residÊncia artÍstica mÓvel: vamos tomar o cÉu inteiro...
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RESIDÊNCIA ARTÍSTICA MÓVEL: VAMOS TOMAR O CÉU INTEIRO POR TETO, O MUNDO É TODO MEU, É TODO SEU
MOBILE ARTISTIC RESIDENCE: LET'S TAKE THE WHOLE SKY BY CEILING. THE WORLD IS ALL MINE AND ALL YOURS
Raísa Curty / UNB
RESUMO O texto propõe uma reflexão a respeito de dois trabalhos realizados por Ale Gabeira e Raísa Curty, Hotel Relento e Horizonte Professor, a partir do processo da Residência Artística Móvel, uma expedição de bicicleta realizada pela dupla ao longo do litoral norte do Espírito Santo e Sul da Bahia que se propôs a pesquisar o processo criativo nômade. A partir das especificidades de cada trabalho o texto aborda temas como hospitalidade e educação. PALAVRAS-CHAVE Residência artística; Bicicleta; Deriva; Hospitalidade ABSTRACT The text proposes a reflection on two works carried out by Ale Gabeira and Raísa Curty, Hotel Relento and Horizonte Professor, from the process of the Mobile Artistic Residence, a bicycle expedition carried out by the pair along the northern coast of Espírito Santo and South of Bahia who set out to research the nomadic creative process. From the specificities of each work the text addresses topics such as hospitality and education.. KEYWORDS Artistic Residence; Bicycle; Drift; Hospitality
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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A Residência Artística Móvel foi pensada como um método de pesquisa e prática,
onde os artistas, no caso eu e Ale, faríamos uma imersão em um trajeto litorâneo e
ficaríamos atentos aos efeitos dessa experiência sobre nós, sobre o nosso corpo. O
projeto envolvia uma viagem de bicicleta de Vila Velha (ES) até Salvador (BA) por 40
dias, mas acabou durando mais de um ano. Nossa proposta era de se deixar afetar
pelos encontros e trabalhar a partir deles, por outro lado já saímos de Vila Velha
com propostas de happenings em nossas cabeças, que acabaram se misturando
aos afetos locais.
A arte pública lança as bases dessa viagem. O título da expedição dita suas regras:
“Tomar o céu inteiro por teto” é um projeto megalomaníaco. “O mundo é todo meu” é
uma afirmação que poderia ter sido dita por qualquer colonizador e seus anseios de
posse. Acontece que fazer do mundo sua casa é diferente de impor ao mundo suas
regras. Afirmar logo em seguida que “O mundo é todo seu” é uma tentativa de
produzir uma noção de propriedade que caminha de forma paradoxal e potente.
Pensávamos em abundância. Pensávamos em um jogo de ganha-ganha que
andasse na contramão da dominação e da exploração.
O crítico e curador Jacopo Crivelli Visconti, fala sobre uma linha de pesquisa
desenvolvida a partir da arte conceitual e a classifica como Novas Derivas (2014).
Segundo identifica o autor, a origem desse novo movimento se encontra
principalmente no situacionismo. A Teoria da deriva (1957) do Guy Debord, lança as
bases de um método que, segundo o olhar que Jacobo propõe, vem sendo utilizado
por artistas principalmente ao longo das últimas quatro décadas, não de maneira
ortodoxamente guy-debordiana, mas com propostas que “enriquecem e matizam”
(JACOBO. p.IX) sua teoria. Logo no início de seu livro, Jacobo observa certa
ambiguidade onde se por um lado os artistas estão cada vez mais em contínuo
movimento fazendo com que suas nacionalidades passem a ser irrelevante, por
outro “a presença do território onde a deriva acontece é quase sempre o elemento
central da obra.” (p.XVIII). Parece ser interessante pensar a Residência Artística
Móvel nesses termos.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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Durante a efervescência das décadas de 1960 e 1970, a arte conceitual invadiu a
cena artística e performances, happenings e instalações renovaram a noção de obra
de arte. A valorização do processo pode ser percebida como uma reação ao que
Guy Debord chamou de Sociedade do Espetáculo (1967), a sociedade fruto do
capitalismo que tem suas relações mediadas pela produção e pelo consumo. Pode-
se observar esse movimento como uma ruptura da arte com o mercado, que andava
a todo vapor durante os trinta gloriosos. A arte se desfaz do seu fim como objeto.
Sem um produto final as obras não poderiam ser cooptadas pelo sistema, ou assim
se esperava, ou quem sabe, assim foi feito em alguma medida. Fato é, que nesse
momento surgiram discussões que condenavam a voracidade do capital e que ainda
hoje se fazem muito importantes. Enquanto nos anos 60/70, a economia estava a
toda na Europa e nos Estados Unidos, em Itaúnas (BA) e em muitas outras
“colônias”, o que se passava era o outro lado dessa moeda: os moradores assistiram
passar por ali uma incalculável quantidade de madeira de lei extraída da mata
atlântica.
Itaúnas foi a cidade onde fizemos nosso primeiro trabalho. Durante os anos 70, a
debilitação da vegetação que continha as dunas entre a vila e o mar, permitiu que os
ventos atingissem os montes de areia que foram avançando sobre as casa e em
poucos anos soterraram por completo a Antiga Vila. Hoje, andar sobre as dunas é
andar sobre a antiga cidade. Inclusive há dias em que se pode tropeçar no topo da
torre do sino da Igreja. Lá são encontrados vestígios do povoado de colonos
portugueses, como louças e objetos pessoais bem como vestígios dos índios
tupiniquins que por alí passavam.
Chegamos em Itaúnas após um mês de viagem. As questões que pairavam em
nosso corpo eram como uma troca de correspondência com o espaço. Arrisco dizer,
talvez por experiência própria, que existem pessoas que já nascem desterradas. As
pessoas que nascem dessa maneira partem rumo a uma jornada por chão:
vagueiam, caminham, seguem, partem e continuam partindo em busca, em fuga, em
deriva. O acolhimento é fundamental para a nossa sobrevivência. Não só o
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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acolhimento que os outros nos oferecem, mas também o nosso lugar como
acolhedores. Nesse trabalho, as relações entre hóspede e anfitrião, são colocadas
em jogo. A hospitalidade é o que faz o nômade possível. O anfitrião acolhe, recebe o
que está de passagem em sua casa, compartilha seu alimento e o seu tempo, o
anfitrião aceita a interrupção. Já o hóspede é o estrangeiro, o imigrante que veio de
outro canto, o viajante e por vezes o bandoleiro, mas não um sem casa, pois os
passageiros possuem a vocação de habitar o trajeto, residem em qualquer lugar, se
apropriam, permitindo que sejam eles também anfitriões do seu espaço-tempo.
Gostaria de pensar então na receptividade da arte e encarar a Residência Artística
Móvel também como uma hospedaria. A arte tem um destino, o mesmo tipo de
destino das portas abertas, das entradas abertas, das casas de pensão. A arte
abriga o estrangeiro. A arte é ela mesma o nome de um hotel.
Figura 1. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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Figura 2 e 3. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
Figura 4 e 5. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
Para o Hotel Relento foram dispostas doze camas em uma linha horizontal sobre as
Dunas de Itaúnas. A linha traçada inscrevia um campo de acolhimento sobre a
paisagem. A mobília desviada compunha a instalação provisória que insinuava uma
situação de sono coletivo. Estávamos interessados em sonhar os sonhos da Antiga
Vila. Perguntava-me como poderia se dar a comunicação entre os desacordados.
Será que por dormirmos um ao lado do outro conseguiríamos fazer um corpo de
sonho? Será que esse corpo de sonho seria permeado pelos sonhos que ali já
pairavam? Talvez assim como Laurie Anderson na série Institutional Dream (1973),
também procurávamos saber se os sonhos são influenciados pelos lugares onde
são sonhados. (ANDERSON, 2011)
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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De “natureza pscicogeográfica”, as derivas são uma forma de reconhecimento do
território. As derivas investigam o ambiente a partir do estado psíquico e emocional
das pessoas que a praticam. A caminhada é também uma forma de medir o mundo
com o seu próprio corpo e de medir seu corpo através do mundo. Ao mesmo tempo,
as derivas afirmam um “comportamento lúdico-construtivo”, que segundo Jacobo
querem apreender a “realidade profunda, misteriosa e escondida da cidade”. Poderia
dizer que o Hotel Relento é uma boa tática de apreensão do território, mas me
ponho a pensar quais são os anseios dessa prática. Debord fala sobre “estabelecer
uma cartografia influencial que falta até o momento (...) não se trata exatamente de
criar continentes duráveis, mas de mudar arquitetura e o urbanismo”. Quando
Debord fala sobre tal cartografia de continentes não duráveis, me lembro de Suely
Rolnik e a cartografia sentimental:
Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem passagem,
dele se espera basicamente que esteja mergulhado nas intensidades de
seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore as que lhe
parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que
se fazem necessárias. O cartógrafo é antes de tudo um antropófago.
(ROLNIK, 1989, p.15-16)
Talvez seja então essa uma prática faminta, que quer deglutir outras culturas, que
quer uma origem para chamar de sua. Talvez o desterramento de nascença seja
apenas uma desculpa para sempre partir. Talvez o real motivo da partida seja a
curiosidade. Fome pelo outro, fome pelo próximo. “O cartógrafo é um verdadeiro
antropófago: vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar, transvalorado. Está
sempre buscando elementos/alimentos para compor suas cartografias.” Como o
cartógrafo pode não ser um ser um voraz? Rolnik segue o texto dizendo que o
critério de escolha do cartógrafo consiste em “descobrir que composições de
linguagem favorecem a passagem das intensidades que percorrem seu corpo no
encontro com os corpos que pretende entender.” Talvez, o uso do corpo como
principal ferramenta de conhecimento do espaço seja o domador de tal voracidade.
Acreditar no corpo antes de tudo, acreditar nas capacidades do “corpo vibrátil”.
Corpo, antídoto da voracidade moderna.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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Sobre a semana que antecedeu a instalação gostaria de mencionar o livro O
Estrangeiro para nós mesmos (1994), onde Julia Kristeva nos dá uma perspectiva
histórica do estrangeiro além de escrever uma sequência de situações pela qual o
estrangeiro passa. A própria autora que nasceu na Bulgária e viveu boa parte de sua
vida na França conhece pessoalmente determinadas sensações. Encontrar (p.xx) é
um parágrafo em que Kristeva se debruça sobre a descrição do encontro entre um
possível anfitrião e um possível hospéde.
O encontro equilibra o nomadismo. Cruzamento de duas alteridades, ele
acolhe o estrangeiro sem fixá-lo, apresentando o anfitrião ao seu visitante,
sem engajá-lo. Reconhecimento recíproco, o encontro deve a sua
felicidade exatamente ao provisório, pois os conflitos o dilacerariam se
tivesse que se prolongar. (KRISTEVA, 1994, p.18)
Após esse depoimento que para mim muito tem a ver com certa sensação
provocada pela Residência Artística Móvel, onde se atravessa, onde se
cumprimenta para logo em seguida dizer adeus. Nós, passageiros, realizamos
sucessivos encontros e sucessivas despedidas. Chegamos com a certeza de que
iremos embora, constantes atravessamentos nos põe diante da natureza
impermanente das coisas. Acontece que Kristeva segue dizendo que o estrangeiro é
um ávido por encontros, ela os narra de uma forma alegórica que facilmente agrega
uma camada de compreensão ao trabalho da Residência Artística Móvel:
O encontro em geral começa com uma festa do paladar: pão, sal e vinho.
Uma refeição, uma comunhão nutritiva. Um confessa-se bebê faminto, o
outro acolhe essa criança ávida: num instante eles se fundem no rito da
hospitalidade. (...) O nutritivo banquete é inicialmente um pouco animal,
elevando-se aos vapores dos sonhos e das idéias. Os celebradores da
hospitalidade, por algum tempo também se alinham espiritualmente.
Milagre da carne e do pensamento, o banquete da hospitalidade é a utopia
dos estrangeiros: cosmopolitismo de um momento, fraternidade dos
convivas que acalmam e esquecem as suas diferenças, o banquete está
fora do tempo. Ele se imagina eterno na embriaguez daqueles que,
entretanto, não ignoram a sua fragilidade provisória. (KRISTEVA, 1994,
p.19)
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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O Hotel Relento foi amplamente comemorado nos banquetes da hospitalidade de
Itaúnas. Vivemos essa embriaguez com mais de quarenta anfitriões, que ofertaram
ao trabalho as camas necessárias, além de colchões, travesseiros, um trator para o
transporte da mobília, alimentos para lanches e café da manhã e todo o suporte
necessário para o acontecimento.
Em março de 2015, estávamos passando por um período em que a seca assolava o
sudeste. Já não chovia há mais de três meses. Foi na primeira noite do Hotel
Relento que caiu a primeira chuva. Amanhecemos sem ter podido realizar a
experiência. À luz do dia as camas ficaram nas dunas que é o ponto de acesso a
praia, por onde moradores e visitantes transitavam e interagiam com a instalação.
Resolvemos anoitecer mais uma vez por alí e tentar realizar o sono coletivo sobre a
Antiga Vila. Muitos compareceram, eu mesma estava dormindo quando sonhei com
agulhadas geladas atravessando o meu rosto e a chuva mais uma vez bateu à porta.
A falta de resultado a princípio, ou seja, não ter conhecido os sonhos porque eles
não foram sonhados, poderia insinuar certo desapontamento, mas acredito que daí
surgem outras perspectivas. Ponho-me a pensar que fez-se obra todo o movimento,
que eu não saberia dizer nem onde começou nem onde terminou.
Voltando a observação de Jacobo, sobre a ambiguidade do movimento dos artistas,
que ao mesmo tempo que se desterritorializam, procuram lugares de ancoragem sob
os quais seus trabalhos vão experimentar um pouco de chão, penso que de fato, as
ações propostas pela Residência Artística Móvel tem relação direta com o território
onde acontecem. São concebidas a partir da vivência no local e o mais importante,
são feitas no próprio local e para o local, provocando uma relação social de afeto
que arrisco dizer ser a base do trabalho. Gostaria de lembrar aqui de Nicolas
Borriaud e o seu livro Estética Relacional(2009). O autor também é citado por
Jacobo (2014), que diz que boa parte das novas derivas poderiam ser lidas nesse
contexto.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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Durante a década de 1980, artistas voltaram-se novamente para o ateliê, em um
movimento de retorno à pintura. Porém logo na década seguinte (1990), as práticas
dos 60/70 se manifestaram com força. Os trabalhos novamente pairavam entre a
ação artística e a ação social e ocupavam os espaços dentro e fora da galeria. Aliás,
muitas vezes, o que passou a ser mostrado na galeria foi apenas o registro do
processo de pesquisa que incluía um trabalho social ativo. O livro de Borriaud se
empenha justamente em uma leitura desse período sob o ponto de vista da Estética
Relacional. O curador apresenta uma variedade de trabalhos que têm na atividade
relacional seu princípio estético. Gosto do fato das relações serem colocadas em
evidência na obra de arte. O autor fala sobre “interstícios sociais” que seriam
espaços-tempo onde nos afastamos da cultura vigente para experimentar outras
formas de relação.
A relações produzidas pela Residência Artística Móvel possuem suas
peculiaridades. A bicicleta com certeza é peça fundamental desse interstício que
criamos. Ela se demonstrou uma ferramenta chave para abertura de portas. A
relação de hospitalidade que se deu ao longo dessa viagem está relacionada com
essa escolha, que nos afasta da figura do turista tradicional e nos livra de muitas
suspeitas. De todo modo, sempre éramos estrangeiros. Hotel, hospitalidade,
hostilidade: todas essa palavras possuem uma raiz comum. Hospitalidade é uma
questão que segundo Derrida (2003) mais do que ter a ver com o estrangeiro, ela é
uma questão de estrangeiro. Uma questão vinda do estrangeiro. Essa é a potência
da hospitalidade, uma questão que é discutida a partir da chegada do outro.
Horizonte Professor é mais um trabalho da Residência Artística Móvel e o considero
muito importante nessa trajetória. Inevitavelmente ele fala sobre educação. São
dezoito carteiras escolares dispostas em uma linha horizontal de frente pro mar. A
linha de pensamento que eu vinha desenvolvendo em relação a educação, partia
primeiramente dos dois anos (2013-2014) que trabalhei como artista educadora no
CCBB-RJ e segundo pela própria experiência da Residência Artística Móvel.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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Figura 6. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
Como educadora pude acompanhar de perto a relação do público com a obra e
perceber a importância da arte quando encontra o outro. Lembro em uma exposição
onde uma criança subiu em uma das peças. O trabalho era de concreto, mas não
poderia ser tocado. Os trabalhos, na maioria das vezes eram apenas para
contemplação, ou interação mediada por instrutores. Não que eu pense que não
possa existir trabalho para contemplação em museu, mas não era fácil pra mim,
interferir na espontaneidade de um corpo curioso. De todo modo, persistiu a vontade
de retirar as cercas que dividem a arte da educação e deixar as duas matérias
habitarem o mesmo território, ambas com seu enorme potencial de reinvenção do
mundo. Distantes da sala de aula e distante dos museus, nos afastamos dos
grandes circuitos e das instituições, porém levamos conosco uma residência, um
laboratório ambulante, espaço de investigação. A arte, assim como a escola, é
espaço de investigação. O lugar da investigação é o lugar da curiosidade. Investiga-
se para conhecer, mas não se trata de buscar um conhecimento que como um
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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espiral trará ao anfitrião uma melhor condição. O circuito da curiosidade não se
fecha nem se amplia ele é potencialmente autodestrutivo, pautado na transitoriedade
e na receptividade infinita. A curiosidade é a força motriz da hospitalidade e
consequentemente do conhecimento.
Figura 7 e 8. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
Figura 9 e 10. Gabeira, Ale. Curty, Raísa – Hotel Relento, 2015. Fotografia digital. Acervo dos artistas.
O ritmo da viagem pelo litoral, é marcado pelo movimento cíclico do nível das águas.
Cumuruxatiba, nome de origem tupi, dado pelos índios Pataxó, significa maré
rasante, fenômeno onde a maré passa por intensa variação ao longo do dia. Durante
a maré baixa em Cumuruxatiba, é possível andar por mais de 100 metros mar
adentro. Horizonte Professor é um trabalho entusiasmado com o aprendizado
através das marés, além disso, é uma saudação aos pescadores com quem
havíamos convivido durante os últimos meses.
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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A instalação foi realizada diariamente durante a maré baixa diurna, pelo período de
uma semana. As carteiras escolares vagas se configuravam em um convite a sentar.
Sabíamos que as carteiras sugeriam um aprendizado que não valorizava a
experiência do corpo, mas pensamos que o trabalho também falava sobre esses
limites, sobre uma tradição colonial deslocada, jogada em outro contexto. Ao longo
dos dias que a instalação foi exposta, diversos transeuntes pararam, observaram e
respeitaram a sugestões do trabalho de se sentar para ver e ouvir o mar. Pequenos
ciclistas que passavam próximo ao local, viram a organização metódica das carteiras
como oportunidade de ziguezaguear, utilizaram-nas como balizas. Conforme os dias
foram passando, recebemos a visita de muitas crianças e a dessignificação das
carteiras tomou um rumo que acabou dentro do mar. Foi na inesquecível visita da
Vila Escola ao Horizonte Professor que as carteiras foram levadas para dentro
d’água. A iniciativa das crianças diante da regra, no caso a carteira, foi de total
irreverência: nas mãos deles, elas se transformaram em trampolins, em palcos, em
pranchas de surf.
O Horizonte Professor fala sobre o nosso lançamento em um trajeto litorâneo: ele é
um trabalho entusiasmado com o aprendizado através das marés e uma saudação
aos pescadores com quem havíamos convivido durante os últimos meses.
A viagem é hoje onipresente nas obras contemporâneas, quer os artistas
recorram a suas formas (trajetos, expedições, mapas…), iconografia
(espaços virgens, matas, desertos...) ou métodos (do antropólogo, do
arqueólogo, do explorador...). Se esse imaginário nasce da globalização,
da democratização do turismo e dos deslocamentos pendulares, cabe
destacar o paradoxo constituído por essa obsessão pela viagem no
momento que desaparece toda terra incógnita da superfície do globo:
como se tornar o explorador de um mundo já esquadrinhado pelos satélites
e do qual cada milímetro já se encontra cadastrado? E, de modo mais
geral, como os artistas podem dar conta do espaço nos quais são levados
a viver? (BORRIAUD, 2009)
Usar a Residência Artística Móvel como método acaba nos aproximando de todas
essas questões, afinal seu eixo central é justamente uma deriva. Muitas vezes já me
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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questionei se esse deslocamento de bicicleta é em si um trabalho de arte, que pode
ser investigado mais próximo à performance, ou se é apenas um modo de pesquisa
que possibilita interações específicas para se chegar ao trabalho que seriam as
instalações na paisagem. Penso que ambas as opções estejam corretas. Nicolas
Borriaud em seu livro Radicante(2009) observa a ostensiva presença da viagem na
arte contemporânea, tanto em sua forma quanto em sua iconografia. Penso que a
RAM tem formato de deriva, e a iconografia que movimentamos ao longo desse
deslocamento está estritamente relacionada a essa experiência. É comum encontrar
em nosso trabalho elementos que se remetem ao estrangeiro, a hospitalidade, a
educação, enfim assuntos que se constroem a partir da relação com o outro.
Eduardo Galeano diz que “o mundo ao avesso nos adestra para ver o próximo como
uma ameaça e não como uma promessa” (GALEANO, 2011). A hospitalidade, a
educação, e o processo proposto pela Residência Artística Móvel era assenta-se
justamente ao reverso desse revés. A promessa do que chega tem a nossa
curiosidade. A curiosidade conduz a hospitalidade. A hospitalidade conduz ao
encontro, a relação com o outro.
Referências
ANDERSON, L. I in U = Eu em Tu, Volume 2 / curadoria Marcello Dantas. Trad. de Renato
Rezende. –Santana do Parnaíba, SP : Mag Mais Rede Cultural, 2011
BOURRIAUD, N. Estética relacional. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
______. Radicante: por uma estética da globalização. Trad. Dorothée de Bruchard.
São Paulo: Martins Fontes, 2011.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
GALEANO, E. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Tradução de Sérgio
Faraco. Porto alegre RS: L&PM editores, 2011.
KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994
CURTY, Raísa. Residência artística móvel: vamos tomar o céu inteiro por teto, o mundo é todo meu, é todo seu, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 1980-1993.
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ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo.
São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989
VISCONTI, J. C. Novas Derivas. São Paulo: Martins Fontes, 2014
Raísa Curty
Artista visual e artista educadora, mas não diferencia uma atividade da outra. Mestranda em Artes Visuais pela UNB e graduada em pintura pela UFRJ. Desde 2014 pesquisa o trajeto e suas formas de subjetivação. Contato: [email protected]