deFortaleza, a capital do Estado (Caprara et al.,2001). Os dados em área urbana se referem aosconsultórios de PSF de Fortaleza. Entre a po-pulação total de 47 equipes de PSF foram esco-lhidos aleatoriamente 10 médicos que traba-lham em área urbana e foram observadas 20consultas por médico (total 200). Pelo que serefere à área rural, foi considerado não factível(do ponto de vista econômico e tempo neces-sário de disponibilidade) trabalhar com umaamostra aleatória das 1.039 equipes cadastra-das, porém, foram consideradas 883 unidadesfuncionando. Decidiu-se, então, escolher aamostra de 10 médicos diferenciando três gran-des áreas sociodemográficas: serra, sertão, cos-ta litorânea. Nesses três contextos foram obser-vadas 200 consultas médicas.

Foi constituído um banco de dados utili-zando o programa SPSS. Uma análise descriti-va das principais variáveis foi acompanhadapor uma análise comparativa buscando asso-ciações entre variáveis independentes e depen-dentes através de testes estatísticos (odss ratio,chi-quadrado). Os dados não-estruturados fo-ram elaborados a partir de transcrições de en-trevistas com informantes-chave e codificaçãodos dados e da análise, como também de ob-servações inseridas no contexto de aplicação doinstrumento. Todas as entrevistas abertas fo-ram gravadas e transcritas. O material foi su-cessivamente codificado, classificando as res-postas por categorias em relação a cada tema.

Primeiramente, os aspectos organizacio-nais, como a alta rotatividade dos médicos, afalta de estruturas físicas adequadas, os proble-mas na organização dos serviços, afetam a rela-ção, bem como os fatores culturais e sociais

(ibidem). Como enfatizado pela literatura, o es-paço terapêutico teria de facilitar a comunica-ção, mantendo a privacidade, evitando inter-rupções, sendo um espaço o mais confortávelpossível (Lloyd, 1996). A proxêmica entre mé-dico e paciente, a distância entre eles, a coloca-ção das cadeiras, da mesa, são todos fatores im-portantes a serem considerados, fatos não pre-sentes na maioria de estruturas físicas no con-texto da saúde da família no Ceará.

Pelo que se refere à comunicação entre mé-dicos e pacientes, a pesquisa mostra que no co-meço da consulta quase todos os médicos ten-tam estabelecer uma relação empática com opaciente. Apesar disso uma série de problemassurge de forma evidente: 39,1% dos médicosnão explicam de forma clara e compreensiva oproblema, bem como em 58% das consultas, omédico não verifica o grau de entendimento dopaciente sobre o diagnóstico dado. Os médicos,em 53% das consultas, não verificam a com-preensão do paciente sobre as indicações tera-pêuticas (Caprara et al., 2001).

Dados estes que poderiam estar interferin-do em uma melhor relação médico-paciente,cuja natureza da interação irá depender de co-mo acontece o encontro de ambos. Encontroque está sendo influenciado por vários fatorescomo: o setting terapêutico, os aspectos psicos-sociais do paciente com seu adoecer (suas ex-pectativas, medos, ansiedades, etc.), suas expe-riências anteriores de outros médicos, bem co-mo, pelos próprios profissionais, com a suapersonalidade, seus fatores psicológicos (es-tresse, ansiedade, frustração, etc.) e seu treina-mento técnico (experiência profissional e habi-lidades comunicacionais).

Nesse momento, enfocamos como os médi-cos pesquisados não reconhecem o seu pacien-te como sujeito capaz de assumir a responsabi-lidade com o cuidado pela sua própria saúde; etambém não desenvolvem a autonomia e parti-cipação do paciente no seu processo de adesãoao tratamento, e suas práticas de prevenção epromoção da saúde.

O tempo médio da consulta é de 9 minutoscom uma ampla variação de 2 até 24 minutos.É importante enfatizar que um maior tempo deconsulta está associado a uma melhor qualida-de do atendimento: como uma melhor anam-nese (p<0.01), uma melhor explicação do pro-blema e dos procedimentos diagnósticos e te-rapêuticos, assim como a verificação do médi-co sobre a compreensão do paciente (<0.01) ea participação do paciente na consulta (<0.01).

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O tempo de atendimento das médicas é 11.85superior ao dos colegas médicos que é de 7.71(p<0.01).

Na pesquisa, em relação aos aspectos psicos-sociais, na maioria das consultas (91,4%), osmédicos não exploram os medos e ansiedadesdos pacientes, considerando-se que abordar es-se aspecto envolve também compreender as di-ferentes visões de doença e saúde, vinculando-aà escala de valores daquela comunidade atendi-da, bem como, o referencial próprio de doençaque cada sujeito constrói ao longo de sua histó-ria pessoal e coletiva (Caprara et al., 2001).

A diversidade cultural é uma realidade coma qual os médicos de Saúde da Família preci-sam administrar em sua prática. Essa mesmadiversidade exige que o médico seja capaz deaprender novos valores e desenvolver outraspercepções de saúde-doença. Trata-se de umaaprendizagem indispensável para uma inter-venção médica eficiente, que perceba o proces-so do adoecer para aquele paciente que se inse-re numa experiência de fragilidade e ameaça aoseu estado de ser saudável e ativo. Consideran-do-se que a não concordância entre médico epaciente quanto ao diagnóstico e tratamentoproposto, uma conseqüência da divergência devalores e crenças, pode implicar a não adesão àterapêutica. Não significa, entretanto, que omédico do PSF tenha de abdicar do saber téc-nico-científico que dispõe, mas sim buscar aarticulação do conhecimento biomédico ao sis-tema de representações populares referentes asaúde-doença, de forma a garantir adesão aotratamento. Um exemplo dessa parceria é ob-servada entre as equipes de saúde do Ceará erezadeiras locais, que objetivava fazer com queas informações sobre prevenção e tratamentode algumas doenças cheguem mais compreen-síveis à população. Dentre as dificuldades emlidar com os aspectos psicossociais, destacamosa limitação em lidar com a dinâmica familiar esuas relações, bem como os medos e ansieda-des acerca da doença e seus sintomas.

Muitas vezes os pacientes fazem referênciasa aspectos sociofamiliares, evidenciando a im-portância destes na sua condição de saúde. Noentanto, os médicos, em sua maioria, escutame até reconhecem a pertinência da questão apre-sentada, mas não a exploram com o paciente,da mesma forma e profundidade como fazemcom relação aos sintomas e sinais da doençacomo efeito, a investigação sobre os aspectossociofamiliares, bem como as reações da famí-lias e amigos.

Esses resultados estão em sintonia com ou-tros trabalhos mostrando que a maioria dasqueixas dos pacientes fazem referência a pro-blemas comunicacionais com o médico e não asua competência clínica (Ley, 1988), sendo es-tas queixas os efeitos de uma má relação. Aspercepções diferenciadas entre médicos e pa-cientes no relacionamento são influenciadaspor questões que enfatizam a assimetria e difi-cultam o estabelecimento de uma melhor rela-ção. Essa diferença é reafirmada pela com-preensão da doença por parte do paciente, queperpassa por caminhos diversos daqueles domédico. A experiência da doença pelo pacienteenvolve os aspectos culturais, familiares, emo-cionais. Na literatura anglo-saxônica é chama-da illness e poucas vezes é explorada pelo mé-dico (Eisenberg, 1977)

Propostas de mudança

Uma melhor relação médico-paciente não temsomente efeitos positivos na satisfação dosusuários e na qualidade dos serviços de saúde.Vários estudos mostram que influencia direta-mente sobre o estado de saúde dos pacientes.Por exemplo, no estudo de Fallowfield, a inci-dência de ansiedade e depressão depois de 12meses do diagnóstico de câncer de mama é in-ferior entre as pacientes que tiveram uma boainformação em comparação a um outro grupomal-informado (1990). Outros estudos têmconfirmado que uma melhor relação médico-paciente interfere no sucesso do tratamento,como salientado por Dixon e Seweeny: A im-portância da relação terapêutica explica por quea adesão ao processo terapêutico depende maisdo médico do que das características pessoais dopaciente, em particular, o paciente é muito maisinclinado a atender a prescrição se ele pensa queconhece bem o médico que está prescrevendo(Dixon e Sweeney, 2000).

Segundo White (1992), 25% dos benefíciosderivados da prática médica não estão ligadosàs capacidades técnicas do médico, aos efeitosterapêuticos dos medicamentos, ou aos efeitosplacebos. Eles seriam o resultado terapêuticoda própria palavra do médico sobre uma sériede sintomas que surgem como eventos ligadosaos fenômenos de estresse (cefaléia, cansaço,constipação, problemas gástricos, modificaçõesde peso etc.). Observamos isso também comrelação aos seus efeitos em termos de melhoradesão ao tratamento, o que influencia um me-

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lhor controle, por exemplo, de diabetes e hiper-tensão.

Essas considerações nos convidam a abor-dar a questão da formação médica. Nos cursostradicionais para médicos e enfermeiros, os es-tudantes adquirem uma série de conteúdos ecapacidades práticas que levam a consideraremsomente os aspectos físicos, excluindo as carac-terísticas culturais e socioeconômicas. SegundoAnne Scott (1998), durante a formação os es-tudantes adquirem a consciência do que deveser ignorado, excluído, reforçando a lógica bio-médica. Na realidade, o conto do paciente mui-tas vezes não contém somente elementos dehistória da doença, mas também elementos dehistória social (Skultans, 1998). Há algumasdécadas, nas universidades européias e norte-americanas estão sendo desenvolvidos cursossobre o tema da relação médico-paciente. Qua-se todos esses cursos têm uma característica co-mum: a duração acompanha todo o processode formação do estudante desde os primeirosaté os últimos anos.

Apesar dessa característica comum, aindaexiste uma alta variabilidade na qualidade doscursos (Whitehouse, 1991). Para que o currí-culo tenha um perfil adequado, observamosque é importante que o tema da relação médi-co-paciente esteja presente durante todo o pro-cesso formativo; bem como a inserção impres-cindível da abordagem interdisciplinar (clíni-ca, psicologia, ciências sociais). O processo vaiprogressivamente se aprofundando: de umamaior simplicidade até uma maior complexi-dade; tendo que formar os médicos para sabe-rem lidar com situações críticas, como diag-nóstico de doenças graves e terminais; e tam-bém organizar um processo de formação dosdocentes desses cursos, visto que os programasmais estruturados são mais efetivos.

Na Escola de Medicina de Harvard, porexemplo, o curso prevê alguns elementos bási-cos como a aprendizagem que se inicia no pri-meiro ano com um procedimento no qual oaluno examina a própria experiência, as moti-vações que o levaram a se inscrever no curso demedicina. No programa de formação está in-cluída a compreensão de como a percepção dadoença por parte do paciente influencia o pro-cesso de cura, e como a aprendizagem está diri-gida à compreensão de aspectos éticos da me-dicina e das ciências humanas (Branch et al.,1991). Na Universidade de Maastricht, os as-pectos comunicacionais são abordados aumen-tando gradualmente a complexidade das práti-

cas e das situações, visto que os elementos co-municacionais são analisados primeiro em for-ma separada (no primeiro ano) e depois pro-gressivamente integrados entre eles (Dalen etal., 1995). Durante as etapas sucessivas do cur-so, os conteúdos adquirem passo a passo umamaior elaboração, passando de temas maissimples, como “formulação de perguntas” e“capacidade de escuta” a aspetos mais comple-xos como “a comunicação de más notícias” e a“assistência de pacientes em fase terminal”.Com o transcorrer do tempo, cada estudanteidentifica as próprias capacidades e dificulda-des, escolhendo o percurso formativo maisadequado às suas necessidades.

Como resposta a essa necessidade é impor-tante enfatizar a introdução das “humanidadesmédicas” na formação universitária e na edu-cação continuada. Por exemplo, a abordagemdas humanidades médicas prevê a incorpora-ção de elementos das ciências humanas (filoso-fia, psicologia, antropologia, literatura) na for-mação e na prática dos profissionais de saúde(Gruppo CPR, 1996; Dawnie et al., 2000). Ashumanidades médicas se constituem como umespaço para repensar a prática em medicina,intervindo na qualidade da assistência com apersonalização da relação, a humanização dasatividades médicas, o direito à informação, oaperfeiçoamento da comunicação médico-pa-ciente, diminuindo o sofrimento do paciente,repensando as finalidades da medicina, au-mentando o grau de satisfação do usuário. Tra-ta-se de um campo que precisa de investigaçõesde novas elaborações conceituais e empíricas eque são objeto de interesse deste trabalho.

Conclusão

Observa-se uma necessidade crescente em de-senvolver uma comunicação mais aberta entremédicos e pacientes que possibilite uma maiorqualidade na relação. Em face dessa questão, oprimeiro ponto a ser apresentado para reflexãoé relativo ao comportamento profissional domédico. Este deve incorporar aos seus cuidadosa percepção do paciente acerca de sua doença,que possivelmente diverge do modelo clínico,visto que são valores e compreensões própriasdaquele caso. Isto não significa que os médicostenham de se transformar em psicólogos oupsicanalistas, mas que, além do suporte técni-co-diagnóstico, necessitam de sensibilidade pa-ra conhecer a realidade do paciente, ouvir suas

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queixas e encontrar, junto com ele, estratégiasque facilitem sua adaptação ao estilo de vidainfluenciado pela doença.

Observamos que os modelos comunicacio-nais estão relacionados ao espaço terapêutico, aaspectos do paciente (sintoma, expectativa,medos e ansiedades, etc.) e também aspectosdo médico (habilidade comunicacional, expe-riência profissional, stress, ansiedade, etc.) queassim vão constituindo uma relação. Cada con-sulta é uma nova relação que se estabelece, masque habilidades são esperadas do médico comodetentor do saber? A ele cabe o papel de possi-bilitar que a relação seja centrada no paciente e

não apenas na doença. Consideramos que, comessa abordagem, poder-se-ia diminuir a assi-metria da relação.

Esta demanda exige a implementação demudanças visando à aquisição de competên-cias na formação dos médicos. Por enquantorestrita ao modelo biomédico, impossibilitaconsiderar-se a experiência do sofrimento co-mo integrante da sua relação profissional. Des-se modo, é importante considerar criticamenteo desenvolvimento do modelo biomédico co-mo contexto no qual se configuram as possí-veis formas de relação médico-paciente e assimter uma posição ativa e crítica na busca de umanova prática.

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Agradecimentos

Gostaríamos de agradecer aos revisores anônimos pelaleitura atenta e crítica deste texto. Nossos reconhecimen-tos também a Jorge Montenegro Braga, Anamelia Lins eSilva Franco, Dower Barroso, Vileimar Azevedo e aos alu-nos do Provimp da Faculdade de Medicina da UFC pelaparticipação na pesquisa, e a discussão aberta e constru-tiva de diferentes idéias expressas neste texto, mesmoafirmando que as considerações aqui apresentadas são denossa exclusiva responsabilidade.

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Artigo apresentado em 3/2/2003Aprovado em 11/4/2003Versão final apresentada em 9/10/2003

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