rã publicitária e escorpião anunciante

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O agregador do marketing. 42 Abril de 2011 www.briefing.pt Eduardo Cintra Torres ect@briefing.pt Lugares incomuns Rã publicitária e escorpião anunciante “Já não se pode ‘despedir um cliente’, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora ‘é come e cala-te’. O resultado? O mesmo que seria Flaubert ter mudado a Madame Bovary de acordo com o que dissessem os editores, o senhorio, os colegas, os críticos, os académicos, os leitores, os tipógrafos e o cocheiro” “Parece que se está a voltar ao tempo pré- histórico em que os anunciantes é que faziam os anúncios” Ao escrever a minha crítica de publicidade semanal para o Jornal de Negócios no princípio de Abril, verifiquei que as campanhas televisivas do Continente e da Sagres usavam a mesma linguagem e imagens quase idênticas. Há vários anos que marcas e produtos muito diferenciados, como cerveja, supermercados, bancos, telecomunicações ou gasolina, repetem as mesmas ideias sem nos dar tempo de esquecermos a campanha anterior. Neste caso, recorrem à bandeira nacional, ao futebol, à unidade nacional, ao “somos” e “estamos”, ao “todos” e ao “juntos”, e à multidão como ideia de pátria-que-não-se-discute. Os anúncios são bem concretizados, mas a falta de originalidade impressiona. De originalidade e de ousadia. Parece que os publicitários se transformaram na própria multidão a que recorrem como imagem-símbolo: não inventam, não debatem. Parece que se tem alterado a estrutura de decisão no processo publicitário. A cadeia de comando dilui-se por diversas entidades, departamentos, grupos de experts & managers, quer nas empresas anunciantes, quer nas empresas que executam as campanhas. Ocupando cargos, identificados com palavras inglesas, que não faço ideia a que tipo de trabalho correspondem, há muitos intervenientes metendo a sua colherada, dando bitaites, alterando a ideia inicial. Os publicitários têm os criativos, os executores, os executivos, e ainda os contabilistas, todos com um medo muito novo de Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois exercerem uma independência editorial, essencial ao processo publicitário. E os anunciantes têm os seus especialistas: parece que se está a voltar ao tempo pré- histórico em que os anunciantes é que faziam os anúncios. Dou a mão à palmatória: discordei do argumento de Al Ries e Laura Ries em A Queda da Publicidade e a Ascensão das Relações Públicas” (Editorial Notícias, 2003). Agora dou-lhes alguma razão: no quadro actual dos media e da indústria publicitária, as Relações Públicas tendem a substituir a Publicidade. Por cima da diluição decisória, a crise não ajuda. Já não se pode “despedir um cliente”, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora é come e cala- te. O resultado? O mesmo que seria Flaubert ter mudado a Madame Bovary de acordo com o que dissessem os editores, o senhorio, os colegas, os críticos, os académicos, os leitores, os tipógrafos e o cocheiro. A publicidade é diferente, por ser uma obra colectiva e com conteúdo dependente da realidade produtiva e empresarial, mas assemelha-se no facto de o processo criativo necessitar de uma linha de rumo para que o conteúdo criativo — a única parte dele que, afinal, o espectador ou leitor conhecerá — não perca a identidade inicial. Uma campanha em cuja construção, uns têm medo do cliente, e muitos metem a sua colherada, acaba por ser obra de pato-bravo. Aos curto-circuitos no carácter editorial dos anúncios e à crise, soma-se um terceiro factor, por agora negativo: os novos media ainda não possibilitaram uma criatividade apropriada, com qualidade, mas já prejudicaram a publicidade tradicional, não só pelo natural, desejável e necessário desvio de investimento para a internet, mas também pela quebra de qualidade criativa. Em pouco menos de dois anos, as páginas dos jornais e revistas tornaram- se, em termos publicitários, muito enfadonhas, sem brilho, sem originalidade, sem surpreenderem, sem interpelarem. Actualmente, tenho dificuldade em encontrar na imprensa, generalista ou especializada, anúncios que me espantem e impressionem positivamente. A banalidade reina, e a banalidade foi sempre a pior característica da publicidade. Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois.

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Rã publicitária e escorpião anunciante

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Page 1: Rã publicitária e escorpião anunciante

O agregador do marketing.42 Abril de 2011

www.briefing.pt

Eduardo Cintra [email protected]

Lugares incomuns

Rã publicitária e escorpião anunciante“Já não se pode

‘despedir um cliente’, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora ‘é come e cala-te’. O

resultado? O mesmo que seria Flaubert ter

mudado a Madame Bovary de acordo

com o que dissessem os editores, o

senhorio, os colegas, os críticos, os

académicos, os leitores, os tipógrafos

e o cocheiro”

“Parece que se está a voltar ao tempo pré-histórico em que os anunciantes é que

faziam os anúncios”

Ao escrever a minha crítica de publicidade semanal para o Jornal de Negócios no princípio de Abril, verifiquei que as campanhas televisivas do Continente e da Sagres usavam a mesma linguagem e imagens quase idênticas. Há vários anos que marcas e produtos muito diferenciados, como cerveja, supermercados, bancos, telecomunicações ou gasolina, repetem as mesmas ideias sem nos dar tempo de esquecermos a campanha anterior. Neste caso, recorrem à bandeira nacional, ao futebol, à unidade nacional, ao “somos” e “estamos”, ao “todos” e ao “juntos”, e à multidão como ideia de pátria-que-não-se-discute. Os anúncios são bem concretizados, mas a falta de originalidade impressiona. De originalidade e de ousadia. Parece que os publicitários se transformaram na própria multidão a que recorrem como imagem-símbolo: não inventam, não debatem.Parece que se tem alterado a estrutura de decisão no processo publicitário. A cadeia de comando dilui-se por diversas entidades, departamentos, grupos de experts & managers, quer nas empresas anunciantes, quer nas empresas que executam as campanhas. Ocupando cargos, identificados com palavras inglesas, que não faço ideia a que tipo de trabalho correspondem, há muitos intervenientes metendo a sua colherada, dando bitaites, alterando a ideia inicial. Os publicitários têm os criativos, os executores, os executivos, e ainda os contabilistas, todos com um medo muito novo de

Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois

exercerem uma independência editorial, essencial ao processo publicitário. E os anunciantes têm os seus especialistas: parece que se está a voltar ao tempo pré-histórico em que os anunciantes é que faziam os anúncios. Dou a mão à palmatória: discordei do argumento de Al Ries e Laura Ries em “A Queda da Publicidade e a Ascensão das Relações Públicas” (Editorial Notícias, 2003). Agora dou-lhes alguma razão: no quadro actual dos media e da indústria publicitária, as Relações Públicas tendem a substituir a Publicidade. Por cima da diluição decisória, a crise não ajuda. Já não se pode “despedir um cliente”, como fez há anos um célebre publicitário nacional. Agora é come e cala-te. O resultado? O mesmo que seria Flaubert ter mudado a Madame Bovary de acordo com o que dissessem os editores, o senhorio, os colegas, os críticos, os académicos, os leitores, os tipógrafos e o cocheiro. A publicidade é diferente, por ser uma obra colectiva e com conteúdo dependente da realidade produtiva e empresarial, mas assemelha-se no facto de o processo criativo necessitar de uma linha de rumo para que o conteúdo criativo — a única parte dele que, afinal, o espectador ou leitor conhecerá — não perca a identidade inicial. Uma campanha em cuja construção, uns têm medo do cliente, e muitos metem a sua colherada, acaba por ser obra de pato-bravo.Aos curto-circuitos no carácter editorial dos anúncios e à crise, soma-se um terceiro factor, por agora negativo: os novos media ainda não

possibilitaram uma criatividade apropriada, com qualidade, mas já prejudicaram a publicidade tradicional, não só pelo natural, desejável e necessário desvio de investimento para a internet, mas também pela quebra de qualidade criativa. Em pouco menos de dois anos, as páginas dos jornais e revistas tornaram-se, em termos publicitários, muito enfadonhas, sem brilho, sem originalidade, sem surpreenderem, sem interpelarem. Actualmente, tenho dificuldade em encontrar na imprensa, generalista ou especializada, anúncios que me espantem e impressionem positivamente. A banalidade reina, e a banalidade foi sempre a pior característica da publicidade. Se as campanhas na internet são amadoras e as campanhas nos media tradicionais perdem carácter, os publicitários estão em processo suicidário e os anunciantes enquadram-se na fábula de Esopo: o escorpião mata a rã que o leva para a outra margem do rio e morrem os dois.