que vidas circulam na escola? esquadros e … · instruem, governam os modos de ver a vida. para...
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QUE VIDAS CIRCULAM NA ESCOLA? ESQUADROS E LIBERDADE
Danielle Dias da Costa
Universidade Federal de Mato Grosso/ Universidade do Estado do Amapá
Lêda Valéria Alves da Silva
Universidade Federal do Pará
Vida? Que vida?
A vida é um lugar por onde percorrem imaginários, corpos, políticas,
biologias.... Aliás BIOlogia é o “estudo da vida”. Este é um campo dito afirmativo do
vivo e toda esperança alojada na salvação dos animais, dos humanos, do planeta...
Quando perguntamos aos alunos porque eles escolheram ser professores de biologia
geralmente a resposta vem acompanhada de um imenso saudosismo pela vida e uma
imensa amargura pelo homem, lacrada pelo desejo de uma tal consciência que lute pela,
claro, vida.
“Eu escolhi biologia, porque quero salvar os animais em extinção”; “Escolhi
porque quero ensinar a preservar a natureza”; “Escolhi por ter contato com a natureza, o
ar puro”; “Escolhi porque tenho paixão pela vida! ”...e, some-se a isso toda sorte de
variações destes ditos. Então o aluno passa no curso de biologia e logo se torna
professor (não antes claro, de uma boa dose de despontencialização da vida) na escola,
na Universidade. O que ele vai estudar? O que ele vai ensinar? Qual é a vida que circula
na escola, na universidade?
A Escola é um campo privilegiado de práticas que interpelam a vida produzindo
visibilidades, modos de saber, de governar que produzem múltiplas formas de
representação, pelas quais buscamos problematizar: que discursos sobre a vida
atravessam a Escola hoje? Que saberes contribuem para aprisionar a vida e minar a
contingência?
Mas a vida, ora, não é viva! Pelo menos em nossas instituições de ensino. Que
pena! A vida da biologia é morta, mas ela também não disse que seria viva. Nos
iludimos? Talvez! Estudo da vida...no morto, no figurado, no impalpável, no
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impossível, no impraticável. Há quem sobreviva ao formol...mas viver, é mais difícil ou
talvez mais fácil depende do que você seja! Pra existir em biologia basta ser fóssil, ser
fotografado, ser dissecado...Os jurássicos que o digam. Ninguém viu, mas tem fóssil...já
serve, já disse tudo. Essa vida também tem que ser preservada. Vida museu! A vida
mesmo, a que pulsa, pode viver? Coitados dos ditos peçonhentos. Esses estão fadados
ao inseticidas, às ratoeiras, às vassouras, às vidrarias, aos jornais, etc... E ai daquela vida
tipificada, que serve de modelo de estudo, essa já se foi faz tempo...Vida mesmo, se
passeia se mexe muito pouco. Se enxerga pouco. Vida precária. Como afirmar a vida
em lugares “mortos”?
Pensando vidas...
A vida e os sujeitos que em nome dela são produzidos têm sido inventados e
capturados na história por distintos saberes (ciências, filosofia, literatura, artes) e
poderes (disciplinar e biopoder). Nas lentes do poder-saber deve-se operar esse trabalho
com o propósito de problematizar o que se diz ser vida na escola e os mecanismos que
estão por classificá-la, os corpos que nela habitam e se inventam, as tecnologias
(des)autorizadas em nela intervir/controlar/estimular.
A vida tem sido produzida num momento em que “o biopoder contemporâneo
reduz à vida à sobrevida biológica, produzindo sobreviventes” (PELBART, 2013),
indivíduos que têm se entorpecido, se acomodado a estabilidades, certezas de que a vida
é transparente, e que a ciência, a escola e o cientista detêm a verdade e podem explicá-
la. As respostas mais do que as perguntas acabam por deslocar nossa atenção para os
conhecimentos acumulados que consolam, aquietam, interditam o fazer pensar e
desconfiar dessa vida que está aí, nos livros, na escola, no então banalizado cotidiano.
Considerando o que disse Mia Couto, em seu livro “E se Obama fosse africano”,
que “um dos problemas do nosso tempo é que perdemos a capacidade de fazermos as
perguntas que são importantes. A escola nos ensinou apenas a dar respostas. A vida nos
aconselha a que fiquemos quietos e calados” (COUTO, 2011, p.84). Esse pensamento
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nos faz pensar que são mantidas permanências, conformidades que capturam a vida, dita
e medida por ciências, volumes, contornos, nomes, classificações, partes, sinais vitais,
saúdes, anatomias, fisiologias... discursos e enunciados que dizem e regulam e dizem
ser a vida, considerando que:
Os objetos e sujeitos não preexistem dos discursos que deles falam, mas são
constituintes por eles. Os discursos e pronunciamentos não falam de um
objeto externo a eles, mas constituem o próprio objeto, dando a ele nome,
conceituação, versões, inteligibilidades, verdades (ALBUQUERQUE JR.,
2009, p. 235).
Buscamos assim, sacudir a noção de “vida”, destacando sua produção e
circulação como discurso acionado dentro e “fora” da escola. Consideramos o que “está
fora” do território escolar relevante, pois o “fora” tem “efeitos profundos e contínuos
não apenas sobre as atividades pedagógicas que lá acontecem, como também sobre as
identidades dos sujeitos que lá estão” (WORTMANN, VEIGA-NETO, 2001, p. 115-
116. Grifo nosso), podendo ser essa uma iniciativa estratégica no sentido de nos abrir
possibilidades de compreensão e de resistência as usuais práticas que “explicam”,
instruem, governam os modos de ver a vida.
Para então questionarmos essa vida que circula, gerenciada e agenciada por
diferentes saberes-poderes, buscaremos pensá-la por duas principais perspectivas de
olhar e pensamento (PELBART, 2013). Primeiro, se perguntando sobre o que é a vida
pelas lentes e cálculos de poder da “bio”, a vida biologizada. Nessa noção se tem como
pressuposto de que a “vida [é] qualificada, uma forma-de-vida, um modo de vida
característico de um indivíduo ou grupo” (PELBART, 2003, p. 50-51). Na “bio”, a vida
como representação impõe categorizar, classificar os modos de vida, sejam por
convenções e regras das ditas ciências da vida, como também na moral, na cultura.
Ainda será acionado na análise, pensar a vida pela perspectiva da “zoé”1, uma
“vida sem forma” como diria Agamben corresponde àquilo que extravasa e não se
1 Depois da derrubada das torres gêmeas em Nova Iorque e o acirramento do enfretamento político com o
“Estado de exceção”, Agamben vai buscar na Grécia estudos sobre o modo de vida e encontra em Platão e
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sustenta com as explicações biológicas ou modos de existentes fixados, que enquadram
sujeitos pelo discurso biológico. Indagando então sobre a vida que habita a escola, em
diferentes espaços e materialidades de sua propagação, utilizamos como empiria: livros,
filmes, imagens que tenham como referente à noção “vida” que atravessa os ditos “seres
vivos”, “corpo” e “ambiente”.
Para o tratamento de empiria utilizar-se-á a análise enunciativa que vai ao
encontro dos princípios de identificação de enunciados definidos por Foucault. Nessa
perspectiva, um enunciado para ser registrado e descrito como tal, precisa ser
multiplicado, colocado em relação às suas visibilidades – às práticas a ele associadas.
Sendo assim, para multiplicar os enunciados que tem como referente à “vida” buscando
descrevê-lo nos seguintes termos: “a base material sobre a qual e a partir da qual está
disperso; modalidades enunciativas em que falam e são falados; Vozes de especialistas
autorizadas; os vários campos de saber que disputam a hegemonia de uma significação;
as práticas a que as enunciações fazem referência” (FISCHER, 2007, p. 53).
Por esse tipo de análise procuramos questionar como que enunciados puderam e
foram efetivamente ditos constituíram saberes no campo da vida, assim como
questionar, dentre outras coisas, que sujeitos se constituem por meio do que circula na
escola/mídia sobre a vida, conectada às teorizações provenientes dos estudos de Michel
Foucault, Agamben, Deleuze, Pelbart, entre outros.
Escrevendo vidas...
Se não existe somente uma forma de ver e de dizer o que é vida, façamos assim,
um passeio por entre as vidas inventadas que circulam na escola, sem o compromisso de
compartimentar ou mesmo hierarquizá-la em categorias já existentes e emolduradas nos
discursos científico e biológico tradicionais. Busca-se assim, diferenciar-se do posto,
Aristóteles algumas referências. Segundo o autor, “os gregos não possuíam um termo único para exprimir
o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de dois termos, semântica e morfologicamente
distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que exprimia o simples fato de viver comum a
todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bios que indicava a forma ou maneira de viver própria
de um indivíduo ou de um grupo” (AGAMBEN, 2002, p. 9).
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problematizando a vida com base num exercício analítico e criativo sob as perspectivas
demarcadas em “Pensando em vidas...”. Sacudindo a noção de vida, algumas delas que
transitam no sentido de forjar:
Vida-enciclopédica
Imagem 1 – Fragmento de um livro didático – Biologia moderna Fonte: Fundamentos da Biologia
Moderna - Amabis e Martho (Volume Único). 4ª edição
Disparando a noção de “vida” alojada na Imagem 1, é oportuno se perguntar:
cabe a vida dentro de uma gaiola (definição única ou conceito)? Há controvérsias...
Quem ousa “explicar”, alojar a vida num dicionário? Cabe a vida num dicionário?
Corajoso aquele que se arrisca em simplificar, despontencializar e aprisionar a vida. Ou
Seria VIDA... a vida aquilo que vive e não vive? Ou não existe vida, mas “processos de
vida”? Que nos diga os seres vivos (bióticos) e seres não-vivos (abióticos)...seria vida
só aquilo que se move? Anda? Corre? Será vida só aquilo que se pode classificar? Que
venham os quadros dos reinos, filos, gêneros e espécies...
Vida só é vida se nasce, cresce e morre? Somos só Nós, HUMANOS, vida? Só é
vida aquilo que se reproduz? Seria ainda vida somente aquilo que podemos ver a “olho
nu”? Então não seria vida aquilo que também se movimente através das lentes de um
microscópio? Bactérias, células... e os átomos imaginários, invisíveis aos olhos? Como
acreditar que há vida naquilo que não se vê? Pensar a vida é contingência. Muitas são as
tentativas de capturá-la, aprisioná-la, uma delas pela representação, pelas biologias,
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pedagogias da vida e afora... a vida se aloja em diferentes lugares do discurso, dentre
eles compondo canções essas do currículo, dos livros, das aulas, das ciências... pode a
vida escapar disso tudo? Do esquadro de ser o dito conhecimento?
Em relação ao currículo escolar vemos como a “vida” tem circulado por
diferentes materialidades discursivas, vejamos os livros, textos, revistas...
Compreendendo o currículo como lugares que se constituem em uma espécie de campo
em disputa do discurso e de produção de subjetividade (SILVA, 2010) e que não só
representa o mundo das coisas, mas também fabrica este mundo, as próprias coisas, e a
modalidade das relações entre as coisas (CORAZZA, 2001), vemos como a BIOlogia
tem abrigado e explicado a vida, em diferentes versões, visíveis quando
problematizadas na história.
Mas quem pode falar a respeito disso? Da vida na escola? Existe sim, em nome
da instituição escola um detentor desse conhecimento e quem pode em nome da ciência
falar da vida...Essa propriedade do então discurso biológico da vida se localiza, por
convenção construída historicamente, ao professor de biologia, ciências. Mas ouçam,
não se pode negar que já há movimentos que tem anunciado rupturas, indícios de
expansão da propagação do discurso da vida, coabitando a autoridade de falar da vida a
outros sujeitos e espaços de propagação no discurso, vejamos a mídia, a sociologia, a
psicologia que também estão por falar e se ocupar do estudo da vida.
Vida-formol
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Imagem 2 – Visita de alunos a laboratório de Ciências. Fonte: Portal da Pró-Reitoria de Extensão da
UFRRJ. Disponível em: https://extensaoufrrj.wordpress.com/tag/divulgacao/
Pode existir “vida” numa ciência que se encarrega de explicá-la usando a morte,
o morto para dizer e fazer ver o que é vida? Estudo da vida ou estudo da morte? O
formol é um produto químico que tem a pretensão de conservar a vida após a morte.
Fetos; invertebrados; órgãos; cadáveres. É possível permanecer no formol. Fixar. Não é
de hoje nosso desejo pela conservação, pela preservação não importa se vivo ou se
morto. Morto-vivo. Fixar para não desmontar. O cadáver inclusive é um dos primeiros
recursos para estudar a vida. A anatomia é uma das disciplinas base para a formação em
biologia e na escola ele é símbolo de estudo da vida, principalmente quando falamos de
órgãos, tecidos. Nas feiras de ciências, feiras vocacionais, nos laboratórios (Imagem 2),
por exemplo, é muito comum mostrar que se estuda a vida (ou não) por meio de
vidrarias. É possível falar do dito normal/anormal através dela (os fetos que o digam),
quando não estão deformados estão retalhados. Sem cor, sem expressão, sem vida, mas
que diz muito sobre A vida. Corpo exposto. Esta nudez não é castigada. Vida nua...
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Vida-Vitrine
Imagem 3- Visita de alunos a laboratórios do Centro de Ciências Biológicas de uma Universidade. Fonte:
Divulgação da UEL – Disponível em: http://www.uel.br/com/agenciaueldenoticias/
Borboleta? Mariposa? Escaravelho? Sim!!! Mas só se estiver morto. Outra
“vida”muito comum de se ver na escola é a vida-vitrine. Ícone máximo do laboratório
de biologia de invertebrados, mas no estudo da vida também estão todos mortos. Lá
também tem um cheiro típico de morto, mas não é o formol que conserva. Uma solução
de álcool 70% já resolve em alguns casos. Essa vida é amada pelo microscópio. Claro,
uma vida-movimento perturbaria o olhar micro. Não permitiria ver vida.
Não é incoerente que toda vida no laboratório esteja morta? A não ser aquelas
que manuseiam. Mas bicho se mexe. Talvez seja por isso também que para estudá-los
temos que matá-los. Não que importe! Inseto bom é inseto morto? Não sei, mas temos
mais pena das borboletas que dos mosquitos. Talvez porque aquelas transmitam mais
vida com seu colorido, que os insetos com suas picadas. Na vitrine queremos ver o que
o Belo. Na vida vitrine parece que tem mais beleza a morte.
Vida-taxidermizada
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Imagem 4 – Cena do Filme Vênus Negra (2010). Fonte: Imagem disponível em:
http://aempreendedora.com.br/mulher-e-cinema-racismo/
Pode em nome da BIOlogia mumificar o corpo? Fixá-lo além do tempo, da
história para explicar, “encontrar” meios para assegurar e dizer o que é vida? A Vênus-
Negra2 que o diga (Imagem 4)! Se nos afastarmos por um instante do recinto fechado da
ciência para aventurarmo-nos nos lugares de espetáculo popular, na segunda metade do
século XIX predomina a cultura visual da deformidade, momento em que a “exibição do
anormal tinha realmente por objeto a propagação de uma norma corporal” (COURTINE
2013, p.125), as quais estavam por dizer o que era humano e não-humano, o humano e o
animal, o normal e o monstro. Categorizando esse corpo, nesse tempo, do filme como
um dos que circula as aulas de historia, ciências, biologia, a Vênus negra é um
“exemplar” de um corpo adjacente que escapa aos padrões de normalidade, dos então
naturalizados pela ciência, nos tempos de Couvier.
Consideramos nesse exemplo de artefato cultural, a vida sendo capturada, pela
qual e que em nome dela também se legisla, regula, classifica os corpos entre normais e
anormais. Hoje se “examinada”, a Vênus-negra trata-se de uma humana, mulher. Não
sendo mais o monstro, o esquisito, o anormal, cabe nos questionar: “quem assume hoje
a função, outrora reservada às monstruosidades humanas, de fazer a demonstração do
anormal? Quem são os novos monstros, estes monstros pálidos da anomalia cujo
advento Michel Foucault predizia? (COURTINE, 2013, p. 142). Seriam os corpos
2 O filme conta a história de Saartjie Baartman, uma mulher sul-africana da etnia hotentote, que deixa a
África do Sul rumo à Europa, acompanhada por Caezar, seu mestre. Caezar promete a Saartjie um
emprego fixo em um circo, onde ela facilmente ficaria rica, mas na verdade ela vê-se obrigada a exibir
seu corpo para curiosos em Londres. Devido à sua aparência e seus traços corporais de uma hotentote,
Saartjie é vista como uma mulher exótica pelos europeus. Fonte: Wikipédia.
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desleixados, gordos, obesos, desnutridos, anoréxicos? Principalmente considerando a
era da saúde que se vive, ditando as categorias dos normais-saudáveis dos anormais-
não-saudáveis?
Sobre a vida sem forma... Podemos, enfim, ser livres?
As palavras não são nada. Deviam ser eliminadas. Nada que possamos dizer
alude ao que o mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos
mais do que objetos equivalentes entre si, todos irmanados na ilusão. As
letras da palavra cavalo não galopam, nem as de fogo bruxuleiam. E que
importa como se diz cavalo ou fogo se não se autonomizam do abecedário.
Nenhuma pedra se entende por caracteres. As pedras são entidades
absolutamente autónomas às expressões. As pedras recusam a linguagem.
Para linguagem as pedras reclamam o direito de não existir. Se as nomeamos
não estamos senão enganarmo-nos voluntariamente. Às pedras nunca
enganaremos. Elas sabem que existem por outros motivos e talvez suspeitem
que o nosso desejo de falar seja só um modo menos desenvolvido de encarar
a evidencia de existir (MÃE, 2014, p. 29).
Nem só de uma vida vive o homem. Considerando o que já disse Deleuze, que
múltiplos são os agenciamentos coletivos, de enunciação, os povos que estão em nós e
que nos fazem falar, e a partir dos quais nós produzimos enunciados, falar da vida não
pode se restringir em somente analisá-la em nível de superfície, na base conceitual.
Vimos com a vida-enciclopédica/formol/vitrine/taxidermizada são empreendimentos de
análise que desmontam e cartografam visibilidades para aquilo que compõe as redes de
saber-poder, governos, regulações, para fazer ver a vida, quase [senão totalmente] na
escola, automatizadas nas biologias, políticas, corpos e imaginários, que se
desmontados e abandonados podem escapar da plataforma de existência nas teias da
“bio”.
Sobre o tipo de escola que se inclui nessa produção de enunciados sobre a vida
capturada, esgotada, sem potência, deve-se repensar a atual escola essa a serviço do
“saber”, a escola de “perguntas com respostas” deslocando-se para uma “escola de
perguntas sem repostas” e “que formule outras perguntas para além das já naturalizadas
e calculadas pela ciência”. Assim como uma escola que não aprisione os estudantes “a
conhecer, a buscar a verdade e, a saber, demonstrá-la” (GALLO, 2015, p.445). Estamos
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num momento de pensar numa escola como lugar de exercício da inquietude, de
conhecer-se para ser e para bem viver, de produzir-se a si mesmo como um sujeito
singular e pensante.
Além disso, espera-se que sujeitos singulares tenham as vidas ampliadas, com
um leque de possibilidades de ver e pensar na vida em suas múltiplas variações, visto
que a vida, na base da “zoé”, pode sim se estabelecer como “um reservatório
inesgotável de sentido, manancial de formas de existência, germe de direções que
extrapolam as estruturas de comando e os cálculos dos poderes constituídos”.
(PELBART, 2008, p. 2). Associa-se a esse pensamento Deleuze quando diz que “viver
não é só apenas existir, mas arrancar da existência a vida, onde ela está aprisionada,
equilibrada, estabilizada, submetida a uma forma majoritária, uma gorda saúde
dominante. Diante disso, a vida como palpitação, ardência a ser liberada”. (PELBART,
2000, p. 68).
Considerações finais
Na análise vimos como a escola atua como um dos espaços que distribui e
circula diferentes formas de ver e falar a respeito da vida, nas quais demarcam os
quandos e comos – ela começa, termina, existe ou inexiste, virtualidade e sobrevivência,
principalmente quando enquadrada pelo discurso biológico, na “bio”. Nesses
enunciados e imagens, os discursos que regem o que é vida são noções utilizadas como
padrões que regulam modos de ver e subjetivá-la e produzem os sujeitos da vida em
diferentes projeções teóricas pelas quais a vida submete, nós, indivíduos, a manter uma
relação com a verdade que até aqui se impõe.
Nisso uma das vidas que circula na escola pode ser designada como uma
“vontade [que] não está a serviço da liberdade; é uma vontade ressentida, serva da
ciência, da causalidade, da necessidade, que constrange a liberdade de criação e elimina
a espontaneidade” (ORTEGA, 2008, p. 22). Isso se expressa na captura da vida, do
corpo e de seu estudo na então “vida-morta” na escola e nos materiais que nela circulam
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por imagens, filmes, animações, sendo nela reduzido o “ser vivo” ao mero corpo, vida
nua de um corpo esgotado, manipulável e fora das pulsações de uma vida-potência.
Diferentemente disto, das capturas, agenciamentos da vida, do corpo, há também
resistência. A vida pode ser potência, quando descategorizada, sem forma, que se
amparam na perspectiva da “zoe” e estão circulando para além da escola, nas linhas de
fuga que não vem dizer o que a vida, explicá-la, mas libertá-la. Isso pode resistir no
momento em que vida tenha um corpo que se descubra corpo em sua força de gênese, e
desde que ele se libere daquilo que pesa sobre ele como determinação (PELBART,
2013), saia então à vida dos esquadros e se encaminhe a vida a liberdade, a base da
ética, estética da existência.
REFERÊNCIAS
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UFMG, 2002.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A dimensão retórica da historiografia.
In: ______; PINSK, Carla Bassanezi; LUCA, Tânia Regina de. O historiador e suas
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CORAZZA, Sandra. Que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação.
Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
COURTINE, Jean Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Trad.: Francisco
Morás. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013.
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Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
GALLO, Sílvio. Pensar a escola com Foucault: além da sombra da vigilância. In:
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MÃE, Valter Hugo. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura
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http://www.iea.usp.br/iea/textos/pelbartdominacaobiopolitica.pdf.
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currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
WORTMANN, Maria Lúcia Castagna; VEIGA-NETO, Alfredo. Estudos culturais da
ciência e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.