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RENATO DE MEDEIROS JOTA SENSUALISMO E INFERÊNCIA CAUSAL NA FILOSOFIA MORAL DE HUME Tese apresentada ao PIDFIL UFRN-UFPB-UFPE como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Curso de Pós–Graduação em Filosofia (PPGFIL) do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte ( UFRN). ORIENTADOR: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini. NATAL – RN 2015

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RENATO DE MEDEIROS JOTA

SENSUALISMO E INFERÊNCIA CAUSAL NA FILOSOFIA MORAL DE HUME

Tese apresentada ao PIDFIL UFRN-UFPB-UFPE como

requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em

Filosofia. Curso de Pós–Graduação em Filosofia

(PPGFIL) do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

(CCHLA) da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte ( UFRN).

ORIENTADOR: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini.

NATAL – RN

2015

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UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Catalogação da Publicação na Fonte

Jota, Renato de Medeiros.

Inferência e sensualismo na filosofia moral de Hume / Renato de Medeiros Jota. - Natal, RN, 2016.

169f. : il.

Orientador: Prof. Dr. Juan Adolfo Bonaccini.

Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de ciências Humanas e Letras. Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

1. Sensualismo - Tese. 2. Empirismo - Tese. 3. Moral - Tese. I. Bonaccini, Juan Adolfo. II. Título.

RN/UF/BCZM CDU 165.641

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RENATO DE MEDEIROS JOTA

SENSUALISMO E INFERÊNCIA CAUSAL NA FILOSOFIA MORAL DE HUME

Esta Tese foi julgada qualificada para a defesa de Titulo de Doutor em Filosofia

pelo Programa de Pós – Graduação Stricto Sensu em Filosofia (PPGFIL), nível

de Doutorado, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA), da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e aprovada em

de2015 pela Comissão Examinadora, integrada pelos Professores:

_______________________________________

Professor Doutor Juan Adolfo Bonaccini (UFPE)

(Presidente)

_________________________________________

Professora Doutora Lívia Mara Guimarães (UFMG)

(Membro externo)

_______________________________________

Professor Doutor Jaimir Conte (UFSC)

(Membro externo)

_________________________________________

Professora Doutora Maria Cristina Longo (UFRN)

(Membro interno do Programa)

_____________________________________________

Professor Doutor Daniel Durante Pereira Alves (UFRN)

(Membro interno do Programa)

_________________________________________

Professor Doutor DenilsonWerle (UFSC)

(Suplente externo)

_________________________________________

Professor Doutor JesúsVázquez Torres (UFPE)

(Suplente interno)

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Dedico esta tese de doutorado a minha família e aos

meus amigos e orientadores, Professores Juan A.

Bonaccini e Jaimir Conte, por suas inestimáveis

observações e orientações nesta árdua tarefa que é

pensar.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pelo auxilio espiritual, e especialmente ao

professor Juan A.Bonaccini pela incansável e paciente orientação desde o

mestrado. Seu apoio e amizade foram de inestimável valia não só para a

realização desta pesquisa, mas, sobretudo, para a minha formação filosófica.

Agradeço também ao professor Jaimir Conte pelas sugestões e críticas que

contribuíram para o aprofundamento de temas e de suas correções. Expresso

aqui, por fim, meu agradecimento aos professores Daniel Durante, Markus

Figueira, Maria Cristina Longo, Sergio Eduardo e a todos os outros

doDepartamento de Filosofia pelo apoio e auxílio. Agradeço imensamente o

apoio e o auxílio financeiro à UFRN e à Capes pela bolsa de Demanda

Social,através do programa de aperfeiçoamento e formação de quadro de

profissionais, porque sem eles essa tese não teria sido possível. Agradeço

também à CAPES pela bolsa de Doutorado Sanduíche na Universidade de

Buenos Aires, no marco do Programa Capes Mercosul (PPCP - 027/2011),

bem como aos professores da UBA Mario Caimi, Cláudia Jáuregui e

HernánPringe.

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RESUMO: Considerando que a filosofia moral de Hume pode ser entendida

como sendo “sensualista”, alguém poderia objetar que essa afirmação se

mostra incompatível com o empirismohumeano, na medida em que o

sensualismo pareceria restringiro agente moral aos limites dos sentidos,

enquanto que o empirismo humeano estenderia suas conclusões para além

dos mesmos. Para responder a essa possível objeção, defendemos uma

interpretação que visa compatibilizar o sensualismo moral com o empirismo de

Hume. Pois enquanto o primeiro é a fonte de nosso conhecimento moral, o

segundo nos leva a estender as conclusões de nossas inferências morais para

o futuro, mostrandoque esse seu “projecionismo”não seria incompatívelcom o

sensualismo. Nossa hipótese de trabalho permite mostrar que essarelação

entre sensualismo e empirismo é garantida pela relação entre o hábito e a

imaginação. Nesse sentido, a tese édivididaem três capítulos. No

primeiro,discutimos o contexto em que a filosofia moral de Hume está inserida.

No segundo capítulo apresentamos uma discussão de algumas interpretações

recentes da filosofia moral de Hume e propomos uma alternativa. No

terceiro,por fim, explicamos como fazer generalizaçõesé indispensável para

nossas inferências morais e como a relação entre hábito e imaginação

desempenha um papel central neste processo, ao associar causalmente as

percepções dos sentidos e estender nossas conclusões até o futuro.

Palavras-Chave:Hume-sensualismo-empirismo-causalidade-imaginação-

filosofia moral.

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ABSTRACT: Whereas Hume´s moral philosophy can be understood as a kind

of "sensualism", one might object that this is inconsistent with Humean

empiricism to the extent that sensualism seems to restrict the moral agent to the

limits of the senses, while Humean empiricism extendsits conclusions beyond

their reach. To reply to this possible objection we advocate an interpretation that

intends to reconcile Hume´s moral sensualismto his empiricism. Accordingly, it

is argued first that the former is the source of our moral knowledge, while the

latter compels agents to extend the conclusions of their moral inferences to the

future. So it is suggested that this kind of "projectionism" would not necessarily

be incompatible with sensualism. Our main hypothesis is that the relationship

between sensualism and empiricism is guaranteed by the relationship between

"habit" and "imagination". In this sense, the dissertation is divided into three

chapters. In the first we discuss the context within which the moral philosophy of

Hume is inserted. The second chapter discusses recent interpretations of

Hume´s moral philosophy and proposes another alternative. In the third chapter

we explain how to make generalizations is essential to our moral inferences and

how the relationship between habit and imagination plays a central role in this

process by causally associating sense perceptions and extending our findings

to the future.

Keywords:Hume-sensualism-empiricism-causality-imagination-

moralphilosophy.

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ABREVIATURAS

T – Tratado da Natureza Humana

IEH – Investigação sobre o entendimento humano

IPM – Investigação sobre os princípios da moral

DRN – Diálogos sobre a Religião Natural

AEE – A arte de escrever ensaios

EP _ Ensaios Políticos

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SUMÁRIO

Resumo............................................................................................................... 06

Introdução............................................................................................................ 10

1º– Capítulo: A filosofia moral de Hume no contexto das teorias do senso

moral ...........................................................................................................

15

1.1 – Sensualismo ou emotivismo?....................................................................... 15

1.2 – Contexto da filosofia Moral de Hume 20

1.2.1– Shaftesbury e o senso moral........................................................................... 21

1.2.2– Hutcheson e sua interpretação do senso moral................................. 31

1.3– A teoria do senso moral de Hume.............................................................. 36

2º–Capítulo: Sobre asdiversas interpretações da filosofia moral de Hume... 47

2.1–A interpretação subjetivista.......................................................................... 47

2.2 – A críticahumeana a posição subjetivista..................................................... 64

2.3– A interpretação realista ............................................................................... 66

2.4 – A críticahumeana a posição realista........................................................... 70

2.5 – Objetivismo e Universalismo em Hume...................................................... 73

2.6– A interpretação intersubjetivista da filosofia moral de Hume....................... 92

3º– Capítulo....................................................................................................... 98

3.1 – Empirismo e sensualismo........................................................................ 98

3.2 – Empirismo e ceticismo............................................................................. 110

3.3 – Causalidade, hábito e imaginação................................................................ 125

3.4 – A reinterpretação de Hume do senso moral........................................... 141

Considerações finais......................................................................................... 156

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Referências Bibliográficas................................................................................ 161

INTRODUÇÃO

A filosofia do senso moral estabelece que os seres humanos possuem

uma faculdade de percepção moral, semelhante ao que podemos encontrar em

nossas faculdades da percepção sensorial. Por isso, exatamente como os

nossos sentidos revelam as qualidades dos objetos externos, como por

exemplo, cores e formas, assim também nossa faculdade moral revelaria

qualidades morais boas e más nas pessoas e ações. A comparação com a

percepção sensorial é importante, pois pressupõe dois fatores distintos: uma

coisa externa, tal como uma maçã, e um espectador que percebe a

propriedade naquela coisa, tal como o matiz vermelho. No caso da percepção

moral, os dois fatores distintos são o agente moral que executa a ação e o

espectador que percebe a conduta virtuosa ou não do agente.

Nessa perspectiva, a filosofia moral de Hume é considerada sensualista

por privilegiar essa interpretação em que estabelece podermos emitir juízos e

inferências morais através de nossa faculdade perceptiva sensorial. Hume,

desse modo, seria interpretado como um filosofo do senso moral, como o

conde de Shaftesbury (1671 – 1713), Joseph Butler (1692 – 1752) e Francis

Hutcheson (1694 – 1747). Contudo, vale salientar que na filosofia do senso

moral dos três filósofos acima citados, mesmo tendo a sensação como fonte de

nossos juízos morais, a razão continuava a ter a última palavra. Desse modo, a

filosofia moral humeana, diferiria dos filósofos da moral justamente por

privilegiar a relação entre a experiência e a sensação ao invés da razão,

estabelecendo uma reinterpretação bastante inovadora do papel da moral na

modernidade, a qual não se encontrava em consonância com os pressupostos

filosóficos defendidos pela filosofia do senso moral de seus predecessores. Por

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isso é preciso inicialmente sabermos em que se funda a filosofia do senso

moral de Shaftesbury e Hutcheson, buscando mostrar os pontos convergentes

e divergentes que levaramHume a reconhecer o mérito de seus pressupostos

eao mesmo tempo a afastar-se do racionalismo nele contido, buscando se

aproximar do empirismo que fundamenta a sua filosofia do senso moral1.

Este caminho para a filosofia do senso moral ou ciência da natureza

humana, como Hume a intitulou em duas de suas obras mais célebres,

oTratado da Natureza Humana e a Investigação sobre o entendimento

humano,mostra que as atitudes do agente que pratica a ação, e as inferências

ou juízos proferidos pelo espectador que observa as ações do agente,

seguiriam preceitos semelhantes aos encontrados no método empírico

existente na filosofia natural. De fato, a experiência para Hume é de suma

importância para as inferências morais, principalmente, se ela tiver o apoio da

sensação. Entretanto essa posição de Hume nos levaria a interpretar a sua

filosofia do senso moral,tomando como base a relação da sensação e da

experiência de dois modos possíveis. Por um lado, poderíamos avaliá-la como

sendo subjetivista; por outro lado, comosendorealista. O fato é que poderíamos

encontrar trechos nas principais obras de Hume,sobretudo no Tratadoe na

Investigação, que apoiariam tanto a primeira como a segunda interpretação.

Para isso, se faz necessário partir de uma análise desses dois tipos de

interpretação e de seus defensores para podermos derivar alguma conclusão.

O que nos levou a considerar que Hume não assumiria nem uma nem outra

posição, mas que sua filosofia estaria, antes, pautada em um

"intersubjetivismo" que nada mais é do que a reunião e correção de aspectos

das duas interpretações anteriores em uma terceira que serviria de apoio para

explicar a relação entre sensação e empirismo.

Mas, uma objeção poderia ser levantada a respeito dessa afirmação; já

que conhecimentos derivados da sensação estão circunscritos aos dados de

seus próprios sentidos enquanto o empirismo pressupõe extrapolar estes

mesmos dados. Desse modo, considerando que a experiência que toma as

1Os filósofos do senso moral defenderam uma espécie de "sexto" sentido "moral" nos agentes

morais, e a filosofia de Hume toma como base que todos os conhecimentos têm seu último fundamento nos sentidos, e especificamente nas sensações. Ambas são sensualistas em sentidos diversos, mas tem em comum a fundamentação de uma teoria moral.

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sensações como premissa de suas inferências, ao extrapolar seus limites

também encontraria dificuldades para explicar o motivo de “projetarmos”

nossos juízos sobre eventos passados para o futuro sem haver a impressão

que correspondesse a tal idéia. Esta explicação poderia consistir em dizer que

nós observamos nos fenômenos, tanto físicos como mentais, que eles se

mostram em conjunção e associados; levando-nos à convicção de sua

repetição futura, já que se repetiram igualmente no passado. Se

considerássemos que aimaginaçãoé pautada por uma associação entre

sensação – empirismo como o bojo da ciência da natureza

humana,poderíamos estabelecer uma explicação convincente para o motivo de

fazermos essa projeçãodas percepções de eventos passados para eventos

futuros que não são evidentes a nossa percepção atual. Essa explicação

certamente difeririaHume de todos os demais filósofos do senso moral de sua

época. Pois, a experiência, que alia a faculdade perceptiva sensorial,

responsável por nossas sensações dos fenômenos externos, ea própria

percepção interna, que nos leva a julgar como boa ou má uma ação, seria a

responsável pelo motivo de nossa projeção. Essa declaração sobre o motivo de

projetarmos inferências passadas para o futuro não é explicadapela razão, e só

poderia acontecer, segundo Hume, sobre o auspício da relação entre sensação

e experiência.

Devido a essa conclusão Hume procurou estabelecer em que medida

somos levados pela experiência a fazer projeções no âmbito moral e como isso

poderia ser útil para a vida comum e para a convivência em sociedade. Estas

considerações só teriam validade para a ciência humana ou para a filosofia do

senso moral de Hume se tomasse como base a sensação – empirismo em

seus pressupostos. Para isso, Hume parte da análise da faculdade perceptiva

sensorial responsável por nossas sensações, identificando que elas são de

dois tipos, impressões e idéiasque podem ser divididas em impressõesde

sensação e de reflexão. Que Hume explica que: “As da primeira espécie

nascem originalmente na alma, de causas desconhecidas. As segundas

derivam em grande parte de nossas idéias” (T1. 1. 3. 2.,p. 32), Mais adiante

Hume observa que: “Primeiramente, uma impressão atinge os sentidos

(impressão de sensação), fazendo-nos perceber o calor ou o frio, a sede ou a

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fome, o prazer ou a dor (...) Essa idéia de prazer ou dor, ao retornar à alma,

produz novas impressões, de desejo ou aversão, esperança ou medo que

podemos chamar propriamente de impressões de reflexão” (T1. 1. 3. 2., p. 32).

Esta análise termina por identificar três princípios associativos ou conectivos

que seriam os responsáveis por nossas inferências costumeiras, denominadas

por Hume princípios de semelhança, contigüidade no espaço e tempo, e

causalidade, que seriam o "cimento" de todo o conhecimento epistêmico e

moral. Não obstante, as explicações elaboradas por Hume concluem que estas

ligações, antes, têm suafonte na imaginação e no hábito do que em fatos ou

fenômenos,quer sejam eles físicos,quer sejam eles mentais.

De fato, prescrutandotanto nosso aparelho sensorial perceptivo como o

psicológico não encontramos indício ou explicação do motivo de fazermos

associações ou conexões necessárias que não se mostram evidentes e

factuais. Tais conexões só poderiam ser fruto da transição das ideias na

imaginação a partir do hábito,o que se verificaa partir da repetição dos objetos

da sensaçãoe nos induziria a representá-los em nossa mente toda vez que tal

fenômeno ou tal evento semelhanteviesse ase apresentar na percepção. Essa

transição habitual seria fruto dos artifícios da imaginação, e teria como fonte a

tendência natural humana reforçada pela experiência de anteciparmos o

surgimento de determinado fenômeno cada vez que este se repete com

frequência a nossos sentidos. Assim os juízos ou inferências decorrentes das

ações do agente moral só poderiam ser possíveis para o espectador,tendo

como ponto de partida essa crença na conexão habitual existente nas

associações.Além do que a projeção experimentada do passado se conformar

com o futuro é antes obra da imaginação em conjunção com o hábito ou

costume do que de qualquer outra fonte. Hume descreve que nossos juízos ou

inferências associativas se mostram tão convincentes que só podem ter sua

origem no princípio causal, que dos princípios de associação se mostra como o

mais poderoso e responde por todas as associações que fazemos tanto

externamente como internamente em nossas avaliações morais. Desse modo,

encontraríamos nessa interpretação de Hume a essência de nossos

julgamentos morais.

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Assim, considerando que a filosofia moral de Hume pode ser entendida

como sendo “sensualista”, alguém poderia se contrapora essa afirmação

mostrando que ela seria incompatível com o seu empirismo, na medida em que

o sensualismo pareceria restringiro agente moral aos limites dos sentidos,

enquanto que o empirismo humeano estenderia suas conclusões para além

dos mesmos. Para responder a essa possível objeção, defendemos uma

interpretação que visa compatibilizar o sensualismo moral com o empirismo de

Hume. Porque enquanto o primeiro é a fonte de nosso conhecimento moral, o

segundo nos leva a estender as conclusões de nossas inferências morais para

o futuro,mostrando com isso que o“empirismo”não seria incompatívelcom o

“sensualismo”. Nesse sentido, nossa tese objetiva mostrar que arelação entre

sensualismo e empirismo é assegurada pelo papel da imaginação, que seria o

“cimento” que conecta tanto o empirismo como o sensualismo na filosofia moral

de Hume.

Essa proposta de compatibilização entre o empirismo – sensualismo visa

mostrar que a filosofia do senso moral humeano é antes de tudo uma inovação

na medida em que procura fazer uma geografia mental dos processos de

inferência causal estabelecida entre os três atores psicologicamente distintos:

Pois se considerarmos que o agente moral é a pessoa que desempenha uma

ação, tal como furtar um carro, o paciente é a pessoa afetada pela conduta, tal

como o dono do carro roubado, e o espectador moral é a pessoa que observa

e, neste caso, desaprova a ação do agente. Tal conclusão sobre o senso moral

de Hume parte principalmente da análise dos motivos e circunstâncias que

cercam as ações do agente moral e que levam o espectador a formular juízos e

inferências que tomam como base a sensação e a experiência de casos

repetidos e inseridos na relação associativa que podemos perceber tanto no

plano físico como mental. Esta relação sensualista – empirista explicaria

certamente por que nossos sentidos podem servir como fundamento de nosso

conhecimento, além de explicar o papel da projeção para nossas inferências.

Por fim, atese édivididaem três capítulos. No primeiro discutimos o

contexto em que a filosofia moral de Hume está inserida. No segundo capítulo

apresentamos uma discussão de algumas interpretações recentes da filosofia

moral de Hume. No terceiro capitulo explicamos como fazer generalizações é

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indispensável para nossas inferências morais e como nossa imaginação

desempenha um papel central neste processo, ao associar causalmente as

percepções dos sentidos e estender nossas conclusões até o futuro.

Capítulo Primeiro

1. A filosofia moral de Hume no contexto das teorias do senso moral

A teoria moral de Hume faz parte de uma tradição de filósofos ingleses

que defendem que nossos julgamentos e inferências morais são

fundamentados em nossas sensações e não na razão. Nesse sentido, inverte-

se a ordem de conhecimento antes pautado nos raciocínios hipotéticos e

passam a tomar como base os sentimentos e paixões originados da nossa

interação tanto mental como física com os fenômenos. Entretanto, não

podemos por o modo de compreender a filosofia do senso moral tão somente

privilegiando os sentidos, pois a filosofia moral de Hume é bem mais complexa

do que isso, e mesmo admitindo queHume pode ser compreendido como

sensualista, algo análogo ao que podemos encontrar nos seus predecessores

sua teoria moral não se reduz somente a isso já que toma como fundamento a

experiência. Desse modo, objetivamos nesse primeiro capitulo entender o que

caracteriza a filosofia do senso moral nos pensamentos de Shaftesbury,

Hutcheson e Hume para depois analisarmos em que pontos concordam e

avançam em sua formulação.

1.1 – Sensualismo ou emotivísmo

A tradiçãofilosófica à qual pertence a filosofia moralde Hume é

reconhecida por privilegiar os sentidosao invés da razão, na medida em que:

“Parece evidente que os fins últimos das ações humanas não podem em

nenhum caso ser explicados pela razão, mas recomendam-se inteiramente aos

sentimentos e às afecções da humanidade” (IPM, apêndice, 18. p. 376). A

posição dos filósofos britânicos do “senso moral” afasta-se da concepção da

teoria moral clássica,que considerava que as inferências e os juízos morais

eram derivados inteiramente da razão. Essa tradição sensualista procurou

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mostrar que a razão tradicional não era critério válido para o

conhecimento,justo por apoiar seus fundamentos em especulações meramente

racionais.Para essa filosofia do senso moral,as proposições racionais

existentes na moral tradicional não ofereceriam um critério válido para nossos

julgamentos morais sobre as ações do agente. Por não pressupor as

irregularidades e idiossincrasias existente nas relações subjetivas entre os

seres humanos e, devido a isso,pareceria a princípio não haver como postular

qualquer regra universal capaz de julgar suas ações e caráter.

A filosofia do senso moral persegue noçõesparecidas com aquelas

encontradas na filosofia natural, que prima pela aproximação aos dados dos

sentidos, com a experimentação e observação, com os fenômenos vividos ou

sentidos. Os principais representantes dessa filosofia moral são Anthony

Ashley Cooper, terceiro Conde deShaftesbury (1671-1713), Francis Hutcheson

(1694-1746) e David Hume (1711-1776). Todos os três observam que os

nossos sentidos são os responsáveis pela maioria dos nossos conhecimentos

estabelecidos nas mais diversas áreas do conhecimento, como, por exemplo,

na filosofia, na história, na religião, na política, na estética e na moral.

Particularmente sobre a moral, eles são unânimes em admitirem a forte

influência dos sentidos.

De modo geral, os filósofos britânicos do senso moral defendiam que

nossas percepções morais derivam dos sentimentos ou paixões. Do mesmo

modo como nossos órgãos sensoriaisenxergam qualidades nos objetos

externos, tais como cores e formas, assim também a nossa faculdade moral

perceberia as qualidadesboas ou más nas ações morais dos homens. Isso quer

dizer que são nossas paixões ou sentimentos subjetivos que respondem por

nossos juízos morais e não nossos sentidos perceptuais. Desse modo,

encontramos na literatura especializada o uso de vários termos para classificar

a teoria moral de Hume. Isso, no entanto, ao invés de ajudarparece apenas

dificultar o seu entendimento. Por exemplo, dentre os termos que mais

frequentemente servem para classificar sua teoria moral, encontramos algumas

vezes a utilização de termos como “teoria emotiva”,de “senso moral”,

“sentimentos morais”, dos “sentidos morais”.

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A.J. Ayer, por exemplo, concebe a teoria moral de Hume como

emotivista, porque considera que: “(...) nossos enunciados morais,

aproximamo-nos mais disso ao creditar-lhe a moderna teoria “emotiva” de que

eles servem para expressar nossos sentimentos morais (...)” (AYER, 2003, p.

115). Já Roger Scruton interpreta a teoria moral de Hume pelo viés dos

sentimentos, dado que “Hume insiste em que, apesar de aparentes variações

locais, existe uma uniformidade básica de sentimento moral entre os seres

humanos” (SCRUTON, 2008, p. 168). Sidgwick defende que a moral

humeanaestá centrada na sensação, e expressa essa idéia quando diz que

“(...) ao dar à benevolência o primeiro lugar em seu relato do mérito pessoal,

ele escapou do paradoxo de tratá-la como a única virtude, e acrescentou uma

sucessão bastante indefinida de qualidades – veracidade, fortaleza, atividade,

indústria, sagacidade –, imediatamente aprovadas em vários graus pelo “senso

moral (...)” (SIDGWICK, 2010, p. 196).

O que devemos ressaltar é que, devido às dificuldades terminológicas e

estabelecidas pelas definições dos estudiosos da moral humeana, devemos

antes, conhecer cada um desses termos para nos posicionarmos e explicar

nossa preferência por um termo em detrimento de outro qualquer. Desse modo,

se considerarmos a definição de senso moral de Hume entendida como sendo

acompanhada pelo termo “sensualista”, podemos considerar pelo menos dois

tipos de definição desse termo. A primeira definição consiste na doutrina

segundo a qual todos os conhecimentos são fundamentados nos sentidos, e

especificamente na sensação. A segunda definição limita-se a dizer que é a

doutrina segundo a qual são considerados os prazeres dos sentidos, ou

prazeres “sensuais” (MORA, 2004,p. 2645). Isso nos leva a considerar que o

percurso reflexivo de Hume pode ser entendido na primeira definição, mas não

na segunda definição. Pois caso contrário, poderíamos erroneamente

aproximar a teoria moral de Hume da posição ética hedonista.

Entretanto, o que constatamos é a existência de outras formas de

interpretar a teoria moral de Hume. Se considerarmos, portanto, a teoria moral

de Hume pelo viés “emotivo” poderemos encontrar outra definição que diz: que

“(...) as expressões éticas, mesmo que não sejam empíricas, são emotivas, isto

é, manifestam sentimentos de índole éticas” (MORA, 2004,p. 818). Essa

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definição parece ser mais um termo meramente classificatório do que

elucidativo da teoria moralhumeana, porque limita-se a evocar as paixões e

emoções como algo independente de nossas sensações, mas que não

explicariam como esses sentimentos precederiam nossas sensações, e em

conseqüência, como as influenciariam. Podemos encontrar outro termo que

possui a mesma intenção descritiva da teoria moral humeana, só que vinculado

ao termo “sentimento”, que pode significar: ”uma vivência capaz de apreender

os princípios do comportamento moral humano, sua justificação e suas fontes”

(MORA, 2004, p. 2652).

Como podemos observar, os termos “sentimento moral” e “teoria

emotiva” parecem ser correlatos, já que possuem o mesmo sentido na teoria

moral humeana. O sentido encontrado em ambas as definições, é o mesmo, e

por isso não deveriam ser considerados termos opostos. Desse modo podemos

explicar que nossas emoções procedem de nossas sensações, respondendo,

assim, o porquê de fazermos inferências morais a partir de determinada ação

através de um princípio de simpatia para com o outro. Isso aconteceria, porque

a ação do agente moral nos condiciona a emitir um juízo, seja qual for o motivo

de sua ação, gerando assim uma emoção ou sentimento que nos levaria a

simpatizar ou antipatizar com sua atitude. Desse modo os juízos originados de

nossa sensação se estenderiam à teoria emotiva contida na moral de Hume.

Assim como Hume admite que: “É a esse princípio [simpatia] que devemos

atribuir a grande uniformidade observável no temperamento e no modo de

pensar das pessoas de uma mesma nação (...)” (T2. 1. 11. 2.,p. 351). Pois,

considerando que termos como “sentido moral” ou “sensibilidade moral”

valorizam justamente “(...) a capacidade de sentir (por exemplo, de sentir dor,

temor, pena, alegria); a disposição à ternura, geralmente para com outro ser

humano; a faculdade de perceber, ou dar-se conta de, caracteres, qualidades

ou valores em algo (...)” (MORA, 2004,p. 2641), vemos que os termos como

“sentido”, “percepção”, “sensibilidade”, “sensacionismo”, e etc, são correlatos e

não possuem significados diferentes para designar todos aquelas afecções que

passam por nossos sentidos internos e que o projetamos para o mundo

externo.

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Em conclusão, somos levados a pensar que encontramos duas

possíveis formas de interpretar a teoria moral de Hume: por um lado, podemos

entendê-la apenas pelo viés da emoção, paixão e sentimentos, de modo que

nossas sensações de compaixão, de dor, ou quaisquer outras afecções são

manifestações de nossos sentimentos. Por outro lado, divergindo da

interpretação sentimental ou emotiva, a teoria moral de Hume valorizaria as

sensações ao invés das emoções, compreendendo que as emoções provêm da

sensação e que o agente moral sofreria sua influência, passando assim a

afirmar algum juízo ou inferência a partir da sensação e não só dos

sentimentos.

Em relação a esta última interpretação, que podemos defender,é a que

particularmente nos inclinamos a considerar como correta. É a que consiste

em dizer que nossas emoções ou sentimentos são “compatíveis” com nossa

impressão e sensação. Pois, as sensações externas (impressões simples) de

“objetos” externos, precedem os sentimentos e as emoções (impressões ou

sensações internas simples, ou complexas, sobretudo); e nesse caso

sentimentos e emoções procedem das sensações. Por isso Hume pensa que

tudo deriva das sensações/impressões. A percepção é, na epistemologia de

Hume, o bojo de nossas sensações ou impressões, derivando destas as idéias,

que são princípios da experiência humana.

Desse modo, as nossas inferências são produto da observação do que é

percebido moralmente como bom, e estão vinculadas a essa experiência. Essa

ideia de aproximar sentimentos de sensação estaria inteiramente de acordo

com a teoria moral elaborada por Hume no Tratado e na Investigação sobre os

princípios da moral. Se considerarmos as impressões como dados dos sentidos

e nossos sentimentos correlatos das sensações, poderíamos afirmar que a

teoria moral humeana é eminentemente composta por um mecanismo

sensualista – emotivista e não poderíamos concebê-los separadamente.

De fato, parece haver uma confusão no entendimento do papel da

impressão e da idéia na compreensão da teoria moral de Hume. Especialmente

quando utilizamos termos que parecem ter significados diferentes, de um lado

a “emoção” e “sentimentos”, e do outro a “sensação” e os “sentidos” como

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fundamento da moral humeana. Isso a princípio parece confuso porque essa

impressão ou sensação é tão “branda” que confundimos as impressões com as

idéiase embaçamos sua distinção. Especialmente quando Hume diz:

Nossas decisões a respeito da retidão e da depravação morais são evidentemente percepções; e, como todas as percepções são ou impressões ou ideias, a exclusão de umas é um argumento convincente em favor das outras. A moralidade, portanto, é mais propriamente sentida do que julgada, embora essa sensação ou sentimento seja em geral tão brando e suave que tendemos a confundi-lo com uma ideia, de acordo com nosso costume corrente de considerar tudo que é muito semelhante como se fosse uma só coisa (T3,1. 2. 1.p. 510)

Na Investigação acerca dos princípios morais, como mencionado acima,

podemos encontrar outra afirmativa do próprio Hume que apóia essa

interpretação quando declara que:

É provável que a sentença final que julga caracteres e ações como amáveis ou odiosas, louváveis ou repreensíveis; aquilo que lhes impõe a marca da honra ou da infâmia, da aprovação ou da censura, aquilo que torna a moralidade um princípio ativo e faz da virtude nossa felicidade e do vício nossa miséria – é provável, eu dizia, que essa sentença final se apóie em algum sentido interno ou sensação que a natureza tornou universal na espécie inteira (IPM, 1. 9,p. 229)

Assim, apesar do tom sempre precavido utilizado por Hume em sua

obra, as considerações apontam certamente para essa colaboração entre

sensação e emoção na formação de nossas inferências morais. Contudo, vale

salientar que Hume explica que para mostrar o motivo dessa confusão entre

sensação (sentido) e idéia(sentimento) na teoria da moralidade, podemos

explicar que essa confusão residiria na passagem costumeira que fazemos

daquilo que é percebido na ação do agente moral para aquilo que inferimos a

partir dela. Essa inferência, portanto, ocorreria de maneira “branda” e “suave”,

levando-nos a interpretar os dois termos como se fossem análogos. Vale

ressaltar que essa passagem “suave” é muito semelhante àquela explicação

dada por Hume a respeito do hábito como princípio que faz a transição da

causapara o efeito, também uma passagem “branda”.

1.2. O contexto da filosofia moral de Hume

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Passamos agora a investigar a influência de alguns filósofos da moral na

teoria moral de Hume, a saber, os filósofos do senso moral, a fim de

compreender o contexto de sua teoria, já que o “sensualismo” atribuído a Hume

encontra eco na filosofia moral da época.

1.2.1.Shaftesbury e o senso moral

Shaftesbury é de importância fundamental para se entender a teoria do

senso moral britânica na modernidade. Sobretudo por ter sido o primeiro a

observar que nossa sensação exerce influência fundamental sobre nossos

julgamentos morais. De fato, se considerarmos filósofos como Francis

Hutcheson e David Hume, que sofrem influência da teoria do senso moral de

Shaftesbury, a importância de sua teoria moral para o entendimento de como

nossos juízos são formados a partir da sensação que as ações do agente nos

provocam nos levando a emitir julgamentos é logo percebida. Com isso somos

levados imediatamente a procurar entender em que medida Shaftesbury

compreendeu o senso moral e porque valorizou tanto os sentidos para a

formação de nossos juízos morais.

Assim, segundo constanasua obra “Uma investigação acerca da virtude

ou do mérito” (AnInquiryConcerningVirtue, orMerit, 1699)2,Shaftesbury nota que

a maioria de nossos juízos morais tem como fim último o bem pessoal. Sua

concepção de senso moral é essencialmente subjetivista, mas se utiliza da

2 Doravante quando citar Shaftesbury me servirei do texto traduzido por Álvaro Cabral de título

Uma Investigação Acerca da Virtude ou do Mérito (AnInquiryConcerningVirtueorMerit de 1699), que se encontra em seu livro de título Filosofia Moral Britânica: Textos do Século XVIII, volume I. Assim também, para efeito propedêutico, nos servimos da abreviação IVM seguindo-se da letra maiúscula que corresponde ao livro, parte e seção acompanhada do algarismo arábico, tendo por fim a página da qual a citação foi retirada. Doravante utilizaremos o mesmo método para indicar a obra (AnInquiryconcerningthe Originalofourideasofvitueor Moral Good) de Francis Hutcheson, utilizando as iniciais IPVM e as iniciais maiúsculas para delimitar a Parte do livro seguida do numeral arábico para indicar a seção em que se localiza o texto. Também utilizaremos de números arábicos para indicar os parágrafos como indicar a página.

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observação e da experiência,centralizando seus pressupostos nos sentidos e

interpretando-o à luz danatureza humana.

Shaftesbury não defende que a natureza humana é virtuosa, mas

enfatiza que existe na natureza humana uma predisposição à bondade,

argumentando que os homens têm capacidades naturais para agir

virtuosamente e distinguir o certo do errado. Isso, particularmente, explicao

senso moral a partir da idéia de juízo moral. Com efeito, Shaftesbury, de uma

maneira própria, descreve como reagimos internamente a objetos e eventos

que experimentamos. Segundo ele, nossos valores morais e estéticos

dependem deste claro princípio natural de gosto ou sensação que nos faz

aprovar ou reprovar determinada ação, seja ela virtuosa ou não. Por

conseguinte, Shaftesburyapóia sua análise na ideia de que:

O homem probo pode, na verdade, julgar o prazer sensual, e conhece sua suprema força. Pois longe de ser o mais opaco e insípido, o seu gosto ou capacidade de percepção é, pelo contrário, mais intenso e mais nítido, em consequência de sua temperança e de um uso moderado de apetites. (IVM, L2, P 2, S 1, p. 30)

Esta concepção de senso moral de Shaftesbury pode ser entendida por

analogia com os objetos estéticos, que são capazes de nos provocar

sentimentos de aprovação ou reprovação. Realmente, a beleza necessita de

uma reação espontânea da parte de quem observa em relação ao objeto

observado.Para isso é necessária a experiência subjetiva, observada na

relação com os objetos que nos despertem determinados sentimentos, sejam

eles belos, sejam eles disformes. Uma vez queShaftesbury considera o

sentimento de beleza semelhante ao que promove os juízos morais presentes

na maneira em que as pessoas respondem a outras pessoas, que seria similar

àqueles sentimentos estéticos despertados pelos objetos externos. Assim,

aexperiência nos faz entender que o sentido de beleza é similar ao sentido

moral; eShaftesburynos leva a deduzir que ambos são como virtudes que

residem na natureza intrínseca de cada homem, mesmo considerando a

instabilidade da natureza humana, que dificulta qualquer tentativa de

universalizar suas ações. Desse modo Shaftesbury afirma:

No caso de objetos mentais ou morais, ocorre o mesmo que no caso dos corpos vulgares ou dos objetos comuns dos sentidos.

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Quando as formas, cores, movimentos e proporções destes últimos se apresentarem aos nossos olhos, resulta necessariamente uma beleza ou deformidade, de acordo com as diferentes medidas, arranjos e organização de suas várias partes. Assim, no comportamento e nas ações, quando apresentados ao nosso entendimento, deve necessariamente ser encontrada uma evidente diferença, segundo a regularidade ou irregularidade dos sujeitos(IVM, L1, P 2, S 3, p. 17).

Ora, este agir virtuosamente revela-se por meio do sentimento de

empatia com o outro a partir de si mesmo,e nos levaria à necessidade de ouvir

e deliberar o que é virtuoso ou não na ação do outro, pois ser moralmente

correto implica, em última análise, na atitude de alteridade3 nas relações

morais4. Vale esclarecer neste ponto que a "virtude" tem para o Conde de

Shaftesburytrês sentidos diferentes. O primeiro desses sentidos considera a

capacidade ou potência em geral. O segundo sentido mostra que a virtude

seria a capacidade ou potência própria do homem. E o terceiro sentido mostra

que a virtude seria o termo que designa uma capacidade moral humana.

Desse modo, a virtude poderia ser entendida, no pensamento de Shaftesbury,

ligada ao terceiro significado, que seria a capacidade moral humana.Assim,

podemos, dentro desse terceiro sentido, encontrar uma outra divisão da

seguinte forma: a) capacidade de realizar uma tarefa ou função; b) hábito ou

disposição racional; c) capacidade de cálculo utilitário; d) sentimento ou

tendência espontânea; e) esforço.

Seguindo este princípio de alteridade que considera o que é ruim para

mim é ruim para o outro, e o que é bom para mim é bom para o outro, chega-se

a considerar que as atitudes morais entre os homens estão comumente

situadas no plano das afecções e não na razão, como toda a tradição ética

anterior postulava. A novidade posta por Shaftesbury reside em considerar que

o sentimento de aprovação ou não de determinada posição moral encontrada

em uma atitude moralmente boa ou não, leva em consideração os próprios

3 A alteridade é entendida no sentido de “ser outro, colocar-se ou constituir-se como outro” (ABBAGNANO, 2003, p. 34). 4 Neste sentido, Shaftesbury sofre bastante influência do platonismo no que tange a somente

podermos fazer alguma deliberação ou inferir juízos tendo como fundamento o conhecimento último como verdade universalmente aceita, mas diverge da perspectiva platônica ao fundar todas as deliberações morais tendo a razão (não a ideiado bem ou dajustiça) como fundamento.

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sentimentos e juízos morais subjetivos do agente moral. Decorre disso que

desta avaliação interna (de seus sentimentos e sensações) o sujeito consegue

ter uma atitude de benevolência com ele mesmo e com o outro. Partindo dessa

avaliação interna entre sentimentos e sensações, somos levados a formular

juízos sobre as ações dos homens, considerando-as virtuosas ou não, e que

responderiam por nossas inferências morais, responsáveis por formarem nosso

caráter e pela maneira como nos comportamos em sociedade. Shaftesbury

constata que:

Ora, se pela constituição natural de qualquer criatura racional as mesmas irregularidades de apetite a tornam maléfica para outras também a fazem para prejudicar a si própria, e se a mesma a faz boa em outro, então a bondade pela qual ela é útil aos demais significa um bem e uma vantagem real para ela. E assim, virtude e interesse podem enfim, concordar. (IVM, L1, P2, S1, p. 14).

Assim, Shaftesbury constata que o interesse pessoal bem entendido

pode ser virtuoso; a bondade e seu contraponto, a maldade, mantém estreita

relação com nossas atitudes e ações ordinárias no convívio com as pessoas.

Não nos constituímos como virtuosos, ou não, isolados do convívio com o

outro, mas nossas ações, sejam boas ou más, são inteiramente oriundas de

relações com as pessoas. Com efeito, vemos aqui porque essa atitude

defendida por Shaftesburyse opõe à posição jusnaturalista de Hobbes que, por

sua vez, declara haver na natureza humana um claro egoísmo que contribui

contra toda e qualquer convivência entre os homens5.

De fato, Shaftesbury discorda, neste ponto, da posição de Hobbes (que

entende a natureza humana comosendo essencialmente egoísta). Para

Shaftesbury a natureza humana, por fundamentar suas inferências morais nas

afecções, não é alheia aos sentimentos do outro porque estes sentimentos o

atingem com certo grau e constância.Por isso, segundo Shaftesbury, seria

impossível conceber tal egoísmo extremo residente nos corações humanos.

Shaftesburyafirma que não existe no mundo nenhum ser vivente que seja

totalmente bom ou totalmente mau. Segundo ele, se observarmos o mundo

5Luis F. S. Nascimento entende que: “Shaftesbury descarta a idéia de um contrato anterior à

sociedade e que a instauraria; ele refuta qualquer outra explicação para a formação da ordem social e civil que não o fato de existir nos homens esse, digamos, “espírito de sociabilidade”. (NASCIMENTO, 2005, p. 174).

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natural, as feras ou animais de qualquer espécie não poderão ser considerados

nem como totalmente maus nem como totalmente bons. Por conseguinte, os

homens, por estarem inseridos no mesmo mundo natural que os animais, estão

sujeitos analogamente a esta conclusão, a saber, que se a natureza como um

todo é indiferente às postulações morais humanas, não podemos por analogia

dizer que alguém é totalmente bom ou totalmente mau. Se assim o fizéssemos,

estaríamos pressupondo que a natureza segue princípios necessariamente

bons ou maus6. Aliás, esta é a posição defendida por Shaftesbury, para quem

há umacapacidade natural do homem para reagir a estímulos cognitivos que

explicaria de que modo as pessoas avaliam os motivos e as ações dos outros

como moralmente certas ou erradas.

Shaftesbury acredita que a natureza, por ser indiferente a valores

morais, não nos autoriza a fazer juízos e inferências morais partindo tão

somente do plano mental ou subjetivo e generalizá-los para todas as ações

morais ainda não constatadas por nossa observação. Realmente, não

podemos também justificar o porquê de fazermos inferências e juízos sem

levarmos em consideração as afecções e o modo como estas afetam nossas

emoções e paixões. Tanto é que Shaftesburyconsidera que a única

possibilidade de certeza de nossas inferências reside na associação

sentimento e razão. Pelo fato de as nossas paixões serem afetadas por aquilo

que é mais imediato ao nosso entendimento, que são nossos sentidos, suas

inferências seriam inconstantes e volúveis só adquirindo alguma segurança de

suas inferências a partir da razão e pela experiência de sua constatação,

despontando assim na relação sensação e razão o fundamento estável e geral

para o estabelecimento de nossas considerações morais. Desse modo,

Shaftesburyafirma que:

Ora, tal como no tipo dos objetos sensíveis, quando as espécies ou as imagens de corpos, cores, sons estão em perpétuo movimento diante dos nossos olhos e agem sobre os nossos sentidos mesmo quando dormimos, também no caso dos objetos morais e intelectuais, as formas e imagens de coisas não estão menos presentes e atuantes na mente em todas as ocasiões, até mesmo quando os próprios objetos reais estão ausentes (IVM, L1, P2, S1, p. 18).

6 Esta posição deShaftesbury sobre a liberdade ser irrestrita ou nãoéum assuntoconfuso e

controversa entre os filósofos modernos; e mesmo em Hume é confuso (CF. IEH, VIII)

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Podemos dizer então queShaftesbury aponta para outra direção no que

se refere à relação entre pensar e perceber. De acordo com Shaftesburynão há

diferença significativa entre o que observamos e o que inferimos mentalmente.

Dessa relação derivam a maioria de nossas inferências feitas no âmbito moral,

assim como no âmbito estético. Esse último, especificamente, torna mais clara

essa relação, porque nossas inferências derivam dos nossos sentidos e

sentimentos, fruto da observação e da experiência com o objeto que nos

causou determinado sentimento agradável ou desagradável. Devido a isso,

emitimos juízos a partir daquilo que o objeto nos representa, e que causa

determinada inclinação seja para achá-lo belo, ou ao contrário, para achá-lo

horrendo; e apartir disso emitimos juízos de aprovação ou reprovação,

conforme nossas disposições internas.

Os homens utilizam juízos de valor o tempo todo em seu dia a dia, seja

para louvar ou para reprovar uma ação humana ou objeto estético. Deste

modo, os objetos externos, assim como tudo o que faz parte do domínio

sensorial humano, estão sujeitos a esses juízos. A aparência de uma pessoa

ou de uma pintura seguem regras de avaliação parecidas com os critérios de

avaliação de gosto que cada homem tem e que se coadunam por analogia. Do

mesmo modo, podemos analogamente estipular que as regras morais seguem

padrões parecidos no que toca ao que é aprovado ou reprovado por nosso

gosto7. Aliás, para Shaftesburya questão do “gosto” é análoga à dos sentidos,

porque comumente não separamos uma da outra. Nesse sentido,Shaftesbury

pensa que nossos juízos morais e estéticos são derivados dessa analogia entre

gosto e os sentidos, e que seria impossível conceber uma criatura que seja

indiferente ao sofrimento ou à alegria, à beleza ou à deformidade de qualquer

pessoa ou arte. Desse modo,Shaftesbury afirma que: “Portanto, ao adquirir a

capacidade de ver e admirar desse novo modo, a pessoa deve estar apta a

7 Aliás, os valores estéticos, na filosofia de Shaftesbury, têm como base apenas uma questão de gosto relacionada ao que é belo ou não aos nossos sentidos e que são responsáveis por nossos sentimentos, sejam eles agradáveis ou não. Pedro Pimenta afirma: “E se a natureza antecipa o padrão de criação é porque o que está em jogo é saber qual o critério capaz de decidir o que merece ou não a aprovação da mente, o que é justo e o que não é, o que é belo e o que não é” (PIMENTA, 2007, p. 68). Neste sentido, os valores morais podem ser entendidos igualmente por nossas avaliações estéticas. A posição de Shaftesbury claramente influenciou também a concepção estética e moral de Hutcheson e Hume em alguma medida.

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descortinar a beleza e a deformidade tanto em ações, mentes e

temperamentos quanto em imagens, sons ou cores” (IVM, L1, P2, S1, p. 20).

É interessante observar o quanto a teoria moralde Hume sofre influência

de Shaftesburyatravés da leitura de Hutcheson, na medida em que

Shaftesburyconcebe a moral pelo viés sensualista no que diz respeito à

regularidade relativa no aparecimento dos fenômenos aos nossos órgãos

sensoriais. Pois osprocessos mentais seguem regras parecidas às que

encontramos nos corpos físicos ou nos objetos comuns dos sentidos. Desse

modo, quando as cores, as formas, o movimento e as proporções dos objetos

apresentam-se aos sentidos ou aos nossos olhos, resultam necessariamente

como belos ou disformes, de acordo com os diferentes arranjos de suas partes,

de modo que caberia a nós julgar o que é agradável ou não ao nosso gosto

pessoal. Assim, pensa Shaftesbury “No comportamento e nas ações, quando

apresentados ao nosso entendimento, deve necessariamente ser encontrada

uma evidente diferença, segundo a regularidade ou irregularidade dos sujeitos”

(IVM, L 1, P 2, S 3, p. 18). De fato, muitos dos nossos juízos de gosto partem

da relação entre o mundo mental e o mundo externo. De fato, nesse sentido

interpretamos a filosofia do senso moral Shaftesburiana pautando-se na

interrelação sensação – razão para validar seus argumentos morais.

Aqui necessitamos explicar três modos diferentes de interpretar a

posição “racionalista”encontrada na modernidadee que devemos localizar em

quais desses três aspectos do racionalismo podemos enquadrar o tipo de

posição racional defendida porShaftesbury em sua moral. O primeiro modo

seria considerar a razão equiparada ao pensar ou à faculdade pensante e

superior a emoção e à vontade; temos então um racionalismo psicológico. O

Segundo modo é considerar essa doutrina para o qual o órgão adequado ou

completo de conhecimento é a razão; de modo que todo o conhecimento

(verdadeiro) tem origem racional; fala-se neste caso de “racionalismo

epistemológico” ou “racionalismo gnociológico”. O terceiro afirma que a

realidade é, em última análise, de caráter racional, o que nos leva assim ao

“racionalismo metafísico” (MORA, 2004, p. 2442).Deste modo,a posição

racionalista do primeiro modo pode ser entendida como “psicológica” na

medida em que costuma ser contraposta ao emocionalismo ou ao

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voluntarismo. O segundo modo pode ser definido como “gnosiológico” na

medida em que se contrapõe ao empirismo ou, em ocasiões, ao intuicionismo.

A terceira e última definição pode ser interpretada como

“racionalismometafísico” por oposição às vezes ao realismo (entendido como

“realismo empírico”) e em alguns momentos ao irracionalismo (MORA, 2004, p.

2442). Assim dessas três definições de racionalismo certamente identificamos

no segundo tipo de racionalismopsicológico aquele que pode ser encontrado na

filosofia do senso moral de Shaftesbury.

Assim podemos notar que o racionalismo psicológicoainda exerce uma

forte influência no pensamento de Shaftesbury e em sua moral e que afastaria

qualquer tentativa de aproximar a posição sensualista de Schaftesbury do

empirismo de Locke. Shaftesbury entende que as deliberações morais, por

seguirem critérios inteiramente subjetivos, apoiam-se no sentimento e isso não

estaria vinculado à experiência, mas antes a uma afecção que a imediata

sensação nos causa. Assim, devido aos sentimentos serem dados imediatos

que não necessitam de um princípio de sucessão empiricamente observado,

fundamentam-se nas afecções, que são os sentimentos imediatos que

aparecem a todo indivíduo. Suas bases seriam inteiramente subjetivas ou

racionais e independentes da experiência direta com os

objetos.Assumindoessa posição, Shaftesbury rechaçaria qualquer tentativa de

aproximar a sua posição moral do empirismo lockeano8, que tanto evita.

Contudo vale salientar que a posição de Schaftesburypode ser entendida como

objetivando compatibilizar a sensação e a razão em sua filosofia moral

mostrando através dessa relação que inferências originadasdas sensações

provocam julgamentos racionais e por isso podem ser entendidas

conjuntamente em sua filosofia moral.

Entretanto, Shaftesbury abre mão, na discussão, para manter a

coerência de seu sistema moral,daqueles problemas oriundos da instabilidade

dos julgamentos morais existentes em cada homem, por sua natureza

complexa, em prol da análise dos mecanismos que constituem nossos valores

de gosto e estética, responsáveis por nossas inferências do que é

8 Sobre o empirismo de John Locke veja-se Ives Michaud (1991) e Aléxis Tadié (2005).

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virtuosamente bom para o que não é. Esta posição moral de Shaftesbury é

claramente um afastamento daquilo que poderíamos atribuir a uma filosofia

empirista. Porque Shaftesbury não concorda que a moralidade seja apenas um

relato de experiências passadas, mas uma característica imanente do sujeito

que sente e percebe.De fato, a teoria moral de Shaftesbury pode ser entendida

como uma teoria moral mentalista, ao invés de objetiva, na medida em que:

Admitindo, pois, que os prazeres da mente são superiores aos do corpo, segue-se, tudo o que pode criar em qualquer ser inteligente um fluxo ou seqüência constante de satisfação mentais ou prazeres mentais é mais importante para a sua felicidade do que aquilo que pode ser criado para ele por uma sucessão constante de satisfação sensuais ou prazeres do corpo (IVM, L2, P2, S1, p. 29).

Ora, em nenhum momento encontramos Shaftesbury preocupado em

considerar como os objetos externos podem vir a influenciar nossos

julgamentos internos, ou possam nos levar a entender o porquê de tomarmos

uma determinada decisão em vez de outra. Suas análises obedecem

estritamente aos desígnios da mente e não levam em consideração o papel da

experiência externa para os julgamentos ou as ações sofridas pelo sujeito pela

sucessão dos objetos que se repetem frente à mente. As sensações, para

Shaftesbury, servem como dados de informação que auxiliam a razãoem suas

deliberações. Uma demonstração dessa amenização da relevância dos

sentidos para a constituição do senso moral está nas considerações estéticas

defendidas por Shaftesbury. Poisadmite que nossos sentidos respondam em

grande parte por nosso sentimento do que é belo e virtuoso, eservem como

critério conjuntamente com a razãopara nossas considerações e julgamentos

do que é realmente belo e virtuoso.

Desse modo, Shaftesbury não nega a existência do mundo externo, mas

afirma que o mundo externo só pode ser compreendido na relação sensação –

razão e que a partir dessa relação justificaria o motivo de definirmos o que é

bom e belo. “Assim dizShaftesbury: “É ainda mais impossível conceber que

uma criatura racional, começando a ter experiência de objetos racionais, e

recebendo em sua mente as imagens ou representações de justiça,

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generosidade, gratidão ou outras virtudes, não sinta simpatia por elas ou

antipatia por suas contrárias, mas se mostre absolutamente indiferente a tudo o

que lhe seja apresentado”. (IVM, L1. P3. S1., p. 20). Assim,Shaftesbury buscou

centralizar nainterrelaçãosensação – razão o conhecimento, talvezporque

ainda sofresse a influência do Platonismo de Cambridge,que valorizava a

razão. Podemos dizer, dentro deste contexto, que Shaftesbury procura, na

verdade, outro caminho que desconsidere a alternativa dualista cartesiana,

buscando, com sua filosofia do senso moral, compatibilizar a sensação com a

razão objetivando compreender o contexto em que se dão as relações

interpessoais entre observador e agente.

De fato, Shaftesburyobserva também que a causa da imoralidade está

situada na nossa tendência em privilegiar o bem individual ao bem público ou

comum. Esse pensamento também contribuiu para o preconceito de que só o

bem individual nos traz satisfação e prazer. Entretanto apesar do esforço de

Shaftesbury, podemos observar que ele não oferece um bom argumento que

explique satisfatoriamente como os homens, em seu egoísmo exacerbado,

passariam a se respeitar mutuamente por um exercício de atividade moral, o

que seria consideradocomo “algo um pouco difícil de demonstrar” (ROVIGHI,

2002, p.265), Mas considerando essa posição podemos dizer que ela não é

nova na literatura especializada. Podemos citar alguns nomes de especialistas

que escreveram sobre filosofia moral britânica como Mackie (2005, p. 7-43),

Wright (2009, p. 235-236) e Frazer(2010, p. 10-25). Em todos eles,

encontramos a opinião de que falta ao argumento de Shaftesbury uma unidade

mais consistente e sistemática.

O que torna o argumento de Shaftesburyfraco e em alguns momentos

ingênuo é que ele nos leva a pressupor que somos o tempo todo dominados

por uma consciência quase onipresente que nos inclinaria a sempre

escolhermosfazer o bem em vez do mal, o que na maioria das vezes não

acontece quando agimos. Se considerarmos a elaboração da moral como o

proposto por Hobbes baseado no egoísmo,que leva pela constância de nossas

ações ordinárias,inferir juízos de valor que fazemos costumeiramente nos

casos que envolvem decisões que nos beneficiam, mesmo que estes

benefícios sejam injustos, nossa propensão sempre será tomada mediante

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uma tendência egoísta e que pareceria diminuir a inclinação shaftesburiana a

bondade. Mais ainda,se observadas as várias deliberações diárias em que

nossa moral é testada, sempre temos a tendência a pensar em nós mesmos

em detrimento do semelhante, e como consequência disso nossa virtude

sempre é esquecida quando o que está em jogo são nossos interesses

particulares.Não obstante, se considerarmos que não há na natureza humana

que nos incline a uma bondade absoluta, do mesmo modo não encontramos

nada correlativo a na natureza humana que nos incline ao egoísmo extremo.

Não obstante, torna-se interessante observar a interpretação de

Hutchesonem defesa da filosofia moral de Shaftesbury. Além de corrigi-la,

propõe também uma nova abordagem do “senso moral” que até então não foi

mencionada.

1.2.2.Hutcheson e sua interpretação do senso moral

A filosofia moral de Hume difere ligeiramente da filosofia do senso moral

de seus predecessores, na medida em queShaftesbury e Hutcheson defendem

que nossas paixões e sentimentos são compatíveis coma razão, e que Hume

concorda em parte com Shaftesbury e Hutcheson, no sentido de que nossas

inferências morais em partem necessitam do auxílio da razão. Mas Hume alerta

que a razãoem última instancia é subordinada a sensação e nega existir uma

razão universal que responderia por todas as nossas inferências morais. Nesse

sentido, Hume,ao analisar o bem ou o mal moral,descreve que: “O bem e o mal

morais certamente se distinguem por nossos sentimentos, não pela razão (...)”

(T3. 3. 1. 27., p. 629).Desse modo, Hume em sua filosofia moral privilegia a

sensação por que considera que os julgamentos ou juízos que

costumeiramente fazemos sobre as ações do agente moral toma como base os

dados dos sentidos e não a razão, e nesse sentido sua teoria moral diferiria

deSchaftesbury e Hutcheson que buscavam compatibilizar sensação e razão

em sua filosofia moral o que é impensável para Hume dado as críticas que ele

faz a razão.Principalmente quando afirma que: “As distinções morais, portanto,

não são frutos da razão. A razão é totalmente inativa, e nunca poderia ser a

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fonte de um princípio ativo como a consciência ou senso moral” (T3. 1. 1. 10.,

p. 498).

Assim, percebendo que a filosofia do senso moral de Shaftesbury

carecia de uma sistematização maior, Francis Hutcheson se propôs a dar-lhe

um corpo orgânico, corrigindopossíveis erros e equívocos advindos de uma

leitura errada de seus textos. No decorrer dessa revisão, Hutchesonacabou por

produzir uma reinterpretação pessoal do senso moral, levando a considerar,

diferentemente de Shaftesbury, as inferências ou juízos morais como não

centradas exclusivamente na subjetividade,admitindo uma relação reflexiva

entre os objetos externos e sujeito cognoscente. A filosofia do senso moral de

Francis Hutchesonestá de acordo, em linhas gerais, com a de Shaftesbury,

embora difira dela em algumas particularidades. De fato, encontramos em

Hutcheson a busca por uma melhor adequação dos pressupostos reunidos por

Shaftesbury para a fundamentação de uma filosofia do senso moral. Hutcheson

entende, diferentemente de Shaftesbury, a existência da dicotomia entre

subjetividade e objetividade.Mas considera que os dados obtidos por meio dos

sentidos são informações que constituem o aparelho cognitivo, e que o

conhecimento, moral ou epistêmico, não acontece desvinculado da razão, mas

pode ser compatível com ela.

Realmente, o problema da natureza virtuosa ou bondade intrínseca do

homem diante dos acessos de egoísmo extremo verificados na história humana

leva a filosofia moral de Shaftesbury a dificuldadesque Hutcheson percebeu e

procurou resolver. Para isso,Hutcheson parte da noção shaftesburyana de

benevolência ou virtude, que ele denomina de “benevolência tranqüila”, que

nada mais é do que aquele sentimento elevado que nos inspira a piedade e a

condescendência para com o outro. Por conseguinte, esse sentimento é

diferente das paixões turbulentas e egoístas que acometem os homens e os

fazem preferir as ações sórdidas às elevadas. Assim, Hutcheson declara que

existe um tipo de amor próprio chamado de “tranqüilo”, que não é nocivo.Pois,

considerado em si mesmo,é neutro no que diz respeito a insuflar sentimentos

de aprovação ou reprovação moral. Torna-se necessário afirmá-lopor causa

dos ataques sofridos pela teoria moral de Shaftesburye serve de defesa da

predisposição a atenuar o egoísmo existente na natureza humana. Pois como

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diz Sidgwick “(...) ao mesmo tempo ele entra em uma análise cuidadosa dos

elementos da felicidade, para mostrar que uma verdadeira consideração pelo

interesse privado sempre coincide com o sentido moral e com a benevolência”

(SIDGWICK 2010, p. 193). É nítida a tentativa de Hutcheson, com o recurso a

essa concepção de amor próprio “tranqüilo”, de proteger a teoria da virtude

natural de Shaftesbury contra os ataques dos defensores do

egoísmohobbesiano9. Mas o que se evidência é que Hutcheson passa a

acrescentar novos ornamentos a uma concepção de moral que já não é

propriamente de Shaftesbury, mas sua.

Entretanto, para defender essa posição,Hutcheson apela para três

conceitos básicos concebidos por ele, que podemos encontrar em sua obra

“Uma Investigação Sobre a origem de nossas idéias de virtude ou Bem Moral”

(AnInquiryconcerningthe Original ofourIdeasofVirtueor Moral Good). Esses

conceitos:Interesse, vantagem e bem natural são responsáveis, segundo o

próprio Hutcheson, por responder à pergunta: “De onde surgem as diferentes

idéias de ações?No sentido de que têm como base nossas paixões e são

responsáveis por nossos julgamentos sobre o que é bom ou mau.

Para Hutcheson, cada conceito tem um caminho bem definido que nos

leva necessariamente ao bem e à virtude. Por isso é que ele define interesse

como o mero esforço para atingirmos o nosso bem pessoal, enquanto aquilo

que pode ser vantajoso não é nada mais do que o objeto que pode agenciar

outros bens imediatamente agradáveis. Por último, temos o bem natural, que

nada mais é do que aquilo que somos impelidos a perceber como bomnas

ações dos outros. Assim, Hutcheson concebe que devemos amar o agente,

mesmo sem levar em consideração a vantagem que possamos obter deste.

Entretanto, podemos constatar que mesmo este abnegado bem natural pode

não influenciar nossas decisões diárias, haja vista que podemos desempenhar

essas ações, quando compramos algum quadro, pintura, estátua e

9 Segundo essa interpretação que encontramos nas teorias dos séculos XVII e XVIII e que Hobbes está

inserido, essa teoria de Hobbes objetiva mostrar que a condição dos homens antes de formular qualquer contrato social, na qual os indivíduos viviam isolados uns dos outros, sem qualquer organização estatal; encontrando-se em um permanente estado de guerra de todos contra todos e que Hobbes descreve esse Estado de natureza como o “homem é lobo do homem” e não haveria nem o meu nem o teu, encontrando-se esse o homem submerso em um estado tal que o egoísmo era o único sentimento que valeria em tal estado.

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paisagens,portanto, mesmo movidos inteiramente por interesses pessoais, sem

ter nenhuma propensão virtuosa ou bondosa por trás de nossas ações ou

julgamentos.

Decerto,Hutcheson percebe que pode estar incorrendo no mesmo erro

de Shaftesbury, mas antes que isso aconteça recorre a um estratagema que

defendea existência de uma benevolência imediatanas ações dos homens,

chamada por ele de “sentido moral”,a qual responde por aquilo que aprovamos

na ação do outro. Esta percepção dá-se imediatamente por nossa afecção, a

qual nos faria sentir no mesmo instante um sentimento de simpatia pelo outro,

assim como o outro o sentiria em relação a nós. Nas palavras de Hutcheson:

(...) percebêmo-las como sendo sua perfeição e dignidade, e

somos induzidos a amar o agente; temos uma percepção

semelhante ao refletir sobre as nossas próprias ações dessa

mesma natureza, sem qualquer intuito de obter delas uma

vantagem natural (IPVM, Int. p.114).

De fato,por um lado Hutcheson aponta a diferença entre omal e obem

morais concebidos pelos defensores do egoísmo hobbesiano. Por outro,

defende a sua concepção de bem ou vantagem natural. Defende que se não

existisse essa distinção não conseguiríamos conceber uma diferença

fundamental entre um sentido de bem distinto do sentido de vantagem ou

interesse, que é resultante dos sentidos; e não das percepções de beleza e de

harmonia, que independem de vantagem ou interesse.Com efeito, sem essa

distinção poderíamos confundir sentimentos que temos ao ver um belo campo

ou uma suntuosa casa com a relação generosa de um amigo ou a alguém de

nobre caráter, porque ambos os casos são vantajosos para nós, ou podem sê-

lo. Hutcheson afirma que nesse caso:

(...) não deveríamos admirar mais qualquer ação ou gostar de

qualquer pessoa num país ou época distante, cuja influência não

pôde alcançar-nos, do que admiramos as montanhas do Peru,

ao passo que o comércio espanhol não nos desperta o menor

interesse (IPVM, S 1, p. 115).

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Portanto,Hutchesonsustenta que se faz necessário definir em que

termos usamos um conceito ou outro sem considerar ações e as afecções que

decorrem destas, pois se não existisse essa distinção utilizaríamos os mesmos

termos para designar as mesmas afecções e paixões, podendo confundir uma

coisa com a outra. Assim, Hutcheson recorre a essa distinção para mostrar que

se não tivéssemos clara tal separação poderíamos ter pelos agentes

racionaisos mesmos sentimentos e afetos que alimentamos em relação aos

seres inanimados.Portanto, é pertinente sabermos a diferença entre esses dois

termos, pois conforme Hutcheson estabelece:

(...) A razão por que não é assim deve ser esta: “Temos uma

percepção distinta de beleza ou execelência nas gentis afecções

de agentes racionais; por isso estamos decididos a admirar e

amar tais caracteres e pessoas” (IPVM, S1, p. 115).

Nessa perspectiva,Hutcheson pensa que nossas primeiras afecções são

naturalmente fundamentadas na virtude ou bondade, e não somente no

egoísmo profundo, como defende Hobbes. E mesmo quando nossas ações

tendam para algo parecido com o egoísmo, a perspectiva de que isso ocorra

está mais para um benefício particular e bom do que um ato puramente egoísta

e destrutivo. Deste modo,Hutcheson observa que:

Devemos certamente possuir outras percepções de ações morais, diferentes das de vantagem; e esse poder de receber essas percepções pode chamar-se um sentimento moral, uma vez que a definição concorda com isso, ou seja, uma determinação da mente para receber qualquer ideia da presença de um objeto que nos ocorre independentemente da nossa vontade (IPVM, S 1, p. 115).

Hutcheson observa que o sentimento moral ou a percepção é a fonte

das inferências e dos julgamentos morais, não havendo nada que nos leve a

pensar que exista na natureza humana um egoísmo extremo como o

encontrado na natureza humana concebido por Hobbes. Entretanto, apesar dos

esforços de Hutcheson para defender a posição shaftesburyana acerca da

natureza virtuosa ou bondosa das ações humanas,a moral

shaftesburyanabusca mostrar ao mesmo tempo diante de ataques a seus

pressupostos básicos quese nada garante que exista na natureza humana

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estainclinação para uma bondade universal,igualmente nada garante que

exista uma predisposição na constituição da natureza humana para o egoísmo.

Assim, a posição deHutcheson e Shaftesbury, é que há uma

compreensão geral de quea sensação ou sentimentos morais responderiam

por nossos julgamentos e juízos subjetivos sobre asações boas ou más do

agente moral e que deduziríamosdesse bem geral ou desse bem social, a

benevolência pura resultante dessa equação entre bem individual e social.

Pois como podemos notar : “Quando o bem público produzido não teria sido

tanto se não tivesse havido também uma perspectiva de interesse pessoal

então o efeito do amor por si será deduzido e a benevolência é proporcional ao

resíduo do bem que teria sido produzido no caso de uma benevolência pura”

(IPVM, S2, p. 123).Isso posteriormente levou Hume a compreender que a

explicação do senso moral compreendida no sujeito que percebe as ações

individuais esociaistomam como base de suas inferências a contiguidade e

constância conforme as ações se apresentem a nossos sentidos,servindo

Igualmentepara explicar como julgamentos tanto individuais como sociais sobre

as ações e atitudes do agente moral. Desse modo, faz-se necessário

compreender em que termos Hume nos apresenta sua interpretação do senso

moral buscando apresentar uma explicação minuciosa de suas conclusões o

que será tratado mais detidamente no próximo tópico.

1.3 – A teoria do senso moral de Hume

Considerando que a estrutura da teoria moral de Hume está

fundamentada na sensação, devemos explicar nesta interpretação como os

princípios que formam a moralidade tomam por base a sensação, o que nos

leva a pressupor que sua filosofia seria apenas uma conseqüênciadesta. Pois

como Hume mesmo explica: “(...) O bem e o mal morais certamente se

distinguem por nossos sentimentos, não pela razão; esses sentimentos podem

surgir, no entanto, seja do simples aspecto e aparência de um caráter ou

paixão, seja da reflexão sobre sua tendência a trazer o bem da humanidade e

dos indivíduos” (T3, 3. 1. 27.,p. 620). Desse modo, seria necessário saber em

que ponto a teoria moral de Hume está apoiada na sensação e qual os seus

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avanços relativos aos seus predecessores. Se considerarmos que historiadores

da filosofia moral inglesa possuem a inclinação de interpretar Hume nos

mesmos termos que se encontram em seus predecessores, notaremos que

isso é meramente uma atitude classificatória vinculada a defesa humeanada

teoria moralser compreendida através da sensação. De fato, considerando que

tantonoTratado (T3)como na IPM,particularmente na Seção 6, Hume parte do

pressuposto de que nosso conhecimento moral toma como base os sentidos,

isso nos inclinaria a concluir que a teoria moral humeanavalorizaria a sensação

e que as paixões seriam consequência destas. Como ele mesmo diz:” Toda

moralidade depende de nossos sentimentos” (T3. 2. 5. 4.p. 556). Por isso, vale

ressaltar que a explicação de Hume, encontrada no início da primeira parte do

Tratadovalorizaria o papel dasensação, ao invés da razãoe serviria de base

para sua teoria moral, diferindo da explicação de cunho metafísico. De fato,

Hume evidencia essa afirmativa na medida em que diz: “As distinções morais,

portanto, não são frutos da razão. A razão é totalmente inativa, e nunca poderia

ser a fonte de um princípio ativo como a consciência ou senso moral” (T3. 1. 1.

10., p. 498).

Nesse sentido, Hume começa metodicamente a sua explicação moral a

partir da sua teoria da percepção mostrando que tudo que podemos considerar

é sempre como impressão ou idéia, e sua diferença residiria nos graus com

que atingem a mente e penetram em nosso pensamento. Desse modo, aquelas

percepções que ocorrem com força e vividez são chamadas de impressões,

incluindo sobre essa denominação as paixões, sensações e emoções que

primeiramente penetram na alma. Já as idéias, por serem mais fracas e até

esmaecidas, são apenas cópias das impressões e formam a base do

pensamento e do raciocínio. Hume mostra também que todo o material do

pensamento é derivado da sensação externa e interna, e à mente compete,

apenas misturar e compor esses materiais. Isso quer dizer que todas as nossas

ideias ou percepções mais fracas são cópias das impressões, nossas

percepções mais vividas. Ainda nas IEH, Hume considera que todo o

conhecimento humano está fundamentado nessa divisão da percepção em

impressões e idéias. Mostrando que todas as percepções, interiores ou

exteriores,quer nos atinjam com força e vividez, quer não, possuem seus

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limites bem definidos e podem ser explicados a partir dessa divisão. Desse

pensamento, Hume estabelece o alerta sobre todo o conhecimento que não

possa tomar como ponto de partida as impressões.

Portanto, sempre que alimentarmos alguma suspeita de que um termo filosófico esteja sendo empregado sem nenhum significado ou ideia associada (como freqüentemente ocorre), precisaremos apenas indagar: de que impressão deriva esta suposta ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão, isso servirá para confirmar nossa suspeita. Ao expor as ideias a uma luz tão clara, podemos alimentar uma razoável esperança de eliminar todas as controvérsias que podem surgir acerca de sua natureza e realidade (IEH, 2. 9., p. 39)

Com essa explicação Hume está convicto de que a distinção está clara,

porque “(...) não serão necessárias muitas palavras para explicar essa

distinção. Cada um, por si mesmo, percebe imediatamente a diferença entre

sentir e pensar” (T1.1.1., p. 25). Em seguida Hume opera uma segunda divisão

nas percepções (ou impressões e ideias), que podem ser compreendidas como

simples e complexas. As percepções simples são entendidas como não

admitindo nenhuma distinção ou separação. Já as percepções complexas são

o contrário das simples, pois são capazes de serem distinguidas e

separáveis.Contudo, Hume adverte quanto à tendência de pensarmos que as

ideias e impressões complexas sejam copiasfiéis umas das outras, o que não é

verdade. Sua explicação consiste em dizer que ideias complexas não copiam

as impressões exatamente, devido a uma diferença nos graus de força e

vivacidade com que penetram ou ocorrem em nossa mente.

Nesse sentido, Hume ainda opera uma nova divisão nas impressões que

é claramente de origem lockeana, entre as impressões de sensação (ou

originais) e de reflexão, e mostra que suas fontes são distintas. Considera que

as primeiras possuem sua origem na alma ou mente e são de causas

desconhecidas. Isso porque, “Impressões originais ou de sensação são as que

surgem na alma sem nenhuma percepção anterior, pela constituição do corpo,

pelos espíritos animais, ou pela aplicação dos objetos sobre os órgãos

externos” (T2.1.1.1.p. 309). Quanto às segundas, derivam sua origem

inteiramente nas idéias. Hume explica que “As impressões secundárias ou

reflexivas são as que procedem de algumas dessas impressões originais, seja

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imediatamente, seja pela interposição de suas idéias” (T2. 1. 1. 1.,p.309).

Hume ainda mostra que “essas impressões de reflexão são novamente

copiadas pela memória e pela imaginação, convertendo-se em idéias as quais,

por sua vez, podem gerar outras impressões e idéias” (T. 1.1.3.1., p, 32).

A explicação de Hume para isso, consiste em dizer que as impressões

de reflexão são anteriores a suas idéiascorrespondentes mas que são

posteriores às impressões de sensação, sendo delas derivadas. Desse modo,

Hume estabelece que o seu interesse para a fundamentação de uma ciência

humana está mais próximo das impressões ou idéias de reflexão do que das

impressões de sensação, devido a impossibilidade de chegarmos a causa

última da origem das impressões de sensação. Pois considera que as

impressões de reflexão, por derivarem seus princípios da relação das idéias

existentes na mente humana mostram-se adequadas para a sua filosofia moral,

enquanto que as impressões de sensação, por serem vinculadas às

impressões originais não seriam pertinentes a sua explicação moral, já que sua

origem está aquém de qualquer investigação (T1. 1. 3. 1.,p. 32).Devido a isso,

é necessário inverter o pólo de discussão para que seja possível mostrar o

funcionamento interno de nossas faculdades mentais e como estas funcionam

diante de juízos morais. Contudo, isso não quer dizer que Hume não considere

a sensação importante para nossos juízos morais, pelo contrário, sua

relevância dá-se na interação entre plano físico e plano mental, que respondem

pela maioria de nossas inferências de cunho moral.

A teoria moral de Hume parte do princípio de que nossas distinções

morais não derivam da razão, mas tem sua origem nos sentimentos. Mais

ainda: “A razão, por si só, é inteiramente impotente quanto a esse aspecto. As

regras da moral, portanto, não são conclusões de nossa razão” (T3. 1. 1. 6., p.

497). Essa explicação é enfatizada por Hume na medida em que “já

observamos que nada jamais está presente à mente senão suas percepções; e

que todas as ações como ver, ouvir, julgar, amar, odiar e pensar incluem-se

sob essa denominação” (T3, 1. 1. 2.,p. 496). Pois os mecanismos puramente

racionais não influenciam nem a favor nem contra as ações, são simplesmente

neutros em relação a estas, porque a experiência nos mostra que nosso juizos

sobre as ações são derivados dos sentimentos. Assim, a razão não é

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responsável diretamente pela distinção entre o que é bom ou mau moralmente.

Sua área de atuação está circunscrita às conexões entre as ideias. Por isso

não serviria, na opinião de Hume, como base para uma teoria moral. A razão

não poderia justificar juízos morais que tivessem os sentimentos como apoio, já

que seus limites estão circunscritos aos próprios aspectos lógicos. Nesse

sentido, Hume diz:

As ações podem ser louváveis ou condenáveis, portanto, não é a mesma coisa que racional ou irracional. O mérito e o demérito das ações freqüentemente contradizem e às vezes controlam nossas propensões naturais. Mas a razão não tem tal influência. As distinções morais, portanto, não são frutos da razão. A razão é totalmente inativa, e nunca poderia ser a fonte de um princípio como a consciência ou senso moral (T3.1.1.10.,p. 498).

As dificuldades levantadas por Hume sobre a razão não servir para

nossos juízos morais, nos levam a considerar que os juízos morais só podem

derivar seus pressupostos do senso moral. De fato, nossas paixões possuem

sua origem na percepção e são entendidas por Hume como impressões

complexas. Por isso Hume destaca sua importância para a fundamentação de

sua teoria moral. A explicação de Hume para isso parte do pressuposto de que

a moralidade é mais sentida do que julgada, devido à “retidão” ou à

“depravação” morais serem vinculadas aos nossos órgãos perceptivos e não à

nossa razão. Desse modo, Hume argumenta que nossas inferências morais se

originam do sentimento (ou caráter) do agente, virtuoso ou vicioso. Assim,

Hume define a sua compreensão do senso moral:

É somente quando um caráter é considerado em geral, sem referência a nosso interesse particular, que causa essa sensação ou sentimento em virtude do qual o denominamos moralmente bom ou mau. (T3. 1. 2. 4., p. 512).

Desse modo, o senso moral tal como entendido por Hume é semelhante

aconcepção de Hutcheson na medida em que valoriza os sentidos ao invés da

razão e muda sua análise, concentrando sua atenção na impressão imediata

que copiam as informações do plano físico para o plano mental, através das

ideias e as quais fazemos julgamentos sobre as ações e atitudes dos

indivíduos e formamos nossos juízos morais. A análise humeana admite que

possuímos em nossos juízos morais critérios empíricos, mas admite também

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que esses juízos não sãoeternos e imutáveis, assim como é impossível fazer

juízo morais baseados nas ações humanasutilizando-se de mecanismos

racionais, o que torna possível afirmar que a razão é insuficiente para declarar

qualquer juízo moral somente a partir dela. Por que: “Enquanto se admitir que a

razão não tem influência sobre nossas paixões ou ações, será inútil afirmar que

a moralidade é descoberta apenas por uma dedução racional” (T3. 1. 1. 7., p.

497).

Partindo desse princípio, Hume necessita estabelecer o que possibilita a

sensação fazer inferências morais, além de estipular como pode auxiliar em

sua formação da distinção entre sujeito e objeto. A explicação elaborada por

Hume consiste em dizer que não podemos estender a todos os casos não

observados por nossos sentidos nossos juízos costumeiros. Porque devido à

insuficiência de casos observados que possam servir de justificativa para

essas inferências, nós estaríamos circunscritos apenas àquilo que aparece

aos sentidos; nada pode ser declarado conhecido se não puder ser observado

ou percebido. Contudo, Hume observa que temos o hábito ou costume de

associarmos eventos ou ações individuais que observamos se repetirem no

passado e os projetarmos para o futuro.Por isso, se nos restringíssemos aos

sentidos inviabilizaríamos qualquer conhecimento através deles e quenão

viesse acompanhado da experiência. Como de fato Hume mostra ao declarar

que: “Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer ocorrência

individual, ou inferir qualquer causa ou efeito, sem a assistência da observação

e experiência” (IEH, 4.1., p. 59).Realmente, o que observamos é que a

experiência de casos observados repetidos no passado nos leva, pelohábito ou

costume a esperar o seu aparecimento futuro e assim fazermos inferências ou

juízos morais passados para o futuro,o que justificaria essa “projeção”dos

sentidos sem que haja a impressão imediata. Desse modo, essa projeção é

inteiramente subjetiva, e nos é fornecida através do hábito ou costumeque leva

a fazer inferências tantono plano físico como no plano mental. Por isso, Hume

afirma que devemos tomar como base de nossas inferências moraisos

sentimentos, pois se considerarmos a sensação como sendo contingente e

particular, praticamente "privada" nossos julgamentos só poderiam vir do

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sentimento que nos provoca cada ação percebida. Desse modoHume poderia

concluir:

Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Por que sua visão causa um prazer ou desprazer de um determinado tipo. Portanto, ao dar razão desse prazer ou desprazer, estamos explicando de maneira suficiente o vício ou a virtude. Ter o senso da virtude é simplesmente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contemplação de um caráter. O próprio sentimento constitui o nosso elogio ou admiração. Não vamos além disso, nem investigamos a causa da satisfação (T3. 1. 2. 3.,p. 510).

Na época estava em discussão sobre se a justiça10era artificial ou

natural. Mas na opinião de Hume algumas virtudes são artificiais e não

naturais, por serem obra da pura invenção da espécie humana, possuindo sua

base na educação, enquanto que as virtudes naturais, por se originarem das

inclinações naturais dos homens não seriam responsáveis pelo senso de

justiça. Existe ainda a explicação de Hume sobre a justiça ser entendida como

correlata da virtude, sendo uma fabricação artificial do homem. Contudo, os

limites do que seja uma virtude natural ou artificial parecem se confundir, já que

a justiça, mesmo sendo uma criação do engenho da mente humana, pode ser

também entendida como natural. Desse modo, Hume explica:

(...) assim como nenhum princípio da mente humana é mais natural que um senso da virtude, assim também nenhuma virtude é mais natural do que a justiça. O homem é uma espécie inventiva; e quando uma invenção é evidente e absolutamente necessária, é tão correto considerá-la natural quanto tudo que proceda imediatamente de princípios originais, sem intervenção do pensamento e reflexão. Embora as regras da justiça sejam artificiais, não são arbitrárias. Tampouco é impróprio utilizar a expressão leis Naturais para caracterizá-las, se entendermos por natural aquilo que é comum a uma espécie qualquer, ou mesmo se restringirmos seu sentido apenas ao que é inseparável dessa espécie (T3. 2. 2. 19., p. 524).

O que Hume objetiva esclarecer é que a virtude é natural, mas as regras

são artificiais.Decorre disso que Hume entende que o senso moral toma como

base para seus pressupostos as sensações. Porém não é qualquer emoção,

mas apenas aquelas emoções com que o ser humano está familiarizado. Hume

lista estas afeições “familiares” como: a afeição cordial, a compaixão e a

10

Hume considera que isso parece pressupor que até mesmo aquelas virtudes artificiais como a justiça sofrem desse mesmo problema, quanto a seus pressupostos serem passíveis de observação ou não.

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simpatia. Desse modo, a visão que podemos ter a partir dessa constatação é

que nosso senso moral deriva de nossos sentimentos; é a emoção ou

sentimento o que guia nossas determinações morais e que nos parece levar a

fazer inferências ou juízos morais. Conforme observamos no passado que os

mesmos sentimentos e emoções se repetiram nas mesmas ocasiões,

experimentamos através do hábito a sensação de sua repetição futurae somos

inclinados a inferir julgamentos e juízos morais tendo como base essa

pressuposição do passado se conformar com o futuro. Desse modo podemos

levados pressupor quea justiça nesse sentido está vinculada a essa

pressuposição de projetarmos inferências de casos passadas como regra para

casos futuros.

Desse modo, o que também podemos observar é que a justiça é

considerada por Hume como virtude artificial, por ser uma criação puramente

humana, possui a tarefa de “resolver” possíveis distorções que possam surgir

dos julgamentos particulares de cada indivíduo, embora também a virtude

artificial sirva para “qualificar” cada conduta humana diante da escassez de

exemplos que pudessem ser obtidos dos objetos físicos. Estas virtudes

artificiais são parte da natureza humana e são listadas por Hume como sendo o

egoísmo e a generosidade restrita. Nesse sentido, considerando que a

“escassez” de objetos físicos, como por exemplo, de terra, comida, abrigo, nos

obrigaria assim a elaborar as virtudes artificiais para atenuar nossas emoções

subjetivas (geralmente egoístas) ao mesmo tempo incentivaria a generosidade

equitativa entre os outros indivíduos. Além disso, a explicação de Hume sobre

a importância das virtudes artificiais na elaboração de sua teoria moral foi

capaz de explicar porque fazemos juízos morais partindo dessa relação entre o

plano mental e o plano físico, originando a concepção humeana de justiça

como uma virtude artificial. O contexto em que podemos constatar essa

explicação consiste em mostrar que nossa afeição torna comum a partilha de

uma propriedade entre amigos ou casais, mas a escassez desse produto ou

propriedade estimula nosso egoísmo e bloqueia qualquer tentativa de

generosidade nesse sentido. Desse modo, Hume propõe explicar que:

(...) a justiça tira sua origem exclusivamente do egoísmo e da generosidade restrita dos homens, em conjunto com a escassez das provisões que a natureza ofereceu para suas

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necessidades. Se olharmos para trás, veremos que essa proposição confere uma força adicional a algumas das observações que já fizemos sobre o assunto (T3. 2. 2. 18., p. 536).

O modo como Hume compreende essa relação entre egoísmo e

generosidade, que a princípio pareceriam dois sentimentos irreconciliáveis,

seria a partir de um mecanismo puramente emotivo, a saber, o princípio da

simpatia. Este princípio se mostra como uma capacidade natural do ser

humano, que distinguiria o vício da virtude. O "senso moral" humeano seria um

determinado sentimento que nos afeta e nos leva a julgar o que é moralmente

aceitável tanto em nós como nos outros homens. Hume ainda vai mais além e

afirma que esse sentimento não se encontra circunscrito aos homens, mas que

podemos encontrá-lo em outras criaturas e seres vivos. Contudo, esta teoria

em sua ciência humana é essencial para explicar a conduta e a convivência de

cada indivíduo em uma sociedade justa para todos. Sua teoria parte do

princípio de que:

(...)existe uma só criatura humana, ou se quer uma criatura sensível, cuja felicidade ou infelicidade nos afete em alguma medida quando está perto de nós ou é representada em cores vivas. Mas isso se deve meramente à simpatia, e não prova que haja uma tal afeição universal pela humanidade, uma vez que essa preocupação se estende para além de nossa própria espécie (T3. 2. 1.12.,p. 521).

Nesse sentido, Hume considera que o objetivo da criação da justiça ou

virtude como artifício da mente, derivaria inteiramente de nosso sentimento

simpático que nos levaria a evitar qualquer propensão ao egoísmo e à

autodestruição defendida em um Estado de natureza, onde não teríamos nem

o meu nem o teu e nos inclinaria à generosidade. Na verdade, podemos

encontrar na teoria moral de Hume a explicação que procura equilibrar

sentimentos egoístas com a propensão a generosidade através de sua teoria

da simpatia. Do mesmo modo, podemos considerar que essa teoria explicaria

essa relação entre vicio e virtude que encontramos na natureza humana e que

a princípio parecem tão dispares, mas que se complementam e respondem por

nossas distinções morais.Desse modo, Hume explica que a propriedade está

ligada à justiça, mostrando “a vontade constante e perpétua de dar a cada um

o que lhe é devido” (T3. 2. 6. 2., p. 565) derivaria inteiramente desta, ao mesmo

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tempo em que nega qualquer grau de anterioridade que remetesse a uma

condição da natureza humana.De fato considerando que as ações humanas

suscitamos mais variados julgamentos porque tomam como base as

particularidades de cada indivíduo, não havendo como derivarmos regras

gerais e universais que abrangessem todos os casos não observados.

Podemos concluir que as leis da justiça não poderiam se pautar por tais regras

universais na medida em que por serem inflexíveis tais regras não levariam em

conta as muitas exceções que podemos constatar em cada julgamento sobre

ações dos indivíduos. Além disso não podemos considerar que as leis da

justiça, caso seguissem tais regras universais, fossemconsideradas naturais ou

uma inclinação natural do ser humano, já que as ações humanas não são

regulares o tempo todo, a justiça só poderia ser fruto do artifício humano. Isso

é mostrado por Hume quando menciona:

Se considerarmos o curso ordinário das ações humanas, veremos que a mente não se restringe mediante regras gerais e universais; ao contrário, age na maioria dos casos tal como a determinam seus motivos e inclinações presentes. Como cada ação é um acontecimento particular e individual, tem de provir de princípios particulares e de nossa situação imediata quanto a nós mesmos e quanto ao resto do universo. Se, em alguns casos, entendemos nossos motivos para além dessas mesmas circunstâncias que os geraram e formamos algo como regras gerais para nossa conduta, é fácil observar que essas regras não são totalmente inflexíveis, admitindo, ao contrário, muitas exceções. Portanto, como é esse o curso ordinário das ações humanas, podemos concluir que as leis da justiça, sendo universais e absolutamente inflexíveis, nunca poderiam ser derivadas da natureza, nem ser fruto imediato de um motivo ou de uma inclinação natural (T3. 2. 6. 9.,p. 570).

Nesse sentido, Hume faz uma distinção entre aptidões naturais, que são

encaradas como uma qualidade imanente à natureza dos seres que os inclina

(mormente, aos arroubos de seus próprios instintos, algo muito parecido com o

que encontramos nos fenômenos naturais), e as qualidades morais, que

estariam ligadas a mecanismos puramente artificiais como a justiça, fonte do

engenho da mente humana. Por isso, Hume explica de modo geral,

confundimos uma com a outra e as consideramos como equivalentes, mas

Hume mostra haver diferenças fundamentais entre elas, a saber, que as

primeiras não podem ser modificadas seja pela arte ou pelo trabalho enquanto

as segundas podem ser modificadas por estas, ou pelas ações que delas

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sejam procedentes. Além disso, se considerarmos que as aptidões naturais

não podem ser modificadas porque estão restritas aos fenômenos naturais, por

sua vezas qualidades morais podem ser modificadas através de motivos como

recompensas e punições, elogios e censuras. Assim, Hume explica que

qualidades morais são responsáveis por nossas distinções morais, assim como

por nossos juízos morais.

Esta distinção entre aptidão natural e qualidade moral serve a Hume

para explicar como podemos fazer associações entre elas e como a partir

dessas associações podemos fazer inferências que são úteis para nossas

distinções morais. Além disso, serve também a sua posição na adoção do

princípio da simpatia como guia de sua teoria moral. A conclusão de Hume

para definir esse princípio consiste em explicar que:

Assim, por tudo o que foi dito, tenho esperança de que nada tenha faltado para tornar completa a demonstração deste sistema ético. Temos certeza de que a simpatia é um princípio muito poderoso na natureza humana.Também temos certeza de que exerce grande influência sobre nosso senso do belo, seja quando consideramos os objetos externos, seja quando formamos juízos morais. Constatamos que a simpatia tem força suficiente para nos proporcionar os mais fortes sentimentos de aprovação, quando age sozinha, sem a concorrência de outros princípios, como nos casos da justiça, da obediência civil, da castidade e das boas maneiras. Podemos observar que todas as circunstâncias necessárias para sua operação se encontram na maior parte das virtudes, que tem, em sua maioria, uma tendência para promover o bem da sociedade ou da pessoa que as possui. Se compararmos todas essas circunstâncias, não teremos dúvidas de que a simpatia é a principal fonte das distinções morais, sobretudo se pensarmos que qualquer objeção que se levantar a esta hipótese em um caso deverá se estender a todos os outros (T3. 3. 6. 1.,p. 657)

Desse modo, Hume pensa que o caminho correto para a formulação

deuma descrição do fenômeno da moral passaria necessariamente pela

sensação e o princípio da simpatia seria o ponto de apoio dessa descrição. O

caminho proposto por Hume na formulação da sua teoria moral consistiria em

mostrar que a sensação é parte importante de nossos julgamentos morais, mas

devido a seus limites estarem circunscritos aos dados dos sentidos, e por

nossas inferências epistêmicas ou morais irem além dos sentidos, necessita o

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apoio da experiência e da observação11. Os fenômenos por si mesmos não nos

dizem nada, mas a experiência nos mostra que tanto os fenômenos físicos

como os fenômenos mentais se repetem com determinada constância e

podemos com alguma segurança anteciparmos que eventos passados possam

se repetir no futuro. O que o afastaria certamente de qualquer interpretação ou

rótulo que busque descrever a moralidade em termos unicamente “sensualista”

(no sentido de estar presa apenas aos sentidos, às sensações). Hume, busca

mostrar que considerando a inconstância da natureza humana o único princípio

que permanece constante é o de simpatia. É através dela que conseguimos

saber separar vício de virtude e aprovarmos este ou aquela atitude como

virtuosa ou não. Nesse sentido, Hume propõe um novo caminho que o

diferenciaria dos filósofos metafísicos de sua época que valorizavam o

raciocínio ao invés da sensação e que justamente Hume põe na sensação o

motivo de fazermos inferências morais.Nesse sentido nos concentraremos no

próximo capítulo em fazer uma análise das posições defendidas pelos

comentadores de Hume que interpretam sua filosofia moral como subjetiva,

realista e intersubjetiva,

CapítuloSegundo

2.Sobre as interpretações da filosofia moral de Hume

No capítulo anterior procuramos mostrar, em linhas gerais, os principais

pensamentos dos filósofos do senso moral e o que os aproximavam e os

diferenciavam, na medida em que seus avanços colaboravam para estabelecer

11

Interessante conferir o artigo de Adriano Naves Brito que têm uma importante discussão sobre o papel do Empirismo na filosofia moral de Hume. Mais particularmente no seu artigo: “Hume e o Empirismo na Moral”” (BRITO, 2001, p. 23).

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uma interpretação inovadora para a filosofia moral na modernidade.

Necessitando mostrar queo fundamentado de toda a moral não está na razão,

mas na sensaçãoe esta é a grande inovaçãoque Hume operou na moral como

no conhecimento.Assim, nesse segundo capítulo, procuraremos mostrar as

diversas interpretações que estabelecem Hume ora como subjetivista, ora

como realista, concluindo que em nossa intepretação sua postura moral só

pode ser interpretada pelo viés compatibilista entre sensação e experiência que

reuniria através desse compatibilismo uma interrelação entre subjetivo e

objetivo.

2.1. A interpretação subjetivista

Segundo Hume, os juízos morais são enunciados baseados no

“sentimento” e não na “razão”, como a tradição moral anterior entende – isto é,

na medida em que interpreta a teoria como aquilo que assegura a primazia do

sentimento interno na origem de nossas atitudes morais (ainda que com base

em impressões de sensação) e procura explicar as distinções morais

apontando para a subjetividade humana. Comumente interpretou-se essa

posição de Hume como sendo subjetivista ou emotivista em moral, ou seja,

como alguém que nega qualquer qualidade moral e admite, por conseguinte,

não poder ter algum conhecimento sobre a moral. Não é difícil verificarmos

leituras que compreendem haver em Hume a doutrina segundo a qual os

estados avaliativos são descrições de estados subjetivos, ou seja, de estados

meramente psicológicos – isso se levarmos em consideração as frequentes

interpretações, guardadas as devidas ressalvas, que consideram a filosofia de

Hume como uma teoria meta-ética segundo a qual os nossos juízos morais

expressam nossos sentimentos, ou ainda, nosso subjetivismo (Cf. CONTE,

2000, p. 77).Deste modo, levando-se em consideração que alguns estudiosos

da filosofia de Hume tomam sua posição moral como inteiramente pautada no

subjetivismo, devemos entender que para esta interpretação a teoria de Hume

está fundamentada nos mecanismos psicológicos que servem de base para

nossas distinções morais. Podemos encontrar em Mackie (2005), Stroud

(1977), Fogelin (2009) e Ayer (2003), para citar apenas alguns, um claro

posicionamento que aponta nesse sentido. Mackie, por exemplo, entende que

a filosofia moral de Hume é subjetivista, porque em sua opinião a teoria de

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Hume é sem dúvidasensualista (MACKIE 2005 , p. 65). Já Stroud admite a

existência do subjetivismo na moral de Hume, só que apontando para uma

espécie de “projetivismo” que se dá através da sensação (STROUD 2000, 171

– 192). O projetivismo seria uma visão não realista segundo a qual os juízos

morais projetam nossas reações a certas propriedades naturais da ação e

caracteres sobre as próprias ações e caracteres (CONTE, 2001, p. 78). Na

opinião de Fogelin, a filosofia moral de Hume fundamenta-se em um

mentalismo pautado na associação dos fenômenos, que através das

sensações nos leva a sentimentosbons ou maus,nos levando através das

idéias a fazer julgamentos no domínio puramente mental (FOGELIN 2009, p.

263). Fogelin pensa que a posição de Hume a respeito da ciência humana ou

de sua moral reside justamente no plano mental, e que tudo estaria circunscrito

a esse domínio particular.

De fato, os fenômenos externos em si mesmos não nos dizem nada, e

nem poderiam, porque as conclusões ou juízos tirados de sua sucessão são de

origem inteiramente subjetiva, e a medida em que se repetem a nossos

sentidos podemos constatar haver um princípio de associação entre eles e que

nos permitiria emitir juízos e inferências sobre os fenômenos externos. Assim o

sujeito é quem observa e emite o parecer, e não os objetos inseridos no

mundo. Por isso, todas as nossas inferências morais estão centralizadas na

mente12. Esta posição de Hume, segundo pensa Fogelin, se mostra bastante

coerente com a sua interpretação da noção de Identidade contida no primeiro

livro do Tratado(T1) e está intimamente ligada às emoções e sentimentos do

indivíduo, esse é justamente o problema que Hume confessa no Apêndice do

Tratado: a identidade pessoal é fictícia mas ao mesmo tempo preciso dizer que

sou um eu que tem paixões, simpatia, etc.Assim Hume diz que: “A identidade

que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e de um tipo semelhante à

que atribuímos a vegetais e corpos animais” (T1. 4. 6.,p. 291). A posição de

Mackie é bastante semelhante à de Fogelin na medida em quetambém pensa

que a teoria moral de Hume considera que a distinção moral decorre da

12

Nesse sentido,veja-se a leitura de Annete C. Baier sobre as associações e o modo como elas afetam a mente e nos fazem emitir juízos morais sobre nossas ações e atitudes morais no Cápitulo 2 (e mais precisamente no nono tópico de seu “Death&Character”. (BAIER 2008, 113 - 147)

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sensação subjetiva. Isso ocorre porque Hume localiza a origem de nosso

prazer ou dor associada a uma sensação. Isso nos leva a supor que um

determinado sentimento é capaz de causar nossa atração ou repulsão, e que

motivaria nossas ações e julgamentos.Mackie, por exemplo, interpretade

maneira diferente essa ausência conectiva entre causa e efeito e a sensação.

De acordo com a interpretação de Mackie, o senso moral é análogo à

percepção de uma qualidade primária, isto é, a faculdade com a qual

discernimos as diferenças morais (vício ou virtude, prazer ou dor) daquelas

qualidades percebidas (como cor, sabor, odor e etc.), que seriam qualidades

secundárias. Para Mackie é necessário compreender que nossas atitudes

morais são reflexos do sentimento existente em cada pessoa, sendo que cada

pessoa pode reforçar ou não esses sentimentos, conforme a experiência que

tenha tido em sua vida as condicione a reforçar essa sensação seja de prazer

ou de dor,e que se mostrou agradável ou desagradável. Considerando que

cada pessoa possui diferentes interpretações do senso moral, e devido a isso

termos diversos pontos de vista.Somente a existência de uma sensação

comum a todos (do medo por exemplo) seria necessária para estabelecer um

ponto de vista geral e queabrangesse todas as nossas paixõesaté mesmo

aquelas não sentidas estariam justamente nessa capacidade associativade

projetá-las e assim universalizá-las.Essa valorização dos sentimentos na

filosofia de Hume poderia nos fazer interpretá-lo comoum filósofo moral

emotivista. Entretanto o que se constata é que a sensação destituída de

qualquer experiência é limitada, necessitando do auxílio da experiência para

fundamentar suas inferências e juízos morais.

Fogelin, comoMackie e Stroud, partilha da mesma opinião, porque

considera que Hume desenvolve em sua filosofia, um determinado projetivismo

tanto em sua moral como em seu pensamento causal. A posição de Fogelin a

esse respeito parte do princípio de que Hume nega que exista, nos próprios

objetos, alguma coisa que corresponda a nossos sentimentos morais ou a

nossos sentimentos estéticos (Fogelin, 2009, p. 126). Podemos encontrar uma

possível explicação desta interpretação de Fogelin sobre a moral humeana se

recorrermos à anàlise do ensaio “O cético”, escrita pelo próprio Hume, que

destaca a importância de entendermos a relação entre razão e as paixões

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(como T 2). Fogelin parte da análise deste ensaio para explicar que o ceticismo

de Hume não deve ser considerado mitigado assim como sua moral, e defende

ao mesmo tempo existir nesta um determinado projetivismo, considerando que

o projetivismo é a visão de que nossos julgamentos morais projetam nossos

sentimentos sobre o mundo externo, e analogamente, nossos conceitos morais

revelariam apenas a nossa disposição para projetar sentimentos sobre o

mundo. O fato é que Fogelin atribui ao ensaio “O cético” uma importância

fundamental para entender nossos sentimentos, os quais nos levam a atribuir

valores aos objetos, e mostrar como os mesmos são dependentes da

constituição dos mecanismos de nossa mente. Ora, Hume neste ensaio

observa que:

A paixão sozinha, que surge da estrutura e formação original da natureza humana, atribui valor ao objeto mais insignificante (...) mesmo quando experimenta sentimento de condenação ou de aprovação e declara um objeto disforme e odioso, e outro belo e amável, mesmo nesse caso, digo, essas qualidades não estão realmente nos objetos, mas pertencem inteiramente ao sentimento da mente que condena ou louva (AEE, O cético, 163, p. 130).

Mais adiante, no mesmo ensaio, Hume constata que “Os objetos não

têm em si mesmos absolutamente nenhuma serventia ou valor. Eles tiram seu

valor meramente da paixão” (AEE., O cético, 166, p.133). Por conseguinte, o

sentimento que nos é expresso por um poema nos agrada não porque o objeto

seja a fonte desta paixão, mas porque reside no sentimento ou gosto do leitor.

Se a interpretação de Fogelin tendo como base o ensaio “O cético” possibilita o

entendimento da filosofia de Hume como sendo projetivista, e nesta

perspectiva quando consideramos a experiência em algumas passagens no

Tratado, que reforçam tal interpretação, como por exemplo, o do assassinato

deliberado. Isso se torna evidente quando Hume afirma; “Desse modo, quando

declaramos que uma ação ou caráter são viciosos, tudo que queremos dizer é

que, dada a constituição de nossa natureza, experimentamos uma sensação

ou sentimento de censura quando os contemplamos” (T3. 1.1. 26. p. 508).

Desse modo, analisando nossas sensações não há nada que garanta haver

alguma conexão ou regularidade que venha a se mostrar como um critério

capaz de pressupor alguma projeção para o futuro. Somos levados meramente

pelo hábito e pela experiência passada de casos particulares a crer que estes

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podem vir a ocorrer no futuro. Mas se verificamos esse pressuposto

concluímos que isso não se evidência necessariamente. Temos outro exemplo

que mostra que a irregularidade de nossas associações contribui para essa

dúvida. Particularmente quando Hume diz que: “Mas há outras causas que se

têm mostrado mais irregulares e incertas: o ruibarbo nem sempre funcionou

como um purgante ou o ópio como um soporífero para todos os que ingeriram

esses medicamentos” (IEH. 6. 4.,p. 93). Isso parece mostrar que oprojetivismo

atribuído à teoria moral de Hume não se sustentaria, na medida em que nossos

sentimentos, assim como os fenômenos naturais, seriam necessariamente

instáveis e irregularesem todos os casos.Entretanto experimentamos a

repetição dos objetos através da sensação e sempre esperamos pelo hábito

de vê-los conectados e frequentes a associá-los em nossa mente. De fato, as

associações no leva a considerar, tomando como base a experiência passada

a fazermos projeções, ou melhor, observamos que os objetos seguem

princípios associativos, na medida que são reforçados pelo hábito e que nos

faz projetar nossas expectativas futuras mesmo quando o aparecimento do

objeto venha acompanhado por sua respectiva sensação.Devido a isso,

admitindo que só podemos imaginar os objetos habitualmente conectadas, mas

que de fato não verificamos tanto físico como mentalmente tal ligação, só a

experiência é que nos permitiria fazer esse “salto” associativo do observado

para o inobservado. Desse modo, Fogelin insiste no projetivismo na

interpretação do senso moral em Hume, mesmo considerando essas

“exceções”, pois em seu modo de ver é bastante plausível esta compreensão

dentro de uma interpretação geral da filosofia humeana. Não obstante, o

próprio Fogelin admite que o projetivismo carrega em si mesmo uma

determinada dificuldade a respeito de projetarmos nossos sentimentos sobre o

mundo, o que necessitaria de uma re-elaboração de seus pressupostos para

mantê-lo plausível. Isso com certeza o levou a pensar que de fato não faz

sentido atribuir sentimentos a objetos ou a ações contempladas pelo indivíduo.

Porque se nos sentimos deprimidos e tristes, parece que estes sentimentos

obscuros são projetados de modo a nos influenciar a ver o mundo de forma

deprimida e triste. Entretanto, não posso supor que o mundo represente este

meu estado de ânimo e seja ele mesmo "deprimido" ou "triste".

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Esta dificuldade consiste na forma com que a tristeza encontra-se em

minha mente e é projetada por mim sobre o mundo. Analogamente, podemos

afirmar que a conexão necessária é a forma que os sentimentos de expectativa

tomam quando projetados sobre acontecimentos observados por mim como

constantemente associados. Desse modo, o que podemos entender como vício

moral está na capacidade de projetarmos sentimentos de desaprovação ou não

que tenham como base o hábito e a crença de que os mesmos eventos podem

vir a se repetir, e por isso poderíamos aplicá-los a todos os casos que

encontremos nas mesmas condições. Assim, o que se faz necessário nesse

momento é uma explicação plausível sobre o que ligaria os sentimentos e

qualidades projetadas. Sem isso, será inviável podermos escolher qualquer

posição, seja ela do senso comum, seja projetivista. Portanto, a explicação

mais sensata seria a de que a atribuição de certas qualidades da consciência

(as cores e sons, por exemplo) é o resultado de uma introjeção característica

do mundo público na consciência (cf. CONTE, 2000, p. 83).

De fato, não encontramos um apoio explícito a essa interpretação moral

nos textos de Hume, que corroboreesta explicaçãoprojetivista. Não obstante há

indícios em partes do texto de Hume que nos levam a pressupor esta idéia,

principalmente quando ele discute sobre o vício e a virtude, que parece denotar

uma interpretação nesse sentido no Livro 3 do Tratado. Neste, encontramos a

explicação de que nossas avaliações morais não consistem, mas partem de

interpretações da nossa reflexão que se espelhamem juízos sobre fatos

empíricos; porque se examinarmos todos os fatos empíricos constataremos

que inexiste algo que possamos chamar vício.

Tomemos qualquer ação reconhecidamente viciosa: o homicídio voluntário, por exemplo, examinemo-la sob todos os pontos de vista, e vejamos se podemos encontrar o fato, ou existência real, que chamamos de vício. Como quer que a tomemos, encontraremos somente certas paixões, motivos, volições e pensamentos. Não há nenhuma outra questão de fato neste caso. O vício nos escapa por completo, enquanto consideramos o objeto. Não o encontraremos até dirigirmos nossa reflexão para nosso próprio íntimo e darmos com um sentimento de desaprovação, que se forma em nós contra essa ação. Aqui há um fato, mas ele é objeto de sentimento [feeling], não de razão. Está em nós, não no objeto. Desse modo, quando declaramos que uma ação ou caráter são viciosos, tudo que queremos dizer é que, dada a constituição de nossa

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natureza experimentamos uma sensação ou sentimentos [a feeling orsentiment] de censura quando os contemplamos. (T3. 1. 1. 26.p. 508)

Assim levando-se em consideração a afirmativa de Hume a respeito do

que realmente importa ser a sensação ou o sentimento do espectador – o que

parece contribuir para o entendimento de que a virtude e o vício estão

localizados no sentimento do espectador –, isso nos leva a considerar que

Hume se compromete com certa noção subjetivista em seus pressupostos. A

passagem acima propõe que, por mais atentamente que observemos uma

ação como virtuosa ou viciosa nunca descobriremos na ação a virtude ou o

vício. Deste modo, quando examinamos determinadas ações, com que são

pautados por um egoísmo exacerbado, o máximo que descobrimos é o indício

de paixões, motivos, razões, volições e pensamentos associados com o agente

da ação.

Podemos encontrar outras passagens na obra de Hume que dão

subsídios a esta interpretação, como, por exemplo, aquelas que discorrem

sobre os atos de ingratidão que contribuem para o argumento do assassinato

deliberado.

Perguntemo-nos então, em primeiro lugar, onde está o fato que aqui consideramos condenável; procuremos apontá-lo, determinar o momento de sua ocorrência, descrever sua natureza ou essência, explicar o sentido ou faculdade que o apreende. Ele reside na mente da pessoa que é ingrata; esta, portanto, deve senti-lo, deve ter consciência dele. Mas nada existe em sua mente exceto a paixão da hostilidade ou uma absoluta indiferença, e não se pode dizer destas que sejam atos condenáveis sempre e em qualquer circunstância. Só o são quando dirigidas contra pessoas que anteriormente expressaram e demonstraram boa vontade para conosco. Em conseqüência, podemos inferir que o ato moralmente condenável da ingratidão não consiste em nenhum fato particular e individual, mas decorre de um complexo de circunstâncias que, ao se apresentarem ao espectador, provocam o sentimento de censura, em razão da peculiar estrutura e organização de sua mente (IPM apêndice 1. 1. 6. p. 370).

Encontramos novamente neste trecho a defesa de Hume de que a moral

não reside na razão ou no entendimento, mas sua origem esta no sentimento.

Nestes termos, Hume nega que os valores pertençam, enquanto propriedades

intrínsecas, aos próprios objetos. Decorre disso que esta concepção favoreça

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uma interpretação antirrealista, que considera que as qualidades morais não

encontram referência, ou não são inerentes a ações ou objetos no mundo, mas

apenas estão restritas a nossos sentimentos, ou melhor, são o produto de

nosso estado psicológico.

Realmente, podemos reivindicar em apoio a esta perspectiva projetivista

ou anti-realista a interpretação de Stroud (2000, p. 176 – 177) e Fogelin (2009,

p. 16 – 28), que evocam as passagens em que Hume diz que a necessidade

causal seria análoga ao vício e à virtude. Ora, Hume entende que a explicação

da "necessidade" causal pode ser comparada à explicação do sentimento

moral do vício, na medida em que entende que tanto necessidade causal como

sentimento de vício ou virtude residem na mente:

Embora os diversos casos semelhantes que originam a idéia de poder não se influenciem mutuamente e jamais possam produzir uma nova qualidade no objeto que pudesse ser o modelo dessa idéia, a observação dessa semelhança produz uma nova impressão na mente; e é essa impressão que é seu modelo real. Após termos observado a semelhança em um número suficiente de casos, sentimos imediatamente uma determinação da mente a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha, e a concebê-lo mais intensamente em função dessa relação. Tal determinação é o único efeito da semelhança e, portanto, deve ser o mesmo que o poder ou eficácia, cuja idéia é derivada da semelhança. Os diversos casos de conjunções semelhantes nos conduzem à noção de poder e necessidade. Esses casos são, em si mesmos, totalmente distintos uns dos outros, e não têm nenhuma união, a não ser na mente que os observa e que reúne suas idéias. A necessidade, portanto, é o efeito dessa observação, e é somente uma impressão interna da mente, uma determinação a levar nossos pensamentos de um objeto a outro (T1. 3. 14. 20., p. 198).

Encontramos em outro lugar uma passagem que corrobora esta

interpretação: “Quando dizemos, portanto, que um objeto está conectado a

outro, queremos apenas dizer que eles adquiriram uma conexão em nosso

pensamento, e dão origem a essa inferência pela qual se tornam provas da

existência um do outro (...)” (IEH 7. 28, p. 114). Assim, identificamos em ambos

os comentários de Hume, tanto a respeito da conexão causal, como sobre o

sentimento moral, a existência da questão se determinadas qualidades (por um

lado, o vício e, por outro, a força ou necessidade) são qualidades encontradas

nos próprios objetos ou pertencem ao observador. Hume tende a admitir que

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ambas pertencem apenas ao observador. O que pode ser corroborado por ele

na medida em que:

A única impressão interna com alguma relação com aquilo de que estamos tratando é a propensão, produzida pelo costume, a passar de um objeto à idéia daquele que o acompanha usualmente. Essa é, portanto, a essência da necessidade. Em suma, a necessidade é algo que existe na mente, e não nos objetos” (T1. 3. 14. 22.p. 199)

E Hume prossegue anunciando que esta “propensão” que se “ramifica”

por todos os objetos está no costume de intuirmos que a:“(...) repetição não

revela e nem causa nada nos objetos, influenciando, apenas a mente,

mediante a transição habitual por ela produzida (...)” (T1. 3.14. 24.,p. 200).

Podemos destacar mais adiante outro trecho: “(...) transferindo a determinação

do pensamento para os objetos externos e supomos que existe, entre estes,

uma conexão real e inteligível – pois essa é uma qualidade que só pode

pertencer à mente que os considera“ (T1. 3. 14.p. 202).

Podemos evocar outra afirmação de Hume como o mostrado noO cético

em que ele chama a atenção sobre parecer haver exceções a conexão quando

o objeto provocador do sentimento agradável é o próprio sentimento.

Entretanto, isso acontece porque geralmente as paixões são instáveis e

irregulares, o que nos leva a interpretá-las com certa reserva, não conseguindo

desvincular seus pressupostos dos sentidos e dos objetos com precisão:

É comum supor, no entanto, que o caso é diferente em se tratando da beleza, natural ou moral. Pensa-se que a qualidade agradável está no objeto, não no sentimento, e isso meramente porque o sentimento não é tão turbulento e violento para se distinguir, de maneira evidente, da percepção do objeto (AEE, O cético, 165, p. 132).

Hume está se referindoaqui, neste último caso, à capacidade que a

mente tem de se ramificar ou de se espalhar nas “qualidades agradáveis” de

beleza ou de virtude, que pertencem antes ao sujeito que observa do que a

uma qualidade intrínseca do objeto mesmo.Podemos evocar ainda outra

passagem que possui o mesmo sentido, só que com outras palavras

destacadas por Hume, quando afirma que “Quando dizemos, portanto, que um

objeto está conectado a outro, queremos apenas dizer que eles adquiriram

uma conexão em nosso pensamento, e dão origem a essa inferência pela qual

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se tornam provas da existência um do outro (...)” (IEH. 7. 28. p. 114). Em uma

passagem importante do Tratado, ao explicar o sentimento moral, ele faz uma

comparação entre o vício e a virtude com as qualidades secundárias dos

objetos:

O vício e a virtude, portanto, podem ser comparados a sons, cores, calor e frio, os quais, segundo a filosofia moderna, não são qualidades nos objetos, mas percepções na mente. E essa descoberta da moral, como aquela da física, deve ser vista como um progresso considerável nas ciências especulativas, embora, exatamente como aquela, tenha pouca ou nenhuma influência na prática. Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer; e se estes forem favoráveis à virtude e desfavoráveis ao vício, nada mais pode ser preciso para a regulação de nossa conduta e comportamento (T3. 1. 1. 26. p. 508).

A comparação estabelecida por Hume entre vício e virtude com as

qualidades secundárias, como consideradas na filosofia moderna, é entendida

por Hume como sendo originada na mente e não nas próprias qualidades dos

objetos (T3. 1. 1.1 26.p. 508). Também esta passagem favorece uma leitura

subjetivista das qualidades morais. Aqueles que interpretam esta leitura da

comparação entre vício e virtude com as qualidades secundárias, sugerida por

Hume, consideram que Hume recusaria a objetividade dos valores (cf. Stroud.

2000. p. 187, e Mackie. 2005. p. 72).

As diferenças entre as qualidades primárias e secundárias encontram-se

compartilhadas, guardadas as devidas diferenças e explicações, por diversos

autores, como por exemplo, Galileu, Descartes, Robert Boyle, Newton, Locke e

muitos outros. Os estudiosos desta distinção e historiadores da filosofia 13

defendem que para aqueles filósofos modernos as qualidades sensíveis dos

objetos físicos eram de dois tipos; por um lado, propriedades realmente

pertencentes aos objetos, ou qualidades primárias tais como extensão, forma,

solidez, tamanho, etc., sendo, assim, partes constituintes dos objetos físicos.

Estas qualidades eram tidas como inerentes aos próprios objetos, por serem

totalmente inseparáveis dosmesmos, sendo, portanto qualidades objetivas,

13

Cf.YOLTON 1996, p. 220-223; MORA 2004, p. 2.422-2.427; ABBAGNANO, 2003 p. 816-817; ROVIGHI, 2002, p. 231-234.

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imutáveis e invariáveis. Deste modo, o conhecimento das propriedades nos

permitiria conhecer verdadeiramente os objetos em si mesmos. Por outro lado,

qualidades secundárias como cor, odor, sabor e aspereza não seriam

semelhantes aos objetos e nem possuiriam propriedades objetivas e invariáveis

dos mesmos. Devido a não terem semelhança real com as propriedades

objetivas, não existe nada inerente no objeto que indique semelhança, embora

sejam produzidas a partir da interação entre as qualidades primárias dos

objetos e os sujeitos que as percebem. De modo geral, as qualidades

secundárias são entendidas como originadas a partir das “afecções” do

organismo (e não das afecções dos corpos) suscitadas em nós pelas

qualidades objetivas ou primárias, sendo efeitos daquelas sobre os nossos

sentidos. Assim, se considerarmos que as qualidades secundárias derivam

apenas de nossas percepções, eliminando-se o sujeito sensitivo ou perceptivo

– ou melhor, não existindo órgão do sentido – não haveria realidade alguma

nelas e se diluiriam em puros nomes (YOLTON, 1996, p. 220-223).

Se considerarmos a explicação a respeito da doutrina corpuscular, os

objetos externos são constituídos, em si mesmos, de corpúsculos dotados de

determinadas propriedades como solidez, extensão, forma e movimento, e com

base nessa estrutura podemos explicar porque percebemos uma qualidade

secundária particular quando percebemos um objeto. Aqueles que defendem

esta posição entendem que existe uma uniformidade psicológica básica entre

os seres humanos que, excetuando-se aqueles possuidores de alguma

deficiência (como, por exemplo, os cegos), teriam o entendimento sobre o

mesmo tipo de impressão, e que existiria uma correspondência causal entre os

tipos de impressão as quais temos consciência e a estrutura corpuscular

causadora das impressões.

Encarava-se como um fato intrigante da natureza humana o possuir

consciência da existência de impressões de vários tipos; as explicações se

restringiam na tentativa de mostrar por que se tinha uma impressão de certa

qualidade secundária e não de outra. Por conseguinte, o objetivo dos

estudiosos com a distinção entre qualidades primárias e secundárias era

fornecer uma descrição pormenorizada da causa da impressão que uma

pessoa tinha de uma qualidade secundária. Entendia-se que a distinção entre

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qualidades primárias e secundárias era importante, porque mesmo que estas

últimas fossem variáveis e, pelo menos, em parte relativas ao sujeito que

conhece, considerava-se que o conhecimento das qualidades primárias – que

eram compreendidas como qualidades constitutivas nos próprios objetos –

garantiria o conhecimento objetivo das coisas, na medida em que poderia

dispor de um acesso à explicação da realidade independente da mente.

Igualmente, se considerarmos que à concepção corpuscular do século

XVII, que explicava como um indivíduo tinha consciência de um determinado

matiz particular de uma cor tomando como base a estrutura corpuscular do

objeto causador da impressão, Hume parece sugerir que devemos seguir

princípios semelhantes quando explica como alguém tem um sentimento de

virtude ou vício com base nas características de uma ação ou motivo causador

destes sentimentos. Deste modo, sugerindo que o sentimento moral é análogo

às qualidades secundárias, Hume parece entender que, tal como deveríamos

ser capazes de mostrar que, exatamente como a impressão de um matiz de

uma determinada cor é uma impressão particular, uma impressão de um

sentimento é uma impressão particular; ou melhor, que virtude e vício não

seriam características dos objetos (pessoas), mas fariam parte das ações que

experimentamos ao observar as pessoas, características que, tal como a

beleza de um círculo ou triângulo, existiria tão somente em nossa mente14, não

nos próprios objetos. Encontramos apoio nesse sentido nas próprias palavras

de Hume:

Euclides explicou completamente todas as propriedades do círculo, mas em nenhuma proposição disse sequer uma palavra sobre sua beleza. A razão é evidente; a beleza não é uma propriedade do círculo, não reside em nenhuma parte da linha cujas partes são equidistantes de um centro comum, mas é apenas o efeito que essa figura produz sobre a mente, cuja peculiar estrutura ou organização a torna suscetível de tais sentimentos. Em vão a procuraríamos no círculo, ou a buscaríamos, por meio dos sentidos ou do raciocínio matemático, em qualquer das propriedades da figura (IPM apêndice 1. 14, p. 375; AEE, O cético, 165, p. 132).

14

Penelhum declara que “a concepção de Hume da ciência da natureza humana reduz-se a vida mental e à interação entre impressões e idéias, e considera a mente como o teatro onde essa interação acontece (...)

14” (PENELHUM, 2009, p. 263).

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Podemos encontrar outras passagens na obra de Hume que reforçam

esta interpretação subjetiva de sua moral, como no Livro 3, Parte 1, Seção 2 do

Tratado, que nos apresenta uma explicação pormenorizada do sentimento

moral. Notamos que a passagem parece apoiar uma interpretação subjetivista

por parte de Hume, à medida que interpreta que uma ação pode ser virtuosa ou

viciosa por causa da sensação de prazer ou desprazer que ela evoca.

Ora, como as impressões distintivas, que nos permitem conhecer o bem do mal morais, não são senão dores e prazeres particulares, segue-se que, em todas as investigações acerca dessas distinções morais, bastará mostrar os princípios que nos fazem sentir uma satisfação ou um mal-estar ao considerar um certo caráter para nos convencer porque esse caráter é louvável ou censurável. Por que uma ação, sentimento ou caráter é virtuoso ou vicioso? Porque sua visão causa um prazer ou desprazer, estamos explicando de maneira suficiente o vício ou a virtude (...)o próprio sentimento constitui nosso elogio ou admiração. Não vamos além disso, nem investigamos a causa da satisfação(...) Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca de todo tipo de beleza, gostos e sensações. Nossa aprovação está implícita no prazer imediato que estes nos transmitem (T3.1.2, p. 510).

Constatamos na passagem acima citada que Hume concebe o

sentimento moral de forma análoga a qualquer uma das qualidades

secundárias, na medida em que entende que o objeto imediato da consciência

de alguém é uma impressão de um tipo particular;ou seja, é um sentimento de

um tipo particular de prazer ou dor. Hume recorre costumeiramente à

explicação dos sentimentos morais objetivando mostrar que só há um único

sentimento, o de prazer ou dor, que nos leva a louvar ou condenar um motivo,

caráter ou uma ação (T3 1. 2. 4, p. 511). O que convém entender neste trecho

é que Hume compreende que os sentimentos fazem parte de nossos

julgamentos morais, e que tambémse assemelhamaosentimento estético.

Assim, Hume mostra que o sentimento peculiar ao sentimento moral é causado

ou motivado pela observação de um motivo, de uma ação, ou de um caráter

(T3. 1. 2. 1, p. 509), e que por conseguinte ao formularmos uma explicação

deste prazer ou desprazer distintivos somos levados a explicar suficientemente

o vício e a virtude (T3. 1. 2. 3, p. 510).

Podemos destacar algumas outras passagens nos textos de Hume que

são esclarecedoras e podem apoiar a interpretação subjetivista da moral, como

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por exemplo, quando ele sustenta: “A moralidade (...) é propriamente mais

sentida do que julgada (T3. 1. 2. 1, p. 509) e podemos encontrar outro trecho

que acrescenta a este entendimento subjetivista da moral quando explica que:

“A essência mesma da virtude (...) é produzir prazer, e a do vício é causar dor

(...). O desprazer e a satisfação não são apenas inseparáveis do vício e da

virtude; constituem sua própria natureza e essência” (T2. 1. 7. 4-5, p. 330).

Mais à frente, encontramos outra importante passagem que contribui para esta

interpretação subjetivista, quando Hume diz “(...) a virtude se distingue pelo

prazer, e o vício, pela dor, produzidos em nós pela mera visão ou

contemplação de uma ação, sentimento ou caráter” (T3. 1. 2. 11, p. 515).

Podemos encontrar em outros textos de Hume indícios que favorecem

esta interpretação subjetivista em sua moral, como os que podemos destacar

no trecho abaixo, transcrito pelo próprio autor, que explica: “que o mesmo

objeto pode ser tanto doce como amargo, dependendo da disposição dos

órgãos, e o provérbio estabele com justiça que é infrutífero disputar sobre”

(AEE, O cético, p. 176). Destacamos também um trecho da Sinopse do Tratado

da Natureza Humana que reivindica um entendimento nesse sentido: “a moral

e a crítica dizem respeito a nossos gostos e sentimentos" (T, Sinopse, 3, p.

684). Existem também várias outras passagens em que nitidamente podemos

identificar uma tendência subjetivista na moral de Hume, como por exemplo

quando ele diz:

Se podemos nos fiar em algum princípio aprendido com a filosofia, este, penso, pode ser considerado certo e indubitável: não há nada que seja valoroso ou desprezível, desejável ou detestável, belo ou disforme em si mesmo. Tais atributos, ao contrário, surgem da constituição e da textura particular do sentimento e afecção humanos (AEE, O cético, 162, p. 129).

E também podemos encontrar na Investigaçãosobre o Entendimento

Humanoidéias favoráveis à concepção subjetivista da moral, na medida em que

Hume menciona as nossas noções valorativas do que seja moralmente bom:

Os assuntos ligados à moral e à critica são menos propriamente objetos do entendimento que do gosto e do sentimento. A beleza, quer moral ou natural, é mais propriamente sentida que percebida. Ou, se raciocinamos sobre ela, e tentamos estabelecer seu padrão, tomamos em consideração um novo fato, a saber, o gosto geral da

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humanidade ou algum outro fato desse tipo, que possa ser objeto do raciocínio e da investigação (IEH, 12. 33. p. 222)

Existem, ainda, muitas passagens que nos levam a admitir a posição de

Hume como pautada no subjetivismo, como, por exemplo, quando explica que

“O bem e o mal, tanto do ponto de vista natural quanto do ponto de vista moral,

são inteiramente relativos ao sentimento e afecções humanos” (AEE, O cético,

168, p. 135). De fato, se considerarmos que nossos juízos morais, assim como

nossas inferências mentais, seguem-se inteiramente dos desígnios da

sensação ou sentimento; e além disso, ações e juízos morais refletem nossas

atitudes na sociedade e como nos comportamos e agimos nela, poderemos

concluir que a formulação da ciência humana objetivada por Hume segue

regras inteiramente subjetivas, já que a mente é o bojo de nossas inferências.

Encontramos também no tratado outra passagem que evidencia essa

mesma posição:

A aprovação das qualidades morais com toda certeza não é derivada da razão ou de uma comparação de idéias; procede inteiramente de um gosto moral e de certos sentimentos de prazer ou desgosto que surgem da contemplação e da visão de qualidades ou caracteres particulares (T3. 3. 1. 15, p. 620).

Desse modo, Hume considera que as qualidades morais estão

fundamentadas na sensação e sentimentos, que são frutos da experiência e

observação de cada ser humano, o que leva a concluir que a razão não é a

fonte de nossas inferências e juízos morais. Hume compreende que nossos

sentimentos de alegria, tristeza, amor ou ódio, são reflexos de processos

inteiramente mentais. Não podemos encontrar nada no mundo externo que

valide o porquê de continuarmos a fazer ligações e associações nos objetos

quando esses nunca nos passam a noção da existência dessa suposta

conexão. E por isso nossas associações, do mesmo jeito que nossas

inferências morais, parecem incertas e obscuras.

Nesse sentido e a interpretação de Ayer a respeito da moral de Hume

como sendo essencialmente emotiva, à medida que centraliza toda a sua

atenção no aspecto sentimental de nossas distinções morais e considera que

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neste sentido podemos entendê-la como determinista. Em sua concepção,

Ayer entende a moral de Hume como “uma explicação das circunstâncias nas

quais somos induzidos a empregar predicados morais, e dos fins a que serve

sua utilização” (AYER, 2003, p. 115). Compreende-se então que para Ayera

moral de Hume derivaria de sua teoria da necessidade causal15 e por isso os

sentimentos deveriam ser entendidos nesses termos, o que afastaria a teoria

moral humeana definitivamente da compreensão vigente de seus

contemporâneos, que persistiriam em creditar seus pressupostos e inferências

morais somente àrazão.

Na interpretação de Ayer a respeito da tese moral de Hume, verificamos

que as determinações morais da natureza humana estão implicadas nas da

ciência, isto é, no princípio do hábito e do costume que norteia nossas

inferências, seja no âmbito moral, seja no epistemológico. Por isso nossas

deliberações morais são determinadas por nossos hábitos e costumes de inferir

a partir da experiência passada para o futuro. Nesse sentido, todas as nossas

ações morais, no entendimento de Ayer, são regidas por essa “(...) doutrina da

necessidade, e essa inferência dos motivos para as ações voluntárias, do

caráter para a conduta” (AYER, 2003, p. 105). E certamente nesse sentido

podemos concordar com essa interpretação de Ayer.

Outra posição que podemos destacar é a de Jacqueline Taylor, que

concorda com os demais autores ao admitir uma interpretação da moral de

Hume pautada no sentimento. Mas Taylor diverge dos demais intérpretes ao

considerar que o senso moral ou sentimentalismo de Hume fundamenta-se na

linguagem16. Ela pensa que Hume centraliza suas distinções morais levando

em conta um interlocutor inteligente e que é minimamente receptivo ao diálogo.

15

Nesse sentido,Conventry possui uma opinião parecida a de Ayer quando afirma que “Sentimos uma conexão costumeira entre as ideias na imaginação e transferimos esse sentimento aos objetos” (CONVENTRY, 2009, p. 143). 16

Contrário ao pensamento de Taylor, que admite uma teoria da linguagem em Hume claramente vinculada à moral, Danilo Marcondes discorda da existência de uma teoria da linguagem na filosofia de Hume. No entendimento de Marcondes: “A questão histórica sobre a origem das línguas que recebeu tanta atenção dos filósofos nesse período não despertou nenhum interesse em Hume. Não encontramos em sua obra filosófica nenhuma referência a este tema amplamente discutido de Wilkins a Rousseau. Hume tampouco considerou relevante a análise histórico das línguas para a compreensão do desenvolvimento da humanidade. Certamente estas questões eram demasiado especulativas e inconclusivas para um filósofo tão preocupado com critérios empíricos e céticos do que ultrapassa nossa experiência como foi Hume” (MARCONDES, 2005, p. 63).

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A base para esta afirmação por parte de Taylor está na admissão por parte de

Hume da existência de uma linguagem filosófica conectada com a cultura e

variedade histórica, o que responderia a um discurso e uma moral comum que

contribuiria para todos nós. Ela toma como base a afirmação de Pânfilonos

Diálogos Sobre uma religião Natural, notadamente a parte em quePânfilo diz:

É permitido a homens razoáveis diferirem naquilo em que ninguém pode razoavelmente ser positivo (...) o livro conduz-nos, de certa forma, ao companheirismo e une os dois maiores e mais puros prazeres da vida humana: o estudo e o convívio”. (DRN, Int., p. 2).

A interpretação de Taylor a esse respeito baseia-se no ensaio de Hume

“Do padrão do gosto”, em que nitidamente podemos constatar sua afirmação

sobre a divergência de discursos e sentimentos evidenciando uma moral do

discurso. Podemos encontrar esta posição de Hume quando diz “Os

sentimentos dos homens com frequência diferem em relação à beleza e

deformidade, em todos os seus gêneros, mesmo quando o discurso geral deles

seja o mesmo” (AEE, Do padrão do gosto, 227, p. 173). Esta afirmativa vai

mais além do que seus pressupostos evidenciam, pois compreende também

que as diferenças culturais igualmente levam a diferentes visões de mundo,

sentimentos e padrões de gosto. Como Taylor mostra ao considerar que

“(...)quando examinamoso que várias culturas entendem em particularpor um

termo referente a um traço, encontramos que a descrição do traço difere entre

culturas. Mesmo os termos gerais "virtude" e "vício" admitem diferenças acerca

dos traços compreendidos em caracteres admiráveis ou censuráveis17”

(TAYLOR, 2009, p. 337).

Mais adiante Taylor faz outra consideração a respeito de nossas

distinções morais vinculadas à cultura, pois aponta para o uso de termos

equivalentes aos da moral, como “vergonhoso”, “honorável”, “admirável” ou

“odioso”. Além disso, o termo “prudência” quando utilizado em sentimentos

contrários como o de prazer ou de dor, refere-se às características daquilo que

nós podemos descrever quando adicionamos e indicamos alguma instância

17

Taylor expressasuaposiçãonestestermos “(...) when we examine what various cultures mean by a particular trait term, we find that the description of the trait differs between cultures. Even the general terms virtue and vice admit of differences about which traits comprise admirable or blameable characters” (TAYLOR, 2009, p. 337).

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avaliativa de nossa parte (por exemplo,quando avaliamos positivamente a ação

prudente de uma pessoa).

Mas o que nos leva a interpretar a filosofia de Hume como não-realista

e atribuir a esta uma noção projetivista a partir de seus pressupostos? De fato,

várias passagens nos dão subsídios para nos posicionarmos a favor desta

posição. Principalmente quando Hume faz uma analogia comparando a

necessidade causal a associação que observamos nos objetos, na medida em

que explica que ambas têm como fonte a mente. Hume explica isso nesses

termos:

Embora os diversos casos semelhantes que originaram a idéiade poder não se influenciem mutuamente e jamais possam produzir uma nova qualidade no objeto que pudesse ser o modelo dessa idéia, a observação dessa semelhança produz uma nova impressão na mente; e é essa impressão que é seu modelo real. Após termos observado a semelhança em um número suficiente de casos, sentimos imediatamente uma determinação da mente a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha, e concebê-lo mais intensamente em função dessa relação.Tal determinação é o único efeito da semelhança e, portanto, deve ser o mesmo que o poder ou a eficácia, cuja idéia é derivada da semelhança. Os diversos casos de conjunções semelhantes nos conduzem à noção de poder e necessidade. Esses casos são, em si mesmos, totalmente distintos uns dos outros, e não têm nenhuma união, a não ser na mente que os observa e que reúne suas idéias. A necessidade, portanto, é o efeito dessa observação, e é somente uma impressão interna da mente, uma determinação a levar nossos pensamentos de um objeto a outro (T1. 3. 14. 20, p. 198).

2.2. – A críticahumeana a posição subjetivista

No entanto, a teoria de Hume parece ser contrária a essa interpretação

subjetivista de sua posição moral, pois, pode-se interpretá-la como uma teoria

que tem em vista a objetividade e auniversalidade em moral. Mesmo que seja

admitida a clara tendência em seus escritos para uma leitura subjetivista, em

que Hume rejeita a possibilidade da objetividadedentro da moral – devemos

lembrar que existem outras passagens que sugerem uma posição realista, que

no mínimo parecem defender um posicionamento objetivo e racional sobre a

moral. Isso nos leva a compreender que a interpretação subjetivista da moral

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de Hume pode ser vítima de uma leitura apressada e superficial de seus

escritos e que levaria como conseqüência a este entendimento subjetivista das

distinções morais. Deste modo, a negativa por parte de Hume a respeito da

moralidade consistir numa questão de fato particular, e, “mais especificamente

em qualquer questão de fato que possa ser descoberta pelo entendimento, não

implica, por si mesma, uma forma de subjetivismo ontológico sobre valores”

(CONTE, 2004, p. 96).

Neste sentido, devemos mostrar algumas dificuldades contra esta

interpretação que vincula a moral de Hume à posição subjetiva. Podemos

iniciar lembrando a reserva que Hume nutria a respeito do subjetivismo com o

qual ele próprio havia se comprometido.De fato, da mesma forma como

manifesta reserva a respeito da sua posição quanto aos juízos morais, Hume

reconhece que suas observações sobre as necessidades causais parecem ser

“extravagantes e ridículas” na medida em que elas centralizam na mente a

eficiência das causas ao invés de nos objetos. O que Hume objetiva mostrar é

que os fenômenos naturais em si mesmos não dependem de nós para

percebe-los. Assim os fenômenos naturais obedecem a regras particulares que

não estão vinculados a nossas sensações estabelecidas na mente, sendo

limitados aquilo que meramente aparece e estão subordinados a princípios

causais, mas não são suficientes para identificar a origem da causa que as

originou. Desse modo Hume indica que:

(...) Como se as causas não operassem de modo inteiramente independente da mente, e não fossem continuar sua operação mesmo que não existisse nenhuma mente para contemplar ou para raciocinar a seu respeito. O pensamento bem pode depender das causas para a sua operação mas não as causas do pensamento (T1. 3. 14. 26. p. 201).

Desse modo o que Hume objetiva mostrar é que podemos a partir dos

princípios causal derivar juízos e julgamentos corretos sobre a moral entretanto

não podemos fazer o mesmo sobre a origem ou a causa primeira do

pensamento, pois isso esta além de qualquer possibilidade investigativa.

Assim como observamos anteriormente, Hume estabelece uma analogia dos

sentimentos morais com a doutrina das qualidades secundárias, comparação

esta que tem sido entendida como uma clara indicação de sua posição sobre o

estatuto da virtude e do vício consistirem na forma de um subjetivismo

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ontológico ou metafísico. Nesse sentido, podemos encontrar semelhante

afirmação quando evocamos a observação feita pelo próprio Hume em uma

nota de rodapé do ensaio “O cético” (cf. nota, p. 133), onde compara as

qualidades morais às qualidades secundárias, mencionando a moderna

doutrina segundo a qual qualidades secundárias como as cores e sabores

estariam nos sentidos e não estariam no objeto. E que devido a isso nossas

considerações a respeito da moral ou da epistemologia estariam pautadas em

julgamentos inteiramente subjetivos. Claro que Hume defende a tese

subjetivista, mas relativiza seu alcance justamente, por considerar os limites

impostos aos sentidos. Contudo, Hume considera que mesmo assim podemos

obter do subjetivismo, considerando seu limite, informação confiável.

Por conseguinte,é pertinente verificar algumas alegações da

interpretação realista e as próprias passagens dos textos de Hume que têm

sido tomadas como apoio a essa interpretação de sua obra.

Mesmo que consideremos que os textos de Hume pressupõem uma

interpretação subjetivista, podemos destacar que uma interpretação realista

não é totalmente descartada, pois alguns intérpretes de Humea defendem

coerentemente, comoNORTON,(2005, Introdução, p. 182;e BEAUCHAMP

(1999, Introdução p. 42), para citar apenas os doisque apontam para uma

interpretação realista ou objetivista da teoria moral humeana. Esta

interpretação procura mostrar que Hume, em algum momento, ou corrige a

impressão subjetivista que parece defender em algumas passagens de sua

obra, ou faz alegações procurando garantir a força e a coerência de uma

concepção moral realista.

2.3. A interpretação realista

A concepção realista argumenta que os juízos morais podem ser

compreendidos, racionalmente;que seriam tidos como verdadeiros ou falsos, e

que os mesmos seguiriam procedimentos racionais capazes de identificar

ações moralmente não permitidas; ou ainda, que ações morais existiriam

independentemente dos sentimentos individuais. Assim, negar ‘os valores

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morais objetivos’ considerando-o como ilusões ou ficções, afirmaria o

objetivista, violaria a nossa experiência da expectativa que eles produzem

sobre nossa vontade e sobre nossas emoções e interesses. Podemos assim

declarar que todas as afirmativas drelatadas acima fazem parte do realismo,

ressaltando um ou outro aspecto destacado acima, de resto podemos

identificar muitos deles contido no termo realismo.

Assim, David Fate Norton é um dos que defende que existe, no

pensamento moral de Hume, uma clara posição “objetivista ou realista”, e nega

veementemente a posição daqueles que atribuem à filosofia moral de Hume

uma conotação “subjetivista”. Norton argumenta que a filosofia humeana é

objetiva, e considera Hume como um autêntico representante de um tipo de

realismo “mitigado” em filosofia moral. Um realismo que não seria derivado de

nenhum pensamento platônico, escolástico, cartesiano ou hutchesoniano.

Contrastando com àqueles que defendem que existe em Hume algum

tipo de subjetivismo, Norton apresenta sua versão segundo a qual Hume pode

ser interpretado como um realista moral, ao associá-lo ao pensamento realista

derivado de Hutcheson, e defende que igualmente poderíamos insistir na

afirmação de Hume a respeito das distinções morais, ou de virtude ou de vício,

serem entendidas como questões de fato, percebidas pelo sentimento e não

estabelecidas pela razão (T3. 1. 1. 26.p. 508). Neste sentido, Norton

compreende que para Hume e Hutcheson os termos morais não são produtos

originários do artifício, mas representam efetivamente alguma coisa real; do

mesmo jeito que enfatizaria a importância corretiva das regras gerais

(NORTON, 1982, 151 n; apudCONTE, 2004, p. 99).

Norton considera que, Hume objetiva mostrar que somos totalmente

incapazes de reconhecer qualquer conhecimento sobre a realidade, e que

devido a isso nãoalcançaríamos qualquer padrão legítimo de juízos de verdade

ou de falsidade, nem em metafísica e nem em epistemologia, o que poderia

nos levar a considerar Hume um tipo de cético pirrônico que a tudo questiona

sem ressalvas. Entretanto, o que podemos notar é que Norton defende uma

tese não homogênea da obra de Hume, à medida que entende a teoria moral

de Hume como anticética, por apelar para o senso comum; posição, segundo a

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visão dele, consistente com a visão amplamente defendida de que Hume é

num sentido muito importante um “naturalista”. O outro ponto a ser notado é o

argumento de Norton em que explica aidéia de que existe uma diferença

incontornável entre a filosofia moral de Hume e sua epistemologia. Essa

diferença poderia ser explicada a partir da afirmação de que os sentimentos

são considerados como a base da maioria de nossos juízos a respeito do que

aprovamos ou desaprovamos em termos de moral.

Em defesa dessa tese, que compreende como ceticismo moral uma

posição defendida por Hobbes, Norton recorre a essa interpretação com o

objetivo de mostrar que Hume antes a rejeita do que se aproxima desta

compreensão. No entendimento de Norton, a abordagem moral oferecida por

Hume é definitivamente positiva, e esta abordagem concede um importante

papel à razão, envolvendo um psicologismo moral em seu conteúdo

epistemológico e uma forma de realismo moral ontológico.

Conforme mostra Norton, Hume participa de uma visão metafísica que

concebe que as distinções morais tomam como base a existência objetiva e

que independem da mente de quem observa (ou ainda, que as idéias de

virtude ou vício representam a realidade moral objetiva ou externa), e uma

posição epistemológica segundo a qual podemos identificar os sinais pelos

quais as distinções morais podem ser conhecidas. Neste sentido, Hume

defenderia, segundo Norton, que os enunciados sobre vício e sua

desaprovação não são correlatos ou idênticos na medida em que as qualidades

morais não são sentimentos, mas são antes correlatos objetivos dos

sentimentos (T3. 1. 1 – 2.,p. 495 - 96). São qualidades morais que existem

independentes da mente, que possuem existência no mundo e estão além de

nossa consciência. Norton defende essa interpretação por reconhecer que

Hume distingue entre o fato do caráter ou uma ação ser virtuosa e os

sentimentos que esta ação virtuosa invoca.

Mas com esta interpretação Norton não está querendo afirmar, ao falar

de correlatos objetivos, que virtude e vício são objetos no sentido comum da

palavra, como são, por exemplo, aqueles objetos físicos, ou que estes

possuam uma realidade transcendente. Pelo contrário, no entendimento de

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Norton o que está em jogo é o comprometimento de Hume com a visão de que

os sentimentos morais estão sujeitos a aspectos do mundo publicamente

disponíveis e em decorrência disso apontam para alguma coisa que esta além

deles mesmos. Porque propriedades simples ou qualidades morais podem ser

consideradas como correlatas aos objetos do sentimento. Dito de outro modo,

Norton está sugerindo que Hume considera virtude e vício como aspectos

publicamente acessíveis da sociedade humanae portanto real.

Norton parte, então, do pressuposto de que Hume afirma podermos

descobrir qualidades morais no mundo, mas que essas qualidades só

existiriam em nós mesmos, e Hume atribuiu a Hutchesona ideia de que a

moralidade ‘diz respeito somente à natureza humana e à vida humana’.

Entretanto, Norton observa que Hume sugere uma teoria em que a retidão e o

erro moral não estão nem nas questões que envolvem uma preferência

individual nem de qualquer preferência de um grupo. Podemos descrever,

então que a posição defendida por Hume está ligada à existência de uma

“espécie de padrão moral” real no qual os juízos morais podem mais ou menos

adequar-se com rigor e ele esta na síntese do padrão de gosto físico e mental

(E, Do padrão do gosto, 242,p.187).Mas parece que Hume não concorda que

este padrão possua uma existência independente dos seres humanos ou que

nossos juízos morais estão fundamentados em atitudes certas ou atitudes

erradas (E, Do padrão do gosto., 230.,p. 176).

A interpretação de Norton quando avalia que virtude e vício são

diferentes do estado psicológico, consiste em afirmar que os primeiros (as

virtudes) estão ligados a nossas sensações, enquanto queos segundos estão

situados no plano associativo (psicológico). Contudo, tanto o primeiro (vícios e

virtudes) como o segundo (associações psicológicas) tem em comum a

capacidade de nos levar a fazer inferências morais; e podemos considerar a

sua origem também como análoga aos estados mentais, o que parece bem

contraditório, afirma Norton. Por isso, é somente na condição de um

determinado estado de coisas objetivo (seu ser virtuoso) que podemos através

da paixão originar o sentimento da estima que podemosassociar ao objeto

desta estima. Entretanto, se as paixões representam signos de qualidades

morais – e se as paixões são dependentes da realidade de coisas objetivas e

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as refletem, como Hume afirma; conclui-se que as virtudes significadas pelas

paixões dependem destes mesmos estados de coisas e os refletem (NORTON,

1982, p. 102; apud CONTE, 2004, p. 102). Podemos entender o pensamento

realista de Norton do seguinte modo: (1) Existe determinado estado de coisas

objetivo (um ser virtuoso) que nos afeta despertando nossas paixões, e (2)

dado que são evocados pela percepção de seu ser virtuoso, elas igualmente

refletem um estado de coisas objetivo. Resumidamente, Norton entende que a

teoria moral compreende: (a) uma realidade moral, (b) os sentimentos morais e

(c) relações causais entre eles, e (d) uma relação epistêmica entre eles

(CONTE, 2004, p. 102, citando NORTON, 1982, p. 149).

2.4 – A criticahumeana a posição realista.

A posição defendida por Norton, que interpreta a filosofia moral de Hume

como realista, não é imune a críticas. Podemos mostrar algumas que mostram

a fragilidade de suas considerações. Norton, para sustentar esta sua posição,

necessita mostrar que não somente virtude e vício existem como entidades

separadas, mas igualmente que os valores morais atribuídos a essas entidades

não são derivados dos elementos constitutivos de nossa consciência. Dito de

outro modo, se Norton pensa dessa forma, ele deve mostrar que Hume

acredita realmente que virtude e vício devem existir como entidades separadas

na ausência de nossos sentimentos a seu respeito (CONTE, 2004, p. 102).

Se consultarmos a Investigação sobre os princípios da moral,

notaremos, entretanto, que Hume parece dizer que virtude e vício surgem em

conseqüência de termos sentimentos agradáveis e desagradáveis em

determinadas ocasiões. Assim, Hume descreve que, se não tivéssemos

quaisquer sentimentos sobre o mundo, não haveríamos de achar nada virtuoso

ou vicioso. Encontramos apoio nesse sentido quando Hume propõe que nosso

sistema de moralidade deriva diretamente da forma particular como os seres

humanos foram educados nessa sociedade humana. Parte dessa discussão

está fundamentada na concepção de que a moral é originada de aspectos

racionais ou emocionais, e Hume menciona que a moral “(...) como a

percepção da beleza e da deformidade, estáinteiramente fundadana estrutura e

constituição particulares da espécie humana” (IPM. 1. 3.p. 226). Em outras

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palavras, ele acredita que vício e virtude derivam sua existência da forma como

nossos sentimentos são constituídos:

Assim, os distintos limites e atribuições da razão e do gosto são facilmente determinados. A razão transmite o conhecimento sobre o que é verdadeiro ou falso; o gosto fornece o sentimento de beleza e deformidade, de virtude e vício. A primeira exibe os objetos tal como realmente existem na natureza, sem acréscimos ou diminuição; o segundo tem uma capacidade produtiva e, ao ornar ou macular todos os objetos naturais com as cores que toma emprestadas do sentimento interno, exige, de certo modo, uma nova criação (IPM, apêndice, 1. 21,p. 377).

Existe ainda uma forte razão para rejeitarmos a interpretação realista

defendida por Norton, pois o que Hume defende éque a origem da virtude ou

do vício tem ligação direta com a faculdade produtiva do sentimento,

concepção esta contraposta diretamente com a alegação realista moral de que

as verdades morais existeme estariam desvinculados de nossos sentimentos.

Na compreensão de Hume, se retirássemos as emoções humanas, não haveria

qualquer relação ou questão de fato humana no mundo que pudéssemos

chamar de boa ou má.

Ele (o fato ou julgamento) reside na mente da pessoa que é ingrata; esta, portanto, deve senti-lo, deve ter consciência dele. Mas nada existe em sua mente exceto a paixão da hostilidade ou uma absoluta indiferença, e não se pode dizer destas que sejam atos condenáveis sempre e em qualquer circunstância. Só o são quando dirigidas contra as pessoas que anteriormente expressaram e demonstraram boa vontade para conosco. (IPM, apêndice, 1. 6. p. 370)

Assim considerando a interpretação realista que concebe a virtude e o

vício como existentes e independentes de nossos sentidos,somos levadosa

aceitarque existe em nós uma divisão entre o físico e o mental, o que implicaria

em dizer que Hume seria um dualista a exemplo dos cartesianos, o que

inviabilizaria quaisquer verdades morais obtidas através da intuição, da razão

ou do sentimento. Deste modo, em um hipotético mundo em que haja ausência

de sentimentos, um realista poderia apoiar-se na idéia de que virtude e vício

existiriam em relação ou em questão de fato, em estados de “coisas objetivas”.

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Entretanto, considerando este fato, Hume afirma que a virtude não estaria

simplesmente em uma relação ou questões de fato. Essa conclusão de Norton

parte do pressuposto de que juízos morais que tenham como fonte questões de

fato, não servem de critério válido para nossas inferências morais, devido as

questões de fato conterem em seus pressupostos a capacidade de ultrapassar

os dados dos sentidos. De fato, Hume explica que muitas de nossas

considerações morais tomariam como base a contigüidade e a semelhança,

contudo estas não são critérios válidos capazes de sustentar a crença em

questão de fato cujo o conteúdo ultrapasse os sentidos ou a memória.

Podemos constatar isso quando observamos dois objetos contíguos que se

encontram sempre na mesma situação, a menos que suponhamos existir um

nexo causal que os ligue, ou que dois objetos semelhantes podem ou não ser o

mesmo objeto, e por tanto, ser ou não idênticos. Pois para fundamentar nossos

julgamentos morais necessitamos, necessariamente, recorrer às considerações

causais.

Não obstante, essa conclusão de Norton parece negar igualmente a

relevância que o sentimento tem, dada sua capacidade de poder, com o tempo,

se tornar em um outro sentimento, como por exemplo o ódio em amor, e a

timidez em coragem. Já a razão, por sua vez, não possui uma posição

destacada na teoria moral de Hume, explica Norton, devido como se sabe ele

darmaior relevância aos sentimentos do que a razão.Considerando que Hume

atribui à razão a capacidade de fazer julgamentos a respeito de questões de

fato ou relações, e queorealista, ao assumir a razão como seu fundamento,

seria capaz de distinguir virtude e vício sem levar em consideração as emoções

ou sentimentos, pareceria acreditar erroneamente em nossa capacidade de

julgar relações e questões de fato sem vincular esses julgamentos

necessariamente a nossos sentimentos, o que para Hume seria inconcebível.

Mas, embora a razão, quando plenamente assistida e desenvolvida, seja suficientemente para nos fazer reconhecer a tendência útil ou nociva de qualidades e ações, ela sozinha não basta para produzir qualquer censura ou aprovação moral. A utilidade é apenas a tendência a atingir um certo fim, e, se esse fim nos fosse de todo indiferente, deveríamos sentir a mesma indiferença em relação aosmeios(IPM, apêndice 1. 3, p. 368).

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Assim, considerando que, por um lado, as razões elencadas acima

servem para rejeitar a interpretação meramente realista da moral de Hume, no

sentido de qualidades morais como vício ou virtude serem entendidas como

possuindo uma existência objetiva independente de nossos sentimentos, por

outro lado, não podemos excluir a possibilidade de existir algum tipo de

realismo na filosofia de Hume.

2.5– Objetivismo e universalismo em Hume

De fato, encontramos na filosofia de Hume elementos que apóiamsua

defesa de uma concepção moral que envolve uma síntese de sensação e

experiência como fundamento eobjetividade da moralidade. A idéia de um

fundamento objetivo da moral nos faz pensar que a moralidade não pode ser

considerada sob o ponto de vista da interpretação subjetivista, mas parte

daconsideração de haver uma determinada independência do agente moral

relativa a suas emoções, ou seja, daquele que faz uma ação, e do espectador

moral, ou melhor, explicando, daquele que observa a ação. Obviamente que

podemos encontrar em Hume, apenas, uma concordância parcial sobre aidéia

de objetividade em nossa moral, já que nossos julgamentos sobre as ações

não podem ser separados de nossos sentimentos e dos objetos que motivam

tais julgamentos.

Assim, o reconhecimento de Hume de que as avaliações morais partem

do caráter das sensações/emoções do indivíduo e estão sujeitas às limitações

e circunstâncias de quem observa, nos levaria, a princípio, a tê-las como

evidentes. Isso, porém não quer dizer que estejam corretas. Nesse sentido,

Hume constrói uma segunda interpretação em que afirma ser possível

conseguirmos alcançar um grau de imparcialidade que torna possível corrigir o

ponto de vista individual.

Nossa situação, tanto no que se refere a pessoas como a coisas, sofre uma flutuação contínua; um homem distante de nós pode, dentro de pouco tempo, se tornar conhecido íntimo. Além disso, cada homem particular ocupa uma posição peculiar em relação aos outros; e seria impossível conseguir conversar com alguém em termos razoáveis, se cada um de nós considerasse os caracteres e as pessoas somente tais

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como nos aparecem de nosso ponto de vista particular (T3. 3. 1. 15.p. 620).

Seguindo este mesmo pensamento, Hume compara as correções que

podemos fazer sobre nossos pontos de vista pessoais, objetivando a

imparcialidade, com as correções que podemos fazer na avaliação do tamanho

e formas dos objetos físicos:

Todos os objetos parecem diminuir com a distância; mas, embora a aparência sensível dos objetos seja o critério original pelo qual os julgamos, não dizemos que eles realmente diminuem ao se distanciarem; corrigimos sua aparência pela reflexão, e assim chegamos a um juízo mais constante e estável a seu respeito. Da mesma maneira, embora a simpatia seja muito mais fraca que nossa preocupação por nós mesmos, e uma simpatia para com pessoas afastadas de nós seja muito mais fraca que para com pessoas contíguas ou vizinhas, desprezamos todas essas diferenças quando formamos juízos serenos a respeito do caráter dos homens (T3. 3. 3. 2.p. 642).

Dessa maneira, Hume considera que podemos estar corretos ao assumir

uma posição de imparcialidade em nossos juízos morais, na medida em que

intuitivamente declaramos nossos juízos semelhantes em ações semelhantes,

se o agente é amigo ou inimigo de algum vizinho ou cidadão estrangeiro (T3. 3.

1. 15 – 19; 3. 3. 3. 2; IPM, 5. 40 – 41.p. 294 – 295). A explicação de Hume

para esta interpretação é empírica: pois partimos da experiência sabendo que a

maior parte das pessoas tem os mesmos juízos diante das mesmas

circunstâncias. O que encontramos exposto nessa visão de Hume é que as

faculdades mentais cognitivas são semelhantes em todos os homens (IEH,

8.1,p. 119). Este pensamento encontra-se claro na afirmação da universalidade

da moral, Hume se declara a favor de uma moralidade que se pressuponha

imparcial:

A noção de moral implica algum sentimento comum a toda a humanidade, que recomenda o mesmo objeto à aprovação generalizada e faz que todos os homens, ou a maioria deles, concordem em suas opiniões ou decisões relativas a esses objetos. Ela também pressupõe um sentimento universal e abrangente para estender-se a toda a humanidade e tornar até mesmo as ações e os comportamentos das pessoas mais distantes em objetos de aplauso ou censura, conforme estejam

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ou não de acordo com a regra de correção estabelecida (IPM, 9. 5.p. 351).

Neste sentido, Hume declara que, tal sentimento, deriva de um “principio

universal instituído na constituição humana”, a qual necessita “tocar uma corda

à qual toda humanidade faça coro e harmonia”. Nesse sentido, como o

Tratadonos revela, trata-se aqui do princípio da simpatia – que é um

mecanismo psicológico que equivale à capacidade que temos de nos

colocarmos no lugar do outro, o que nos faz imaginar poder sentir tudo que o

outro sente, seja este sentimento agradável, seja desagradável ( T2. 1. 11.p.

350 - 359). Portanto, entende-se que este princípio é a capacidade para

emocionar-se ou ser afetado pela alegria ou sofrimento dos outros; porque

parte da tendência humana que gera um tipo “especial de envolvimento

emocional”, que também leva em consideração a experiência dos outros e nos

leva a determinado sentimento de aprovação ou desaprovação.

Neste sentido, podemos considerar que o princípio de simpatia

representa em muitos casos o fenômeno de nossa vida sentimental, e

especificamente aquelas emoções morais que são entendidas como

sentimentos particulares que podem chegar a ser experimentados pelos outros.

Considerando nossas emoções, este princípio é o único capaz de fornecer “o

mérito da moral ou de qualquer sistema geral de censura ou de louvor”

(CONTE, 2004, p. 108). Desse modo, Hume comenta que se verificarmos o

princípio de simpatia o que constataremos é sua influência no observador, que

se estenderia àquelas idéias ou sentimentos que envolvem determinadas

ações do agente e estariam inseridos em um sistema psicológico existente em

cada indivíduo, o qual responderia por nossas sensações agradáveis ou

desagradáveis. Estas idéias, portanto, são transformadas em ações agradáveis

ou desagradáveis, existentes no próprio observador (T2. 1. 11.p. 350 – 358); e

(T3. 3. 1.p. 613 – 630). Nós reagimos e sofremos influência direta da simpatia,

principalmente naquilo que observamos e julgamos sobre as ações das

pessoas entre si, sejam elas positivas, sejam elas negativas. Desta forma, a

partir da inferência da causa de sua ação, os observadores direcionam os

sentimentos de aprovação ou reprovação da pessoa agente.

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De fato, encontramos em nossas próprias considerações a respeito de

nossos sentimentos a inclinação de respeitar e entender os motivos e emoções

do outro (agente) tendo como base nossa própria experiência ordinária. E,

nesse sentido, Hume está convicto dessa inclinação, na medida em que

entendeque “enquanto o coração humano for composto dos mesmos

elementos que hoje contém, jamais será totalmente insensível ao bem público

nem inteiramente indiferente às tendências dos caracteres e condutas” (IPM, 9.

6.p. 352). Nesta mesma perspectiva ele explica que quando o indivíduo atribui

atitudes virtuosas ou viciosas a uma pessoa, ele parte de sua própria

experiência e considera estas atitudes, sejam elas virtuosas ou viciosas,

constituintes, igualmente, do caráter do outro sujeito. Assim, os sentimentos

que se originam do princípio de simpatia são os mesmos em cada um de nós, e

por consequência estendemos a mesma apreciação moral a respeito de todos

os outros homens, o que torna possível, pensa Hume, alcançar um

entendimento universal e objetivo sobre a moral.

Entretanto, se considerarmos a opinião comum como pautada no

universalismo, ou melhor, a partir do ponto de vista objetivo, poderíamos

entender que o agente seria levado a uma situação tal que sua subjetividade

seria abstraída diante de situações e sentimentos isolados que o

condicionariam a ter uma perspectiva particular e já não mais universal. A

maneira como isso ocorre, segundo Hume, está na consideração da existência

de padrões impessoais e objetivos pelos quais os juízos morais não seriam

meramente a expressão de sentimentos ou enunciados que descrevem,

simplesmente, sentimentos particulares. Contrariamente a isso, o agente

adotaria uma posição imparcial e, munido da perspectiva e sentimentos do

outro (que são também os seus), passaria a se posicionar em uma situação

que assumiria um ponto de vista geral e estável. Mas mesmo assim, não

devemos esquecer que nossos julgamentos ainda estão subordinados aos

sentimentos particulares do observador, como a interpretação subjetivista

defende.

Por conseguinte, as crenças e sentimentos morais são na maioria das

vezes formados a partir das situações particulares dos indivíduos. Entretanto,

Hume explica que as pessoas universalmente compartilham os mesmos

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sentimentos e experimentam as mesmas situações morais, e conseguem obter

o mesmo juízo moral quando são imparciais sobre isso. (IPM, 9. 7.p. 353). Isso

pode ser mostrado, por exemplo, quando obtemos informações sobre

determinada pessoa, e imbuídos de uma opinião imparcial sobre a mesma,

geralmente, todos nós fazemos os mesmos juízos sobre as virtudes e vícios

dessa pessoa. Desse modo, o universalismo do sentimento moral envolve

todas as pessoas que compartilham o mesmo interesse, adotando uma

perspectiva imparcial e que comungam dos mesmos sentimentos morais.

Consequentemente, os sentimentos morais universalmente aceitos geram

regras morais universalmente aceitas, que assumem o caráter de norma e que

podemos observar tanto nos objetos externos como nas ações humanas.

Hume explica sua posição a respeito da universalidade na moral ao defender

que:

Quando um homem chama outro de seu inimigo, seu rival, seu antagonista, seu adversário, entende-se que ele está falando a linguagem do amor de si mesmo e expressando sentimentos que lhe são próprios e que decorrem das situações e circunstâncias particulares em que está envolvido. Mas, quando atribui a alguém os epítetos de corrupto, odioso, ou depravado, já está falando outra linguagem e expressando sentimentos que ele espera que serão compartilhados por toda sua audiência. Ele deve, portanto, distanciar-se de sua situação privada e particular e adotar um ponto de vista comum a si e aos outros; ele precisa mobilizar algum princípio universal da constituição humana e ferir uma tecla com a qual toda a humanidade possa ressoar em acordo e harmonia. Assim, se pretende expressar que um certo homem possui atributos cuja tendência é nociva à sociedade, terá escolhido esse ponto de vista comum e tocado um princípio de humanidade com o qual toda pessoa, em certa medida, concorda. Enquanto o coração humano for composto dos mesmos elementos que hoje contém, jamais será totalmente insensível ao bem público nem inteiramente indiferente às tendências dos caracteres e condutas (..) A ambição de uma pessoa não coincide com a ambição de outra, e um mesmo objeto ou acontecimento não pode satisfazer ambas. Mas a humanidade de um homem coincide com a humanidade de todos os outros, e o mesmo objeto excita essa mesma paixão em todas as criaturas humanas (IPM, 9. 6.p. 352).

Encontramos nesta passagem a admissão de Humede que no campo

dos juízos morais todos reagem aos fenômenos externos através da emoção,

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com base em "algum princípio universal da constituição humana". Neste

sentido, podemos dizer quando Hume menciona que os objetos dos nossos

sentimentos, ou melhor, as qualidades úteis ou agradáveis, prejudiciais ou

desagradáveis, são comuns a todos ele quer dizer que há um sentimento

comum que é compartilhado por todos os homens, como a tristeza ou a alegria.

E não só todos reagem da mesma maneira, como reagem da mesma forma

sobre as mesmas coisas em circunstâncias análogas.A simpatia assim seguiria

regras parecidas que seria comum a todos os homens e poderia por meio disso

serem universalizadas.

Essa uniformidade dos sentimentos pode ser utilizada como uma

justificativa para contestar asinterpretações tanto subjetivista como realistada

filosofia moral de Hume e verificar a própria defesa humeanada possibilidade

de um conhecimento de princípios estáveis que guiam o comportamento

humano e, consequentemente, o fenômeno da moralidade, semelhante ao que

podemos encontrar nas ciências naturais, que tratam dos fenômenos físicos.

Os mesmos dotes de espírito, em todas as circunstâncias, estão em conformidade com os sentimentos da moral e com os sentimentos humanitários; o mesmo temperamento é suscetível de elevados graus de um e de outro sentimento; e a mesma alteração nos objetos, pela sua maior aproximação ou envolvimento, aviva tanto um como outro. Devemos concluir, portanto, de acordo com todas as regras da filosofia, que esses sentimentos são originalmente os mesmos, dado que são governados, mesmo nas mais diminutas características, pelas mesmas leis, e sofrem a atuação dos mesmos objetos (IPM, 6. 5,p. 306).

Como podemos identificar nesta passagem, Hume não deixa dúvida que

acredita que é possível encontrarmos a mesma uniformidade nas ações

humanas que encontramos nos objetos ou fenômenos naturais. Esta

uniformidade é revelada a nós pela experiência vivida da constância de

determinadas operações existentes nos corpos físicos que igualmente

podemos constatar nas operações da mente e nas ações humanas. Neste

sentido, na perspectiva humeana podemos analogamente dizer que:

Ocorre com a conduta humana o mesmo [que] com os fenômenos meteorológicos: por trás das irregularidades

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aparentes, supomos que ambos os tipos de fenômenos sejam governados por princípios constantes e uniformes. O fato de ainda não poderem ser explicados por princípios seguros provem mais da limitada sagacidade humana, que não consegue descobri-los facilmente em sua investigação. Se desconhecemos a causa de certos fenômenos, ou se efeitos diferentes parecerem decorrer das mesmas causas, isso se deve ao desconhecimento que temos de todas as circunstâncias envolvidas na produção do evento (ALBIERI, 2003, p. 117)

Essa perspectiva parece subsidiar uma passagem da Investigaçãosobre

o entendimento humanona qual Hume defende que não existe disparidade de

natureza entre a evidência moral e a evidência física e considera que a

possibilidade de se alcançar princípios estáveis e uniformes em meio à

diversidade de motivos e ações humanas é possível:

Admite-se universalmente que há uma grande uniformidade nas ações dos homens em todas as épocas e nações, e que a natureza humana permanece a mesma em seus princípios e operações. Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos acontecimentos seguem-se das mesmas causas. A ambição, a avareza, o interesse próprio, a vaidade, a amizade, a generosidade, o espírito público; essas paixões, mescladas em graus variados e distribuídas por toda a sociedade, têm sido desde o início do mundo, e ainda o são, a fonte de todas as ações e empreendimentos já observados entre a humanidade. Quer-se conhecer os sentimentos, inclinações e modo de vida dos gregos e romanos? Estude-se bem o temperamento e as ações dos franceses e ingleses; não se estará muito enganado ao transferir para os primeiros a maior parte das observações feitas sobre os segundos. A humanidade é tão semelhante, em todas as épocas e lugares, que, sob esse aspecto, a história nada tem de novo ou estranho a nos oferecer. Seu principal uso é apenas revelar os princípios constantes nas mais variadas circunstâncias e situações, e provendo-nos os materiais a partir dos quais podemos ordenar nossas observações e familiarizar-nos com os móveis normais da ação e do comportamento humanos. Esses registros de guerras, intrigas, sedições e revoltas são coleções de experimentos pelos quais o político ou filósofo da moral fixa os princípios de sua ciência, do mesmo modo que o físico ou filósofo da natureza familiariza-se com a natureza das plantas, dos minerais ou de outros objetos externos, mediante os experimentos que realiza sobre eles. E a terra, a água e outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates não se assemelham mais aos que estão presentemente dados à nossa observação do que os homens descritos por Políbio e Tácito assemelham-se aos que agora governam o mundo (IEH, 8. 7., p. 122)

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De fato, a suposição de uma constância psicológica, de que todos os

homens são fundamentalmente semelhantes e a livre admissão de princípios

constantes e universais nos sentimentos pode serencontradas emtodo o

projeto filosófico de Hume. Pois um dos objetivos de Hume é mostrar que o

modelo da ciência experimental podem servir tanto para explicar os padrões

invariáveis da natureza como os do comportamento humano. Aliás, existem

muitas passagens em que Hume destaca a importância da observação e da

experiência dos fenômenos, principalmente, naquilo que diz respeito a sua

teoria moral. Esse destaque dado por Hume enfatiza a constância com que

fenômenos nos aparecem e consiste em dizer que a partir da sua regularidade

podemos fazer inferências morais que nos parecem gerais para todos os

casos, até mesmo para aqueles que não experimentamos, e pelo costume de

vê-los associados os temos como reais. O que possibilitaesse entendimento é

nossa capacidade de adequar nossas atitudes da vida ordinária que se mostra,

pela experiência, capaz depossuir uma regularidade próxima a que

encontramos na formulação de uma filosofia natural. O pensamento humeano

parte da crença em uma natureza humana universal, mesmo levando-se em

consideração os aparentes e enganadores aspectos relativistas. Por

conseguinte, é a admissão parcial deste pressuposto por Hume que serve de

fundamento para a possibilidade de uma filosofia moral, na medida em que:

“Reconhecemos, assim, uma uniformidade nas ações e motivações humanas

de forma tão pronta e universal como o fazemos no caso das operações dos

corpos” (IEH, 8. 8.p. 124). E ainda: “As resoluções mais irregulares e

inesperadas dos seres humanos podem serfreqüentemente explicadas por

aqueles que conhecem cada detalhe particular de seu caráter e situação” (IEH,

8. 15.p. 128).

Verificamos igualmente no Tratado a reiteração de Hume a respeito da

uniformidade e regularidade do “fenômeno moral. E o mesmo tema aparece

também no Ensaio “Que a política pode se transformar em uma ciência”, só

que tratado de modo ligeiramente diferente. Através deste ensaio Hume afirma

que a pesar de aparentemente o estudo da ciência política ser difícil, devido ao

comportamento de uma sociedade depender das “individualidades” daqueles

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que a governam, assim como nossa moral se serve de determinada

regularidade para postular seus juízos, a política e as formas de governo

possuiriam o mesmo princípio e poderiam ser tomadas como gerais. Dessa

forma Hume explica que:

Tão grande é a força de leis e de formas particulares de governo, e tão pequena sua dependência dos humores e temperamentos dos homens, que às vezes delas se podem deduzir consequências quase tão gerais e certas quanto quaisquer umas daquelas que nos são proporcionadas pelas ciências matemáticas (AEE, Que a política pode ser transformada numa ciência, 16, p. 24).

De maneira semelhante, em sua análise a respeito do caráter nacional,

Hume observa que partimos das similaridades culturais de pessoas que

assumem funções correspondentes na sociedade:

O mesmo princípio das causas morais fixa o caráter das diferentes profissões e altera até mesmo a disposição que os indivíduos recebem das mãos da natureza. Um soldado e um sacerdote são caracteres diferentes em todas as nações e épocas; e essa diferença funda-se em circunstâncias cuja operação é eterna e inalterável (EP, De caracteres nacionais.p. 99).

A explicação de Hume mostra que tal como na natureza física, existe na

natureza humana uma determinada uniformidade e constância. Caso não

houvesse, seria inviável produzir qualquer “ciência” acerca da natureza

humana:

Se as ações gerais de uma mesma pessoa mostram-se muito distintas nos diversos períodos de sua vida, da infância à velhice, isso abre espaço para muitas observações gerais relativas à mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e para as diferentes máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres, que são peculiares a cada indivíduo, exibem uma uniformidade com as pessoas e nossas observações de sua conduta não nos poderiam jamais ensinar suas disposições, ou servir para guiar nosso comportamento em relação a elas (IEH, 8. 11.p. 126).

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Ora, é clara a admissão por parte de Hume, como fundamento

metodológico de sua filosofia, do princípio da uniformidade: a natureza,

especialmente a humana, é essencialmente uniforme e regular. Na

compreensão de Hume, todos os seres humanos são essencialmente

semelhantes, na medida em que existe um padrão universal de emoção

comum a todos, um padrão que se apóia no “sentido interno ou sensação que

a natureza tornou universal à espécie inteira” (IPM, 1. 9.p. 229).

Corroborando este pensamento segundo o qual concebemos uma

uniformidade existente na natureza física, na Sinopse do Tratado, Hume

explica:

Segue-se, então, que todos os raciocínios concernentes a causas e efeitos estão fundados na experiência, e que todos os raciocínios baseados na experiência estão fundados na suposição de que o curso da natureza continuará uniformemente o mesmo. Concluímos que causas semelhantes, em circunstâncias semelhantes, sempre produzirão efeitos semelhantes(...) E assim como frequentemente existe uma conjunção constante das ações da vontade com seus motivos, assim também a inferência dos motivos às ações ou vice–versa é frequentemente tão certa quanto qualquer raciocínio concernente aos corpos; e sempre fazemos uma inferência proporcional à constância da conjunção. É nisso que se funda nossa crença em testemunhas, o crédito que depositamos na história e, na verdade, todos os tipos de evidência moral, e quase toda a conduta da vida (T, Sinopse, 13. 33.p. 688 e 698).

Nesse sentido, Conte observa que a insistência de Hume a respeito do

comportamento humano é regida por um determinado grau de regularidade

para permitir que possamos fazer juízos causais sobre ele. Pois, como mostra

Albieri a esse respeito: “analogamente ao mundo físico, a ideia de necessidade

no mundo moral, vem da observação da uniformidade e constância da

conjunção de certos motivos e certas ações, os mesmos acontecimentos

seguindo-se as mesmas causas” (ALBIERI, 2003, p. 116). Deste modo, Hume

é explícito quanto à própria possibilidade da fundamentação da ciência do

homem ser dependente desta uniformidade. E como o próprio Hume diz:

Que aconteceria à historia se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador? Como poderia a política ser uma

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ciência se as leis e as formas de governo não exercessem uma influência uniforme sobre a sociedade? Onde estaria o fundamento da moral se caracteres particulares não tivessem nenhum poder seguro ou definitivo de produzir sentimentos particulares, e esses sentimentos não operassem de forma constante sobre as ações? E sob que alegação dirigiríamos nossa critica a um poeta ou beletrista se não pudéssemos declarar a conduta e os sentimentos de seus personagens apropriados ou inapropriados a tais caracteres e em tais circunstâncias? Parece quase impossível, portanto, envolvermo-nos com qualquer tipo de ciência ou ação sem admitir a doutrina da necessidade e essa inferência das motivações para as ações voluntárias, dos caracteres para a conduta (IEH, 2004, p. 130)

Assim, na explicação de Hume não há uma diferença fundamental entre

os princípios que regem os fenômenos naturais e os que governam a natureza

humana; ou seja, não existe nada que comprove claramente haver uma

diferença entre a evidência moral e a evidência natural de uniformidade,

principalmente quando levamos em consideração a uniformidade com que nos

aparecem. A seguinte passagem nos serve de apoio nesse sentido:

(...) Provarei em primeiro lugar, pela experiência, que nossas ações possuem uma união constante com nossos motivos, temperamentos e com as circunstâncias que nos envolvem, e em seguida considerarei as inferências que extraímos dessa união. Um exame ligeiro e geral do curso comum dos assuntos humanos será suficiente para tal fim. Como quer que examinemos esses assuntos, esse princípio se confirma. Quer consideremos os homens segundo suas diferenças de sexo, idade, governo, condição ou método de educação, podemos discernir a mesma uniformidade e regularidade na operação dos princípios naturais. Causas semelhantes sempre produzem efeitos semelhantes, do mesmo modo que na ação mútua dos elementos e poderes da natureza (...) Ora, por uma razão semelhante, devemos admitir que a sociedade humana se funda em princípios semelhantes; e nossa razão, nesse último caso, é ainda melhor que no primeiro; porque não apenas observamos que os homens sempre buscam a sociedade, mas, além disso, podemos explicar os princípios em que se funda essa propensão universal (T2. 3. 1. 4, 5, 8.p. 436 – 438).

A admissão desse princípio comum de uniformidade é importante para o

projeto humeano de introduzir o método experimental de raciocínio nos

assuntos morais. Desse ponto de vista, assim como Bacon, Galileu e Newton

valorizavam a observação e o raciocínio experimental, contribuindo para a

sólida fundamentação do estudo da natureza física, Hume entende que esse

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raciocínio experimental pode ser aplicado também ao estudo sobre a natureza

humana. A pretensão de Hume, portanto, é utilizar critérios seguros e

verificáveis como os encontrados na “física ou ciência natural” na “ciência do

homem” e de equiparar a uniformidade e regularidade que se observa nos

eventos e nas ações. Desse modo, a própria utilização dos termos como

“natureza” e “ciência do homem” evoca o modelo de investigação encontrado

na concepção mecanicista de Newton, assim como o método observacional

preconizado por Bacon.

Não existe nenhuma questão importante cuja decisão não esteja compreendida na ciência do homem; e não existe nenhuma que possa ser decidida com alguma certeza antes de conhecermos essa ciência. Portanto, ao pretender explicar os princípios da natureza humana, estamos de fato propondo um sistema completo das ciências, construindo sobre um fundamento quase inteiramente novo, e o único sobre o qual elas podem se estabelecer com alguma segurança (T, introdução, 6.p. 21)

Vale enfatizar, porém, que esse método não é de todo desprovido de

determinada crença, que nos leva sempre a pressupor determinados padrões

de uniformidade, universalidade e objetividade, assumindo, assim, esse

pressuposto como fundamental para a formação de uma ciência da moralidade.

O que de fato constatamos nos textos de Hume parece confirmar esta

admissão, ao considerar a moralidade como um fenômeno a ser explicado por

um lado em termos psicológicos, e por outro, em termos sociológicos e

históricos. De fato, verificamos a tentativa, por parte de Hume, de descrever e

explicar as paixões e sentimentos morais tendo como meta adequá-los com o

seu projeto de desenvolver uma ciência da natureza humana nos mesmos

moldes que os encontrados no método experimental newtoniano.

Neste sentido, Hume tem a pretensão em sua filosofia de desenvolver

uma “ciência da natureza humana”, de oferecer uma explicação da mente

humana capaz de incluir os seus sentimentos morais.Isso levou Hume a buscar

introduzir o método empírico com o fim de tratar de questões relativas à moral,

compreendendo que este processo de investigação a respeito dos princípios da

moral, deve se pautar apenas naquilo que podemos observar a respeito do

comportamento humano que seja publicamente exposto, devendo com isso

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abandonar qualquer concepção hipotética e ficcional a respeito da “natureza”

humana. Porque, como o próprio Hume destaca:

Dado que essa é uma questão factual e não um assunto de ciência abstrata, só podemos esperar obter sucesso seguindo o método experimental e deduzindo máximas gerais a partir de uma comparação de casos particulares. O outro método científico, no qual inicialmente se estabelece um princípio geral abstrato que depois se ramifica em uma variedade de inferências e conclusões, pode ser em si mesmo mais perfeito, mas convém menos à imperfeição da natureza humana e é uma fonte comum de erro e ilusão, neste como em outros assuntos. Os homens estão hoje curados de sua paixão por hipóteses e sistemas em filosofia natural, e não darão ouvidos a argumentos que não estejam derivados da experiência. Já é tempo de que façam uma reforma semelhante em todas as investigações morais e rejeitem todos os sistemas éticos, por mais sutis e engenhosos que não estejam fundados em fatos e observação (IPM, 1. 10.p. 230)

Nesse sentido, podemosconsiderar que os princípios gerais e universais

servem de ponto de apoio para sustentar suas argumentações e servem de

fundamento para aqueles juízos que tem se mostrado regulares e

uniformes,conforme podemos notar pela experiência. Assim a experiência para

Hume nada mais seria do que: “(...) o conjunto de sentimentos, afeições e

emoções e etc., que são experimentados por um sujeito humano e se

acumulam na memória, de modo que o sujeito que dispõe de um bom

provisionamento desses sentimentos, emoções etc, é considerado “uma

pessoa com experiência” ( MORA, 2001, p. 821). Nesse sentido a experiência

entendida por Hume desejaria mostrar que existe um princípio geral e universal

que podemos observar como constante e que pode servir a todos os casos que

ainda não foram constatados por nossos sentidos, e que o raciocínio caberia

apenas a tarefa de:

(...) discernir em cada um dos casos as circunstâncias que são comuns a essas qualidades; observar as particularidades em que concordam, de um lado, as qualidades estimáveis, e, de outros, as censuráveis; e atingir a partir do fundamento da ética, descobrindo os princípios universais dos quais se deriva, em última instância, toda censura ou aprovação. Dado que essa é uma questão factual e não um assunto de ciência abstrata, só podemos esperar obter sucesso seguindo o método experimental e deduzindo máximas gerais a partir de uma comparação de casos particulares (IPM, 1. 10.p. 231).

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A intenção dessa crença moral, estabelecida por Hume, limita-se tão

somente a descrever e explicar o modo como desenvolvemos nossos juízos

morais em sociedade, levando em consideração o contexto em que se praticam

essas ações e as relações com outros homens. Hume toma como base a ideia

de que as operações da mente e o comportamento humano são fenômenos

naturais e, assim, passíveis de serem explicados através do método empírico,

parecidos com os utilizados para entender outros eventos naturais, e que

devido a isso não considera termos universais18.

Assim podemos encontrar tanto na “Introdução” do Tratado como na

“Sinopse”19 a confirmação humeana de que sua intenção maior é contribuir

para o desenvolvimento de uma “ciência da natureza humana” com atributos

parecidos às ciências naturais, pautado na observação e experimento, levando

a obter o mesmo sucesso e exatidão em sua explicação. Deste modo,

encontramos na introdução do Tratado a justificativa de Hume:

Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as nossas ciências, assim também o único fundamento sólido que podemos dar a ela deve estar na experiência e na observação (...) Parece-me evidente que, a essência da mente sendo-nos tão desconhecida quanto a dos corpos externos, deve ser igualmente impossível formar qualquer noção de seus poderes e qualidades de outra forma que não seja por meio de experimentos cuidadosos e precisos, e da observação dos efeitos particulares resultantes de suas diferentes circunstâncias e situações (...) Portanto, nessa ciência, devemos reunir nossos experimentos mediante a observação cuidadosa da vida humana, tomando-os tais como aparecem no curso habitual do mundo, no comportamento dos homens em sociedade, em sua ocupações e em seus prazeres (T, Introdução, 7. 8. 10.p. 22 – 23)

18

Nesse sentido Adriano Naves Brito converge para um entendimento no qual a teoria moral de Hume seria subjetivista e por isso comenta: “De fato, princípios morais nos podem ser revelados pelo que produzem, a saber, nossos sentimentos de aprovação ou reprovação. São esses sentimentos dos fatos mais palpáveis que temos à disposição para averiguar quais são as nossas mais autênticas inclinações naturais concernentes à moralidade, inclinações que constituem a sua verdadeira origem, ou, em outros termos, aquilo que causa em nós o que submetemos ao titulo geral de “moral” (BRITO, 2001, p. 17). 19

Lançado após a publicação do mesmo, que é um comentário escrito anonimamente por Hume, em terceira pessoa no inicio de 1740 em que alude haver no autor do Tratado o próprio Hume mencionando a si mesmo, a busca por estabelecer um método experimental.

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Podemos, ainda, mencionar a “Sinopse” do Tratado, onde Hume propõe

a utilização do método experimental como análogo ao das ciências naturais

para a fundamentação da ciência do homem. Aqui também podemos constatar

a preocupação do autor do Tratado na busca de fazer entender o intento de

sua filosofia moral20. Nesses termos Hume descreve em suas próprias

palavras:

Mas ao menos vale a pena tentar descobrir se a ciência do homem não admite a mesma precisão que vemos ser possível em várias partes da filosofia da natureza. Parece que temos todas as razões do mundo para imaginar que ela pode atingir o grau máximo de exatidão. Se, ao examinar diversos fenômenos, descobrimos que eles se reduzem a um princípio comum, e formos capazes de remeter este princípio a outro, chegamos finalmente àqueles poucos princípios simples de que todo o resto depende. E, mesmo que jamais possamos chegar aos princípios últimos, já é uma satisfação ir até onde nossas faculdades nos permitem ir (T, Sinopse, 1. p. 683).

De fato podemos encontrar mais adiante a insistência de Hume nesse

ponto, quanto à formulação da ciência humana seguir os mesmos moldes

encontrados nas ciências naturais embasadas unicamente na experiência

quando diz:

Esse parece ter sido o objetivo de nossos filósofos mais recentes e, entre eles, nosso autor21. Ele se propõe a fazer uma anatomia da natureza humana de uma maneira sistemática, e promete não tirar nenhuma conclusão sem a autorização da experiência (T., Sinopse, 2.p. 684).

Se seguirmos estas afirmações, torna-se-á evidente que a abordagem

sobre a moral apresentada por Hume e exposta no Livro 2 do Tratado, é

destinada, assim, a ser parte da ciência da natureza humana como ele a define

na introdução do Tratado e na “Sinopse”, confirmando sua abordagem sobre o

entendimento e as paixões desenvolvidas especificamente nos Livros 2 e parte

do Livro 3 do mesmo Tratado (T3. 1. 1. 1.p. 495).

20

“Filosofia moral” aqui não indica apenas filosofia prática (ou teoria moral), mas a filosofia “teórica” também, em contraste com a nova física, também chamada de filosofia natural. 21

Nesse caso o próprio Hume citando a si mesmo na Sinopse do tratado.

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Assim mostra-se que o posicionamento defendido por Hume a respeito

da possível elaboração de uma ciência moral objetiva procurar definir “(...) as

conseqüências necessárias e infalíveis dos princípios gerais da natureza

humana, tal como se revelam na vida e na prática cotidianas” (IPM, 5. 43.p.

298), e por meio de sua afirmação de que estes princípios são tão seguros e

corretos capacita-nos a formular com a maior precisão, uma ciência da

natureza humana.

Entretanto, verificando a introdução da seção da Investigaçãosobre o

Entendimento Humano, observamos uma passagem em que percebemos

Hume assumindo uma atitude preventiva quanto à possibilidade de reduzir a

variedade dos sentimentos morais a um princípio comum. Pois, nitidamente,

esse reducionismo nos levaria a incorrer no mesmo erro da metafísica

tradicional. Em suas palavras:

Os teóricos da moral, ao considerarem a vasta multidão e diversidade das ações capazes de excitar nossa aprovação ou antipatia, acostumaram-se até agora a procurar algum princípio comum do qual esta variedade de sentimentos pudesse depender. E, embora algumas vezes tenham ido longe demais em sua paixão por um princípio geral único, deve-se reconhecer que é desculpável essa sua expectativa de descobrir alguns princípios gerais aos quais todos os vícios e virtudes pudessem ser adequadamente reduzidos. Esforços semelhantes têm sido realizados por teóricos nos campos das artes, da lógica e mesmo da política, e suas tentativas não resultaram totalmente malsucedidas, embora talvez um tempo mais longo, uma maior exatidão e uma dedicação mais intensa possam trazer essas ciências para ainda mais perto de sua perfeição. Renunciar imediatamente a todas as expectativas dessa espécie pode ser com razão classificado como mais brusco, precipitado e dogmático que a mais ousada e afirmativa filosofia que já tenha tentado impor suas rudes doutrinas e princípios à humanidade (IEH, 1. 15.p. 29).

Encontramos, nesse sentido, a observação de Hume para que sua teoria

moral não seja reduzida a um princípio metafísico geral que poderia reger toda

a ação humana.Isso parece obscuro já que podemos encontrar tanto uma

crítica como uma defesa a respeito do uso de um princípio geral em sua teoria

moral. Pareceria complicado postular uma defesa tácita de Hume nesse

sentido, dada a inconstância encontrada tanto nas ações humanas quanto nos

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fenômenos da natureza. Mas tanto na Investigação sobre o entendimento

humano, como na Investigação sobre osprincípiosda moral, Hume afirma que

sua filosofia moral é vinculada a alguns princípios gerais e não a um único

princípio metafísico. Deste modo Hume estabelece que:

É desnecessário estender tanto nossa investigação a ponto de perguntar por que temos sentimentos humanitários ou de companheirismo para com os demais. Basta que a experiência nos ensine que esse é um princípio da natureza humana. Em nosso exame da cadeia de causas, temos que nos deter em algum lugar; e qualquer ciência contém alguns princípios gerais para além dos quais não se pode esperar encontrar nenhum outro de maior generalidade. Ninguém é totalmente indiferente nem à felicidade nem à desgraça dos outros. A primeira tem uma tendência natural a produzir prazer, a segunda, dor, e isso é algo que cada um pode verificar em si mesmo. Apesar de todas as tentativas realizadas, não é provável que esses princípios possam ser reduzidos a princípios mais simples e universais. Mas ainda que isso fosse possível, não diria respeito ao nosso assunto presente, e podemos aqui considerar com segurança que esses princípios são originais, e felicitarmo-nos se pudermos tornar suficientemente claras e perspícuas todas as suas consequências (IPM, 5. Nota 3.p. 286).

Assim semelhante a Conte insistimos na hipótese de que Hume

considera que princípios gerais e universais são condições ou particularidades

“originadas” na natureza humana, e que são entendidas nos mesmos

moldesque encontrados nos princípios da natureza estudados pela física.

Portanto, isso nos permitiria estudar empiricamente a natureza humana e

descrevê-la em uma ciência da natureza humana. Isso implicaria para Hume

afirmar que a maior parte das pessoas, guardadas suas devidas diferenças, em

termos de crença e condutas, seguem esses princípios universais em sua

natureza (CONTE, 2000, p. 124).Nesse sentido, podemos comparar as

concepções morais com a concepção estética, variando, no entanto, de uma

sociedade para outra. Igualmente, podemos verificar que os sentimentos

morais variam de indivíduo para indivíduo nessas mesmas sociedades, o que

não exclui a existência de princípios morais uniformes que possam ser

generalizados.Desse modo, mesmo considerando que encontramos nos

fenômenos físicos, irregularidade e exceções, isso não inviabiliza a crença na

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existência de princípios uniformes e gerais na natureza. Assim expomos a

passagem que evidencia essa posição como, por exemplo:

Pretendi apenas mostrar a incerteza de todos os julgamentos relativos aos caracteres e convencer-vos de que a moda, a voga, os hábitos e a lei foram o principal fundamento de todas as determinações morais. Os atenienses foram certamente um povo civilizado e inteligente, se jamais houve um; e, contudo, seus homens de mérito seriam em nossa época olhados com horror e execração. Também os franceses, sem dúvida, são um povo muito civilizado e inteligente; no entanto, seus homens de mérito poderiam, entre os atenienses, ser objetos do maior desprezo e ridículo, e mesmo de ódio. O que torna a questão mais extraordinária é que esses dois povos são considerados os mais similares em seu caráter nacional entre todos os povos antigos e modernos (...) Que vasta diferença nos sentimentos morais deve-se encontrar, portanto, entre as nações cujos caracteres pouco têm em comum? Como podemos pretender estabelecer um padrão de julgamento dessa espécie? (....) examinando os princípios básicos de reprimenda e censura que cada nação estabelece. O Reno corre para o norte, o Ródano para o sul: contudo, ambos nascem na mesma montanha e seus percursos opostos são afetados pelo mesmo princípio de gravidade. As diferentes inclinações do solo sobre o qual correm causam toda a diferença em seus cursos (IPM, “Um diálogo”, 26.p. 426).

Deste modo, Hume constata que mesmo verificando diferenças morais,

existentes em cada indivíduo e também entre as nações, que a princípio

parecem serem irreconciliáveis, podemos observar existir um princípio interno

em cada homem que nos leva a associar modos, costumes e hábitos

encontrados em cada indivíduo de uma determinada sociedade existindo

correlativamente em outros homens e outras sociedades. Desse modo, os

princípios morais podem ser entendidos como correlatos aos fenômenos

naturais,já que podemos estabelecer relações de similaridade com

determinados fenômenos naturais, como quando do aparecimento do raio

espera-se automaticamente o seu conseqüente trovão ou da fumaça o

fogo.Esses juízos são inteiramente obrada experiência e da observação e se

mostram princípios seguros e corretos, levando-nos a fazer inferências com

determinada segurança para os mesmos fenômenos que venham a se repetir

futuramente. Assim Hume define que opercurso de nossas inferências morais

deve seguir essa inter-relação entre sensação – experiência eque a ciência da

moral deve seguir:

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Reconhecemos, assim, uma uniformidade nas ações humanas e motivações humanas de forma tão pronta e universal como o fazemos no caso das operações dos corpos. Daí igualmente o valor da experiência adquirida por uma vida longa e uma variedade de ocupação e convivência para instruir-nos sobre os princípios da natureza humana e regular nossa conduta futura tanto quanto regula nossa especulação. Com o auxílio desse guia, ascendemos ao conhecimento dos motivos e inclinações dos homens a partir de suas ações, expressões e mesmo gestos; e, em seguida, descendemos à explicação de suas ações a partir do conhecimento que temos de seus motivos e inclinações (IEH, 8. 9.p. 124).

O tema da moral é comum às controvérsias filosóficas, políticas e

teológicas no princípio do século XVII e durante o século XVIII22. A intenção de

Hume com sua filosofia é oferecer uma interpretação totalmente diferente para

a moral. Pois através da elaboração de sua ciência da natureza humana, visa

indicar os papeis adequados para a razão e para as paixões. Se considerarmos

que a intenção de Hume é seguir preceitos parecidos com os encontrados na

física newtoniana ao estabelecer parâmetros parecidos em sua filosofia, isso

indicaria que Hume pretende estabelecer princípios morais experimentalmente

aceitos referentes ao comportamento humano, princípios que tenham como

base a regularidade associativa e freqüência conforme os objetos apareçam a

nossos sentidos.

Desse modo, Hume parte do princípio de que as inferências morais

tomam como base as associações observadas e experimentadas tanto interna

como externamente (sensação-experiência) percebidas tanto nos homens

como nos fenômenos. De fato, nos habituamos a esperar de pessoas de má

índole que tenham ações más e de pessoas virtuosas que sejam boas. Do

mesmo modo, seguimos princípios parecidos diante de fenômenos naturais,

como quando observamos nuvens carregadas e esperamos chuva ou do

aparecimento do relâmpago esperamos seu acompanhante habitual, o trovão.

Esse princípio se baseia na constância com que as ações se mostram

coerentes com a natureza de cada indivíduo. Conforme os homens sigam

frequentemente suas emoções, os princípios serão cada vez mais reforçados e 22

Frederick Copleston(Historia de la Filosofia: de Hobbes a Hume), levanta especificamente essa questão, mais precisamente no capitulo IX e X sobre o contexto das discussões e polemicas sobre política e teologia existente naqueles séculos.

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nossas inferências e certezas tornar-se-ão cada vez maiores; desse modo

podemos fazer associações que se mostrem regulares e corretas conforme

sejam observadas e experimentadas.

Hume descreve essa capacidade de constância e regularidade existente

tanto no plano mental como no plano físico através de seus três princípios

associativos, semelhança, contigüidade e causa e efeito. Esses princípios são

a pedra de toque de Hume para explicar por que fazemos conexões em

fenômenos que se mostram regulares a nossa observação e experiência.

Considerando essa descrição, Contemostra que se tomamos como base

a observação dos fenômenos percebidos podemos constatar que eles se

repetem com frequência e podemos através da experiência de sua aparição

associá-los. Desse modo considerando que os fenômenos seguem um claro

princípio de sucessão e contiguidade conforme se repitam a nossos sentidos,

poderíamos através dessa repetição derivar conclusões corretas e exatas a

partir dessa constatação. Seguindo essa conclusão de Conteque mostra

através da associação que experimentamos do aparecimento dos fenômenos

em sucessão e contiguidade, poderíamos concluir que esta sucessão seguiria

regras gerais que se apresentariam a todos os casos, inclusive a aqueles que

não estão evidentes aos nossos sentidos.

Essa posição levaria Hume a explicar por que racionalmente

necessitamos da existência de um padrão universal, em termos dos

sentimentos aos quais ele crê que estamos submetidos, levando, assim, a

sempre termos as mesmas conclusões. “(...) devem reconhecer a existência,

em alguma parte, de um padrão verdadeiro e decisivo, ou seja, a existência

real e a matéria de fato, e devem mostrar indulgência para com outros que

deles difiram ao reconhecer a esse padrão” (AEE., “Do Padrão do Gosto”, 242,

p. 187). Mas declarações de Hume como essas e outras acima citadas, em

última instância, não nos parecem ser uma clara admissão de tendência

universalista, já que Hume admite e até mesmo mostra que as exceções são

verificadas em nossa experiência, tanto nos fenômenos naturais quanto nos

humanos, e nada nos garante existir nas associações um princípio geral que

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sirva sem exceção para todos os casos. O que nos leva a pensar em outra

possibilidade de interpretação na filosofia moral de Hume.

2.6– A interpretação "intersubjetivista" da filosofia moral de Hume

Se considerarmos que as posições subjetivista e realista, tal como

apresentadas acima, parecem se mostrar parcialmente incompatíveis com a

posição defendida por Hume na sua filosofia moral, podemos admitir que

existem elementos de ambas interpretações em Hume, implicando alguma

incoerência em sua filosofia? Acredito que a acusação não seria

necessariamente verdadeira na medida em que podemos considerar a

explicação de Hume como defendendo uma posição intermediária entre o

subjetivo e o objetivo. Assim, poderíamos muito bem chamá-lo de

“intersubjetivista”, termo encontrado em comentadores da obra humeana como

Jaimir Conte em sua obra “A natureza da moral (20040)” e em Capaldi “David

Hume: The newtonian (1975)”.

Podemos definir o intersubjetivismo em sua generalidade como

referindo-se: “não apenas à questão da possibilidade de um conhecimento

objetivo válido para todos os sujeitos que possuam mas também à questão do

reconhecimento, por parte de um sujeito qualquer, de outros sujeitos (MORA,

2005, p. 1550). Em muitos casos os dois problemas estão relacionados e

podem ser considerados como constituintes de uma mesma interpretação

sobre nossas inferências morais. Assim, pode-se imaginar queesta descrição

contém tanto os elementos do subjetivismo quanto do objetivismo na filosofia

moral de Hume.Com a exceção de alguns casos específicos contidos em

ambas as interpretações, o que nos leva aessa interpretação parece mostrar-

seconvincente.

Podemos encontrar a defesa intersubjetivista de Hume através da

interpretação de Capaldi. Segundo ele, a filosofia moral de Hume evoca uma

nova perspectiva da moral e esta novidade deve ser considerada como uma

“revolução Copernicana em sua filosofia”. Desse modo, observamos que esta

revolução copernicana, considerada em termos filosóficos, ocorreu devido a

Hume ter abandonado sua posição subjetivista, que estaria tão ligada à

experiência e observação dos fenômenos físicos, e ter passado a assumir que

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nossos juízos morais são pautados mais por uma prática social do que pela

mera experiência dos fenômenos. Por conseguinte, Hume se afastaria da

perspectiva clássica, na qual os seres humanos parecem entendidos como

sujeitos pensantes isolados em contraste com uma variedade de objetos

(CONTE, 2004, p. 127). Nesse sentido, o dever era descrito apenas como um

dever teórico. Mas Hume entendia que os homens estavam vinculados a uma

dialética que envolvia a práticasocial e compreendia os homens como agentes,

e não como meros sujeitos. Por isso seus princípios morais estavam vinculados

mais à prática do que à teoria. Intentava, deste modo, descobrir como os

homens realmente são, e não o que poderiam ser. Essa perspectiva nos leva a

compreender que podemos também interpretar o pensamento de Hume em

termos de uma perspectiva prático-social:

Concebeu os seres humanos fundamentalmente como agentes, como criadores, imersos ao mesmo tempo num mundo físico e num mundo social junto com outros agentes. Hume considerou que o dever principal dos homens era prático, não teórico. Esta não é somente uma mudança radical de perspectiva, mas é uma visão intrinsecamente social do homem. Ao invés de tentar examinar nosso processo de pensamento na esperança de descobrir princípios racionais que poderiam ser aplicados para comandar nossa ação, Hume inverteu o procedimento. Ele começou com a prática, nossa ação, e buscou extrair dela as normas sociais inerentes (CAPALDI, 1989,p. 23. Apud CONTE, 2004, p. 127).

Para Conte, Hume inaugura uma revolução, à medida que entende

haver uma postura negativa em relação à idéia do princípio de identidade

cartesiano, em que o ser humano é entendido como um indivíduo descrito em

termos de um mundo objetivo ou realista, e no qual os seres humanos

desempenham tarefa meramente teórica. Nesse sentido Hume privilegia a

perspectiva do fazer próprio, ou melhor, o fazer humano, entendido como

aquilo em que os seres humanos são compreendidos como agentes que se

relacionam com o mundo e o modificam. Assim, a principal tarefa é

essencialmente prática. Desse modo, a revolução copernicana atribuída à

filosofia de Hume conseguiria superar todas as dificuldades atribuídas à sua

filosofia, o que confirmaria que sua teoria moral pode ser encarada como

verdadeiramente rigorosa e consistente. Na opinião de Conte, o que se verifica

é que não podemos interpretar Hume como um realista moral.Há boas razões

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para interpretá-lo mais como um intersubjetivista do que como um realista,

devido a sua posição ser entendida em termos de perspectivas práticas sociais

que o afastam de uma abordagem cartesiana e de qualquer tipo de

subjetivismo. Na mesma linha de raciocínio, Capaldi explica que a

objetividade, para Hume, pode claramente ser considerada como

intersubjetividade. Desse modo, Conte observa que Capaldi rejeita a sugestão

de Mackie de haver na filosofia moral de Hume um “projecionismo”. Além disso,

nega a interpretação clássica que, de acordo com Hume, subordina a razão ao

instinto ou sentimentos, e defende que Norton se engana ao defender que os

sentimentos morais são verdadeiramente objetivos:

Recentemente, David Fate Norton (...) tem insistido que (1) tanto Hutcheson como Hume são realistas morais e (2) que Hume permaneceu um cético metafísico. Norton está certo ao insistir na teoria moral de Hutcheson e Hume, mas insistirei que é equivocado caracterizar Hutcheson e Hume como realistas morais. Ambos acreditam na intersubjetividade, naturalmente, mas isso está longe e é exatamente o contrário dos realistas que definem o realismo como significando a existência de uma estrutura independente da natureza humana. O que Hutcheson e Hume acreditam é que nossas intuições morais são sempre relativas à estrutura da mente dos agentes humanos (CAPALDI,1989,p. 320–321. Apud Conte 2004, p. 128)

Ora, o que podemos constatar é que Capaldi concorda apenas

parcialmente com Norton, na medida em que interpreta intersubjetivamente o

conhecimento na filosofia de Hume, mas não se apóia no realismo para

fundamentar suas considerações. Capaldi constata que a intersubjetividade

encontrada na filosofia de Hume pode ser percebida, também, em outros

domínios de sua filosofia, como em sua metafísica e sua epistemologia.

Na percepção de Conte, o conhecimento moral entendido por Hume é

análogo ao conhecimento empírico, na medida em que conhecemos as

qualidades e estas nos remetem igualmente ao princípio moral. Isso não quer

dizer que o conhecimento moral objetivo seja desvinculado do sentimento

humano. Além do mais, podemos pensar que como o conhecimento das

qualidades o nosso conhecimento moral segue regras parecidas e por isso

pode possuir regularidade. Assim, o conhecimento moral das outras formas de

conhecimento factual das qualidades, na medida em que os tipos de regras

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intersubjetivas que constituem a maneira como reagimos, evoluem

culturalmente,porestarem fundamentadas na experiência passada ou na ação.

Nesse sentido, Conte observa que as raízes da insistência de Capaldi na

defesa do caráter prático da concepção filosófica de Hume, encontram-se na

primeira seção daInvestigação sobre o entendimento humano que descreve a

análise dos diversos tipos de filosofia, e relata tanto a dimensão teórica como

prática do intelecto humano. A conclusão de Hume a respeito da relação,

encontra-se na procura de efetivar o conhecimento prático como o principal

meio, porque:

Os objetos são demasiado tênue para permanecerem por muito tempo com o mesmo aspecto e na mesma situação, e devem ser apreendidos instantaneamente por uma perspicácia superior, derivada da natureza e aperfeiçoada pelo hábito e pela reflexão. (IEH, 1. 13., p. 28).

Encontramos já na primeira Seção daInvestigação sobre os princípios da

moral, a adoção deHumede uma postura meramente descritiva da moralidade,

mas tambémaponta a existência de uma contradição nos princípios que

fundamentam a moral clássica. Partindo, então, dessa premissa, Hume propõe

outra forma de pensar a moral como, por exemplo, quando diz “A finalidade de

toda especulação moral é ensinar-nos nosso dever e, pelas adequadas

representações da deformidade do vício e da beleza da virtude, engendrar os

hábitos correspondentes e levar-nos a evitar o primeiro e abraçar o segundo”

(IPM, 1. 7.p. 228).

De maneira geral, Monteiro endossa essa interpretação intersubjetivista

de Hume quando mostra que a teoria moral do filosofo escocês Hume “assenta

num postulado crucial: que os fenômenos da moralidade não podem ser

entendidos independentemente da sociedade em que tem vigência”

(MONTEIRO, 2009, p. 18). Isso se mostra bastante natural, na medida em que

se privilegia uma interpretação intersubjetivista. Pois, de fato, o fenômeno da

moralidade baseia-se no inter-relacionamento de um indivíduo com os outros

indivíduos, não se mostrando “(...) isoladamente para um único indivíduo, mas

somente apenas na medida em que observa e reage às ações praticadas pelos

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outros com os quais convivem em sociedade, próxima ou remotamente no

tempo e no espaço” (CONTE, 2004, p. 131). Assim,Conte entenderia que

Hume propõe a ideia de uma concepção moral intersubjetiva em que destaca

que nossos juízos morais só podem acontecer devido às relações entre os

indivíduos ocorrendo através da relação "subjetiva-realista" ou intersubjetiva, o

que não nos leva necessariamente a recorrer a uma explicação transcendente,

e permite que a moralidade se mostre efetiva e duradoura.

Assim, considerando a análise de Conte como correta,ao interpretar a

filosofia moral de Hume como intersubjetivista ecompreender a moralidade

como uma prática social entre indivíduos, sem desconsiderar os sentimentos

(paixão, sensação) e a experiência individuais como importante para nossas

associações, isso não nos levaria a pressupor através dessa afirmação que a

filosofia moral humeana seria um relatoantropológicodos sentimentos

humanos?É o que parece, já que concentraria o seu objeto de análise apenas

nas ações entre indivíduos inseridos em uma sociedade, cabendo à

experiência descrever as associações,quer no aspecto físico, quer no plano

mental e pareceria que essa conclusão está restrita apenas ao sujeito ou

sujeitos que observa.E nesse caso o projetivismo fruto das associações

observadas anteriormente, encontrado nos casos em que os fenômenos se

repetema nossos sentidossó pode ser pensada juntamente com a

imaginação,porque sem ter o apoio da experiência de seu aparecimento físico,

o que é impossível sem a experiência de casos antes observados que tenham

ocorrido tanto no plano físico como mental nada justificaria o hábito de projetar

seu aparecimento futuro.

Vale salientar que para Hume o senso moral estaria circunscrito à

interação das ações humanas com os fenômenos, e isso incluiria mesmo

aqueles casos que não foram expostos aos sentidos.Acredito que essa

interpretação é o objetivo de Hume, evidenciar o seu método empírico como

apoio de sua teoria moral, antes do que somente recorrer à interação moral

que fosse praticada entre os homens inseridos em uma sociedade que nos

parece “retirar” o homem da natureza e centrando em si mesmos sua análise.

O que nos parece é que essa interpretação de Capaldi que põe o homem em

uma interrelação entre outros homens inserido em uma sociedade vai de

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encontro a todo o esforço humeano em descrever as ações humanas em

termos de uma relação associativa entre o mental e o físico e não somente

entre sujeitos situados em uma determinada sociedade.

O Intersubjetivismo em nossa interpretação nada mais é do que essa

relação entre sujeito e objeto, entre mental e físico descrito em termos

associativos, e esta seria a principal responsável pela nossa tendência a

generalizar para casos não observados pelos sentidos, aqueles fenômenos que

são tidos como certos de ocorrerem no futuro. Esse certamente seria o

conteúdo projetivo23 de Hume. Desse modo, as associações que percebemos

existirem tanto nos fenômenos como na mente e que nos levam a fazer

projeções do passado para o futuro, só podem ser obra do hábito e da

imaginação,e não são oriundas de qualquer outra fonte de conhecimento.Não

obstante, esse assunto mostra-se na filosofia do senso moral de Hume

bastante recorrente e por isso exige-se discorrermos sobre ele mais

detidamente, como o faremos logo a seguir.

Capítulo terceiro

3.1 –Empirismo e Sensualismo

No capítulo anterior observamos vários comentadores da obra de

Humeanalisando a sua filosofia do senso moral defendendo interpretações que

em um momento o colocavam como sendo subjetivista e em outro momento

como sendo realista.Mostrando com essas interpretações que nenhuma

delasexplicavam satisfatoriamente os motivos de fazermos generalizações ou

universalizações de nossos julgamentos ou inferências morais que tomam

23

Interessante notar a importância da projeção nas inferências e conexões que fazemos através da experiência dos fenômenos em sucessão, apontadas por Hume. Nesse sentido destacamos os estudos feitos por Helen Beebee sobre as projeções e sua importância nos princípios causais de Hume em seu livro “Hume onCausation”, mais particularmente no capítulo 6 desse livro, existe uma descrição detalhada sobre o assunto.

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como base os fenômenos percebidos por nós nos objetos externos e que nos

faz pressupor a sua aparição futura tomando como base o passado. O quenos

leva a fazer projeções e generaliza-las através de julgamentos e inferências

que são inteiramente subjetivas em que não constatamos a impressão

correspondente a tal objeto, o que os conecta na mente, ou seja, o que nos faz

sem haver o elo de ligação ou conexão necessária tornar possível defender a

posição subjetivista ou objetivista não pode ser explicado por ambas as

interpretações. De fato, concluímos no decurso de nossa investigação que a

possível explicação para essas inferências e sua consequente universalização

só poderia ser dada através da compatibilização intersubjetivistaque apoiada

pela experiência justificaria pelo hábito de associarmos fenômenos tanto

externamente como internamente nossas inferências projetivas que nos leva a

universalizar juízos e inferências tanto morais como epistêmicas. Desse modo,

se faz necessário nesse terceiro capitulo nos aprofundarmos no exame do

papel da experiência e da sensação que esta eminentemente presente na

nossa proposta intersubmetivista. Além de investigar qual o papel dos

princípios causais que nos leva ao hábito de imaginar ligações necessárias que

nos leva a projetarmos ou universalizarmos julgamentos e inferências morais

nas ações humanas.

Na filosofia moral de Hume, verifica-se uma profunda ênfase dada aos

sentidos; também verifica-se que a teoria moral de Hume não só pressupõe

padrões sensualistas como está apoiada em seu empirismo. Isso quer dizer

que nossos juízos morais se apóiam na sensação e na experiência para fazer

suas inferências24. Entretanto, a postura cética de Hume demonstra

igualmente que as sensações não são critérios válidos para fundamentar

nossas inferências ou Juízos morais sejam eles físicos ou mentais. O ceticismo

advogado por Hume entende que nossas sensações só podem servir para

24

André Verdan em seu livro “O ceticismo Filosófico” destaca que a teoria perceptiva ou sensualista de Hume aliada à experiência, pressupõe essa explicação associativa, que podem ser encontrada na relação física e mental, além de esclarecer assuntos que envolvem ideias abstratas como a ideia de Deus, causa, Milagres, perfeição e etc. Pois segundo ele “A teoria sensualista não se refere somente à formação das ideias que são consideradas como o reflexo do mundo sensível em nosso espírito (tais como a noção de cor ou de som). Ela pretende também explicar empiricamente a origem de nossas ideias mais abstratas: a noção de causa, de perfeição, de divindade, por exemplo. Assim, ao analisar os elementos dos quais se compõe a ideia de Deus (inteligência, sabedoria, bondade), Hume conclui que esta noção é, ela também, inteiramente derivada da experiência” (VERDAN, 1998, p. 103).

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101

nossos julgamentos ou inferências se tiver o auxílio da experiência e que está

considerando doenças e a instabilidade dos fenômenos externos podem vir a

influenciar nossos julgamentos não sendo fundamento confiável para nossas

inferências. Desse modo, a experiência por pressupor associações dos

fenômenos tanto físicos como mentais que são repetidos reconhecidamente

torna-se base segura, para nosso julgamento. Nesse sentido, temos alguns

possíveis modos de entender o ceticismo mitigado de Hume e sua crítica a

limitação dos sentidos que podemos situar na alegada pergunta sobre a

ausência correlativa de uma impressão que indique o porquê termos como

factível uma conexão real dos objetos toda vez que observo associações sejam

elas internas ou externas, e na qual não verifico nada que as valide.

Esta posição preventiva de Hume sobre a sensação considera que o

domínio do seu conhecimento está restrito apenas à percepção imediata dos

sentidos, não pressupondo que os objetos existem mesmo quando estes ainda

não se apresentaram ao sujeito. O ponto em questão não está na sensação

imediata, mas na persistência futura das mesmas relações “causais”

observadas no passado. O motivo de fazermos esta projeção encontra-se na

crença de que determinado fenômeno físico ou mental é considerado

recorrente em nossa memória e temos a tendência a esperá-lo como certo no

futuro. Pois o hábito de observarmos seu aparecimento, nos objetos

observados em sucessão, validaria nossas conclusões a respeito de sua

projeção para o futuro. Porque, segundo Hume explica, essa tendência de

fazermos estas inferências deriva desse costume de fazermos associações

tendo o princípio de causa e efeito como seu fundamento. Nesse sentido, o

problema levantado por Hume esta no compromisso do sensualismo com o

senso moral? Na medida em que relações causais parecem extrapolar os

limites dos sentidos, isso inviabilizaria toda e qualquer capacidade de formular

uma ciência humana nos moldes que Hume pretende. Isso contribui para

reforçar esta posição contrária à interpretação sensualista da filosofia de Hume,

encontrada em alguns autores de tendência kantiana. Algumas interpretações

consideram o sensualismo humeano como um mero instrumento psicológico de

nossa experiência, como, por exemplo, Henry E. Allison (2010, pp.230 ss) e

Paul Guyer (2008, pp. 23 ss).

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Essa interpretação que destaca a filosofia de Hume e sua moral como

sendo eminentemente de origem psicológica considera que as associações

estão mais pautadas em mecanismos inteiramente psicológicos como a relação

impressão-ideias do que no recurso ao aparecimento de fenômenos em um

mundo objetivo. Mas, também podemos encontrar uma outra interpretação, só

que formulada diferentemente por Michel Malherbe25.

Contudo, a atribuição "realista" dada à filosofia humeana por Malherbe

se mostra contrária à interpretação psicológica atribuída a filosofia humeana

por autores como Allison e Guyer por exemplo.Pois Malherbe destaca que o

realismo de Hume pressupõe haver uma adequação dos dados ou informações

transmitidas por nossos sentidos à realidade propriamente dita. E o empirismo

de Hume se mostra uma proposta mais adequada de interpretação dos

julgamentos morais do que a explicação do senso moral comumente aceita.

Mas, Malherbe, também destaca que o empirismo humeano, por tender a

extrapolar os limites dos sentidos, enfraqueceria bastante a compreensão

sobre os mesmos, levando-nos a ter como certo um evento que venha

acontecer no plano objetivo, mesmo que este não tenha se apresentado ainda

a nossos sentidos. Malherbe observa ainda que mesmo com esse

“projecionismo”, o empirismo de Hume é responsável por aproximar nossas

sensações cognitivas das nossas inferências morais, na medida em que

adequamos nossas sensações externas a nossos julgamentos internos ou

subjetivos através da observação e experiência de sua constância. Portanto,

são nossas sensações cognitivas que se adaptam à realidade e não o

contrário. Mesmo que esta adaptação dos sentidos à realidade seja defendida

por Malherbe, o que se destaca em seu argumento é a necessidade das

sensações tomadas como apoio para nossas inferências objetivas ou

subjetivas. Por conseguinte,Malherbe admite que mais uma vez a sensação se

mostra relevante, porque serviria de fundamento para as nossas inferências

morais.

25

Segundo, este filósofo, esta afirmativa é possível, devido existir a tendência realista encontrada na filosofia de Hume, isto é, devido os nossos juízos morais assim como nossos julgamentos epistemológicos refletirem de fato a realidade tal qual esta nos aparece ao sentidos.

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103

Entretanto, o ponto em que Malherbe se distância de Guyer e Allison,

está concentrado na interpretação crítica da estética, embutida nessa dialética

existente entre sujeito e objeto na filosofia de Hume.Pois considera que nossos

sentidos copiam fielmente os objetos físicos e nos fornecem informações

seguras sobre eles, e por isso são capazes de influenciar nossos juízos

estéticos assim como nossos julgamentos morais.Entretanto, Malherbe

identifica que as sensações, por se mostrarem regulares e constantes, são

capazes de nos levar a elaborar julgamentos morais eestéticos confiáveis.De

fato, Malherbe deixa claro sua consideração a esse respeito quando diz: “Uma

estéticatorna-sepossívelquando é introduzida a noção de uma forma

sensível26” (MALHERBE, 1993, p. 44).Nesse sentido, nossos julgamentos

cognitivos derivados das sensações se mostram “adequados” para nossas

considerações morais eestéticas já que transcrevem corretamente a realidade.

Esta posição de Malherbe deriva da interpretação segundo a qual as

sensações que atingem com mais força evividez nossa mente são chamadas

de impressões, enquanto as ideias, por serem posteriores e distantes da

impressão são fracas e lânguidas; devido a isso as impressões representariam

a realidade adequadamente enquanto as idéiasnos fornecem informações

precisas através das impressões. Malherbe entende que:

Ora Hume vai mais longe: ele remete a ideia a uma impressão, o pensamento ao feeling, e estabelece entre os dois tipos de percepções uma diferença radical. Longe de ser a impressão uma ideia implicada na sensibilidade é ela que, sendo viva e forte, fornece sua clareza ao pensamento (fraca, porque sempre é posterior)27 (MALHERBE, 1993, p. 44).

Desse modo, podemos ver, na análise de Malherbe, que o princípio da

cópia de Hume, existente na relação impressão – ideia, parece antes significar

duas instâncias de pensamento distintas do que mesmo uma síntese dos

dados dos sentidos. De fato, se levarmos em conta a afirmação acima descrita

por Malherbe, temos, de um lado, aquelas impressões – ideias fruto direto das

26

“Une esthétiquedevientpossiblequand est introduitelanotion d’une forme sensible”. 27

"Or Hume vaplusloin: ilrenvoiel’idée à une impression, lapenséeaufeeling, et établit entre lesdeux sortes de perception une difference radical. Loin que l’impressionsoit une idéeenveloppéedanslasensibilité, c’estellequi, étant vive et forte, procure à lapensée (faible, parce que toujourspostérieure) saclaret" (MALHERBE, 1993, p. 44).

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sensações e do outro lado temos as impressões de reflexão – ideias que são

inteiramente o fruto de nossa mente. Assim, se considerarmos a afirmação de

Hume de que as “impressões podem ser divididas em duas espécies: de

SENSAÇÃO e de REFLEXÃO. As da primeira espécie nascem originariamente

na alma, de causas desconhecidas. As segundas derivam em grande medida

de nossas ideias, conforme a ordem (...)” (T. 1. 1. 3., p. 32), isso Pressupõe

que Hume faz dois tipos de classificação da sensação, a primeira ligada

eminentemente a mente e a segunda aos objetos, sendo que esta última

ganharia relevância em detrimento da primeira. O que de fato, concluímos é

que tal pensamento é declarado por Hume em sua filosofia,mostrando que não

há como identificar uma impressão correspondente que nos leve a declarar a

existência de uma conexão necessária no pensamento.Podemos encontrar

essa afirmação de Humeprincipalmente no Primeiro Livro do Tratado, quando

aborda a ausência do nexo causal que nos permita explicar o porquê de

inferirmos da causa seguir-se o efeito em nossos julgamentos de cunho moral,

estético, histórico, epistêmico ou teológico.E que deve ter levado Malherbe a

mudar seu caminho e passar a defender uma interpretação realista da filosofia

de Hume. Entretanto, a interpretação “realista” de Malherbe, apoiando-se nas

impressões de sensação e impressão de reflexão, seriam interpretados como

princípios mentais, não descrevendo a realidade tal qual nos aparece, mas

também poderia nos levar a erros já que psicologicamente somos cometidos de

insanidades e irregularidades em nosso modo de agir e pensar influenciando

em nosso juízos e conclusões. Além disso, não invalida a junção de duas

idéias na mente, já que: “Esse princípio de união entre as idéias não deve ser

considerado uma conexão inseparável – pois isso já foi excluído da

imaginação; tampouco devemos concluir que, sem ele, a mente não poderia

juntar duas idéias – pois nada é mais livre que essa faculdade” (T1. 1. 4. 1., p.

34). De fato, podemos considerar o realismo atribuído a Malherbede duas

formas. A primeira forma: “o realismo gnosiológico afirma que o conhecimento

é possível sem necessidade de supor (como fazem os idealistas) que a

consciência impõe à realidade (MORA, 2001, p. 2472). A segunda forma de

realismo: “afirma que as coisas existem fora e independentemente da

consciência ou do sujeito” (MORA, 2001, p. 2472). Certamente Malherbe pode

ser interpretado como um realista da segunda forma, pois atribui a realidade

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externa a fonte de conhecimento e ao sujeito caberia a tarefa passiva de

interpretá-la e formar juízos. Em ambas as formas ou definições o realismo

proposto privilegia um ou outro aspecto do conhecimento sem se ater a uma

interpretação que unisse as duas formas de realismo na interpretação da

filosofia moral de Hume. Nesse sentido, Não interpretamos a filosofia do senso

moral de Hume como sendo realista, mas que sua filosofia moral ou ciência do

homem é intersubjetiva já que apoia-se numa explicação objetivo - subjetivo

do conhecimento.Esta interpretação parece bastante plausível já que, desse

modo, eliminaríamos qualquer dificuldade que o empirismo de Hume pudesse

pôr ao pensamento.

Devemos salientar que a impressão de sensação e impressão de

reflexão, na filosofia de Hume, é passível de ser concebidaseparada, na

medida em que sua origem está na impressão e pode ser interpretada dessas

duas formas, o que não quer dizer que seus dados sejam infalíveis. Pois, Hume

explica que a impressão de sensação vinculado afisiologia enquanto impressão

de reflexão está vinculada ao plano psicológico.Nesse sentido reiteramos

nossa posição contrária a intepretação realista de Malherbe de haver uma

separação entre impressão de sensação e impressão de reflexão, na medida

em que mesmo podendo concebê-las separadas, conforme os fenômenos se

apresentem em associação a nossa percepção nossa mente as concebe em

conjunção. Pois defendemos a idéia de que ambas são originadas inteiramente

na mente e propomos que ambas sejam entendidas conjuntamente na filosofia

de Hume.Isso nosleva a considerar tanto a impressão de sensação como de

reflexão comoimportantes para a experiência e através dessa interrelação que

podemos tanto crer por meio dos sentidos na sucessão dos objetos passados

como projetar para o futuro sua aparição. Este pensamento pressupõe essa

projeção futura, o que a aproximaria das projeções psicológica e, por isso,

parece ser a impressão de reflexão mais pertinente à investigação moral de

Hume do que a impressão de sensação. Contudo, a impressão de reflexão

sozinha, desvinculada de qualquer apoio dos sentidos nos faria recair na

armadilha do racionalismo encontrado na tradição de que Hume tanto busca se

afastar e por isso que Hume passa a defender uma atitude preventiva quanto a

essa interpretação. Desse modo Hume explica que:

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Ora, o estudo de nossas sensações cabe antes aos anatomistas e aos filósofos naturais que aos filósofos morais, e por esse motivo não entraremos nele no momento. E como as impressões de reflexão – a saber, as paixões, os desejos e as emoções, que sobretudo merecem nossa atenção – surgem em sua maior parte de ideias, será necessário inverter o método acima mencionado, e que à primeira vista parece mais natural (T1. 1. 3. 1.,p. 32).

Como mostramos acima, Malherbe observa existir um problema sobre

inferências que tenham como fundamento a sensação devido a esta possuir

em seus pressupostos irregularidades que inviabilizariam qualquer juízo a

priori. Desse modo, seus pressupostos fazem pensar que o empirismo de

Hume, por ultrapassar os dados da sensação, inviabilizaria qualquer

compatibilismo com esta última. Assim ao extrapolarmos os limites dasensação

poderíamos inviabilizar, como consequência, o empirismo de Hume, devido ao

fato de seu empirismodefender, baseado na força do hábito ou costume, a

projeção de juízos sem o apoio das sensações imediatase que não garantem

que eventos observados no passado voltarão a aparecer no futuro.Desse

modo, Malherbe pensa que Hume admitiria que o “limite” dos sentidos

estivesse vinculado ao que é imediatamente percebido nos objetos, não

podendo estender seus pressupostos para casos ainda não observados, o que

seria ilógico. Nesse sentido, em resposta a essa interpretação de Malherbe

devemos evocar a explicação humeana sobre o hábito ser o responsável por

essa ultrapassagem do dado da sensação imediatamente percebido, e que nos

inclina a projetar nossas inferências passadas para o futuro e que estaria

vinculado à experiência e não a mecanismos racionais.Hume afirma que:

“Todas as inferências da experiência são, pois, efeitos do hábito, não do

raciocínio” (IEH, 2004, 5. 5., p. 75).

Entretanto, é possível considerar,na análise de Hume, que essa

ultrapassagem do dado do sentido só poderia acontecer se pressupomos a

existência de uma conexão necessária que nos levaria a crer nos objetos como

sendo associados e pela experiência os levaríamos a projetá-los do passado

para o futuro. Pois Humeexplica mais detidamente que se houvesse uma

conexão, que pudesse ser percebida pelos sentidos, poderíamos projetar a

partir de um único caso uma regra para o futuro, mas de fato não é isso o que

fazemos. Na verdade, apenas depois de Adão observar e experimentar a água

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e o pão reiteradas vezes e em muitos casos é que ele pode criar o hábito de

esperar que uma sacie sua sede e outro sua fome. De fato, só conseguimos

elaborar uma explicação plausível sobre a natureza de um objeto quando

observamos e experimentamos repetidas vezes um fenômeno e através da

sensação conseguimos criar o hábito de associar sua causa a seu efeito.

Assim, os casos isolados seriam considerados, antes, como meras exceções à

regra geral, admitida por Hume, o que não prejudicaria nossas inferências

morais feitas a partir da experiência e de casos observados anteriormente (IEH,

3. 18.,p. 51).Além do mais, Hume objetiva mostrar que

Quanto à experiência passada, pode-se admitir que ela provê informação imediata e segura apenas acerca dos precisos objetos que lhe foram dados, e apenas durante aquele preciso período de tempo; mas por que se deveria estender essa experiência ao tempo futuro ou a outros objetos que, por tudo que sabemos ser semelhantes apenas em aparência? (IEH, 4. 16., p. 63).

Contudo, Hume objetiva mostrar que a ausência conectiva não

inviabilizaria o empirismo, porque se verificarmos a multiplicidade de casos

semelhantes e que se mostram constantes no passado para a nossa

percepção, notaremos que passamos a acreditar em seu surgimento futuro.Os

casos observados e experimentados no passado nos levam a desenvolver um

hábito ou costume existente na natureza humana de associar ou relacionar

objetos que aparecem constantemente a nossos sentidos e por meio dessa

aparição constante cremos que o passado se conformara com o futuro. Isso

poderia ser considerado como um “instinto” ou capacidade de sensibilizar-se

diante da observação de conjunções constantes. Isso se torna evidente na

medida em que:

Mas, quando muitos casos uniformes se apresentam, e o mesmo objeto é seguido sempre pelo mesmo resultado, a noção de causa e de conexão começa a surgir à nossa consideração. Experimentamos então um novo sentimento ou impressão, a saber, uma conexão habitual, no pensamento ou imaginação, entre um objeto e seu acompanhante usual, e esse sentimento é o original que estamos buscando para aquela idéia (IEH, 7. 30., p. 117)

Entretanto, essa posição inquisitiva de Hume sobre sua própria filosofia

entenda-se, nesse sentido, o seu empirismo, denota apenas um cuidado

metodológico seu para não recair na tentação de um fundacionismo como o

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encontrado na tradição racionalista que propõe que todo o conhecimento pode

ser reduzido a razão. Por isso ele tem o cuidado de dividir os “raciocínios” em

dois tipos, a saber, raciocínios demonstrativos, que dizem respeito a relações

de idéias, e o raciocínio moral, referente a questões de fato e existência. Essa

divisão tem como objetivo demarcar as diferenças “filosóficas” de seu

pensamento que valoriza a experiência/sensação em contraponto ao do

racional/dedutivo.Hume observa que os fenômenos naturais podem mudar e

que percebemos que issoacontece com frequência e isso não se mostraria

contraditório a nossos sentidos.Desse modo argumentos demonstrativos não

estariam envolvidos nesses fenômenos. De fato: “Não posso, por ventura,

conceber de forma clara e distinta que caia das nuvens um corpo, em todos os

outros aspectos assemelhado à neve, e que, contudo apresente ao paladar o

gosto de sal e ao tato a sensação de fogo?” (IEH, 4. 18.,p. 65). Além de

mostrar que: “Há alguma afirmação mais inteligível do que dizer que todas as

árvores vão florescer em dezembro e janeiro e perder as folhas em maio e

junho? (IEH, 4. 18., p. 65). O objetivo de Hume é mostrar que a experiência

passada torna possível as inferências futuras e que fundamentar nossos

julgamentos e juízos nessa pressuposição é seguro. Mas ressalta que a

experiência nesse caso só pode ser entendida como provável, ou seja,

podemos tê-las apenas como questões de fato e de existência, mas não

demonstrativas. Já que ele considera

Assim, se formos levados, por meio de argumentos, a depositar confiança na experiência passada e torna-la o modelo de nossos julgamentos futuros, esses argumentos terão de ser apenas prováveis, ou seja, relacionados a questões de fato e de existência efetiva (IEH, 4. 18., p. 65).

Certamente Hume preocupa-se em mostrar que a filosofia do senso

moral é coerente, devido haver uma espécie de ligação entre o plano físico e o

plano mental em suas premissas que podemos perfeitamente concebê-los

unidosno pensamento. Isso aconteceria através da experiência observada nos

fenômenos em sucessão e por isso podemos deduzir que o passado se

conformará ao futuro e assim produzir inferência confiáveis. Pois, Hume

observa que: “Eis aqui uma espécie de ATRAÇÃO, cujos efeitos no mundo

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mental se revelarão tão extraordinários quanto os que produz no mundo

natural, assumindo formas igualmente numerosas e variadas” (T1. 1. 5. 6., p.

37).Entretanto, comopodemos através da experiência descrever essa “relação”

entrea impressão de sensação e impressão de reflexão sem o auxílio da

“imaginação”? De fato, Hume declara que podemos encontrar dois significados

distintos para designar o termo RELAÇÃO. Assim ele define o termo “relação”

em primeiro lugarrelacionadoa linguagem comum: “para designar a qualidade

pela qual duas idéias são conectadas na imaginação, uma delas naturalmente

introduzindo a outra(...)”(T1.1.5.1.,p. 37). A segundaestá ligada àlinguagem

filosófica e pode servir para: “designar a circunstância particular na qual, ainda

que a união de duas idéias na fantasia seja meramente arbitrária (...)”

(T1.1.5.1.,p. 37).Hume, assim, prefere o primeiro tipo de relação aosegundo,

devidoser mais apropriado para sua análise,e por aproximar-se à linguagem

comum. Ora a preferência de Hume se explica por que: “(...) na linguagem

comum, quando afirmamos que nada pode ter menos relação que tais ou tais

coisas, queremos dizer que nada pode ter menos relação que essas coisas

(...)” (T1. 1. 6. 1.,p. 37).

Nesse sentido, isso equivaleria dizer que percebemos nos objetos tanto

no plano físico quanto no plano mental uma regularidade e sucessão que nos

leva a experimentar uma “relação” ou “associação”entre eles, e que do

surgimento do primeiro somos levados a esperar o aparecimento do segundo e

que isso se mostraria tão evidente e simples que seria um conhecimento

comum entre os homens. Pois Hume explica que: “De causas que aparecem

semelhantes, esperamos efeitos semelhantes; essa é a súmula de todas as

nossas conclusões experimentais” (IEH, 4. 20., p.66).O que podemos notar nas

entrelinhas da explicação deHume é que seu objetivo é mostrar a

compatibilidade entre sensação – experiência na ciência humana e que

explicaria tanto sobre o costume de projetar julgamentos e juízos sobre as

ações dos homens ou dos fenômenos naturais como as paixões e sentimentos

decorrente desses julgamentos e juízos na mente. Hume, assim procuraria

compatibilizar o conhecimento oriundo da sensação e da experiência buscando

tornar o seu sistema de filosofia moral consistente e seguro. Por isso Hume

mostra que ao observarmos eventos passados projetamos sua aparição futura

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e isso decorre da crença nessa repetição devido pressupormos a partir do

surgimento da causa se seguirá o seu efeito como consequência natural.

Desse modo, considerando as possíveis críticas céticas que pudessem

ser feitas sobre a sensação e seus limites para a fundamentação da ciência do

homem por Hume, pareceria também que tais críticas inviabilizariam o seu

empirismo como conseqüência. Mesmo considerando que os sentidos assim

como a experiência fazem parte do método empírico de Hume, as fragilidades

que podemos encontrar em cada uma poderia levar a inconsistências em seu

fundamento. Entretanto, analisando o empirismo de Hume pautando-se tão

somente no exame isolado dos limites que possuem tanto sensação como

experiência na sua filosofia,O que podemos considerar existir a possibilidade

decompatibilidade entre sensação e experiência quando considerado à luz das

associações em sua filosofiae que seria determinante para a sua filosofia

moral. De fato, isso se mostra evidente quando consideramos as conexões que

fazemos entre objetos associados, sejam eles externos ou internos, e que

observamos existir nas associações conexões causais (IEH, 5, 7)e que são

tanto sentidos como experimentados. E, do mesmo modo, a conjunção entre

sensação e experiência aparece quase imediatamente e nos faz pressupor que

observações passadas podem ser projetadas para o futuro. Pois, o que dizer

quando observamos a chama e antes de tocá-la intuímos ou vivenciamos o

sentimento de dor da queimadura, devido a ter experimentado a mesma

sensação no passado e esperamos que tal experiência se repita no futuro. Não

obstante, essa constatação encontrada nas associações percebidas só pode

ser experimentada e não seria produto do raciocínio, enfatizando que a

sensação desempenha papel importante nesse processo. Pois em suas

palavras:“A natureza moldou a mente humana de tal forma que, tão logo certos

caracteres, disposições e ações façam seu aparecimento, ela experimenta de

imediato o sentimento de aprovação ou de condenação, e não há emoções que

sejam mais essenciais que essas para sua estrutura e constituição” (IEH, 8.35.,

p.145).

Nesse sentido, podemos mostrar que uma interpretação compatibilista

do empirismo de Hume com a sensação é possível e poderia explicar como a

partir de um objeto percebido no passado somos capazes de imaginar seu

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aparecimento no futuro e assim conseguir fazer associações que nos levam à

certeza da ocorrência de seu aparecimento. Mesmo considerando os limites

que podemos encontrar na sensação o empirismo proposto por Hume busca

justamente superar a limitação dos sentidos a partir dos objetos imediatamente

percebidos. Isso só ocorre através da observação das reiteradas vezes em que

os objetos se repetem a nossos sentidos e através do auxílio do hábito somos

levados a antecipá-los em nossa mente. Desse modo, o empirismo de Hume

estaria mais ligado à experiência dos objetos repetidos aos nossos sentidos do

que meramente à sensação, e por isso é perfeitamente possível dizer haver um

compatibilismo entre sensação e empirismo.

Nesse sentido, se de fato observei um certo número de vezes o

fenômeno A seguido do fenômeno B, não se segue necessariamente que de A

segue-se B “todas” as vezes ou que de A segue-se B na maioria dos casos ou

em todos os casos objetivos até agora. Falta um termo médio para pular do

“todos até agora” para “todos”, inclusive os casos futuros. Desse modo, essa

mesma questão pode ser estendida a filosofia moral de Hume, já que não

conseguimos explicar como de casos observados no passado e que se

mostram constantes somos inclinados a aceitar sua ocorrência como certa no

futuro. Nesse sentido, uma possível pergunta poderia nos abordar: como

podemos encontrar um equilíbrio entre a crítica cética e o empirismo de Hume,

na medida em que destaca os sentidos nos processos de conhecimento os

juízos morais ou epistêmicos e por isso nos afasta dos juízos abstratos frutos

da razão. Essa compatibilidade entre ceticismo e empirismo existente na

filosofia de Hume é muito parecida com a nossa proposta de compatibilismo

entre sensação – experiência, que podemos encontrar em sua própria filosofia

e será assunto de nosso próximo tópico.

3.2 –Empirismo e ceticismo

Se considerarmos que o empirismo pressupõe em suas premissas

extrapolar as evidências do sentido, isso nos levaria a considerar que a

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sensação não serviria de critério válido para o conhecimento pleno dos

fenômenos e muito menos dos mecanismos mentais? De fato, o problema

levantado anteriormente restringe o conhecimento apenas àqueles fenômenos

evidentes aos sentidos e que foramexperimentalmente comprovados em

observações passadas, mas não serviria para fazer inferências sobre o futuro.

Além disso, existe ainda a negativa humeana de ligações necessárias porque

não as verifica nem física nem psicologicamente. Desse modo, grande parte do

conhecimento empirista seria ameaçado e a tentativa de instaurá-lo como

método pareceria fadado ao fracasso. Contudo, como mencionamos

anteriormente, a crítica a essa possível deficiência dos pressupostos empiristas

explicada por Hume faz parte da sua postura cética, que procura antecipar os

possíveis pontos de divergência e as críticas de seus adversários ao seu

método com vistas a dar consistência ao empirismo. Nesse sentido, é válido

entendermos que o ceticismohumeano, encontrado tanto na primeira parte do

Tratado da Natureza Humana como na Investigação sobre o entendimento

humano, mais especificadamente, na seção quatro da mesma obra, serve para

ressaltar o aspecto empírico de nossas inferências em detrimento das vias

meramente racionais. Já que a experiência toma como base para suas

conclusões inferência que estão baseados na regularidade dos eventos

passadose que são projetados para o futuro não verificado pelos sentidos.

De fato, a depuração do conhecimento racional feita pelo ceticismo de

Hume constitui a parte destrutiva de sua filosofia e parece também, à primeira

vista, ser um ataque demolidor sobre toda e qualquer pretensão a fundamentar

necessariamente o conhecimento nos sentidos28. Entretanto, este ataque

estaria circunscrito apenas aos domínios da razão, ou poderíamos estendê-lo

28 Nesse sentido é importante notar que Sexto Empírico explica que o ceticismo não nega a possibilidade da experiência imediata através da observação dos fenômenos, mas desqualifica toda e qualquer tentativa de dogmatizá-lo como uma verdade universal e inquestionável. Emoutraspalavras: “Como dissemos (…) nósnãodestituimosaefetividade da sensação – impressão que nosinduzinvoluntariamente; essasimpressõessão “as aparencias”. E quandonosquestionamos se o objetosubjacente é comoaparece, nosconcebemos o fato de que aparece, e a nossadúvidanãodizrespeito a própriaaparência, mas contamos que aquele dado apareça, - e isso é umacoisadiferente de questioner o aparecimentoemsi” (SEXTO EMPIRICUS, 2000, p. 15). No original,(For, as we Said above, we do not overthrow the effective sense – impression which induce our assent involuntarilly; and these impressions are “the appearences”. And when we question whether the underlying object is such as it appears, we grant the fact that it appears, and our doubt does not concern the appearance itself but the account given of that appearance, - and that is a different thing from questioning the appearance itself

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igualmente ao empirismo e seu projecionismo? De fato, para podermos

entender em que medida Hume explica que sua atitude empirista é compatível

com o seu ceticismo necessitamos entender a dialética que envolve ambos os

conceitos. Desse modo, considerando que o ceticismo admitido por Hume nos

remeteria àsua posição preventiva a respeito do conhecimento, e também por

pressupor que somente podemos admitir conhecimentos capazes de serem

experimentados, sua posição cética deveria ser considerada mais um auxilio a

seus pressupostos do que uma crítica demolidora. Nesse sentido, Hume

defende que os pressupostos empiristas são mais corretos do que aqueles de

origem racionalista29, devido ao empirismo tomar como base para suas

inferências os objetos observados, além de considerar sua associação. Por

isso, Hume se concentra somente naquilo que é observável e experimentado

pelos sentidos, enquanto a razão pauta seu conhecimento na reflexão

puramente mental ou psicológica. Por sua vez, podemos explicar que o

ceticismo de Hume, dito mitigado, mostra que podemos conhecer os objetos

com relativa certeza, mas isso não quer dizer que seu conhecimento seja

absoluto ou universal, mas apenas provável na medida em que pode ser

submetido ao crivo da observação e experiência.

Existem comentadores que defendem uma possível interpretação

“empirista – cética" da filosofia de Hume. Um deles é Plínio Junqueira Smith.

Na interpretação de Smith, há a concordância de que o empirismo é

compatível com o ceticismo. Smith admite que a evidência dos fenômenos que

aparecem a nossos sentidos nos traz informação relativamente confiável da

natureza dos fenômenos observados. Contudo, essa relação “empirismo –

ceticismo” na filosofia de Hume deve ser entendida com certa precaução,

porque em ambos os casos admitimos que a sensação é confiável e por isso

temos de estabelecer determinados limites para o seu conhecimento. Nesse

sentido, as opiniões emitidas individualmente, sem considerar uma cadeia de

associações experimentalmente aceitas não devem servir de critério válido

29

Considero que essa opinião seria compartilhada igualmente por Maria Magdalena Cunha de Mendoça, na medida em que seu livro (“O problema do Eu no ceticismo de David Hume”)discute as possíveis divergências de Hume com a herança Cartesiana, que o levaram a adotar uma posição cética sobre o conhecimento, assim como aestabelecer o critério de verificabilidade pautada na observação e experiência.

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para as inferências que fazemos a respeito dos objetos do conhecimento. Por

consequência, a atitude preventiva cética nos ajuda a evitar qualquer opinião

emitida baseada apenas nos sentidos. Além disso, o ceticismo de Hume possui

a virtude de concentrar-se naquilo que aparece “imediatamente” a nossos

sentidos fugindo de qualquer controvérsia racional a respeito do conhecimento

ideal.Desse modo, a sensação é o que nos leva a conhecermos tanto mental

como fisicamente os objetos, mesmo sabendo das suas limitações. O

empirismo de Hume surge como modo de viabilizar a “projeção” de casos

percebidos no passado cuja observação fazemos inferências e juízos morais

para casos futuros.

Na opinião de Plínio Junqueira Smith, Hume não só concorda com o

tropo cético a respeito da multiplicidade de opiniões sobre os fenômenos

observados, como também aponta que esta diversidade de opiniões é

resultado da interpretação errônea originada da antecipação de casos que de

fato não foram constatadas pelos sentidos e nem observados na natureza.

Nessa perspectiva, entendo que o empirismo de Hume deve ser compreendido

como de fato o é, a saber, como um método de se atingir o conhecimento

experimentalmente aceito e evitar toda e qualquer tendência metafísica de

generalizar a casos não constatados pelos nossos sentidos sobre a natureza

dos objetos:

O recurso ao método experimental, aos olhos de Hume, é a única alternativa que nos resta devido à nossa evidente ignorância da essência da mente, bem como da essência dos corpos externos (T. XVIII). Se pretendemos conhecer seus poderes e qualidades, não há outra possibilidade, senão a de realizar experimentos cuidadosos e exatos, tentando alcançar os princípios mais gerais possíveis. Para Hume, jamais chegaremos às qualidades últimas da natureza humana, uma vez que não podemos ultrapassar os limites da experiência. Por esse motivo, as hipóteses acerca dessas qualidades últimas devem ser imediatamente rejeitadas (T. XVII), apesar da tentativa dos filósofos de impô-las como princípios certos (cf. T. XVIII). Opera-se, assim, uma segunda reforma nos procedimentos filosóficos, a saber, o abandono do raciocínio hipotético em favor da experiência e observação (SMITH, 1995, p. 35).

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Não obstante, para Smith, o empirismo de Hume destaca-se em sua

filosofia, na medida em que seria uma decorrência natural de seu ceticismo.

Além do mais, ele aponta que na Investigação, particularmente na Seção 5, a

solução cética para nossas dúvidas a respeito do conhecimento objetivo e

subjetivo baseia-se no princípio do hábito ou costume, e não na razão.

Portanto, Plinio Junqueira Smith afirma que o empirismo de Hume faz parte de

seu ceticismo mitigado. Assim, a solução de nossas dúvidas a respeito do que

pode ou não ser conhecido só pode ser obtida através da experiência direta

com os objetos, o que nos levaria a pensar que o princípio causal

experimentado na sucessão dos objetos seria uma consequência natural dessa

consideração. Por conseguinte, o empirismo é o espírito mesmo da filosofia

humeana, tendo se revelado para nós desde o início, na análise do projeto

filosófico, como o motor de suas construções filosóficas (SMITH, 1995, p. 159).

Entretanto, Smith parece querer mostrar que o empirismo de Hume

possui limites em sua pretensão de descrever a realidade tal qual nos aparece.

Smith corrobora a interpretação de que o empirismo humeano não deseja

explicar a natureza e as operações reais dos corpos, mas antes apenas as

descreve como as mesmas atingem os sentidos, limitando-se a estabelecer

teses sobre sua efetiva realização. A posição de Hume a esse respeito é

inequívoca:

(...) confessando-me culpado, e admitindo que minha intenção nunca foi penetrar na natureza dos corpos ou explicar as causas secretas de suas operações. Além de isso estar fora de meu propósito presente, receio que tal empresa ultrapasse o alcance do entendimento humano, e que nunca poderemos conhecer os corpos senão por meio das propriedades externas que se mostram aos sentidos. Quanto àqueles que tentam algo além disso, não poderei lhes dar crédito até ver que tiveram sucesso em pelo menos um caso. No momento, contento-me em conhecer perfeitamente a maneira como os objetos afetam meus sentidos e as conexões que eles mantêm entre si, até onde a experiência disso me informa. Esse conhecimento basta para a condução da vida; e basta também para minha filosofia, que pretende explicar tão somente a natureza e as causas de nossas percepções, ou seja, de nossas impressões e ideias (T. 1.2.5.p. 91).

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Entrementes, nesse sentido Hume rebate uma possível crítica a sua

pretensão de explicar a natureza própria da percepção. O ponto em questão,

talvez, esteja em admitir que a origem da natureza dos corpos é inapreensível,

ou que a sua causa primeira é impossível de ser atingida. Baseados nisso,

podemos concluir que apenas o compatibilismo entre sensação - empirismo,

guardadas as devidas limitações de sua constituição, mostra-se relativamente

seguro para nosso conhecimento. Assim, os sentidos não nos dizem nada

sobre a sua natureza. A percepção é o veículo de nossas inferências

empíricas, mas não pode servir de fundamento para o conhecimento em

sentido forte, por não ser estável e regular.

De fato, levando-se em consideração tão somente o empirismo de Hume

e todo o histórico que envolve a dúvida cética que põe em suspenso seus

pressupostos, não podemos considerá-lo igualmente confiável e que sirva de

fundamento para nossas inferências a respeito da formação de uma ciência do

homem. Não obstante, Smith entende que o ceticismo de Hume antes de

inviabilizar o empirismo dele, faz o contrário, qualifica-o e justifica-o na medida

em que o seu empirismo serve para depurar qualquer “tendência” ao

dogmatismo a respeito do conhecimento, principalmente aqueles que não se

apresentaram a nossos sentidos. Por isso, Smith pensa que Hume deve ser

entendido positivamente quando consideramos a advertência do filósofo

escocês a respeito de: “(...) a existência de um ser qualquer só pode ser

provada por argumentos que partam de sua causa ou de seu efeito; e

argumentos desse tipo fundam-se inteiramente na experiência" (IEH,12. 29.p.

221). Dito de outra forma, só podemos inferir ou derivar qualquer conhecimento

a respeito da natureza humana tendo como princípio os fenômenos e sua

consequente associação nas ideias que tenham como fundamento a

experiência. Nesse sentido, a interação entre a uniformidade da natureza

humana e o princípio psicológico estariam ligado a capacidade associativa que

experimentamos nos fenômenos repetidos a nossos sentidos tanto internos

como externos e que habitualmente fazemos inferência sem questionarmos

seus princípios. Desse modo, analogamente tanto o princípio moral da simpatia

como a natureza humana seguiriam também regras parecidas com o que

encontramos na associação causais e dela derivariam seus juízos e

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julgamentos. Assim, se considerarmos que a maioria de nossas inferências são

feitas a partir dessas premissas morais e naturais, poderíamos declarar que

elas nem seriam pautadas na razão e nem na sensação. Já que no primeiro

caso não podemos derivar conclusões pautadas tão somente em argumentos

hipotéticos e que geralmente conduzem ao erro e a incertezas, por outro lado,

no segundo caso as sensações tem seus limites ligados a interferências tanto

externas (doenças, condições atmosféricas adversas) como internas (doenças,

delírios, falha dos sentidos). Somente através desse modo de observar os

fenômenos e tendo como base a experiência adquirida através deles, é que

podemos nos reservar o direito de ter uma vaga ideia de sua realidade.

Podemos citar ainda outro estudioso do ceticismo que concorda com a

compatibilização entre o ceticismo e o empirismo. Um caso notório dessa

interpretação conciliadora entre ceticismo e empirismo é Oswaldo Porchat

Pereira.

No entendimento de Pereira o ceticismo de Hume é compatível com seu

empirismo, na medida em que ele faz uma leitura parecida do ceticismo como a

que podemos encontrar em Sexto Empírico, algo parecido com o que faz

Smith. Quando ambos explicam por que fazemos inferências futuras tendo

como base casos anteriormente observados no passado, isso só poderia

ocorrer mediante a experiência obtida através da observação de casos

regulares e repetidos na mente. O que levaria Pereira a afirmar que a filosofia

cética de Hume seria uma interpretação moderna das conclusões de Sexto,

envolvendo tanto os fenômenos físicos quanto mentais. Esta explicação de

Pereira já identifica essa relação como pressuposta nos textos de Sexto

empírico quando diz: “Sexto, parece-me caminhar, ouso dizê-lo, para uma

identificação entre adiánoia, o eufenomênico e o “homem” (PEREIRA, 2007,p.

109). Claro que devemos ressaltar aqui que a leitura de Hume sobre o

ceticismo está vinculada a seu contato com os textos da nova academia.

Contudo Pereira, pensa que os acadêmicos já tinham conhecimentos dessa

análise de Sexto, que envolvia, não muito claramente, essa relação entre o eu

fenomênico e o homem, e que somente com o empirismo, mais

particularmente, com o empirismo humeano é que ganharia uma análise

adequada. Desse modo, Pereira diz que: “Mas o ceticismo não dispunha, por

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certo, das categorias conceituais necessárias para um tal passo, que somente

o empirismo moderno viria a dar explicitamente” (PEREIRA, 2007,p. 109). Isso

mostra claramente, a tentativa de resposta a Sexto Empírico, pensa Pereira,

aquele tipo de interpretação do ceticismo pirrônico negativo que inviabilizaria

qualquer tipo de conhecimento “absoluto”, “universal” e até mesmo “parcial”

sobre o conhecimento e que em nada contribuiria para a formação de uma

ciência do homem por Hume.

Nesse sentido, à aproximação que Pereira faz dos argumentos de

Enesidemo que discutem a doutrina cética do signo “rememorativo” com o

princípio de causalidade e conjunção constante de Hume é bastante notável.

Pois segundo Pereira menciona em uma nota de rodapê: “Os céticos

suspendem o juízo sobre a existência dos signos “indicativos” propostos pela

filosofia “dogmática”, mas reconhecem plenamente os signos “rememorativos”,

com base na conjunção constante entre “fenômenos” de que se tem

experiência na vida comum” (cf. nota, PEREIRA, 2007, p. 109). A filosofia

cética de origem acadêmica, guardadas suas devidas peculiaridades e

diferenças com o ceticismo pirrônico, toma como base argumentos parecidos

que defendem também uma postura preventiva sobre o conhecimento absoluto

e faz uma análise bastante pertinente sobre a relação fenômeno e mente. Por

isso que Pereira observa que:

A etiologia de Enesidemo e a doutrina cética do signo “rememorativo” podem-se invocar sob essa perspectiva e sua comparação com a teoria humeana da causalidade e conjunção constante se impõe absolutamente. Muitos textos sugerem toda uma teoria de conhecimento claramente empirista, com base em nossa apreensão dos “fenômenos” (PEREIRA, 2007, p. 110)

Isso mostra que essa capacidade que a mente tem de “rememorar” ou

lembrar experiências passadas evocam a própria necessidade do empirismo de

extrapolar os dados constatados pelos sentidos e projetar para o futuro eventos

observados no passado. É o que nos capacita a interpretar o compatibilismo

entre o empirismo e o ceticismo, assim como o compatibilismo entre sensação

e empirismo na filosofia de Hume. Nesse ponto, parece não existir nenhuma

negativa por parte de Pereira, já que o empirismo nada mais seria do que a

solução para “interpretações” errôneas que defendem o ceticismo total nas

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acusações sobre o pirronismo. Não obstante, esta afirmativa de Pereira serve

apenas para criticaro argumento que consiste em afirmar que o ceticismo de

Hume é mentalista, na medida em que é uma decorrência da forma como

representamos via nossas sensações o mundo e inferimos considerações

psicológicas a partir dele. Isso segundo Pereira é evidente, na medida em que

Hume herda de Descartes e de filósofos como Montaigne e outros, a partir do

renascimento mais precisamente, esse espírito inquisitivo residente na forma

como representamos o mundo em nossa mente, “(...)sobretudo, o grau de

presença do “mentalismo” cético na vasta literatura renascentista que veiculou,

comentou e fez reviver o ceticismo antigo, culminando na “crise pirrônica” dos

contemporâneos de Descartes, à qual a filosofia do Cogito pretendeu pôr

termo” (PEREIRA, 2007, p. 111). Consequentemente, essas discussões sobre

essa “crise” cética do pirronismo, segundo Pereira, serviram e influenciaram

muitos filósofos da modernidade, entre eles Hume, que interpretou o problema

do ceticismo pirrônico procurando solucionar essa aparente impossibilidade de

conhecimento através da admissão de conhecimentos empíricos admitidos

como “prováveis”, mas não absolutos, e que serviu para torná-los

compatíveiscom a experiência do homem comum. Segundo Pereira, isso nada

mais seria do que a tentativa de Hume de evitar a opinião errônea que leva a

interpretar a suspensão do juízo (epokhé) existente no ceticismo pirrônico

como uma tentativa de inviabilizar todae qualquer “crença” que pudesse nos

levar a conhecer algo a respeito dos objetos físicos ou mentais, mesmo que

passageiramente. Esta leitura errada de Hume, nada mais seria do que uma

leitura herdada da renascença, e especialmente da nova academia, mas que já

vinha se estendendo desde Enesidemo e Sexto Empírico (PEREIRA, 2007, p.

111). Tal afirmativa, segundo Porchat, mostra que essa interpretação do

ceticismo pirrônico feita por Hume nada mais era do que o resultado da forma

ambígua com que representavam a natureza da epokhé na modernidade :

Contra a epokhépirrônica, cuja natureza não foi capaz de apreender, Hume propôs um ceticismo mitigado, que disse resultar da moderação do pirronismo pela intervenção da força irresistível da natureza. Esta nos obriga a ter juízos e crenças, a despeito da análise racional que nos descobre a inexistência de justificação e fundamentos para eles e que nos levaria, por si só, a supendê-los (PEREIRA, 2007, p. 135).

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Além disso, Pereira mostra que a interpretação humeana sobre a crença

mostra que: “ele [Hume] nos lembra que temos crenças irresistíveis, crenças

que se podem dizer instintivas e naturais, que não dependem de deliberação

ou escolha e prescindem de justificação ou fundamento, aliás inexistentes: uma

dessas crenças naturais irresistíveis é a crença na existência dos corpos”

(PEREIRA, 2007, p. 136). Pereira alegaque Hume, ao pensar na

incompatibilidade da epokhé pirrônica com a natureza da existência dos corpos

não considerou que a compatibilidade entre os dois era possível. Pois: “como

vimos, o pirrônismo não diz outra coisa ao descrever nosso assentimento

necessário ao fenômeno. Hume não percebeu que somente não havia

incompatibilidade entre tal “naturalismo” e a epokhé pirrônica, mas que ele é da

épokhe o necessário complemento” (PEREIRA, 2007, p. 136). Pereira observa

que essa leitura errada de Hume sobre o ceticismo pirrônico o levou a uma

interpretação negativa da epokhé, já que Hume buscava inviabilizar qualquer

tipo de crença teológica ou epistemológica através da suspensão do Juízo

(epokhé), para evitar controvérsias e opiniões errôneas. Podemos nesse

sentido, evocar, o próprio entendimento de Pereira sobre o assunto quando

comenta:

O que nos aparece se nos impõe com necessidade, a ele não podemos senão assentir, é absolutamente inquestionável em seu aparecer. Que as coisas nos apareçam como aparecem não depende de nossa deliberação ou escolha, não se prende a uma decisão de nossa vontade. O que nos aparece não é, enquanto tal, objeto de investigação, precisamente porque não pode ser objeto de dúvida. Não há sentido em argumentar contra o aparecer do que aparece, tal argumentação seria ineficaz e absurda (PEREIRA, 2007, p. 123).

Esta má interpretação de Hume, descrita por Pereira, da epokhé

pirrônica, não inviabilizou sua filosofia nem tampouco sua posição cética dita

mitigada acerca do que podemos perceber ou entender daqueles eventos não

efetivados em nossa percepção, fonte de seu empirismo30. Porque não há, por

30

Lívia Guimarães partilha dessa opinião quando menciona: “O reconhecimento destes limites ocasiona, como subprodutos, a paz de espírito e o contentamento advindos de não mais se pretender explicar o que está além do nosso alcance” (GUIMARÃES, 1996, p. 114).

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parte de Hume, incompatibilidade entre o seu ceticismo “mitigado” e o seu

empirismo. Por conseguinte, podemos notar na filosofia de Hume existir uma

possível interpretação compatibilista que reconcilia o ceticismo e o empirismo

também objetivaria mostrar que fazer inferências a partir das associações

causais é possível.Além disso, não devemos considerar que mesmo Hume não

compreendendo no todo que a mera suspensão do juízo não inviabilizaria a

possibilidade de conhecimento, buscou mostrar que o ceticismo “mitigado” é

perfeitamente compatível com o empirismo e o sensualismo. No entendimento

de Pereira, podemos perceber nos escritos de Hume uma possível leitura

compatibilista entre ceticismo e empirismo como também mostra Smith.

Tratava-se da nítida pretensão de Hume de explicar por que ultrapassamos os

dados imediatos dos sentidos observados no passado e os projetamos para o

futuro inobservado. Para isso, a posição preventiva do ceticismo nos serviria de

lastro para mostrar os limites dos sentidos e como estes podem ser explicados

à luz da experiência repetida que observamos nos fenômenos, que nos levaria

a seguir um princípio conectivo de causa e efeito compreendendo como

fazemos inferências e juízos sobre motivos e as ações humanas.

Nessa assertiva, residem muitas das dificuldades encontradas pelos que

defendem uma interpretação associativa cética e empírica na filosofia de

Hume, residindo esta total falta, na insuficiente literatura sobre o tema (ou se o

tinha passou à margem dela), como Pereira diz: "Por isso, também a dimensão

empirista do ceticismo pirrônico foi, via de regra, menos trabalhada. Ou, em

alguns casos, simplesmente desconsiderada" (PEREIRA, 2007, p. 294).

Entretanto, Pereira observa que a atitude mais coerente é interpretar o

ceticismo dito “mitigado” e o empirismo de Hume como sendo influenciados

pelo pensamento pirrônico31. O ceticismo, por sua atitude precavida diante do

conhecimento, eo empirismo, por sua capacidade de projetar conhecimento do

observado no passado para o inobservado no futuro, possuem semelhanças. E

31

Nesse sentido sobre essa leitura de Pereira que defende uma leitura errada do pirronismo vale uma ressalva. De fato, a maioria dos estudos que são vinculados ao pirronismo lhe atribuem a tese de que o conhecimento total é inviável e por isso seria melhor à atitude de suspensão do Juízo sobre esse assunto. Na realidade muito o que se atribui a Pirro e, portanto, ao pirronimo como defensor desse pensamento negativo sobre o conhecimento é errado, tendo em Arcesilau, o fundador da nova academia o propagador de tal pensamento que: “(...) se opôs a toda forma de dogmatismo, negando tanto à razão quanto aos sentidos a possibilidade de alcançar a verdade (VERDAN, 1998, p. 24). E nesse sentido explica-se a reiterada defesa de Pereira e sua evocação a uma leitura mais atenta do pirronismo.

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isso se mostra evidente quando Pereira diz que existiriam: “(...)as estreitas

semelhanças entre essa postura ao mesmo tempo cética e empirista dos

pirrônicos e as concepções de conhecimento e ciência de Berkeley e Hume”

(PEREIRA, 2007, p. 294). É inegável que encontramos na postura cética de

Hume elementos que contribuem para tal interpretação, como, por exemplo,

quando consideramos a contradição (diaphonia)existente entre as opiniões

sobre um mesmo fenômeno. De fato, nem Hume nem Sexto questionam o

fenômeno, mas questionam a opinião leviana destituída de qualquer análise

mais profunda sobre seu aparecimento. Contudo, isso não inviabilizaria, na

análise de Hume, a experiência de reconhecer na regularidade com que os

fenômenos aparecem deentende-los como sendo prováveis de acontecerem,

Pode-se estender essa consideração de Pereira sobre Hume, também a boa

parte de seus intérpretes, a respeito da extrapolação dos limites do observável

pela projeção: só poderia ser obra da associação e da admissão cética

mitigada, considerados como conhecimentos apenas prováveis de

acontecerem, compatível com conhecimentos originados da tendência

naturalista de interpretar os fenômenos tal qual nos aparecem32Nas palavras

de Pereira:

(...) o ceticismo mitigado, que disse resultar da moderação do pirronismo pela intervenção da força irresistível da natureza. Esta nos obriga a ter juízos e crenças, a despeito da análise racional que nos descobre a inexistência de justificação e fundamentos para eles e que nos levaria, por si só, a suspendê-los (PEREIRA, 2007, p. 135).

De fato, muitos dos nossos juízos morais estão submetidos àquilo que

aparece a nós, causando um sentimento de aprovação ou reprovação, nos

dizeres de Hume: “Ocorre aqui o mesmo que em nossos juízos acerca de todo

tipo de beleza, gostos e sensações. Nossa aprovação está implícita no prazer

imediato que estes nos transmitem” (T3. 1. 2. 3,p. 511). Esta atitude de

adequação das nossas ações morais ao mero aparecer fenomênico está

explícitanas afirmações tanto céticas como empíricas de Hume. E nisso

32

Esta é uma referência direta aos intérpretes de Hume que, comoP. F. Strawson (2008), defendem que a filosofia humeana é naturalista,

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consiste basicamente uma possível compatibilização dessas duas maneiras

(ceticismo e empirismo) de observar os fenômenos e deles derivar algum

conhecimento, mesmo que parcial a respeito do que pode ser observado.

Entretanto, mesmo considerando haver limitações da interpretação de

Hume sobre o ceticismo pirrônico, a compatibilização entre ceticismo e

empirismo é possível, ao nosso ver, na medida em que ambos têm como meta

a mente como palco dessas associações. Parece,a princípio, que a

reivindicação a respeito do compatibilismo existente entre o ceticismo e o

empirismo baseia-se tão somente na admissão humeana da possibilidade de

se extrair algum conhecimento, mesmo que frágil e parcial, dos fenômenos. E

que, Hume mesmo não adotando a postura parecida com a do cético pirrônico

suspende o juízo (epokhé) sobre todo e qualquer conhecimento que tenha

como meta o dogmatismo, não estaria inviabilizando tal conhecimento, mas

apenas sendo preventivo quanto ao seu caráter não factual. Nessa perspectiva,

admitir que o conhecimento pode ser tido como “provável” e não absoluto,

sendo possível, apenas, respeitando as cercanias da sensação e submetidos

ao crivo da critica cética aliada a experiência, fundamentaria toda as nossas

inferências possibilitando, assim, conhecermos parcialmente os objetos do

conhecimento. Assim, a compatibilização entre ceticismo e empirismo na

filosofia moral de Hume, só é possível através da “probabilidade” que nos leva

a conhecer os objetos percebidos e que Pereira mostra ser compatível com o

próprio pirronismo.

Assim Pereira mostra que o ceticismo mitigado de Hume admitiria a

tendência costumeira de projetarmos objetos observados no passado para o

futuro; só poderia ser obra da crença em sua aparição futura, e é por isso que

faríamos projeções. Esta explicação, pensa Pereira, já estava contida

“superficialmente” nos pressupostos pirrônicos quando admite essa “extensão”

de nossas inferências observadas no passado para o inobservado no futuro, já

que eles admitiam que: “(...) a inteligibilidade do fenômeno o estende para

muito além das estreitas fronteiras da mera sensibilidade; nem há também por

que identificar fenomenicidade e observacionalidade, em sentido estrito”

(PEREIRA, 2007, p. 143). Nesse sentido, Pereira interpreta o projetivismo de

Hume como uma reposta àquelas interpretações erradas do ceticismo

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“extremo” pirrônico feitas pelos modernos que inviabilizariam o conhecimento, o

que para Hume não era possível.

Desse modo, defendemos que Hume propõe que o ceticismo poderia ser

repensado em termos de probabilidade, o que abriria margem para que mesmo

não percebendo o objeto pudéssemos projetar o seu aparecimento como

possível, tendo como base observações passadas. Esse argumento é muito

semelhante ao que encontramos no ceticismo de Sexto empírico. E nesse

sentido, podemos encontrar a constatação de que mesmo não chegando a

conhecer a verdade absoluta, podemos e devemos pautar nossa vida em

crenças e na possibilidade dos fenômenos ocorrerem de fato, e isso seria tudo

o que importaria para a vida comum. O que de certo modo é compatível com a

proposta projetivista de Hume e com uma interpretação compatibilista entre

sensação e empirismo. Pois Pereira observa que Hume admite que a projeção

é útil para o conhecimento e vida comum, porque a partir da observação

passada projetamos inferências para o futuro crendo que sua ocorrência

segue-se regular e naturalmente. Podemosobservar ainda que nesse sentido o

ceticismo de Hume acompanhado por seu naturalismo, é semelhante ao

pensamento pirrônico, na medida em que ambos tomam como base os

mesmos pressupostos, "tanto elementos “naturalistas” quanto elementos

“empiristas”, aspectos esses que são da maior importância para a

compreensão do pirronismo e de seu parentesco com o pensamento de Hume”

(PEREIRA, 2007, p. 295). Desse modo, o que defendemos é que,

considerando o ceticismo mitigado como compatível com o empirísmo de

Hume, e através dessa constatação poderíamos avançar nas nossas

investigações sobre o motivo de fazermos projeções e justificar a crença no

inobservado. Além de encontrarmos a justificação de Humesobrecomo a

projeção parte do princípio de que tomamos a experiência passada como base

do exame dos fenômenos, oque nos condiciona a derivar inferências que

serviriam para explicar todos os fenômenos, até mesmo aqueles que não estão

evidentes aos nossos sentidos, que seguiriam o curso da natureza,

independente de percebermo-los ou não. Em linhas gerais, Pereira endossa a

posição de Porchat,em nossaanálise, por que os doismostram queaté mesmo

essas questões já se encontravam pressuposta no “ceticismo pirrônico", que já

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exibiria antes essa "íntima associação entre o ceticismo, naturalismo e

empirismo, os mesmos três elementos que Hume intimamente associou em

sua filosofia” (PEREIRA, 2007, p. 295). Pereira admitiria assim, que tal

associação é muito importante para o conhecimento por justificar a crença

nessa suposta inferência que fazemos do observado para o inobservado, a

qual se encontra nessa precária mas essencial relação entre sensação e

experiência, que só seria possível se admitíssemos a probabilidade do

conhecimento, mas não sua efetividade absoluta e universal, evitando recair

sobre um dogmatismo que Hume deseja eliminar.

Assim, considerando essa análise do ceticismo mitigado de Hume feita

por Pereira, mostra-se justificável afirmar que o empirismo é compatível com o

ceticismo humeano, desde que seja acompanhado por uma postura naturalista

em seu fundamento. Isso mostra, segundo Pereira, que Hume antes de tudo,

busca se precaver de defender argumentos que visem à universalidade do

conhecimento, por isso ele procuraria assumir a probabilidade do

conhecimento. Já que a simples constatação dos objetos observados não nos

inclina a considerar haver critérios suficientes que validem a regularidade e a

confiabilidade dos fenômenos que não tenham se apresentado a nossos

sentidos e, por isso, justifiquem universalmente e necessariamente nossas

inferências a respeito de sua existência. Haja vista que fixadas determinadas

características encontradas nos fenômenos, passamos automaticamente a

inferir, com certa convicção, que “este evento” se repetirá, o que não garante

que “este fenômeno” seguirá regular e constante o tempo todo. Entretanto, a

forma como esta falsa “certeza” se instala em nossa mente adviria de princípios

inteiramente psicológicos e teriam seus fundamentos nas associações

experimentadas nos fenômenos em sucessão.

Por fim, considerando que para Hume a mera percepção da sucessão e

associação dos fenômenos pelos sentidos não é critério suficiente para explicar

o motivo de inferirmos conhecimentos que extrapolam os dados dos sentidos,

como podemos distinguir as noções morais particulares, existentes em cada

pessoa, das diversas sensações que sentimos a cada momento, se nossas

sensações são tão diversas e inconstantes? Ora, Hume aponta que a mente

pode constatar que ações morais particulares só podem ser distinguidas de

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sensações sentidas a cada momento quando levamos em conta a experiência

obtida de casos que envolvam tanto as ações morais como as diversas

sensações que podem ser associadas no pensamento. Além disso,

considerando que toda vez que os fenômenos são submetidos às nossas

sensações, elas sofrem várias interpretações, conforme venham a afetar o

agente que as percebe, como poderíamos considerar determinações morais

como regulares e corretas, levando em consideração que as ações morais

muitas vezes mostram-se irregulares? A resposta é a mesma que podemos

encontrar para explicar a nossa tendência habitual a fazer ligações necessárias

de associações, sem que necessariamente tais ligações existam de fato, a

saber: simplesmente as imaginamos. Isso só pode acontecer se levarmos em

conta a compatibilização entre sensação – empirismo. Por quê: “Parece pouco

controversa a afirmação de que nossas idéias são apenas cópias de nossas

impressões, ou, em outras palavras, que nos é impossível pensar em alguma

coisa que não tenhamos anteriormente experimentado pelos nossos sentidos,

externos ou internos” (IEH, 7. 2., p. 96).Em outros termos,o que podemos

explicar é que não possuímos uma impressão externa que corresponda a idéia

de conexão necessária, além disso não conseguimos identificar ou “imaginar”

na operação das próprias causas a conexão que liga os objetos na mente.

Quanto a algum sentimento ou impressão interna, essa sucessão de objetos não faz a mente experimentar nada desse tipo. Não há, consequentemente, em nenhum caso particular, isolado, de causa e efeito, nada que possa sugerir a idéia de poder ou de conexão necessária (IEH, 7. 6.,p. 99).

Desse modo, a resposta possível a essa questão está na admissão de

que essa ligação só pode ser imaginada, mas não sentida ou experimentada

por nossa razão.Nesse sentido Pereira não considerou em sua análise sobre o

ceticismo esta possibilidade e que nos parece ser de suma importância para

entender a filosofia do senso moral de Hume. Desse modo, a imaginação seria

a solução para justificar nossas inferências habituais e, como consequência

justificaria a conexão que liga os objetos na mente. E essa conclusão será o

próximo passo de nossa análise.

3.3 – Causalidade, hábito e imaginação.

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127

A compreensão dos elementos causais de Hume se inicia pela análise

da contigüidade: “Em primeiro lugar, vejo que todos os objetos considerados

causas ou efeitos são contíguos” (T 1. 3. 2. 6.,p. 103). Não há nada que

possamos mudar no tempo e no espaço que esteja afastado, por menor que

seja, de sua própria existência (T1. 3. 2. 6.,p. 103.). Contrariamente ao que

parece se impor à primeira vista, disso decorre que a contigüidade pode ser ou

imediata ou mediata, através de uma cadeia de causas intermediárias. Pois

“Embora algumas vezes possa parecer que objetos distantes produzem uns

aos outros, descobrimos ao examiná-los que estão ligados por uma cadeia de

causas contíguas entre si e em relação ao objeto distante” (T1. 3. 2. 6.,P. 103).

Se levarmos em consideração uma cadeia de causas de um fenômeno A, ao

qual chamamos causa, e o fenômeno Y, ao qual nomeamos efeito, desse modo

A e B são imediatamente contíguospor conseguinte B e C também, embora A e

Y não o sejam de modo imediato.

A conclusãode Hume está em desconsiderar a relação à distância no sentido

próprio do termo. Entrementes, o que percebemos é que ele fala da ideia

comumente aceita de causação. Assim, o que efetivamente descobrimos é

que as pessoas comuns crêem que causa e efeito são sempre contíguos,

mediata ou imediatamente. Contudo, Hume, não compartilha (na terceira parte

do Tratado) da opinião que a relação de contigüidade seja essencial à relação

causal. O mesmo afirma que podemos aceitá-la de momento: “(...) até que

encontremos uma ocasião mais apropriada para esclarecer esse problema,

examinando que objetos são ou não suscetíveis de justaposição e de

conjunção” (T 1. 3. 2. 6, p. 104).

Localizamos na parte 4 da seção 5 do Tratado um trecho em que Hume

não considera a contigüidade espacial na ideia de causação, defendendo que

um objeto pode existir, mas pode não ocupar um lugar no espaço. Hume

mostracomo exemplo que a reflexão moral não pode ser traduzível ou situada

em um lugar ou espaço que não seja a percepção. Por ocasião disso Hume

aponta:

Uma reflexão moral não pode estar situada à direita ou à esquerda de uma paixão, e um aroma ou um som não pode ter uma forma circular ou quadrada. Esses objetos e percepções,

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longe de demandarem um lugar particular, são absolutamente incompatíveis com qualquer lugar, e nem a imaginação é capaz de lhos atribuir (T1. 4. 5. 10.,p. 268).

Assim as paixões fazem parte das relações causais, contudo não se

pode dizer que sejam espacialmente contíguas a outros objetos. Hume não

considera, portanto, que a contigüidade espacial seja um elemento

indispensável à relação causal. Além da constatação de Hume a respeito da

estreita relação de contigüidade com o princípio causal, considera que as

paixões também são conectadas aos objetos externos através da impressão, e

uma impressão com as outras originadas dos corpos externos entre si. Decorre

disso que a mesma “relação de causa e efeito que pertence a um tipo de

impressão deve ser comum a todas” (T1. 3. 3. 16.,p. 106).

O segundo elemento ou relação de que se ocupa Hume encontra-se na

prioridade temporal. Este elemento mostra que a causa deve ser anterior ao

efeito. E temos uma confirmação disso quando evocamos a experiência.

Contudo, se a causa fosse simultânea ao efeito, seria assim também em todas

as ocasiões de verdadeira causação. Pois, na ocasião em que isso não

ocorresse, a suposta causa permaneceria por um determinado tempo inativa e

necessitaria de algum outro fato que a impulsionasse à atividade novamente.

O que não significaria dizer que seria uma causa própria ou uma causa

verdadeira. Contudo: “ (...) se uma causa fosse contemporânea a seu efeito, e

esse efeito a seu efeito, e assim por diante, é claro que não haveria algo como

uma sucessão; e os objetos seriam todos coexistentes” (T1. 3. 2. 7., p. 104).

Caso isso ocorresse haveria a destruição por completo da série causal e a

absoluta aniquilação do tempo, o que constituiria um completo absurdo. Por

conseguinte, o efeito não pode ser, em absoluto, contemporâneo com sua

causa e uma causa deve ser anterior, temporalmente, ao seu efeito.

Considerando todos esses argumentos, Hume, no entanto não se

encontra seguro de sua reflexão sobre os princípios causais, tanto é que o

mesmo continua a discussão da seguinte maneira: “Se esse argumento parece

satisfatório, ótimo. Se não, peço ao leitor que me conceda a mesma liberdade

que tomei no caso anterior, isto é, de supor que é satisfatório, pois verá que a

questão não tem grande importância” (T1. 3. 2. 8.,p. 105). Considerando essa

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passagem, podemos destacar que não é falso afirmar que Hume sublinha com

forte ênfase a contigüidade e a sucessão temporal como elementos essenciais

da relação causal. Entretanto, existe outro elemento cuja importância é

destacadamente maior, o que podemos notar no próprio desafio que Hume

apresenta:

Deveremos, pois, ficar satisfeitos com essas duas relações, de contigüidade e sucessão, como fornecendo uma ideia completa da causação? De forma alguma. Um objeto pode ser contíguo e anterior a outro, sem ser considerado sua causa. Há uma CONEXÃO NECESSARIA a ser levada em consideração; e essa relação é muito mais importante que as outras duas anteriormente mencionadas (T1. 3. 2. 11., p. 105)

Hume constata, assim, a necessidade do estudo desse novo elemento

da causalidade e a investigação de sua natureza. De fato, ele se concentra

nessa análise tornando-a objeto de sua investigação por todo o restante da

terceira parte do Livro 1 do Tratado e das Seções 4 – 7 da Investigação.

Aparece, então, a pergunta sobre a impressão ou impressões que

correspondam a essa suposta ideia de conexão necessária33. Hume conclui

que esse é um empreendimento difícil, devido à impossibilidade de uma

identificação imediata da impressão ou impressões da qual possa derivar a

ideia de conexão necessária34. Em poucas palavras, ele propõe uma espécie

de “exame indireto” na esperança de encontrar elementos para atingir tal

intento:

É necessário que abandonemos a investigação direta dessa questão a respeito da natureza daquela conexão necessária que faz parte de nossa ideia de causa e efeito, e que nos esforcemos para encontrar outras questões, cujo exame talvez nos forneça alguma indicação para esclarecer a presente dificuldade (T 1. 3. 3. 13.,p. 106)

Adotando esta postura metodológica, Hume se concentra em três

questões: a primeira é: “por que razão afirmamos ser necessário que tudo

aquilo cuja existência tem um começo deva também ter uma causa?” (T 1. 3. 3.

33

IEH 7. 6., P. 99. 34

Sobre a necessidade causal, para uma melhor compreensão sobre o contexto da discussão, veja-se J. L. Mackie, The CementoftheUniverse, capítulo 8 ( “The Necessityof Causes”), que faz uma discussão extensa sobre o assunto mostrando os vários argumentos positivos e negativos sobre o tema.

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13.,p. 106); a segunda: “por que concluímos que tais causas particulares devem

necessariamente ter tais efeitos particulares (T 1. 3. 3. 13.,p. 106); e a terceira:

“ (..) qual a natureza da inferência que fazemos daquelas [causas] a estes

[efeitos], bem como da crença que depositamos nessa inferência? (T 1. 3. 3.

13.,p. 106).

A máximasegundo a qual tudo o que começa a existir deve ter uma

causa de sua existência não é, no entendimento de Hume, nem intuitiva e nem

demonstrável; Hume se limita a dizer isso do primeiro ponto. Além disso, Hume

desafia todo aquele que defenda ser possível mostrar, intuitivamente, a

natureza da causa. Quanto à impossibilidade do princípio ou máxima causal,

defende que podemos conceber um objeto como inexistente em um momento e

como existente no próximo, sem ter uma ideia de causa ou princípio produtivo.

Por conseguinte, se podemos imaginar o começo da existência separado da

ideia de uma causa, podemos concluir que o começo não requer uma causa:

Portanto, a separação da ideia de uma causa da ideia de um começo de existência é claramente possível para a imaginação. Uma vez, portanto, que não implica contradição ou absurdo, a separação real desses objetos é possível, e por isso não pode ser refutada por nenhum raciocínio baseado nas meras ideias. E, sem isso, é impossível demonstrar a necessidade de uma causa (T 1. 3. 3. 13.,p. 108)

Após expor suas considerações Hume explica que a sua relação das

ideias como cópias, ou impressões, ou imagens, e com o seu nominalismo,

derivam da refutação de determinadas formulações da pretendida

demonstração do princípio, segundo o qual tudo começa a existir em virtude da

atividade produtiva de uma causa. A crítica de Hume dirigida a todos que

defendem esse princípio consiste em dizer que os mesmos cometem uma

petição de princípio, na medida em que pressupõem que para algo começar a

existir deve ter tido uma causa.

Se concluímos que nesse segundo ponto, esse princípio não é nem

intuitivamente correto e nem demonstrável, então, nossa crença nele só pode

derivar da experiência e da observação: “Uma vez que não é do conhecimento

ou de um raciocínio científico que derivamos a opinião de que uma causa é

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necessária para toda a produção, tal opinião deve vir necessariamente da

observação e da experiência” (T 1. 3. 3. 13.,p. 110). É que Hume verifica que

esta pergunta está inserida em questão mais abrangente que pode ser

formulada em termos gerais da seguinte maneira: ”por que concluímos que tais

causas particulares devem necessariamente ter tais efeitos particulares, e por

que realizamos uma inferência daquelas para estas últimas?” (Idem, p. 110). O

interesse dessas perguntasconsiste em mostrar que a resposta para ambas

está no princípio de causalidade. Mas o problema é que objetos que podem

existir separadamente35 não parecem implicar que um seja a causa do outro:

Nenhum objeto implica a existência de outro se consideramos esses objetos em si mesmos, sem olhar para além das ideias que deles formamos. Uma tal inferência equivaleria a um conhecimento, e implicaria a absoluta contradição e impossibilidade de se conceber algo diferente. Mas, uma vez que todas as ideias distintas são separáveis, é evidente que não pode haver tal impossibilidade (T 1. 3. 6. 1.,p. 115).

Por isso Hume mostra que quando passamos de uma impressão

imediata à ideia de um objeto qualquer, torna-se possível separar a ideia da

impressão, podendo substituí-la por qualquer outra ideia. Contudo, mesmo

considerando que todas as ideias distintas são separáveis, o que podemos

constatar examinando tanto os fenômenos como nossa mente é que as ideias

parecem estar necessariamente ligadas umas às outras36. Isso nos leva a

supor haver uma conjunção constante que liga as ideias, mesmo que sejam

concebidas separadamente. Mas poderíamos perguntar qual o motivo de existir

essa conexão na mente e o que ligaria, por exemplo, a causa ao seu efeito, se

ambas podem ser pensadas como ideias distintas?

35

Allison tem uma importante opinião sobre isso quando no seu entendimento mostra que na teoria das ideias de Hume nada nos leva a identificar essa divisão entre um mundo subjetivo e outro objetivo, na medida em que: “De acordo com esta teoria, o que estritamente se percebe é da mesma espécie daquilo que se percebe quando se percebe um corpo supostamente externo, isto é, uma coleção de impressões sensoriais” (ALLISON, 2010, p. 233). O que de fato acontece é a existência de uma tendência geral na natureza humana que nos leva a pressupor esta divisão, o que de fato não se comprova de maneira alguma quando investigamos as próprias sensações. 36

Nessesentido Fred Wilson concordaveementementequandodiz:“´As regraspelasquais Hume julgacausas e efeitos´ são de fato ponderosas regras de inferências….elaspodemfornecer a base para as inferências para as partesdaquelemundoinvisivel que é descoberto pela visão” (WILSON, 1997, p. 41). (“Hume´s ‘rules by which to judge of cause and effects’ are in fact powerful rules of inferences… they can provide the basis for inferences to parts of the world that are invisible to the naked eye” (WILSON, 1997, p. 41)

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132

A explicação de Hume consiste em dizer que percebemos a chama e

observando o seu efeito respectivo acabámos por inferi-lo como se fosse algo

logicamente necessário. Desse modo, podemos dizer que: “É apenas pela

EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência de um objeto da

existência de outro” (T 1. 3. 6. 1.,p. 116). Isso significa dizer que experimentamos

com freqüência a conjunção dos objetos, como por exemplo, a chama e a

sensação que temos de calor, e recordamos que esses objetos têm aparecido

em uma ordem recorrente de contigüidade e sucessão. Por conseguinte, Hume

afirma; “Sem mais cerimônias, chamamos à primeira de causa e à segunda de

efeito, e inferimos a existência de uma da existência da outra” (Idem, p. 116).

Por essa observação podemos afirmar, com alguma certeza, que Hume pensa

a causalidade em termos do homem comum e não de caráter puramente

filosófico. Assim, o homem comum constata a conjunção constante de A e B

em vários momentos, dado que A é anterior a B e contíguo ao mesmo tempo, e

chama A de causa e B de efeito .

De fato, não é incomum encontrarmos no meio popular exemplos que

ratificam a assertiva acima, como nos casos em que, observando nuvens

carregadas acompanhadas de vento forte e úmido, nos inclinamos a pensar

que logo em seguida haverá chuva. Podemos constatar isso verificando,

inclusive, os relatos das civilizações antigas nos quais encontramos exemplos

semelhantes que indicam que todas as vezes que observarmos nuvens

carregadas, acompanhadas de vento forte (causa) haverá certamente chuva

(efeito). Na Investigação há uma passagem que reforça essa explicação:

Mas, quando uma espécie particular de acontecimento esteve sempre, em todos os casos, conjugada a uma outra, não mais hesitamos em prever a ocorrência de um quando aparece o outro, e a fazer uso desse raciocínio que, só ele, pode nos dar garantias quanto a qualquer questão de fato ou existência. Chamamos, então, um dos objetos causa, e o outro efeito, e supomos que há entre eles alguma conexão, algum poder no primeiro objeto pelo qual ele produz invariavelmente o segundo, e que opera com a máxima certeza e a mais forte necessidade (IEH, 7. 27.,p. 113)

Podemos identificar outra passagem em que essa posição de Hume é

evidente, na medida em que procura explicar como a experiência contribui para

esta convicção na contigüidade e conjunção necessária quando ele se refere:

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Objetos semelhantes estão sempre conjugados a objetos semelhantes, disso temos experiência. Podemos, portanto, em conformidade com essa experiência, definir uma causa como um objeto, seguido de outro, tal que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos por objetos semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras, tal que, se o primeiro objeto não existisse, o segundo jamais teria existido. O aparecimento de uma causa sempre conduz a mente, por uma transição habitual, à ideia do efeito; disso também temos experiência (IEH, 7. 29., p. 115)

Entretanto, devemos ter cuidado para não reduzir a concepção humeana

de causalidade a uma simplificação do “senso comum”, o que seria um

reducionismo impensável na filosofia de Hume. Observamos que Hume, ao

dizer que “recordamos” eventos passados, acaba indo além da experiência

comum, já que podemos inferir causas de efeitos ou efeitos de causas sem

recordar nenhum caso passado. Por isso Hume corrige esse possível erro

recorrendo ao princípio de associação: “a experiência produz a ideia por meio

do entendimento ou da imaginação” (T 1. 3. 6. 4.,p. 117). Assim, podemos dizer

que se a transição de uma ideia a outra fosse feita pela razão, aceitaríamos ou

agiríamos segundo o princípio de que “os casos de que não tivemos

experiência devem se assemelhar aos casos de que tivemos experiência, e de

que o curso da natureza continua sempre uniformemente o mesmo” (Idem, p.

117). Isso parece pressupor que mesmo a razão recorre à imaginação para

fazer inferências de objetos assemelhados, que ainda não vieram a ser

constatados pela observação e pela experiência, embora os tenhamos como

evidentemente associados. Contudo, Hume nega que esse princípio seja

intuitivamente correto ou demonstrável, haja vista que a mudança na natureza

não ocasiona em si mesma nenhuma contradição37.

37

Por conseguinte, esta interpretação parece ser encontrada em filósofos contemporâneos como Richard Rorty. Este claramente se refere a esse “espelhamento’ em seu livro “A filosofia e o espelho da Natureza”, que interpreta a filosofia humeana como se o mundo psicológico fosse reflexo do mundo físico, na medida em que nossas inferências e juízos epistemológicos e morais nada mais seriam do que cópias do mundo objetivo. O problema apresenta-se, segundo Rorty, quando muitas dessas intuições se mostram através de conceitos gerais que mesmo que evitemos não podemos adiar o seu uso. No fundo estacritica de Rorty deve ser interpretada mais pelo ponto de vista de uma filosófia da linguagem, que interpreta o aspecto formal dos pressupostos e predicados semânticos da linguagem do que por outras linhas de pensamento da historia da filosofia. Além disso, podemos dizer que a análise de Rorty é claramente influenciada por uma leitura kantiana mais do que mesmo por uma leitura humeana. Rorty expressa essa opinião nos seguintes termos: “Essa suposição está presente na afirmação de que o espaço interno não contém algo semelhante ao que Hume encontrou ali, uma coleção de “apresentações singulares aos sentidos”, mas que essas “intuições” não

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134

Também a probabilidade não pode ser responsável por instaurar esse

princípio, porque haveria a necessidade de uma impressão correspondente de

nossa memória e de nossos sentidos e, por conseguinte, a ação da mente ao

observar a relação seria, falando sucintamente, uma relação entre sensação e

raciocínio.

Cabe ressaltar, disso tudo, que a afirmação de Hume a respeito do que

é a experiência da conjunção constante e o que nos leva a crer na existência

de conexões causais particulares, não responde a questões a respeito da

impressão em si ou impressão que derivaria a ideia de conexão necessária. Já

que Hume descreve a ideia de conjunção constante como a ideia de uma

repetição regular de sucessões similares, segundo um padrão constante de

contigüidade e sucessão que não implica uma conexão necessária:

Nenhum objeto implica a existência de outro se consideramos esses objetos em si mesmos, se olhar para além das ideias que deles formamos. Uma tal inferência equivaleria a um conhecimento, e implicaria a absoluta contradição e impossibilidade de se conceber algo diferente. Mas, uma vez que todas as ideias distintas são separáveis, é evidente que não pode haver tal impossibilidade (T 1. 3. 6. 1.,p. 115)

Não obstante, Hume adverte que não podemos derivar a ideia de

conexão necessária da observação das sequências regulares ou conexões

causais. O que implica dizer que não se funda em impressão ou conhecimento

da natureza dos objetos; que não tem sua origem na impressão. Hume, assim,

não pode optar pela primeira alternativa. Sobra, portanto, a segunda

alternativa.

Desse modo, a ideia de uma conexão causal só é possível por meio da

observação da sucessão que nos leva a crença de haver uma conjunção

constante dos objetos. O modo como essa conexão causal acontece em nossa

mente pode ser mostrado como: “uma ideia vívida relacionada ou associada

com uma impressão presente” (T1. 3. 8. 5., p. 125). De fato, a mente

podem ser “trazidas à consciência” a não ser “sintetizadas” por um segundo conjunto de representações (desapercebida por Hume) – os conceitos – que entram em relações em muitos com serie de intuições” (RORTY, 1995, p. 159).

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experimenta essa conjunção entre os fenômenos passados que nos aparecem

e que nos provocam a crença na constância de sua aparição, e na medida em

que se repetem em nossa mente levam-nos a esperar que tal conjunção se

repita no futuro. Pois, Hume considera que isso só pode acontecer: “por uma

indução que me parece bastante evidente, concluo que uma opinião ou crença

não é senão uma ideia que difere de uma ficção, não na natureza ou na ordem

de suas partes, mas sim na maneira como é concebida” (T1. 3. 7. 7.,p. 126).

Contudo, a crença explicaria apenas como psicologicamente somos inclinados

a confiar na conexão causal, mas não explicaria como se origina essa conexão

causal ou o termo médio na mente que liga uma ideia a outra ideia.

Destarte, Hume considera que necessitamos buscar outra explicação

para a conexão causal. Esta explicação consistiria na observação dos vários

casos de repetição da conjunção constante que sejam evidentes a nossa

percepção. Essa repetição não poderia, por si mesma, gerar a ideia de

conexão necessária. O que já admitimos anteriormente. Para que verifiquemos

se esta afirmativa é verdadeira, precisamos examinar se a repetição de casos

similares de conjunção constante deva produzir algo de novo que seja fonte

dessa ideia. Contudo, a repetição não nos permite descobrir nada de novo nos

objetos que são conjuntamente constatados e nem produz nenhuma nova

qualidade nos objetos mesmos. Podemos entender que a repetição, sem

dúvida, pode provocar uma nova impressão na mente, mas somente se for, em

associação:

(...) O mesmo raciocínio nos fará concluir que existe apenas uma espécie de necessidade, assim como existe apenas uma espécie de causa, e que a distinção comum entre necessidade moral e física não possui fundamento na natureza. Isso fica claro pela explicação anterior da necessidade. É a conjunção constante dos objetos, juntamente com a determinação da mente, que constitui uma necessidade física; e a exclusão destas é o mesmo que o acaso (T 1. 3. 14. 33.,p. 204)

Entretanto, a tendência a identificar uma conjunção constante a partir da

repetição de relações semelhantes entre objetos ou eventos semelhantes é

produzida pelo costume e a ideia de conexão necessária é seu reflexo ou

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136

imagem na consciência38. Desse modo, essa explicação a respeito da ideia de

conexão necessária poderia ser aplicada tanto às relações causais externas

como às internas. Contudo, retomando à questão inicial a respeito de se o

raciocínio experimental seria produto da razão ou da imaginação, a resposta

consistiria em dizer que, negando-se a razão como fonte do raciocínio, resta

apenas a imaginação. Nas palavras de Hume:

A única noção que temos de causa e efeito é a de certos objetos que existiram sempre conjuntamente, e que, em todos os casos passados, mostraram-se inseparáveis. Não podemos penetrar na razão da conjunção. Apenas observamos o próprio fato e vemos sempre que, em conseqüência de sua conjunção constante, os objetos adquirirem uma união na imaginação (T 1. 3. 7. 15.,p. 122)

Assim, Hume explica que a imaginação deve ser considerada como o

fundamento dos raciocínios experimentais e a razão é negada por ele como

meio da produção das ideias correlatas. Resta conhecer e saber o princípio ao

qual a imaginação estaria associado para fazer esta inferência. Hume pensou

que isso só pode acontecer através de nossas inferências costumeiras e

habituais. Desse modo, Hume nos diz sobre a inferência que ela nunca é feita

a partir de um único caso, “Mas, quando muitos casos uniformes se

apresentam, e o mesmo objeto é seguido sempre pelo mesmo resultado, a

noção de causa e de conexão começa a surgir à nossa consideração.

Experimentamos então um novo sentimento ou impressão, a saber, uma

conexão habitual (...)” (IEH, 7. 30.,p. 117).

Desse modo, se pensarmos que a filosofia do senso moral de Hume,

conforme vimos acima, segue regras parecidas com as que encontramos na

filosofia natural, isso significa dizer que ela valoriza a experiênciae a sensação,

e que nossos juízos e inferências morais deveriam seguir regras parecidas com

as que encontramos no empirismo utilizado pela filosofia natural. Isso levou

Hume a reconhecer que para formar juízos ou inferências em suas avaliações

morais o espectador necessita seguir uma determinada cadeia ou relação de

ideias que tomam como base as ações do agente moral. Estas relações nos

fazem produzir inferências avaliativas que mediadas pela sensação e

38

Sugiro nesse sentido a leitura do importante livro de Wayne Waxman: “Hume´stheoryofconsciousness” que nos dá um panorama geral dessa discussão da consciência e seu papel na filosofia de Hume.

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experiência, tomando as ações passadas do agente, levam-nos a projetá-las

para o futuro como uma regra constante e regular.

Entretanto, o que nos garante que essa suposta relação ou cadeia de

ideias se mostre constantes e regulares se não conseguimos identificar

conexão associativa, nem externamente, observando os fenômenos que

ocorrem na natureza, nem internamente, consultando nossa mente ou ideias?

Nada nos garante que exista uma conexão necessária que ligue as relações de

fenômenos externos com as ideias na mente que possamos identificar e nem

experimentar nas sucessões percebidas. Mas então qual é o motivo de

crermos nessa ligação, se não há nada no plano físico como mental que valide

tal asserção? Hume nos leva a considerar que essa crença não é explicada,

mas somos induzidos pelo hábito oucostume a tê-la como certa e evidente. Ele

mostra que fazemos essa transição de maneira sutil e com naturalidade, como

o que Hume nos indica na seção 4 da Investigação quando observa que:

“Constatei que tal objeto sempre esteve acompanhado de tal efeito e prevejo

que outros objetos de aparência semelhante, estarão acompanhados” (IEH, 4.

16.,p. 63). E a única coisa que temos certeza nos diz respeito que: “É preciso

no mínimo reconhecer que a mente extraiu aqui uma conseqüência, que um

certo passo foi dado: um percurso do pensamento e uma inferência para o que

se exige uma explicação” (IEH, 4. 15.,p. 63). Desse modo, Hume considera a

inexatidão dessa explicação que pretende entender o raciocínio causal como

uma inferência a priori, porque do fato de que A foi causa de B na experiência

passada não se segue que também o será para todos os casos futuros: “A

questão permanece: em que passos argumentativos funda-se essa inferência?

Onde está o termo médio, as ideias interpostas que ligam proposições tão

distantes umas das outras? (IEH, 4. 21.,p. 67). De fato, se considerarmos os

princípios associativos como semelhança, contigüidade no tempo e espaço e

causalidade têm em comum, justamente é essa tendência de atribuirmos uma

ligação necessária entre objetos A e B que nos parece natural, mas que após

uma meticulosa investigação somos surpreendidos por não poder explicar

como e por que pressupomos que o futuro será semelhante ao passado; que

se A se mostrou no passado como a causa de B continuará a se comportar da

mesma maneira no futuro? Se os argumentos racionais são insuficientes para

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explicar a uniformidade pressuposta, tampouco a experiência é capaz de

determinar sua fonte ou o modo como concebemos tal conexão entre os

objetos, porque:

Dizer que é experimental é supor resolvida a própria questão que se investiga, pois todas as inferências a partir da experiência supõem, como seu fundamento que o futuro irá assemelhar-se ao passado, e que poderes semelhantes estarão associados a qualidades semelhantes (IEH, 4. 21.,p. 68).

Nesse sentido, Hume adverte que se houver qualquer suspeita de que o

curso da natureza possa vir a ser modificado, mostrando que “o passado possa

não ser uma regra para o futuro” (IEH, 4. 21.p. 68), toda a experiência obtida

até então se tornará inútil e incapaz de originar qualquer inferência ou

conclusão. Porque, mesmo que admitíssemos que até agora o curso dos

acontecimentos tenha ocorrido assim, isso não quer dizer que a mera

experiência nos mostre que isso seja verdadeiro em todos os casos. Se existir

um único caso que destoe dessa crença na regularidade e uniformidade da

natureza, que parecem apontar para uma conexão necessária entre A e B a

partir da experiência e da observação passadas, não haverá motivo para

justificar ou crer que, no futuro, A continuará a ser causa de B. Não obstante,

mesmo assim, seguimos a vida fazendo juízos e inferências, em nosso

cotidiano, a respeito das ações e atitudes dos agentes morais tendo como base

essa crença de que o futuro vai se conformar ao passado. E de fato, ao

investigarmos a natureza do motivo de fazermos essas inferências

pressupondo que a experiência passada seria capaz de explicar sua ocorrência

futura, através dessa certeza, estaríamos nos enganando, pois a sua natureza

secreta nos é totalmente alheia. Isso ocorre por que:

É fútil alegar que conhecemos a natureza dos corpos com base na experiência passada; sua natureza secreta e, conseqüentemente, todos seus efeitos e influências podem modificar-se sem suas qualidades sensíveis alterarem-se minimamente (IEH, 4. 21.,p. 68) .

Essa conclusão de Hume não o satisfaz, mesmo respondendo

parcialmente a um possível espectador. Entretanto, a explicação empirista

continua a ser insatisfatória para localizar a causa das conexões que fazemos

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se considerarmos espíritos mais inquisidores como os que podemos encontrar,

por exemplo, nos filósofos céticos39. Por isso, mesmo não sabendo como

explicar o porquê de continuarmos a emitir juízos ou inferências, derivando

conclusões que tomam como base essa suposição da experiência passada se

“projetar” para o futuro, ainda assim passamos a utilizá-las em nosso dia a dia.

Entretanto, Hume explica que: “Como agente, estou plenamente convencido

sobre esse ponto, mas, como filósofo que tem sua parcela de curiosidade, não

direi de ceticismo, quero compreender o fundamento dessa inferência” (IEH, 4.

21., p. 69). Assim, o objetivo de Hume passa a ser identificar em que se

baseiam nossas inferências, já que a experiência não é uma explicação

filosoficamente consistente e elucidativa, concluindo que deve haver outro

princípio responsável por fazermos inferências.

Hume explica que quanto mais experiência tenhamos no mundo, mais

observaremos que objetos ou acontecimentos semelhantes estão

constantemente conectados uns aos outros. Qual a conclusão que poderemos

derivar dessa experiência? A resposta de Hume consiste em dizer que

passamos a inferir imediatamente a existência de um objeto a partir do

aparecimento de outro. Entretanto, mesmo com toda a experiência que

possuímos, não poderemos adquirir nenhuma ideia ou conhecimento sobre:

“(...) o poder secreto pelo qual o primeiro objeto produz o segundo, e não é

nenhum processo de raciocínio que a leva a realizar essa inferência” (IEH, 5.

4.,p. 74). Mesmo assim, continuamos através da experiência a projetar eventos

passados para o futuro, e continuamos inclinados a realizar tal inferência: e,

mesmo que viéssemos a nos convencermos de que o entendimento não toma

parte nessa operação, nosso pensamento continuaria a fazer o mesmo

caminho.Desse modo haveria algum outro princípio capaz de nos fazer chegar

a essa conclusão:

39

Uma mostra disso é àanalise de Paul Guyer no Capitulo dois de seu Livro “Knowledge, ReasonandTaste” que mostra que Hume assume a posição cética sobre os possíveis limites dos argumentos originados da experiência derivada das associações observadas nos fenômenos em sucessão, se concentrando, então, na busca de se antecipar aos possíveis ataques ao projecionismo de Hume, explicando o motivo de extrapolarmosos limites dos sentidos, e assim nos levar a projetar inferências passadas para o futuro podendo assim enfraquecer o seu método experimental. Isso ocorreria porque não conseguimos observar nas associações o nexo que ligue uma determinada causa a seu efeito e por isso não conseguimos explicar essa transição de um objeto observado no passado para sua repetição no futuro,

sendo antes imaginada através do hábito de observar os objetos conectados do que sentida.

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Esse princípio é o hábito ou costume. Pois sempre que a repetição de algum ato ou operação particulares produz uma propensão a realizar novamente esse mesmo ato ou operação, sem que se esteja sendo impelido por nenhum raciocínio ou processo do entendimento, dizemos invariavelmente que essa propensão é o efeito do hábito (IEH, 5. 5., p. 74).

Essa conclusão de Hume não é absoluta, devido o evidente limite que tal

questão impõe ao intelecto e o mesmo admite que: “Talvez não possamos

levar nossas investigações mais longe do que isso, nem pretender oferecer a

causa dessa causa, mas tenhamos de nos satisfazer com esse princípio como

o mais fundamental que nos é possível identificar em todas as conclusões que

tiramos da experiência” (IEH, 5. 5.,p. 74). Evidentemente, Hume admite que

mesmo que assumamos esse princípio, pelo menos ele se torna mais inteligível

do que qualquer outra explicação já que, quando: “(...) afirmamos que, após a

conjunção constante de dois objetos – calor e chama, por exemplo, ou peso e

solidez – é exclusivamente o hábito que nos faz esperar um deles a partir do

aparecimento do outro “ (IEH, 5. 5.,p. 75). Além disso, esta hipótese é a única

capaz de explicar a dificuldade que possuímos de extrair: “de mil casos uma

inferência que não somos capazes de extrair de um único caso, que deles não

difere em nenhum aspecto?” (IEH, 5. 5., p. 75). Hume também mostra, em uma

clara crítica ao pensamento moral de sua época, que a razão é incapaz de

“variar” suas conclusões, pois mesmo que analisasse um único círculo, a

conclusão seria a mesma, que formaria após inspecionar todos os círculos do

universo. Do mesmo modo podemos admitir nossa total inaptidão em explicar

por que não somos capazes de originar juízos e inferências morais que sirvam

para todos os casos que experimentamos, que não podemos extrair a partir da

análise e experiência de um único caso. Essa questão levou Hume a pensar

que: “todas as inferências da experiência são, pois, efeitos do hábito, não do

raciocínio” (IEH, 5. 5., p. 75). Nesse sentido, as inferências feitas através da

experiência passada e que projetamos para o futuro não percebido, são antes

frutos do hábito de observá-los em sucessão do que provenientes da mera

especulação racional. A partir dessa explicação do hábito é que podemos

entender a preferência de Hume pelo compatibilismo entre sensação –

empirismo, o que explicaria em grande parte por que o prefere como lastro de

sua filosofia do senso moral ou ciência do homem ao invés da razão. Pois,

nessa perspectiva o hábito passa, então, a ser a explicação mais provável para

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o motivo de nossas inferências envolvendo causas e efeitos, mais do que

aquelas estabelecidas pelo racionalismo. De fato, Hume conclui a primeira

parte da seção 5 da Investigação dizendo que:

O hábito é, assim, o grande guia da vida humana. É só esse princípio que torna nossa experiência útil para nós, e faz-nos esperar, no futuro, uma cadeia de acontecimentos semelhantes às que ocorreram no passado, sem a influência do hábito, seríamos inteiramente ignorantes de toda questão de fato que extrapole o que está imediatamente presente à memória e aos sentidos. Jamais saberíamos como adequar meios a fins, nem como empregar nossos poderes naturais para produzir um efeito qualquer. Pôr-se-ia de imediato um fim a toda ação, bem como à parte principal da especulação (IEH, 5. 6.,p. 77).

Como vimos acima Hume declara que todas as inferências da

experiência são efeitos do hábito e não da razão e por isso o hábito é um

princípio fundamental para o desenvolvimento da ciência do homem elaborada

por Hume40. Contudo, Hume mostra que o hábito e o costume, isoladamente,

não seriam tão poderosos, já que nesse sentido o salto indutivo só pode ser

feito com o auxílio da imaginação, que responderia pela forma como fazemos

relações entre ideias. Pois quando consideramos o hábito e a imaginação em

conjunto, o resultado difere de qualquer elucubração solta e fantasiosa que

podemos encontrar quando esta última encontra-se isolada. A explicação de

Hume para isso consiste em dizer que:

Sempre que um objeto qualquer é apresentado à memória ou aos sentidos, ele imediatamente, pela força do hábito, leva a imaginação a conceber o objeto que lhe está usualmente associado, e essa concepção é acompanhada de uma sensação ou sentimento que difere dos devaneios soltos da fantasia (IEH, 5. 11,p. 81).

Nesse sentido Hume objetiva mostrar que em termos morais nós só

podemos fazer inferências, a partir de uma relação de ideias que por um lado

esta ligada ao hábito de perceber os objetos conectados e em sucessão, e por

outro lado à imaginação, que possibilita extrapolar a experiência passada e

projetar a conjunção constantemente observada para os acontecimentos

futuros. Esta capacidade projetiva que poderíamos encontrar nas relações só 40

Nessa perspectiva, Segundo Oliveira: “É o hábito que restringe a imaginação e fixa e ordena as impressões” (OLIVEIRA, 2009, p. 64), ou seja, o hábito põe limites aos arroubos da imaginação ao mesmo tempo em que colabora com ela na projeção das associações observadas no passado e que nos leva a inferências nas quais transferimos o que se observou no passado para o futuro ainda inobservado.

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pode ser imaginada, mas não sentida, por que: “A imaginação tem o comando

sobre todas as ideias e pode juntá-las, misturá-las e modificá-las de todas as

maneiras possíveis” (IEH, 5. 12.,p. 82). Desse modo, o hábito de fazer a

transição de um objeto percebido no passado para o futuro não percebido, só

pode ser feito em conjunção com a imaginação. Porque sem concebermos tal

relação, ou seja, do hábito - imaginação seríamos incapazes de fazer relações

e inferências entre objetos distintos como também de projetar observações

experimentadas no passado para o futuro.

A hipótese que defendemos a respeito da filosofia do senso moral,

elaborada por Hume está pautada no compatibilismo entre sensação –

empirismo e na explicação da interrelação entre o hábito e a imaginação para

justificar por que fazemos inferências a partir de objetos usualmente

associados. Ao mesmo tempo serve para explicar o motivo da experiência nos

levar a “projetar” acontecimentos passados para o futuro. Pois através da

união entre o hábito e a imaginação é que podemos justificar associações e

projeções, tornando possível o compatibilismo entre o domínio da sensação e o

do empirismo que a extrapola, e mostrando como ocorrem tais “inferências”,

no âmbito da relação tanto dos fenômenos físicos como mentais. Sem o

entendimento desse contexto das associações não há como explicar

satisfatoriamente como originamos inferências a partir das sensações e da

experiência passada, ou como fazemos projeções que conformam o futuro com

o passado e responderiam em grande parte pelos juízos morais que fazemos

na vida comum. Essa conclusão permitiu a Hume fazer uma interpretação

inovadora do senso moral, principalmente no que tange ao seu princípio da

simpatia, que será o assunto do nosso último tópico.

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3.4 – A reinterpretação de Hume do senso moral.

De modo geral, podemos explicar que a teoria do senso moral de Hume

está pautada em seu princípio de simpatia41, o sentimento universal existente

no coração de cada indivíduo, através de cuja influência somos capazes de

sentir os mesmos sentimentos, mesmo que fracos, que encontramos no outro,

em perfeito acordo com a nossa interpretação compatibilista entre o

sensualismo e o empirismo existentes na teoria moral humeana. De fato, Hume

considera que uma ação é louvável se despertar bons sentimentos sobre o

espectadorprodutor da ação. Desse modo, podemos dizer que: “Dentre essas

paixões, uma das mais consideráveis é a do amor ou apreço por parte dos

demais, que procede, portanto, de uma simpatia (...)” (T2. 2. 5. 21. p. 399). A

simpatia também pode ser compreendida na forma em que o agente da ação

nos aparece agradável ou desagradável naquele momento. Pois a boa

aparência física não deixa de influenciar nossos julgamentos e nos causa uma

sensação agradável de aprovação (mesmo que isso não implique

necessariamente a veracidade de sua saúde mental, por exemplo). Por

conseguinte, Hume, assim como Hutcheson, admite que os atos estimulam

sentimentos agradáveis e influenciam, a partir deles, nossos julgamentos e

inferências morais42. O próprio Hume observa que: “Acrescente-se a isso que a

parte principal da beleza de uma pessoa é um ar de saúde e vigor, e uma

formação tal dos membros que prometa força e atividade” (T2. 2. 5. 20. p. 399).

41

Interessante notar que Adam Smith faz uma diferença fundamental entre sua interpretação da simpatia e a de outros filósofos da modernidade. Notamos essa diferença quando Adam Smith estabelece que: “A palavra simpatia, em seu significado mais apropriado e original, denota nossa solidariedade (fellow –feeling) para com os sofrimentos, e não para com as alegrias de outros. Um falecido filósofo , talentoso e sutil, considerou necessário provar por argumentos que sentíamos uma real simpatia para com a alegria, e que a congratulação era um princípio da natureza humana. Ninguém, segundo creio, jamais considerou necessário provar que a compaixão também o era” (TSM 1. 3. 1., p. 51). 42 Nesse sentido Herdt observa que: “Quando se trata de avaliação, não é suficiente para uma sensação está inserida no espetáculo, devemos nos esforçar em observar os efeitos das emoções sobre nós” (HERDT, 1997, p. 119). (When it comes toevaluation, it isnotenoughtobe a passive feeler, absorbed in thespectacle; we must becomeobserversoftheimmediateemotionaleffectsof a workonus), Ou seja, nossas sensações ao nos atingirem provocam reações emotivas de nossa parte e nos levam a emitir juízos e inferências sobre os atos ações que as provocaram

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Essa conclusão é a mesma a que Frazer chega quando explica que

Hume entende a simpatia como um sentimento encontrado em cada individuo

que estimularia sentimentos agradáveis ou conforme a sua aparência

estimulasse tais sentimentos. Mas a análise de Frazeresta centrada sob o

ponto de vista da estética humeana, pois busca evidenciar que Hume também

estenderia suas considerações morais para o julgamento estético seguindo os

mesmos moldes encontrados na sua teoria moral. Frazer mostra que Hume

pensa haver no julgamento estético princípios semelhantes àqueles

encontrados em nossa experiência com os objetos observados e que

despertam os mesmos sentimentos sentidos anteriormente quando se encontra

aquela mesma situação. Isto é, podemos observar que a natureza humana

segue princípios muito particulares, principalmente no que é vinculado àquilo

que é belo ou feio ao nosso gosto. Nesse sentido, Frazer questiona o que nos

levaria a perguntar o porquê de associarmos determinados sentimentos

experimentados no passado e que nos leva a esperá-los se repetirem no

futuro, observando que não encontramos na natureza nada que justifique o

motivo de fazermos projeções estéticas ou morais para os objetos, o que

responderia por fazê-lo? A possível resposta encontra-se ao nosso ver na

relação hábito – imaginação, como mostramos acima. A imaginação é

responsável pela composição, rearranjo e projeção das ideias em nossa mente

e poderia responder por que cremos na existência de uma ligação conectiva

entre fenômenos cuja existência tanto externa como interna não pode ser

constatada, mas representada com o auxílio da imaginação a partir do hábito.

Isso explicaria muitos de nossas inferências no âmbito moral, estético e

epistêmico.

O argumento de Frazer explica que os sentimentos contidos nessa

relação podem estar vinculados ao princípio de simpatia. Mostra que por

estarem ligados àquelas ações que costumeiramente observamos no passado

como virtuosas e que são constantes nas atitudes e comportamentos do

agente moral, somos levados a projetá-las para o futuro e, assim, a aprová-las

como corretas. Essas inferências morais estão localizadas naquelas causas

que acontecem costumeiramente e são vinculadas a ações virtuosas que

podem ser indicadores de virtudes validas. O contrário dessas inferências

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morais pode ser visto como aquilo que causa dor e sofrimento a uma pessoa e,

portanto, pode ser considerado como dizendo respeito a um sentimento

desagradável. Nas palavras de Frazer: “Nós imaginamos os efeitos que essas

virtudes usualmente têm, simpatizamos com esse sentimento imaginado, e por

isso nossa aprovação não depende de seus reais efeitos em nenhum caso

particular43” (FRAZER, 2010, p. 44).De fato, a imaginação e o hábito

respondem por nossas inferências subjetivas sobre o que é virtuoso ou não;

nos levando a aprovação do que é virtuoso ou não mostrando que esta

aprovação estávinculada àsensação que ocasionou tal juízo.

Frazer considera ainda que os sentimentos ou sensações convergem

para a formulação da simpatia e que, em decorrência disso, algumas daquelas

sensações afetariam todas as outras características subjetivas como o bom

senso, nossa indulgência com o outro, o nosso humor e etc., qualificando-as

como nossos sentimentos morais positivamente. Seguindo esta linha de

raciocínio, as avaliações morais são distintas de outras avaliações, como os da

perspectiva do interesse próprio. Na opinião de Frazer, a animosidade pessoal

que frequentemente nos inclina à convicção de que o vício é perigoso, induz a

confundir o interesse próprio com sentimentos morais únicos. Entretanto,

Frazer conclui que: “aparentemente as avaliações morais são na verdade os

ditados do nosso próprio interesse oculto44” (FRAZER, 2010, p. 45). De fato,

muitas avaliações morais são originadas de um interesse próprio e

aparentemente não resolvem casos em que os interesses particulares

suplantam aqueles interesses públicos ou civis - o que parece resgatar a

controvérsia existente entre as concepções de egoísmo de interesse próprio,

representado por Hobbes, e a concepção de bondade universal, representada

por Shaftesbury e Hutcheson. Ambos os caminhos, no entanto, em nossa

opinião são abandonados na concepção de Hume sobre o senso moral e o que

encontramos é a formulação de uma terceira via, o compatibilismo entre a

43

”We imagine the effect that these virtues usually have, sympathize with these imagined feeling, and our approval thus does not depend on their actual effects in any particular instance(FRAZER, 2010, p. 44)”. 44

“ apparently moral evalutions are actually the dictates of self-interest in disguise” (FRASER, 2010, p. 45).

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experiência e as sensações que reelabora a discussão a respeito do senso

moral com base no princípio da simpatia45.

Outra forma de interpretar o princípio da simpatia de Hume é a

defendida por Stroud. Para Stroud, a simpatia é uma disposição que temos de

sentir o que os outros sentem, não sendo um sentimento particular em si, ou

com fins egoístas. Nesse sentido Frazer tem uma interpretação bastante

parecida com Stroud, quando descreve que Hume objetiva mostrar que a

simpatia seria uma faculdade comunicativa existente em cada ser humano e

não estaria restrita a si mesma. Desse modo, os dois partem da mesma análise

da teoria moral de Hutcheson e definem que é evidente que o princípio de

simpatia de Hume é derivado da teoria da simpatia hutchesoneana46. Essa

teoria de Hutcheson considera que a simpatia nos dispõe a termos sentimentos

elevados de bondade e não haveria espaço para o egoísmo extremo.

De fato, a afirmativa exposta acima não contém nenhum enunciado que

traga algo de novo à discussão, muito embora Stroud aponte que existe uma

particularidade interessante sobre a simpatia. Para Stroud, esta

“particularidade” é sugerida na leitura tanto do Tratado quanto da Investigação

de Hume – quando o mesmo interpreta o senso moral tendo como base os

sentimentos particulares que nos levam a simpatizarmos com os “outros”. Isso

ocorre porque se outra pessoa sente dor em alguma parte do corpo, somos

logo levados a nos solidarizarmos, por associação de casos passados com ela,

através de uma sensação especial que chamamos de simpatia. Isso nos leva a

considerar que o que normalmente imaginamos sentir naquela situação

específica não nos levaria a negar prestar-lhe nossa solidariedade, e então

simpatizamos com sua dor.

Esta interpretação de Hume por Stroud parece nos levar a um

entendimento natural do princípio da simpatia. Mas Stroud pensa diferente,

pois se outras pessoas sentem dor e eu conseqüentemente sinto aquele 45

LíviaGuimarâesentendenessesentidoque:”All the cases of sympathy, restricted or extended, consist of imaginative display of sentimental states, and so do morals. The standard of moral taste itself is established by what Hume calls an “intercourse of sentiments” attested by the passage in the Treatise (…)” (GUIMARÃES, 2005, p. 161). 46

Podemos encontrar a corroboração de Kemp Smith sobre a empatia no capitulo segundo de seu livro “The Philosophyof David Hume” onde Smith mostra como a filosofia de Hutcheson influenciou a postura moral de Hume e suas conclusões filosóficas.

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especial sentimento de simpatia para com elas, isso não quer obrigatoriamente

dizer que sinto as mesmas dores por eles, ou seja: “seu sentimento não está

sendo transferido para mim47” (STROUD, 2000, p. 197). Desse modo, o seu

sentimento de dor não é compreendido por mim porque não são os meus

sentimentos. Por isso não posso fazer nenhum julgamento tendo como base os

meus próprios sentimentos numa tentativa de compreender os sentimentos do

outro. Mas o que Stroud observa em sua análise do princípio de simpatia de

Hume é que sua teoria está fundamentada no processo reflexivo entre sujeito e

objeto. Assim, nossas considerações morais sofrem influência dos sentimentos

e da intensidade com que estes chegam ao agente. Isso explica o porquê

sentimos uma grande simpatia pelo sofrimento de um amigo enquanto em

relação a um desconhecido pouco ou nada sentimos. Só podemos explicar

este sentimento como aquilo que ocorre em contato com o sentimento de dor

do outro, e ao observar este sentimento em outrem somos atingidos por um

natural afeto de compaixão como se fôssemos nós mesmos capazes de sentir

a sensação de dor. Stroud entende essa explicação da simpatia, através de

nossa empatia com os sofrimentos de outrem:

Em primeiro lugar, se outra pessoa sente dor e eu consequentemente sinto aquele sentimento especial que é a pena, então eu não sinto o que ele sente afinal – seu sentimento está sendo transmitido pra mim. Ele sente dor, mas eu sinto pena. Logo, me é sensato estar triste quando eu sei que alguém está sentindo dor, e satisfeito quando sei que alguém está sentindo satisfação 48 (STROUD, 2000, p. 197).

Mais claramente, meus sentimentos são inteiramente diferentes nestes

dois casos descritos acima, como se para explicarmos muitos deles, fosse

necessário recorrer a muitas maneiras diferentes, assim como a diferentes

situações e atos. Por isso, não podemos afirmar que a simpatia é um

sentimento particular. Se assim o fosse, isso não explicaria por que eu aprovo

47 A posição de Stroud é bastante clara quando defende, em suas palavras, que “ his feeling isnotbeingtransmittedto me” (STROUD, 2000, p, 197). 48

Stroud transmitesuaopinião: “For one thing, if another person feels pain and I consequently feel that special feeling that is sympathy, then I do not feel what he feels after all – his feeling is not being transmitted to me. He feels pain, but I feel sympathy. Furthermore, I am said to be upset when I know someone else is feeling pain, and pleased when I know someone is feeling pleasure” (STROUD, 2000, p. 197).

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algumas coisas e desaprovo outras. Assim, não há nada que garanta

observando a associação dos fenômenos que se evidenciem a nossos sentidos

identificar uma conexão ente eles. Pois à medida que extrapolamos esses

limites associativos, não existe nada que garanta sua ligação e muito menos

explique o porquê de simpatizarmos com outrem que não tenha nada em

comum conosco.

Neste sentido, desenvolvemos a seguinte interpretação que mostra que

a única maneira de Hume garantir certa coerência ao princípio de simpatia em

sua teoria moral é considerar que o princípio da simpatia estabelecidoem seu

senso moral deve estar vinculado à compatibilização entre sensação e

experiência, pois somente assim é que podemos garantir a elasticidade de

nossos sentimentos em relação ao outro. Assim podemos compreender que a

interpretação do senso moral de Hume pode ser entendida de dois modos

basicamente. De um lado, como subjetivismo associacionista de nossas

virtudes morais ou mentais e, de outro, como realismo dos sentidos associado

à interação entre mundo mental ou cognitivo e mundo corporal. Esta aparente

separação entre mente e corpo parece nos levar a interpretar Hume como um

dualista, contudo essa conclusão seria precipitada se não levássemos em

consideração que Hume entende essa relação entre mente e corpo apenas

como percepção, levando Hume a declarar que todo o conhecimento em

alguma medida passa apenas por ela.

Para entendermos como Hume chega a essa conclusão, é importante

lembrar dos filósofos que o precederam e que influenciaram diretamente sua

teoria moral. Hume se destaca como um dos principais representantes da

filosofia moral britânica, e se opunha a algumas considerações de Shaftesbury

e Hutcheson, que encaravam os sentidos sobre o aspecto subjetivo, enquanto

Hume procura se utilizar de critérios parecidos aos desenvolvidos pelos

filósofos da natureza, objetivando com isso dar um status de confiabilidade e

correção a sua teoria moral ou ciência da natureza humana com base não

apenas nas sensações mas também no empirismo.

Podemos iniciar dizendo que, de maneira geral, os interpretes do senso

moral defendem que o nosso sentimento moral segue princípios parecidos com

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os encontrados na percepção sensorial. Do mesmo modo que nossos sentidos

externos percebem objetos externos, tais como cores, forma e extensão;

analogamente a faculdade moral também perceberia as qualidades boas ou

más nas pessoas e ações. Entretanto, essa associação entre percepção moral

e percepção sensorial faz parte da formulação de Hume, e podemos encontrar

muitas passagens de sua obra que atestam isso. Por exemplo, Hume admite a

existência de uma estreita relação entre sentimentos morais e qualidades

morais. De fato, nós nunca podemos nos dizer sensibilizados por determinada

ação que nos causa aprovação ou repudio sem termos a experiência da

repetiçãodessas mesmas ações através de nossa sensação.

Devemos considerar ainda que Hume diferencia sua teoria moral, assim

como na sua teoria do conhecimento de seus antecessores, quando busca

associar subjetivismo e realismo, o que parecia não ser claro nos autores

anteriores a ele – o que podemos constatar é que o senso moral de Hume é

expresso sempre em contraste com as posições defendidas na filosofia moral

de seus antecessores. Em geral a filosofia moral de Hume é concebida e

entendida pelo viés positivo de sua doutrina. Entretanto, não devemos deixar

de pensar que a análise humeana envolve aspectos negativos e positivos das

inferências causais e das emoções no interior de sua doutrina moral. Essa

interpretação positiva – negativa encontrada na teoria moral de Hume deriva de

sua atitude preventiva quanto à sensação se apresentar como problema para

nossas inferências morais, dada sua instabilidade e as contradições ocasionais

que se apresentam aos sentidos. E parece que Hume, mesmo assim, ainda

situa sua interpretação no plano sensualista, já que destaca a relevância da

sensação para nossos juízos, tanto epistêmicos como morais. Em Hutcheson,

nossas inferências morais têm sua origem na razão subjetiva, pois ele se

contrapõe a afirmativa de que as afecções dos sentidos nos levariam à

tendência egoísta que valorizaria os prazeres individuais e desprezaria o

sentimento dos demais homens, desvirtuando, assim, a conduta moral aceita

como louvável e honrada.

Já em Hume acontece justamente o oposto, os aspectos racionais são

partes constituintes de nossa mente e nossas sensações responderiam pela

passagem das informações do mundo externo para o mundo interno, sendo de

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cunho subjetivo e objetivo. Contudo, para Hume a única certeza que

possuímos é que percebemos um objeto sucedendo outro e não sabemos nada

que possa nos explicar o porquê acreditarmos existir uma ligação na mente

que temos como necessária e consideramos as ações humanas como guiadas

por essa certeza. Pois os sentidos, por seus limites serem restritos à apenas

aos seus próprios dados não permitiriam considerar que de um caso particular

qualquer, observado anteriormente, poderíamos inferir que o mesmo vá se

repetir no futuro.

Para isso é necessário o apoio da experiência e a observação de vários

casos que tenham se repetido e possuam determinada regularidade, para

nossa mente possa produzir essa crença da imaginação em sua repetição.

Dessa forma, Hume, defende que não há como conceber qualquer critério de

conhecimento livre da sensação e da experiência, que são os únicos critérios

seguros para nossas inferências morais. Nesse sentido, defendemos a tese de

que a teoria moral de Hume não deve ser interpretada nos mesmos termos do

senso moral encontrado em seus antecessores, mas mostra-se sobre uma

nova forma de senso moral que tanto contém elementos sensualistas como

empiristas, compatibilizados, diferenciando-se das concepções do senso moral

de Shaftesbury e de Hutcheson. Desse modo, o objetivo de Hume é o de

delimitar critérios claros e firmes fundamentados na sensação e na experiência

que aproximem sua teoria moral da correção e acertos encontrados na ciência

natural. Do mesmo modo, podemos destacar que as críticas de Hume a

respeito das concepções racionais da metafísica tradicional fazem parte de sua

tentativa de estabelecer e defender essa posição filosófica, particular, o que

destacaria sua independência das demais concepções filosóficas morais dos

seus antecessores.

Podemos verificar ainda que Hume procura tirar da filosofia moral a

hegemonia dada à razão; por isso queria mostrar que nossas inferências

morais são originadas a partir de sentimentos ocasionados pela experiência e a

observações49, responsáveis por nossos julgamentos morais e estéticos. Além

49

“Características como os nossos sentimentos, paixões, volições e ações, não sendo ideias, mas impressões, não são representacionais, i.e., não tem a qualidade referencial e, portanto,

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disso, Hume mostra que nossas sensações, sendo desprovidas de qualquer

experiência, também não serviriam para subsidiar nossas inferências morais

nem muito menos nosso conhecimento. Desse modo, nos parece mais correto

investigar como as sensações parecem desempenhar papel importante na

filosofia moral de Hume do que nos fixarmos na sua crítica à razão na tradição

moral de seus antecessores. Essa conclusão é importantíssima para Hume, na

medida em que a razão parece não possuir critérios suficientemente claros

capazes de distinguir, por exemplo, o vício de virtude; não sem recorrer à

sensação que nos leva a fazer essa distinção no juízo.Assim, nossos juízos só

são capazes de distinguir satisfatoriamente o vício da virtude se tiver o apoio

da experiência e da sensação por que sem isso não haveríamos como derivar

algum julgamento considerando os casos isoladamente sem haver observados

alguma associação seja física ou mental entre os objetos. Desse modo Hume

define: “Arrisco-me a afirmar, a título de uma proposta que não admite

exceção, que o conhecimento dessa relação não é, em nenhum caso,

alcançado por meio de raciocínios a priori, mas provém inteiramente da

experiência, ao descobrirmos que certos objetos particulares acham-se

constantemente conjugados uns aos outros” (IEH, 4. 6, p. 55).

Isso leva Hume no Tratado a explicar que as distinções morais são

derivadas de um senso moral compreendendo que “uma vez que o vício e a

virtude não podem ser descobertos unicamente pela razão ou comparação de

ideias, deve ser por meio de alguma impressão ou sentimento por eles

ocasionadas que somos capazes de estabelecer a diferença entre os dois” (T3.

2. 1., p. 509). De outro modo, Hume entende que as impressões ou

sentimentos que “surgem da virtude” são agradáveis enquanto as que

“procedem do vício” são desagradáveis. Hume é levado a considerar que a

virtude e o vício possuem a mesma raiz, ou seja, os sentimentos. Devido a isso

nossas paixões fariam parte do mecanismo que condiciona as nossas ações

morais. Desta forma, o critério de nossos juízos morais se encontra em nossas

paixões, no sentimento de aprovação ou reprovação que experimentamos

diante de certos comportamentos, inclinações e ações. Podemos considerar

nunca podem ser consideradas verdadeiras ou falsas, ou razoáveis ou não razoáveis” (CONTE, 2004, p. 54).

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agora, que determinada ação é aprovada ou condenada dependendo de saber

se acreditamos ou não que tal ação ocasiona prazer ou felicidade. Assim

consideramos uma ação certa ou errada se entendemos que tal ação causa

prazer ou dor, e se seu resultado é mais benéfico do que o seu contrário nós

podemos concluir como sendo correta tal ação do agente. Somos levados a

fazer considerações ou julgamentos para aprovar ou desaprovar determinada

ação ligada àquilo que observamos e experimentamos em nós mesmos: seria

um puro sentimento de simpatia encontrado em maior ou menor grau em cada

indivíduo.

Isso parece estar em perfeita sintonia com a sensação; quando Hume

aborda em sua teoria moral a dificuldade de distinguirmos o vício da virtude

utilizando mecanismos puramente racionais, objetiva antes, destacar que a

mente necessita do auxilio de nossas sensações porque a explicação racional

não estaria pautada na observação e experiência e por isso não saberia

distinguir o vício da virtude. Assim, Hume define algo como virtuoso ou não

através da sensação provocada quando observamos determinada ação ou

afeto que nos pareça virtuoso no agente causador da ação. Contudo, isso não

exclui nesta relação o receptor da ação de julgar se a ação é virtuosa ou não,

porque: “Ter o senso da virtude é simplesmente sentir uma satisfação de um

determinado tipo pela contemplação do caráter” (T, 3, 1, 2, p. 510). A

moralidade, por conseguinte, não pode ser considerada isolada da sensação,

porque essa é motivada pela ação do agente. E Hume descreve essa

sensação ou sentimento sendo em geral tão suave e brando que temos a

tendência de confundi-lo com uma ideia, devido ao costume de considerar tudo

o que é semelhante como se fosse uma única coisa (T, 3, 1, 2, p. 510). Assim,

após ponderar a esse respeito, Hume passa a analisar a imprecisão nas

informações de nossas impressões e sua origem. Desse modo Hume expressa

essa afirmação do seguinte modo:

A hipótese mais provável já proposta para explicar a distinção entre vício e virtude, bem como a origem dos direitos e obrigações morais, é que, por uma constituição primitiva da natureza, certos caracteres e paixões, só de vistos e contemplados, produzem um desprazer, e outros, de maneira semelhante, suscitam um prazer” (T2, 1. 7. 5. p. 330).

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Ora, a análise de Hume parte do pressuposto de que os nossos

sentimentos de aprovação ou reprovação têm sua origem na sensação e

podemos identificar esta certeza quando o mesmo diz: “Não inferimos que um

caráter é virtuoso porque nos agrada; ao sentirmos que nos agrada dessa

maneira particular, nós de fato sentimos que é virtuoso” (T3, 1, 2, p. 511). Na

realidade, Hume considera que podemos encontrar duas formas de entender

as impressões únicas que nos chegam ao entendimento. Podemos entender,

por um lado, como sentimento moral de aprovação (uma impressão ou

sentimento agradável: um distintivo prazer moral) e por outro lado, como

sentimento moral de desaprovação (uma impressão ou sentimento

desagradável: uma dor moral), fornecem o apoio para nossas distinções morais

(T3.1.2. p. 1-11).

Desse modo, considerando que o senso moral estaria justamente

vinculado à sensação e como o mesmo não poderia ir além do que sentimos,

nos deixando a pergunta qual a melhor forma de entender a teoria moral de

Hume? A explicação dada por Hume consistiria em dizer que a nossa

capacidade de observar e experimentar determinado sucessão nos objetos que

se mostrem regulares, nos despertaria certos sentimentos, levando-nos a

“projetar” tais sentimentos para os mesmos objetos conforme se apresentem

novamente a nossos sentidos. Desse modo, no momento em que determinado

evento, que já tenha se apresentado a nossos sentidos no passado, surge,

esperamos logo o seu acompanhante usual. O que nos levaria a pensarmos

que sentimos as mesmas emoções toda vez que observarmos surgir aquele

evento ou situação. Desse modo, a partir dessa conclusão sempre somos

levados a esperar que se apresentada determinada situação (causa), ela nos

levará a uma determinada emoção (efeito); e sempre que aquela situação se

apresentar novamente a nós, no futuro, esperaremos que o mesmo sentimento

se repita.

A nossa experiência passada é o que nos condiciona esperarmos que os

sentimentos se repitam no futuro. Desse modo, considerando o senso moral,

por tomar como base os sentidos, não seria capaz de explicar o porquê

ultrapassamos seus limites, pois os dados dos sentidos estão circunscritos a

regras bastante rígidas do que é imediatamente percebido, ou seja, só

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podemos conhecer o que se apresenta a nossos sentidos. Já a experiência

pressupõe extrapolar os limites da sensação na medida em que objetiva a

regularidade conforme os objetos se apresentem em sucessão na nossa

mente, e a partir dessa observação fazemos inferências de objetos

anteriormente observados generalizando suas conclusões para todos os

demais objetos que se apresentem sob as mesmas circunstancias do

experimento no futuro. Desse modo, nossas inferências em termos de

conhecimento, tomariam como base o compatibilismo entre sensação e

experiência, que fundamentariam a maioria de nossos juízos e conduta morais

que se estenderiam a todos os casos não observados pelos sentidos. Vale

salientar que como não temos uma impressão correspondente ao objeto

percebido, e que pelos objetos não terem sidoconstatados pelos sentidos,

faltam-lhe uma impressão correspondente não o temos como factual. Mas pelo

contrário,pressupomosque por ter sido observado no passado será observado

no futuro. Isso ocorre somente através das associações ou ligações

experimentadas nos objetos repetidos aos sentidos, mas que pela experiência

não possuir uma impressão ou dado correspondente dado que a projeção ou

ligação nada mais do que o hábito esta ligação só poderia ser tida como

pressuposta, mas não seria uma impressão imediata. Ou seja, sempre que

observamos a causa A logo esperamos o surgimento do efeito B e essa regra

serviria para todos os casos que se apresentassem em tais circunstâncias,

mesmo aqueles casos que não foram apresentados à sensação imediata.

Somente por essa pressuposição que podemos declarar ser possíveis

conhecermos alguma coisa sobre os objetos ou nossos julgamentos e juízos só

podem esta baseados nessa relação entre sensação e empirismo.

Nesse sentido, vale ressaltar que a explicação empirista de Hume tanto

sobre o conhecimento como sobre a moral sofre críticas, especialmente sobre

o aspecto indutivo encontrado em seu empirismo. Nesse sentido, o principal

crítico da indução encontrada no empirismo de Hume seria Karl Popper. O

motivo da sua rejeição está no aspecto propriamente indutivo encontrado nos

pressupostos do empirismo. Popper explica isso na medida em que “ora, em

minha concepção não existe alguma coisa tal como a indução. Portanto, é

logicamente inadmissível a inferência de teorias a partir de enunciados

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singulares que são “verificados pela experiência” (POPPER, 1980, p.

14).Contudo, mesmo considerando o problema da indução no método empírico

de Hume, a mesma poderia servir de critério de demarcação que nos levaria a

decidir sobre o que é verdade e falsidade nas relações. Nesse sentido, Popper

não negaria que o empirismo nos fornece uma explicação satisfatória do

fenômenos, mas esta explicação só seria válida na medida em que

pudéssemos tentar refutá-las, e desse modo a indução existente no empirismo

contribuiria para o avanço do conhecimento na medida em que

consideraríamos provisória ou aproximadamente verdadeiras induções que não

encontraram contra-exemplos. Assim, Popper só admitira um sistema como

empírico ou cientifico se o mesmo fosse submetido a ser testado e

experimentado. Contudo, a crítica de Popper à indução existente no método

empírico de Hume, não nos parece invalidar sua teoria moral, na medida em

que Hume assume os limites tanto da sensação como da experiência em sua

análise e ao utilizar pressupostos oriundos do compatibilismo entre sensação e

experiência diminuiria muito o peso da influência indutiva em sua

epistemologia. Principalmente quando mostra que casos singulares parecem

invalidar nossas inferências, tomando como base a repetição dos objetos por

nós observados e nossa total incapacidade de identificar a suposta conexão

que os ligaria tanto no plano mental como no plano físico nesses casos

particulares. Entretanto, o que Hume busca mostrar é que podemos constatar,

verificando nossa experiência passada, a existência de sucessão e

regularidade nos objetos físicos e mentais e que a sucessão e regularidade

acontecem com determinada frequência nos fenômenos observados, o que nos

dá a segurança necessária para uma ciência experimental da moral:

Mas, se não houvesse uniformidade nas ações humanas, e se todo experimento realizado nesse campo fornecesse resultados irregulares e anômalos, seria impossível coletar quaisquer observações gerais referentes à humanidade, e nenhuma experiência, por mais adequadamente digerida pela reflexão, poderia servir a qualquer propósito (IEH, 8. 9.,p. 125)

Esta conclusão é o que há de mais inovador na teoria Moral de Hume,

em nossa modesta opinião, e aquilo que a diferencia das teorias de seus

antecessores. Porque sua teoria moral não toma como base somente a

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sensação, mas entende que esta faz parte fundamental de nossa experiência.

Por isso Hume parte da análise dessa suposta ligação nos objetos tanto físicos

como mentais procurando identificar em que consistiria essa conexão

necessária a qual se concluiria como inexistente. Dessa constatação, Hume

estabelece que só podemos fazer alguma inferência se esta vier acompanhada

por sua impressão correspondente, pois caso contrário, teríamos avançado

demais no reino da fantasia.

Contudo, se considerarmos os casos singulares em que a teoria

perceptiva de Hume não se aplica, como o próprio Hume mostrou a respeito

dos limites dos sentidos, tal como os contra-exemplos encontrados em

doenças que atingem as funções corporais ou por algumas deficiências

mentais, o que se verifica é que em condições normais as impressões sempre

nos fornecem informação confiável, considerando os seus limites, sobre o

conhecimento epistêmico ou moral. Não obstante, Hume não estaria satisfeito

com essa explicação, na medida em que observamos nas diversas opiniões

dos homens irregularidades, assim como suas disposições físicas e mentais

também se mostram irregulares. Como então podemos ter um critério que sirva

para nós como pedra de toque para todos os casos que exija julgarmos se uma

conduta é virtuosa ou não dos homens? Mais ainda, quem pode garantir que só

porque um determinado evento em determinadas condições nos provoca

determinado sentimento de simpatia poderia ser projetado para o agente tendo

como ponto apenas o sujeito que observa e sente? Como explicar essa

projeção se não encontramos nas impressões nada que valide essa

estrapolação de seus limites? A mesma pergunta pode ser estendida ao

sentimento de simpatia, sob o ponto de vista da sua universalização. Mas,

como posso saber se esse sentimento é compartilhado universalmente pelos

homens, se ele toma como base a pura subjetividade de cada indivíduo, e ao

considerá-lo universal extrapolaria os limites da impressão?

De fato, se observo que uma atitude de um homem é louvável e a

mesma me agrada, logo serei levado a simpatizar com sua atitude, e emitirei

um julgamento de aprovação de sua conduta, e sempre que essa mesma

atitude se repetir considerarei que o sentimento será o mesmo. Certamente

que nisso consiste toda a originalidade da teoria moral humeana; em que não

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busca centrar os julgamentos morais apenas na sensação, devido a seus

limites, e nem na experiência sozinha, porque a mesma pressupõe fazer

“projeções”, recorrendo a uma terceira via que seria esse compatibilismo entre

sensualismo e experiência para fundamentar a ciência humana que propunha.

Desse modo para apoiar esse compatibilismo entre sensação e experiênciana

filosofia moral de Hume necessita-se recorrer a uma interpretação naturalista já

que os fenômenos naturais podem ser explicados através da crença50,por

tomar como base de suas inferências a regularidade e constância observada

nos fenômenos ditos naturais.Assim, se descrevemos o homem como um ser

compreendido, em todas as suas manifestações, mesmo nas consideradas

superiores (direito, moral, religião, etc.), apenas em relação com as coisas e os

seres do mundo natural, com base nos mesmos conceitos que as ciências ditas

naturais utilizam para explica-las (ABBAGNANO, 2000, p. 698), podemos,

então tomando como base essa definição, dizer que Hume seria considerado

um naturalista.

Isso o levou a reformular todo o edifício moral através da sua explicação

da relação sensação e experiência buscando descrever como podemos julgar e

explicar nossos julgamentos subjetivos e estendermos nossas considerações

para os outros indivíduos sem apelar para uma moral teológica ou uma razão

de cunho metafísico. Pois ele considera que “todos os seres do universo,

considerados em si mesmos, aparecem como inteiramente desligados e

independentes uns dos outros. Apenas pela experiência conhecemos sua

influência e conexão; e essa influência, não deveríamos jamais estendê-la para

além da experiência” (T3. 1. 1. 22.,p. 505). Desse modo, a interação entre

sensação e experiência seria aquilo que justificaria por que o sentimento de

simpatia existente em cada indivíduo pode ser universalizado a todos os

demais em maior ou menor grau. Devido à sensação e a experiência pressupor

semelhança e regularidade no agir e na conduta do homem, por isso podermos

50

Conforme afirma Strawson quando diz: “O que ele [Hume] quer dizer é algo muito simples: quaisquer que sejam os argumentos que se possam apresentar de um lado ou de outro da questão, simplesmente não podemos evitar a crença na existência de corpos e não podemos evitar a formação de crenças e expectativas em conformidade geral com as regras básicas da indução. Ele poderia ter acrescentado ainda, apesar de não discutir esta questão, que a crença na existência de outras pessoas (e, portanto, de outras mentes) é igualmente inevitável. Hume expressa frequentemente sua posição referindo-se à natureza” (STRAWSON, 2008, p. 22)

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descrever se uma ação desperta um sentimento simpático ou não a nós, e isto

funciona perfeitamente em quase todos os casos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Descrever como a filosofia do senso moral é reinterpretada por Hume

considerou algumas possíveis reflexões que levaram em conta alguns pontos

essenciais contidos em seu pensamento como, por exemplo, o papel das

sensações e da experiência em nossos julgamentos, especialmente os morais.

Estas reflexões sobre a moral humeana procuraram entender em que ponto a

filosofia do senso moral de Hume é parecida com a de filósofos como

Shaftesbury e Hutcheson e em que medida diferiria, não só deles, mas de toda

a moral moderna. Quais são os pressupostos que o levaram a constatar o

limite epistemológico da análise metafísica de cunho racional de nossos juízos

morais e o fez entender que os critérios empíricos da filosofia natural são

melhores do que os da razão, são perguntas que poderíamos corretamente

encontrar na própria análise de Hume.

Contudo, consultando a literatura e comentadores da filosofia do filósofo

escocês, notamos que algo não se encaixava com os argumentos que tomam

como base a sensação, tendo como objetivo tanto o conhecimento como a

moral, pois levavam em consideração sua restrição apenas aos dados dos

sentidos. Do mesmo modo, encontramos críticas ao empirismo de Hume

quando este projeta os dados dos sentidos observados no passado e o

estendem para o futuro ainda não observado, mostrando uma alternativa tão

problemática quanto os conhecimentos originados da sensação. Faltava assim

uma explicação palatável que justificasse a consistência do senso moral como

princípio defensável. Já que tanto a sensação como a experiência, analisadas

isoladamente, possuem flancos bastante frágeis e capazes de serem atingidos,

fazendo com que todo o edifício “moral” elaborado por Hume ficasse abalado.

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159

A constatação desses problemas tanto nos sentidos como na

experiência nos levou a fazer uma análise a partir dos textos que influenciam a

filosofia do senso moral de Hume, como as obras morais de Shaftesbury e

Hutcheson, com vistas a verificar a origem desses problemas e entendê-los à

luz dessa análise. Em seguida, necessitávamos consultar a literatura atual

sobre a filosofia moral de Hume para poder saber em que medida ela havia

avançado na pesquisa do senso moral, ou seja, sobre a sensação e a

experiência, e qual eram as suas limitações e críticas a esta. Chegando à

conclusão de que a sensação continuava a ser um problema para o

conhecimento para os estudiosos contemporâneos da filosofia de Hume e do

mesmo jeito estenderíamos à experiência estas críticas, devido a projetar o

passado para o futuro sem não haver nada nos sentidos que validasse tal

conclusão.

Desse modo, observando tanto os limites da sensação como da

experiência para a elaboração de uma filosofia do senso moral consistente com

a proposta empirista elaborada por Hume, para solucionar esses possíveis

“problemas” seria preciso encontrar uma alternativa que pudesse dar

consistência à teoria moral humeana como um todo e suprir as falhas que tanto

o sensualismo como o empirismo possuem. Nesse sentido, levantamos a

hipótese que a filosofia do senso moral humeana somente faria sentido se ela

estivesse pautada na compatibilidade entre sensação – empirismo, devido à

sensação poder, por um lado nos dar informação imediata e segura através

das associações e por outro lado o empirismo nos explicar como projetamos

observações passadas para o futuro inobservado sem resultar em

incongruências. O resultado a que chegamos consiste em admitir que o

compatibilismo entre sensação – empirismo pode ser uma leitura possível na

filosofia do senso moral de Hume, por que atenuaria as fragilidades que

pudéssemos encontrar tanto nos conhecimentos vindos da sensação como da

experiência. Porque através dessa leitura é que entendemos que as

associações habituais podem ser explicadas enquanto as projeções só podem

ser descritas a partir da imaginação e desse modo é apenas através da

interrelação entre hábito e imaginação contida no compatibilismo empirismo –

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sensação que o senso moral de Hume adquiriria consistência e sobreviveria a

possíveis críticas.

De fato, essa conclusão, atenuaria bastante as críticas feitas à sensação

e ao empirismo na filosofia moral de Hume, tornando-a consistente com todo o

seu sistema filosófico de conhecimento. Não obstante, a explicação do

compatibilismo sensação – empirismo serve para evitar prováveis fragilidades

em conhecimentos derivados das associações, além de explicar como

chegamos à indução e à projeção mesmoque não se mostre uma explicação

convincente para o persistente problema de termos como certas as conexões

necessárias e continuarmos a fazer associações a partir dessa crença, pelo

menos o compatibilismo descreveria o caminho até chegamos a essa crença.

O motivo disso acontecer estaria, como Hume admite, naquilo que é tão

necessário a seu sistema, a saber, indicar a suposta impressão correlata a

essa ideia.

Entretanto, considerando que mesmo sem existir uma impressão

correspondente a ideia de conexão necessária, a mesma é validada pela

crença, devido experimentarmos na sucessão dos objetos percebidos essa

suposta ligação.Assim também concluímos que a suposição de uma ligação

necessária seria antes fruto do hábito e da imaginação do que qualquer

sensação, seja ela interna ou externa que possamos perceber. Desse modo, a

existências de conexões causais só poderia acontecer na mente e não existiria

correspondente equivalente no plano físico, o que levaria a afirmar que a

filosofia moral de Hume seria essencialmente mentalista. Contudo, buscamos

mostrar que na filosofia de Hume podemos encontrar influências tanto do

subjetivismo como do realismo e que nem uma e nem outra poderia ser uma

resposta adequada aos problemas propostos por Hume sobre as associações

e as inferências em seu pensamento. Concluímos, portanto, que o mais correto

seria afirmar que Hume adotaria uma terceira alternativa para explicar tais

questões sobre a forma de uma análise que reúne o que há de melhor nas

duas através de uma interpretação intersubjetivista.

Nesse sentido, o problema epistemológico de Hume sobre não

conseguirmos identificar nexos causais em nossas associações, devido a não

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haver tanto no plano físico como mental uma impressão que as valide, continua

uma questão em aberto. Não obstante, nossa interpretação do compatibilismo

entre sensação – experiência na filosofia do senso moral de Hume ganha força

na medida em que ele mostra que podemos extrair das associações regulares

e constantes inferências que possibilitem conhecermos os objetos percebidos.

Pois como Hume afirma: “Experimentamos então um novo sentimento ou

impressão, a saber, uma conexão habitual, no pensamento ou imaginação,

entre o objeto e seu acompanhante usual, e esse sentimento é o original que

estamos buscando para aquela ideia” (IEH, 7. 30,p. 117).

Sem dúvida, o que Hume nos diz é que só percebemos associações

entre os objetos no plano físico ou mental, somente isso é o que a experiência

nos permite chegar e não há como investigarmos além dessa evidência. Por

isso, que o observador emite juízos ou inferências sobre as ações do agente

tomando como base as associações experimentadas no passado e que pelo

hábito as projetamos no pensamento graças à imaginação em sua possível

ocorrência futura. Esta é a única certeza que podemos derivar de nossas

conclusões e inferências morais, já que o raciocínio se mostra limitado e

circunscrito a seus próprios domínios reflexivos e seus pressupostos não

alcançam a exigência explicativa que as recentes descobertas da filosofia

natural exigiam.

Naturalmente a filosofia do senso moral de Hume se torna possível,

justamente por tomar como fundamento o método empírico, assim como a

sensação. Contudo, era necessário antecipar possíveis críticas como as do

ceticismo aos limites impostos à elaboração de uma teoria do senso moral que

tivesse os sentidos como fundamento de nossos conhecimentos. Entretanto, as

próprias críticas céticas serviram mais como remédio do que como purgante, já

que a posição sempre preventiva a respeito da tendência habitual que temos

por cair no dogmatismo nos afastaria de chegar a uma conclusão satisfatória e

que fosse simples ao entendimento e ao homem comum. Desse modo, Hume

nos mostrou que podemos chegar a um determinado ceticismo “mitigado” ou

“probabilístico” que permitiria nos aproximarmos do conhecimento, mas apenas

enquanto conhecimento provável e não absoluto sobre os fenômenos físicos e

mentais. Assim, só podemos conhecer os objetos conjugados e em associação

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mediante sua probabilidade de acontecer ou não, já que sua certeza e verdade

absoluta são coisas impossíveis de atingir. O ceticismo mitigado de Hume

também serviu para mostrar que a experiência poderia ser um método eficaz

contra os argumentos racionais que tornavam o conhecimento dogmático,

mostrando que apenas podemos experimentar as associações, mas que não

podemos tê-las como corretas e indubitáveis como afirmava Descartes, por

exemplo.

Guardadas as devidas ressalvas o ponto a que desejamos chegar é

mostrar que mesmo considerando os limites da experiência e da sensação,

ocompatibilismo destas torna-se um forte apoio para nossas inferências ou

juízos sobre as associações causais que servem de fundamento para a filosofia

moral de Hume. O que podemos ainda constatar é que causas que envolvam o

observador, assim como o agente são o efeito de uma ação passada

observada no plano físico e que podemos associar e projetá-la para o futuro

conforme se repitam com freqüência em nossa mente. Isso nos leva a crer que

tanto a aprovação como reprovação das ações e atos do agente nada mais são

do que conseqüência dos juízos emitidos pelo observador chancelados pelo

compatibilismo encontrado na sensação – empirismo percebido nas

associações. E isso nos parece possível, como observamos acima, se

considerarmos os pontos positivos tanto da sensação e da experiência, que se

mostram consistentes com todo o sistema moral de Hume e que lhe serve

como suporte para estabelecer sua ciência do homem. Pensamos que essa

explicação de Hume, sem dúvida é inteiramente verossímil, já que para ele a

filosofia do senso moral ou ciência do homem é um sistema completo que

abrangeria todas as possíveis questões que possam se originar a partir da

natureza humana, mostrando-se coerente porque toma como base a

experiência e a sensação, e é em seus mínimos detalhes fundamentado por

elas. Contudo, sua plausibilidade dá conta de uma parte da explicação do por

que concebemos conexões necessárias como evidentes e qual seria o motivo

de projetarmos inferências de fenômenos passados para o futuro, mas que não

se aplicam à origem última do por que fazemos conexões e nem mostra a

causa última que origina nossas projeções. Além disso, a ciência do homem é

uma ferramenta importante, devido a sua utilidade para a convivência e

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sociedade do homem comum, servindo-lhe como auxilio para suas

deliberações e julgamentos habituais. Nisso é tudo o que consiste uma filosofia

do senso moral que se pretende ser útil e de fácil acesso a mente daqueles

que procuram guiar seus juízos e inferências morais.

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