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14 15 Poéticas Visuais, Bauru, v. 8, n. 1 Poéticas Visuais, Bauru, v 8, n. 1 A O peso da dúvida: Reflexões sobre a atribuição de dúvida às obras de Vincent van Gogh The weight of doubt: Reflections on the attribution of doubt to the works of Vincent van Gogh Marlon José Alves dos Anjos* *Mestre em Arte Visuais pela Universidade Estadual Paulista, câmpus São Paulo (SP)(Unesp), 2016. Graduado em Ensino Superior de Pintura na Escola de Música e Belas Artes (EMBAP), 2011. Colunista colaborador da revista virtual R.Nott Magazine. Resumo O presente artigo objetiva refletir e analisar o peso na dúvida deposita na autenticidade de notórias pinturas, assim como, as motivações de pesquisadores em contestar a atribuição da autoria em obras de renome. Temos como foco a reflexão provocada pelas motivações que guiaram o julgamento de especialistas em contestar atribuições das obras: “Natureza Morta com Flores” (1884-1885), pertencentes ao acervo do MASP, e “Vaso com Quinze Girassóis” (1889), pertencente à Yasuda Fire and Marine Insurance Company. Ambas atribuídas a Vincent van Gogh (1853- 1990).. Palavras-chave: arte, autenticidade, atribuição, dúvida, van Gogh. Abstract e present article aims to reflect and analyze the weight in the deposition in the authenticity of notorious paintings, as well, motivations of researchers in contesting an attribution of authorship in works of renown. We focus on a reflection provoked by motivations that attribute the judgment of experts in the attribution of works: “Still Life with Flowers” (1884-1885), belonging to the MASP collection, and “Vase with Fiſteen Sun- flowers” (1889), Owned by Yasuda Fire and Marine Insurance Company. Both attributed a Vincent van Gogh (1853-1990).. Keywords: art, authenticity, attribution, doubt, van Gogh , p. 14-25, 2017. N o cenário atual observamos, constantemente, obras aparentemente genuínas terem a ido- neidade questionada, e outras, talvez menos idôneas, não levantarem suspeita no que diz respeito as questões que envolvem a autenticidade. Assim como a obtenção de valor de uma obra, a atribuição da autoria enlaça motivações que pode não ser altruísta, e ocultar desejos especulativos do mercado, da tradição, dos valores morais e éticos de uma determinada época, dentre outros. Desta forma, podemos conceber que as questões de autenticidade constituem pro- blemas complexos e plurais, que exigem análise igualmente plural para uma compreensão satis- fatória. Pretende-se com este artigo refletir sobre as informações coletadas no que diz respeito a autenticidade ou, a possível, inautenticidade, bem como, no que se refere as motivações relevantes que guiaram o julgamento de especialistas em contestar atribuições das obras: “Natureza Morta com Flores” (1884-1885), uma das cinco obras atribuídas a Vincent van Gogh (1853-1990), per- tencentes ao acervo do MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, da mesma for- ma será objeto de analise “Vaso com Quinze Girassóis (1889), pertencente à companhia de segura japonesa, Yasuda. Cumpre informar que não temos a finalidade de apontar ou verificar a autoria exata das obras, mas construir uma história de incertezas, e apresentar que a história das obras não se apre- senta de forma hermética, ou mesmo, unilateral. Pois os conflitos que envolvem as obras demanda de pluralidade critica analisada ao longo das décadas, e divide o concesso entre especialistas. Nes- ta perspectiva, podemos vislumbrar que mesmas obras tidas como estáveis estão sujeitas a dúvida, onde a historiografia e as proveniências de uma obra de arte podem não abrigar consenso, o que por vezes, impõem que a autenticidade de uma obra de arte permaneça em aberta Assim sendo, esse artigo demanda de uma leitura livre, na qual prima pela dúvida e não se filia a razões hipotéticas que ambicionam gerar verdades dogmáticas em relação ao objeto de pesquisa ou na identificação da atribuição correta. Percorrer as confusões em torno do tema e apontar os devidos conflitos que envolvem a atribuição da autoria de obras de arte, constitui o aporte do texto. Dessa maneira, o artigo é proposto como um convite, para refletirmos a respeito da autenticidade nas obras de arte, que, por vezes, é atravessa por elementos não artísticos. Mesmo que essa perspectiva possa adicionar um sentimento de confusão e instabilidade, impõe-se a necessidade de uma mudança essencial no domínio dos discursos relacionados ao tema da atribuição de autoria. Há que se afastar da antiga lógica de teor iconoclástico, que é per- meada pela negação de obras em favor de um suposto valor na autenticidade. Filiar-se a perspec- tivas que veem um desequilíbrio no desenho que é feito sobre o tema, redesenhar a autenticidade e a inautenticidade distante de uma visão estigmatizadora é o que propomos, na qual, a criação de uma obra de arte não é, necessariamente, individual e pode abrigar questões ainda não reveladas. Neste seguimento o inautêntico e o autêntico talvez não sejam, necessariamente, antagônicas. E os erros em julgamentos que atestaram uma obra como genuína ou falsa, têm muito mais a dizer sobre a arte do que um tribunal possa revelar. Distante do imaginário policialesco, o qual procura ocultar obras fraudulentas de olhares curiosos, podemos vislumbrar que a falsificação e a arte talvez não sejam tão distante, porventura são dois lados de uma mesma moeda, e o que uma pode revelar a outra são potencialidades profundas. Vale lembrar que a distinção entre verdadeiro e falso na arte constituí fenômeno prove- niente do reconhecimento que, as vezes, projeta questões na qual a autenticidade pode não ser unânime entre especialistas. Tal que, deve-se considerar o problema historicamente constituído e levar todos os aspectos em consideração para uma definição, e perceber que tal veredicto é , p. 14-25, 2017. V8N1 final - edicao 01 - 2017.indd 14-15 26/07/2018 11:02:45

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Page 1: Reflexões sobre a atribuição de dúvida às obras de A O ...Sobre algumas pinturas atribuídas a van Gogh Em 1997, Martin Bailey (1949-) publicou relatório, pela The Art Newspaper,

14 15Poéticas Visuais , Bauru, v. 8, n. 1 Poéticas Visuais , Bauru, v 8, n. 1

A O peso da dúvida: Reflexões sobre a atribuição de dúvida às obras de

Vincent van GoghThe weight of doubt: Reflections on the attribution of doubt to the works of Vincent van Gogh

Marlon José Alves dos Anjos*

*Mestre em Arte Visuais pela Universidade Estadual Paulista, câmpus São Paulo (SP)(Unesp), 2016. Graduado em Ensino Superior de Pintura na Escola de Música e Belas Artes (EMBAP), 2011. Colunista colaborador da revista virtual R.Nott Magazine.

Resumo

O presente artigo objetiva refletir e analisar o peso na dúvida deposita na autenticidade de notórias pinturas, assim como, as motivações de pesquisadores em contestar a atribuição da autoria em obras de renome. Temos como foco a reflexão provocada pelas motivações que guiaram o julgamento de especialistas em contestar atribuições das obras: “Natureza Morta com Flores” (1884-1885), pertencentes ao acervo do MASP, e “Vaso com Quinze Girassóis” (1889), pertencente à Yasuda Fire and Marine Insurance Company. Ambas atribuídas a Vincent van Gogh (1853-1990)..

Palavras-chave: arte, autenticidade, atribuição, dúvida, van Gogh.

Abstract

The present article aims to reflect and analyze the weight in the deposition in the authenticity of notorious paintings, as well, motivations of researchers in contesting an attribution of authorship in works of renown. We focus on a reflection provoked by motivations that attribute the judgment of experts in the attribution of works: “Still Life with Flowers” (1884-1885), belonging to the MASP collection, and “Vase with Fifteen Sun-flowers” (1889), Owned by Yasuda Fire and Marine Insurance Company. Both attributed a Vincent van Gogh (1853-1990)..

Keywords: art, authenticity, attribution, doubt, van Gogh

, p. 14-25, 2017.

No cenário atual observamos, constantemente, obras aparentemente genuínas terem a ido-neidade questionada, e outras, talvez menos idôneas, não levantarem suspeita no que diz respeito as questões que envolvem a autenticidade. Assim como a obtenção de valor de

uma obra, a atribuição da autoria enlaça motivações que pode não ser altruísta, e ocultar desejos especulativos do mercado, da tradição, dos valores morais e éticos de uma determinada época, dentre outros. Desta forma, podemos conceber que as questões de autenticidade constituem pro-blemas complexos e plurais, que exigem análise igualmente plural para uma compreensão satis-fatória. Pretende-se com este artigo refletir sobre as informações coletadas no que diz respeito a autenticidade ou, a possível, inautenticidade, bem como, no que se refere as motivações relevantes que guiaram o julgamento de especialistas em contestar atribuições das obras: “Natureza Morta com Flores” (1884-1885), uma das cinco obras atribuídas a Vincent van Gogh (1853-1990), per-tencentes ao acervo do MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, da mesma for-ma será objeto de analise “Vaso com Quinze Girassóis (1889), pertencente à companhia de segura japonesa, Yasuda. Cumpre informar que não temos a finalidade de apontar ou verificar a autoria exata das obras, mas construir uma história de incertezas, e apresentar que a história das obras não se apre-senta de forma hermética, ou mesmo, unilateral. Pois os conflitos que envolvem as obras demanda de pluralidade critica analisada ao longo das décadas, e divide o concesso entre especialistas. Nes-ta perspectiva, podemos vislumbrar que mesmas obras tidas como estáveis estão sujeitas a dúvida, onde a historiografia e as proveniências de uma obra de arte podem não abrigar consenso, o que por vezes, impõem que a autenticidade de uma obra de arte permaneça em aberta Assim sendo, esse artigo demanda de uma leitura livre, na qual prima pela dúvida e não se filia a razões hipotéticas que ambicionam gerar verdades dogmáticas em relação ao objeto de pesquisa ou na identificação da atribuição correta. Percorrer as confusões em torno do tema e apontar os devidos conflitos que envolvem a atribuição da autoria de obras de arte, constitui o aporte do texto. Dessa maneira, o artigo é proposto como um convite, para refletirmos a respeito da autenticidade nas obras de arte, que, por vezes, é atravessa por elementos não artísticos. Mesmo que essa perspectiva possa adicionar um sentimento de confusão e instabilidade, impõe-se a necessidade de uma mudança essencial no domínio dos discursos relacionados ao tema da atribuição de autoria. Há que se afastar da antiga lógica de teor iconoclástico, que é per-meada pela negação de obras em favor de um suposto valor na autenticidade. Filiar-se a perspec-tivas que veem um desequilíbrio no desenho que é feito sobre o tema, redesenhar a autenticidade e a inautenticidade distante de uma visão estigmatizadora é o que propomos, na qual, a criação de uma obra de arte não é, necessariamente, individual e pode abrigar questões ainda não reveladas. Neste seguimento o inautêntico e o autêntico talvez não sejam, necessariamente, antagônicas. E os erros em julgamentos que atestaram uma obra como genuína ou falsa, têm muito mais a dizer sobre a arte do que um tribunal possa revelar. Distante do imaginário policialesco, o qual procura ocultar obras fraudulentas de olhares curiosos, podemos vislumbrar que a falsificação e a arte talvez não sejam tão distante, porventura são dois lados de uma mesma moeda, e o que uma pode revelar a outra são potencialidades profundas. Vale lembrar que a distinção entre verdadeiro e falso na arte constituí fenômeno prove-niente do reconhecimento que, as vezes, projeta questões na qual a autenticidade pode não ser unânime entre especialistas. Tal que, deve-se considerar o problema historicamente constituído e levar todos os aspectos em consideração para uma definição, e perceber que tal veredicto é

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Page 2: Reflexões sobre a atribuição de dúvida às obras de A O ...Sobre algumas pinturas atribuídas a van Gogh Em 1997, Martin Bailey (1949-) publicou relatório, pela The Art Newspaper,

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passível a contestação, pois o mundo ocupado por obras de arte não se restringe a dois grupos estanques: objetos autênticos de um lado e de objetos falsos de outro, várias nunces podem estar imperceptíveis, o que, por vezes, leva pesquisadores a reavaliar afirmações atribuídas outrora. Dado o exposto, cita-se como exemplo o projeto RRP – Rembrandt Research Project – que foi criado em 1968 com a finalidade de pesquisar com profundidade todas as características artísticas, históricas e pessoais da obra do pintor holandês Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669). Atualmente, a instituição é considerada a entidade máxima sobre a obra do artista. Nesse projeto, 50% das pinturas do autor foram descartadas por serem consideradas falsas ou questionáveis. Do que sobrou, 10% contêm dúvida persistente em relação à autoria. Essa impli-cação demonstra que a possibilidade de admirarmos falsos em museus, galerias, etc., é bastante comum. Muito se discute sobre a probidade das afirmações e dos julgamentos da instituição. Deve-se considerar que, apesar de 50% das obras do mestre holandês não serem reconhecidas como de sua autoria, isso não quer dizer que sejam propriamente falsas, Rembrandt teve mais de cem discípulos e, talvez, o que o projeto esteja balizando seja a porcentagem de “rembrancidade” de cada obra. Vale lembrar que “Retrato de Jovem com Corrente de Ouro” ou “Autorretrato com Corrente de Ouro”, obra pertencente ao MASP, não foi considerada um autentico Rembrandt pelo RRP. Mas tal julgamento necessita de pesquisa mais acurada. Ainda que a dúvida na autenticidade de obras de arte formalize oximoro ao longo da his-tória, devido o teor contido em tal fenômeno, pois promove a incerteza e a insegurança em insti-tuições e na organização da historiografia da arte, o conhecimento de obras no que diz respeito a dúvida possibilita o preenchimento de lacunas espaçadas pela falsa ou ausência de compreensão que outrora se teve sobre episódios históricos. Se considerarmos que o engano e o erro são partes indexáveis da própria história, a falta da compreensão desses elementos compromete o enten-dimento do todo. Neste seguimento, a dúvida na autenticidade como tema assume riqueza por permitir contextualizar eventos espaçados ou esquecidos ao longo dos séculos, sua ambivalência, sua relação sociocultural e econômica, seus reflexos na história, para, por fim, lançar luzes à fi-gura artística ou a dos feitores da obra, neste caso os falsários. Essa perspetiva pode ser bastante simplista, mas já é o suficiente para começarmos.

Sobre algumas pinturas atribuídas a van Gogh

Em 1997, Martin Bailey (1949-) publicou relatório, pela The Art Newspaper, baseado nas alegações de Jan Hulsker (1907-2002), notório especialista em van Gogh, de que dezenas de pin-turas e desenhos tinham sido erradamente atribuídas ao artista holandês. Entre as obras cuja au-tenticidade tinham sido coloca em xeque, destaca-se algumas das mais famosas obras atribuídas ao artista: “Os Girassóis Yasudas”, “Retrato do Dr. Gachet”, “O Jardim em Auvers”, “Arlesiana” e “Natureza-morta com Flores”. Vale lembrar, atualmente que a produção atribuída ao artista é de 900 pinturas e 1.200 desenhos. (HULSKER, 1997). A alegação na publicação de Bailey, pautada na pesquisa de Hulsker, trouxe uma res-posta concisa, de uma das maiores casas de leilão do mundo, Christie’s, em Londres, que alegou em um comunicado o conhecimento sobre o caso, porém afirmou que não havia argumentação suficiente para questionar a autenticidade das obras no acervo da instituição. Neste sentido, em um primeiro momento a argumentação de Bailey foi rejeitada. Sjraar van Heugten, curador do Museu van Gogh em Amsterdã, argumentou, também, que ainda não era suficiente as informa-

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ções expressas por Jan Hulsker para colocar um ponto de interrogação sobre a autenticidade das obras. Vale informar que, outros especialistas da instituição, também, não ficaram convencidos com as alegações. (BAILEY, 1997). Além do dissabor causado pelas afirmações do renomado especialista, a dúvida se espalharia de forma viral, colocando em xeque obras do artista holandês que estavam, aparentemente, seguras. Dado o exposto, ressalta que houve um longo debate, ainda em aberto, quanto à proveni-ência de muitas das obras de van Gogh. O Rijksmuseum, em Amsterdã, recebe a cada ano cerca de 150 pedidos de autenticação da obra do artista holandês, mas apenas uma pequena fração dos que são já considerados genuínos. (BAILEY, 1997). Ou seja, pinturas ainda não conhecidas estão surgindo, ou van Gogh ainda está “produzindo” pinturas. Seja como for, o seu catálogo esta au-mentando. Questionar a autenticidade de alguns trabalhos em uma publicação que propõe equiva-lência ao catálogo raisonné é, nitidamente, prejudicial para a reputação da imagem de institui-ções, como também para a imagem do artista. Muitas alegações de atribuições duvidosas, ou mesmo de que a obra seja falsa, esbarram em fronteiras e se encontram entrincheiradas, pois para alguns curadores e estudiosos é difícil validar veredicto apoiado em opiniões insólitas que apontam em seus acervos obras duvidosas. No entanto, esse não é o pior dos males, reconhecer e aceitar que foi enganado, nesses casos, exigem uma força homérica, pois não podemos esquecer que uma obra de arte é um alto investimento, e com a atribuição negativa, o investimento eva-nesce. Cita-se também que a autenticidade sendo posta em xeque o valor monetário e ou estético transmuta. Talvez tenhamos em que pensar em quem e se interessa que uma obra deixe de ser considerada genuína, ou melhor, que seja revelada a sua verdadeira natureza. Neste sentido, podemos perceber que o que esta em xeque é mais do que a historiografia da obra e do artista. Assim sendo, podemos intuir que, por vezes, o jogo monetário é mais im-portante que a verdade histórica. E talvez por isso seja preferível que a questão permaneça em aberto, em vez de ser concluída. E, no pior dos casos, os especialistas veem cruzando elementos não artísticos na intenção de atribuir valor a obra e emacular a autenticidade. Atualmente há uma grande discussão sobre a atribuição das obras de van Gogh e, em alguns casos, a atribuição proferida por notórios especialistas em artes pode ser contestada, ou mesmo refutada. Desta forma, a questão da atribuição de obras de arte cruza elementos duvi-dosos e complexos, o que nos motiva a redesenhar as motivações que envolveram a negação de autenticidade das obras supracitadas.

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Natureza Morta com Flores

Figura 1 - Natureza Morta com Vaso, Prato e Flores, 1886. Autenticidade sob suspeita. Óleo sob tela. 51 x 45 cm. MASP, São Paulo

Segundo Cassiano Elek Machado, redator da folha de São Paulo, para o ex-curador chefe do MASP, Fábio Magalhães, a tela “Natureza Morta com Flores” (Figura 1) não pode ser aceita como sendo produzida por van Gogh, no caso, Magalhães acredita que a obra é inautêntica. No entanto, esta afirmação não é uma opinião pacífica dentre os pesquisadores. Eunice Sophia, co-ordenadora do acervo do museu, reconhece que a obra carece de estudo acurado, mas não afirma que a obra seja, em realidade, uma falsificação ou uma atribuição equivocada. (MACHADO, 1997) Em 2015, Felipe Sevilhano Martinez, defendeu a dissertação intitulada van Gogh no Masp, em que analisou as questões suscitadas pelas cinco obras do acervo da instituição, bem como a biografia do artista. A partir das obras da instituição, abordou problemas na atribuição das obras. Para Martinez, “Natureza Morta com Vaso”, é uma obra produzida por van Gogh, que pertence ao círculo de obras produzidas pelo artista em Paris. O autor também afirma que as informações disponíveis sobre os quadros pintados por van Gogh, em Paris são escassas, por isso suscetíveis as atribuições equivocadas. Cumpre informar que a época em que van Gogh esteve em Paris possui poucos registros do que ele havia produzido. Martinez conclui que, a afirmação de que a obra apresente elementos incomuns com a estilística do autor, bem como a pouca do-cumentação da obra, não configura razão suficiente para descartar a possibilidade de que tenha sido, realmente, pintada por Vincent. (MARTINEZ, 2015) Martinez afirma ainda, que as posições oficiais emitidas pelas instituições e pelos espe-cialistas se mostraram falhas em algumas ocasiões. Destacando o exemplo de “Natureza Morta com Flores Espalhadas”, pintada em 1886, em que uma radiografia demonstra que foi pintada

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sobre outro quadro, que apresenta dois lutadores, também pintado por van Gogh. Inicialmente o quadro foi rejeitado pelos especialistas e depois reabilitado como sendo uma obra genuína. Isso mostra que não se pode descartar a possibilidade da pintura ter sido feita por van Gogh somente por diagnósticos realizados por especialistas, crítico ou estudiosos. (MARTINEZ, 2015). Tal que não é crível balizar acusações irreversíveis pautadas em provas subjetivas. Vale lembrar que a obra “Natureza Morta com Vaso de Flores” teve sua autoria contestada no terceiro catálogo raisonné sobre a obra de van Gogh, publicado em 1970. (HULSKER, 1970). Em outros catálogos, como por exemplo, a primeira (1928) e a segunda versão (1939) do catálogo de raisonné das obras de van Gogh, ambos sob a autoria de Jacob Baart de la Faille (1886-1959), a obra está presente, ou seja, considerada como autêntica. A partir da década de 1940, Faille iniciou estudos para a elaboração de uma terceira ver-são do catálogo, no qual, pretendia expor as obras que haviam sido mencionadas nas cartas em que o artista trocou com o irmão, nas quais descreviam obras que ainda não haviam sido catalo-gadas. Contudo, o autor faleceu em 1959, antes de conseguir publicar sua pesquisa. Seus estudos foram apropriados por um conjunto de editores, em que Jan Hulsker fazia parte, autor do quarto e último catálogo de raisonné de van Gogh (1970). (MARTINEZ, 2015). A edição do catálogo de 1970 publicada pelos editores, a partir da pesquisa de Faille, não considerou a obra “Natureza Morta com Vaso”. Os critérios da exclusão da obra são obscuros, no qual os editores afirmaram que a obra não compactuava com a atribuição aferida por Faille. Se-gundo Martinez, desde a referida publicação, novos estudos não foram elaborados para atualizar a questão:

“[…] pode-se concluir que após 1970, a questão relativa à atribuição do quadro pertencente ao MASP não mais foi discutida. Somente Lecaldano, em um catá-logo sobre a obra pictórica do artista, atentou para o fato de que estudos mais aprofundados deveriam ser elaborados para que uma posição mais consistente sobre o quadro pudesse ser adotada. Lecaldano expressa sua discordância não somente em seu catálogo, mas também em uma carta enviada a seu amigo Pietro Maria Bardi, em 1971, na qual reclama da ausência de critérios sólidos e assume o lado do conterrâneo na questão referente à autoria do quadro”. (MARTINEZ, 2015, p. 10).

Vale informar que Martinez analisou a atribuição de “Natureza Morta com Vazo de flores” de van Gogh, em que o autor apregoa, que após a contestação de inautenticidade, a obra foi esque-cida no Brasil. Em que pese tal afirmação, apontamos a necessidade de revistar o primeiro caso, bem como, analisar as questões relativas a autenticidade da obra, de maneira mais profundo e por meio de exames acurados, porém, igualmente deve ser analisado o quadro “A Arlesiana”, também pertencente ao MASP, pelo simples fato de não existir analise no que diz respeito a autenticidade da obra, mas apenas apontamentos que sugerem que obra não tenha sido realizada por Vincent. Contudo, “A Arseliana”, obra que Martinez não investigou de maneira a explorar a dúvida na atribuição, mas produziu associação da obra com uma pintura de Paul Gauguin (1848-1903), afirmando que se trata de uma cópia que van Gogh realizou da pintura de seu amigo, carece de estudos especulativos. Dado o exposto, podemos perceber que o passar dos anos não esta minimizando a dúvida, mas apenas a espalhando. Assim sendo, reiteramos a necessidade de estudos mais profundos nas

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vendeu pouco em vida – acreditam que ele tenha vendido apenas uma obra ao seu irmão, Theo –, e cujas as obras atingem hoje preços recordes, em que museus e galerias do mundo inteiro recebem milhões de pessoas quando sua obra está em exposições, está associado, principal-mente, a série girassóis. “Você sabe que Jeannin tem a peônia, Quost tem o hollyhock, mas eu tenho o girassol, de certa forma” revelou para seu irmão Theo, na carta 573. (GOGH, 2011, carta 573 apud BROOKS, 1996-2016). Para Vincent, os girassóis, mais do que uma identifica-ção, simbolizam a gratidão, em meio a um grito de angustia, como definiu a sua irmã, na carta 856. (GOGH, 2011, carta 856, apud BROOKS, 1996-2016). Segundo o historiador holandês Jan Hulsker, um dos principais estudiosos em Vincent van Gogh, que publicou o catálogo Raisonné de sua obra, em 1978, revisto em 1989 e novamente revisto e ampliado em 1996, sugere que a série de girassóis talvez mais do que qualquer outra de suas pinturas, fizeram dele conhecido em todo o mundo. Cita ainda que muitas vezes são as únicas obras com a qual ele é identificado. (HULSKER, 1996). Segundo o escritor canadense David Brooks (1961-), que estudou por décadas a obra de van Gogh, responsável por um catálogo raisonné virtual do artista, ele teria pintado onze quadros sobre a temática dos girassóis em toda a sua vida, dos quais, apenas dez podem ser visitados atualmente, pois um foi destruído pelo fogo durante a segunda guerra mundial. Es-pecialistas discutem a possibilidade de algumas destas obras serem, em realidade, falsificações. O mais controverso “van Gogh” é a pintura conhecida como os Girassóis Yasuda – apontada como uma falsificação por Hulsker –, um dos seis estudos mais ou menos idênticos de vários girassóis em um vaso. Uma versão da obra está no Museu Van Gogh, em Amsterdã; uma segundo está na National Gallery, em Londres; a terceira versão está na Filadélfia; na Philadelphia Museum of Art; a quarta está nos Estados Unidos em posse de uma coleção particular; duas versões na Nation Gallery, uma das duas obras foi posta em leilão, em Londres pela Christie’s em 1987 e comprado pela Yasuda Fire and Marine Insurance Co. por US $ 39,9 milhões, o maior valor pago por uma obra até então. (BROOKS, 1996-2016, s/p). Martin Bailey, afirma que, quando a obra foi associada como uma falsificação, milhões de dólares entraram em jogo, assim como a reputação da casa de leilão que comercializava a obra, os encargos mais extremos vieram de Benoit Landais. Seu sucesso em manchetes foi convidativo a uma indústria de amadores entusiastas que argumentavam, uns com os outros, sobre a obra enigmática. O motor do mundo da arte entrou em movimento. Especialistas fo-ram atraídos para a briga. Suspeitas sobre falsificações de van Gogh atingiram obras em alguns dos melhores museus do mundo e provocou debates entre especialistas. A opinião entre a au-tenticidade das obras foi dividida, e sobre algumas obras, como o Girassóis Yasuda, ainda recai a dúvida. Em resposta a estas dúvidas crescentes muitos museus retiram as obras suspeitas de van Gogh da vista do público ou manifestam a “autenticidade inquestionável” de suas obras em acervo. O Museu Van Gogh, por exemplo, retirou quatro obras de exposição e submeteu--as a completa bateria de exames para atestar a autenticidade das obras. (BAILEY, 2013 apud GAYFORD, 2013). Contudo, o Girassóis Yasuda tem levantado suspeitas, não só porque a pintura não é mencionada nas cartas de van Gogh ou no inventário de suas pinturas que foi elaborado logo após sua morte, mas porque sua proveniência pode ser rastreada até Émile Schuffenecker

obras supracitadas.

Girassóis Yasuda

, p. 14-25, 2017. , p. 14-25, 2017.

Figura 2: Vazo com quinze girassóis, 1889. Autenticidade sob suspeita. Óleo Sobre Tela, 100.5 x 76.5 cm. Possivelmente pintada em Arles: January, 1889. F 457, JH 1666, Tokyo: Sompo Japan Museum of Art.

A questão de atribuição se demonstra ainda mais complexa, como por exemplo, no que diz respeito a obra Girassóis Yasuda (figura 2), em que o detentor da obra levanta suspeitas, e não, diretamente, a obra, nem sua estilística, nem mesmo os atestados fornecidos por especia-listas em ciência forense. Neste sentido, podemos compreender que nem sempre a dúvida da autenticidade de uma obra de arte é julgada pelos seus atributos internos, mas sim, por vezes, a idoneidade de seu proprietário expõe a obra a suspeita. Vincent van Gogh, o mais celebrado e mistificado artista, gênio incompreendido que

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sessar. (GAYFORD, 2013).

A pesquisa de atribuição de uma obra de van Gogh está sempre em aberto e será sempre susce-tível ao aparecimento de novas evidências que possam esclarecer antigas controvérsias. Como admite Feichenfeldt, sua opinião não pode ser tomada como definitiva e está sujeita a novas evidências documentais e materiais. Em outras palavras: pesquisa de proveniência nunca che-gará ao fim até que existam provas inquestionáveis que liguem o quadro ao artista, a despeito da opinião do mais qualificado especialista. (MARTINES, 2015, p. 36-37).

A despeito da atribuição de quadros de van Gogh, Hulsker argumenta que ele está chamando a atenção para um problema que é muito mais profundo do que podemos sondar. Disse ao The Art Newspaper, em 1997, que além de quarenta e cinco van Goghs com atribui-ção questionável, há permanente dúvida sobre a autenticidade de muitos outros trabalhos. Mais de cem pinturas do mestre holandês têm sido questionados em estudos recentes. Cita-se ainda que, outros notórios especialistas, Dorn e Feilchenfeldt, consideram uma outra dezena de obras que acreditam ser atribuições equivocadas, desta forma, podemos compreender que há ceticismo entre os especialistas em reconhecer uma significativa porcentagem de obras associadas a Vincent. Que por algum motivo, continuam penduradas em museus ao redor do mundo. Atualmente, reivindicações estão sendo feitas de que falsificações ocupam lugar de destaque em muitos dos principais museus do mundo, incluindo as grandes instituições como o Museu Metropolitan, Musée d’Orsay, Museu de Arte Contemporânea – MASP, e até mesmo ao Van Gogh Museum. No entanto, especialistas não são igualmente convencidos da alegação da dúvida na autenticidade, o que os leva a questionar tal sentença, algumas vezes, reabilitan-do obras, na tentativa de defendê-la de ataques intrusivos que questione a inidoneidade da mesma.

Uma outra perspectiva sobre os Girassóis Yasuda

Sabe-se que a afirmação de que os “Girassóis Yasuda” em realidade eram falsos partiu da renomada especialista em arte, Geraldine Norma. Após a compra da obra pela Yasuda and Marine Insurance Company, em 1987, Norma declarou que a obra foi forjada por Schuffene-cker, informou também que não havia menção a obra nas cartas de van Gogh ou em qualquer outra coleção de sua família. A sua argumentação foi apoiada pelo também renomado espe-cialista Antonio de Robertis, que argumentou que o tamanho da tela, o estilo, o rotulo nas costas da moldura, junto a falta de assinatura na obra corroboraram na conclusão de que a obra fosse de fato uma falsificação. Se ainda isso não fosse suficiente, sete outros especialistas, incluindo Jan Hulsker e o polêmico Thomas Hoving, dentre outros, reiteraram a acusação. Po-de-se dizer que foi a primeira vez que tantos especialistas juntos apontaram que uma mesma obra em realidade é falsa. Diante desse diagnostico eminente, parecia que a obra seria renegada a ignomínia, o mesmo que ocorre, quando uma obra de renome, em uma instituição de prestigio, é apontada como sendo falsa.

(1851-1934). Desde o final dos anos 1920, Schuffenecker é suspeito de ter imitado e realizado falsificações das obras de outros artistas contemporâneos, incluindo Vincent. (GAYFORD, 2013). Émilie Schuffenecker foi um pintor que conheceu Paul Gauguin (1848-1903), quando ambos estavam trabalhando no mercado de ações, em Paris. Como Gauguin, Schuffenecker abandonou o comércio de ações e dedicou-se à arte. Ficou conhecido por ser um colecionador precoce das obras de van Gogh e outros pintores do modernismo. Vale mencionar que Schuf-fenecker comprou o que é hoje mencionado como Girassóis Yasuda quadro anos após a morte de Vincent, ou seja, em 1894. Alguns esboços e desenhos provam que Schuffenecker estudou cuidadosamente as obras de van Gogh que estiveram em sua posse. O Museu Van Gogh tem uma cópia realizada por Schuffenecker, em pastel, do autorretrato de Vincent com orelha enfaixada. É importante destacar o fato dele copiar um autorretrato, e não uma outra obra qualquer. Sabe-se também que produziu um esboço de “A Arlesiana”, que foi recentemente descoberto na Frick Art Reference Library, em Nova York. Cumpre informar que Schuffene-cker modificava e finalizava as obras de van Gogh que considerasse incompletas. (BAILEY, 2013 apud GAYFORD, 2013). Isso por si obriganos a pensar que, em se tratando de autentici-dade nas obras de van Gogh, deveríamos primeiro recorrer a porcentagem de original numa obra do artista holandês, visto que, seria difícil balizar em que medida ocorreu as intrusões por Schuffenecker. Além do exposto, o motivo pelo qual torna-se especialmente difícil detectar muitos falsos van Gogh, segundo o jornalista Timothy Ryback, é que algumas obras fraudulentas foram pintadas durante a vida do artista ou imediatamente após a sua morte e, assim, entrou no mercado em simultâneo com muitos originais. Isso leva a pensar que a suposição geral de que o gênio de van Gogh não foi reconhecido até pelo menos quinze anos após a sua morte não é verdadeira. Após o falecimento de Vincent, em 1890, Theo recebeu muitas cartas de condolências, inclusive de vários artistas: Paul Gauguin, Camille Pissarro (1830-1903), Clau-de Monet (1840-1926), Armand Guillaumin (1841-1927), Georges Seurat (1859-1891), Paul Signac (1863-1935) e Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901). Dentro de uma década após a sua morte, colecionadores e o público em geral começaram a apreciar suas obras. Ocorreram grandes exposições do artista holandês e o comércio de suas obras floresceu, junto trouxe uma enxurrada de obras falsas para o mercado. Para somar pontos ao conto, acredita-se que umas das primeiras exposições da obra de van Gogh tenha sido realizada por Schuffenecker, em 1901 – um ano após a morte do artista holandês. (RYBACK, 2000). A disputa sobre a atribuição da obra em questão permanece ativa, no entanto, os pro-prietários parecem não se abalar pois a obra encontra-se exposta no Sompo Japan Museum of Art, em Tóquio, como um legítimo van Gogh. Vale lembrar que o primeiro caso de falsificação comprovado das obras de van Gogh ocorreu na década de 1930, protagonizados pelos irmãos Wacker, desde então, falsificações da obra do pintor holandês vem aumentando a cada ano. (ARNAU, 1961). A crescente preocupação com falsificações de van Gogh têm gerado uma indústria de autenticadores. Eles se envolvem em debates públicos, jornais, documentários, apresentando análises técnicas detalhadas, e regularmente enfrentam curadores de museus e casas de leilão com suas descobertas. O debate em curso já dura décadas e não apresenta provas de que ira

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Contudo, os vendedores da pintura sempre negaram que a obra fosse uma falsificação. Mas não negaram que Schuffenecker tocou na pintura, afirmando que ele deve ter restaurado a obra, e assim, fez pequenas adições à peça. Também não quiseram balizar a porcentagem da intrusão de Schuffenecker. Mesmo as reivindicações e inconsistências técnicas e estilísticas contidas na obra fo-ram rebatidas. Especialista representantes do Van Gogh Museum afirmaram que era possível encontrar “erros” similares em outras obras genuínas do mestre holandês, o que não despres-tigiava a obra, e muito menos poderia ser uma prova de sua inautenticidade. O relatório conhecido como The Tokyo Sunflowers, foi escrito pelo curador Louis van Tilborgh e pela chefe de conservação e restauro Ella Hendriks, em conjunto com o instituto de Chicago. Alegaram que há documentação sobre o quadro e tratava-se de uma obra genuína. E ainda que tinha havia ocorrido um grande equivoco quando associaram a obra de van Gogh a uma falsificação. Atualmente a obra figura como um genuíno quadro de Vincent van Gogh e percorre o mundo participando de diversas exposições itinerantes, saindo da reclusão, sem consigo levar o peso da dúvida na autenticidade. Cumpre informar que esse caso foi extremamente turbulento e viral, quase todos os grandes jornais mundiais escreveram ou reportaram a mensagem. Porém, quando a obra foi aceita como genuína, em 2002, não foi realizado muito barulho sobre o caso. E desde então, pouco se comenta sobre a obra. Contudo, temos que refletir que as vezes, uma obra de arte pode ser tão encantadora a nível que possa cegar as pessoas para o seu contexto e a sua real natureza. Se o fantasma da dúvida ainda paira sobre a obra, ou se a voz dos renomados críticos ainda será ouvida, consti-tui um mistério. No entanto, em vista de que o mundo da arte constantemente é bombardeado com afirmações de que determinadas obras em realidades são falsas. E que a obra de van Gogh produziu uma serie de especialistas dispostos a reclamar a atribuição. O debate em torno às obras do artista holandês não parece que ira se encerrar tão cedo. Por fim, nem tudo esta perdido. Ao longo dos últimos dez anos, dezenas de novas obras foram aceitas como tendo sido realizadas por van Gogh, e um caderno com 69 desenhos atribuídos ao pintor holandês foi firmado como inautêntico. Resta nos agora, aguardar os pró-ximos veredictos.

Referências:ARNAU, Frank. Arte de Falsificar la Arte. Tradução de Juan Godo Costa. 1ª Ed. Barcelona, España: Editora Noguer, 1961. BRADLEY, Kimberly: Why Museums Hide Masterpieces away. BBC. 23 de janeiro de 2015. Disponível em: http://www.bbc.com/culture/story/20150123-7-masterpieces-you-cant-see Acesso em: 03/03/2016BROOKS, David: A Galeria Vicent van Gogh. 1996-2016. Disponível em: http://www.vggal-lery.com/ Acesso em: 05/02/2016FAILLE, Jacob Baart de la. The works of Vincent van Gogh: his paintings and drawings. Ams-terdam: Meulenhoff, 1970.GAYFORD, Martin. The Sunflowers are Mine. The Spectator. Disponível em: http://www.

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Recebido em 26 de abril de 2017 Aprovado para publicação em 18 julho de 2017

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O Registro do inominável: representações do trágico na fotografia contemporânea

Records of the inominable: representations of the tragic in contemporary photographyThiago Costa*

*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (UFRJ) na linha de pesquisa Poéticas da cena: teoria e crítica; Bacharel em Comunicação Social – Rádio e TV (UFRJ) e em Psicologia (UFRJ).

ResumoEste artigo busca ter como ponto de partida as ditas “fotos de tragédia” para refletir sobre a condição do trágico e das tragicidades. Tem-se como hipótese que o trágico se dá nestes registros e é poten-cializado pela figura do outro, de uma multidão que evoca o coro de bacantes. São selecionadas fotografias de mulheres que perderam seus filhos após a um acontecimento inesperado – por vezes devastador e que mostrou a fragilidade da vida humana. Estes registros evidenciam um problema sobre como a linguagem (signos) não consegue compreender as relações imediatas com as coisas. Como chamamos a mulher que perde seu filho? Em nenhum idioma encontramos um termo para esta condição. A matemática, tida como linguagem universal, tem suas estruturas abaladas mos-trando sua incompletude através dos estudos de Kurt Gödel. O trágico se apresenta como espécie de arché da condição humana, um ciclo vicioso que retorna para uma humanidade que sempre busca compreender a totalidade de seu universo.

Palavras-Chave: Fotografia; Tragédia; Trágico; Inominável; Linguagem.

Abstract This article seeks as a starting point the so-called “photos of tragedy” to reflect on the condition of the tragic and the tragicities. It is hypothesized that the tragic occurs in these records and is enhanced by the figure of the other, a crowd that evokes the chant of Bacchantes. It were selected photographs are of women who lost their children after an unexpected event - sometimes devastating and showing the fragility of human life. These records evidence a problem about how language (signs) fails to comprise immediate relationships with things. What do we call the woman who loses her child? In no language do we find a term for this condition. Mathematics, taken as a universal language, has its structures shaken showing its incompleteness through the studies of Kurt Gödel. The tragic presents itself as a kind of arché of the human condition, a vicious cycle that returns to a humanity that always seeks to understand the totality of its universe.

Keywords: Photography; Tragedy; Tragic; Unnameable; Language.

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Introdução

A globalização e a inserção dos meios de comunicação a lugares, antes, distantes propor-cionaram a diversas sociedades o acesso a experiência de assistir um evento trágico. Palavra que, no discurso das pessoas, é uma característica da tragédia, tem um sentido

bastante diferente no contemporâneo do que na época da Grécia antiga. A mídia se valeu do termo para divulgar notícias de catástrofes sociais e naturais, distanciando-se do que era con-cebido no período helênico. A leitura das fotografias neste artigo tem um viés que se aproxima deste último, pensando-as como tragicidades. Mas por que o trágico agora? É possível ainda? Jean Pierre Vernant em entrevista a Fabienne Darge (2005) responde que sim, uma vez queA tragédia grega inventa não apenas um espetáculo e um tipo literário mas apresenta um ho-mem trágico: ela inventa o homem angustiado, o homem que questiona seus atos, que com-preende mais tarde que fez uma coisa totalmente diferente do que acreditava fazer... É isso que continua a ressoar em nós. [...] Há momentos históricos de otimismo, como no início do século 20, em que o homem não tem necessidade de tragédia. Mas desde então o mundo ocidental se destroçou na guerra de 1914, depois na de 39-45, no nazismo e nos campos de concentração. [...] O surpreendente progresso científico e técnico que nos torna “senhores e possuidores da natureza”, como queria Descartes, nos dá ao mesmo tempo a sensação de que beiramos a catás-trofe a todo instante (DARGE; VERNANT, 2005, s.p.). Com o homem sendo “senhor e possuidor da natureza”, diversas práticas são possíveis e inesperadas, como guerras e violências que assolam a sociedade, repetindo-se ad infinitum, sem que seus participantes superem seus antecessores. O sofrimento, então, se revela como uma questão que assombra a condição humana desde os tempos de Aristóteles. Nietzsche confirma esta hipótese ao demonstrar que a tragédia é o

[...] dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos — a isso chamei dionisíaco, nisso vislumbrei a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para livrar-se do pavor e da compaixão, não para purificar-se de um perigoso afeto mediante sua veemente descarga — assim o compreendeu Aristóteles —: mas para, além do pavor e da compaixão, ser em si mesmo o eterno prazer do vir-a-ser — esse prazer que traz em si também o prazer no destruir... (NIETZSCHE, 2006, p. 106).

Entre a potência de vir-a-ser e gozo pela destruição, encontra-se o humano trágico. Este interpreta erroneamente os sinais que recebe dos deuses através dos oráculos ou profecias, levando-o ao desfecho de seu enredo. Esta condição revela o quanto humanos nós somos, que mesmo na busca para um desfecho que nos motiva, tropeçamos e provocamos a desordem que a atrapalha o meio ao nosso redor. Guerras e práticas violentas que, a priori, tem suas justificativas, como o combate as drogas ou a um governo tirano, acabam não solucionando o problema que tratavam e causando ações que destroçam famílias ou cidades inteiras. Na fotografia contemporânea, é possível en-contrar este trágico que destaco? Dentre a vasta gama delas, destaco as que registram as mães que se deparam com os corpos de seus filhos mortos. Estas representações possuem elementos trágicos para diversas leituras e uma delas, que tenho como hipótese, é a presença de outros sujeitos na composição do quadro. Esta apresentação pode remeter a figura do coro trágico que

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se apresenta durante o decorrer de uma tragédia grega. Além disto, as fotografias me provocam uma reflexão que atravessa toda linguagem hu-mana – como chamamos esta mulher que perde seu filho? Para uma situação contrária, tem-se o termo “órfã(o)”, mas em nenhuma língua tem-se o termo que me provoca. Tal perturbação encontra amparo na teoria matemática de Kurt Gödel (1965) anuncia ao dizer que um sistema formal é incapaz de apresentar a totalidade de problemas que ele próprio pode expressar. Sendo a matemática uma linguagem, isto demonstra que ela, assim como as outras linguagens, não compreende as relações imediatas com as coisas que existem ao seu redor. Este inominável, vazio, fenda que fura nossa linguagem tem uma potencialidade trágica que nos assombra desde nossa cosmogonia.

A POSSIBILIDADE DE UM TRÁGICO NA FOTOGRAFIA

É incerto desde quando começou a prática de associar catástrofes ao trágico pela mídia. Estes são “acontecimentos extremamente tristes que envolvem uma perda irreparável de um ser humano e, sobretudo, a morte inesperada, desnecessária e prematura” (MOTTA, 2016, p. 155). Todavia, não quero pensar as fotografias imbricadas a este campo, pois ele remete à “fo-tografia como espelho do real”, aprisionando a imagem com seu “poder de comoção”. Assim, como Teresa Bastos e Leandro Pimentel (2016), penso estes registros perante o campo das artes por acreditar que isto os tornará mais potentes, retirando-os “da condição de representantes da tragédia para a de anunciação da potência do trágico” (BASTOS; PIMENTEL, 2016, p. 216) – este compreendido como uma condição humana, uma categoria metafísica. As fotografias deste tipo de acontecimento deslocam sua característica como memento mori, que as lhes conferia a capacidade de gerar um duplo que perpassasse a morte do sujeito como aponta Susan Sontag (1981) e se mostram como registro de um trauma, que a morte inesperada é possível. Este trauma coberto de sofrimento e choque, elemento comum a diver-sas fotografias premiadas em mostras e prêmios se comunica a qualquer um, independente de que língua este fale, poisa consciência do sofrimento que se acumula em um elenco seleto de guerras travadas em terras distantes é algo construído, ao contrário de um relato escrito – que, conforme sua complexida-de de pensamento, de referências e de vocabulário, é oferecido a um número maior ou menor de leitores -, uma foto só tem uma língua e se destina potencialmente a todos (SONTAG, 2003, p. 24). Às vezes a potência deste sofrimento é tão forte, que as fotografias não necessitam de legenda para compreender o que está ali registrado. Roland Barthes (apud BASTOS; PIMEN-TEL, 2016) já apontava que esta técnica como uma mensagem sem código, sendo a legenda este último que é evocado pela mídia. Este sofrimento é o resultado do conflito insolúvel entre o apolíneo e o dionisíaco. O herói trágico apolíneo, aquele com caráter singular que se aventu-ra em perigosas missões, almeja dar um sentido para sua vida e que sofre (tanto fisicamente, quanto psicologicamente), encontra a sua frente um embate contra o inelutável Destino que é Dionísio. Discutir este embate no contemporâneo é uma tarefa difícil, assim como no período he-lênico, pois no trágico, “o homem e a ação se delineiam, não como realidades que se poderiam definir ou descrever, mas como problemas. Eles se apresentam como enigmas cujo duplo sen-

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tido pode nunca ser fixado nem esgotado” (VERNANT, 1977, p. 23). A questão do livre arbítrio sobre a resolução destes problemas e da fuga do que está predestinado é algo que dificulta uma visão do trágico dos eventos, uma vez que ele se relaciona com o (des)entendimento, não sendo algo incumbido integralmente ao humano. O livre-arbítrio informa onde está o erro [a possibilidade de vigorar entre os cristãos], res-ponsabilizando inteiramente o humano. Isto afasta a tragédia; nela, é precisamente o engano que faz cair em desmedida. Édipo foge às predições e cai nas malhas dos deuses; depois, tendo furado os próprios olhos, não sabe até onde a decisão coube à divindade (GADELHA, 2011, p. 2). Este trágico se torna mais presente quando somos tocados por uma influência apolínea que busca sentido em meio ao caos, sendo isto um dos cernes da questão trágica - “a vida só pode parecer trágica quando, por um lado, nós ainda mantemos a expectativa de que o mundo deveria ter sentido, mas, por outro, não estamos mais certos de que há um deus que garante o seu sentido” (MOST, 2001, p. 35 apud MOTTA, 2016, p. 158). Além desta busca pelo inacessível, a atuação do coro é fundamental na tragédia, a representação da voz do deus Dionísio para Nietzsche, “associa-do, por sua vez, à dimensão originária e primordial” (PAULA JÚNIOR, 2006, p. 129). O coro que trago à fotografia é aquele que acompanha o foco trágico, sendo uma ou mais pessoas. É a voz dionisíaca no meio do caos e também uma representação da multidão que se revela no enquadramento e para além dele também, como no registro “Cerimônia fúnebre em Kosovo” do fotógrafo Georges Merillon (Fig. 1), no qual uma mãe chora a morte do seu filho em decorrência dos conflitos da região em 1900. Ao seu lado há um grupo de mulheres, um coro trágico representado no registro.

Fig. 1 – Cerimônia fúnebre em Kosovo, Georges Merillon (1990). Registro vencedor do prêmio World Press Photo em 1991.

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enquanto documento ou como dizer algo sobre o real tende a excluir o trágico da mesma. O trágico nos assombra ao nos revelar a pequenice da vida humana em relação a toda possibilidade do cosmos. Ele “estaria naquilo que não podemos dar conta, na nossa fragilidade e na nossa impotência perante o acontecimento e própria imagem” (BASTOS; PIMENTEL, 2016, p. 225). A ausência, possivelmente, é um outro elemento trágico. Esta perda, o vazio, o zero que nos atravessa é uma existência do que “não está lá”, uma característica que perpassa a fotografia e seus gêneros, representar uma ausência, um vestígio da mesma.

Para fazer a imagem da tragédia recuperar o elemento trágico, que admite o vazio da falta e a dor da ausência é preciso admitir que ela é insuficiente, como toda a linguagem, mas é potente de modo singular, ao carregar o traço de uma existência que aparece como ausência. Nesse vazio que se instaura o trágico e se faz possível o luto (BASTOS; PIMENTEL, 2016, p. 226).

A fotografia de Marco di Lauro (Fig.3) é um exemplo deste registro potente de uma ausência. Além de ser uma imagem chocante pelo seu teor explícito, ela evidencia diversos corpos mortos en-quanto um mulher chora por ele(s). A fotografia remete a um epitáfio, “aqui jaz humanos”, mostrando pessoas sem vida, sendo uma ausência da ausência (de vida).

A comoção destas mulheres se assemelha ao que Nietzsche (apud PAULA JÚNIOR, 2006) chama de “transe” que contagia por toda a multidão.

Talvez se pudesse chamá -lo de catarse ou metamorfose: um processo em que o coro ditirâmbico é um coro de transformados. O coro, aqui, assumindo o próprio papel do espectador, do público, da platéia. Po-rém, observa se que esta catarse não é uma descarga patológica da moral (PAULA JÚNIOR, 2006, p. 135).

Esta descarga advém do coro dionisíaco frente ao mundo imagético apolíneo a todo mo-mento trágico. Enquanto no palco da tragédia grega há uma relação entre a palavra e a música – a primeira dominada pelo protagonista e a segunda, pertencente ao coro, que domina o que resulta das palavras. Esta musicalidade, ruído, efeito sonoro que vem do coro se sobressai sobre qualquer fala ou palavra que possa estar relacionado a uma fotografia. O que pode ser dito que se sobressaia o lamento das mães que se encontram sob sua nova infortuna condição? O silêncio que abafa as palavras também é possível. A ausência do coro e a estagnação das ações frente ao evento podem intensifica-lo. Mesmo não enquadrado, o coro se manifesta, seja no limiar do quadro ou como objeto de busca de uma mãe que perde seu filho. Podemos ver isso no registro que Marcelo Carnaval (Fig. 2) capturou de uma mãe que perdera seu filho empresário na saída do trabalho em uma rua do Rio de Janeiro. A fotografia mostra que esta perda inesperada é passível de ocorrer em qualquer lugar, não sendo exclusiva de regiões de guerra ou de tensões político-bélicas. Esta possibilidade de o trágico acontecer em qualquer lugar, possibilita que o luto resul-

Fig. 2 – “A MÃE do engenheiro Leonardo Tramm com o corpo do filho, na Rua Visconde de Inhaúma, onde ocorreu o crime” – Jornal O Globo, Terça-feira, 29 de agosto de 2006 – Capa, Marcelo Carnaval (2006). Registro vencedor do Prêmio Esso e Prêmio Rey de España, respectivamente em 2006 e 2007

tante de sua existência seja coletivo, ainda mais quando atrelado a uma imagem. Para haver este trágico inscrito na imagem, ela não deve ser compreendida como “discurso informativo, como puro documento, nem como uma linguagem deslocada da realidade ou como ícone de um acon-tecimento” (BASTOS; PIMENTEL, 2016, p. 225). A questão se uma fotografia é fidedigna ou não

Fig. 3 - Vítimas de ataque suicida em Karbala, Iraque, Marco di Lauro (2004).

A inclusão de pessoas ou multidão no quadro que assistem a essa ausência, é o que confere “outras camadas para concebermos o desdobramento do evento para além do microcosmos daqueles que sofreram diretamente seu impacto” (BASTOS; PIMENTEL, 2016, p.229). A presença deste coro feito da multidão é o que proporciona à fotografia seu caráter épico, rompendo a efemeridade de ser apenas um registro midiático.

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A concepção de sofrimento variou durante o percurso histórico como apontam alguns estu-dos sobre este tema, de acordo com Angie Biondi (2013). Há dois momentos, sendo o primeiro com fundamentos religiosos, principalmente por parte judaico-cristã e o segundo sendo a ruptura do pri-meiro. Este momento de ruptura se dá na Modernidade, quando Nietzsche “mata” Deus, criando um homem que é sujeito histórico e atuante no mundo. O primeiro momento, de “designação religiosa”, focado no “Eu”, é marcado por uma existência do homem baseada na angústia . Tal sentimento ope-rava para o equilíbrio entre o corpo e o espírito, sendo o cerne do “existencialismo cristão” (KIERKE-GAARD, 2007 apud BIONDI, 2013) e moldando as ações do sujeito para com Deus. O início desta concepção moderna que exalta o sofrimento como elemento determinante das vidas terrena e divina marca a angústia como aspecto fundamental da relação entre o indivíduo e Deus. É deste modo que a angústia, experimentada como sofrimento de uma relação desequilibrada que se põe entre a responsabilidade do fazer e a liberdade do ser de cada um vai apresentar um caráter mediador entre as designações divinas e o ordenamento político da vida social, que diz das relações com o outro e com a vida comum compartilhada (BIONDI, 2013, p. 33). O segundo momento, da “designação histórica”, focado no “Ele”, se distancia dos valores cris-tãos, atendo-se à realidade terrena operada “pelo querer (“vontade de potência”), portanto, contrário aquele modelo entendido por Kierkegaard (2007) na dinâmica entre submissão e responsabilidade individual” (BIONDI, 2013, p. 35). Com a morte de Deus, o sofrimento é deslocado do mártir cristão para um sujeito que pode ter seu sofrimento visto do âmbito da “denúncia, protesto, conhecimento da realidade, do outro, enfim, de um valor histórico e também político, que passa por outros modos de qualificar o representado como vítima e de aliar, ao sofrimento, outras designações” (BIONDI, 2013, p. 36). O sofrimento começa a ser pensado numa relação onde ele está distribuído e segregado, haven-do um sofredor e um espectador com atitude compassiva sobre o outro. É assim que Nietzsche sublinha o aparecimento da figura do sujeito espectador como um su-jeito piedoso e compassivo que se justifica não mais através da caridade, porque não é culpa o que ele carrega, mas através da benfeitoria, pois é em nome da máscara desapaixonada do humanismo que ele faz sua entrada no mundo social e político. Uma “religião do bem-estar” assola a modernidade em nome de uma moral que se diz justa, quando em nome deste bem-estar social se legalizam, na verdade, os mais diversos mecanismos de coerção que garantem a condição conveniente da submissão e depen-dência dos sofredores (assim como seus espectadores) como seus agentes morais (BIONDI, 2013, p. 36). É possível ainda pensar um terceiro momento, decorrente do que fora apresentado por Niet-zsche, o que Biondi chama de “designação política”, focado no “Nós”. Neste momento, o sofrimento se mostra como um meio político

[...] de revelar e indicar a realidade histórica das situações de dor e do sofrimento dos próprios homens, em suas vidas cotidianas, sob padecimentos diversos, nas infelicidades e mazelas da civi-lização. Deste modo, o sofrimento passa a ser apresentado como objeto de conhecimento ao olhar público, à distância, visto por aquele que não sofre [...] (BIONDI, 2013, p. 38).

Este sofrimento é o que conhecemos hoje em dia, decorrente da popularização da prática fo-tográfica no século XX que revela pessoas acometidas por alguma mal. Ele não estaria representado do embate eterno de Bem versus Mal, mas de algo que não deve ser praticado como o “Mal radical” que Alain Badiou (1995) apresenta. Aquilo que a “não-repetição serve de norma para todo julgamen-to sobre as situações” (BADIOU, 1995, p. 73). Esta condição é trazida à tona quando algo desmedido ocorre, quando o dionisíaco se revela a todos nós com sua face caótica. Este mal radical, que se apre-senta de forma extrema tem sua potência trágica quando pensado que sujeitos o fazem como “como

O SOFRIMENTO NO CENTRO DO FOCO O sofrimento dessas mulheres que são fotografadas quando o trágico toca e desmantela suas vidas só foi possível graças à portabilidade da técnica fotográfica a todos os lugares possíveis, assim como a globalização que, de certa maneira, acabou diminuindo a distância entre as pessoas. A dor do outro se mostra mais acessível, pois é passível de entrar no espaço público, assim como entrar em um teatro de arena. Estes registros revelam um novo jeito de olhar e experienciar a condição da dor através de um sofrimento que vai além de uma pontuação histórica da dor de alguém. A experiência fotográfica é algo moderno, mas a

[...] iconografia do sofrimento tem uma longa linhagem. Os sofrimentos mais comumente considerados dignos de ser representados são aqueles tidos como fruto da ira divina ou humana. (O sofrimento decorrente de causas naturais, como enfermidades ou parto, e escassamente representado na história da arte; o sofrimento causado por acidente quase não é representado — como se não existisse sofrimento causado por descuido ou por sorte.) (SONTAG, 2003, p. 37).

Embora Susan Sontag esteja se referindo às pinturas religiosas (católico-cristãs) e mostrando que a representação do sofrimento não é algo recente, podemos pensar algumas questões que tangen-ciam o trágico. O descuido, que interpreto como “má leitura da profecia”, como a anunciada por um Oráculo, e a predestinação a cometer os mesmos erros é algo da experiência humana. Pensar em uma ira divina, aquela do “Deus criador”, é pensar em um livre arbítrio, do pecar ou não pecar. O sofrimen-to é compensado com a promessa de um “além da vida” pacífico. Estes elementos, como dito antes, afastam a questão do sofrimento do campo do trágico. Em uma imagem, ao evocarmos o sofrimento, imaginamos alguém com o objeto desenca-deador. O horror passa pelo mesmo processo. Sua representação se dá pelo choque, pelo close, pelo obsceno... Sontag (2003) reflete sobre esta relação ao olhar a fotografia de do rosto desfigurado de um veterano da Segunda Guerra:

[...] o registro uma câmera, feito bem de perto, o registro da indescritível e horrenda mutilação de um ser humano; isso e mais nada. Um horror inventado pode ser completamente avassalador. [...] Mas, além de choque, sentimos vergonha ao olhar uma foto em close de um horror real (SONTAG, 2003, p. 38).

Todavia, nem sempre o trágico se apresenta com seu objeto desencadeador. Às vezes é regis-trado só sua reação, de algo que ficou no passado ou fora de quadro. Um exemplo, é a fotografia da mãe dos rapazes que foram mortos pela polícia carioca na conhecida “Chacina de Costa Barros” (Fig. 4). Ela aparece chorando e segurando uma bandeira do Brasil esburacada, amparada por um grupo de pessoas, que entoam alguma coisa, provavelmente um protesto, uma música ou palavras de ordem antes da cerimônia de enterro de seus filhos no cemitério.

Fig. 4 – “30.nov.2015 - Mãe de um dos cin-co jovens mortos por PMs no Rio de Janeiro quando saíam para uma comemoração se desespera antes do enterro do filho, no cemitério de Ira-já, na zona norte. O veículo onde os rapazes estavam foi atingido por mais de 50 tiros de fuzil”, Júlio César Guima-rães/UOL (2015).

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se cumprissem um dever” (BADIOU, 1995, p. 76).

O INOMINÁVEL, A MATEMÁTICA E A COMPREENSÃO DO TODO

Ao nos voltarmos para as fotografias trágicas, uma questão pertinente surge – como nomea-mos uma mãe que perde seu filho? Esta questão surge quando nos deparamos que nenhum idioma tem um termo para esta existência . Quando um(a) filho(a) perde seu pai ou mãe, é chamado(a) de órfã(o), por exemplo. Nomear algo é conferir-lhe uma existência nas relações humanas. Desde a épo-ca da Grécia antiga a prática de nomear evocava uma presença e uma verdade, pois nomear “deuses e homens é torná-los presentes no tempo e no espaço, conferindo-lhes ser e verdade” (GADELHA, 2013, p. 29). Não existem mulheres que perdem seus filhos? Continuamos a chama-las de “mãe”? Isto impossibilita o que Badiou (1995) chama de “linguagem da situação” que para o mesmo é

[...] sem restrição: todo elemento é suscetível de ser nomeado a partir de um interesse qualquer, e de ser julgado nas comunicações entre animais humanos. Mas como de toda maneira dita linguagem é incoe-rente e entregue ao intercâmbio pragmático, essa vocação total importa pouco (BADIOU, 1995, p. 76).

Todavia, a linguagem está em processo de relação do sujeito com a coisa, e esse não é capaz de encontrar com um real que lhe escapa, um elemento inacessível, denominado “inominável”. O inominável não o é “em si”: sendo virtualmente acessível à linguagem da situação, certamen-te pode-se trocar opiniões a seu respeito. Pois não há nenhum limite para a comunicação. O inomi-nável é inominável para a língua-sujeito. Digamos que esse termo não é suscetível de ser eternizado, ou não é acessível ao Imortal. Ele é, nesse sentido, o símbolo do puro real da situação, de sua vida sem verdade (BADIOU, 1995, p. 94). Este inominável é o contraditório que surge frente nossas faces e se revela. Nem mesmo a ma-temática, a língua universal que, a priori, compreende tudo como uma verdade que não aceita o con-traditório dá conta disto. Kurt Gödel (1965) apresenta, através de seus estudos, que nem a matemática dá conta de compreender o todo. O matemático comprova isto com seus teoremas ao encontrar paradoxos relacionado com a demonstrabilidade e a verdade. Este último conceito era usado dentro das fórmulas fechadas das teo-rias numéricas a fim de verificar os axiomas de compreensão para análise. Todavia, ele percebeu que a verdade não poderia ser expressa nesta teoria e sua tentativa de demonstrar uma consistência relativa da análise não funcionara e ele notou que o Principia Mathematica possuía proposições indecidíveis. Para analisar seu teorema da incompletude, Gödel se propôs a traduzir os teoremas aritméti-cos como fórmulas de sistema formal . Sua metodologia encontrou elementos semelhantes ao parado-xo de Epimênides (ou do mentiroso), no qual pode-se supor que

[...] em 4 maio de 1934, A faz uma simples afirmação, “Toda declaração feita por A em 4 de maio de 1934 é falsa”. Esta afirmação claramente não pode ser verdadeira. Também não pode ser falsa, uma vez que a única maneira para que ela seja falsa é que A tenha feito uma declaração verdadeira no tempo especificado e nesse tempo ele fez apenas a simples declaração (GÖDEL, 1965, p. 63).

Se pensarmos dentro da ótica matemática este paradoxo, podemos ter uma fórmula G que represente a proposição “a fórmula G não é demonstrável”. Em Gödel, tal fórmula se associa a um nú-mero h, transformando seu enunciado em “A fórmula com o número associado e não-demonstrável” (NAGEL; NEWMAN, 2003, p. 74). Porém, previamente, ele dissera que G só era demonstrável se, e somente si, se sua negação formal (~ G) fosse demonstrável. Entretanto, se a fórmula e a sua própria negação forem ambas formalmente demonstráveis, o cálculo; aritmético não será consistente. Conseqüentemente se o cálculo for consistente, nem G nem ~ G são formalmente deriváveis dos axiomas da aritmética. Portanto, se a aritmética for consistente,

G será uma fórmula formalmente indecidível (NAGEL; NEWMAN, 2003, p. 74).Assim um enunciado se mostra indecidível, mesmo sendo uma fórmula do sistema formal, uma vez que considera todo n N. Isto mostra que a aritmética e a matemática são incompletas, não compre-endendo o todo que existe e abalando suas próprias estruturas. Retornando as fotografias, o que elas nos mostram? Existe uma maternidade de algo que já não está mais presente? Poderíamos pensar de um modo matemático que expresso como f(M) = m + f ’ | f ’ ≠ 0, onde f(M) é mãe ou maternidade, m uma mulher e f ’ seu filho. Sendo f ’ igual a zero, esta expressão não ocorreria. Um filho que não chega a nascer faz uma mulher ser mãe? Estas divagações nos fazem pensar se a maternidade é algo determinado por um evento (parir um filho) ou um estado (ser a mãe de um filho vivo). Independentemente do que consideremos, nossa linguagem não conse-gue nomear esta mulher que perde seu filho. Alternativas são possíveis, podemos continuar chamando-as de “mãe”, “mãe de um filho que se foi”, entre outras coisas. De qualquer forma, isto são tentativas de preencher um vazio que se apre-senta e denuncia um furo na nossa forma de se comunicar. Este furo é um sintoma de como a lingua-gem não comporta relações imediatas com as coisas, pois a representação repetidamente nos retorna. Para que os signos desta linguagem voltem a sua função de tornar presente uma ausência, eles evocam uma externalidade, algo que o sistema formal não consegue compreender como evidenciado por Gö-del (GADELHA et al, 2015). Este furo e a incapacidade de a linguagem não conseguir se a apreender as coisas mostram um fracasso do plano Moderno, rígido, cartesiano. Esta condição faz o ser humano se encontrar em ume estado de confusão, onde o que era certo, não o é mais; onde algo pode ser e não ser ao mesmo tempo, como a experiência do Gato de Schrödinger . Esta falha já era observada por Artaud (2001) enquanto ele era tido como louco: Se a confusão é o signo dos tempos, vejo na base desta confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, ideias e signos que as representam. Não faltam, certamente, sistemas de pensamento; sua quantidade e suas contradições carac-terizam nossa velha cultura europeia e francesa, mas, quando se adverte que a vida, nossa vida, tem sido alguma vez afetada por tais sistemas?Não vou dizer que os sistemas filosóficos devam ser de aplicação direta e imediata; mas de duas, uma: Ou esses sistemas estão em nós e nos impregnam de tal modo que vivemos deles [...], ou nos impregnam e então não são capazes de nos fazer viver [...] (ARTAUD, 2001, p. 9). Esta crise dos signos também mostra uma outra referente à representação que se dá em nosso corpo, na política, nas artes, ou seja, por onde a linguagem se dá. Tanto Artaud, quanto Gödel contri-buem bastante para a campo da representação; sendo na Arte ou no campo das Ciências exatas, a re-presentação e sua crise nos mostram que não damos conta de compreender tudo e nem nos fixarmos a apenas em uma estrutura, pois estamos somos seres potentes, sempre em um processo de devir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tragédia grega é passível de ser localizada no tempo histórico da humanidade, tendo um começo e um fim. Entretanto, ela nos traz algo que pode ser compreendido como próprio da existência do ser humano: o trágico. Mesmo séculos depois, morrendo e ressuscitando através de Apolo e Dionísio, o trágico aparece na condição humana, seu arché, como o ouroboros, a serpente que eternamente mor-de sua calda. Mesmo conhecendo as histórias, os mitos, o que é moralmente aceito ou não, o humano continua sob a mesma condição que os seus antecessores. Por mais que tente querer compreender e

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Recebido em 29 de novembro de 2017 Aprovado para publicação em 10 de dezembro de 2017

controlar seu destino, este lhe escapa entre os dedos e retorna ao sujeito de maneira avassaladora, seja através do sofrimento ou do terror. Terror assistido aos olhos da multidão presente ou não – que está fora de quadro, da cena, representada pela sua ausência ou centralizada em alguém; Multidão que evoca o coro trágico de ba-cantes e que divide a cena com um sujeito prensado entre o passado e o presente. Não devemos pensar este sofrimento e terror sobre a ótica judaico-cristã, pois esta afasta o que há de trágico da vida. Este tipo de processo indica uma recompensa após a tormenta que nos assola. O trágico não garante isso, pois ele só se dá para os que não partiram. Identificamos uma tragicidade quando somos sobreviventes dela; quando ruminamos nossos sentimentos e ficamos em luto por aqueles que morreram. Vemos isto nas fotografias das mulheres que perderam seus filhos. O trágico é para elas, que ficaram, não para seus filhos que jazem em seus braços. Estas mulheres são o retorno de Hécuba de Eurípedes em “As troianas”. A mulher que sobrevive ao trágico, que perde seus filhos e que vê o mundo que tinha como certo ruir perante si. O certo dá espaço para o incerto no trágico. Mesmo quando anunciado o por vir, tornamo-lo incerto, o interpretamos mal por um ruído na comunicação. Este incerto acomete também nossa comunicação, pois não conseguimos compreender o todo. O vazio que atravessa os signos que queremos estabelecer com as coisas se mostra. Como apreender o inominável? Como pegar o trágico com as mãos e tê-lo como certo na figura da mulher-que-perde--seu-filho? Estamos fadados a querer estabelecer uma ordem, compreender o mundo ao nosso redor em meio ao caos, o espaço infinito de onde tudo vem, e sempre falhamos. Rodeados pelo caos, procu-ramos nosso marco zero e o que nosso devir nos reserva – um eterno esforço de compreender o todo, o tempo, o espaço, o além – isto não é trágico?

ReferênciasARTAUD, Antoinin. El teatro y su doble. ALONSO, Enrique; ABELENDA, Francisco (trad.). Barce-lona: Edhasa, 2001.BADIOU, Alain. O problema do Mal. In:_______________. Ética. Um ensaio sobre a consciência do Mal. TRÂNSITO, Antônio; ROITMAN, Ari. (Trad.). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. p. 69 – 98. BASTOS, Teresa; PIMENTEL, Leandro. O trágico anunciado e a fotografia como catarse. Paris: Passa-ges de Paris, n. 12, p. 214 – 234. 2016. BIONDI, Angie Gomes. Corpo sofredor: figuração e experiência no fotojornalismo. 220 f. Tese (Co-municação Social) – Universidade Federal de Belo Horizonte. 2013.DARGE, Fabienne; VERNANT, Jean-Pierre. O herói e o monstro. GONÇALVES, Luiz Roberto M. (Trad.). In: Folha de São Paulo (online), 2005. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1004200522.htm. Acesso em 25 set. de 2016.GADELHA, Carmem. A respeito de trágicos e ébrios. Pitágoras 500, Campinas, v. 4, p. 28 – 38. 2013.__________________. O trágico e o contemporâneo. In: Reunião científica da ABRACE, 6, 2011. Porto Alegre, 2011.__________________; CAFEZEIRO, Isabel; CHAITIN, Virgínia. O trágico e a cena contemporânea: por um encontro artístico-matemático Revista Coletânea ISSN 1677-7883. Coletânea (Rio de Janeiro), v. 28, p. 278-294, 2015.GÖDEL, Kurt. On formally undecidable propositions of principia mathematica and related systems. In: DAVIS, Martin (Org.). The Undecidable: Basic Papers on Undecidable Propositions, Unsolvable Problems and Computable Functions. p. 4 – 38. New York: Dover Publications, 1965.MOTTA, Gilson. Trágico: Uma questão? Paris: Passages de Paris, n. 12, 2016. p.153 – 179.NAGEL, Ernest; NEWMAN, James R. A prova de Gödel. K. Gita (trad.). São Paulo: Perspectiva, 2003.NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos. SOUZA, Paulo César de (Trad.). São Paulo: Compa-nhia das Letras, 2006.PAULA JÚNIOR, Haroldo Osmar de. O papel do coro na tragédia grega em Nietzsche. In: Fórum de Pesquisa Científica em Arte, 5, 2006, Curitiba. Anais... Curitiba: Escola de Música e Belas Artes do Paraná, 2006. p. 129 – 138.SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. FIGUEIREDO, Rubens (trad.). São Paulo: Companhia das letras, 2003______________. Ensaios sobre a fotografia. PAIVA, Joaquim (trad.). Rio de Janeiro: Arbor, 1981.

i“[...] estado do sofrimento humano caracterizado, especificamente, no período moderno. Para o filósofo [Kierkegaard], o indivíduo tinha a responsabilidade na construção do self tomando a designação divina como parâmetro de suas escolhas terrenas” (BIONDI, 2013, p. 33); ii O mesmo vale para o pai também; iii Os fundamentos matemáticos; iv Um sistema lógico de modelo matemático com regras bem definidas; v Uma experiência mental focada no Princípio da incerteza da mecânica quântica. Erwin Schrödinger colocou um gato dentro de uma caixa com um pouco de veneno sem condições de saber se ele estava vivo ou morto, criando uma condição de vivo-morto; vi Tradução minha;

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Resumo

As obras de Antonio Dias quando despontaram na década de 1960 eram feitas de um aglomerado de formas e cores vibrantes. As palavras que ali apareciam tinham uma qualidade formal e se infiltravam no acúmulo de figuras. É este o primeiro momento em que as palavras passaram a habitar as obras do artista. Depois, já em meados dos anos 1970, as palavras, ainda sem perder a sua qualidade formal, começam a trazer também uma carga conceitual que se mostrava à medida que o artista passava a pensar mais nas propriedades significantes do material ao invés de pensar figuras. É nesta fase que as cores vibrantes tam-bém desaparecem e ele passa a trabalhar mais com imagens em preto e branco..

Palavras-chave: Antonio Dias, Imagem–Palavra, Artes Visuais

Abstract

The works of Antonio Dias when they emerged in the 1960s were made of a cluster of vibrant shapes and colors. The words that appeared there had a formal quality and infiltrated the accumulation of figures. This is the first moment in which words began to inhabit the artist’s works. Then, as early as the mid-1970s, the words, still without losing their formal quality, also began to bring a conceptual charge that showed itself as the artist began to think more about the signifying properties of material rather than thinking of figures. It is at this stage that the vibrant colors also disappear and he goes on to work more with black and white images.

Keywords: Antonio Dias, Image-Word, Visual Arts

Modos de ver as palavras de Antonio DiasWays of seeing the Antonio Dias´words

Francine Cunha*

*Artista e Ilustradora, Mestre em Arte pelo Instituto de Artes (IA) da Universidade Estadual Paulista, Unesp, São Paulo, SP. Graduada em Artes Plásticas pela Unesp, câmpus de Bauru, SP. Atua como professora do cur-so de Arte na Faculdade Santa Cecília em Pindamonhangaba,SP. É integrante do grupo de Pesquisa de Arte Contemporânea da Universidade de Teresa D´Ávila em Lorena, SP.

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O Corpus

A palavra Corpus tem aqui o significado de Matéria ou Conteúdo, o que caracterizou a segunda fase da produção de Antonio Dias. Isso porque o artista, nesse período, abandona as figuras para abranger qualidades materiais dos suportes diferenciados

que passou a utilizar no final da década de 1960. A passagem para o estudo do material não apareceu de repente na obra de Antonio Dias. Os volumes materiais começaram a aparecer associados às figuras. Eram objetos, na maioria, indefinidos, que complementavam a composição dando a ela um aspecto maisrealista à medida que se desprendiam do plano bidimensional. Hélio Oi-ticica chegou a dizer que Antonio Dias havia colocado em questão o campo “pictórico-plásti-co-estrutural” (OITICICA apud HERKENHOFF: 1999, pág. 27). Suas obras, assim, deixaram de ser pinturas para se tornar objetos. Alguns anos antes, em 1959, o crítico Ferreira Gullar havia escrito a Teoria do Não-objetoque, segundo ele próprio,

Não é um antiobjeto, mas um objeto especial em que se pretende realizada a síntese de expe-riências sensoriais e mentais: um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, inte-gralmente perceptível, que se tende à percepção sem deixar resto. (GULLAR: 1977, p. 85)

Em seu texto Gullar ainda faz referências ao que elechama de “morte da pintura”, citan-do os procedimentos de colagem cubistas, os objetos de Marcel Duchamp e os artistas brasilei-ros neoconcretistas- contemporâneosde Antonio Dias. O Neoconcretismo foi um movimento artístico que aconteceu no Rio de Janeiro para contrapor-se ao Concretismo que era tido como “racionalista demais” pelos artistas que se radicaram no Rio de Janeiro. A primeira exposição Neoconcretista aconteceu em 1959 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A teoria do Não-objetode Gullar veio, inclusive, fundamentar as ideias do movimento juntamente com as “criticas à Gestalt objetiva com ci-tações à fenomenologia” (RIBEIRO, 2003). Dentre estas ideias também estavam conceito de interação com o espectador, e a partir disso surgiram as obras comoBichosde Lygia Clark e os Parangolésde Hélio Oiticica.

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Lygia Clark, série Bichos, 1960

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...a Pop introduziu novos temas, eliminou as divisões entre categorias como pintura, escultura, gravura e colagem e acrescentou aos meios e suportes tradicionais todos os tipos de possibilidades oferecidas pela indústria e tecnologia, pelos canais de informação e pela comunicação de massa. (COSTA, 2003, p. 17)

Muito desta definição aplica-se aos trabalhos de Antonio Dias quando estes começaram a sair do plano, pois eles eram montagens ao mesmo tempo bi e tridimensionais. Ele criava objetos com características de Não-objetos,de acordo com Gullar, e essas experimentações que vai fazendo tornam seu trabalho mais denso de sentido e mais econômico formalmente.

Movimento do Vento

Uma das obras em que Antonio Dias explora o material é Movimento do Vento, de 1968. O trabalho consiste em quatro placas de cimento emolduradas com bronze, nas quais está escrito a pala-vra ARID - com letra de forma e em alto relevo. Dessa maneira ela não destoa das linhas retilíneas da obra e dos tons de cinza (inclusive pelo cinza produzido pelas sombras das letras em relevo) manten-do, assim, a regularidade da obra. Na concepção de Dondis, de acordo com a gestalt, a regularidade “constitui o favorecimento da uniformidade dos elementos, e o desenvolvimento de uma ordem base-ada em algum princípio ou método constante e invariável” (DONDIS, 2000, p. 143).

Hélio Oiticica, Parangolés, 1972 - Reprodução fotográfica Andreas Valentin

Antonio Dias disse que nas obras suas produzidas na década de 1960 também havia essa pre-ocupação de “criar um elo com o público” (DIAS, 2010), o que iria se tornar mais evidente nos traba-lhos produzidos em meados de 1970. Nessa época, no entanto, o que torna sua obra mais próxima do pensamento Neoconcretista é a qualidade tátil da arte, o que também o aproximava da Pop. Entre os artistas da Pop Arte existia o desejo de romper com as barreiras bidimensionais. De acordo com Ribeiro:

Antonio Dias. Movimento do Vento, 1968.Bronze e Cimento. 26x26x2 cm

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A regularidade tanto da escolha dos elementos, quanto da composição da obra Movimento do Vento, sugere a constituição de um símbolo. Isso porque as palavras colocadas também mantêm posicionamentos estratégicos e regulares. Esse símbolo seria a cruz gamada. Conhecida mundialmente como a marca dos nazistas, a cruz gamada também traz em si uma significação muito mais antiga, sendo encontrada entre as simbologias de culturas milenares (como a oriental, por exemplo), nas quais aparece estabelecendo uma relação com o sagrado. Contudo, prin-cipalmente na sociedade ocidental, ela dificilmente será desvinculada do horror produzido pelos na-zistas durante a segunda guerra. De acordo com Santaella,

... é por força de uma ideia na mente do usuário que o símbolo se relaciona com o objeto. (...) Essa associa-ção de ideias é um hábito ou lei adquirida que fará com que osímbolo seja tomado como representativo de algo diferente dele. (SANTAELLA: 1993, p. 45)

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Segundo Herkenhoff:

A palavra ARID aparece quatro vezes, projetando uma rosa-dos-ventos cujos pontos cardeais poderiam muito bem ser Graciliano Ramos, Josué de Castro, Glauber Rocha e Antonio Dias. A geografia da aridez remete ao sertão e se escreve, mede, filma e figura como um discurso nordestino deslocado no Rio de Janeiro. (HERKENHOFF: 1999, p. 29)

O material escolhido para realização desta obra é o Bronze e o Cimento – relação imediata com aridez, secura, dureza e até mesmo a questão social nordestina referida por Herkenhoff. Caberia dizer que esta foi uma escolha de material bem óbvia; contudo, não há redundância na obra de An-tonio Dias. A repetição da aridez que se faz é condição necessária para reafirmar o conceito da obra. Uma aridez que se expressa pela palavra quatro vezes e em todas as direções, que se firma no chão pesada, sólida e cinzenta através da representação material. Essa aridez reflete uma realidade difícil de ser enfrentada no Brasil e pelo nordestino, realidade esta que Antonio Dias conhece bem, e que reflete a própria produção do artista que passava de um momento no qual os elementos se expressavam pelo exagero quantitativo para uma economia formal sem precedentes. Para Dondis, “A economia é uma organização formal parcimoniosa e sensata em sua utilização dos elementos (...) é visualmente fundamental e enfatiza o conservadorismo e o abranda-mento do pobre e do puro”. (DONDIS: 1997, p. 146) Embora não se encontrasse anteriormente na produção de Antonio Dias, a economia enquan-to composição já fazia parte de seu repertório, pelo conhecimento do Movimento Concretista no Brasil. De acordo com o Concretismo, os quadros deveriam conter apenas planos e cores, em um jogo geométrico sem preocupações figurativas. Os adjetivos “pobre e puro” da composição econômica cabem bem à maneira como a obra foi realizada, principalmente no que se refere a questões conceituais. O próprio título, por exemplo, fala de movimento, e este se expressa, pela composição das palavras colocadas, como cíclico, infindo, redundante e sem perspectiva de alteração, ou seja, pobre e puro. Pensando a experimentação que o artista faz com o posicionamento da palavra, e o fato de ele próprio colocar a palavra em outra língua que não a sua – como já foi dito aqui, talvez pensando até mesmo na internacionalização de seu trabalho, poder-se-ia apresentar ao espectador, então, como uma possibilidade de interação conceitual com a obra através da “brincadeira” com as possibilidades da palavra. A palavra ARID invertida torna-se DIRA: em italiano DIRA encontra um correspondente sonoro (djira) que se faz GIRA, o mesmo movimento do vento proposto na obra – girar. Em portu-guês, DIRA, encontra coerência com um A aberto, tornando-se DIRÁ. Assim, embora cíclico, o mo-vimento do vento DIRÁ qual deve ser a direção a ser tomada. Essa condição pode ser reforçada for-malmente pelo encontro do círculoimplícito à medida que se mantém a atenção dentro do percurso produzido pelo posicionamento das palavras no quadrado colocado de modo explícito. Percurso este, circular, infindo - conceitos já trazidos pela associação com a cruz gamada, seu tempo e regularidade compositiva. Sendo assim, a dureza da qualidade retilínea do quadrado se desfaz na flexibilidade imprescin-dível às curvas do círculo e aquilo que é árido (seco e vazio) torna-se produtivo (cheio) à medida que traz a abundância em forma de repetição.

Associação da cruz gamada coma obra - Movimento do Vento de Antonio Dias

Poder-se-ia dizer que a força da ideiada cruz gamada hoje é o nazismo. Isso porque, como a própria citação diz, o símbolo não precisa de similaridades, pois ele opera por mediação. Talvez pela propaganda feita por Hitler ou contra Hitler, essa associação tornou-se, entre os ocidentais, mais forte do que a tradição milenar de relacioná-la com o sagrado. De qualquer forma, não se pode afirmar que no caso da obra de Antonio Dias a cruz gama-da seja nazismo ou sacralidade, porém, pode ser entendida como um princípio de tempo, visto que essa simbologiaé muito antiga, milenar. Neste caso, o proposto movimento do ventopermaneceria constante por milênios ou até infinitamente inabalável. Já segundo Herkenhoff,o posicionamento das palavras se remete a outro símbolo: a rosa-dos-ventos. O que na gênese não altera, de certa forma, o conceito de movimento sem fim. Isso pode ser melhor entendido nos próximos desdobramentos.

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Associação da cruz gamada com a obra Movimento do Vento de Antonio Dias

Dondis, quando trata do contraste entre formas, diz que essa contraposição reforça o significado:

Se o objetivo for atrair a atenção do observador, a forma regular, simples e resolvida, é dominada pela for-ma irregular, imprevisível. Ao serem justapostas, as texturas desiguais intensificam o caráter único de cada uma. Os mesmos fatores de justaposição de qualidades desproporcionais e diferenciadas se fazem notar no emprego de todos os elementos visuais quando se tem por objetivo aproveitar o valor do contraste na de-finição do significado visual. A função principal da técnica é aguçar, através do efeito dramático, mas ela pode ao mesmo tempo e com muito êxito, dar maior requinte à atmosfera e às sensações que envolvem uma manifestação visual. O contraste deve intensificar as intenções. (DONDIS: 1997, p. 126).

Assim, acontece na obra deAntonio Dias, não só em Movimento do Vento, mas em muitas delas o elemento contraste será intensificador das intenções. Poder-se-ia dizer ainda que não há con-traste apenas na forma, mas também há um contraste conceitual, pois não há nada maiscontraditório do que usar um elemento completamente imóvel, como é o caso do bloco de cimento e metal para falar de movimento, sendo este do vento ainda. Contudo, sabe-se que por esta arte de Antonio Dias a resistência do pesado bloco sequebra pela persistência do suave movimento de “catavento” das pala-vras.

History

Embora tenha usado materiais duros (como metal e cimento), também havia o uso de mate-riais “moles” na produção de Antonio Dias, nessa época, em meados do ano 1970. Essa questão da flexibilidade de materiais estava sendo explorada na mesma época pelo artista pop norte-americano Claes Oldenburg como crítica à sociedade de consumo. Segundo Argan “Com Oldenburg, desapare-ce qualquer vestígio de pintura, permanecem apenas as coisas-imagens, ampliadas e exageradas nas cores berrantes, intrometidas demais num espaço que parecem roubar à nossa existência”. (ARGAN:

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2001, p. 587).

Claes Oldenburg, Floor Burger, 1962

Oldenburg e Antonio Dias se contrapõem na seleção de cores, pois enquanto um busca o exagero, o outro busca a economia. Em comum ambos têm (fora a utilização de materiais flexíveis) a produção das “coisas-imagens”, ou seja, a criação de objetos no lugar de pinturas, objetos que sugerem imagens ao mesmo tempo em que a substituem.

Antonio Dias, History, 1968, PVC e detritos. 39x39x6cm

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Pensar a arte em forma de objeto é uma questão que se deve à influência de Duchamp e seus ready-mades na arte contemporânea. Porém, diferente das apropriações de objetos industrializados feitas por Duchamp, nos trabalhos de Oldenburg e Antonio Dias os objetos são construídos. Em His-tory, de 1968 (fig. 88), obra já citada aqui quando abordada a biografia do artista, há a apropriação do material “pedra” e a confecção de um “paralelepípedo” de plástico para contê-las. Resiste em History uma qualidade dos ready-mades: a carga conceitual.

Para Herkenhofh, esta obra é:

Um saco de lixo da Paris de 1968. Sua forma é um paralelepípedo, aludindo a uma geometria rigorosa, mas se comportando como um sólido mole, quase saído do universo de Oldenburg. O que se problematiza aqui é a própria noção de história. Lixo de uma manifestação num saco mole, a “história” deixa de ser algo sólido, unitário, estável e autorizado (...). O lixo não é fetiche do fato, mas tende a apresentar um fato, figu-rar a história como fragmentação da ideia de história única e dissolver o grande relato. (HERKENHOFF: 1999, p. 35)

Analisando a obra History vê-se que a palavra nela contida é imprescindível para sua leitura. Sem ela haveria apenas a análise através do contraste entre os materiais da composição: pedras que se dissolvem fragilmente em poeira, e o plástico que, embora flexível, mantém-se firme na tarefa de aprisionar seu conteúdo. A palavra “history” em vermelho, contrastando com o fundo escuro, em le-tras minúsculas na parte inferior do quadrado (formato do objeto), aparece legendando o material ali contido. Usar a cor vermelha para as “letras da legenda” tem um propósito, isto porque nas imagens de Antonio Dias o vermelho sempre teve um forte vínculo com a violência. Carl Sandburg no poema The People, Yes, diz:

Sendo o vermelho o sangue de todos os homens de todas as nações a Internacional Comunista fez vermelho seu estandarte O papa Inocêncio IV deu aos cardeais seus primeiros capelos vermelhos dizendo que o sangue de um cardeal pertencia à santa madre igreja. O vermelho, cor de sangue, é símbolo (SANDBURG apud DONDIS, 1997, p. 65).

Antes de tornar-se símbolo, no entanto, de acordo com a semiótica, o vermelho seria um hi-poícone de sangue, e, por consequência, pode remeter à violência. A violência e o sangue, tudo tem a ver com o teor dos trabalhos de Antonio Dias e com a realidade que o artista queria contar especifica-mente em History– a realidade política. Sua geração era revolucionária e a violência era justificada em nomeda liberdade de expressão, mas nunca da opressão. A história de que fala a obra requer uma leitura quase que “geológica”, pois aquelas poeiras ali presentes falam de uma data e local específicos – Paris, 1968. Assim sendo, este trabalho acaba por ser também uma citação de Marcel Duchamp e seu Ar de Paris - trabalho que consistia em uma ampola que foi fechada em Paris e enviada aos Estados Unidos. O Ready-made de Duchamp ganha nas mãos de Antonio Dias uma característica artesanal à medida que se faz um objeto construído. Em ambas as obras, o ponto alto do significado está no que elas contêm. Porém, em History o ar de Paris perde seu glamour para tornar-se realidade, mas poeira também se dissolve como o ar, e estes são metáforas da história que também tende a dissolver-se em versões enquanto o tempo passa.

Camuflagem

Uma obra que também foi realizada em 1968 e que usa material “mole” é camuflagem. Feita com tecido pintado nas duas faces, em uma delas vê-se um fundo branco salpicado com também na parte inferior a palavra UNIVERSO. Antonio Dias pequenos pontos em preto e na parte inferior, centralizada, está a palavra DESERTO; na outra face está uma pintura feita ao contrário da primeira: fundo preto salpicado com pontos brancos e centralizada chegou a dizer que ao olhar essas obras, que aparentemente são simples, qualquer um poderia fazê-las. Já ele, não conseguiria realizá-las de novo. Apesar dessa suposta “simplicidade” sugerida pela obra por sua confecção bastante artesanal, ela está repleta de conceitos.

Antonio Dias. Camuflagem, 1968. Tecido pintado. 85x95cm Para se fazer uma leitura na qual o enfoque são as palavras, pode-se iniciar pela relação da obra com o título: Camuflagem.Esta palavra insinua uma superfície que esconde algo - no

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caso, animais e até soldados. A camuflagem é uma forma de confundir os olhos, a fim de se defender. Na obra, o universose “camufla” em deserto e o desertose “camufla” em universo, e assim continuamente. Essa continuidade se dá justamente por se tratar de um suporte dobrável – o tecido. O fato de usar um corpo molecomo suporte permite dobras,e, ao dobrar, vê-se o que está escondido, ou seja, o que está camuflado. Para Herkenhoff, essa obra “explora a dobra como operação ressignificadora da imagem” (HERKENHOFF: 1999, p. 56). Confundir e ressignificar são conceitos que estão presentes no contraste entre os lados.Estes, por sua vez, estão representados nas cores preta e branca e nas palavras UNIVERSO e DESERTO. Segundo Santaella (1993), de acordo com as ideias de Peirce, qualquer palavra é um exemplo de símbolo, visto que somos capazes de imaginar as coisas tendo a elas associado as pa-lavras. Sendo assim, a palavra universo, de modo simbólico, remete ao espaço cheio de estrelas e planetas, e este, metaforicamente remete ao conceito de cheioouabrangente do todo; já a palavra deserto remete ao vazio, ao lugar onde não se tem nada. Os antagonismos dos significados, no entanto, são vencidos pela flexibilidade do mate-rial. No continuumpermitido pela dobra do tecido vê-se representada uma qualidade de ambos: a infinitude - um conceito de não-linearidade, mas de multiplicidade. Assim, universo e deserto se confundem (ou se fundem): o todo do universo está repleto de vazios, de espaços, e o vazio do deserto também é cheio, na sua constituição, de partículas mínimas, as monadasde Leibniz. O ponto de inflexão de Camuflagem é,convexamente, estrela na vastidão galáxica, ou então, concavamente, grão de areia na vastidão desértica e vice-versa. A diferença não está no relativismo, mas na verdade do relativismo, como diz Deleuze. Nesse processo de inclusão do sujeito – o sujeito do olhar - as dobras da matéria são as dobras da linguagem. A dobra da matéria, quase a dobra da alma leibniziana, se desdobra em linguagem e não em metafísica. (HERKENHOFF: 1999, p. 32) A superfície pontilhada tem em cada ponto a representação do que seriam estrela e areia nos seus respectivos ambientes; assim se percebe que a imagem é algo relativo, pois o mesmo ponto é signo do macro e do micro. Poder-se-ia dizer ainda que não apenas a imagem é relativa, mas a linguagem também. Aqui, falar de linguagem é falar da própria arte. A camuflagemda linguagem se dá pela matéria na arte e isso se desdobra (ou dobra) em tudo que envolve o universo artístico: a relação arte/espectador, matéria/significado, e até mesmo imagem/palavra. Antonio Dias colocaa arte a serviço da filosofia quando expõe os relativismos do que seja cheio e vazio, e mais uma vez utiliza o recurso das contraposições para expressar-se. É curioso saber que as inspirações do artista para conceitos tão complexos que envol-vem, inclusive, o cosmo, partem muitas vezes de coisas simples. Entre seus estudos, por exem-plo, encontra-se em meio aos esquemas de confecção de obras com as mesmas características de Camuflagem, um passatempo infantil no qual a criança é convidada a realizar um desenho seguindo pontos numerados. Percebe-se aí o quanto o artista tem um olhar sensível sobre as coisas, pois é possível en-contrar naquele exercício facilmente realizável o mesmo conceito de que pontos não são apenas pontos, eles podem ser outras coisas, dependendo da maneira como estão colocados na super-fície.

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Recebido em 30 de abril de 2017 Aprovado para publicação em 15 de agosto de 2017

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A ilustração no livro infantil como era antes e como é hoje.The illustration in the children’s book as it was before and how it is today.

Maria do Carmo Monteiro Kobayashi* & Andreia Matos Barreira**

*Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista, câmpus Marília, SP. Seus estudos estão no campo dos objetos lúdicos: jogos, brinquedos, literatura infantil e arte nos anos iniciais da Educação Básica. Docente do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação da Unesp, câmpus de Bauru, SP. Coordena o PIBID-CAPES-Unesp Artes Plásticas e Visuais; é líder do Grupo de Estudos da Infância e Educação Infantil: Políticas e Programas – CNPq.

** Arte-Educadora pela Universidade Estadual Paulista – Unesp e Designer pelo Instituto Superior de Bauru - IESB. Pesquisadora em ilustração de livros infantil, Bauru, SP - Brasil.

Resumo

O livro infantil, produto cultural de nossa sociedade, surge especificamente para esse público com o re-conhecimento da infância e da criança como seres diferentes dos adultos no século XIX. Apresentamos nesse texto um panorama retrospectivo da arte de ilustrar esses livros que, em conformidade com essa mudança, também se transformou e aumentou seu espaço na produção cultural para atender às ex-pectativas e necessidades das crianças. A pesquisa faz uma revisão de literatura que percorre, de forma analítica e descritiva, o período que vai do século XVII aos dias atuais, apontando momentos de decisivas inovações nessa atividade..

Palavras-chave: Ilustração. Livro infantil. Criança. Infância.

Abstract

The children’s book, the cultural product of our society, emerges specifically for this audience with the re-cognition of childhood and child as beings different from adults in the nineteenth century. We present in this text a retrospective view of the use of art to illustrate these books that in accordance with this change has also been transformed and increasing its space to meet the expectations and needs of children. The research brings a review of literature that goes through analytical and descriptive period from the seven-teenth century to the present day, pointing to moments of decisive innovations in this activity.

Keywords: Illustration. Children’s book. Child. Childhood.

, p. 50-67, 2017.

O livro infantil e juvenil, de hoje, não é o mesmo de séculos atrás nem de décadas passadas. Como todos os produtos, objetos, sistemas, serviços, ciência, tecnologia, vem sofrendo transformações e se moldando as características do homem atual. Podemos falar que tem

evoluído em consonância com as descobertas e os avanços da ciência em relação às necessidades e interesses da criança, à comunicação visual do livro e `a criatividade nas composições artísticas desse material. Um importante elemento constitutivo do livro infantil é a ilustração. De acordo com a de-finição de Ribeiro (1997, p. 441), “... ilustração é uma imagem, desenho ou gravura que acompa-nha o texto”, essa definição para as imagens de um texto infantil serviu por algum tempo, contudo isso vem se modificando e a ilustração, hoje não tem apenas o papel de acompanhar o texto, ela é, já há algum tempo, tão importante quanto o próprio texto. Na verdade, o texto e a imagem se complementam e em muitos casos, se perde o sentido da existência de um sem o outro. São essas questões que abordaremos nessa comunicação, buscando esclarecer como isso ocorreu ao longo da história, ou seja, de que maneira começou a relação texto e imagem na literatura infantil, como era produzida esta imagem, suas características formais e estéticas e como ela está hoje. A relação da palavra com a imagem, ou a relação entre texto verbal e texto visual, está presente não só nos livros, mas também nos filmes, nas animações, nos jogos eletrônicos, na internet, nos vídeo-clips, nos quadrinhos, na propaganda, dentre outros meios de comunicação e expressão. A criança de hoje é assolada por um universo de imagens de grande poder atrativo pela rapidez e dinamismo da informação, contudo o livro ainda tem seu lugar preservado nessa miscelânea comunicacional por ser um veículo do saber que colabora para que a criança ou o adulto se aproprie do letramento através de uma absorção mais lenta e profunda do conteúdo do mesmo. A leitura promove o desenvolvimento da língua falada e escrita fazendo com que o leitor possa atingir níveis cada vez mais cultos do saber, nesse sentido a leitura é tão incentivada para as crianças desde muito cedo, pois este é um hábito a ser desenvolvido e que trará implicações muito importantes no decorrer da vida. Segundo Freire (1989) a leitura começa antes mesmo da alfa-betização, quando estamos lendo o mundo, ou seja, todas as situações corriqueiras, as pessoas, as conversas, os objetos, o meio ambiente são textos passíveis de interpretações, portanto precisam ser lidos e com esse hábito da leitura de mundo acrescido das histórias contadas vão produzindo, conforme Cademartori (2010), o interesse e a habilidade para a leitura do texto literário. As ilustrações aparecem tanto nos textos literários como nos textos paradidáticos e didá-ticos, contudo nosso enfoque neste estudo são as ilustrações em textos literários As ilustrações nos livros infantis fazem a ponte entre o leitor e o mundo real de maneira lúdica e eficiente como relata Ramos (2011). Jaques Almont nos conta que a produção das ima-gens está ligada ao domínio do simbólico (ALMONT apud RAMOS, 2011), e as crianças são fascinadas por esse simbolismo que se mistura a arte e as auxilia, a enfrentar desafios e liberar a imaginação e a fantasia. Elas ainda absorvem melhor e de maneira mais intensa que os adultos, através de seus sentidos, as sensações que as imagens proporcionam pelo fato da pouca capacida-de de absorção do código escrito, ou seja, sem muita racionalidade. Para analisar as influências recebidas na ilustração do livro infantil e juvenil, o período de destaque é o século XIX até a década de 1930. De acordo com Oliveira (2008), nesse período ela se consolida como arte e se torna uma realidade na indústria editorial e como profissão para os artistas. Numa época em que as imagens narrativas tomam conta, principalmente, nos recursos audiovisuais, como é a atual, é fato que a ilustração no livro infantil não tem posse de uma auto-

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nomia, logo ela também recebe influências desses outros veículos imagéticos o que transforma e enriquece sua estética visual. Buscando as primeiras ligações desses dois códigos: o verbal e o visual na história dos livros infantis podemos visualizar e entender os processos e a magia que existe por trás desse encantamento causado pelas ilustrações atreladas a um texto para crianças e jovens.

O começo de tudo Por muitos séculos, conforme Salen (1959), não existiam histórias específicas para crian-ças, pois até o século XVIII ela era considerada como um adulto, não era individualizada e não existia um tratamento próprio para elas, objetos, livros ou brinquedos para esse público. Se vestia como um adulto e seu comportamento também deveria ser de um adulto. As histórias, desde a idade média, período compreendido do século V ao XV, e mesmo antes disso, compreendiam os contos e as fábulas transmitidos oralmente, adultos e crianças se reuniam ao redor do contador, experiente, que geralmente era uma pessoa mais idosa. Desse for-ma, vários autores da educação afirmam ser esse o início da história da literatura infantil. Os contos que mais se popularizaram e agradavam o público infantil, de acordo com Sal-mo (2009), eram as “Fábulas de Esopo”, traduzida do francês para o inglês em 1484. Esopo viveu na Grécia no final do século VII e começo do século VI a.C., suas fábulas tinham cunho satírico e de crítica social mas também de educação quanto ao comportamento humano. As fábulas uti-lizam o antropomorfismo, ou seja, o uso de animais com características de seres humanos e isso atrai o interesse das crianças. As origens do livro ilustrado propriamente dito remonta o século XVII como nos conta Whalley e Cester (1988 apud FARIA, 2004). Segundo este autor a partir desse período teve início sua utilização, porém ainda como instrumento puramente didático ou de formação moral e reli-giosa. O primeiro livro ilustrado, mais conhecido e voltado ao público infantil, de acordo com Whalley e Cester (1988 apud FARIA, 2004), com maior disseminação e reconhecimento foi um manual para o ensino do latim para crianças, que data de 1658, do educador tcheco Jan Amos Commenius, o Orbis Sensualium Pictus, mais conhecido como Orbis Pictus que pode ser tra-duzido segundo Ramos (2011) como “O mundo pintado pelos sentidos”, “O mundo visível em pinturas” ou “O mundo em imagens”, publicado em Nuremberg. Para Commenius as imagens são formas que facilitam a aprendizagem das crianças de fá-cil de assimilação a serem oferecidas a elas. “O mundo orbis” como relata Whalley e Cester (fonte, ano, p.) “... ele estava interessado primeiramente em sublinhar a importância da ilustração como objeto capaz de auxiliar a memória da criança”. Dava tanto valor a elas que a primeira ilustração do livro era um mestre com seu aluno conversando, o que indica que ele estava convidando o es-tudante a conhecer um mundo através das imagens nas próximas páginas. O livro de Commenius tratava de instruções para o uso do latim, servia para capacitar leitores nas quais as ilustrações tinham o mesmo peso das descrições e nomenclaturas de lugares, fisiologia humana, materiais, técnicas usadas na época, dentre outras coisas e na qual mesmo que sem saber ler o texto escrito poderia aprender através das imagens. (RAMOS, 2011). Commenius segundo Walley e Cester (apud FARIA 2011), Orbis Pictus, apresentava ao mesmo tempo figuras e palavras e, dessa forma, ressaltou como os processos intuitivos são impor-tantes para se adquirir o conhecimento. Commenius valorizou a percepção e a visualidade como

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forma de atrair a atenção do leitor e colaborar para o aprendizado. Foi publicado, porém, antes de Commenius segundo o autor Martin Salisbury (2004 apud PORTO 2012 p. 25), um livro no ano de 1578 chamado “Kunst und Lehrbunchlein”, do pintor e ilustrador Jost Amman, era um livro de arte e instruções para jovens, que teria sido editado em Frankfurt – Alemanha. Nele havia ilustrações impressas em xilogravura. Na sua página de título havia uma inscrição dizendo que ali se encontrariam “graciosos e amenos desenhos”. De acordo com Lewis (apud RAMOS 2011), era uma coletânea de ilustrações reunidas de várias fontes com temas da vida contemporânea, fábulas e também contos folclóricos; nele não havia texto, por-tanto, é considerado o primeiro livro de imagens infantil. Uma ilustração desse volume é a de Bacchus, Deus grego do vinho da mitologia, colorizado por Jost Amman.

Figura 1 – Xilogravura de “Kunst und Lehrbüchlein”.

Os livros de Comenius e Aman não eram de ficção, e de acordo com Ramos (2011), mui-tos não os consideram como as primeiras literaturas infantis e sim “Isopete Historiado”, que foi uma versão das fábulas de Esopo publicado em Zaragoza, na Espanha. Lançado em 1498 por Juan Hurus, porém não tinha uma especificação de que era dirigido para crianças e só mais tarde foi interpretado como realmente voltado para esse público. Em 1511 Johanes Geiler von Kaysersberg ilustrou a história Cinderella. Este texto fazia parte de um livro de sermões e foi impresso pela primeira vez em Estrasburgo (HARTHAN, 1981 apud RAMOS, 2011). Desses primeiros livros ilustrados, segundo Ramos (2011), o que teve mais repercussão por sua capacidade e qualidade na relação entre palavras e imagem foi “Orbis Pictus”, muitas fo-

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ram as reedições, sua tradução para o inglês ocorreu logo após a primeira edição. É considerado o primeiro caso picturebook, termo utilizado para o livro que possui mais imagens do que texto escrito. (SHULEVITZ, 1985 apud RAMOS, 2011).

Figura 2 – Páginas do livro “Orbis Pictus” de Jan Amos Comenius

A partir daí muitos outros livros foram ilustrados. Livros de contos e de fábulas retirados da tradição oral, reconhecidos como pertencentes a literatura infantil. Tinham a função, como declara Faria (2004), de entretenimento para as crianças. No século XVII surgiram os contos de fadas, coletados e reescritos, como os “Contos da Mamãe Gansa”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Cin-derela”, “O Barba Azul”, dentre outros, por um de seus principais expoentes – Charles Perrault (1628-1703) e as fábulas de Jean de La Fontaine (1621-1691), como a da Cigarra e da Formiga e histórias como “A galinha dos ovos de ouro” do mesmo autor. De acordo com Porto (2012) a invenção de Gutemberg, a prensa de tipos móveis em 1450, fez com que a reprodução de livros aumentasse muito. No início o texto era impresso e eram dei-xados os espaços para a ilustração, feitas uma a uma, manualmente, entretanto depois passaram a ser reproduzidas pela técnica de impressão chamada xilogravura, esta foi a primeira técnica de impressão das ilustrações e utilizada por muitos artistas. Nesta técnica a imagem é entalhada numa matriz de madeira que, posteriormente, receberá a tinta nas partes que não tem os entalhes e com o uso de uma prensa a imagem é transferida para o papel. Alguns livros eram produzidos de forma que na mesma madeira havia o texto e a figura entalhados, eram os chamados black books, porém a prensa de Gutemberg propiciava mais produtividade. A xilogravura foi a única forma de impressão das ilustrações até o século XVIII. Em seguida surgiu a impressão em metal – o talho doce. Esta última consiste, conforme Vilanova (apud PORTO, 2012), numa matriz plana de cobre que é escavada, utilizando-se uma ponta seca como ferramenta, formando a imagem que se deseja. Usa-se ácidos para as partes que

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não devem receber a tinta e então a matriz é entintada e depois é transferida para o papel através de uma prensa, esta técnica proporcionava maior exatidão e refinamento do traço. Gustave Doré, no século XIX, utilizou muito as duas formas de impressão já citadas e foi um ilustrador e artista que teve uma grande produção. Com o uso da impressão do talho doce era necessário a existência de dois ateliês distintos, conforme Van Der Linden (2010), pois a reprodução da imagem exigia uma prensa diferente da dos caracteres. Nos séculos subsequentes, de acordo com Faria (2004), temos na França, na Alemanha e sobretudo na Inglaterra outros expoentes da literatura infantil como Lewis Carrol, que escreve em 1865 “Alice no país das maravilhas”; Edward Lear que escreve o “Book of nonsense” em 1846, este livro era composto por uma coleção de poemas em que se usa muitos trocadilhos e jogos verbais; na Alemanha os irmãos Grimm escrevem “A branca de neve e os sete anões”, “João e Maria”, “Rapunzel”, dentre outros; na Dinamarca temos Hans Christian Andersen que, segundo Salem (1959), deu início aos seus contos de fada em 1835. Em 1844 teve a ideia de escrever “O patinho feio” ao contemplar um lago de cisnes em Odense, sua cidade natal. Escreveu muitos contos, “eram cheios de imaginação e vivacidade humorística, com uma graça melancólica que o celebrizou em toda a Europa” (SALEM, 1959, p. ).

Agora (na Europa) a literatura infantil e juvenil cobria todos os tipos de leitura: parlendas, contos de fada, viagem e aventura, estórias de escola, contos de fantasia e imaginação e, naturalmente, livros de pintura de todos eram considerados de proveito para a criança leitora, acrescentando-se a passagem condicional pelos livros de moral, didáticos ou religiosos agora com importância menor. (WALLEY E CHESTER, 1988, p. 72 apud FARIA, 2004).

Foi realmente na segunda metade do século XIX, segundo Salem (1959), que a literatura infantil floresceu. Os novos estudos sobre o desenvolvimento da criança, as pesquisas nas áreas da psicologia, da pedagogia, da sociologia permitiram um outro olhar sobre este ser tão especial que é a criança.

Figura 3 – Ilustração dos contos de Charles Perrault: O Gato de Botas e Chapeuzinho de Botas e ChapeuzinhoVermelho por Gustave Doré

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A ilustração nos livros infantis pode se desenvolver de maneira mais significativa também no século XIX, conforme Oliveira (apud OLIVEIRA 2008), pelos seguintes fatores: como mencionado no início do texto o novo conceito de criança como um ser único e particular, o que levou a uma nova postura em relação ao desenvolvimento educacional e filosófico o que refletiu nas ilustrações dos livros infantis; o desenvolvimento de melhores técnicas de reprodução, como a litografia e a cromolitografia que surgiram no final do século XVIII, mas no qual seu uso intenso ocorreu nos anos posteriores. Nesta técnica é utilizada uma matriz de pedra calcária e os desenhos são feitos com um lápis gorduroso, que se baseia no princípio de repulsão entre as tintas e a água, e com o uso de prensas ocorre a reprodução para o papel. Esse desenvolvimento de novas formas de impressão se dá principalmente na Inglaterra onde está ocorrendo a Revolução Industrial, todos os setores industriais estão sendo impelidos com novas tecnologias e sendo aperfeiçoados. Esse é o período em que reina na Inglaterra a rainha Vittória. Se-gundo Rui de Oliveira (apud OLIVEIRA, 2008), grande ilustrador e pesquisador da ilustração infantil no Brasil, os conteúdos ainda refletiam um conservadorismo que permeava os costumes e influencia-va também o trabalho do ilustrador, nessa época nos livros a ilustração realmente só acompanhava o texto escrito, ou seja, a história podia ser entendida sem sua existência e havia pouco espaço em rela-ção ao texto. Porém, a imagem, apesar da sua discreta presença, era um atrativo e um descanso para a leitura e uma forma de ampliar a imaginação sobre a história; outro fator foi o surgimento de uma classe média que buscava uma maior quantidade de publicações para seus filhos.

Chapbooks

No início do século XIX, conforme Dansa (2009), os livros existentes na época além da lite-ratura para adultos e crianças tinham um teor educativo e moralizante, havia também os livros de viagens e os chapbooks, estes últimos surgiram a partir do século XVII, mas o nome chapbooks foi dado somente no século XIX. Era um tipo de literatura popular, panfletos ou impressos produzidos de forma simples e barata destinado ao publico em geral, pessoas semiletradas e às crianças. Era cons-tituído de uma folha inteiriça com as folhas vincadas na forma de um livreto de 20 ou 24 páginas e possuíam uma ou mais xilogravuras. Eram transportados por vendedores ambulantes, os chapmans (PORTO, 2012). Tinham um caráter de entretenimento e eram umas das pouquíssimas fontes de in-formação visual da época. Seus temas variavam em torno de acontecimentos fantásticos do cotidiano, eventos políticos recentes, dentre outros. Devido ao seu acabamento precário não eram consumidos pela população de classe média e alta. Dansa (2009) afirma que, ainda assim, no fim do século XVIII os contos folclóricos e de fadas eram temas que apareciam nos chapbooks; caracterizando-se um pro-duto cultural da era pós-rousseauniana. As crianças, de acordo com Dansa (2009), liam os chapbooks, existem evidências que com-provam isso. Elas mesmas os compravam, pois era um produto barato e ofertado de forma ambulante. Foram os primeiros “livrinhos” que, apesar de não serem dirigidos para crianças mantiveram viva a tradição dos contos e rimas, o que através dessa publicação e juntamente com as ilustrações encantava as crianças, esse fato faz deles um importante material para a história dos livros infantis e por que não para a literatura infantil. Na França também houve, conforme Porto (2012), outro tipo de publicação muito parecida com os chapbooks, eram os Bibliotheque Bleue ou “contos azuis”, o nome se deve por serem impressos em papel azul. Eram transcrições das velhas histórias de tradição oral.

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Figura 4 – Exemplares das publicações dos chappbooks que datam do início do século XIX

Figura 5 – Exemplar de uma publicação Bibliotéque Bleue

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Ilustradores do século XIX No começo deste século, conforme Dansa (2009), apesar das ilustrações ainda serem contidas e conservadoras um ilustrador, George Cruikshank se contrapõe a isso, lançando uma série de ilus-trações em 1820 e 1826 que acompanhava a primeira versão em inglês do que foi chamado depois de “Contos de fadas dos Irmãos Grimm”. Eram histórias coletadas da tradição oral por esses autores. Cruikshank já vinha ilustrando desde o século anterior e nessa coleção seu estilo e desenho já eram virtuosíssimo e apesar de conter poucas ilustrações nessas publicações, elas eram criativas e exube-rantes. Ele foi o primeiro a ilustrar as histórias dos irmãos Grimm e indicaram, tanto os autores como o ilustrador os caminhos que iriam seguir a literatura infantil e a ilustração posteriormente.(WHALLEY e CESTER, apud DANSA, 2009).

Figura 6 – ilustração de George Cruikshank para “Histórias populares da Alemanha” de Jacob e Wilhelm Grimm. 1823

Nas décadas de 1860 e 1870, com o uso da impressão a cores através da cromolitografia as ilus-trações tiveram outro salto que surgiu gradualmente. Nesse período o ilustrador de maior relevância é John Tenniel, que ilustrou os dois livros de Alice em 1865 e 1972 dando forma aos personagens e ambientes encantados do País das Maravilhas escrito por Lewis Carrol. Neste momento conforme Dansa (2009) toda moralidade e aprendizado foram postos em discussão e subvertidos diante de uma história que revirava conceitos e comportamentos estabelecidos. Nessa época a profissão de ilustrador não era valorizada e os artistas ganhavam a vida como podiam. Um exemplo de destaque também foi o ilustrador William Blake. Além de ilustrador, foi pin-

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tor e impressor, também escreveu seus próprios livros e poemas como “Canções da inocência”. Em suas publicações procurava relacionar texto e imagem como um objeto integrado. (OLI-VEIRA apud OLIVEIRA, 2008a).

Figura 7 – Ilustração de John Tenniel para o livro “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carrol - 1865.

Figura 8 – Ilustrações para o livro “Canções da Inocência”. Autoria e ilustrações de William Blake - 1789

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Um ilustrador que soube utilizar muito bem o jogo poético unido e entrelaçado ao jogo visual foi Edward Lear, através de parlendas, trava-línguas, poesias ritmadas fazia a junção so-nora entre imagem e palavra. Segundo Rui de Oliveira (2008) ele possa ter influenciado através de seus textos nonsense Lewis Carrol a escrever “Alice no país das maravilhas”. Foram muitos ilustradores, conforme Oliveira (2008 apud OLIVEIRA 2088a), que en-cantaram crianças e adultos nos livros de contos de fadas e fábulas, infelizmente não poderemos nos deter aqui em escrever sobre todos eles, seria necessário um volume inteiro para tratar desses artistas, citaremos aqui alguns outros nomes de importante valor. Na França temos Jean Ignace Isidore Grandville que ilustrou as fábulas de La Fontaine (1621-1695); Walter Crane bem no final do século XIX e início do XX, Eleonor Vere Boyle e Richard Doyle. A ilustração de livros infantis no seu início tem seu destaque maior no século XIX e mantém uma determinada linguagem visual até 1930. No início do século XX ela vai sendo acrescida de novas influências como o art nouveau e o japanesismo. Foi o chamado “período de outro da ilustração”, que teve mais influência dos movimentos artísticos do século XIX do que dos novos movimentos surgidos até meados da década de 1920.

O cubismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo, o neoplasticismo, o neoconcretismo russo e tantos outros têm presença maior no design, nos cartazes, por exemplo, do que na ilustração de livros para crianças. (OLIVEIRA apud OLIVEIRA 2008ª, p. ).

No Brasil, segundo Sandroni (2013), somente depois do desenvolvimento da imprensa, após a chegada da família real portuguesa e sua corte, que ocorreu o início dos processos repro-gráficos e no final do século XIX e início do século. XX que começou a nossa produção cultural na área literária com autores e tradutores. Um dos autores fundadores foi Figueiredo Pimentel com ilustrações feitas por artistas como Calixto Cordeiro, Henrique Cavalheiro e Julião Macha-do. Outros ilustradores que representam esta arte no início das publicações no Brasil, se-gundo Porto (2012), são J. Carlos, Oswaldo Storni e Belmonte. “Em relação à técnica, todos eles apresentam um traçado preto forte, com figuras caricaturais e a presença de formas infantiliza-das” (PORTO, 2012, p.). Esses ilustradores sofriam a influência de outro trabalho que exerciam que era a caricatura e a charge, que também não deixavam de ser uma técnica e um estilo de ilustrar. J. Carlos foi quem ilustrou uma das primeiras publicações para o publico infantil em 1905, a revista “O tico tico”, que perdurou até 1959 quando as publicações estrangeiras chega-ram e ela não pode competir, por exemplo, com as publicações da Walt Disney. Artistas como Voltolino, J.U. Campos e Manuel Victor Filho e Belmonte ilustraram as publicações de Monteiro Lobato para “O sítio do pica-pau amarelo”, obra que imortalizou Loba-to e colocou a literatura nacional num patamar de alto nível frente aos grandes autores da lite-ratura estrangeira. Mas, foi Belmont que maior número de vezes as ilustrou tendo uma sinergia muito grande entre ele e o autor de “Reinações de Narizinho”, “Emília no país da gramática”, dentre outros títulos do fantástico sítio da Dona Benta.

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Figura 9 – Ilustração de Belmonte para o livro “Emília no país da gramática” de Monteiro Lobato - 1935

Do início do século XX à ilustração contemporânea

No início do século XX a ilustração ainda estava atrelada aos antigos modelos e escolas artísticas, porém alguns artistas começaram a se libertar e ousar na linguagem visual impelidos pelas novas vanguardas artísticas. Podemos citar um nome, o alemão Kurt Schwitters era um artista ligado ao movimento dadaísta, que surgiu em 1916 na Suíça, tinha como característica a desconstrução da lógica e atitudes irreverentes e irônicas. Em 1920 ele conta uma história utilizando apenas recursos tipográficos, e usou apenas duas cores na publicação, inovou nos grafismos e conseguiu a integração entre palavras e imagens. É a partir dessa década, mas principalmente depois da segunda II Guerra Mundial (1939-1945), que no mundo ocidental, isso (O QUÊ?) vai acontecer no Brasil mais tardiamen-te, que a busca por uma interação entre texto e imagem se reforçam de maneira que a imagem ganha muito mais espaço e quantidade no corpo do livro, pois agora ela também conta a histó-ria, traz elementos que complementam o texto e em muitos casos em conjunto com o projeto gráfico forma um todo comunicacional para o entendimento da história. A partir da década de 60, conforme Ramos (2011), mais novidades são introduzidas no livro infantil, em relação aos temas e em relação a interação da ilustração com o objeto livro. Há uma preocupação com a linguagem visual dando ritmo ao texto e ao movimento das páginas. As ilustrações tomam a página dupla e invadem a história. Em 1970 no Brasil temos grandes exemplos de ilustradores que trabalham com muita originalidade o livro infantil podemos citar Ziraldo, Eliardo França e Juarez Machado, para

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destacar os principais. Ziraldo publica “Flicts” nessa época, um engenhoso ensaio sobre a cor e que rompe com muitos tradicionalismos nos temas e na linguagem gráfica. Eliardo França nesta época também fez muitas pesquisas e publicou livros de grande inovação artística e de interação do texto verbal com o visual. Juarez Machado era artista plástico e inovou publicando “Ida e volta”, em 1976, primeiro livro brasileiro exclusivamente de imagens. O livro também não tinha uma ordem correta de leitura, podia ser lido de frente para trás como de trás para frente. Conforme Ramos (2011 p. 63), “... a história daquelas pegadas indo ou saindo (a dúvida é provocada pelas imagens) do chuveiro surpreendeu por não dar rosto a uma personagem. A identidade estava apenas nas marcas dos pés e na imaginação do leitor”. De lá para cá as novidades não param e quem se beneficia com isso são as crianças e os jovens. Nos anos 80 no Brasil, segundo Ramos (2011), se sobressaem obras em que textos e imagens dialogam com maestria e trazem riso, emoção, conhecimento. Autoras como Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Fernanda Lopes de Almeida, Ruth Rocha e Sylvia Orthof, são nomes importantes. Seus trabalhos dão vida, alimentam a imaginação e os corações de seus leitores.

Figura 10– Capa do livro de imagens de Juarez Machado “Ida e volta”- 1976

Na atualidade devido ao uso da gramática e da sonoridade das palavras em consonância com a imagem alguns livros infantis são considerados “poemas visuais”, estes chamam a aten-ção da criança tanto pelo código verbal quanto visual, e um não é interessante sem a existência do outro. Um ilustrador contemporâneo que é primoroso nessa técnica é Roger Mello, ilustra-dor premiado e vencedor em 2014 do Prêmio Nobel da ilustração no livro infantil, o prêmio “Hans Cristian Andersen”, além de assinar o texto muitos livros também O termo “poema visual”, conforme Salisbury (2005 apud RAMOS, 2011) é criação do

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ilustrador Maurice Sendak. O termo se refere a um fenômeno que na Inglaterra é chamado de picturebooks ou como é dito na Espanha livros-álbuns. Esses são os livros em que se dá gran-de atribuição imagem e ao projeto gráfico, ou seja, eles possuem muito mais imagens do que texto. Entretanto o texto tem papel de grande importância, como no caso de Mello reforça um caráter lírico e poético de sua obra. Podemos destacar aqui, de acordo com Sipe e Pantaleo (2008 apud Ramos, 2011), al-gumas características do livro ilustrado contemporâneo:

As variações no design – no interior do livro ocorrem diferenças de tratamento no formato das pá-ginas; o abandono da cronologia linear, a história não tem mais uma linha de tempo organizada; a intertextualidade, que é a referência a outros textos; o jogo, em que o leitor é convidado a ler o livro como um quebra-cabeça, a multiplicidade de significados, que permite a escolha de vários caminhos para compreender a obra, criando diferentes públicos para ela; e a quebra de fronteiras entre cultura popular e alta (p. 79).

Figura 11– Ilustração de capa por Roger Mello para o livro de sua autoria “Cavalhadas de Pirinópolis”.

No século XX houve a difusão do conceito de livro objeto, utilizado pelo designer ita-liano Bruno Munari, que soube explorar este suporte a partir de intervenções feitas no livro como recortes, furos, uso de papéis diferentes, formato inovador entre outros que contribuía, junto com as ilustrações, a tipografia e o design em geral para a comunicação do conteúdo do mesmo. Um livro de grande importância com essas características de Bruno Munari foi “Na

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Noite Escura”, publicado pela primeira vez em 1956. A partir desse conceito surgiram livros em que a criança interage com o objeto, princi-palmente, para crianças muito pequenas que a leitura sensorial é a de maior importância. Neles são utilizados materiais, formatos diversificados, sons, possibilidades de montagem e desmon-tagem. Esses livros são chamados livros-brinquedos, e são produto do design contemporâneo nos livros infantis.

Figura 12– Exemplo de livro-brinquedo

Destaca-se mais alguns nomes da ilustração infantil contemporânea brasileira, como Re-nato Alarcão, ilustrador carioca e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É ganhador de prêmios como o NOMA para livros ilustrados, concurso feito pela UNESCO na cidade de Tóquio no Japão. Teve seus trabalhos expostos no AIGA – American Institute for te Grafic Arts, na American Society of illustrators, na New York Public Library, na Bienal de ilus-trações de Bratislava. Mariana Massarani, é outra artista carioca de destaque. Já ilustrou cerca de 200 livros infantis e ganhadora por 4 vezes do prêmio Jabuti de ilustração de livros infantis. Tem um es-tilo muito próprio oriundo do trabalho que exerceu por muitos anos de chargista no Jornal do Brasil. Porém, imbuída do olhar contemporâneo e cheia de sensibilidade cria imagens ricas de texturas, estampas e muito desenho que expressam a inocência da infância, a beleza da natureza e por meio de suas composições promove essa ligação harmoniosa do homem com seu meio ambiente.

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Figura 12– Ilustração de Renato Alarcão para o livro “Madiba, o menino africano” de Rogério Andrade Barbosa-2011

Figura 13– Ilustração de Mariana Massarani

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Recebido em 30 de novembro de 2017. Aprovado para publicação em 12 de dezembro de 2017.

O século XX é marcado pelo uso da cor, pelas novas técnicas de impressão e pela re-volução digital que vem ocorrendo, principalmente, na década de 90 até os dias atuais a qual permite essa explosão de criatividade dos artistas. Atualmente na impressão dos livros se utilizam as técnicas do Off-set e a impressão di-gital. E na produção das imagens, conforme relata Oliveira (apud OLIVEIRA 2008), os artistas e ilustradores fazem uso de várias ferramentas como o scanner, a fotografia digital e os softwers de ilustração que permitem que se desenhe diretamente no computador. Todas essas ferramen-tas abrem muitas possibilidades na construção da imagem. Mas, não significa que se abando-nou os métodos tradicionais. Na contemporaneidade o que tem ocorrido em vários campos das artes, e na ilustração de livros infantis isso ocorre muito, é a união das técnicas tradicionais de se ilustrar e o uso das tecnologias para realçar a imagem, editá-la ou fazer colagens de diversas maneiras. O livro infantil de hoje, de acordo com Ramos (2011), é composto por uma equilibrada, harmoniosa e criativa junção de palavras, imagens e design dando sentido à narração. Segundo Arizpe e Styles (apud RAMOS, 2011 p. 83), teóricos “afirmam que essa dinâmica ‘multimodal’ é peculiar, exclusiva da literatura infantil, não sendo equivalente na literatura adulta”. Ramos destaca ainda que a riqueza de sentido conseguida com a articulação desses elementos citados tem superado até as novelas gráficas e os quadrinhos que também fazem uso dos mesmos. Encerrando este pequeno ensaio histórico e analítico sobre a ilustração nos livros in-fantis podemos dizer que a ilustração neste veículo tão importante do saber para as crianças é a porta de entrada para a leitura, facilitando-a, além de estimular e propiciar aumento de sua capacidade de leitura visual. Se bem empregada a ilustração amplia a mensagem do texto e possibilita grande identificação com seu público proporcionando deleite visual, fantasia e co-nhecimento, pois ela pode trazer muita informação para o leitor iniciante. É um veículo que pode ser muito explorado por educadores e pais. Esta forma de arte impressiona e desperta interesse por ter uma função e uma missão especial, a de atingir o ima-ginário infantil levando alegria, fantasia e estímulo para que a criança também realize suas cria-ções e adentre ao mundo letrado, contribui, nas palavras de Rui de Oliveira para o “... aprimo-ramento da sensibilidade e da inteligência do olhar de nossas crianças e jovens” (OLLIVEIRA apud FNLIJ, 2013, p.), além de ser uma linguagem artística que trouxe e continua trazendo para a história da humanidade brilhantes talentos.

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Arquitetura de castelos tropicais: quem quer ser nobre no Brasil de hoje?

Archiecture of tropical castels: who wants to be noble in today´s Brazil?

Dinah Papi Guimaraens*

* Pós-Doutora em Antropologia, University of New Mexico, E.U.; Doutora em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social-PPGAU, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, e New York University, NYU, Nova Iorque, EUA (Fulbright Advanced Scholar at The Metropolitan Museum of Art, New York). Cidade, Estado, País: Rio de Janeiro, Brasil. Área de pesquisa específica dentro das artes: Estética Transcultural, Patrimônio Imaterial e Paisagem Cultural.

ResumoO artigo aborda castelos ecléticos, destacando aquelas fortalezas medievais erigidas nas regiões serranas do Rio de Janeiro. Enfatiza este o Castelo de Itaipava, de estilo anglo-normando e neo-clássico, realizado pelo Barão Smith de Vasconcellos. Contando com projeto arquitetônico de Lú-cio Costa e de Fernando Valentim datado de 1920, tal castelo exemplifica a seguinte questão final: “Quem Quer Ser Nobre no Brasil de Hoje?”.

Palavras-chave: Castelos, Ecletismo, Nobreza, Brasil de Hoje

AbstractThe article focuses on eclectic castles, highlighting medieval fortresses erected in Rio de Janeiro. It emphasizes the Anglo-Norman and neoclassical style of Castle of Itaipava, constructed by Baron Smith de Vasconcellos with architectural design of Lucio Costa and Fernando Valentim dating from 1920. This castle exemplifies the following final question: “Who wants to be noble in Brazil now?”

Keywords:Castles, Eclecticism, Nobility, Brazil nowadays

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Nobreza, Heráldica e Castelos “Medievais” (foto 1)

O artigo aborda a arquitetura de castelos ecléticos construídos nas primeiras décadas do século vinte no Brasil, destacando aquelas fortalezas medievais erigidas nas regiões serranas do Rio de Janeiro. A pesquisa sobre castelos tropicais foi sempre cercada de surpresas, desde o seu

início. A primeira delas, por parte mesmo daqueles com quem comentei sobre sua realização, e que in-dagaram com espanto: “Mas será que existem castelos no Rio de Janeiro?”. Tal perplexidade justifica-se em um país que não viveu historicamente a Idade Média, mas que mantém em seu repertório cultural elementos clássicos e ecléticos, convivendo pacificamente com o estilo moderno aqui disseminado entre as décadas de 1920 e 1940 e até com o pós-modernismo dos anos 1980 e 1990. Sobre quais cas-telos estaremos então discorrendo a partir de agora? Exatamente sobre aquelas obras de arquitetura eclética existentes nas regiões serranas próximas ao Rio – como Petrópolis, Correias, Itaipava e Tere-sópolis – nas décadas de 1920 a 1940. Nesses castelos ocorre uma preponderância medieval, em que se destaca o estilo normando das fortalezas de pedra, ao lado de um neogótico pleno de abóbodas, vitrais, torres e arcos ogivais, que os aproximam bem mais das fortalezas da Disneylândia do que dos modelos originais de castelos europeus. Como afirma Eco (1989, p.78)

Não se sonha com a Idade Média porque seja o passado,porque a cultura ocidental tem uma infinidade de passados. (...)Mas acontece que, e já foi dito, a Idade Média representa o crisol

da Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todasas coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas, (...) a

universidade, até mesmo a organização turística (...).

Em um país terceiro-mundista como o Brasil, a Idade Média que não foi vivida no tempo his-

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tórico permeia nosso cotidiano através dos símbolos da comunicação de massa, derivados das cultu-ras europeias e norte-americanas. Uma época medieval romântica idealizada nos folhetins do século dezenove e aqui largamente difundida na primeira metade do século vinte acabou sendo disseminada, a partir dos anos 1950, através de filmes de Hollywood como, Robin Hood e Os Cavaleiros da Távola Redonda. Constituindo um medievo oitocentista, passou a fazer parte de nosso dia-a-dia, cheio de torres e de castelos assombrados por fantasmas, em que a escuridão da noite foi cortada por relâmpa-gos e em que o torreão substituiu a astronave (cf. Eco, 1989, p.80). E é essa Idade Média composta pelo imaginário do século dezenove que aparece representa-da na arquitetura constituída por um bricolage (cf. Lévi-Strauss: 1989) de estilos normando, Tudor, Windsor e neogótico de influência inglesa, aos quais se juntaram ainda réplicas de estilos medievais portugueses, significando uma mentira de informação estética (cf. Eco: 1970) por representar a tenta-tiva de alguns nouveaux-riches de se inserir dentro de um modelo nobre, no qual ocorreu uma iden-tificação com um ideal europeu, branco e civilizado. A elite brasileira, construtora de casas-grandes nos séculos dezoito e dezenove nas áreas ru-rais, ergueu também sobrados e palácios nos centros urbanos, deixando sua marca característica nos castelos medievais erigidos desde o início do século vinte até a atualidade, tanto na cidade quanto nas serras próximas ao Rio de Janeiro. A simbologia da nobreza neles impressa nos remete finalmente, para o funcionamento de um sistema marcado por hierarquias sociais, no qual não há mesmo necessi-dade de segregar o negro, o mulato, o mestiço e o índio, já que o branco surge como grupo dominante, dentro de uma ordem social na qual a igualdade raramente predomina (cf. Da Matta: 1981). O aparecimento de moradias e de casas de campo sob a forma de castelos medievais parece fa-lar da nostalgia de uma nobreza perdida, representada pelo status superior de seus proprietários. Essas réplicas de construções típicas da Idade Média, ao lado de brasões familiares na decoração de interio-res e de fachadas das residências, marcam um lugar de destaque de seus donos na hierarquia social, com ancestrais aristocráticos e/ou com grande poder aquisitivo. O mundo da família determinado pelos laços de sangue, pelo nome e pelo título nobiliárquico de um ancestral foi, então, acionado por nossos informantes como forma de poder nas relações pessoais cotidianas, constituindo uma mistura de nostalgia, monarquia e dominação. Tal concepção da realidade é representativa de forças políticas tradicionais, vigentes desde a época colonial e identificadas com o patrimonialismo . Uma postura anti-igualitária, dominada pela ética do familismo, da patronagem e das relações pesso-ais – inerente à vertente hierárquica existente no bojo da sociedade brasileira (cf. Da Matta: 1979) – é correspondente, em termos ideológicos, ao comportamento da elite política do patrimonialismo. A própria constituição do estamento - estrato político com efetivo poder de comando, identificado com uma postura tradicionalista, - pode ser, assim, atribuída ao fato de termos constituído, até o final do século passado, uma sociedade de nobres. A sociedade aristocrática brasileira, ao adotar a escravidão como forma normal de trabalho, se aproxima, em algum nível, desse pensamento racista, supondo a superioridade da raça branca para justificar a dominação sobre as raças consideradas inferiores (não brancas). A sociedade reproduzida no Brasil, a partir do modelo lusitano, veio marcada pela ordem racial. As teorias racistas – difundidas no século dezenove por pensadores como Joseph Arthur, Conde de Gobineau, que serviu aqui como embaixador em 1869 – chegaram a profetizar uma degeneração genética para os brasileiros em menos de duzentos anos, devido à disseminação da raça negra, considerada como inferior, tanto nas classes baixas quanto nas classes superiores da população (cf. Chiavenato: 1987). Ao se deparar com a realidade brasileira da mestiçagem, a ciência das raças europeia e norte-a-mericana teve por bem erigir um discurso ideológico que invertesse o argumento da pureza das raças:

os autores nacionais do final do século dezenove e início do século vinte deduziram que se poderia chegar à raça pura (branca) através da miscigenação seletiva. Decorreu daí o mito do branqueamento da raça e a outra face da mesma moeda: o mito da democracia racial (cf. Seyferth: 1986). Partindo da investigação do espaço construtivo, procuramos desvendar a ideologia do Barão Smith de Vasconcellos, construtor do Castelo de Itaipava, a qual foi estruturada por ideais nobiliárqui-cos, monarquistas e arianistas vigentes nas primeiras décadas do século passado entre componentes da elite carioca e fluminense, da qual faz ele parte integrante. Destacamos a genealogia dos Smith de Vasconcellos e a descrição de seus brasões nobiliárquicos, ao lado da análise da heráldica como forma de classificação social na época feudal e no Brasil Império. É ainda hoje senso comum que o povo brasileiro descende de três raças degeneradas ou infe-riores: o índio indolente, o negro lascivo e o português degredado. Ou, como expressa vulgarmente uma piada sobre a Criação do Mundo: Ao criar o Brasil, Deus nos premiou com uma natureza gene-rosa, porém, em compensação, “olha só o povinho que colocou morando aqui...”. Constatamos, dessa forma, como nossa própria identidade cultural se encontra permeada por valorações negativas de toda ordem. Contraditoriamente a essa visão do povo brasileiro como inferior, no entanto, o senso co-mum acredita que o Brasil é um dos únicos países onde existe uma verdadeira democracia racial, onde a mestiçagem é a tônica e o negro (como também o índio) não sofre qualquer tipo de discriminação . O encontro harmonioso das três raças em território brasileiro dá, então, origem ao homem cordial apontado por Holanda (1989), com o qual nos identificamos positivamente. Aquele mesmo brasileiro simpático, algo despreocupado e meio malandro, que resolve qualquer problema com o famoso jeitinho. Nosso “preconceito de não ter preconceito” não explica, no entanto, o porquê da localização da maioria quase absoluta dos negros e dos índios nas camadas mais baixas da popula-ção. A questão estrutural da desigualdade ráciosocial brasileira é simbolizada nas representações dos proprietários de castelos medievais pela contraposição entre nobres e africanos referindo-se, dessa maneira, a estratos superiores e inferiores da sociedade e trazendo à tona uma estética racista da elite carioca e fluminense. Tal ideal de nobreza tomou forma mais concreta no caso do Barão Smith de Vasconcellos, embora tendo sido igualmente detectado em outros construtores de castelos tropicais. A corporificação dos três elementos que estruturam o modelo de como ser nobre idealizado pelos construtores de castelos pode ser assim resumido:. A arquitetura, representada pela construção de castelos, torres e fortalezas, de acordo com um estilo arquitetônico preponderante inglês ou anglo-normando.. A memória genealógica, indicada na criação de brasões próprios pelos construtores de castelos, bem como no levantamento das árvores genealógicas de seus ancestrais.. O ideal de vida da cavalaria medieval, simbolizada pela obtenção de um título de nobreza pelo 3º Barão de Vasconcellos. Tanto a fortaleza anglo-normanda e neogótica erigida pelo Barão Smith de Vasconcellos, quanto a obtenção de seu título de nobreza via uma bula papal e o levantamento da heroica árvore genealógica que ilustra a Galeria dos Ancestrais por ele realizada em seu castelo tropical, nos falam da eficaz atualização desse modelo de nobreza. Enquanto outros construtores de castelos somente traçam esboços de um modo ideal medieval de morar, de viver e de se reportar aos seus ascendentes, Jayme Luiz conseguiu ultrapassar o mero sonho de ser nobre, acabando por atualizar um modelo de nobreza em sua vida do dia-a-dia. Contribuiu para isso, certamente, o livro Arquivo Nobiliárquico Brasileiro, publicado em 1918, tendo sido por ele escrito em parceria com seu pai, Rodolpho Smith de Vasconcellos, represen-tando tal estudo o primeiro levantamento sistemático dos integrantes da nobreza brasileira do 1º e 2º

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Impérios. No caso do Barão, o acesso aos livros que compõem a biblioteca do Castelo de Itaipava, bem como a parte do material por ele recolhido para a redação do Arquivo Nobiliárquico, que escreveu juntamente com seu pai, simbolizou uma contribuição valiosa ao nosso trabalho de campo. Ao modelo anglonormando da arquitetura do Castelo de Itaipava, o 3º Barão acrescentou ain-da a valorização do sangue de seus ancestrais ingleses e portugueses, procurando demonstrar concre-tamente que sua família não sofria de qualquer mácula de sangue negro ou mestiço em sua gloriosa Galeria dos Ancestrais. Com a construção do Castelo de Itaipava, a obtenção de um título de nobreza papal e o seu acesso às camadas abastadas da sociedade através do casamento com rica herdeira pau-lista do Conde Siciliano, o proprietário desse castelo contrapôs, simbólica e concretamente, o modelo inferior e mestiço do brasileiro do início do século ao seu ideal superior e nobre de cavaleiro medieval romantizado no século dezenove. É exatamente esse modelo de nobreza, que mescla ficção e realidade vivida, que foi então atualizado pelos construtores de castelos tropicais. O projeto e a construção do Castelo de Itaipava enfocaram a questão do neogótico e do gosto eclético, contrapondo-o à visão modernista que se afirmou na arquitetura brasileira dos anos 1920. A etnografia espacial do castelo percorre a Sala de Armas, a Galeria dos Ancestrais e a Biblioteca como Templo do Saber, revelando aspectos defensivos de uma réplica anglo-normanda do século XIII. A nobreza do Império brasileiro baseou-se em um sistema de privilégios, inspirado no conceito jurídi-co português que pressupunha uma distinção entre nobres e plebeus. Os Vasconcellos ilustram bem aqueles nobres de Portugal descendentes de comerciantes muito ricos, cujo acesso à nobreza represen-tou uma forma de pagamento por serviços remunerados à coroa, os quais se encontravam previstos desde o século quatorze no Regimento do Mordomo-Mor da Casa Imperial. De acordo com tal regimento, a prestação de serviços sociais através de obras de caridade, da construção de igrejas e de hospícios e de libertação de escravos, na época de D. Pedro II, era reco-nhecida pelo imperador através de títulos de nobreza atribuídos só por uma vida, não tendo sido tais títulos passíveis de renovação nem de extensão aos descendentes dos titulados. A indicação para uma titulação nobiliárquica por serviços prestados previstos em tal regimento fez com que não fossem so-mente os filhos primogênitos que herdaram o direito de uma segunda vida dos títulos dados aos seus pais. Ao contrário do que ocorreu no caso do 2º Barão de Vasconcellos, que era filho primogênito do 1º Barão, não foram sempre os filhos primeiros que herdaram os títulos de seus pais, mas sim, aqueles indivíduos que se destacavam socialmente dentro de uma família de origem nobre. Após ser publica-do o decreto régio que atribuía um título de nobreza, caberia ao titulado pagar um alto imposto, que lhe dava, por sua vez, o direito de poder fazer uso de tal titulação. A carta régia definitiva dependia, portanto, do poder aquisitivo do nobre titulado, o qual de-veria remunerar a coroa com uma vasta contribuição pelo título obtido. A nobreza da terra era com-posta principalmente pelos poderosos fazendeiros que dominavam as câmaras de vereadores de suas regiões, sendo constituída por grandes fortunas. Poucos nobres conseguiam obter do Imperador uma dispensa oficial para o pagamento de tal imposto, como foi o caso de Lord Cochrane, conhecido usurário. Com a atribuição de títulos por serviços de guerra a partir da metade do Império, ocorreu a dispensa desse imposto no caso dos militares, cujos baixos soldos impossibilitavam mesmo seu pa-gamento à coroa. A substituição progressiva dos valores tradicionais da nobreza das velhas linhagens portuguesas pelo poder aquisitivo elevado dos nobres de uma classe inferior poderia ser representada no caso dos Vasconcellos. Inseriam-se eles entre aqueles parvenus que, sendo de origem burguesa e tendo exercido a profissão de comerciantes de alto trato por gerações sucessivas, acabaram por ser aceitos entre a elite brasileira pelos seus serviços prestados ao Império. O Barão Smith de Vasconcellos recebeu um título nobiliárquico como mercê de S. Benedito

XV, por breve apostólica de 1917. Não podendo contar mais com a titulação real após a extinção da monarquia no Brasil, Jayme Luiz lançou mão da aquisição de um título papal de nobreza como estra-tégia de nobilitação, fato que lhe permitiu a recriação de um mito de origem a partir de seus ancestrais nobres. Tal mito de origem nobiliárquica apareceu representado, exemplarmente, na eleição do estilo arquitetônico do Castelo de Itaipava, baseado em um modelo neogótico e anglo-saxão. A interpre-tação da arquitetura eclética das primeiras décadas do século passado – representada pelos castelos medievais de inspiração anglo-normanda – pode ser interpretada como tendo a função de distinguir seus idealizadores, no sentido de distinção empregado por Bourdieu (1979), em que a arquitetura neogótica, como forma de expressão artística, indicava o anseio de pertinência de seus donos ao uni-verso cultural de segmentos da elite brasileira da época. Tal arquitetura eclética traduz um modelo romantizado da Idade Média feudal, típico da Eu-ropa do século dezenove, que traz em seu bojo a monarquia como forma de governo decorrente de uma aristocracia natural inerente às classes dominantes. Esses castelos medievais foram construídos no Brasil, na maior parte das vezes, por comerciantes enriquecidos do comércio com a República, como forma de ostentação estética que visava a superação de sua origem humilde e não inserida nas velhas linhagens da nobreza portuguesa e brasileira. O ecletismo representa um estilo arquitetônico de origem europeia, que se caracteriza pelo emprego das mais diversas arquiteturas do passado ou pela combinação de mais uma delas numa construção. A arquitetura do século dezenove foi, assim, com-pletamente eclética e os edifícios obedeceram a precedentes estilísticos como o romântico-medieval ou clássico-renascença. A arquitetura eclética neogótica desenvolveu-se principalmente na Inglaterra e na França, além de ter ocorrido com menor destaque em outros países da Europa, quando foi adotado pela rica burguesia industrial que surgiu com o capitalismo. A associação desse estilo, de características exube-rantes, com uma classe social afamada pela pouca cultura manteve, até há pouco tempo, uma imagem negativa sobre o ecletismo, considerado como inerente aos nouveaux-riches ou parvenus. O estilo de arquitetura escolhido para a construção do Castelo de Itaipava consistiu exatamente em um medieva-lismo normando, expresso pelo neogótico de suas fachadas principais e de seus espaços inferiores. Esse gótico tropical, eleito como estilo predileto por segmentos da elite fluminense e carioca do início do século vinte, parece falar do ideal de aristocracia natural da família Smith de Vasconcellos que o Barão buscou divulgar com a construção de sua Galeria dos Ancestrais, acionando para isso o princípio de superioridade inata e hereditária de seus ascendentes brancos e europeus. Como um verdadeiro Lord inglês de época do Império transplantado para a colônia, Jayme Luiz empregou como estilo arquitetônico aquele neogótico que o alto capitalismo do início do século permitiu à capital do país e aos seus arredores erigir. Tal modelo do gótico tropical é assim ilustrado por Anderson (1989, p. 164), no que se refere à sua implantação nas colônias britânicas: Em toda colônia se encontrava esse tableau vivant tristemente divertido:o bourgeois gentilhomme declamando poesia contra o cenário de amplas mansões e jardins cheios de mi-mosas e buganvílias, e com um enorme elenco de apoio de lacaios, cavalariços, jardineiros, cozinheiros, amas, criados, lavadeiras e, acima de tudo, de cavalos. O ecletismo reflete o gosto estético das primeiras décadas do século passado, nas quais se des-tacou a influência das culturas anglo-saxônico e francesa junto aos estratos superiores da sociedade carioca. Freyre (1948, p. 11 e 12) demonstra como a predominância britânica no Brasil assumiu aspec-tos francamente imperialistas entre 1835 e 1912, sobrepujando economicamente a própria influência francesa: Os ingleses, quase tanto quanto os franceses, madrugaram, sob a forma de piratas, aventureiros e negociantes, nas praias da América tropical descobertas por portugueses e espanhóis. E distanciando-

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-se dos franceses,por largos anos seus rivais, os ingleses acabaram alcançando entre nós, sob a forma de negociantes e técnicos, uma preponderância econômica que, ostensiva nos dias de D. João VI regente e depois rei (...) acentuou-se de 1835 a 1912, para só então começar a declinar lentamente, vencida pela expansão norte-americana e mina-da pela alemã. A influência inglesa no Brasil manifestou-se na arquitetura do século dezenove pela substi-tuição das rótulas ou gelosias de urupema (denominada de muxarabis), existentes no Rio de Janeiro durante o reinado de D. João VI, pelas esquadrias das janelas de ferro e vidro. A pretexto de motivos estéticos e de saúde pública, o Intendente Geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, fez publicar um edital em 11 de julho de 1809, que pregava a retirada, dentro do termo de oito dias, de milhares de rótulas, balcões, gelosias e muxarabis dos sobrados da cidade. Freyre (1948, p. XXIV) sugere que essa retirada violenta dos muxarabis – elementos de influência mourisca absorvidos pela arquitetura por-tuguesa e para aqui transplantados – decorreu de uma pressão dos ingleses interessados na venda de ferro e vidro decorrente da disseminação do estilo eclético. A Missão Francesa no Brasil reprimiu o desenvolvimento desse estilo, sufocado pelo ensino rigorosamente clássico da Academia de Belas-Ar-tes. A arquitetura eclética voltou com força total no início do século vinte, impulsionada pelo clima renovador após a Proclamação da República. Regidas pelo então prefeito, o engenheiro civil Pe-reira Passos, as obras de remodelação do Rio, realizadas nas duas primeiras décadas do século, trans-formaram seu centro urbano, nesse curto espaço de tempo, em uma perfeita réplica de uma cidade de belle époque. O visual luxuoso das principais fachadas do Rio, com suas grandes colunas, cúpulas em metal, iniciais e monogramas nas cimalhas, se inspiraram em um bricolage de estilos arquitetônicos baseado no ecletismo, assim definido por Patteta (1975, p. 7): por Arquitetura do Ecletismo se entenda a produção poliestilística que caracteriza a segunda metade dos oitocentos, derivada da disponibilidade do arquitetura de adotar indiferentemente estilos diversos (...). É considerado Ecletismo o complexo da experiência arquitetônica que vai de 1750 ao final dos oitocentos, da crise do Classicismo à origem do Movimento Moderno. (...) (Inclui) revivals (o Neo-grego, o Neogótico, o Neo-renascimento) e exotismo (o Chinesismo, o Neomourisco e o Neo-indiano), (...) que denotam (...) um novo clima cultural: a passagem de uma problemática arquitetônico da elite para aquela da nova classe empreendedora.

Projeto e onstrução do castelo de Itaipava (Foto 2)

O dono do Castelo de Itaipava nasceu em uma chácara idealizada segundo moldes ingleses pelo Visconde de Guaratiba, possuidor de uma vasta propriedade de terras em um local denominado de Águas Férreas, onde hoje se encontra situado o bairro do Cosme Velho. A casa onde nasceu o Barão Smith Vasconcellos foi construída de acordo com um estilo eclético neomourisco vigente na segunda metade do século dezenove e come-ço do século passado. O exemplo mais célebre no Rio de Janeiro de uma edificação nesse estilo é o pavilhão mourisco ou Castelo de Manguinhos, erigido a partir de 1905 e cujas obras só terminaram definitivamente em 1918. Contrapondo-se ao modo eminentemente urbano de habitar de seu pai, Rodolfo Smith de Vasconcellos, Jayme Luiz optou por um estilo-de-vida diferente. A consolidação de um poderio econômico por parte da burguesia do final do século dezenove permitiu aos proprietários expandirem seus bens imobiliários da cidade para o campo. A partir da geração do Barão Smith de Vasconcellos, passou a ser valorizado como símbolo de status possuir uma casa-de-campo em Petrópolis, Teresópolis ou em outra região serrana localizada próximo ao Rio de Janeiro, inspirando-se para isso nos bangalows ingleses. A difusão do estilo pitores-co entre nós – disseminado na Europa desde a segunda metade dos setecentos e por todo o oitocentos – tendo eleito a romântica casa-de-campo como modelo estilístico, pareceu ter sido o responsável direto por essa adesão formalista à casa unifamiliar extra-urbana ou cottage (cf. Patteta 1975). Esse estilo pitoresco deriva da tradição romântica e conservadora do século dezenove, que disseminou a tese familiar de que, quando o aristocrata vivia no campo entre seus camponeses, haveria menos possibilidades de revoltas camponesas graves do que quando ele passava a amar o luxo e a habitar na capital (cf. Moore Jr.: 1983, p. 448). Tal linha de pensamento conservador parece ter efetivamente influenciado a elite e a burguesia

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abastada do começo do século vinte, incentivando a classe superior, na qual se inseria o nosso Barão, a construir casas-de-campo. Essa valorização do ambiente rural representa um elemento típico da cultura de revivals do ecletismo do século dezenove e começo do vinte. O culto à vida no campo apa-rece assim conjugado à difusão do medievalismo como estilo estético, já que na Idade Média “a vida rural é então infinitamente mais ativa que a vida urbana, e, tanto numa como noutra, é a família, não o indivíduo, quem prevalece como unidade social”. (Pernoud: 1981, p. 201). A fraqueza das cidades constituiu mesmo uma característica marcante da Idade Média, época em que preponderava uma sociedade rural que formou a base da organização política feudal. Na épo-ca medieval – em que depois do ano 1000 os novos centros urbanos da Europa ocidente se estrutura-ram, muitas vezes, sobre o traçado das antigas cidades do Império Romano – as cidades ocupavam um espaço social marginal, não funcionando mais como centros administrativos e minimamente como centros de produção e troca (cf. Benelovo: 1983, p. 251/253). Para os iluministas do século dezesseis, a Idade Média foi o período intelectual de maior obscurantismo jamais vivido pela humanidade. O romantismo do século dezenove, ao redescobrir a importância dessa desprezada Idade Média, trouxe à baila conceitos conservadores como o culto do passado ou da tradição. O culto a um passado romântico e medieval, no caso do Barão Smith de Vasconcellos, ma-nifestou-se em sua escolha por um estilo gótico inglês para a arquitetura de seu castelo. O gótico tardio ou gótico inglês representa o estágio final desse estilo artístico da Idade Média, apresentando tendências tipicamente conservadoras (cf. Hauser: 1973, p. 210). A fase mais expressiva da arquitetura medieval foi exatamente aquela chamada de gótica, nome dado pelos humanistas do renascimento italiano à arte dos lombardos, e dos godos (daí o nome gótico), considerada por eles como germânica e bárbara. A diferença fundamental entre a arquitetura românica e a gótica residia no emprego de arcos de abóboda de ponto médio, no primeiro caso, enquanto a arquitetura gótica apresentava arcos pontudos, janelas com vitrais e abóbodas nervuradas como suas características principais. O estilo gótico indica a influência de um novo espírito que não era aquele de Roma, mas sim nórdico (cf. Lethaby, apud Kidson: 1979). Não nos parece gratuito o fato dessa escolha do estilo gótico inglês para a construção do castelo tropical do Barão haver assim se somado ao ideal ariano de seu dono. Levando em conta a tão decantada superioridade racial dos anglo-saxões de sangue germânico pelos autores racistas do final do século dezenove, os quais acabaram levando o nosso Barão a valo-rizar os ancestrais britânicos em sua árvore genealógica e em seus brasões nobiliárquicos, não seria despropositado afirmarmos que a essa superioridade racial teutônica veio se aliar uma superioridade estética ou artística, representada pela arquitetura nórdica ou gótica. O neogótico do século dezenove, inspirando-se no gótico medieval do século treze, parece realmente representar o estilo nacional inglês por excelência. Simbolizando um patrimônio da alta cultura arquitetônica do romantismo, esse estilo de arquitetura – em comparação com a cultura es-trangeira de países como a França e Itália – representa um estilo adequado para um povo livre, para uma democracia burguesa de pura criação britânica e, enfim, um estilo popular no sentido romântico do termo, isto é, um estilo no qual o povo pode encontrar, por confronto explícito, o valor da própria história e da própria tradição. De acordo com Ruskin (1819-1900), teórico inglês do neogótico e do ecletismo, o revival do gótico nórdico do século treze constituiu uma bem sucedida tentativa de restaurar o valor religioso e moral do passado medieval. A identificação entre o gótico e a religião apareceu claramente expressa na construção das catedrais, que indicavam, através da verticalidade de suas coberturas e da luz de seus vitrais, o desejo de ascensão espiritual do homem medieval (cf. Patteta: 1975, p.154 e 168). Já a arquitetura civil da Idade Média, com o castelo principalmente, representou uma expressão do puro

funcionalismo da engenharia militar, adaptada pelo século dezenove com a introdução do ferro ba-tido na construção. A estrutura construtiva gótica era então interpretada pelo neogótico – segundo a visão de Viollet-le-Duc (1814-1979) – como simbolizando o elemento essencial da arquitetura, na qual se destacavam três princípios de edificação: o arco de corte agudo, o pilar autoportante e o teto ramificado. Seguindo o exemplo de D. Pedro II, o Barão Smith Vasconcellos era igualmente fã incondicio-nal de Walter Scott, em cujos romances se baseou para conceber o projeto arquitetônico do Castelo de Itaipava. Inspirando-se em um estilo baronal escocês difundido por esse romancista, seu castelo segue ainda o modelo da fortaleza medieval de Neuschwanstein, o Castelo do Cisne sonhado pelo rei Luís II da Baviera em 1869, o qual representa a mais conhecida expressão megalomaníaca da arquitetura romântica neogótica do século dezenove. A arquitetura do Castelo de Itaipava recebeu ainda a influ-ência, ao lado do estilo gótico inglês, da arquitetura normanda francesa do início da Idade Média. Em 1066, data do começo da guerra entre França e Inglaterra, o Duque de Normandia teve um poder de caráter absoluto ao aplicar a lei germânica, exercendo a justiça das contendas de sangue e do direito de vingança, enquanto os barones ou nobres presidiam reuniões judiciais em que se infligia a morte e a mutilação. Até o século doze, as afinidades políticas, sociais e intelectuais entre Normandia e Ingla-terra foram imensas, e a monarquia anglo-saxônica, nascida da guerra, foi profundamente germânica e carolíngia (cf. Petit-Dutaillis: 1961). Foi essa monarquia absolutista anglo-normanda que inspirou o construtor do Castelo de Itai-pava no modelo de arquitetura romântica e conservadora. Considerando-se descendente de uma legi-timidade dinástica vigente entre normandos e ingleses no início da Idade Média, a ela vieram se juntar seus ascendentes português e aqueles da antiga nobreza da terra caracterizada, de acordo com Vianna (1987, p. 110/111), por traços culturais das sociedades do tipo senhorial, como no caso da sociedade feudal. Procurando legitimar-se como nobre nos moldes da nossa sociedade imperial, seguindo a conceituação expressa por Oliveira Vianna, para isso caberia ao Barão Smith de Vasconcellos adquirir uma grande propriedade de terras, na Fazenda Itaipava, já que na época do Império somente a posse de um latifúndio dignificava o nobre, considerando-se as atividades de comércio ou da indústria in-compatíveis com um homem de nobreza. A aquisição desta vasta extensão de terras, ao lado da construção de uma fortaleza medieval nos moldes daquela pertencente a um cavaleiro feudal, expressou para Jayme Luiz seu desejo conser-vador de voltar ao passado, a uma tradição monárquica escravista que desmoronara, segundo ele, pela modernização compulsória do país introduzida pela República. Opondo-se aos positivistas, que eram republicanos convictos, colocou-se ele ao lado dos patrianovistas e dos integralistas, tendo eleito estes últimos a figura de Gustavo Barroso como um de seus ideólogos mais ferrenhos. Para o Barão, todo o arcabouço da ordem social nacional começara a ruir após a abolição da escravatura, já que, inspiran-do-se em Vianna (1922, p. 328, grifos nossos), achava mesmo que:o homem branco cultiva, com efeito, certas aspirações, move-se segundo certas predileções e visa certos objetivos

superiores (...). Esses objetivos, que são a cauda íntima da incomparável aptidão ascensional das sociedades aria-nas, deixam indiferentes os homens de raça negra (...) O poder ascensional dos negros em nosso povo e em nossa história, (...) é, pois, muito reduzido (...). Quando sujeitos à disciplina das senzalas, os senhores os mantém den-tro de certos costumes de moralidade e sociabilidade, que os assimilam, tanto quanto possível, à raça superior;

desde o momento, porém, em que, abolida a escravidão, são entregues, em massa, à sua própria direção, decaem e chegam progressivamente à situação abastarda, em que os vemos hoje.

Tal preconceito racial manifestado pelo Barão Smith Vasconcellos, atribuía à abolição da es-cravatura a inferioridade natural dos negros e mestiços após a Proclamação da República, invertendo,

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em sua lógica conservadora, os princípios ideológicos coloniais, que fizeram da escravidão a maior fonte de desqualificação social dos africanos para aqui deportados, situando-os irremediavelmente nos estratos mais baixos da população. A única forma de vencer tal inferioridade racial, segundo ele, consistia em uma arianização desses descendentes dos africanos, através de seu cruzamento com o sangue germânico ou de um processo lento de branqueamento da raça mestiça brasileira. Os mestiços arianizados, no seu entender, eram aqueles que, como o escritor Machado de As-sis – de quem o Barão era médico e amigo pessoal, e por quem manifestava enorme apreço – podiam ser mesmo considerados como mulatos ingleses , representando aqueles tipos raciais anglicizados, nos quais preponderava um eugenismo branco e europeu, através de influências hereditárias positivas arianas. Ao lado do culto do passado, a valorização de Idade Média pelo romantismo do século deze-nove trouxe à baila novas ideologias como aquela difundida pelo historicismo, doutrina que colocava em destaque o caráter único e irrepetível de todos os acontecimentos históricos, afirmando, no entan-to, que tudo o que era histórico decorria da manifestação de um princípio sobre-humano e eterno. Voltando assim uma vez mais à questão do ecletismo empregado na construção do Castelo de Itaipava, é importante destacar a ocorrência histórica do que – enquanto já se afirmava e se dissemi-nava o Modernismo arquitetônico no Rio de Janeiro, durante as décadas de 1920 a 1940, como resultado da revolução industrial do século dezenove – ocorreu no mesmo período um revival concomitante de castelos medievais cariocas e fluminenses, disseminados igualmente por outros estados do país. Lucio Costa (1952, p.19/23, grifos nossos) – um dos mais representativos teóricos da moderna arquitetura brasileira – é quem nos fala sobre essa coexistência, nem sempre pacífica, do espírito modernista da época com o formalismo dos estilos históricos: É que, em meio ao ostensivo mau gosto da arquitetura corrente dos mestres-de-obras, cuja despreocupa-ção no entanto soube casar tão bem a bela tradição dos enquadramentos de pedra com soluções de acen-tuado sentido moderno, (...) avultam dois movimentos distintos, ambos de feição erudita: de uma parte, numerosos exemplos do mais sóbrio e apurado ‘art-nouveau’ (...); e, de outra parte, toda uma sequência de edificações proficientemente compostas nos mais variados estilos históricos, do gótico às várias mo-dalidades do renascimento italiano ou francês. (...) Por outro lado, a tendência anglo-saxã também se fazia valer a sua feição ortodoxa, acadêmica. (...) E, como se já não bastasse, prosseguia ainda, como anteriormente, a escola francesa, diga-se assim, do pseudo Luís XVI (...), bem como dos pseudos bascos e normandos de preferência de certas firmas construtoras idôneas. (...) Foi contra essa feira de cenários arquitetônicos improvisados que se pretendeu invocar o artificioso revivescimento formal do nosso próprio passado, donde resultou mais um ‘pseudo’ estilo, o neocolonial (...). Um dos disseminadores do estilo neocolonial, representando um dos estilos históricos no Rio de Janeiro foi o arquiteto José Marianno Filho, antigo diretor da Escola Nacional de Belas-Artes e um dos defensores mais ativos da arquitetura neocolonial no Brasil. Tendo construído uma luxuo-sa mansão neocolonial no Jardim Botânico, denominada de Solar Monjope, realizou para isso uma verdadeira arqueologia arquitetônica, com a importação de peças autênticas da Europa e de azulejos italianos do século dezoito em estilo colonial. O conceito de neocolonialismo pode ser definido como “o domínio que um país exerce sobre o outro menos desenvolvido, não por sistema ou orientação po-lítica, mas pela influência econômica e/ou cultural” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p. 1188). A arquitetura colonial brasileira de influência portuguesa que assumiu maior expressividade estética foi aquela das cidades históricas mineiras, entre as quais se destaca Ouro Preto. A ação colo-nizadora lusitana procurou ali reproduzir sua tradição nacional através da sensibilidade artística da arquitetura, de acordo com a seguinte orientação ultramarina:

(...) Se na Arquitetura portuguesa se encontram muitas sugestões de países distantes, também os lugares onde os portugueses se fixaram ou por onde passaram, estão colonizados com as formas arquitetôni-cas que o seu espírito modelou (...). E essas relíquias, na sua mudez das coisas inanimadas falam uma linguagem vernácula que a nossa alma entende porque exprime essa alma coletiva que se transmite de geração para geração. (Batalha: 1950, p. 8 e 17). Para Marianno Filho (1943, p. 121/122), o século áureo da arte nacional foi exatamente o século dezoito, no qual Ouro Preto pontifica como representando a cidade brasileira mais expressiva, “não só pela opulência de sua arquitetura como pela unidade de sentimento artístico dominante”. Para esse teórico da arquitetura colonial, o século dezenove constituiu “o século da negação artística à obra do passado, (em que) Ouro Preto foi aviltada com sucessivos ataques ao seu patrimônio de arte”. Defendendo a arte do passado – já que, para ele, “a nação deveria cumprir a tarefa de resguar-dar carinhosamente os remanescentes da grande arte legada pelos nossos avós, representativa das condições sociais do país, em épocas anteriores” – colocou-se frontalmente contra os arranha-céus preconizados pela arquitetura modernista, afirmando que “qualquer movimento colonial representa um esforço muito maior, do que as arapucas de cimento armado, diante das quais, nos extasiamos”. A arquitetura colonial, para Marianno Filho (1943, p. 59/60 e 103), representava um fator de nacionalização, devido ao seu caráter clássico ou tradicional. A essa forma de construir se opunha o estilo modernista, denominado por ele de estilo caixa d’água, que tinha “a função de investir contra o passado, destruindo-lhe as pegadas luminosas”. Segundo esse autor, “o homem moderno não mora, transita. É por isso que o tal estilo arquitetônico futurista é absolutamente intransitável”. O ataque à arte colonial, levado a cabo pela Escola Nacional de Belas-Artes, sob a direção do arquiteto modernis-ta Lúcio Costa em 1931, foi assim comentado por Marianno Filho (1943, p. 59/60): (...) Derrubem-se sem demora os velhos templos, e os velhos edifícios solarengos que recordam o português nefando.(...). De sorte que nós, brasileiros que durante quatro séculos e meio trabalhamos insensivelmente nos velhos moldes arquitetônicos peninsulares (...) devemos sem mais aquela (...) abandonar as praxes tradicionais que a experiência do povo sagrou, para adotar a arquitetura celebrina (...). As acusações de Marianno Filho contra Lúcio Costa se fundamentavam no fato deste último ter sido um “antigo paladino da coluna tradicionalista”, que mudou subitamente de orientação artís-tica, aderindo ao modernismo. Para Marianno Filho (1943, p. 145), “O estilo colonial foi para Lúcio Costa o elemento pictórico próprio a seus devaneios. Esgotada a sua faculdade criadora em torno dos pobres temas coloniais, o decorador passou a explorar as linhas geométricas do cimento armado com a mesma habilidade insincera com que tratara os miseráveis motivos brasileiros de Diamantina”. É interessante observar que o projeto original do Castelo de Itaipava, com estilo neogótico/normando clássico, foi realizado em 1920 pelo arquiteto Fernando Valentim (1900-1969) – filho do construtor do célebre Castelo Valentim de Santa Tereza, no Rio de Janeiro – contando com a estreita colaboração de Lúcio Costa em sua concepção arquitetônica, o qual havia recentemente concluído o curso de graduação em arquitetura pela Escola Nacional de Belas-Artes. Essa incursão de Lúcio Costa pela arquitetura gótica romântica do século treze foi anterior, portanto, à sua adesão ao estilo neocolonial, precedendo cerca de uma década sua inserção no movimento modernista das décadas de 1930-1940. Para Marianno Filho (1943, p. 48 e 122), a arquitetura modernista consistia em “caixas bre-vetadas pelos judeus franceses” ou em “pijamas de cimento preconizados pelos judeus sem pátria”, refletindo uma ideologia política conservadora vigente nas primeiras décadas do século passado, que acusava a arte moderna de se haver inspirado em tendências judaicas e comunistas. O arquiteto francês Le Corbusier, responsável pelo esboço original do prédio do MES (Ministério da Educação

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e Saúde), que foi posteriormente desenvolvido nas décadas de 1930 e 1940 por uma equipe brasileira na qual se destacaram Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, foi assim acusado por Marianno Filho (1943, p. 60/70 e 153/154, grifos nossos), de ser judeu e comunista: Definida de modo inesperado a simpatia do Ministro Capanema pela arquitetura ‘funcional’ (...) não foi difícil ao arquiteto Lucio Costa (...) convencê-lo de que o prédio do Ministério deveria ex-pressar-se de acordo às ideias do judeu Le Corbusier (...), que é derrotista universal, por conseguinte, comunista do melhor estofo, realizando o seu plano demolidor, tentou arrasar a tradição dos povos. Ideou uma arquitetura berrante de todo e qualquer sentimento de nacionalidade (...).) Pode-se indagar, então, se o estilo neogótico escolhido para edificar o Castelo de Itaipava na década de 1920, não expressou igualmente, de forma simbólica, aqueles valores ideológicos conser-vadores acima defendidos por Marianno Filho. Enquanto o modernismo tomava forma e se afirma-va como estilo arquitetônico oficial nas décadas de 1930 a 1940, o ecletismo parecia querer com ele competir em pé de igualdade, contando para isso com vários ideólogos. No caso do estilo gótico-nor-mando do Castelo de Itaipava, ao ideal de “futurista, judaico e comunista” da arquitetura moderna se contrapunha, então, um estilo “tradicional, ariano e cristão” representado pelo neogótico, expressando os valores arquitetônicos, dessa forma, a tensão social existente entre forças conservadoras (ou mesmo de extrema direita, do ponto de vista político), e forças modernizadoras (identificadas, no caso dos arquitetos modernos brasileiros, com um ideal social-democrático ou mesmo socialista e comunista). Anteriormente à construção do seu Castelo de Itaipava, seu dono mandara erigir, em 1915, um castelo situado na Avenida Atlântica, no número 2.788. Tal palacete externamente se parecia com um castelo, devido à sua alta torre com 35 metros de altura, igual à de um edifício de dez andares, sendo que nessa torre se encontravam várias reproduções esculpidas da cara de um leão. Na época de sua construção, o palacete custou 75 contos de réis, tendo sido sua porta principal e as laterais revestidas de cristal bisotado e contando com três pavimentos, que abrigavam, respectivamente: no primeiro pavimento situam-se as partes social e de serviço da casa (composta por um salão, biblioteca, duas salas e cozinhas); no segundo andar ficava a parte íntima ou os dormitórios e o andar de baixo contava com dependências de empregados e um grande porão. Tal castelo eclético, com influências do estilo mourisco, abrigava a família Smith de Vasconcellos durante uma parte do ano, enquanto em outros períodos o Barão e seus familiares se deslocavam para o Cas-telo de Itaipava, principalmente na época do verão carioca. Esse palacete refletia o hábito chique da elite da época da República de morar em Copacabana, significando, ainda de acordo com Marianno Filho (1943, p. 26, 89 e 110), um exemplo dos “teatrinhos (com janelinhas góticas) onde residem os nouveaux-riches e fidalgos de papelão da Avenida Atlântica, (...), que compram brasões ao Papa, por intermediário do vigário da zona”. No caso do estilo neogótico e normando-saxão do Castelo de Itaipava, tal tipo de edificação expressava tanto o ideal branco e eu-ropeu de seu dono – representado por uma arquitetura de inspiração nórdica ou germânica – quanto à ideologia britânica da modernização conservadora partilhada por certos estratos da elite do início do século passado. O fascínio exercido pela cultura inglesa sobre o Barão Smith Vasconcellos, bem como sobre outros intelectuais e letrados de segmentos da elite carioca e fluminense da época, poderia ser jus-tificado pela coexistência pacífica, em terras anglo-saxônicas, de um verdadeiro avanço tecnológico representado pela revolução industrial, ao lado de um governo conservador forte ali existente. As construções em pedras cortadas, com estruturas de concreto com fossos, pontes levadiças e seteiras para impedir a aproximação de indivíduos indesejados, com torres, coberturas de ardósia e mármore de Carrara nos pisos e com fachadas em estilo normando, Tudor e Windsor expressam, assim, a esco-

lha de um modelo inglês para a construção de nossos castelos tropicais. O porquê da eleição de uma arquitetura de fortalezas medievais inglesas como modelo cons-trutivo para os castelos tropicais, justifica-se, na medida em que ocorreu uma real influência do ima-ginário inglês no Brasil, desde o começo do século dezenove. Nosso modelo de modernização tecno-lógica foi primordialmente o produto da revolução industrial britânica. Um dos ancestrais do próprio construtor do Castelo de Itaipava, o 1º Barão de Vasconcellos, chegou a estabelecer em 1852, em Liverpool, Inglaterra, a Casa Matriz de seus negócios de importação e exportação para o Brasil, sob a razão social de Vasconcellos, Ridgway & Co. A fortaleza anglo-saxônica de Itaipava, com seu orgulho gótico e germânico, ergue-se assim, impávida, como um estandarte simbólico de ordem hierárquica e aristocrática de segmentos da elite das primeiras décadas do século, marcando – com sua arquitetura medieval e romântica – a ideologia política conservadora, os privilégios de classe e o poderio econô-mico da família Smith de Vasconcellos.

Conclusão: Quem quer ser nobre no Brasil de hoje? (Foto 3)

Indaga-se aqui “Quem Quer Ser Nobre no Brasil de Hoje?”. Partindo da análise do ecletismo estético para desembocar na hierarquização racial europeia e na negação do sangue negro e mestiço por segmentos de nossa elite, a análise da arquitetura eclética da década de 1920, responsável pelo

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projeto da dupla Valentim-Costa e pela edificação do Castelo de Itaipava, revela valiosos aspectos ideológicos de segmentos da elite carioca e fluminense desse período. Ideologia essa que é caracteri-zada por conceitos (e preconceitos) raciais, de classe, políticos e estéticos, muitos deles vigentes até a atualidade em nível do senso comum. O ethos e a visão de mundo de segmentos da elite das primeiras décadas do século vinte foram, portanto, por nós investigados tendo exatamente como ponto de par-tida a simbologia arquitetônica detectada no Castelo de Itaipava, tema de nossa dissertação de mes-trado. Sob essa ótica, procuramos perceber a arquitetura de época como sendo representativa de uma parcela da aristocracia brasileira, principalmente no que se refere a uma ideologia de classe inerente a uma nobreza com poucas tradições culturais, herdeira daqueles nobres lusitanos representados pelos burgueses enriquecidos, nobreza essa que se contrapõe assim à velha aristocracia responsável pela formação da nacionalidade portuguesa. O acesso ao poder e ao prestígio desse novo grupo aristocrático, representado principalmen-te por comerciantes de origem sociocultural humilde, que logram penetrar na nobreza de Portugal através de seu poder econômico elevado, pode ser exemplificado pelo 1º Barão, José Smith de Vascon-cellos, português que se dedica à carreira comercial como importador e exportador de produtos para a Inglaterra. Tendo instalado Casas Matrizes de seus negócios tanto em Fortaleza quanto em Liver-pool, esse Barão ilustra bem um caso típico da obtenção de um título nobiliárquico, em 1869, como forma de pagamento à prestação de seus serviços sociais à Casa Real lusitana. Ainda por decreto real de 1874 de D. Luiz I, é concedida a Rodolpho Smith de Vasconcellos uma segunda vida no título dado anteriormente dado a seu pai, o qual se torna então o 2º Barão de Vasconcellos. O próprio dono do Castelo de Itaipava descende de uma dinastia comercial, tendo seus an-cestrais obtido títulos de nobreza por obras de benemerência devidas à Casa Imperial lusitana desde a segunda metade do século dezenove. Uma segunda hipótese da presente pesquisa gira em torno, portanto, do modelo de nobreza e de restauração monárquica valorizado por elementos da elite ca-rioca e fluminense da época da República Velha. Nos anos 1920, como demonstra Silva (1986), os monarquistas ou saudosistas platônicos se alinharam aos republicanos desiludidos com a República oligárquica e com os republicanos preteridos pelo poder no governo de Artur Bernardes, para organi-zar as comemorações do centenário do nascimento de D. Pedro II, revelando a crise por que passava então a instituição republicana. O grupo partidário da restauração monárquica do início do século pode ser indicado pelo 2º e 3º Barões de Vasconcellos, representantes de uma linhagem nobiliárquica em moldes brasileiros, cuja ascendência nobre se dá via seus ancestrais femininos. O movimento de restauração monárquica das primeiras décadas do século passado pode ser aproximado historicamente da situação política brasileira gerada pela discussão suscitada em torno do plebiscito de 1993 que pretendia decidir entre República e Monarquia Constitucional, bem como entre presidencialismo e parlamentarismo. Nossa segunda hipótese reside, assim, na indagação sobre se o ideal aristocrático e monárqui-co de certos estratos da elite das primeiras décadas do século vinte subsiste até a pós-modernidade, procurando perceber sua permanência no tempo e revelando quem, e por que motivo, ainda quer ser nobre no Brasil de hoje. Uma terceira e última hipótese deste artigo se baseia na possível articulação entre o modelo aristocrático e monárquico da elite do início do século passado e o arianismo difun-dido no Brasil a partir do século dezenove. A difusão desse arianismo aplicado, no caso da realidade racial brasileira, juntamente com teorias pseudocientíficas como o darwinismo-social, é o atual responsável pela ideologia do branque-amento do nosso sangue negro e mestiço, através do cruzamento do brasileiro com o branco europeu. Através da difusão da ideologia da seleção social sugerida por Vacher de Lapourge – que pensa o

negro como sendo inferior cultural e racialmente, não tendo, portanto, condições de competir econo-micamente dentro de uma sociedade civilizada – a injeção de sangue europeu dos imigrantes tem a função principal de aumentar o percentual de brancos no país. A aplicação em nosso país desse conceito de seleção social deriva do fato de se acreditar que o negro do sexo masculino apresenta uma inclinação natural para se casar com mulheres mais claras o que, ao longo do tempo faria com que a raça negra fosse desaparecendo ao dar lugar a mulatos mais claros, que por sua vez se uniriam a cônjuges de origem europeia. Dessa forma, é idealizada no Bra-sil do início do século passado a teoria da seleção sexual, que prevê que o sangue negro irá sumindo gradativamente, por ser inferior, ao entrar em contato com o sangue branco dos colonos europeus, vistos como “efervescentes em matéria de trabalho, progresso e civilização” (Azevedo: 1987, p.63). Comungando com essa crença de eugenia do sangue do branco europeu, o construtor do Castelo de Itaipava acabou se identificando com a ideologia do branqueamento do sangue negro que preponde-rava no país nas primeiras décadas do século vinte, tendo atualizado uma postura racista partilhada por segmentos da elite daquela época. Esta última hipótese nos sugere uma apreciação crítica sobre a sociedade brasileira atual, no que se refere às relações raciais e à existência de uma vertente hierárquica presente no bojo da socieda-de mais ampla. Através do estudo de caso do Barão Smith de Vasconcellos, podemos perceber vários nuances de nossa verdadeira face como país, no qual o mito das três raças e o racismo à brasileira (cf. Da Matta:1981) continuam a ser cotidianamente atualizados pelo senso comum, e no qual uma pos-tura aristocrática prepondera entre segmentos significativos das classes superiores da população. Tal postura de cunho de hierarquizante leva-nos, finalmente, a interpretar o enclausuramento estético e arquitetônico dos construtores de fortalezas medievais neogóticas como uma resposta tradicionalista às revoluções de cunho popular que proliferam no decorrer do século vinte em nível mundial, bem como às mudanças culturais e políticas ocorridas no Brasil desde os anos 1990 até a atualidade, desa-guando na era Dilma-Temer de protestos e manifestações de massa insuflados por redes sociais.

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84 85Poéticas Visuais , Bauru, v. 8, n. 1 Poéticas Visuais , Bauru, v 8, n. 1, p. 68-85, 2017 , p. 68-85, 2017.

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Notas de rodapé1.O ecletismo na arquitetura deriva do método filosófico ”que consiste em reunir teses de sistemas diversos, ora simplesmente justapondo-os, ora chegando a uni-los em uma unidade superior, nova e criadora” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, p.616)O estilo eclético admite uma justaposição de tendências arquitetônicas de caráter histórico, afirmadas no século dezenove na Europa pelos precedentes estilísticos do romântico-me-dieval e do clássico-renascença. Tal influência do gosto europeu foi aqui disseminada a partir das primeiras décadas do século vinte, com a proliferação de construções neoclássicas e neogóticas na arquitetura fluminense.2.De acordo com a conceituação de Lévi-Strauss, o bricolage exemplifica o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur é aquele que pode operar com materiais fragmentários já elaborados, afastando-se das normas adotadas pela técnica.3. A preservação da ordem senhorial imperial no Brasil se encontra relacionada ao preconceito de cor (Bastide e Fernandes: 1975, p. 369), derivando de um princípio de integridade social do Império Português que vincula o grau de nobreza ao fato de se possuir “limpo sangue” isento de “toda a raça de mácula de Judeu ou qualquer mácula” (cf. Frei Gaspar in Genealogia Paulista de Silva Leme: 1903-1905 apud Bastide e Fernandes, in op. cit.). .4.No sentido empregado por Foucault (1977).5. Na concepção de Faoro (1984), “O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do Chefe, junto à casa real. (...) O caminho burocrático do estamento, não desfigura a realidade fundamental, impenetrável ás mudanças. (...) Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. (...) O conteúdo do Estado molda a fisionomia do Chefe de Governo. O rei, o imperador, o presidente não desempenham apenas o papel do primeiro magistrado, comandante do estado-maior de domínio. O chefe governa o estamento e a máquina que regula as relações sociais, a ela vinculadas” (p.736 a 739 – 2º volume, grifos nossos).6. A Proclamação da República e a Abolição da Escravatura constituíram marcos históricos em relação às hierarquias sociais do Império. Tais hierar-quias, de cunho aristocrático, foram abaladas nesse período, ocasionando uma revisão das doutrinas raciais existentes (cf. Skidmore: 1976). Na crise nacional que se seguiu, o racismo emergiu como uma ideologia que resolveu, em dois níveis, a ameaça imposta à estrutura social e econômica do país com a libertação dos escravos. Em um desses níveis, o racismo cumpriu o papel de mantenedor da ordem vigente, libertando juridicamente o escravo, porém sem libertá-lo social e culturalmente. No segundo nível, o racismo deu conta de um projeto nacional cultural para o Brasil, permitindo-nos visualizar nosso país como algo singular. (cf. Da Matta: 1981).7.A este respeito, ver Da Matta (1981) e Ortiz (1985) sobre a “fábula ou mito das três raças”.8. No dizer de Fernandes (1978).9. Tal denominação do escritor Machado de Assis é assim feira por Freyre (1948, p. XVI): “O que não significa, de minha parte, adesão absurda a um caboclismo intelectual ou artístico de tal modo sectário que nos impedisse, aos brasileiros, 10. de receber, assimilar, adotar, desenvolver, recriar, abrasileirar, estrangeirices. (...) O que é certo dos, dentre eles, acusados de terem se anglicizado como Machado – por alguns chamado ‘mulato inglês’;(...); ou um simples imitador do americano Cooper, no seu indianismo: acusação feita ao tão brasileiro José de Alencar, glorificador, quer de Iracema de pés selvagemente nus quer de sinhazinhas morenas da Corte de D. Pedro II”. O construtor do Castelo de Itai-pava chegou a ser amigo íntimo de Machado, a quem alugou uma casa de sua propriedade nas Águas Férreas por preço simbólico, devido à sua grande admiração por esse mulato inglês referido por Freyre.

Recebido em 1o. de dezembro de 2017. Aprovado para publicação em 18 de dezembro de 2017.

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Introdução. Net-ativismo e a teoria da comunicação

Os próximos dois fragmentos de Massimo Di Felice mostram uma imagem complexa do net-a-tivismo e das interações em redes digitais, entendidas não como fenômenos apenas políticos ou social mas sim como parte qualitativa de uma mais estendida ideia de comunicação:

O ato conectivo se configura, assim, como a expressão de uma forma comunicativa do habitar instável e emergente que se reestabelece continuamente, através da intermitência da prática conectiva das interações entre os diversos actantes, as características e as dimensões da condição habitativa [Di Felice 2009, 33]. Emerge, assim, uma ecologia interativa composta por um conjunto de ecossistemas interativos e abertos que não podem mais ser pensados como um sistema ou um conjunto holístico coerente, mas como uma sucessão intermitente de variados níveis de agragação e de desagregação. Os ecossitemas reticulares, através da geração de reagrupamentos instáveis e não duradouros, produzem a contínua redefinição de todo “actante” (humano e não humano) e da sua condição ecológico-interativa, por meio do distanciamento do seu nível de equilíbrio provocado pelo todo das interações conectivas [Di Felice 2009, 34-35]. Medium e meio ambiente, sincronia e atualização, imagem e observador, configuração e for-ma, dependência e vício, apresentam-se como os elementos de um habitar não social. Estas interpo-lações linguísticas e conceituais constituem um retículo que visa tornar operativa uma interpretação dos processos comunicativos, que se situa além de qualquer dicotomia entre sujeito e objeto, entre na-tureza e cultura, recuperando e atualizando, ao contrário, uma tradição de estudos desde as primeiras formulações românticas sobre a forma até aquelas explêndidas intuições de Heidegger sobre o habitar e a a teoria mediológica de Simmel, Benjamin e McLuhan. Um nó temático e reflexivo, este de Di Fe-lice, essencial e decisivo, do qual é possível extrapolar e articular três princípios e três imagens chaves que, juntas, contribuem para o retículo terminológico proposto para o estudo das interações nas redes digitias. À luz de tais considerações podemos indicar três principios orientadores para o estudo das redes digitais, que será o assunto das páginas seguintes: a) o principio de forma. Esse conceito indica a complementaridade entre sujeito e objeto, entre meio e natureza, com uma aproximação progressiva para a consideração do meio como um ambiente comunicativo total; a proximidade que se estabelece nos processos de conhecimento entre observador e matéria, até que eles não consigam distinguir en-tre o objeto e o ponto de observação, mas sim dando prioridade à ideia de “recíproca estratificação”. Aqui contaria com a proposta de Ciro Marcondes Filho, o quase método, metáporo (me-ta+poros), em que a pesquisa exige do pesquisador uma perene recomposição dos procedimentos, abertura ao outro, aquilo que está sempre em movimento e nos escapa em continuação; a prevalência do percurso, do fragmento, das imagens e da constelação, na interpretação de processos comunicati-vos, em uma oposição clara e firme à respeito aos processos de aplicação e ao conceito de sistema; b) o conceito de temporalidade. Esse conceito indica uma visão particular da inovação como um agente pelo qual se determina pelo salto e pela descontinuidade uma nova configuração da vida, uma forma de habitar estendido ao plano material até o psicológico (estilo de vida, percepção, opinião, sentidos); o desdobrar de uma temporalidade quase instantâneo no qual ocorrem, mais uma vez por salto, as reatualizações entre presente e pedaços do passado em uma relação que inclui e se esgota o sentido último das inovações comunicativas. Em outras palavras, o tempo e a forma da inovação possuem um

Figuras das redes: forma, temporalidade e dependência1

Figures of Networks: form, temporality and dependency

Antonio Rafele*

* Doutor em Sociologia, pesquisador do Centro de Pesquisa Internacional ATOPOS, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, SP, e do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano, CEAQ, Universidade Paris Descartes La Sorbonne, Paris França. Entre suas publicações, destacam-se: Representations of Fashion. The metropolis and mediological reflection between the nineteenth and the twentieth centuries (San Diego University Press, 2013).

Resumo Medium e meio ambiente, sincronia e atualização, imagem e observador, configuração e forma, dependência e vício, apresen-tam-se como os elementos de um habitar não social. Estas interpolações linguísticas e conceituais constituem um retículo que visa tornar operativa uma interpretação dos processos comunicativos, que se situa além de qualquer dicotomia entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, recuperando e atualizando, ao contrário, uma tradição de estudos desde as primeiras formu-lações românticas sobre a forma até aquelas explêndidas intuições de Heidegger sobre o habitar e a a teoria mediológica de Simmel, Benjamin e McLuhan. Um nó temático e reflexivo, este de Di Felice, essencial e decisivo, do qual é possível extrapolar e articular três princípios e três imagens chaves que, juntas, contribuem para o retículo terminológico proposto para o estudo das interações nas redes digitais.

Palavras chave: medium; redes digitais; forma; temporalidade.

AbstractMedium and environment, synchronization and updating, image and observer, configuration and form, addiction and addic-tion, present themselves as the elements of a non-social dwelling. These linguistic and conceptual interpolations are a reticle that aims to render an interpretation of the communicative processes operative, which lies beyond any dichotomy between subject and object, between nature and culture, recovering and updating, on the contrary, a tradition of studies since the first formulations Romantic views on the way up to Heidegger’s splendid intuitions about dwelling and the mediological theory of Simmel, Benjamin, and McLuhan. A critical and thematic node, this one by Di Felice, essential and decisive, from which it is possible to extrapolate and articulate three key principles and three key images that together contribute to the proposed terminological grid for the study of interactions in digital networks.

Keywords: medium; digital networks; form; temporality

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alto poder de transfiguração; c) o conceito de dependência. Este tercerio conceito indica as ligações profundas entre o conceito do habitar e aqueles dos vícios e hábitos, fazendo, portanto, prevalecer a concreta e recíproca estratificação, para além de qualquer distinção, entre o humano e a natureza, humano e não-humano.

1. Forma e medium

O estudo das relações entre tecnologia e inovação permite a recuperação de um corpus consti-tuído pelas obras de Georg Simmel, Walter Benjamin e Marshall McLuhan. Esta tradição é caracteri-zada por uma matriz epistemológica comum, ou pela coincidência entre método e análises específicas, que rende um unicum originário e incindível entre tecnologia e formas da experiência. Articulam-se a esse propósito três excertos significativos As Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903), A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935) e Os meios de comunicação como extensões do homem (1964):

A metrópole volta a uma das maiores tendências de desenvolvimento da vida social como tal, a uma das poucas tendências para as quais pode ser descoberta uma fórmula aproximadamente universal. A função da metrópole é de fornecer um espaço para a criação, o contraste e as tentativas de conciliação entre as diversas tendências. [Simmel 2009, 1, 18].

No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percep-ção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado natural, mas também historicamen-te. [Benjamin 2014, 49]. Não é talvez evidente que não apenas a sequência dá lugar a simultaneidade, se entra no mun-do da estrutura e da configuração? [...] Isso não era de todo óbvio antes da velocidade elétrica e do cam-po total. Parecia então que a mensagem fosse o “conteúdo” e as pessoas costumavam a se perguntar o que significava representar um quadro, mesmo se não colocava esta pergunta a propósito de uma melodia, uma casa ou de um vestido, uma vez que para estas coisas se conservava um certo sentido do esquema geral, ou seja, a unidade entre forma e função [McLuhan 1996, 20]. De acordo com tais perspectivas, a tecnologia não é um setor específico da vida social, mas o lugar no interior do qual nasce, advém e articulam-se as diferentes potencialidades da história. Entre sujeito e objeto não se estabelece uma relação funcional ou hierárquica, mas uma coincidência: à metrópole devem-se as principais tendências psicológicas, sociais e políticas do século XIX (intelecto, produção, consumo, distração, moda, cultura objetiva e subjetiva, identidade, estilo de vida, grupos sociais restritos e alargados) e enquanto à eletricidade devem-se serem reconduzidos os traços domi-nantes do presente (próteses, hábitos e vícios, fluxos, efêmero e globalidade). Em Benjamin, Simmel e McLuhan o conceito de medium revela, por um lado, a estreita de-pendência que existe entre o plano da reflexão teórica e aquela da análise direta dos objetos, entre teo-ria e técnica, do outro, a imagem da expereincia como repentina manifestação de subjeto e objeto. Por este plano de observação a inovação tecnologia assume uma relevância essencial: ao novo medium corespondem ulteriores formas de vida e, ao mesmo tempo, as imagens do observador. A partir da experiência da metrópole, da moda e da fotografia, aqui unidas como vetores de uma extraordinária aceleração do tempo, que rompe a duração e a estabilidade das coisas, até o ponto de constituir um

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único bloco temporal do observador, se ganha um ponto de vista sobre a natureza fragmentária do vivido, que esse trecho de McLuhan tornam evidentes:A experiência não permite inferir a priori, mas ocorre naquelas formas que nelas produzem uma exposição atual. Os pontos fortes, os detalhes e as minúcias, as variações e as nuances, da experiência residem em similares configurações, que têm e mostram em uma única tensão formal todos os as-pectos do vivido. Adentrando-se, em seguida, à desconstrução das linhas de força que contradizem um dado medium, o observador adquire uma distância tal capaz de adquirir uma imagem completa, embora provisória, dos processos pelos quais é atravessado. Como Understanding media, nas sec-ções dedicadas à moda ou à fotografia, ou ainda à televisão, assim, em Metropóles de Simmel e em Passagens de Benjamin, o leitor visualiza uma tensão entre o observador e o medium, que se confi-gura como o momento originário do conhecimento. Nestas representações, que não possuem uma tensão classificatória, mas a forma de uma constelação orgânica do observador, o leitor se adentra na matéria, sem nunca ser capaz de distinguir as imagens históricas daquelas do pensamento. Na linguagem ou na escrita, as ideias e os fenômenos formam um único movimento, e chegam a uma exposição “aberta” para o leitor. Somente dentro deste caminho, detalhado e fragmentário, em que partes individuais mostram ao máximo grau a matéria e se co-penetram a posteriori, é dado para o observador alcançar uma imagem completa pela reflexão. O leitor agarra em um instante aquele emaranhado de problemas, e por identificação reconhece, mas sob uma outra luz, os momentos da experiência vivida. Em particular, sobre o plano da análise, o presente é uma nova e irredutível curva da história que recupera, para uso próprio e consumo, algumas partes de um passado que entende como útil, necessário ou próximo. Mais do que cronológica, e em perfeita analogia com a Moda, a vizinhança é uma proximidade estilística. Por exemplo, na televisão convivem elementos que lhe são inerentes (transmissão ao vivo, núcleo doméstico) e elementos subtraídos a outros âmbitos da vida contempo-rânea; não os engloba de forma linear, preferindo decompô-los e recompô-los segundo as próprias exigências: as séries televisivas são uma outra coisa relativamente aos filmes projetados no cinema, os telejornais uma remota citação da imprensa. Os discursos políticos, à semelhança daqueles cientí-ficos, interiorizam a encenação espetacular até se transformarem em discursos publicitários, a proje-ção “ao vivo” dos eventos desportivos modifica o próprio modo de se praticar e conceber o desporto. As formas da história não são autónomas entre si, mas estão sujeitas a reconfigurações im-previstas. De facto, o aparecimento de um novo evento pode incidir com profundidade, reconfigu-rando o sistema ou uma parte dessa. O cinema, com a chegada da televisão, encontra-se diante de uma bifurcação: explorar outras dimensões expressivas ou limitar-se a uma produção funcional ao público televisivo. Um processo análogo é o da tentativa por parte da televisão (mas também do ci-nema) em seguir as narrações dos videojogos e as modalidades comunicativas das redes (veja-se a diversificação da televisão através dos inúmeros canais de satélite). A novidade, ao surgir, é uma nova e ulterior fantasmagoria que alimenta desejos, expectativas e potencialidades expressivas totalmente específicas, e que as formas já existentes não são capazes de satisfazer. O inexorável avanço do novo, a sua vida quotidiana, a sua ramificação, transforma automaticamente em ruínas as formas anteriores, obrigando-as a uma competição que comporta ou uma marginalização das mesmas ou um esgota-mento das suas potencialidades expressivas. Sob o ponto de vista social, o indivíduo, e eventualmente a coletividade, vivem a novidade na forma anfíbia do desejo e do medo, na qual o desejo reflete a vontade de se libertar na inovação à procura de novos prazeres e sensações, enquanto o medo surge ligado às ânsias e angústias pelas mudanças que o medium determina ou determinará quanto aos equilíbrios existentes. Medo e desejo

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caracterizam a fase inicial de interiorização; são uma espécie de propriedades ou figuras que o “eu” usa para nomear o exterior. A fase seguinte é a da dependência quotidiana: o corpo social entra no medium, entorpece-se, adquire desse ritmos e potencialidades, construtivas ou destru-tivas quais sejam, até aceitá-lo e saturá-lo. Ao nascimento de um novo medium corresponde, na consciência, a multiplicação de imagens ideais, nas quais o indivíduo e a coletividade tentam não só eliminar a imperfeição do produto bem como os defeitos do sistema social. Ao lado disso, nestas imagens de desejo vem à tona a vontade expressa de distancia-se daquilo que se tornou antiquado – isso significa, do passado mais recente. Estas tendências reme-tem a fantasia imagética, impulsionada pelo novo, de volta ao passado mais remoto. No sonho, em que diante dos olhos de cada época surge em imagens a época seguinte, esta aparece associada a elementos da história primeva, ou seja, de uma sociedade sem classes. As experiências desta sociedade, que têm seu depósito no inconsciente do coletivo, geram, em interação com o novo, a utopia que deixou seu rastro em mil configurações da vida, das construções duradouras até as modas passageiras [Benjamin 2007, 41]. Inicialmente a novidade aparece-nos como um angelus novus, uma circunstância prestes a transformar-se em ato ou prática quotidiana porém ainda informe, ao estado nascente e em po-tência. Nesta fase, o novo assume uma face paradoxal e dupla: por um lado mostra-se um reflexo ou uma derivação do velho (nas suas primeiras manifestações a fotografia faz vir à memória a pintura, o cinema, a literatura, as metrópoles, a pequena cidade, as redes, a televisão); por outro lado alimenta desejos e expetativas, potencialidades políticas e sociais que exigem ser totalmente implantadas, destruindo, se para tal for necessário, os laços e as cesuras colocadas pelo sistema na tentativa de controlar a sua expansão . Paralelamente é criado, sob o plano imaginário, uma lacuna entre “presente” e “passado próximo”; lacuna que absorve e alimenta a necessidade, pró-pria de todas as gerações, de se distanciar da época imediatamente precedente: “Cada geração vivencia a moda da geração imediatamente anterior como o mais radical dos antiafrodisíacos que se pode imaginar. A fim de impor a sua diferença e originalidade, o novo elabora uma série de discursos que remetem a fantasia, individual e coletiva, para um passado antiquíssimo, ao sonho em que a sociedade reaparece na sua forma originária, despida de qualquer vínculo social, divisão em classes ou atores sociais. Trata-se de discursos que representam o homem num estado idíli-co, pleno de humanidade, porém abstrato e de todo descontextualizado. Provisórias suspensões da vivência e dos equilíbrios sociais a que correspondem sensações ou ilusões de que a própria necessidade dos equilíbrios possa ser definitivamente superada. Na verdade, as utopias estão ape-nas aparentemente desprendidas do presente mas, na realidade, são um prolongamento senão mesmo uma arma. O último objetivo desse não é tanto a realização do projeto quanto o aper-feiçoamento das novidades: “dar um aspeto mais humano às máquinas”. As utopias pertencem a uma fase dormente ou subconsciente, perduram até à definitiva entrada do novo no dia-a-dia de cada um. A novidade passa de potencialidade a ato e transforma-se numa “máquina operativa”, capaz de integrar os objetivos originários e as exigências de humanidade originadas in itinere. É criada aquela condição, provisória mas repetida ao longo do tempo, segundo a qual a coletivida-de, ou parte dessa, vivencia a chegada da novidade num estado dormente e alucinatório até à sua definitiva afirmação social. A transformação do mito em habitus, da força cega e pulsional em circunstância clara, delineada e indissolúvel do agir, vê a simultânea redefinição das funções, dos valores e dos poderes de diferentes atores sociais.

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“O que torna as primeiras fotografias tão incomparáveis talvez seja isto: elas representam a primeira imagem do encontro entre a máquina e o homem [Benjamin 2007, 720]”.

Ao apresentar-se como primeiro medium, a fotografia realiza cenários, situações, práticas e crenças diretamente proporcionais com as capacidades técnico-expressivas de que dispõe. Cria, de igual modo, um desvio relativamente ao modelo renascentista de fruição ligado, por sua vez, quer às distinções entre cultura alta e cultura baixa, quer à conceção da obra como experiência de sentido, cujas duração e existência iam muito para além do fruidor. Com a fotografia é o próprio medium que ativa conteúdos e organizações sensoriais, e fá-lo não no papel de instrumento de ideias ou desejos extrínsecos, mas em virtude das suas próprias potencialidades. Se por um lado o medium gera costumes que o eu metaboliza e repete, por outro a sua duração coincide com aquela do seu próprio consumo. O fruidor torna-se numa articulação orgânica do medium, pois é só atra-vés da receção e do uso que ele existe ou vive. Como nova criação ab nihilo, do nada, a fotografia possui a característica de isolar cada fragmento no tempo, e de isolar não apenas as coisas mas também as pessoas com uma espécie de olhar distante e omnicompreensivo, quase em posição de superioridade. Ao cristalizar momentos pontuais, a fotografia distingue-se da escultura clássica, que, por sua vez, almejava a duração e a atemporalidade. Cada instante imortalizado pela foto-grafia passa automaticamente a pertencer ao passado ou revela-se como morto; por isso, quem se revê em imagem entra numa relação direta com uma experiência de morte, com o que já foi. Cada fotografia é representação de um instante que condensa em si um período da história do mundo e não há qualquer linearidade ou progressão entre duas fotografias mas sim uma intermitência, uma descontinuidade. A vida parece realizar-se numa sucessão de momentos imediatamente “já passados”, como se uma linha se rompesse de forma constante em pequenos segmentos, suspensos e autónomos, que fecham em si um inteiro período ou intervalo temporal. Estas modificações tra-duzem-se numa nova perceção da existência, agora entendida como sucessão de imersão e retorno: vive-se uma experiência e, quando essa se esgota, volta-se a pensar nessa através de uma espécie de visão póstuma ou retrospetiva. Imersão, emersão e atraso póstumo constituem concomitantemen-te um processo experiencial, mnemónico e cognitivo que caracteriza a relação com as coisas. À luz de um olhar para trás, as coisas do mundo serão percebidas como ilusões, hábitos, vícios que absorvem e ocupam, não somente por determinados períodos, o tempo do eu. A morte irrompe no dia-a-dia, não sob a forma de morte biológica ou experiência incomunicável e margi-nal relativamente às inúmeras distrações e vícios, mas como experiência de caducidade. As coisas mostram simultaneamente a dupla face da vitalidade e da ruína; a sensação de vitalidade anda de mãos dadas com aquela desoladora de ruína e juntas permeiam em profundeza o tempo do eu. À oposição vida/morte, que previa uma rígida demarcação entre as duas experiências – e a qual garantia a centralidade do mito da imortalidade – se sobrepõe um estado de circularidade vida-morte; nesse o valor da duração é fraco e quase nulo e a memória assume-se como a única capacidade de resistência no que toca à ação corrosiva e destruidora do tempo. Sobre o surgimento da fotografia. – A tecnologia da comunicação diminui os méritos in-formativos da pintura. Ademais, prepara-se uma nova realidade, diante da qual ninguém pode assumir a responsabilidade de uma tomada de posição pessoal. Apela-se à objetiva da câmera. A pintura, por sua vez, começa a acentuar a cor [Benjamin 2007, 721]. A fotografia mete em curto-circuito, “no presente”, a posição e o funcionamento das artes tradicionais: o pintor já não pode pintar num modo realístico ou ‘fotográfico’, enquanto o pintor

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não pode mais descrever objetos ou acontecimentos aos leitores, uma vez que esses já se en-contram informados pelas fotos, jornais, filmes e rádio. Ante o público e as tecnologias da metrópole, as artes tradicionais exasperam as próprias capacidades expressivas na constante procura de novos âmbitos, estilos ou conteúdos através dos quais possam obter uma pequena fatia de público e, assim, redefinir o lugar desse no mundo. A arte supera as suas fronteiras ao tornar-se num dispositivo comunicativo pronto para receber um novo estímulo, um novo objeto e uma nova solicitação. Já não é sistema expressivo completo e autónomo de outrora, mas produto in fieri constantemente tenso de modo a reproduzir e representar a potência e a dispersão dos fluxos quotidianos.

2. Temporalidade, representação e conhecimento

O ponto de partida da reflexão de Benjamin sobre o conhecimento é ligado ao proble-ma da representação. Identificada a oposição qualitativa que separa um discurso intencional por um pensamento que, pelo contrário, cresce circularmente ou por germinações internas, a representação configura-se como o próprio método do conhecimento, como se quisesse dizer que o estilo torna-se sentido e fundamento dos processos gnoseológicos. Altamente conotado por meio de algumas características constitutivas, como o percurso, a escrita, a imagem e o leitor, esse estilo afirma um modo de investigação bem como um campo específico de estudo, o que, em seguida, corresponde aproximadamente ao estudo dos processos de comunicação.

É próprio da literatura filosófica reencontrar-se, a cada vez, novamente de frente ao pro-blema da representação. Na sua forma sistemática realizada, essa se apresentará como doutrina, mas não entre os poderes do mero pensamento daquilo que lhe confere uma tal realização sistemática. A doutrina filosófica repousa sobre uma codificação histórica e não é possível evocá-la do nada, more geometrico […] A representação é a quintessência de seu método […] Porque nas ideias não são incorporados aos fenômenos. Geralmente, as ideias são as suas coordenações virtuais objetivas. Mas se essas não contêm os fenômenos incor-porando-os, nem se volatilizam em funções, nas leis fenomenais, em hipótese, se colocam as questões de como se alcançam os fenômenos. E a resposta será: na representação dos próprios fenômenos [Benjamin 1984, 50-51].

A dificuldade reside na impossibilidade de “duplicar” linearmente um objeto que não é adequado. Não só este pertence a um fluxo indistinto de eventos com o qual mantém uma variedade de relações escondidas, mas essenciais para fins de compreensão, tornando impos-sível, senão na condição de perder qualquer possibilidade de conhecimento, o ato de delimitar ou dissecar a priori o assunto escolhido. Mas, sobretudo, isso indica um modo de ser do Eu, e é, portanto, indissociável da própria natureza do observador. A única maneira de elevar o fenómeno a um certo grau de conhecimento, nesse contexto, é dado pelo próprio ato de re-presentar. E, evidentemente, em uma escrita, ou em um caminho reflexivo em que existam si-multaneamente a matéria e o observador, como é o caso de um espelho ou um duplo perfeito. Todos em um processo cujo ritmo coincide com um progressivo desintegrar-se da matéria até

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que ela atinja uma imagem completa.

O seu primeiro sinal característico é a renúncia a um percurso linear e sem interrup-ções. O pensamento repreende continuamente desde o início, retorna com minuciosidade a mesma coisa. Esse movimento metódico da respiração é o modo de ser da contemplação. Essa, realmente, seguindo os diversos graus de sentido na observação de um único e mesmo objeto, traz o impulso a um sempre renovado começo e justifca, ao mesmo tempo, a própria ritmica intermitente. Como nos mosaicos, a caprichosa variedade de peças individuais não afeta a ma-jestade do todo, assim a consideração filosófica não teme o fragmentar-se do impulso [...] O valor dos fragmentos únicos de pensamento é tão mais decisivo quanto menos imediata é a sua relação com o todo, e o fulgor da representação depende do valor desses fragmentos, como o brilho do mosaico depende da qualidade do vidro fundido [Benjamin 1984, 55).

Aquilo que Benjamin apresenta é uma situação comunicativa na qual o objeto coinci-de com a própria exposição. As estações individuais do percurso não se sucedem em grandes quantidades, mas mantêm, como partes de um mesmo objeto, a memória do que foi dito em outros pontos, anteriores ou posteriores. Em uma compreensão simultânea do passado e futuro, a reflexão constrói e cruza o argumento decisivo, fornecendo a impressão de que “tudo está pre-sente de uma vez”. Nenhum dos momentos, mesmo no final do percurso, é para ser considerado como perfeitamente terminado ou finalizado, uma vez que, precisamente a sua viva e constante interpenetração, tanto na escrita que retorna sobre si mesma quanto numa leitura “obrigada a parar nas estações do percurso”, indiretamente evoca o que é feito, o ícone. Essa imagem pode ser atingida a posteriori, como por sobressalto e em seguida aos rastros recorrentes e obsessivas que a reflexão encontrou no seu mesmo ritmo. A imagem ajustada, ou está prestes a surgir, nas dobras da reflexão, sem, todavia, coincidir exclusivamente com essas, sendo antes uma descon-tinuidade temporal que, por salto, oferece uma visão orgânica do todo. Na dialética entre “consciente” e “ainda-não-consciente”, a dialética de toda interna à representação, estrutura-se de vez em quando a consciência. A imagem depende do fenômeno, mas não coincide exatamente com ele: “Porque nas ideias não são incorporados os fenômenos […] Todavia, essas permanecem obscuras no ponto em que os fenômenos não se reconhecem nelas nem se reúnem em torno delas […] Então se coloca a questão de como alcançar os fe-nômenos. E a resposta será: na própria representação dos fenômenos [Benjamin 1984, 66]”. Como ocorre, portanto, a conjugação entre experiência e imagem? Essa conjunção manifesta-se imediatamente, pela identificação, no jogador, ou no autor que, como um leitor de si mesmo, prende-se em um ponto de todo o percurso. Os fenômenos não são suficientes para explicar a imagem, e vice-versa, sem eles a imagem perderia toda a sua autenticidade. Mas esse é exa-tamente o alcance da verdade da qual fala Benjamin: a relação entre experiência e imagem é originário, mas também, inevitavelmente indireta. Qualquer tentativa de tornar explícita a sua relação - na descrição, classificação, passo a passo a reconstrução das diferentes seções de um evento - tem o efeito imediato de eliminar a descontinuidade que está sujeito a dois planos mi-diáticos diferentes, o real e a linguagem, criando uma paradoxal confusão onde o nível abstrato parece adquirir tal autonomia de se fazer crer que eventos coincidem ou até mesmo existam na

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articulação virtual dos signos. Precisamente por causa de uma tensão objetiva aplicada a isso que é profundamente subjetivo (o fenômeno existe enquanto forma apenas quando se torna um modo de ser do Eu), essa postura leva tão distante o fenômeno a favorecer as ligações entre entidades ou dados que são gerados em uma tábula abstrata de conceitos, em vez da seleção de partes significativas e essenciais e, portanto, reconhecíveis em precisos momentos da vida cotidiana. O resultado, dis-farçado de uma presenta solidez da reflexão, é, porém, a perda de qualquer contato autêntico, concreto, entre o real e o conhecimento. Em uma grade brilhante e vazia de signos, dissolve-se todos os esforços de chegar e “acender” o “fusível explosivo” colocado nos fenômenos, todas as oportunidades de evocar (e este é, finalmente, a propósito do conhecimento) a forma que estes mesmos fenômenos tomados de forma individual, nas dobras de seu próprio corpo ou agir.

O observador tem aqui ao mesmo tempo a posição do fruidor. Se fenômenos concreti-zam-se quando eles tornam-se modos de ser, as imagens, consequentemente, são a transposição linguística desses “hábitos” que tem invadido a vida cotidiana sem que o Eu pudesse opor-se a eles com nenhuma defesa ou resistência. As imagens dialéticas tornam-se “transparentes” na linguagem da referência indireta ao fenômeno, e, ao mesmo tempo, tendo consistência linguís-tica, reativando nomes, palavras e figuras do passado, e não já uma repetição do idêntico, mas em uma atualização fulminante do “já estado”.

Não é que o passado lançou a sua luz sobre o presente, ou o presente a sua luz sobre o passado, mas a imagem é aquilo que foi unido fulminantemente com o agora em uma conste-lação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Porque, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, contínua, a relação entre aquilo que foi e o agora é dialética: não é um curso, mas uma imagem descontínua, a saltos. – Apenas as imagens dialéticas são autênticas imagens (isto é, não arcaicas); e o lugar nas quais elas se encontram é a linguagem [Benjamin 2007, 517].

O passado é uma imagem do presente que o estabelece. A interpretação da história polariza-se no instante presente, deslocando cada linearidade ou continuidade do tempo. Para uma linha cronológica dos eventos se sobrepõe uma constelação de imagens entre elas descon-tínuos. A ser predominante não é a história em si ou para si, em todas as suas possíveis rami-ficações, mas apenas aqueles pontos (que na realidade são modos de ser) nos quais ela chega a capitar à atenção do indivíduo. Como um novo estilo que se afirma no reino da moda, a história em algum lugar reconfigura as formas de vida, a elaboração de uma “télescopage” do passado através do presente. As imagens são o reflexo dessas mesmas circunstâncias, no entanto, como as fotografias das roupas, marcas e tendências: “arrancam” os objetos do continuum a que per-tencem e dão-lhes uma total visibilidade.

A secularização do espaço corresponde atualidade da visão alegórica: “Enquanto no símbolo, com a transfiguração da transitoriedade, manifesta-se fugazmente o rosto transfigura-do da natureza na luz da redenção, a alegoria mostra aos olhos do observador as facies hippo-cratica da história como paisagem original enrijecida. A história em tudo o que ela tem desde

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início do imaturo, do sofrimento, do fracasso, imprime-se em um rosto, mais: no crânio de um homem morto [Benjamin 1984, 141]. Enquanto o “símbolo” pertence uma visão que ordena os momentos da história em um movimento ascendente e progressivo, ou uma reprodução disfar-çada do idêntico, à “alegoria” se deve uma mudança significativa de perspectiva na qual o centro se encontra o valor descontínuo e intermitente dos eventos. As figuras alegóricas e as imagens do pensamento, trazem “à luz” alguns momentos da experiência vivida, mas constituem uma representação mortuária. A alegoria não é apenas uma figura de linguagem, mas a forma que a própria linguagem assume no reino do efêmero. Como a moda, a alegoria intervém com sempre novas surpresas impedindo a formação de hábitos. Quer se trate de um texto ou de um evento, ou mesmo de um conceito, o procedimento realizado pela reflexão é o mesmo: a criação ex nihilo de um momento reflexivo no qual essas coisas perdem toda a objetividade para serem incluídos em um percurso tenso, não tanto a delimitação ou classificação, como a valorização de uma parte da experiência, ou das ligações e referências sutis, dos fragmentos que constituem e estão sujeitos à sua forma. Assim, as coisas são “distorcidas” do contexto de pertencimento, mas apenas nesta “forçação”, que revelam uma profunda utilidade. Esses tornam-se momen-tos reflexivos do Eu, as estações de um processo tenso destinado a mais autêntica função das coisas, tornar evidente, “trazer à luz” em um emaranhado de laços e conexões, uma maneira de ser. Este caminho aparece como um procedimento sempre tenso a obter uma evidência, de fato, por sua vez coincide com a revelação de um conjunto de relações que antes era deixado nas sombras ou na escuridão. A clareza a que se faz referência não coincide com a ordem ou sequência do discurso. Isto é, ao contrário, a imagem de um percurso que tem se tornado cada vez mais evidente aos olhos do Eu. A ser posto no centro da cena é exatamente o caminho, que é o conjunto de relações que surgiram ao longo da marcha de reflexão, incluindo as minúcias do qual o percurso é constituído. Para serem compreendidas e claras, as várias passagens exigem do leitor um esforço, esse exercício imaginativo, para ser colocado no mesmo ponto de vista e na situação em que essas reflexões e minúcias começaram, tornando quase uma sobreposição entre leitor e autor.

3. Dependência

Na descrição oferecida por Simmel, uma aceleração de tempo define a configuração sensorial e psíquica da metrópole: “[A] intensificação da vida nervosa, que brota da mudança acelerada e ininterrupta das impressões interiores e exteriores [Simmel 2009, 4]. Em compara-ção com a pequena cidade de província, a metrópole aumenta, acelera e intensifica, a quantida-de de estímulos de que se dispõe e pelos quais sente atração e é atraída. Duas variantes aparen-temente insignificantes como a quantidade e a velocidade determinam um salto qualitativo da experiência: o eu é levado para um novo mundo técnico-sensorial onde os precedentes equilí-brios mentais se revelam enfraquecidos e superados. Para se adaptar, para se sintonizar com os novos ritmos de vida, o eu potencia um órgão definido como: “das nossas forças internas, a mais capaz de adaptação; para se ajustar à mudança e ao contraste dos fenómenos, não precisa das

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concussões e do revolver interior, graças aos quais apenas saberia o ânimo mais conservador conformar-se ao ritmo compassado dos fenómenos [Simmel 2009, 5]”. A reação aos fenómenos desloca-se numa zona psíquica mole e dinâmica, capaz de capturar e neutralizar o maior núme-ro de estímulos possíveis. A sentimentalidade enquanto modalidade de perceção e experiência das solicitações externas é assim superada; passa a ser uma modalidade do passado, perfeita-mente integrada na vida de província, mas que se revela inadequada à vida metropolitana. Se a pequena cidade de província é um medium que exige determinadas práticas e organizações, a metrópole, por sua vez, é um medium que solicita novos dispositivos organizativos. A dife-rença tecnológica que separa a pequena cidade de província da metrópole reflete-se no resíduo existente entre uma intenção moral e uma intenção alegórica, entre uma modalidade que tem a particularidade de conservar e repetir os próprios hábitos, e uma que, por outro lado, tende a construí-los e a desfazê-los rapidamente, ao reconhecê-los como vãos, efémeros e ilusórios. A metrópole enfraquece as fronteiras pré-existentes entre sujeito e objeto, conferindo ao próprio medium e não ao eu um valor fundacional relativamente aos processos históricos e sociais. A metrópole tem um tipo metropolitano, a pequena cidade um tipo citadino, a televisão um tipo televisivo. O medium assume um valor processual e transfigurador na medida em que, apenas com o seu oferecer-se, desvia e regenera o curso do tempo produzindo, por vezes, um diferente estado mental e uma nova forma ou potencialidade de viver. O eu surge como pura energia, aquela estrutura vital e inviolável que justifica a presença das coisas, pois só as usando é que existem e vivem, mas também como um simples reflexo do exterior, um produto in fieri da pressão social exercida sobre ele. O indivíduo avança como que suspenso e sonhador entre mil choques: deixa-se seduzir pelas luzes, reclamos, olhares, transeuntes, barulhos, cores, montras, mas consegue, ao mesmo tempo e num ápice, deixar cair rapidamente todos estes estímulos. Por outras palavras: o in-divíduo percorre as estradas da metrópole distraidamente; potencia um órgão ligeiro, elástico e dinâmico, a meio caminho entre o consciente e o inconsciente, e capaz de acolher e de neu-tralizar a cada momento um novo estímulo e uma nova solicitação externa. A distração não é uma forma degradada de experiência, mas um instrumento ativo e eficaz: permite a cada um de seguir, sem grande agitação interior, um ritmo veloz e dispersivo, e consente que milhões de pessoas vivam lado a lado, ora tolerando ora ignorando o outro.Sob uma outra perspetiva, tal distração cria um problema nada simples: é possível tornar significativa esta multiplicidade de estímulos? É possível atingir uma imagem clara e distinta de si, das próprias características e potencialidades? A distração é uma perceção ampla, mas capaz somente de deslizar sobre as coisas. À semelhança da vida quotidiana, decorre rápida, leve e sem interrupções. A consciência pode insinuar-se só se arrancar o véu do continuum numa momentânea e repentina suspensão do vivido, mediante a qual o eu dá um salto para um outro plano ou nível de pensamento capaz de restituir uma nítida representação de si. Estabelece-se um jogo constante de referências en-tre distração e atenção, sendo que a primeira serve para viver e suportar uma vida apinhada de estímulos que deixam pouco espaço ao pensamento, ao passo que a segunda regista uma série quantitativa e, inicialmente, indistinta de eventos para a posteriori transformá-los e elaborá-los sob a forma de consciência de si. A vida do eu desdobra-se numa pars costruens rápida, sentida, consciente e inconsciente, e numa pars destruens lenta, lúcida e totalmente dependente da pri-meira. Com efeito, é possível apenas desconstruir pela experiência vivida e, ademais, somente

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trabalhando sobre essa. Desconstruir significa mortificar (tratar as coisas vivas como objetos mortos) e, ao mesmo tempo, potenciar uma experiência (lançar luz sobre essa): o indivíduo segue a vida “ao arrepio”, focaliza a sua atenção nos detalhes, nas interferências e nas falhas da narração, enquanto a sequência clara e linear sofre acréscimos, improvisadas suspensões e inclinações que modificam e recriam o evento vivido. O eu dá um salto para um outro plano ou nível de pensamento e, nesta espécie de transfiguração, atinge um “lugar alto” de si mesmo, uma imagem nítida mas provisória das suas características e potencialidades, dos seus pontos fortes e das suas fraquezas. No momento da consciência, o eu é empurrado para uma dimensão limiar, entre a vida e a morte, que lhe permite “observar melhor em profundidade” mas também de se “distanciar” e de “desligar” o seu envolvimento sensorial. Ao surgir, a consciência apresenta-se como essencialmente táctil, um reflexo do vivido, mas também como um seu automático distanciamento, uma prótese mas ainda uma arma con-tra esse. “Porém, enquanto a educação das gerações anteriores interpretava esses sonhos segundo a tradi-ção, no ensino religioso, a educação atual volta-se simplesmente à distração das crianças. Proust pôde surgir como um fenómeno sem precedentes apenas em uma geração que […] mais pobre do que as gerações anteriores, estivera abandonada à própria sorte e, por isso conseguira apoderar-se dos mundos infantis apenas de maneira solitária, dispersa e patológica [Benjamin 2007, 433]. Na metrópole, a identidade coincide com a infinidade de circunstâncias atravessadas e entrecru-zadas, desenvolve-se no domínio do caso e longe de qualquer imagem de perfectibilidade. Por conseguinte, o indivíduo sente uma profunda estranheza no que diz respeito às estruturas e às instituições que costumavam garantir a conservação e a repetição de uma identidade, concomi-tantemente, individual e coletiva. A formação ocorre agora num modo isolado e fragmentário, através de uma série de reconhecimentos individuais daqueles vestígios que as várias experiên-cias deixaram no agir presente; reconhecimentos atingidos em portas de suspensões temporais relativamente ao continuum intencional da existência, continuum povoado por aqueles frag-mentos, figuras e imagens, como que estratificadas, sobrepostas e confusas no eu, no curso da vida quotidiana. Num ápice, que se configura como um salto do plano pré-consciente, latente ou dis-traída para aquele lúcido e consciente, ocorre uma imagem provisória mas clara e distinta das potencialidades, das características e das circunstâncias que determinam o agir quotidiano. Por um lado, a formação coincide com as vivências e, por outro, com as elaborações que o eu so-brepõe a essas. Formação e conhecimento, tradicionalmente separadas, convergem e unem-se: cada novo conhecimento adquirido representa um ulterior tijolo – vital mas ao mesmo tempo acessório e substituível – da própria formação. Isto significa que a consciência de si está ligada de forma indissolúvel àquela do eu e àquela experiência que a produziram, mas também que essa foi deixada ao acaso, porque nada assegura que o eu possa atingir uma consciência de si mesmo. O “nós coletivo”, garantido imediatamente pela igreja e pela família, reconstitui-se ago-ra só de modo parcial, através de um eu que conta aos outro as reelaborações de uma vivência. Não faz mais sentido entendermos o conhecimento e a memória como sistemas cronológicos de experiências a consistência objetiva, na medida em que essas se transformaram em proces-sos efémeros e descontínuos sempre ligados àquele eu e àquela experiência que as tornaram possíveis. Se, porventura, estas experiências históricas fossem substituídas, na organização da

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vida quotidiana, por novos médias que exigissem ulteriores ou reflexões e memórias, o mesmo conjunto de materiais críticos ligados à metrópole e aos média seria inevitavelmente sujeito à destruição ou decadência. O conhecimento e o medium formam um sistema, em concomitân-cia, fechado e caótico: fechado, porque é apenas especificamente um o medium que origina e fecha uma determinada organização do saber; caótico, porque são inúmeros as variações e os conhecimentos que um medium pode determinar, mesmo no interior de um só indivíduo. Ao isolamento do eu e à consequente perda de qualquer sentido de fim ou da finalidade do tempo corresponde uma nova centralidade adquirida pela vida quotidiana [cfr. Maffesoli 1990 e 1996]. O Quotidiano impõe-se como matriz de toda a experiência, mas também como panóplia específica de práticas ou modalidades pelas quais o eu reposiciona o valor, a função e o sentido dos acontecimentos que se vão desenrolando. Cada acontecimento se oferece ao eu na sua origem, antes mesmo de se transformar em hábito, como uma potencialidade narrativa. Nesta fase é vivido sob a forma de mito ou “sonhos de olhos abertos”, como uma força cega e pulsional que empurra para a frente e exige ser inteiramente desenvolvida. O uso e a repetição quotidiana, os constantes olhares do eu enquanto observador de si mesmo, transformam essa mesma possibilidade em habitus familiar, circunscrito e perfeitamente reconhecível. O acon-tecimento vivido e repetido torna-se numa circunstância indissolúvel e imutável do agir, um novo e ulterior fragmento da própria história psíquica. O sentido e o significado das diversas situações vividas recompõe-se na mente do eu somente a posteriori. As coisas não possuem um valor autónomo ou intrínseco; o significado delas emerge no instante durante o qual o eu cons-trói uma imagem dessas, ou seja, ao reconhecê-las e relativizá-las como próteses da própria vivência quotidiana. A questão essencial e repetitiva não é tanto o que significa em específico aquele acontecimento, quanto o que significa aquele acontecimento para mim, isto é, quais os efeitos que determinam no meu agir quotidiano e como são colocados ao lado de outras expe-riências por mim vividas e interiorizadas. Dadas estas premissas, o eu vive e até relê as grandes estruturas sociais: religião, política; não sob a forma de sistemas holísticos mas pequenos frag-mentos ou detalhes como que ‘colados’ nas pregas do próprio vestido, do próprio agir presente. O eu aparece a si mesmo como um sistema em constante potência, sujeito a reconfigurações imprevistas e frequentemente tenso ao alcance, ilusório ou concreto, do prazer. Uma singu-laridade, irredutível mas dinâmica, cuja ação é justificada pelas relações e comunicações que estabelece com outras singularidades. A relação entre os indivíduos parece ser uma conexão imprescindível e, todavia, é justificada pelo mero interesse (que neste caso não é entendido como proveito): vive-se em conjunto por prazer, esteticamente, no sentido originário do termo, para se experimentar sensações agradáveis e não por razões de partilha ideológica ou política, com um determinado objetivo. Reconhecer o prazer como motivo essencial, como força mobilizadora de ações e von-tades individuais, implica que os objetos externos sejam percecionados sob forma de próteses ou solicitações, caixas a serem enchidas e esvaziadas, circunstâncias através das quais estimular desejos e emoções, ilusões e desilusões. Os próprios objetos são construídos pela imaginação de um percurso ou uso a ser feito pelo consumidor, colocando ao centro, de um sofisticado jogo composicional, o fruidor, a sua atenção e sedução. É, por exemplo, o que acontece com a exposição e arte nova, mas também com os primeiros romances oitocentistas: “As exposições universais nasce do desejo de “divertir as classes trabalhadoras, tornando-se para elas uma

festa de emancipação” […] As exposições universais inauguram uma fantasmagoria a que o homem se entrega para divertir-se [Benjamin 2007, 43-44]. A massa “instaura-se numa primeira instância como cliente”, como se “se deixasse cair numa armadilha”, num com-plexo labirinto de espelhos e vitrinas, participa num bombástico mundo de ilusões que a manipula e a distrai do alheamento do trabalho na fábrica. Por sua vez, os objetos contém em miniatura a inteira exposição, surgem em perfeita correspondência com os estímu-los metropolitanos, como simples solicitações, distrações, comunicações, choques. A exposição tem, por isso, um caráter essencialmente lúdico. É, desde o princípio, construída sobre e para o público que a deve percorrer; o uso das plantas, a arquitetura em vidro (Crystal Palace, 1851), o testemunho (a Rainha Vitória, 1851), a recuperação de algumas formas e experiências estéticas precedentes como o museu ou as basílicas, são to-dos elementos funcionais para seduzirem, atraírem, e divertirem o transeunte e potencial consumidor. O consumidor, por sua vez, atravessa e vive os pavilhões como ocasiões de lazer, distrações ou diversão, fazendo prevalecer assim o lado instrumental ou comunicati-vo relativamente àquele estético ou de história da estética. O valor do objeto não é medido tanto pelo conteúdo ou pela história que transmite quanto pela capacidade de estimular no transeunte um sonho de olhos abertos, uma fantasia viva e tocante até à chegada de um novo objeto que fará com que o precedente se torne vão e reativará o mesmo processo. Ao mesmo tempo, os conteúdos escondem-se no fundo, mostrando a sua natureza instru-mental, a sua vaidade e ilusão. A fruição é reduzida ao desfrute de um instante; tudo o que resta, no fundo, é a experiência do prazer. Tempo do eu e tempo da obra coincidem. A obra fagocita o leitor mas, ao mesmo tempo, a possibilidade da sua existência está estritamente relacionada com o uso que este lhe dá. E apesar disso o eu precisa da obra a fim de cons-truir mundos imaginários que o distraiam do abismo do tédio e do vazio da existência. Este processo transforma o objeto num filtro que faz com que o eu se distancie da visão da realidade e, como tal, de si mesmo. No plano da vida cotidiana, a multiplicação dos objetos et dos estilos de vida intro-duz, sob o plano simbólico, uma radical transformação na existente relação entre história e natureza: “O decisivo é que a vida citadina transformou a luta com a natureza em vista da obtenção do alimento numa luta entre os seres humanos, de sorte que o ganho que se disputa não é aqui concedido pela natureza, mas pelos homens. Pois aqui flui não só a fonte mencionada da especialização, mas também a fonte mais profunda: quem oferece deve tentar despertar necessidades sempre novas e mais específicas naqueles que galanteia [Simmel 2009, 16]”. A precedente “luta com a natureza” é substituída pela metrópole por uma “luta pelo homem”, na qual cada indivíduo tenta superar os demais mediante a exibi-ção da própria originalidade, da sua particularidade. Uma competição originada pela proliferação de estilos, em que cada um acrescenta ao olhar do outro um pormenor novo e invulgar. Essa tem como objetivo de jogo o alcan-ce do sucesso, um sucesso inconsequente e altamente exposto à inconstância da opinião pública. Consenso e desacordo, entusiasmo, surpresa ou, pelo contrário, aborrecimento e indiferença, são os indicadores que medem a ascensão ou o colapso de um percurso in-

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dividual; como se o indivíduo vivesse colado ao presente e esmagado no sentimento comum; como se a interioridade da indivíduo fosse esvaziada e estivesse ligada ao gosto e ao juízo dos outros. A vida social gira em redor do egoísmo (que garante a sua dinâmica) e da opinião (que atua como um espelho para justificar, aprovar e desaprovar ações e comportamentos), tece uma narração virtual na qual os protagonistas não se constroem em oposição às coisas e ao mundo, mas conformam-se com este de acordo com uma relação de “eterna” interação co-municativa, quase a distrair-se da natureza, da verdadeira vaidade das coisas e da vida, quase que a subtrair ao olhar a “nua realidade”. O conjunto destas práticas diárias modifica a existente relação entre história e natureza, determinando a prevaricação da primeira sobre a segunda. Se na versão antiga a história reproduzia o sentido e os limites impostos pela natureza mediante um determinado comportamento social, naquela moderna as duas dimensões separam-se, ao constituírem-se como dois universos perfeitamente paralelos: a natureza impõe-se como um fluxo vazio e homogéneo, mudo e indizível, ao passo que a história se impõe como uma suces-são de hábitos capazes de alimentarem uma comunicação ou um conflito entre os indivíduos. As coisas humanas perdem todo o sentido do que é verdadeiro, do útil, do necessário, para se transformarem em simples estímulos aptos a suscitarem desejos sempre novos e cada vez mais sectoriais nas pessoas a que se destinam. Coisas ilusórias, vãs, passageiras, porém necessárias para que o tempo quotidiano flua; o indivíduo reconhece nessas os únicos vestígios de vida, as partes constituintes da própria psique, os instrumentos da sua ação; a natureza, pelo contrário, passa a ser um fantasma ou uma projeção, uma imagem residual no que diz respeito aos hábitos e a inúmeros vícios que atravessam a vida quotidiana. A vida social assume, à distância, a apa-rência de um jogo, de uma droga ou de uma segunda natureza. O movimento que essa produz é acrónico e sem finalidade, circular e autorreferencial, indiferente a tudo o que não é a sua repetição e continuação. Ao mesmo tempo, os processos que a atravessam surgem como que envoltos sobre si; o significado dos mesmos redefine-se historicamente, através daqueles atores que desse operam uma negociação e ainda de todos aqueles mecanismos, como a citação, a recuperação e a remoção, que estabelecem uma continuidade entre formas do passado e formas do presente. No seu todo a história apresenta-se como uma sucessão, potencialmente infinita, de instantes presentes, mas também imediatamente “já passados”. Entre cada evento não é estabe-lecida qualquer linearidade ou progressividade, bem pelo contrário, denota-se um salto, uma descontinuidade diretamente proporcional no que diz respeito à diferença técnica que os sepa-ra. A novidade constitui a afirmação de um novo e irredutível fragmento da história e, ainda, uma ulterior e irreversível quebra da mesma. Os fragmentos são tais e essencialmente isolados, sucedem-se em modo descontínuo e nunca formarão uma totalidade: em primeiro lugar não há qualquer vaso, e depois, que nós saibamos, não existe nenhuma consciência, conhecimento ou acesso. O momento originário e criativo não reside num hipotético fragmento mãe que engloba todos os outros, mas coincide com aquele instante fulminante, salto, em que surge um novo evento. No momento do seu aparecimento, a novidade origina imediatamente história, ação e, como tal, impulsiona a uma experiência do sagrado, entendido não como recinto de um laço re-ligioso regulado, mas como evento capaz de quebrar o curso do tempo, entregando assim uma nova e ulterior possibilidade de vida. A história enquanto sucessão de eventos e hábitos é uma

imagem da história que exclui qualquer sentido de fim ou de finalidade do tempo e, que, pelo contrário, reconhece o prazer e a vontade de viver como única necessidade deveras essencial. Os eventos oferecem um estilo de vida; por sua vez, o prazer justifica e contém a sua inumerável multiplicação. À imagem e reflexo da Moda, a história exibe um tempo circular, extensível até ao infinito.

Nascimento e morte [...] limitam consideravelmente a margem de liberdade da moda, quando se tornam atuais, este estado de coisas é realçado por uma dupla circunstância. A primeira refere-se ao nascimento e mostra como a recriação natural da vida é “superada” pela novidade no domínio da moda. A segunda refere-se à morte. No que concerne á morte, ela não aparece menos “superada” na moda, quando esta liberta o sex appeal do inorgânico [Benjamin 2007, 117].

O eu conserva, supera e experiencia o nascimento e a morte mediante apenas das proje-ções, ilusão e desilusão, que recordam, transfiguram e simulam o seu ritmo. Acaba por se criar uma bifurcação entre tempo biológico e tempo da história: tempo natural é constituído pelo fluxo do nascimento, do envelhecimento e da morte física, um processo “já estabelecido” em que o eu se absorve desde o primeiro momento e por toda a sua experiência, que o impulsiona e exige estar continuamente ocupado porquanto é vazio, homogéneo; a história aparece como uma invenção do eu, uma dimensão paralela destinada a simular o funcionamento da natureza mas, sobretudo, artificial e ilusória. A história prossegue, ao insuflar-se e ao produzir infinitas temporalidades, mundos virtuais, através dos media (passados ou presentes) de que dispõe, e constitui uma segunda natureza que atrai e distrai o eu do fluxo vazio e homogéneo do tem-po natural, instaurando, por conseguinte, um conjunto de mecanismos internos tais como a citação, a memória, a remoção, o renascimento, o fim, o sucesso, a queda, a dor, o ritmo, o desempenho. Enquanto sucessão infinita e intermitente de eventos torna-se ainda num sistema ingovernável ou assimilável segundo uma única perspetiva, na medida em que a cada ponto dessa correspondem configurações e estados mentais completamente irredutíveis. A vida tra-duz-se em eventos concretos ou imaginários; em ambos os casos o eu executa o mesmo tipo de experiência : uma imersão no objeto que produz, por sua vez, uma distração do tédio e da inexorável passagem do tempo. As formas, as coisas, as ideias e os eventos geram e amplificam o prazer, que está sempre prestes a desmoronar-se no nada ou no desespero que esconde; é precisamente este vazio que se constitui como origem e instinto fundador da história, sob a forma de insuperável necessi-dade de distração.

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Recebido em 24 de maio de 2017. Aprovado para publicação em 21 de dezembro de 2017.

Notas de rodapé1. Este artigo é parte de uma pesquisa de pós-doutorado realizada com bolsa de FAPESP no pe-ríodo 2013-2015 na ECA-USP, no interior do Centro de Pesquisa Internacional ATOPOS, sob a supervisão do Prof. dr. Massimo Di Felice.

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