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Matthew Restall Sete mitos da conquista espanhola TRADUÇÃO DE Cristiana de Assis Serra v / CIVILIZAÇAO BRASILEIRA

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Texto História América

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Matthew Restall

Sete mitos da conquista espanhola

TRADUÇÃO DE

Cristiana de Assis Serra

v /

CIVILIZAÇAO BRASILEIRA

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COPYRIGHT 2003 by Oxford University Press, Inc., Nova Yorlc, NY, EUA

TITULO ORIGINAL Seven Myths of the Spanish Conquest

Esta tradução de Sete mitos da conquista espanhola, publicado originalmente em inglês em 2003, foi publicada mediante acordo com a Oxford University Press, Inc.

CAPA Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO Evelyn Grumach e .1 oão de Souza Leite

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Restall, Matthew, 1964- R344s Sete mitos da conquista espanhola / Matthew Restall; tradução

de Cristiana de Assis Serra. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

Tradução de: Seven myths of the spanish conquest Inclui bibliografia ISBN 85-200-0688-4

1. Espanhóis — América — Historiografia. 2. Mito. 3. México — História — Conquista, 1519-1540 — Historiografia. 4. América Latina — História — Erros. I. Título.

Para todos os que já foram meus alunos;

Para Jim e Felipe, de quem sempre serei aluno;

E para Lucy, aluna do amanhã.

CDD — 980.013072 06-0556

CDU — 94(8)

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Direitos desta tradução adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA Um selo da EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

W1.

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

dientes. Fez-se respeitar e temer em todas as províncias vizinhas, nas

quais realizou longas malocas ou incursões, voltando carregado de

prêmios"." O objetivo do cronista era elogiar Beltrán; ao fazê-lo, po-

rém, acabou lançando luz sobre uma Conquista denominada "espa-nhola", mas na qual um capitão negro liderava guerreiros indígenas contra outros nativos da América. Quer no coração do Império Asteca, quer na remota fronteira chilena, os espanhóis não foram, de modo

algum, os conquistadores.

CAPITULO 4 Sob o domínio do rei O mito da conclusão

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"Por vontade divina, coloquei sob a autoridade do Rei e da Rainha,

Nossos Senhores, um outro mundo, graças ao qual a Espanha,

outrora denominada pobre, é agora a mais rica [das nações]."

Cristóvão Colombo (1500)

"Com efeito, foi a conquista da América que prenunciou e

estabeleceu nossa atual identidade; por mais que toda data que nos

permite separar dois períodos quaisquer seja arbitrária, nenhuma

é mais apropriada para assinalar o princípio da era moderna que o

ano de 1492, aquele em que Colombo cruzou o oceano Atlântico.

Somos todos descendentes diretos de Colombo; é com ele que tem

início nossa genealogia, até onde a palavra "início" tem algum sentido."

Tzvetan Todorov (1984)

"Todavia, diversos reinos e províncias não chegaram a ser

submetidos de todo ou por inteiro, e restaram, entre outras

províncias e reinos, grandes porções de terra por conquistar, por

subjugar, por pacificar, e algumas ainda mesmo por descobrir."

Juan de Villagutierre Soto-Mayor (1701)

Algumas guerras têm dois nomes. O que os russos chamam de Grande Guerra Patriótica é conhecido no Ocidente como Segunda Guerra Mundial. O que para os americanos foi a Guerra Mexicano-America-na é, para os mexicanos, a Guerra da Invasão Norte-Americana. A

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Conquista do México, entretanto, não tem nenhum outro nome. Nin-guém jamais a chamou, pelo menos por escrito, de Guerra da Invasão Espanhola, ou Guerra Hispano-Asteca. O mesmo vale para a Conquis-ta do Peru e a de Yucatán, entre outras.

Esses rótulos convencionais dados aos componentes da Conquista são tidos, sem maiores críticas, como descrições simples e neutras — muito embora de neutros e simples não tenham nada. Afinal, ao se agregar sob o rótulo de "conquista" todo o processo de exploração,

expansão, descobrimento e ocupação da América pelos espanhóis, tal

processo acaba sendo inserido num arcabouço em que os aconteci-

mentos deslocam-se de modo inexorável rumo ao clímax inevitável da vitória hispânica. A história da Conquista gira em torno de realizações simbólicas dos espanhóis — tais como uma determinada vitória (ou

massacre) ou a fundação de uma cidade. Os anos em que tais aconteci-

mentos se deram foram assim convertidos em marcos que assinalam a

transição da barbárie para a civilização (no entender dos espanhóis), o

salto do pré-colombiano ou pré-Conquista para o colonial (na termi-nologia acadêmica de hoje).

Essa visão da Conquista foi gerada pelos próprios conquistadores

e sobreviveu, mais ou menos intacta, até o presente. Os espanhóis do

século XVI costumavam apresentar seus feitos e os de seus compatrio-

tas em termos que antecipavam prematuramente a conclusão de suas

campanhas e imbuíam de uma aura de inevitabilidade as crônicas da

Conquista. A expressão "Conquista espanhola", com todas as suas

implicações, perpetuou-se na história graças ao empenho hispânico

em retratar suas atividades como conquistas e pacificações, contratos

cumpridos, objetivos da Providência, fatos consumados — descrições

que deram origem ao que denomino de "mito da conclusão". Neste

capítulo, examinaremos dois motivos correlatos por que os espanhóis

agiram dessa forma. O primeiro foi o sistema hispânico de patronagem,

contrato e recompensa — começando por Colombo e sua insistência,

até o fim da vida, em que cumprira seu contrato de descobrir uma rota

para a Ásia. O segundo foi a ideologia de justificação imperial, desen-

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volvida rapidamente durante o século XVI para apresentar a Conquis-ta como objetivo divino e os espanhóis como agentes da Providência. A despeito de tudo o que se afirmava, a Conquista permaneceu incom-

pleta por séculos após as primeiras invasões espanholas, e a segunda

metade do capítulo apresenta sete aspectos dessa incompletude.

ecin

"O Novo Mundo é um desastre!", exclama a Rainha Isabel no filme 1492: A conquista do paraíso, de 1992 — ao que Cristóvão Colombo retruca: "E o Velho foi alguma grande realização?". Era vital para o

êxito de qualquer conquistador a capacidade de representar seus es-

forços como qualquer coisa, menos um desastre. Muito embora a

monarquia hispânica nem enviasse pretensos conquistadores como membros de um exército real nem concebesse, organizasse e financias-se expedições de Conquista, ainda assim exercia algum controle sobre

as conseqüências das descobertas e conquistas, por meio da concessão

de licenças ou contratos de exploração ou ocupação. Em troca do títu-lo de adelantado (capitão-general ou, numa tradução mais literal, in-vasor) por antecipação e de títulos e privilégios de governador após

uma conquista, o beneficiário da licença tinha de arcar com todos ou

quase todos os custos da expedição, além de planejá-la e executá-la. Tais contratos eram, pois, de grande proveito para a Coroa, numa era

em que o poder centralizado do Estado não passava de uma fração do

que viria a ser nos tempos modernos; tratava-se de um mecanismo

para dispensar o patrocínio régio, tanto por ocasião da concessão da

licença quanto quando seus termos eram considerados cumpridos (ou

não). Igualmente importante, tais acordos constituíam também fontes

de renda, uma vez que a monarquia costumava vendê-los e podia ale-

gar que os contratos não haviam sido cumpridos caso seu habitual quinto (um quinto de todo o espólio e tributos da Conquista) não se materializasse. Com o passar do tempo, a Coroa foi acrescentando às cláusulas típicas do contrato com seus adelantados uma série de nor-

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mas referentes aos procedimentos de Conquista, facilitando a deten-ção de conquistadores por violações contratuais (como foram presos Sebastián de Benalcázar e Hernando Pizarro, na década de 1540) ou o ato de multá-los (como Juan de Ofiate em 1614, ao valor de seis mil ducados castelhanos).'

O desafio com que se defrontavam os líderes das companhias de Conquista era, pois, considerável; eles não só tinham de evitar desas-tres como naufrágios, doenças e captura ou morte pelas mãos dos na-tivos subjugados como suas companhias deviam atender as definições régias de êxito colonial. Não bastava descobrir e reivindicar territó-rios; as supostas colônias necessitavam de viabilidade econômica ime-diata, de preferência sob a forma de minas de ouro e prata e sociedades nativas sedentárias que as localizassem e operassem, além de propor-cionarem outros bens e mão-de-obra. A questão não é que fosse duro ser conquistador, mas que não era nada fácil para alguém convencer a Coroa de que levara a bom termo a ocupação.

Daí os líderes das expedições tanto se apressarem em asseverar que regiões inteiras abundavam em metais preciosos e povos nativos dó-ceis. Essa tradição remontava a Colombo, que desde o princípio em-penhava-se em convencer a Coroa de que havia cumprido os termos de seu contrato (conhecido como Capitulaciones de Santa Fe, nome da fortaleza próxima a Granada em que o acordo foi lavrado, em abril de 1492). No começo de 1493, Colombo explicava a Fernando e Isa-bel que, ao fazer-se à vela, "tomara a rota para as ilhas Canárias, per-tencentes a Vossas Altezas, de que se diz situarem-se no Mar Oceano, a fim de daí seguir meu curso e viajar até as índias, entregando aos seus príncipes as mensagens de Vossas Altezas, cumprindo assim o que me incumbistes de fazer".2

Tais declarações de cumprimento ou concretização foram cruciais para que Colombo pudesse apropriar-se de seu terço de todas as recei-tas comerciais das terras descobertas, bem como administrá-las como "Almirante do Mar Oceáno, Vice-Rei e Governador" — tal como ga-rantido nas Capitulaciones. A insistência de Colombo em que tanto

atingira a Ásia quanto descobrira novas terras foi contestada assim que ele voltou à Espanha de sua primeira viagem. Suas afirmações foram alvo de cada vez mais objeções à medida que novas viagens do próprio Colombo e outros foram trazendo à tona novos conhecimentos acerca do Atlântico e das Américas Receoso de perder os privilégios que lhe foram concedidos por contrato (o que acabaria ocorrendo), Colombo começou a assegurar com ainda mais estridência que "nada descobri — e continuo sem descobrir — que a qualquer título desabone o que

escrevi, disse e afirmei a Vossas Altezas em dias idos"? Os espanhóis que cruzaram o Atlântico em números crescentes nos

princípios do século XVI manifestaram preocupações similares com rela-ção à aprovação e cumprimento de contratos. As cartas de Cortés ao rei constituem a mais conhecida série de documentos referentes a contratos, fugindo à regra apenas sob o aspecto de que o conquistador as escreveu em parte como petições de licença e, em parte, com base na premissa de que esta já lhe fora concedida. Como Cortés, Francisco de Orellana la-vrou uma série de documentos durante sua traiçoeira jornada em 1542 Amazonas abaixo, já antevendo a descoberta de terras nativas de que se pudesse apropriar (caso em que, como Cortés, ele necessitaria de uma licença retroativa, a fim de tornar-se governador). Corretamente, as car-tas de Orellana ao rei previam as acusações de Gonzalo Pizarro de que ele o abandonara ilegalmente na Amazônia, assim como as de Cortés anteci-pavam-se à ira de seu próprio patrono traído, Velázquez. Analogamente, Juan de Ofiate empenhou-se com vigor para obter, em 1595, sua licença de conquista do Novo México. Em seguida, apresentou diversas petições referentes ao cumprimento contratual em 1597, quando a licença sofreu uma revogação temporária; entre 1606 e 1624, enfrentou uma prolonga-da investigação régia, tendo sido condenado pelo uso de violência exces-

siva e reabilitando-se depois.4

O adelantado Francisco de Montejo escreveu ao rei uma série de

cartas, a fim de persuadi-lo de que a conquista de Yucatán era não só

possível como desejável. Com efeito, esses dois aspectos dos textos de

contratos espanhóis são um tamanho lugar-comum que a linguagem

1 3 O 1 3 1

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

dos descobrimentos e cumprimentos chegava quase a ser formulista. O exemplo a seguir — uma descrição de Yucatán feita por Montejo em sua carta ao rei, datada de 1529 — poderia vir do punho de qualquer um de dezenas de conquistadores: "A terra é densamente povoada e possui vastas e belas cidades e vilas. Todas as cidades são [verdadeiros] pomares. (...) Encontrei inúmeros indícios de ouro. (...) Percorri boa parte da terra e ouvi diversos relatos de ouro e pedras [preciosas] que aqui se encontram".s

Essa era metade da fórmula — a adequação do território para co-lonização. A outra metade dizia respeito ao suposto grau de controle já estabelecido pelos espanhóis sobre a região. Uma década antes de Montejo prematuramente derramar-se em louvores a Yucatán, Cortés escrevera ao rei que, antes de dirigir-se para o México central, con-quistara uma vasta região costeira.

Deixei toda aquela província de Cempoala [Cempoal], bem como to-das as montanhas que circundam a cidade, que contêm cerca de cin-qüenta mil guerreiros e cinqüenta cidades e fortalezas, nas mais

profundas paz e segurança; e todos esses nativos desde então foram, e ainda são, os mais fiéis vassalos de Vossa Majestade, pois que eram súditos de Montezuma Klutezumal e, segundo me foi informado, ti-nham sido subjugados havia não muito tempo. Ao tomarem conheci-

mento, por meu intermédio, da existência de Vossa Alteza e de Vosso

imenso poder Real, manifestaram seu desejo de se tornarem vassalos

de Vossa Majestade e meus aliados, e rogaram-me que os protegesse

do grande senhor que os dominava pela tirania e pela força e roubava-lhes os filhos para sacrificá-los aos seus ídolos; e muitas outras queixas

fizeram a seu respeito. Em face disso, têm se mostrado muito leais e

verdadeiros no serviço de Vossa Alteza, e creio que sempre o serão,

livres agora que estão da tirania de outrora e tendo em vista que sem-pre foram por mim honrados e bem tratados.6

O leitor não necessita de praticamente nenhuma informação adicional ou contextuai para perceber como a situação foi desvirtuada a fim de

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SOB O DOMINIO DO REI

satisfazer os requisitos que alimentaram o mito da conclusão ao longo do século XVI. Como a afirmação de que a conquista foi levada a cabo é demasiado improvável para se sustentar por si só, Cortés recorre à

invenção de um dos submitos do mito da conclusão: o da sujeição voluntária dos nativos. Aqui, para defender a tese da submissão espon-tânea, Cortés se vale da boa e velha contraposição de um monarca

poderoso e benevolente, com seu honorável representante, a um tira-no indígena cruel. A implausibilidade física da consolidação do domí-nio hispânico é sobrepujada pela evocação de um processo ao mesmo tempo físico e metafísico, o triunfo da civilização sobre a barbárie.

Assim sendo, se o próprio sistema de patrocínio real incentivava a precipitação de declarações de sucesso na exploração e conquista, os conquistadores logo trataram de tirar proveito de uma ideologia de justificação imperial que oferecia instrumentos para tornar plausíveis tais afirmações aos olhos de seus compatriotas. A ideologia do Impé-rio Hispânico era arraigada na jurisprudência medieval e na mitologia da reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, na conceituação ju-daico-cristã do tempo como uma entidade de caráter progressivo e guiada pelas mãos da Providência e na reciclagem de antigas ambições romanas de um império universal.' Da década de 1490 em diante, mais um fator foi acrescentado a tão pujante mistura: a própria expe-riência do Descobrimento e Conquista. O resultado foi uma ideologia imperial que fez do Descobrimento e da Conquista não apenas em-preitadas nobres e justificadas como também um dever dos fiéis — composto tanto de idéias abstratas, agregadas para o benefício da Co-roa, quanto de declarações oficiais por parte do pontificado e da mo-narquia espanhola. Após a primeira viagem de Colombo, o papa presidiu a um tratado luso-castelhano que dividiu as Américas, então ainda um território em grande parte imaginário, entre os dois reinos. Assim, os espanhóis tornaram-se os beneficiários de uma concessão divina de terras e povos ainda por descobrir e avistar, que dirá subju-gar — em vista do que as reivindicações de posse poderiam ser vistas como sinônimos da posse em si. Mediante os simples atos de chegar e

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declarar, os espanhóis punham terras inteiras "sob o domínio" de sua Coroa. Tudo o que se seguia, todo o conjunto de atividades de Con- quista e colonização, não passava da consolidação de tal apropriação.8

Por extensão, os povos nativos tornavam-se súditos espanhóis à espera de serem localizados e informados de sua nova situação. Como afirmou a Rainha Isabel em 1501, quando a vasta maioria dos ameri-canos nativos era ainda desconhecida dos europeus, uma vez que esses "índios" eram seus "súditos e vassalos", bastava que fossem encontra-dos para que começassem a "pagar-nos nossos tributos e direitos".9 Esse sentimento, reiterado pela Coroa a Cortés em 1523, a Ponce de León em 1525 e a outros conquistadores em inúmeras ocasiões, cons-tituía o cerne de uma premissa de aquisição legítima, que fazia com que a Conquista já parecesse semiconcluída antes mesmo de começar. Ademais, uma vez que os povos nativos eram "súditos e vassalos" régios antes do fato, sua resistência à conquista caracterizava-os como rebel-des — categoria que, de forma muito conveniente, transformava a re-sistência nativa à invasão na injustificavelmente violenta e ilegal ruptura da pax colonial (paz colonial). As atividades militares espanholas eram então classificadas como campanhas de "pacificação", não de conquis-ta, e os líderes da resistência tornavam-se passíveis de julgamento e execução por traição. Muito depois de a Coroa ter banido a escravização de nativos nas Américas, persistia ainda uma brecha na legislação acer-ca dos "rebeldes", possibilitando que os nativos capturados fossem vendidos como escravos.

Tal padrão pode ser percebido tanto em Yucatán quanto em prati-camente todas as regiões da América espanhola. Tendo fundado uma nova capital colonial em 1542, batizada de Mérida, os espanhóis de Yucatán declararam a Conquista concluída e puseram-se a "pacificar" a península. Uma vez que controlavam apenas uma pequena fração do território, contudo, viram-se envolvidos em acirradas hostilidades mi-litares com um grupo maia após o outro, deparando-se com uma resis-tência particularmente intensa no nordeste, em fins dos anos de 1540. Tratava-se claramente de mais um episódio de uma guerra de Con-

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quista que já se encontrava em sua terceira década; todavia, assim como já haviam declarado a Conquista completa, os espanhóis agora classi-ficaram a resistência como uma rebelião — "a rebelião ocorrida nesta província recém-conquistada", nas palavras de um colono.1° O argu-mento foi usado para justificar a execução de cativos, o uso de de-monstrações de violência (sobretudo o enforcamento de mulheres) e a escravização de dois mil maias da região." Quatro séculos mais tarde, os historiadores ainda se referiam a esse movimento como "A Grande Revolta Maia".'2

có?"0

Ao insistir em que a Conquista fora concluída, mesmo em face do volume de evidências em contrário, os colonos espanhóis legaram a seus descendentes mexicanos uma crise de identidade. Em 1862, Lorde Acton escreveu que a identidade nacional mexicana era ina-tingível. Visto que o México era composto por "raças divididas pelo sangue (...), fluidas, informes, desconexas", não era, "portanto, possível nem uni-las nem convertê-las nos elementos de um Estado organizado"."

O tempo, aparentemente, desmentiu a tese do inglês; sem embar-go, os próprios mexicanos do século XIX eram quase tão pessimistas quanto ele e não conseguiam chegar a um consenso quanto a como interpretar seu passado, com vistas à constituição de uma identidade nacional A posição conservadora era, simplesmente, aplicar o termo "nação" à concepção espanhola da Conquista do século XVI. Assim, 1521 assistira à providencial aurora da civilização no México, com Cortés como pai da pátria e a conquista espiritual simbolizada pela aparição da Virgem de Guadalupe, uma década depois. Já os oponen-tes políticos dos conservadores davam mais ênfase à Virgem de Guadalupe, e menos a Cortés. Com efeito, não eram poucos os libe-rais que demonizavam o conquistador, visto como símbolo da tirania colonial, e endeusavam, como heróis "nacionais", o último imperador

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

asteca, Cuauhtémoc; os primeiros frades, entre eles Las Casas e Mo-tolinía; e ícones da independência, como Hidalgo e Morelos."

A evolução do nacionalismo mexicano, bem como o debate a seu respeito no século XIX, foi, naturalmente, mais complexa. O anticle-ricalismo e a hispanofobia passariam por altos e baixos; uma relação de amor e ódio seria desenvolvida com os Estados Unidos e sua cul-tura; e poucos dos mais famosos (ou infames) personagens do passa-do do país escapariam de críticas e questionamentos durante os séculos XIX e XX. Um elemento, entretanto, permaneceu constante todo esse tempo — elemento que, apesar de ter raízes no século XVI, ain-da mostra extraordinária vitalidade: a premissa de que 1521 assina-lou uma monumental reviravolta na história mexicana, o fim de uma era e início de outra. Tivessem tais premissas sido postas em dúvida, talvez os mexicanos encontrassem soluções para a charada de sua identidade nacional.

Discussões semelhantes acerca da identidade nacional e regional foram travadas em todas as novas repúblicas da América Latina do século XIX. Os debatedores raramente questionavam a exatidão ou as implicações do uso de datas como 1492, 1521, 1535 (fundação de Lima), 1541 (fundação de Santiago do Chile) ou 1542 (fundação de Mérida) como marcos que assinalaram o arremate da Conquista e o início do domínio colonial. Assim fazendo, perpetuaram, por seus próprios motivos políticos e práticos, os pontos de vista dos conquis-tadores e ajudaram a induzir os historiadores modernos a caírem nas mesmas armadilhas."

Uma declaração clássica nesse sentido é o comentário de Prescott de que "a história da Conquista do México foi concluída com a rendi-ção da capital".'6 Embora a frase esteja de acordo com a vasta maioria do que foi escrito sobre a Conquista, desde o século XVI até o presen-te, após a destruição de Tenochtitlán os espanhóis não haviam con-quistado o México; haviam tão-somente desmembrado o Império Asteca. Numa nota anexada à segunda carta de Cortés ao rei, uma autoridade espanhola, a despeito de seu tom otimista, revelava a pre-

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SOB O DOMINIO DO HEI

cariedade da situação em 1522: "Poucos tesouros foram encontrados (...) mas os espanhóis, dos quais se encontram mil e quinhentos ho-mens a pé e quinhentos montados, estão muito bem fortificados na-quela cidade, e contam com mais de cem mil aliados índios no campo"?

Eis aqui os conquistadores, um ano após a suposta conclusão da Conquista, ainda em busca de despojos de guerra, com a necessidade de se entrincheirarem nas ruínas da cidade que haviam destruído e dependentes de um vasto contingente de aliados indígenas. Enquanto isso, a presença hispânica no restante da região coberta pelo Império Asteca era mínima — e seu controle sobre a área mais ampla que viria a ser o México moderno, praticamente nulo. Na verdade, os espa-nhóis sequer haviam posto os pés na maioria dos territórios do que seria a Nova Espanha colonial (aproximadamente a região civilizacional intitulada de Mesoamérica). No início da década de 1520, Cortés apa-rentemente acreditava na asserção de que Michoacán fora subjugada e encontrava-se sob domínio hispânico — muito embora o governo tarascano continuasse intacto e a população nativa considerasse seu império a potência dominante da região." Vinte anos depois, as guer-ras de conquista no norte do México alcançavam ainda uma magnitu-de suficiente para que o vice-rei da Nova Espanha em pessoa comandasse as forças hispânico-nativas em batalha." Portanto, ao mes-mo tempo em que 1521 representou o fim da guerra de dois anos contra o Império Asteca, assinalou também o princípio das guerras de conquista na maior parte do México e Mesoamérica de modo geral, conflitos que adentrariam o século XX.

O inacabamento da subjugação militar do México em 1522 não passa, naturalmente, de uma mera peça do quebra-cabeça. O quadro geral de incompletude é composto por sete dimensões, cada qual cor-respondente a um aspecto do mito da conclusão. A primeira delas é a da rapidez da Conquista em áreas cruciais e subseqüente instalação dos colonos. De par com o tênue domínio do México central pelos espanhóis em 1521, o controle do Peru era quase inexistente em 1532 (não obstante a captura e execução de Atahuallpa) e brando em 1536

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

— depois que o cerco de Cuzco pelos incas foi levantado. O Estado inca independente subsistiu até seu governante, Túpac Amaru, ser exe-cutado pelos hispânicos em 1572 — e, mesmo depois disso, porções significativas dos Andes continuaram fora do controle colonial dire-to.2° Analogamente, por ocasião da fundação de Mérida pelos con-quistadores, em 1542, os maias ainda detinham o controle da vasta maioria da península de Yucatán. Nações maias iucatanas independen-tes ainda existiam em 1880, quando o Bispo Crescencio Carrillo y Ancona asseverou que "o domínio [de Yucatán] foi consolidado com a vitória conquistada na batalha de San Bernabé, em 11 de junho de 1541, contra o exército de Cocom, rei de Sotuta, o único que ainda não prestara obediência".21

A segunda dimensão de incompletude diz respeito ao prolongamen-to da conquista militar dos territórios ditos periféricos ou marginais do que paulatinamente viria a constituir a América espanhola. Acima de tudo, os espanhóis buscavam povoamentos nativos sobre os quais er-guer suas colônias. Fora da Mesoamérica e dos Andes, porém, depara-ram-se com populações esparsas de nativos nômades e semi-sedentários, que não se mostravam receptivos à construção de colônias. Nessas regiões, foram necessárias décadas para que se estabelecessem bastiões — que ainda assim permaneceram instáveis e pobres, atraindo apenas um nú-mero restrito de colonos. Escrevendo em 1701, Juan de Villagutierre Soto-Mayor, autor do relato oficial da subjugação dos maias itzá na dé-cada anterior, admitiu que a expansão espanhola deixara "grandes por-ções" das Américas parcial ou inteiramente indomadas — e reconheceu que as causas eram a intratabilidade de certos nativos e as dificuldades do terreno de determinadas áreas. Mas foi sobretudo porque Deus, ale-gou Villagutierre, reservara parte dos nativos para as gerações posterio-res de espanhóis — e as explicações seculares que ficassem em segundo planol22 Como previu o autor, as fronteiras coloniais do norte da Nova Espanha, Yucatán, Peru e outras regiões apresentariam uma expansão gradual; o processo, no entanto, incluiria contrações periódicas das fron-teiras e atividades militares freqüentes.

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SOB O DOMÍNIO DO REI

Por exemplo, as tentativas iniciais de subjugação e povoamento nas duas extremidades da América espanhola — a Flórida e a bacia do rio da Prata — foram desastrosas. Pelo menos seis expedições à Flórida resultaram no mais retumbante fracasso entre 1513 e a década de 1560, quando finalmente logrou-se instalar ali uma colônia espanhola per-manente. Os primeiros fundadores de Buenos Aires, em fins da década de 1520, acabaram degradados pelo canibalismo; a cidade só teria uma nova fundação, em caráter permanente, nos anos de 1580 — ao passo que uma colônia ibérica duradoura na margem norte do rio da Prata (hoje Uruguai) só surgiria um século mais tarde. O Novo México foi sujeitado na virada do século XVII, sendo contudo perdido pelo Impé-rio Hispânico em 1680, tendo de ser reconquistado na década de 1690. Os sambos-mosquitos fizeram retroceder a fronteira colonial na Nica-rágua durante o século XVII. A subjugação dos tules, do Panamá, no século XVII jamais chegou a se consolidar, sendo então revertida numa revolta nos anos de 1720; foi necessária uma reconquista tardia, iniciada em 1735. Chocó e Petén só chegaram a ser dominadas nas décadas de 1680 e 1690, respectivamente, mas a presença espanhola em Petén

declinou em vez de crescer em princípios do século XVIII."' Examinando-se a América espanhola em sua totalidade, a Con-

quista, como uma série de expedições armadas e iniciativas militares contra os americanos nativos, jamais foi finalizada. Os seminoles da Flórida ainda se batiam com os espanhóis quando a colônia passou para o poder dos Estados Unidos (aos quais também nunca se rende-ram formalmente). Os araucânios do Chile — que lutaram por déca-das e acabaram matando o conquistador negro Juan Valiente —

resistiram à conquista até o século XIX, quando continuaram a com-bater a república chilena em nome da monarquia que outrora desa-fiaram. Os charruas, do Uruguai, só foram por fim subjugados quando o presidente da nova nação organizou seu massacre, na década de 1830.24 Os argentinos também enfrentaram — e terminaram chaci-nando com metralhadoras — povos nativos indomados no século XIX e início do XX. Os guatusos-malekus da América Central foram

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5 TE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

escravizados e eliminados no final do século XIX. A resistência yaqui, no norte do México, também perdurou até o período moderno, ao passo que na extremidade sul do país os maias de Yucatán empurra-ram a fronteira colonial, em 1847, de volta para seus limites do sécu-lo XVI, e uma série de cidades maias permaneceu na região até princípios do século XX.25

O terceiro aspecto do mito da conclusão é o da pax colonial, a paz entre os colonos espanhóis e os nativos — e entre estes — que supos-tamente se teria instaurado após a Conquista. O outro lado da moeda — a dimensão correspondente de incompletude — reside no fato de que a história da América espanhola foi coalhada de revoltas nativas contra o domínio colonial. Conforme observou um proeminente his-toriador, "a era colonial ainda hoje costuma ser imaginada como um tempo de paz", apesar da "aparente violência endêmica".26

Existe um par de possíveis razões para tanto. Uma é o caráter loca-lizado das revoltas coloniais, que as tornou relativamente fáceis de abafar — conferindo-lhes, portanto, aos olhos dos observadores tanto coloniais quanto modernos, um aspecto insignificante quando compa-radas ao tipo de conflitos que assolaram a Europa ao longo desses mesmos séculos e que devastariam grande parte da moderna América Latina. O outro motivo está mais intimamente relacionado ao mito da conclusão. A despeito da histeria que de tempos em tempos dominava os espanhóis com relação a revoltas, reais ou imaginadas, por parte de nativos e escravos africanos, os espanhóis acreditavam que seu impé-rio era o caminho encontrado por Deus para civilizar esses povos nas Américas. O regime colonial era visto, pois, como pacífico e benevo-lente — interpretação baseada na crença da completude da Conquista. Por ironia, embora o entendimento nativo fosse quase o oposto (isto é, que a presença hispânica não passava de uma invasão prolongada à qual se deveria responder com um misto de acomodação e resistên-cia), também contribuiu para a ilusão de que a pax colonial era uma realidade. A facilidade com que as lideranças nativas dispunham-se a firmar acordos, a encontrar alternativas intermediárias entre o con-

fronto aberto e a total capitulação, ajudou a reforçar a impressão de

uma paz colonial. Tal impressão, todavia, ignora a ubiqüidade das formas cotidianas

de resistência — a quarta faceta da incompletude. Os historiadores tendem a procurar revoltas dramáticas e deixam de levar em conta os padrões menos óbvios de resistência, mesmo sendo estes mais pregnantes e, não raro, igualmente violentos?"' A resistência diária manifestava-se de inúmeras maneiras, variando desde atos individuais de violência por parte de nativos contra os espanhóis até manobras tais como a indolência no trabalho, a sabotagem de equipamentos e o roubo. A persistência de regiões indomadas — às quais os espanhóis

com freqüência referiam-se como despoblados (áreas despovoadas) —

e a volatilidade das fronteiras coloniais forneciam aos nativos uma outra opção. Indivíduos, famílias ou comunidades inteiras podiam re-sistir ao domínio espanhol refugiando-se, em caráter temporário ou

permanente, fora do império. A quinta dimensão da incompletude da Conquista foi a proporção

em que os povos nativos mantiveram um certo grau de autonomia dentro do império hispânico. Tal autonomia era em parte permitida e sancionada pelas autoridades espanholas e acalentada pelos líderes nativos por meios ilegais e negociações legítimas. Via de regra, os es-panhóis não procuravam exercer domínio direto sobre os nativos e governar suas terras. Pelo contrário, esperavam preservar as comuni-dades indígenas como fontes autogeridas de mão-de-obra e fornece-doras de produtos agrícolas. Por um lado, essa prática tinha precedentes na história ibero-islâmica, tendo se desenvolvido na invasão da Penín-sula Ibérica pelos muçulmanos no século XVIII e no decorrer dos sé-culos subseqüentes da reconquista;" por outro, foi também uma

resposta prática às realidades hispano-americanas. Os novos colonos não eram fazendeiros, mas artesãos e profissionais dependentes do tra-balho e alimentos proporcionados por povos nativos em ampla supe-

rioridade numérica. Esse sistema colonial func onava melhor onde já havia comuni-

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140

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dades agrárias organizadas e sedentárias — ou seja, cidades-Estado bem alimentadas; foi nessas áreas, basicamente na Mesoamérica e nos Andes, que os espanhóis concentraram seus esforços de conquis-ta e colonização. Mesmo que seja improvável que alguma comunida-de nativa tenha escapado dos estragos causados pelas doenças epidêmicas oriundas do outro lado do Atlântico, as áreas nativas so-freram a violência da conquista direta de uma maneira ou de outra. Durante séculos após a chegada dos espanhóis, a maioria dos nativos sujeitos ao domínio colonial ainda vivia em suas próprias comunida-

des, falando as próprias línguas, arando seus próprios campos e sub-metidos ao julgamento e governo de seus próprios anciãos. Estes escreviam seus próprios idiomas alfabeticamente (ou, nos Andes, aprenderam a escrever em espanhol) e integraram-se ao sistema jurí-dico colonial, em defesa dos interesses de suas comunidades, não só com habilidade como, não raro, com êxito. A cidade nativa, ou co-munidade municipal, continuou sendo chamada de altepell pelos

nauas do México Central, de üttu pelos mistecas, cah pelos maias

iucatanos e ayllu pelos andinos falantes do quíchua.29 Só muito gradualmente a autoridade comunitária foi se erodindo

sob as pressões demográficas e políticas das populações não-nativas. Do ponto de vista nativo, pois, a Conquista não consistiu num evento singular e decisivo, simbolizado por algum incidente ou momento es-pecíficos, como se dera com os espanhóis. Pelo contrário, a invasão e o domínio colonial espanhóis fizeram parte de um processo prolongado e mais amplo de negociação e acomodação. Dessa perspectiva, enquanto

existissem a altepetl e o ayllu, a Conquista jamais poderia ser conside-

rada finalizada. O sexto aspecto da incompletude é o da conquista espiritual Em

meio aos complexos debates do século XVI entre sacerdotes e frades espanhóis com relação à eficácia dos diferentes métodos de conversão e do estado espiritual dos povos nativos, surgiu um mito referente à sua cristianização. Segundo ele, embora os povos nativos continuas-sem supersticiosos e tendessem ao recidivismo, sua conversão se dera,

1 4 2

em essência, nos primórdios da evangelização. Como vanguardas des-se processo, os franciscanos eram os maiores proponentes desse mito; seu ponto de vista perdurou ao longo dos séculos e ganhou um novo alento, no início do século XX, das mãos de Robert Ricard, cujo La

Conquête Spirituelle du Mexique ("A Conquista Espiritual do Méxi-

co") constituiu uma ode muito popular ao êxito das campanhas de

conversão franciscanas.3° Nas Ultimas décadas, os estudiosos vêm pintando um retrato mais

complexo da reação nativa ao cristianismo. Enquanto alguns enten-dem que a religião indígena sobreviveu por trás de um verniz de cris-tandade e outros defendem que as religiões autóctone e européia fundiram-se numa série de variantes regionais do catolicismo exclusi-vas das Américas, as interpretações mais sofisticadas reconhecem que

houve um misto dos dois processos. Com variações que chegavam ao

nível de particularidade dos andinos, chibchas, muiscas, malas e nauas, os nativos absorveram e entenderam o cristianismo e o lugar que ocu-pava em seu mundo de maneiras que mal começamos a apreender."

Os franciscanos e outros frades e clérigos espanhóis esperavam eliminar por completo todo e qualquer vestígio das religiões indíge-nas, varrendo-as da face da terra e instituindo uma nova Igreja, livre de sincretismos pagãos de ambos os lados do Atlântico. Seu sucesso em levar o catolicismo para a América nativa é indubitável; mas, se o objetivo da conquista espiritual era instaurar um cristianismo livre de variações culturais locais, ela só seria concluída no século XVI. Em 1598, o arcebispo de Nova Granada (a Colômbia colonial) la-mentou, numa carta ao rei, o fato de que seis décadas de esforços de cristianização haviam deixado os muiscas nativos mais "idólatras" que nunca» Ninguém acusaria os latino-americanos de idolatria hoje, mas poucos discordariam da constatação de que a conquista espiri-tual, tal como concebida quase cinco séculos atrás, está ainda longe

de terminada. A derradeira faceta da incompletude diz respeito à persistência das

culturas nativas. O que mais preocupava os invasores era a religião,

1 4 3

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uma vez que a cristianização conferia ao império uma racionalização e justificação que transcendiam e, supostamente, disfarçavam a realida-de dos benefícios individuais mundanos almejados na expansão colo-nial. Outros aspectos da cultura indígena eram de importância secundária; não havia empenho no sentido de forçar os nativos a apren-derem espanhol, por exemplo. Pelo contrário, os sacerdotes hispâni-cos eram incentivados e, de tempos em tempos, obrigados a pregar nos idiomas indígenas, ao passo que a Igreja gerou uma extensa litera-tura religiosa nas línguas locais. Ademais, embora a inexistência de uma tradição escrita anterior à conquista nos Andes significasse que os líderes de idioma quíchua e outros governantes andinos aprenderiam a redigir documentos jurídicos em espanhol, as lideranças comunitá-rias mesoamericanas aprenderam a escrever seus próprios idiomas com

o alfabeto europeu." Outro exemplo de persistência da cultura indígena é o do vestuário.

Sempre que as vestimentas típicas era consideradas demasiadamente es-cassas pela Igreja, impunham-se mudanças. As tangas masculinas foram substituídas por calças largas de algodão, por exemplo. Em grande me-dida, no entanto, os trajes nativos passaram incólumes pela Conquista, sofrendo apenas uma transformação gradual ao longo dos séculos. Al-guns dos estilos mais práticos de vestuário indígena foram até mesmo adotados pelos espanhóis, sobretudo no âmbito doméstico. Como ou-tros aspectos da cultura nativa, seus trajes sobreviveram não em alguma forma "pura", mas absorvendo pouco a pouco influências européias e, até certo ponto, influindo na evolução cultural dos colonos.

Afora os aspectos culturais com implicações religiosas, os espanhóis não deram grandes mostras de preocupação com a hispanização dos povos indígenas de maneira geral. Foi somente no século XIX que essas questões tornaram-se uma preocupação central do governo e tema de debates no seio das classes dominantes — o que mais uma vez vem sublinhar o fato de que a conquista cultural (se é que se pode falar em tal coisa) foi de tal modo incompleta que, três séculos após a invasão espanhola, os descendentes dos conquistadores, do México à Argenti-

144

na, ainda debatiam formas de se converterem os "índios" de suas na-ções em verdadeiros cidadãos das repúblicas (isto é, torná-los menos

"índios" e mais europeus)." Desse modo, a Conquista das regiões mais cruciais dos Andes e da

Mesoamérica foi mais prolongada do que asseveraram a princípio e mais tarde vieram a crer os espanhóis; quando os conflitos chegavam efetivamente a um fim nessas áreas, eram tão-somente deslocados para as fronteiras da América espanhola, jamais pacificadas e em perma-nente expansão. No âmbito interno, a violência da Conquista também sofreu uma transposição, assumindo uma miríade de formas de domi-

nação e repressão; nem por isso, entretanto, deixou de enfrentar, em caráter permanente, um conjunto de métodos também diversificado de resistência nativa. As conquistas espiritual e cultural foram igual-mente complexas e prolongadas, desafiando seu resultado a ponto de

o próprio conceito de conclusão tornar-se irrelevante.

c03

Os espanhóis salientavam a idéia de consecução da Conquista por uma questão não só de conveniência política como de conformidade com uma ideologia imperial em desenvolvimento a que se encontravam cada vez mais expostos; também partiam da premissa de que os aconteci-mentos se desenrolavam de um modo que lhes era familiar, no contexto de suas próprias tradições. Insistiram obstinadamente em que a Con-quista fora completada até lhes parecer que estava de fato. E desconhe-ciam o ponto de vista dos indígenas que tornava indistinta a divisão entre conquista e colonização, enxergando ambas como um mesmo e interminável processo de negociação e, paralelamente, julgando detec-

tar formatos e conceitos familiares, por sua vez, aos nativos. O historiador James Lockhart denomina o processo de interação

cultural no México colonial de Identidade Duplamente Equivocada. Segundo sua explicação, "os dois lados do intercâmbio cultural par-tem do princípio de que o funcionamento de determinada forma ou

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conceito ocorre do modo habitual dentro de sua própria tradição, permanecendo alheio ou ignorando a interpretação do outro lado"." O foco de Lockhart é nos nauas do México central, mas como ferra-menta de análise a Identidade Duplamente Equivocada pode ser apli-cada de maneira geral à Conquista e ao período que se seguiu nas colônias hispânicas — sendo relevante especificamente para o mito da conclusão. Os espanhóis estavam convencidos de que os indígenas encontravam-se todos firmemente "sob o domínio do rei". Estes se consideravam tão sujeitos a seus próprios senhores quanto a qualquer longínquo espanhol. Cada qual à sua maneira, estavam ambos corre-tos — e ambos errados.

CAPITULO 5 As palavras perdidas de La Malinche O mito da (falha na) comunicação

1 4 6

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"Quando o frade alcançou fAtahuallpab disse-lhe (...) ser um

sacerdote de Deus que pregava Sua lei e buscava, sempre que

possível, a paz em vez da guerra, porque disso Deus muito se

agradava. Enquanto falava, segurava seu breviário nas mãos.

Atahuallpa escutou com um certo ar de escárnio. Por intermédio

do intérprete, compreendeu tudo bem."

Pedro de Cieza de León (1550)

"Senhor, pelo que posso depreender, eles não são contrários nem

se comportam mal de propósito, mas porque não conseguem

compreendê-lo, o que se empenham avidamente por fazer."

Governante calusa na Flórida, para

Hernando de Escalante Fontaneda (1575)

"Estavam todos tateando no escuro, por não perceberem o que

diziam os índios."

Frei Bartoloine de Las Casas (1559)

"Era absurdo, canhestro, o pesadelo de qualquer tradutor, um

labirinto epistemológico que podemos apenas imaginar quando nos

damos conta de que, a cada vez que Cortés dizia isto ou Montezuma,

aquilo, suas palavras tinham de percorrer essa cadeia trilingüe de

vozes."

Anna Lanyon (1999)

1 4 9

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Na manhã de 8 de novembro de 1519, na estrada que cruzava o lago Texcoco, no Vale do México, ocorreu um encontro único na história mundial. Montezuma e Cortés viram-se frente a frente.

Há séculos este evento é considerado simbólico do grande encon-tro de continentes que atravessava, então, sua terceira década — e com bons motivos. Pela primeira vez, um imperador americano nativo saudava um representante dos europeus que vieram conquistar e colo-nizar suas terras. A ocasião foi amistosa, com ambos os lados ansiosos por exibir um inabalável compromisso com a diplomacia. Sem embar-go, o choque de culturas ficou também imediatamente evidente. Ern questão de meses os dois lados estariam encalacrados numa guerra sangrenta, que provocaria a morte de Montezuma e sua sucessão por Cortés no posto de homem mais poderoso do México central.

A princípio, Montezuma encontrava-se elevado numa liteira e Cortés, montado a cavalo — tal como retratado na estilizadíssima pin-tura de Juan Correa (ver Figura 9). Quando o monarca asteca saltou

ao chão e caminhou com seu séquito ao encontro dos espanhóis, Cortés desmontou também e aproximou-se.

A essa altura há algumas divergências entre os relatos, mas a tensão é tangível em todas as versões. Segundo Bernal Díaz, "Cortés, creio, ofereceu a Montezuma a mão direita, mas este a recusou e estendeu-lhe a sua". Gomara atenua o momento constrangedor declarando sim-plesmente que "os dois homens se cumprimentaram". O próprio Cortés

não faz menção a mão nenhuma, mas confessa que se adiantou-se "para abraçar [Montezuma], mas os dois nobres que o ladeavam bloquea-ram-me o caminho, de modo que eu não o tocasse". Díaz e Gómara também se referem ao abraço abortado (que teria constituído, no en-tender dos astecas, "uma indignidade", segundo o primeiro, e um "pe-cado", de acordo com o segundo), ainda que em ordem diferente com relação ao aperto de mãos malogrado e a uma troca de colares. Díaz declara ainda que os dois líderes "fizeram uma profunda reverência" um para o outro, mas Gomara e Cortés omitem esse detalhe.' Uma ilustração que faz parte de diversas publicações européias do período

1 5 O

colonial (a Figura 10 é um exemplo) procura retratar a versão do en-

contro narrada por Gómara e Díaz. São dignas de nota duas outras versões do século XVI — os textos

náuatle e espanhol do Códice Florentino de Sahagún. Não há neles

tentativas de abraços nem de apertos de mão, e a oferta de colares por Montezuma a Cortés não é correspondida pelo espanhol. Tampouco a mesura é recíproca; no texto náuatle, o imperador asteca "inclinou-se profundamente diante de" Cortés, "ao que este permaneceu ereto, com

seus rostos defrontados (...) retesou-se o mais que pôde, rigidamente". Sendo proibido encarar o rosto do imperador, o redator sugere que foi Montezuma quem tomou a iniciativa de romper o tabu, permitindo que Cortés o fitasse, na tentativa de chegar a um meio-termo cultural. Sua contraparte espanhola dá a mesma impressão, mas de modo a pôr Montezuma numa posição de subordinação, transformando sua me-sura gentil numa vênia submissa: "Ele então se prostrou diante do ca-pitão, manifestando-lhe imensa deferência, e pôs-se de pé face a face e

muito próximo deste".2 Esses poucos minutos e escassos gestos trazem à tona boa parte da

temática da comunicação e das falhas na comunicação que são o assunto deste capítulo. Por um lado, temos a comunicação: os dois líderes lo-gram transmitir ao outro ao mesmo tempo sua posição de autoridade e seu desejo de que o encontro fosse pacífico e imbuído de respeito mú-tuo. Por outro lado, as falhas na comunicação se manifestam à medida que ambos se empenham por encontrar um terreno comum entre duas culturas muito diversas com relação ao tratamento senhoril. E, como se não bastasse a confusão do gestual, os pendores e intenções dos autores de pelo menos cinco diferentes relatos do evento vêm se somar à alga-zarra, cada qual chegando ao seu próprio equilíbrio entre a valorização na realeza das diplomáticas boas-vindas de Montezuma e a sugestão de

que a acolhida já continha os germes da rendição. A cena se complica ainda mais quando se leva em conta o que foi

dito. Nas narrativas do Códice Florentino, Cortés indaga se o nobre

que lhe coloca colares ao redor do pescoço é de fato o imperador, ao

1 5 1

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

que a resposta é yo soy Motecuçoma (na versão espanhola, "Sou Montezuma") ou ca quemaca ca nehoatl (no texto náuatle, "Sim, sou eu"). Montezuma faz então um discurso esplêndido, ao qual Cortés replica de maneira lacônica, com novas garantias de amizade. Nos re-latos de Gómara, Díaz e Cortés, os líderes não trocam mais que breves saudações, sendo o cumprimento do imperador repetido então pelos principais nobres astecas. O grande discurso de Montezuma e a res-posta de Cortés só são proferidos depois de os espanhóis serem con-duzidos às suas acomodações em Tenochtitlán para que comam e repousem um pouco.

Como se dá todo esse diálogo? Díaz faz uma Unica referência, du-rante todo o episódio, ao fato de que Cortés "falava por intermédio de Dona Marina", e Gómara faz o comentário de que Montezuma fez seu discurso "por meio de Marina e Aguilar" (os intérpretes de Cortés). Mas Cortés não faz qualquer menção a intérpretes, como se ele e o imperador asteca falassem o mesmo idioma — à semelhança dos anti-gos filmes hollywoodianos, em que os diversos idiomas são reduzidos ao inglês falado com diferentes sotaques.' O Códice Florentino é mais claro, contando que, após o discurso de Montezuma para Cortés, "Marina [Malintzin] transmitiu-lho, interpretando-o para ele. Tendo tomado conhecimento do que dissera Moteucçoma [Montezuma], Marqués [Cortés] balbuciou a Marina em resposta, respondendo em sua linguagem hesitante" (da versão náuatle). Para ilustrar o processo, um dos desenhos que acompanhavam o texto do Códice mostra uma nativa entre um grupo de espanhóis e outro de astecas, encabeçado pelo imperador (ver Figura 9).4

Quem era essa falante nativa do náuatle, que conhecia também os "balbucios" espanhóis? Por que era chamada de "Dona Marina", de-nominação de uma nobre espanhola? Dona Marina era Malinche, ou La Malinche, nobre naua da divisa oriental do México Central, de idioma náuatle. Em criança, ou fora raptada por traficantes de escra-vos ou vendida como escrava e terminara entre os maias chontal, pe-queno reino situado pouco mais a leste, no litoral do Golfo.' Em 1519,

A P IIPL3 r-cnn

foi presenteada a Cortés e seus companheiros pelos chontal, junto com outras 19 nativas, como parte de um acordo de paz, um incentivo para que os hispânicos continuassem viajando para oeste. Ainda adolescen-te, foi batizada Marina e entregue a um dos capitães da expedição,

Alonso Hernández de Puertocarrero. Um mês depois, Cortés já a tomara de volta. Descobriu-se sua ca-

pacidade de comunicar-se com os "índios" cujo território os espanhóis atravessavam na ocasião, ao passo que seu idioma, o náuatle, era des-conhecido de Gerónimo de Aguilar — o espanhol falante do maia que naufragara no litoral de Yucatán em 1511, tendo sido resgatado por Cortés no começo de 1519 e trabalhado, desde então, como intérprete da expedição. Ao cabo de apenas algumas semanas como serva de Puertocarrero e talvez sua amante involuntária, Marina possuía pouco ou nenhum conhecimento do espanhol. Assim como Aguilar, porém, aprendera iucatano durante sua escravidão entre os maias, de modo que Cortés podia agora comunicar-se com os senhores de idioma náuatle

e os emissários astecas por meio do maia de Aguilar e Marina. Marina, ao que tudo indica, soube tirar vantagem das circunstân-

cias, aproveitando a oportunidade de melhorar sua infausta situação e convertendo-se num membro inestimável da expedição. Não tardou a aprender espanhol, tornando Aguilar supérfluo como intérprete pro-vavelmente antes do que Gómara admite. Cortés pouco crédito lhe atribuiu, citando-a em suas cartas ao rei apenas duas vezes: em 1520, como "minha intérprete, uma índia", e em 1526, como "Marina, que sempre viajava em minha companhia depois de me ter sido dada de

presente". Díaz foi mais meticuloso ao registrar seu título de "Dofia",

em reconhecimento não só de suas origens indígenas nobres como do respeito que lhe angariaram entre os espanhóis sua lealdade, tenacida- de e inteligência — que Díaz afirmava haver salvo a expedição em várias ocasiões. Tanto astecas quanto outros nauas também reconhe-

ciam seu status, agregando ao seu nome o sufixo honorífico náuatle –

tzin, que convertia "Marina" em Ma/intzin, ouvido pelos espanhóis

como "Malinche".

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AS PALAVRAS PERDIDAS DE LA MALI

SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

Os nauas logo alcunharam o próprio Cortés com o nome "Ma-linche", como se capitão e intérprete fossem um só. Com efeito, Cortés

nunca parece perder Malinche de vista, de acordo com Díaz e a julgar por ilustrações contemporâneas (as Figuras 9 e 1 1 são exemplos). Parece igualmente provável que ela não tenha sido forçada a ser sua amante durante a marcha a Tenochtitlán e o subseqüente conflito hispano-asteca; era demasiado valiosa para Cortés para que este corresse o risco de engravidá-la. Significativamente, ela deu à luz um filho seu dez meses após a queda de Tenochtitlán, indicando que seu relaciona-mento adquiriu uma dimensão sexual assim que seu papel de intérpre-

te deixou de ser crucial para o êxito hispânico. Será que Malinche conquistou o respeito de Cortés, assim como o

de Bernal Díaz? Talvez, visto que seu filho foi batizado de Martín, o nome do próprio pai de Cortés, que providenciou sua legitimação e parecia protegê-lo. Durante o restante de sua curta vida (ela faleceu em 1527 ou 1528, ainda na casa dos 20 anos), Cortés nunca parecia deixá-la de lado. Malinche instalou-se na casa do conquistador, na nova Cidade do México, ainda que com outras mulheres — inclusive, por um breve período de tempo, a esposa espanhola e três das filhas de Montezuma, uma das quais também teve um filho de Cortés. Em 1524, ele a levou consigo numa expedição a Honduras, arranjando no cami-

nho seu matrimônio com um espanhol de status relativamente alto e

seu colaborador próximo, Juan de Jaramillo, enriquecendo as núpcias

com o dote de uma encomienda que ofereceu ao casa1.6

Malinche foi um presente dos céus para Cortés, já que este neces-sitava com urgência de se comunicar com as lideranças nativas. O siste-ma de comunicação proporcionado por Malinche e Aguilar era imperfeito, porém; encarnava o mesmo paradoxo da comunicação e simultâneas falhas na comunicação ilustrado pelos gestos feitos por Cortés e Montezuma em seu primeiro encontro. Durante boa parte da longa jornada do litoral ao Vale do México, espanhóis e indígenas to-maram parte de uma variante da brincadeira infantil de "telefone sem fio": para travar um diálogo simples, Cortés dirigia-se em espanhol a

Aguilar, que traduzia para o maia iucatano, que Malinche por sua vez traduzia então para o náuatle, repetindo-se em seguida o processo in-verso. MCSITIO depois de Malinche haver aprendido o espanhol, quan-to não deve ter se perdido na tradução, nas leituras do significado de

suas palavras e em tentativas improvisadas de transpor a barreira cul-tural) Quais foram, de fato, suas palavras reais? Naturalmente, estas estão perdidas para nós, enterradas que foram nos artifícios de inter-pretação adotados nos relatos hispânicos e nauas da Conquista, ocul-

tos nos pictogramas que lhe saem da boca nas ilustrações do Códice

Florentino. O mito deste capítulo é, portanto, o mito paradoxal da comunica-

ção/falha na comunicação. Historicamente, o mito da comunicação foi construído pelos conquistadores e predominou durante a época da Conquista e os tempos coloniais. O mito era conveniente para os espa-nhóis na medida em que a asseveração da comunicação com os povos nativos sustentava as afirmações de que estes haviam sido subjugados, cooptados e convertidos. O questionamento desse mito pelos estudio-sos modernos também tem raízes no século XVI, sobretudo nos escri-tos do frade dominicano Bartolomé de Las Casas; no entanto, acabou de tal forma banalizado nas últimas décadas que veio a constituir seu próprio contramito. Talvez a mais bem conhecida articulação do mito moderno da (falha na) comunicação seja a de Tzvetan Todorov. O es-pecialista em semiótica compara Cortés, como aplicado leitor de sig-nos e informações, a Colombo, que não manifestava o menor interesse em comunicar-se com os caribenhos nativos, e aos astecas, cujo fracas-

so na leitura de signos foi sua ruína — a conquista pela (falha na)

comunicação. Em outras palavras, os invasores mostram-se ou desin- teressados na comunicação ou tão habilidosos nessa atividade que sua

perícia conduz à derrota nativa.' Os temas da comunicação e seus problemas têm sido mal aplica-

dos, pois, como explicações da Conquista. Tal utilização os transfor-mou em mitos, nenhum dos quais fornece uma explicação adequada para os resultadonla Conquista. No restante deste capítulo, veremos

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

em detalhes como os conquistadores engendraram o mito da comuni-cação, examinaremos os argumentos do contramito da falha na comu-nicação e, por fim, vamos analisar diversos momentos da Conquista para indicar de que forma um meio-termo entre os dois extremos nos possibilita compreender melhor como espanhóis e indígenas leram as

intenções uns dos outros.

esCo

As palavras perdidas de Malinche não se encontram apenas nas entre-

linhas dos textos do século XVI ou nos pictogramas do Códice

Fiorentino. Um viajante que esteve na Cidade do México na década de

1990 conta que o fantasma de Malinche ainda percorre os corredores da casa onde ela viveu outrora. Localizada numa rua hoje denominada República de Cuba, a casa tornou-se uma escola, e algumas das crian-ças garantem ter ouvido Malinche "chorando ao caminhar pela varan-da e pelas salas", conforme revelou uma menininha ao visitante.'

A velha casa na República de Cuba, porém, não é o único local na Cidade do México, ou mesmo no México, onde ainda se ouve o fan-

tasma de Malinche. Seu espírito, ao que parecem, em algum momento do passado mesclou-se a uma lenda asteca anterior à Conquista, que

nos tempos coloniais ficou conhecida como La Llorona (A mulher que

chora).9 Diz a lenda que Malinche/La Llorona lamenta os filhos, mas

suas palavras não são registradas. Como as da Malinche de carne e

osso, estão perdidas para nós. A própria Malinche teria sido completamente perdida para a his-

tória não fossem por suas palavras; sua identidade histórica é baseada naquilo que ela disse. Todavia, porque ela falava as palavras alheias (como intérprete que era), ao mesmo tempo é uma figura imersa num estranho silêncio. Dessa forma, ela pôde personificar muitas coisas para muita gente: um símbolo de traição; uma sereia sexual e oportunista; um ícone feminista; uma deusa asteca disfarçada; a mãe do primeiro

mestizo, e, por conseguinte, da nação mexicana; o epítome das vítimas

AS PALAVRAS PER

de estupro da Conquista. Quase todos esses elementos são muito reveladores da história mexicana moderna — mas não da Conquista em si, sobretudo em se considerando que a maioria dessas interpreta-ções, inclusive todas as negativas, datam dos primórdios da indepen-

dência do país, no princípio do século XIX.'" No século XVI, Malinche não era retratada como vítima nem imo-

ral, mas sim poderosa. Na cerca de meia dúzia de ilustrações constan-

tes no Códice Fiorentino em que ela figura, aparece sempre com o

penteado e as roupas de uma nobre, e seu nome é sempre Malintzin, com o sufixo reverencial (honraria também concedida a Cuauhtémoc, mas nem sempre a Montezuma)." Bernal Díaz teceu-lhe os maiores

elogios: "Apesar de nativa", escreveu, Dona Marina "exibia uma bra-vura viril (...) [e] não demonstrava nenhuma fraqueza, mas uma cora-

gem maior que a da mulher em geral".12 Não obstante, os embriões de uma visão mais pejorativa de

Malinche podem ser encontrados já no início do século XVI, sobre-tudo no fato de Cortés não explicitar seu papel em suas cartas ao rei. Essa aparente contradição — Malinche ao mesmo tempo ignorada e respeitada — pode ser mais bem entendida, primeiro, no contexto da atitude mais comum dos conquistadores com relação aos intér-pretes, e, em segundo lugar, pelo modo como tal atitude engendrou

um mito de comunicação. Por um lado, sendo indígenas, os intérpretes não eram dignos de

confiança. "Achamos que o intérprete estava nos enganando", comen-tou um espanhol, "pois era nativo de sua ilha e cidade"." Gómara nutria profundo desprezo por Melchor, o maia capturado por Hernández de Córdoba em 1517 e que, como "pescador" indígena, era "rude" e "não sabia falar nem responder". No fim das contas, na opinião de Gomara, apenas Malinche e Aguilar eram "intérpretes confiáveis"." Sendo nativos, os intérpretes estavam também fadados a ficar em segundo plano nos relatos hispânicos da Conquista — isso quando chegavam a ser citados. A tendência a ignorar ou menosprezar a participação dos intérpretes é, portanto, um corolário dos mitos dis-

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

cutidos nos Capítulos 3 e 4, segundo os quais os espanhóis levaram a Conquista a cabo rapidamente e por conta própria." As narrativas hispânicas com freqüência dão a impressão de que os invasores fala-vam diretamente aos governantes nativos. Cortés, Gómara e Díaz vez por outra inserem uma observação do tipo "por intermédio dos nos-sos intérpretes", mas tal detalhe em geral é omitido. Por ocasião do primeiro encontro de Cortés com Montezuma, por exemplo, Cortés

conta ao rei que o monarca asteca "falou-me nos seguintes termos", relata o discurso como que ipsis verbis e em seguida completa: "Res-pondi a tudo o que ele disse". Todas as referências a intérpretes ou à barreira lingüística são omitidas."

Os espanhóis acreditavam em algum nível que nenhuma barreira idiomática os separava dos americanos nativos — crença subjacente ao édito de 1513 que determinava que os conquistadores lessem uma declaração (em espanhol) para os indígenas antes de atacá-los." O documento, conhecido como Requerimiento (Requisição), cientificava os nativos de uma espécie de cadeia de comando que partia de Deus, passava pelo papa e pelo rei até chegar aos conquistadores, de sorte que estes nada mais faziam que levar a efeito a doação, sancionada pela divindade, de todos os territórios e povos americanos pelo papa

ao monarca hispânico. Demandava-se então que os líderes indígenas reconhecessem as autoridades pontifícia e régia (isto é, que se ren-dessem sem opor resistência); caso o fizessem, o líder da expedição lhes diria:

Sua Majestade e eu, em seu nome, recebemo-vos (...) e deixaremos

livres vossas mulheres e crianças, sem lhes impor servidão, de maneira

que façais com elas e convosco como bem entenderdes (...) e não vos obrigaremos a vos tornardes cristãos. Mas, se assim não procederdes,

(...) com o auxílio de Deus investirei à força contra vós, e vos farei a guerra por toda a parte e por todos os meios que me estiverem ao

alcance; submeter-vos-ei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Ma-

jestade, tomarei suas mulheres e crianças e as escravizarei (...); toma-

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AS PALAVRAS PERDIDAS DE LA MALINCHE

rei seus bens e vos farei todo o mal e causarei todos os danos que um

suserano pode promover contra vassalos que não o obedecem ou aco-

lhem. Declaro solenemente que as mortes e danos infligidos por conta

de tais determinações serão culpa vossa e não de Sua Majestade, nem

minha, nem dos cavalheiros que me acompanham."

O texto não faz nenhuma menção a intérpretes, nem a uma eventual

tradução da Requisição para os idiomas nativos. O documento é ob-viamente contraditório; o comentário de Las Casas de que as pessoas não sabiam se "riam ou choravam perante tamanho absurdo" é obje-to freqüente de citações." A Requisição simboliza a confiança dos espanhóis em sua capacidade de se comunicarem com os nativos — ao menos até onde consideravam necessário. Por outro lado, tam-bém admitiam que vez por outra surgiam barreiras lingüísticas que

precisavam ser superadas Com a mesma freqüência com que eram ignorados, os intérpretes eram também valorizados e reconhecidos como eficazes e necessários. De acordo com o médico presente na primeira expedição de Colombo, o Almirante levou sete tainos con-sigo para a Espanha e usou os dois sobreviventes como intérpretes em sua segunda viagem.2° Caso se mostrassem capazes de desenvol-ver rapidamente as habilidades necessárias, sobreviver à exposição às enfermidades do Velho Mundo e escapar com vida das guerras de Conquista, os intérpretes tenderiam a conquistar também o tipo de

status na sociedade colonial em geral negado a todos que não fossem os mais privilegiados membros da nobreza nativa. Por ironia, era jus-tamente o etnocentrismo espanhol que despertava, em parte, a admira-ção pelos intérpretes indígenas. Os europeus tendiam a surpreender-se quando americanos nativos mostravam-se capazes de aprender lín- guas européias; quando um "índio" tornava-se plenamente bilíngüe, então, era uma façanha extraordinária.2' Assim como Bernal Díaz elogiou Malinche ao dizer que ela se portava como um homem, do mesmo modo os intérpretes em geral angariavam o respeito dos in-

vasores por agirem como espanhóis.

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

A transformação do status de Malinche e a imagem reverente que dela se projetou em tantas fontes hispânicas e nativas nas décadas subseqüentes, apesar de significativas, não fazem dela (por ser mulher e ter morrido cedo) o melhor exemplo da consideração de longo pra-zo conferida aos intérpretes indígenas. Podemos encontrar exemplos

mais completos nos Andes e em Yucatán. Em 1528, Pizarro adquiriu um par de garotos indígenas no litoral

norte do Peru. Levados para a Espanha em 1529, aprenderam espa-nhol e foram trazidos de volta para a expedição de Conquista de 1531, atuando como intérpretes em Cajamarca em 1532, quando Atahuallpa foi capturado. Como Malinche no México, ambos tornaram-se co-nhecidos — e até famosos — entre espanhóis e nativos. Batizados, no diminutivo, de Felipillo e Martinillo, o último conseguiria mais tarde intitular-se Dom Martín Pizarro. O nome impressionante refletia em

parte o status de nobre nativo de Dom Martín, mas também seu valor para os espanhóis e o papel crucial que desempenhara em Cajamarca. Foi-lhe concedida uma cota do espólio de Cajamarca (muito embora Pizarro o tenha ludibriado em sua contabilização) e, mais tarde, uma

encomienda. Viveu em Lima por muitos anos, adquirindo não só o

prestigioso título de Intérprete Geral como uma segunda encomienda

— até que se envolveu na revolta de Gonzalo Pizarro. Viajou a Sevilha para apelar da sentença e lá, pouco depois, faleceu, por volta de 1550. Em 1567, sua filha meio espanhola, Dona Francisca Pizarro, encon-trava-se na corte, em Madri, solicitando ao rei uma pensão, como fize-ram tantos dos descendentes dos conquistadores.22

O outro exemplo é o de Gaspar Antonio Chi, nobre maia que,

como o andino Dom Martín, descobriu no bilingüismo a chave para a ascensão na sociedade colonial da era da Conquista. Os espanhóis in-vadiram Yucatán quando Chi era criança e, em sua adolescência, foi levado para ser criado e educado pelos franciscanos em Mérida, capi-tal da colônia de Yucatán. Ali, chegou a Intérprete Geral. A carreira de Chi foi, sob vários aspectos, extraordinária (prolongando-se até a sua morte, aos 80 anos, em 1610), mas também apresentou uma notável

AS PALAVRAS PERDIDAS DE LA MALINCHE

semelhança com a de Dom Martín Pizarro e outros proeminentes in-térpretes nativos na época da Conquista. Eram homens que interliga-vam os mundos nativo e hispânico. Chi atuou como intérprete junto aos dois primeiros bispos da colônia e a diversos de seus governado-res, além de ocupar destacados cargos políticos nas comunidades maias, tal como o de governante municipal.23 Ao que parece, foi um homem de extraordinários talentos; não obstante, nada havia de excepcional no fato de os espanhóis buscarem e prepararem intérpretes indígenas

e, até certo ponto, admiti-los na sociedade colonial.

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Num de seus muitos encontros com os nativos das ilhas caribenhas, Colombo viu-se com alguns de seus homens num bote, preparando-se para desembarcar na margem de um rio, onde um grupo de habitantes os aguardava. Conforme o relato do próprio Colombo, tal como pos-

teriormente resumido por Las Casas:

Um dos índios entrou no rio, aproximando-se da proa do barco, e fez

um longo discurso, que o Almirante não pôde compreender. Obser-vando, no entanto, que os outros índios de tempos em tempos er-guiam as mãos para o céu e emitiam um sonoro grito, o Almirante

depreendeu que lhe estavam assegurando que sua chegada era bem-vinda — mas viu o rosto do índio que levara consigo, e que conhece a

língua, mudar de cor, ficar amarelo como cera e tremer febrilmente ao indicar-lhe, por gestos, que o Almirante deveria deixar o rio porque

queriam matá-lo."

Momentos assim ilustram a "tosca pantomima" a que europeus e nati-vos não raro viam-se reduzidos na América pela barreira do idioma.25 Os problemas de comunicação eram recorrentes, mas exemplos como o acima acabaram fomentando o mito (da falha) na comunicação, ori-ginado não diretamente das experiências e diários de Colombo, mas

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pela via indireta, através dos comentários de Las Casas. O dominicano costuma mostrar-se sarcástico acerca do modo como Colombo tratava os indígenas caribenhos, bem como de sua "ignorância" e incapacida-de de compreendê-los." Os comentaristas modernos retomaram o tema, expandindo-o consideravelmente.

No entender de Todorov, "Colombo não tem êxito em suas co-municações humanas por não estar interessado nelas". Margarita Zamora, estudiosa da literatura espanhola, usa o termo "afasia" — literalmente, a perda da capacidade de compreender em virtude de danos cerebrais — para descrever a dificuldade do navegador. Não que ela queira dizer que Colombo sofria de uma "deficiência pessoal", mas que ele foi prejudicado pela "inerente incapacidade dos discur-sos à sua disposição" de ajudá-lo a decifrar aquilo que via e ouvia. Outro proeminente especialista em literatura, Stephen Greenblatt, concede ao genovês mais crédito em termos de comunicação que Todorov e Zamora, mas ainda assim observa que Colombo tendia a ver o que queria ver, a optar por uma leitura familiar de tudo que lhe era novo — fazendo de suas narrativas, portanto, "uma representa-ção fantasmática de uma certeza autorizada em face da mais espeta-cular ignorância"."

Na discussão da Conquista do México por Todorov, Cortés torna-se o grande comunicador, em contraste com Montezuma e os astecas, cuja incapacidade de compreender signos humanos condena-os à ruí-na. A historiadora Inga Clendinnen alega que os problemas de comu-nicação grassaram em todos os sentidos durante a Conquista do México, explicando não tanto a derrota nativa, mas sim a deterioração das re-lações hispano-astecas numa guerra brutal e destrutiva." J.H. Elliott, num estudo clássico escrito mais de trinta anos atrás, enumerou as dificuldades enfrentadas pelos europeus do século XVI para entender as Américas e efetuar os ajustes correspondentes em sua própria visão de mundo. Esse autor encontrou inúmeros exemplos do esforço dos europeus para descrever e compreender a América nativa. "Tudo é muito diferente", escreveu o Frei Tomás de Mercado, por exemplo. E

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Juan de Betanzos, na dedicatória de sua História dos Incas, de 1551, observou

como é diverso o modo como os conquistadores falavam sobre isso, e como estavam alienados dos costumes índios. Creio ser isso devido ao fato de não estarem, então, tão preocupados em entender o que se passava quanto em subjugar e apoderar-se da terra. E também porque, não tendo experiência com os índios, não sabiam como fazer pergun-tas e entender as coisas, pois faltava-lhes o conhecimento do idioma; ao passo que os índios, de sua parte, estavam demasiado assustados para lhes explicarem tudo em detalhes."

Este, em síntese, parece ser o antídoto anedótico para o mito da comu-nicação: os testemunhos coloniais das falhas na comunicação deriva-das da ignorância dos espanhóis, de sua preocupação com a conquista e do conseqüente pânico dos indígenas. Por que, então, seria o mito da (falha na) comunicação um mito, e não simplesmente uma análise que corrige o mito da comunicação engendrado pelos conquistadores?

c.‘?3

A observação de Betanzos de que os espanhóis a princípio estavam mais interessados em subjugar os nativos que em "entender o que se passava" é muito perspicaz. O problema está no uso, pelos estudiosos modernos, de comentários desse tipo para explicar a Conquista. O argumento de Todorov de que a derrota asteca deveu-se à sua falta de habilidade para a "comunicação inter-humana" é defendido em ter-mos mais duros pelo escritor francês Le Clézio, que descreve Cortés efetuando a conquista menos com a espada que com as palavras — com "sua arma mais formidável e eficaz: o discurso" e com "seu mais intimidante instrumento de dominação: o discurso"." Tal interpreta-ção abrange uma série de facetas — das quais a mais vaga diz respeito aos signos e ao discurso como parte de um processo mais amplo de

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comunicação; outra, mais específica, está relacionada aos intérpretes, a partir de indícios do papel desempenhado pelos nativos bilíngües e "da importância da linguagem como ferramenta de conquista" (nas palavras de um dos editores do relato de Bernal Díaz)."

A dimensão mais específica do argumento diz respeito à escrita. "Há uma 'tecnologia' do simbolismo", entende Todorov, "tão capaz de evolução quanto a das ferramentas; desse ponto de vista, os espa-nhóis são mais 'avançados' que os astecas (ou, para generalizar: as

sociedades detentoras de uma forma de escrita são mais avançadas que as que não possuem nenhuma), ainda que estejamos aqui preocupados apenas com uma diferença de grau". Apesar do emprego das aspas, a

posição de Todorov é clara (os espanhóis conquistaram por serem mais avançados) e teria sido apreciada e compreendida tanto pelos conquis-

tadores quanto por Prescott e seus contemporâneos oitocentistas.

Greenblatt também faz referência a essa passagem, dando uma respos-ta vigorosa que vale a pena transcrever: "Não me parece haver nenhum indício convincente de que a escrita tenha funcionado, no encontro inicial entre europeus e os povos do Novo Mundo, como uma fer-ramenta superior para a concepção correta ou manipulação eficaz do

outro"." O livro Armas, germes e aço* , de Jared Diamond, também defende

a escrita como a marca da superioridade européia, especificamente em sua descrição do encontro inicial entre Pizarro e Atahuallpa em 1532, na praça central da cidade inca de Cajamarca, no norte do Peru. Pizarro dispunha de menos de 200 homens, armados todos pesadamente. Atahuallpa contava com uma comitiva de cinco mil membros, a maio-ria dos quais desarmada e, os restantes, munidos de armas leves (seu exército aguardava na planície próxima dali). O primeiro espanhol a

aproximar-se do imperador não foi Pizarro, mas um frade dominicano, portando uma cruz e uma Bíblia ou missal. Em questão de minutos o

I *Publicado no Brasil pela Editora Record. (N. da T)

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livro estava no chão, e logo depois Atahuallpa foi arrancado de sua liteira e feito prisioneiro, enquanto os espanhóis abatiam milhares de seus servos, matando cerca de um terço de seu séqüito. A tese de Dia-mond é que a escrita explica a natureza e o resultado do encontro entre o capitão espanhol e o imperador inca. "A Espanha a dominava, ao passo que o império inca, não." A escrita transmitiu as informações que levaram os espanhóis para o Peru, em primeiro lugar; em seguida, conferiu aos invasores uma vantagem cognitiva sobre Atahuallpa — cujo acesso a "dados insuficientes" induziu-o, assim, a cometer "erros de cálculo ingênuos" e "fatais"."

Essa hipótese envolve uma série de problemas. Antes de mais nada, não há qualquer indício de que Pizarro e seus companheiros estives-sem mais bem informados sobre o Império Inca e a cultura andina que Atahuallpa a respeito dos hispânicos; tanto um quanto o outro haviam enviado espiões e interrogado nativos do norte dos Andes antes do encontro Em segundo lugar, é extremamente discutível que a escrita constituísse um sistema de transmissão de dados melhor que as técni-cas orais e os quipos (conjuntos complexos de cordões de cores varia-das e cobertos de nós, amarrados em bastões) desenvolvidos pelos andinos ao longo dos séculos. E, mesmo considerando-se que a escrita fosse ligeiramente mais eficiente, dentro das circunstâncias específicas da invasão de Pizarro, sua possível vantagem dificilmente explica o resultado da Conquista do Peru como um todo. Terceiro, a afirmação de Diamond de que "a escrita legou aos espanhóis um imenso cabedal de conhecimentos acerca da história e do comportamento humanos" — negado aos andinos — constitui uma generalização muito proble-mática, explicada melhor pelos fatores geográficos expostos por Diamond em outro momento de seu livro.34

Em quarto lugar, uma vez que não fica claro o quanto Atahuallpa sabia a respeito da expedição de Pizarro, poderíamos aceitar a premis-sa de Diamond, mas ainda assim não é evidente que diferença faria. Os espanhóis, supostamente mais bem informados, seguiram os padrões previsíveis da Conquista — que, durante o encontro inicial, incluíam o

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uso de medidas legalistas para validar seus atos (a leitura da Requisi-ção), de manifestações de violência (o massacre de servos desarmados) e a captura do governante local. Imediatamente após o encontro, as técnicas hispânicas compreendiam a dependência de intérpretes nati-vos, o uso de aliados indígenas e a prioridade à aquisição de metais

preciosos. Não parece razoável julgar Atahuallpa ingênuo por não pro-curar matar todos os espanhóis antes que pudessem se aproximar, e não é realista supor que qualquer volume de informações pudesse ins-pirar decisão tão brutal e draconiana. É duvidoso que conhecimentos sobre o Império Asteca e seu colapso impediriam o governante inca de entrar em contato — em vez de simplesmente chacinar — os invaso-res. Numa situação inversa, em que estrangeiros desconhecidos che-gassem nas costas ibéricas, a curiosidade certamente teria trazido à

tona o melhor dos espanhóis. Por fim, o argumento fica ainda mais enfraquecido perante o caso

paralelo do encontro entre Cortés e Montezuma. Os mesoamericanos possuíam escrita, forçando Diamond a dispensar essa hipótese e recor-

rer a outro mito (a ser refutado no próximo capítulo), de que "Montezuma incorreu num erro ainda mais grosseiro ao tomar Cortés por um deus que retornava à terra e admiti-lo e às suas minguadas

tropas na capital asteca de Tenochtitlán"." A argumentação de Diamond acerca da escrita faz parte de um

mito arraigado, que remonta pelo menos à Idade Média e à asserção de Tomás de Aquino de que a escrita alfabética era o que diferenciava o povo civilizado dos bárbaros. Las Casas afirma que Aristóteles esta-belecera a mesma distinção. Embora equivocada, a afirmação do dominicano ilustra a sólida validade de tal discriminação na mentali-dade européia. No apagar das luzes do século XX, estudiosos dedica-dos ao repúdio do etnocentrismo ainda se mostravam incapazes de afastar por completo o entendimento da escrita alfabética como um

indício de superioridade em algum sentido. Encontramos exemplos no influente antropólogo Claude Lévi-Strauss — que escreveu, em 1955, que "de todos os critérios habitualmente utilizados para discernir

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entre civilização e barbárie, este pelo menos deve ser mantido: o fato de certos povos escreverem e outros não" — e, mais recentemente, em

Todorov e Diamond." O encontro entre Pizarro e Atahuallpa é, pois, ilustrativo de como

o mito da (falha na) comunicação perpetuou-se e foi empregado pelos estudiosos para explicar a Conquista em termos colonialistas — ter-mos que fariam sentido para os próprios conquistadores. Entretanto,

as diferenças entre as tecnologias da comunicação hispânica e andina não constituem uma explicação adequada para a Conquista do Peru. Mas o que dizer do verdadeiro ponto de contato, aquele entre o frade

dominicano Vicente Valverde e o Imperador Inca? Não foi esse um momento simbólico de dificuldades de comunicação, expressando em gestos o choque cultural, do mesmo modo como o canhestro gestual

de Cortés e Montezuma em seu primeiro encontro? O conquistador-cronista Francisco de Jerez, que estava presente

em Cajamarca, escreveu que Atahuallpa atirou deliberadamente a Bí-blia no chão por orgulho, por não saber ler o texto. Quando o frade contou o ocorrido a Pizarro, o capitão agarrou o imperador e deu o grito de guerra, "Santiago!", como sinal para o ataque geral. Desse modo, embora Jerez deixe claro que o ataque foi planejado desde o princípio, constituiria também uma resposta ao ato blasfemo de Atahuallpa — e, portanto, ainda mais justificado. Em contrapartida, há o testemunho ditado em 1570 por Titu Cusi Yupanqui, sobrinho do imperador, segundo o qual "Meu tio Atahuallpa (...) os recebeu muito bem. Ofereceu a um deles uma bebida que tomamos num recipiente de ouro, [mas], ao tomá-lo de sua mão, o espanhol derramou-a no solo. Em vista disso, meu tio ficou muito zangado". Na versão inca, portanto, o insulto e a blasfêmia originais partem dos invasores, o que faria do arremesso do livro ao chão uma represália justificável!' O tema das narrativas de Jerez e Titu Cusi não é diretamente o das falhas na comunicação, uma vez que, nas duas versões, um dos governantes indica claramente seu desdém pelo outro. O que aconteceu, porém, foi obscuro o suficiente para possibilitar descrições tão contrastantes.

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Em dois outros relatos do incidente, a problemática da comunica-

ção é colocada no centro do encontro. Um deles é de autoria de um

rnestizo do século XVII, de descendência mista inca-hispânica, Garcilaso de la Vega; o outro é de um conquistador do século XVI, Pedro de Cieza de León. Cada qual oferece novas variações dos detalhes e adota uma postura bastante previsível com relação a Atahuallpa; ambos, no entanto, culpam um terceiro (afora o imperador ou Pizarro) pela rup-tura da comunicação que precipitou o ataque espanhol. Para Garcilaso, foi Atahuallpa quem tomou a iniciativa de propor o encontro, mas suas intenções amistosas e até deferentes são transmitidas de maneira inadequada pelos intérpretes tanto antes quanto durante o encontro. O texto escarnece particularmente de Felipillo, a quem caracteriza como um andino de baixa classe que possuía um domínio tosco do espanhol e a quem o dogma cristão escapava quase que por completo. Apesar de todas as deficiências de Felipillo, todavia, a culpa maior não é sua. No entender de Garcilaso, o verdadeiro culpado seria "a língua índia", o quíchua, que ele despreza como um idioma inferior de um povo igno-rante." Seu veredicto final antecipa a idéia de que os nativos foram derrotados por suas desvantagens na comunicação — seja a falta de uma escrita, a incapacidade de ler "signos" ou, na versão tosca de Garcilaso, a inferioridade de sua linguagem. Em sua visão dos aconte-cimentos, o livro do frade caiu de seu colo por acidente e não foi a causa imediata das hostilidades, que teriam irrompido porque os espa-nhóis se impacientaram com o prolongamento do diálogo entre o fra-de e o imperador e começaram a importunar os servos de Atahuallpa.

Frei Valverde se sai bem no relato de Garcilaso, mas é o vilão na versão de Cieza de León. Como a maioria dos narradores do evento, Cieza de León situa a queda do livro no centro do evento, mas acres-centa uma reviravolta inédita: "Irritado com tantas páginas, [Atahuallpa] arremessou-o sem ter conhecimento do que se tratava porque, para havê-lo compreendido, eles deveriam ter-lhe explicado de outra ma-neira; mas os frades nunca pregam por aqui, exceto onde não há peri-go de lanças se erguerem". O frade não só se mostra incapaz de encetar

AS PALAVRAS PERDIDAS IA

um diálogo entre o imperador e os espanhóis como também procura disfarçar suas deficiências correndo de volta para Pizarro para dizer-lhe que Atahuallpa não passava de um "tirano" e "cão sarnento" e "que deveriam atacá-lo"» Destarte, são falhas na comunicação, ainda que com uma face clerical, que provocam o colapso da diplomacia e a

irrupção da franca hostilidade. As divergências entre esses relatos — além de outras versões, que

oferecem ainda mais variações — ilustram de forma vívida as dificul-dades enfrentadas pelos historiadores para deduzir o que "de fato" se passou e descobrir "alguma verdade" acerca de determinado evento.4° Mostram também o quanto a história da Conquista é solo fértil para o florescimento — e a eliminação — de mitos referentes ao passado. O que essas discrepâncias narrativas não fazem, contudo, é demonstrar de maneira inequívoca a aplicabilidade tanto do tema analítico da co-municação quanto do da (falha na) comunicação, uma vez que ambos, com seus respectivos mitos, encontram-se emaranhados no seio dessas

mesmas discordâncias. Em sua interpretação dos acontecimentos, a historiadora Patricia

Seed propõe (em parte, seguindo Garcilaso) que o texto lido pelo fra-de para Atahuallpa seria, "presumivelmente", a Requisição, que ela descreve como um bom exemplo de "um imperialismo do discurso"» A Requisição costuma ser considerada um modelo de falha na comu-nicação ou, nas palavras de Las Casas, de "absurdo" comunicativo. Igualmente absurdas eram as circunstâncias em que o texto era apre-sentado. Segundo o historiador e intelectual Lewis Hanke: "Era lido para árvores e choças vazias (...). Os capitães murmuravam suas ex-pressões teológicas por entre suas barbas à beira de povoações indíge-nas adormecidas, ou mesmo a alguns quilômetros de distância, antes

de lançarem o ataque formal (...). Os comandantes dos navios às vezes mandavam ler o documento do tombadilho, ao se aproximarem de uma ilha"» Além de Las Casas, outros espanhóis do século XVI de-nunciaram a leitura da Requisição de formas que iam da deturpação ao sarcasmo. Por exemplo, o historiador oficial da corte de Carlos V,

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SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA

Gonzalo Fernández de Oviedo, descreveu como o texto era lido nas primeiras décadas da conquista do Caribe, quando os nativos ainda costumavam ser escravizados: "Depois de agrilhoados [os índios cap-turados], alguém lia a Requisição sem saber seu idioma nem recorrer a nenhum intérprete; se nem o leitor nem os índios compreendiam a língua, não tinham oportunidade de replicar, sendo imediatamente le-vados prisioneiros — e os espanhóis não hesitavam em fazer uso do açoite naqueles que não caminhavam com rapidez suficiente"» Aqui, o emprego do "açoite" sugere que, mesmo que o conteúdo da Requisi-ção não pudesse ser comunicado, o contexto violento de sua apresen-tação transmitia sua mensagem geral de ameaça e hostilidade.

Em outro estudo, Seed demonstra, de modo muito convincente, que a mensagem da Requisição tinha suas origens na tradição ibero-islâmica, especificamente nas intimações para que o adversário reco-nhecesse a superioridade do Islã — ou, do contrário, seria atacado. Parte do aparente absurdo da Requisição residia no fato de ela parecer declarar que os nativos não seriam forçados à conversão, desde que se convertessem. Assim como seu antecedente islâmico, o documento adia as questões da conversão, demandando apenas uma admissão formal da superioridade religiosa e política do invasor. No universo islâmico, tal reconhecimento era expresso sob a forma de um imposto por cabe-ça — basicamente a mesma manifestação de conquista implícita no tributo reivindicado a princípio pela Rainha Isabel em 1501, cobrado de cada indivíduo nativo das Américas no Império Espanhol por mais de três séculos. A garantia, oferecida na Requisição, de que a aceitação das autoridades pontifícia e régia acarretaria proteção e privilégio pa-rece absurda no contexto de violência da conquista e da exploração colonial, mas a preocupação das autoridades hispânicas com a manu-tenção do nível demográfico nativo (expressa em diversas leis coloniais) era genuína, ainda que baseada em interesses econômicos. Desde a Coroa até os líderes comunitários espanhóis locais, o império depen-dia dos impostos indígenas, fossem eles pagos em dinheiro, bens ou trabalho. A concessão de privilégios assinalada na Requisição parece

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AS PALAVRAS PERDIDAS DE LA MALINCHE

risível porque o documento parece prometer também destruição; com efeito, o domínio colonial hispânico não só corroborava como depen-dia da integridade das comunidades nativas, por ser ali que a tributa-

ção era gerada e coletada." Vista nessa ótica, a Requisição fica menos absurda. Com efeito, no

contexto das hostilidades francas e flagrantes dos conquistadores, tor-na-se irrelevante; mais ainda, fica reduzida a um ritual do invasor, com menores chances de confundir os invadidos justamente pela difi-culdade para ser compreendido. Não passando de um "balbucio", pode ser mais facilmente ignorado e possibilita que a natureza da ameaça espanhola seja considerada com mais clareza»

Não se sabe ao certo se a Requisição foi de fato lida ou explicada a Atahuallpa por Frei Valverde, como não podemos saber quais foram as palavras do imperador, nem com que tom foram ditas — se de acolhi-mento e deferência, insolência e hostilidade, arrogância e desprezo. O que podemos, contudo, é ponderar as similaridades e discrepâncias entre as diversas narrativas do evento, situá-las em contextos culturais

e históricos mais amplos e chegar a uma especulação razoável com relação às palavras do frade — uma explicação básica do dogma cris-tão e sua relevância política imediata, tal como expressa num resumo da Requisição — e à resposta de Atahuallpa — um reconhecimento tanto do absurdo do discurso feito pelo frade quanto de sua irrelevância para a situação política imediata. Em meio a tudo isso ocorreram fa-lhas na comunicação, sem dúvida, mas também uma ameaça comu-

nicada com sucesso. Um paralelo esclarecedor é oferecido pelos pronunciamentos de

Cortés e Montezuma por ocasião de seu primeiro encontro. Como ocorre com os detalhes do encontro em Cajamarca, há versões dife-rentes e muitas interpretações possíveis do que Montezuma disse e queria dizer. Ao contrário do incidente com Atahualpa, em que a men-sagem foi transmitida com êxito apesar das aparentes falhas na comu-nicação, o discurso de Montezuma foi um ato de comunicação aparentemente bem-sucedido que continha em seu âmago germes da

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falta de comunicação — os quais dariam origem a um mito extrema-

mente arraigado. Cortés registrou o discurso do imperador asteca numa carta para o

monarca espanhol e, embora outros cronistas hispânicos tenham es-crito versões muito similares, sua fala contém indícios de haver sofri-do modificações ao passar pelas mãos espanholas. Desde o princípio, na versão relatada por Cortés, o discurso parece ter sido distorcido de

tal modo que as palavras de boas-vindas do imperador foram conver-tidas numa declaração de submissão. De forma altamente improvável, Cortés mostra Montezuma dizendo aos espanhóis que seu povo sem-pre aguardou a chegada de um senhor ultramarino, descendente de

seu governante original, e que agora acredita que o rei da Espanha seja

tal senhor.

Asseguro-vos, portanto, que nós vos obedeceremos e aceitaremos como

nossos senhores, em nome daquele grande soberano de quem falais; e não se cometerá aí qualquer forma de traição ou ofensa. Em toda a

terra que tenho sob o meu domínio, comandareis conforme desejardes,

e sereis obedecidos; e de tudo que possuirmos podereis dispor como

bem entenderdes. Estando, pois, vós em vosso próprio país e vossa própria casa, repousai agora das dificuldades da jornada e das batalhas

que lutastes."

O imperador então negou que "minhas casas sejam feitas de ouro" ou que ele "fosse, ou afirmasse ser, um deus", expondo então o torso para

mostrar que era feito de carne e osso. O relato de Gómara, escrito três décadas depois, registra o mesmo

discurso (provavelmente extraído da carta de Cortés), com o acrésci-mo de um preâmbulo que apresenta a idéia de que, num primeiro momento, os nativos do México tomaram os espanhóis por deuses. O novo parágrafo reveste o discurso de uma nova simetria, na medida em que o monarca asteca reconhece que Cortés não é um deus e complementa que tampouco ele, Montezuma, o é; trata-se de um "mor-

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tal (...) assim como vós".47 Por outro lado, o texto aprofunda o tema, introduzido por Cortés, de que os espanhóis representaram o retorno de um deus ancestral ou seu descendente, dando mais um passo em direção ao mito completo de Cortés como o deus asteca, Quetzalcoatl,

que retornava. A versão de Bernal Díaz, apesar de escrita apenas no século XVI,

é mais próxima da de Cortés e dá ênfase à suposta declaração de Montezuma de que seus ancestrais haviam avisado que "homens (...)

chegariam do nascente para reger estas terras". Díaz não faz referên-

cia a deuses, espanhóis ou astecas, mas a lenda do senhor pródigo

que retorna ainda recende demais a temas bíblicos (o filho pródigo, o segundo advento de Cristo) e à clássica tese da conclusão da con-quista, defendida por seus executores, para ser ouvida sem levantar

suspeitas." Como seria a versão náuatle desse discurso, registrada no Códice

Fiorentino, em comparação às hispânicas? A narrativa da Conquista

no Códice foi redigida várias gerações após os acontecimentos descri-

tos, tendo sido fruto de uma colaboração entre nauas e franciscanos.

Ademais, a reputação de Montezuma sofrera prejuízos nas décadas

que separaram sua morte e a compilaç'áo do Códice, o que talvez se

refletisse nessa versão de seu discurso. Sem embargo, a versão do Códice

é próxima o bastante das de Cortés e Díaz para indicar que os relatos

hispânicos foram interpretações do que Montezuma dissera de fato. O

texto náuatle diz o seguinte:

Ó senhor nosso, sede duplamente bem-vindo em vossa chegada a esta terra; viestes satisfazer a vossa curiosidade a respeito do vosso altepetl [cidade-Estado] do México, viestes sentar-vos no vosso trono de po-der, pelo qual zelei durante algum tempo em vosso nome, pois vossos agentes, os regentes — Itzcoatzin, Moteucçoma, o Velho, Axayacatl, Tiçocic e Ahuitzotl — que durante tão curto período vos representa-

ram no governo do altepetl do México, partiram. Foi depois deles que

chegou este vosso pobre vassalo [eu]. Voltarão eles para o lugar de sua

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SETE MITOS A CRUS,- rtrenerrron

ausência? Se qualquer um desses pudesse assistir e contemplar o que agora se passa em meu tempo, o que hoje vejo após a partida de nossos senhores! Pois eis que não estou apenas sonhando, não estou apenas sonâmbulo, nada estou vendo apenas em meu sono. Não estou só so-nhando que vos vejo e vos olho nos olhos. Durante tanto tempo me afligi, perscrutando a direção das misteriosas plagas de onde provéns, entre nuvens e névoa. Foi assim que os regentes, ao partirem, disseram

que virieis, a fim de tomardes conhecimento de vosso altepetl e sentar-

vos no vosso trono de autoridade. E agora é verdade, chegastes. Sede duplamente bem-vindo, adentrai a terra, ide usufruir de vosso palácio e repousar vosso corpo. Que nossos senhores cheguem à terra."

O tema do retorno de um deus há muito aguardado não só está clara-mente presente como é o pivô em torno do qual o discurso é construído. É fácil imaginar que tais palavras fossem entendidas pelos espanhóis como uma declaração de submissão, sobretudo levando-se em conta o filtro da tradução de Malinche, a ignorância do contexto cultural asteca pelos espanhóis e a expectativa com que estes desejavam uma recep-ção amistosa. Ademais, Cortés estava preocupado em apresentar pers-pectivas positivas para seu próprio monarca ao registrar o discurso por escrito (registro que só foi feito no ano seguinte, quando os espa-nhóis haviam sido derrotados na primeira batalha de Tenochtitlán e expulsos da cidade). Em sua carta não há referência ao discurso de rendição do último senhor muçulmano da Península Ibérica ao Rei

Fernando diante dos portões de Granada em 1492; mas o discurso de

Granada ficou célebre, e a rendição islâmica era considerada um gran-de marco da história espanhola. Talvez Cortés imaginasse ter testemu-nhado um evento similar e esperasse que Carlos V também ouvisse

ecos daquele momento na "rendição" de Montezuma." Isso não explica, porém, por que o discurso de Montezuma foi tão

ostensivamente reverente. Na cultura asteca (como, com efeito, na maio-

ria das culturas mesoamericanas), a linguagem do discurso cortês apre-sentava um elevado nível de desenvolvimento. Os filhos da elite

aprendiam a habilidade de falar da maneira apropriada à idade, gênero

e status social do interlocutor, bem como às circunstâncias em que ocor-

ria o diálogo. Esse tipo de náuatle elaborado costuma ser denominado

huehuehtlabtolli ("discurso ancestral" ou "dizeres dos antigos") — acerca

do qual dispomos de conhecimentos consideráveis, bem como de seus diálogos modelares, por haver registros escritos datados do final do sé-

culo XVI (só no Códice Florentino, são sessenta).51

Dentro do gênero mais amplo do huehueht/ahtolli, o único estilo

que poderia ser empregado na presença de Montezuma seria o

tecpillahtolli (discurso senhoril), em que as palavras náuatles são

pesadamente carregadas de prefixos e sufixos reverenciais e as frases são formuladas segundo os princípios da inversão e do discurso indi-reto. Ou seja, para ser polido e cortês há que se evitar falar de forma grosseira ou direta, o que implica em dizer o oposto do que se preten-

de. A declaração de Montezuma de que ele e seus predecessores esta-vam apenas zelando pelo governo do Império Asteca, na expectativa da chegada de Cortés, não deve ser entendida em seu sentido literal. Trata-se tão-somente de um artifício retórico que visa a comunicar o contrário — toda a estatura de Montezuma e a legitimidade que lhe conferia sua descendência — e servir de acolhida cortês de um hóspe-

de importante. É um mi casa, su casa régio, um procedimento de boas-

vindas cuja oferta palaciana de hospitalidade sofreria grave prejuízo se entendida como uma entrega literal das chaves do reino. Mesmo a declaração de ser tão pobre e mortal quanto qualquer homem (exclu-

ída nos textos náuatle ou hispânico do Códice, mas presente nas ver-

sões de Cortés e Gómara) teria sido muito possivelmente feita por Montezuma como uma demonstração planejada de humildade, de

modo a salientar seu status imperial.

Malinche entendia tecpillahtolli, herança de seu nascimento no-

bre, e o vinha traduzindo para o espanhol já havia meses antes do

encontro de Cortés e Montezuma. Do contrário, não seria possível

transmitir o pronunciamento de Montezuma para Cortés e seus cole-gas com qualquer grau de fidelidade. Mesmo com a vantagem da formação de Malinche, porém, quando traduzido para o espanhol, o

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discurso — despido de toda a refinada ornamentação de prefixos e sufixos náuatles, e perdido o princípio da inversão cortês pela inexistência de um equivalente genuíno na cultura ibérica — de fato parece ter um sentido de rendição.

Ao contrário do encontro de Atahualpa e Pizarro, naquele primeiro dia em que os espanhóis adentraram Tenochtitlán não houve livro caído ou atirado ao chão para simbolizar nem evidenciar o fracasso da comu-nicação intercultural. Montezuma fez um discurso que Malinche pare-ceu compreender e, portanto, traduzir com fidelidade, e que claramente agradou aos espanhóis. A comunicação foi bem-sucedida. Ou não?

Há algo do tema da Identidade Duplamente Equivocada nos rela-tos contrastantes dos primeiros encontros de Montezuma com Cortés e de Pizarro com Atahuallpa — entendidos por cada lado como de-monstrações de dignidade por seus próprios líderes, e de grosseria ou fraqueza pela liderança adversária. O fato de as mesmas interações e momentos receberem a mesma interpretação tanto de um lado quanto do outro parece sugerir que em sua comunicação invasores e invadi-dos, com efeito, não fizeram muito além de "tatearem no escuro", para usar a expressão de Las Casas.

De qualquer modo, porém, tais interpretações foram posteriores aos eventos descritos; algumas se deram imediatamente, ao passo que outras ocorreram apenas décadas depois. Sem dúvida houve inúmeros problemas de comunicação durante a Conquista, mas afirmar que es-tes desequilibraram a balança e beneficiaram o lado hispânico a ponto de explicar a Conquista como um todo seria ignorar a complexidade da interação entre espanhóis e nativos.

Ademais, as formas e momentos em que houve falhas na comuni-cação foram mais que compensados pelas leituras mais ou menos bem-sucedidas das palavras e intenções dos forasteiros. Colombo acabou entendendo que a atitude dos indígenas na margem do rio era de hos-tilidade. Não fazia diferença para os nativos das aldeias saqueadas ou nas jaulas de madeira se não entendiam o que dizia a Requisição: de qualquer modo, os atos dos espanhóis transmitiam suas intenções com

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mais clareza que o texto. Atahuallpa e Montezuma compreenderam as intenções e métodos dos invasores demasiado tarde para salvarem suas próprias vidas, mas seus sucessores lideraram campanhas de resistên-cia prejudicados não pela falta de informações, e sim pelas epidemias, pela desunião nativa, pela desigualdade de armamentos e outros fato-res. Mais cedo ou mais tarde, os espanhóis entenderam o que precisa-vam e os nativos, o que eles queriam dizer. Como observou Betanzos

em 1551, a princípio os invasores "estavam preocupados não tanto em compreender as coisas, mas em subjugar e adquirir". Como indi-cou o conquistador Bernardo de Vargas Machuca no frontispício de seu livro de 1599 sobre as "índias", os espanhóis adquiriram, "Pela espada e pela bússola/ mais e mais e mais e mais" (ver Figura 12). A palavra — instrumento com que Vargas Machuca escreveu seu livro — acabaria revelando quase a mesma importância, ou talvez ainda mais. Conforme declarava um dos sonetos que servem de preâmbulo para o livro de Vargas Machuca, a Conquista foi um tema que só as "armas e a pena poderiam desenvolver"." Nas primeiras décadas da Conquista, contudo, foi pela espada e pela bússola que os espanhóis se comunica-

ram melhor.

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