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Segurança alimentar através da agricultura urbana: um estudo de caso em duas comunidades de baixa renda em Porto Ferreira/SP. Food security through urban agriculture: a study case of two low-income communities in Porto Ferreira/SP RICARTE-COVARRUBIAS, Juliana Duz 1 ; FERRAZ, José Maria Gusman 2 ; BORGES, Janice Rodrigues Placeres 3 1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Araras/SP - Brasil, [email protected]; 2 Professor Colaborador do Programa de Pós- Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Araras/SP - Brasil, [email protected]; 3 Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Campus do Sertão, Delmiro Gouveia/AL - Brasil, [email protected] RESUMO : A agricultura urbana (AU) promove benefícios, em especial o incremento à Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Este trabalho identificou e caracterizou agricultores urbanos em duas comunidades periféricas de Porto Ferreira/SP e avaliou a contribuição da AU para a sua SAN. Identificaram-se 91 unidades de AU e se aplicou questionário estruturado em 20% da amostra. Constatou-se que a AU envolve majoritariamente a população de baixa renda do município. Dentre os produtores 83,0% têm origem rural e a principal razão da prática agrícola é a produção para subsistência (61,1%). A horticultura sem uso de insumos químicos é o sistema predominante, com média de 14 espécies cultivadas. A AU garante acesso a hortifrutícolas para 77,8% dos participantes, complementados ou não pela compra, e portanto propicia redução dos gastos com alimentação para a maioria (94,4%). O excedente da produção é compartilhado com vizinhos (83,3%) e familiares não- residentes (50,0%). Assim, a AU demonstrou ser relevante à SAN dessas comunidades. PALAVRAS-CHAVE: Agricultura Urbana, Sustentabilidade, Segurança Alimentar, Pobreza ABSTRACT: Urban Agriculture (UA) is able to promote benefits, specially related to Food and Nutrition Security (FNS). This study identified and characterized urban farmers in two communities in the city of Porto Ferreira/SP, analyzing UA contribution for their FNS. 91 UA plots were identified, where 20% of it was sampled through a structured questionnaire. It consisted mostly of low-income people with a rural background (83,0%), where the main reason for urban farming is food production for their livelihood (61,1%). Horticulture with no chemical inputs is the main farming system, with an average of 14 species. For 77,8% of the participants, the access to fruits and vegetables is guaranteed through UA, whether it is complemented by grocery shopping or not. The surplus of UA is also distributed throughout the neighborhoods (83,3%) and non-resident relatives (50,0%), in a solidary way. UA also helps families‘ economy, as it reduces food expenses (94,4%). Overall, UA proved to be a relevant tool for FNS in those communities. KEY WORDS: Urban Agriculture, Sustainability, Food Security, Poverty Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 6(3): 62-80 (2011) ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 15/11/2011

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Page 1: Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de …orgprints.org/23001/1/Ricarte_Segurança.pdf1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural,

Segurança alimentar através da agricultura urbana: um estudo de caso em duascomunidades de baixa renda em Porto Ferreira/SP.

Food security through urban agriculture: a study case of two low-income communities inPorto Ferreira/SP

RICARTE-COVARRUBIAS, Juliana Duz1; FERRAZ, José Maria Gusman2; BORGES, Janice RodriguesPlaceres3

1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal de SãoCarlos – UFSCar, Araras/SP - Brasil, [email protected]; 2 Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Araras/SP -Brasil, [email protected]; 3 Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Campus do Sertão, Delmiro Gouveia/AL- Brasil, [email protected]

RESUMO : A agricultura urbana (AU) promove benefícios, em especial o incremento à SegurançaAlimentar e Nutricional (SAN). Este trabalho identificou e caracterizou agricultores urbanos em duascomunidades periféricas de Porto Ferreira/SP e avaliou a contribuição da AU para a sua SAN.Identificaram-se 91 unidades de AU e se aplicou questionário estruturado em 20% da amostra.Constatou-se que a AU envolve majoritariamente a população de baixa renda do município. Dentre osprodutores 83,0% têm origem rural e a principal razão da prática agrícola é a produção para subsistência(61,1%). A horticultura sem uso de insumos químicos é o sistema predominante, com média de 14espécies cultivadas. A AU garante acesso a hortifrutícolas para 77,8% dos participantes,complementados ou não pela compra, e portanto propicia redução dos gastos com alimentação para amaioria (94,4%). O excedente da produção é compartilhado com vizinhos (83,3%) e familiares não-residentes (50,0%). Assim, a AU demonstrou ser relevante à SAN dessas comunidades.

PALAVRAS-CHAVE: Agricultura Urbana, Sustentabilidade, Segurança Alimentar, Pobreza

ABSTRACT: Urban Agriculture (UA) is able to promote benefits, specially related to Food and NutritionSecurity (FNS). This study identified and characterized urban farmers in two communities in the city ofPorto Ferreira/SP, analyzing UA contribution for their FNS. 91 UA plots were identified, where 20% of itwas sampled through a structured questionnaire. It consisted mostly of low-income people with a ruralbackground (83,0%), where the main reason for urban farming is food production for their livelihood(61,1%). Horticulture with no chemical inputs is the main farming system, with an average of 14 species.For 77,8% of the participants, the access to fruits and vegetables is guaranteed through UA, whether it iscomplemented by grocery shopping or not. The surplus of UA is also distributed throughout theneighborhoods (83,3%) and non-resident relatives (50,0%), in a solidary way. UA also helps families‘economy, as it reduces food expenses (94,4%). Overall, UA proved to be a relevant tool for FNS in thosecommunities.

KEY WORDS: Urban Agriculture, Sustainability, Food Security, Poverty

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 6(3): 62-80 (2011)ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 15/11/2011

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IntroduçãoA agricultura urbana apresenta-se como uma

prática complementar às atividades agrícolasdesenvolvidas em meio rural, com o diferencial deestar integrada aos sistemas econômicos eecológicos urbanos (MOUGEOT, 2001). Naliteratura encontram-se diferentes definiçõesacerca do termo, entretanto muitas destasapresentam elementos comuns, incluindo critériosde localização, tipos de área onde ela é praticada,categorias dos produtos, escalas e sistemas deprodução, destinação dos produtos e tipos deatividades econômicas envolvidas (MOUGEOT,2001).

Para os programas de apoio à agriculturaurbana e periurbana do governo federal brasileiro,a agricultura urbana

“é um conceito multidimensional que inclui aprodução, a transformação, a comercialização ea prestação de serviços, de forma segura, paragerar produtos agrícolas [...] e pecuários [...]voltados ao autoconsumo ou comercialização,(re)aproveitando-se, de forma eficiente esustentável, os recursos e insumos locais [...].Essas atividades podem ser praticadas nosespaços intra-urbanos, urbanos ou periurbanos,estando vinculadas às dinâmicas urbanas oudas regiões metropolitanas e articuladas com agestão territorial e ambiental das cidades”(BRASIL, 2007a, p.6).

Segundo o documento referencial elaboradopelo Resource Centres on Urban Agriculture &Food Security - RUAF em conjunto com IPESPromoção del Desarrollo Sostenible, queidentificaram e caracterizaram as iniciativas deagricultura urbana e periurbana nas regiõesmetropolitanas brasileiras, foi constatado que estaatividade é praticada em todas as regiões do país,em uma grande diversidade de contextos,apresentando uma ampla capacidade de expansãoe muitas possibilidades de consolidar-se como

uma atividade permanente e multifuncional naescala local (SANTANDREU e LOVO, 2007).

No contexto de urbanização acelerada nasúltimas décadas, a agricultura urbana surge comouma importante ferramenta na gestão com vistas àsustentabilidade, dado que tem potencial paraproduzir benefícios em diversas dimensões,respondendo às novas demandas de produção,consumo, serviços e aproveitamento do espaçonas cidades. Em termos ambientais a agriculturaurbana pode contribuir para a amenização deimpactos ambientais e melhor gestão dos recursosnaturais. Também propicia condições para areciclagem de resíduos sólidos e águas residuais,formação de microclimas pelo enriquecimento docomponente vegetal na paisagem e manutençãoda biodiversidade, entre outras, apresentandocaracterísticas propícias para práticas produtivasde base ecológica. No âmbito econômico, estaatividade pode gerar oportunidades de emprego erenda alternativa, especialmente para a populaçãomais pobre, e abastecimento do mercado local. Jáem termos sociais as repercussões tambémpodem ser bastante positivas, pois além defomentar a valorização das culturas locais; oempoderamento comunitário e de gênero(MOUGEOT, 2001; MACHADO e MACHADO,2002), esta forma de agricultura estáhistoricamente relacionada à promoção dasegurança alimentar e nutricional (SAN)1 daspopulações citadinas, sendo que esta sempre fezparte das atividades desenvolvidas nas cidadescomo estratégia de subsistência. A produçãonesses espaços conduz a melhor hábitosalimentares, seja pela diversificação, peloconsumo de alimentos mais frescos ou ainda pelobem-estar alcançado durante a participação detais atividades, sendo que frequentemente sãonotadas melhorias na saúde física e mental dasfamílias produtoras e em suas comunidades(ALMEIDA, 2004; PETERSON e ROBERTSON,

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s.d.).No caso brasileiro, diferentemente de alguns

países, a falta de acesso aos alimentos e,consequentemente o estado da fome, é resultadoda extrema desigualdade social, afetando aquelescom menores níveis de renda (BELIK, 2003).Dados da FAO apontam que o consumo aparentede energia alimentar no Brasil é de 3.090 kcal percapita/dia, e que a oferta energética é de 1,7 vezeso requisito mínimo recomendado aos países latino-americanos. Entretanto, parte da população nãotem condições econômicas de acesso aosalimentos (FAO, 2009). Tal fato demonstra ocomprometimento da SAN no país, a qual estárelacionada não somente às condições deprodução e disponibilidade de alimento, mastambém à garantia de acesso da população aoalimento em termos de quantidade, qualidade eregularidade (BELIK, 2003). Apesar da queda noestado de fome e desnutrição na última década,atribuída especialmente aos resultados doprograma Fome Zero, o Brasil ainda registrou 11,9milhões de desnutridos para o triênio 2004-2006(FAO, 2009).

Para as populações urbanas mais pobres adificuldade econômica acerca do acesso àsnecessidades básicas se transforma em um pontocrítico de vulnerabilidade à insegurança alimentar(ARMAR-KLEMESU, 2001). Gastos comalimentação podem comprometer uma parcelasubstancial da renda das famílias, dependendo doestrato de renda em que estes se encontram(DOMBEK, 2006). Dados da Pesquisa deOrçamentos Familiares – POF/IBGE 2002-03mostraram que pessoas do grupo de classeeconômica mais baixa, que recebem até doissalários mínimos mensais, utilizam 32,68% dosseus rendimentos com alimentação (IBGE, 2004).Ainda, 80,7% das famílias no Estado de São Pauloapresentam algum grau de insuficiência naquantidade de alimentos consumidos, sendo que40,9% deparam-se com insegurança alimentarmoderada ou severa (SEGALL-CORRÊA et al.,

2004).A compra de alimentos não é necessariamente

a única forma de ter acesso a uma alimentaçãoadequada (DOMBEK, 2006). Neste sentido, aagricultura urbana pode ser uma das principaisferramentas na contribuição para a segurançaalimentar da maioria das cidades, tantoconsolidando-se como um componente do sistemaalimentar urbano, como minimizando deproblemas de insegurança alimentar dos gruposvulneráveis. Os alimentos cultivados nas cidadescontribuem para a SAN não apenas pela maiorfacilidade de acesso a este alimento, mas tambémna melhoria da qualidade da dieta alimentar, dadoque esta passa a ser mais diversificada e saudávelà medida que oferece frutas e vegetais frescos(AMAR-KLEMESU, 2001). Isto é claramenteobservado em alguns estudos que indicam queagricultores urbanos geralmente comem maisvegetais do que os não-agricultores da mesmaclasse sócio-econômica, e também mais do queos consumidores de classes mais elevadas, quetendem a consumir mais carne (POTUTAN et al2000 apud AMAR-KLEMESU, 2001). Sendoassim, observa-se que a agricultura urbana podepropiciar uma contribuição social bastante positiva,especialmente para os agricultores de baixa rendae grupos marginalizados (SMIT et al., 1996) comoidosos, jovens desempregados e migrantes, osquais através dessas atividades tornam-sesocialmente e psicologicamente mais seguros(RUAF, s.d.).

Com base em considerações como estas aOrganização das Nações Unidas para Agriculturae Alimentação (FAO) aponta a Agricultura Urbanae Periurbana como uma das estratégias depromoção de segurança alimentar e nutricional naAmérica Latina (FAO, 2009), e o Conselho deSegurança Alimentar e Nutricional brasileirotambém a incluiu recentemente como um doselementos constituintes das diretrizes da PolíticaNacional de SAN (CONSEA, 2009).

Na realidade, a agricultura urbana pode atuar

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como um fator permanente nos processos dedesenvolvimento sustentável das pessoas e dasociedade, cujos benefícios se intercruzam ereforçam uns aos outros, sendo difícil considerá-losisoladamente (RUAF, s.d.). Todavia, o grau decontribuição da agricultura urbana a estesprocessos está intimamente ligado a algunsfatores. Dentre eles se destaca o envolvimento dediversos atores sociais, como os produtores,representantes políticos, de ONGs, centros depesquisa, fornecedores e compradores entreoutros, pertencentes tanto a setores públicos comoprivados, da economia formal e informal, os quaisexercem diferentes papéis na produção,processamento e comercialização dos produtosagrícolas (DUBBELING e MERTZTHAL, 2006).Estes devem interagir para a criação de umprocesso sinérgico e complementar para sustentara agricultura urbana (DUBBELING e MERTZTHAL,2006), o que nem sempre ocorre. Outras questõesrelevantes a serem consideradas quando seaborda a potencialização dos benefícios daagricultura urbana dizem respeito àscaracterísticas do sistema de produção e dosagricultores, o seu grau de inserção no sistema degestão do espaço urbano, e às políticas públicasde fomento às atividades existentes. Estesaspectos influenciam no investimento que oagricultor fará, tanto em termos de financeiroscomo na escolha dos cultivos e no esforço físicodispensado, uma vez que o espaço a ser cultivadopode estar disponível para uso permanente, comopor exemplo áreas públicas não-edificantes, oupara uso em longo prazo, sejam estas áreapúblicas ou privadas, ou ainda para uso em curtoprazo, como nas áreas de rápida expansão urbana,evidenciando a dinâmica da agricultura urbana(SMIT et al., 1996). A falta de segurança sobre apropriedade da área a ser cultivadafrequentemente é um fator limitante aosagricultores, e alguns países já reconhecem ousufruto da terra, essencial para a validação das

atividades de agricultura urbana (SMIT et al.,1996). Neste sentido, tornam-se fundamentaisesforços para a identificação do perfil dasatividades de agricultura urbana em andamento,assim como o reconhecimento das demandas nacomunidade para que as ações estratégicas defomento sejam efetivas.

Como em boa parte do país, apesar dasatividades agrícolas urbanas ocorrerem poriniciativa dos próprios citadinos, especialmente nosbairros periféricos, o município de Porto Ferreira(SP) ainda não conta com um diagnóstico destasatividades, nem com políticas públicas voltadas aodesenvolvimento da agricultura urbana.

O presente estudo é parte integrante de umapesquisa de caracterização e tipificação daagricultura urbana em Porto Ferreira, e tem porobjetivo identificar e caracterizar a agriculturaurbana em duas comunidades de baixa rendadeste município, e avaliar a contribuição do cultivode alimento na cidade para a segurança alimentare nutricional desta parcela da população. Paratanto, foram compreendidos neste estudo, tantocaracterísticas do agricultor, como da áreacultivada, da agrobiodiversidade e da distribuiçãodos produtos. Os dados foram coletados atravésde entrevista estruturada e observações direta emcampo, e analisados segundo estatística descritivaclássica.

O artigo foi dividido em quatro partes, sendo aprimeira esta seção introdutória do tema estudado.A segunda parte aborda a metodologia utilizada,incluindo o perfíl das áreas de estudos, assimcomo os critérios para definição do universoamostral, coleta de dados e análise dosresultados. Na terceira parte, os resultados obtidossão apresentados e discutidos com subsídio naliteratura corrente, cujos blocos temáticos são: 1)perfil das famílias produtoras; 2) característicasgerais da agricultura urbana; 3)agrobiodiversidade; 4) segurança alimentar e 5)destino da produção. Por fim, tecemos as

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considerações finais, retomando os resultandomais relevantes. Sem a pretensão de esgotar ostemas abordados, espera-se que este trabalhopossa representar uma contribuição àcaracterização do perfil da agricultura urbana emcomunidades de baixa renda, assim comocontribuir ao debate – para fins acadêmicos ou depolíticas públicas – em torno da participação daagricultura urbana à segurança alimentar dascomunidades envolvidas nestas atividades.

Material e métodosÁrea de estudoO município de Porto Ferreira está situado na

região noroeste do Estado de São Paulo, na zonafisiográfica de Rio Piracicaba. Apresenta uma áreatotal de 246 km², dos quais 33,27 km² (13,5%)compreendem a área urbana. Apesar do territórioser predominantemente rural, de acordo com osdados do Censo IBGE de 2006, 96,61% dos53.041 habitantes deste município são residentesna zona urbana (PREFEITURA MUNICIPAL DEPORTO FERREIRA, 2009). No presente trabalho,são abordadas atividades situadas dentro doslimites de zoneamento urbano do município, o quecaracteriza, segundo alguns autores, comoagricultura intraurbana (MACHADO e MACHADO,2002). Em geral, atividades agrícolas intraurbanastendem a ser de sistemas de cultivo em menorescala e com finalidade de subsistência erecreação, ou altamente especializadas (RUAF,s.d.). O estudo foi desenvolvido em dois bairros(Jardim Paschoal Salzano - JPS e a Fepasa - FEP)selecionados em função do grande número debeneficiários do serviço de atendimentoassistencialista da Promoção Social do governolocal, segundo os relatórios do biênio 2008-2009(prefeitura municipal de Porto Ferreira, dados nãopublicados), evidenciando o estado de carênciadestes. Ambos estão localizados em áreasperiféricas da cidade, sendo o primeiro situado na

Zona Norte e o segundo na Zona Oeste, ambosmantendo características de áreas intraurbanas. Ainfra-estrutura, porém, difere significativamenteentre as duas áreas, uma vez que o bairro JPS éregulamentado pela Prefeitura Municipal desde1996, contando com ruas pavimentadas, áreasinstitucionais com creche, centro comunitário,Unidade Básica de Saúde (UBS) e espaçosdestinados a sistemas de lazer, enquanto FEPconstitui uma área de antiga linha ferroviária quefoi ocupada desordenadamente, em sua maiorianão-pavimentada, sem áreas institucionais ou delazer, atualmente em processo de regularização deposse pela prefeitura municipal.

Coleta de dados e universo amostralA fim de cumprir com os objetivos propostos

neste estudo, foram empregadas abordagensquantitativa e qualitativa durante o levantamentodos dados, que foi realizado em duas etapas: 1)levantamento das iniciativas de agricultura urbana;2) realização de entrevistas estruturadas com asfamílias produtoras.

O levantamento das iniciativas de agriculturaurbana teve como referência territorial a plantaurbana dos bairros em estudo, fornecidas peloDepartamento de Obras e Serviços do município.As visitas locais permitiram o contato direto dopesquisador com a realidade a ser estudada.Neste levantamento foram registradas todas asunidades de agricultura urbana identificadasdurante visitas exploratórias, onde forampercorridos todos os logradouros em cada um dosbairros. Para fins de registro, foram consideradostanto canteiros e pomares domésticos, assim comohortas comunitárias e institucionais, casohouvesse (RUAF, s.d.).

Para a segunda etapa, o número de entrevistasrealizadas em cada bairro foi o equivalente a 20%do total de unidades de agricultura urbanapreviamente identificadas nas respectivas áreas.

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Assim, para esse universo foi aplicada entrevistaestruturada, constituída majoritariamente porquestões fechadas, com amostragem não-probabilistica por acessibilidade (GIL, 1995). Aprincipal referência metodológica adotada para suaelaboração foi o enfoque multidimensional esistêmico (CAPORAL e COSTABEBER, 2002),pelo qual se procurou interligar subtemasespecíficos, relativos às dimensões social,econômica e ambiental, dando um tratamentointegral a todos os elementos do agroecossistemaque venham a ser impactados pela ação humana epermitindo uma contextualização mais ampla datemática da agricultura urbana e suas relaçõescom segurança alimentar.

Durante esta etapa também foi realizadolevantamento da agrobiodiversidade local, sejamcultivos vegetais ou criação animal. Neste,variedades distintas de um mesmo cultivar, comoalface (lisa, crespa, roxa etc), foram consideradascomo uma única espécie agrícola, para fins decontagem. As plantas com finalidadeexclusivamente ornamental e os animaisdomésticos como cães, gatos e pássaros nãoforam contabilizados neste estudo. As coletas decampo foram realizadas durante o período demarço a agosto de 2009.

Análise de dadosPara o tratamento dos dados, cada questão foi

considerada uma 'variável original', cujas opçõesde respostas correspondem a 'modalidades'. Osdados coletados foram tabulados de modo que ascolunas correspondessem às variáveis e as linhas,às famílias produtoras. Para a análise dosresultados, foi empregada a análise estatísticadescritiva, complementada por dados secundáriossempre que necessário, a fim de caracterizar aagricultura urbana nessas áreas. Este tipo deanálise está interessado em descobrir e observarfenômenos, procurando descrevê-los, classificá-los

e interpretá-los, tornando possível descrever ascaracterísticas de uma determinada população(GIL, 1995). Para os testes de qui-quadrado foiconsiderado nível de significância de 5% (p<0,05),empregando o programa Minitab StatisticalSoftware® para os testes estatísticos.

Resultados e DiscussãoQuem são os agricultores urbanos – o perfil

das famílias produtoras.No levantamento das áreas de agricultura

urbana dos bairros Jardim Paschoal Salzano (JPS)e Fepasa (FEP), foram identificadas,respectivamente, 60 e 31 locais onde a atividadeestava sendo desenvolvida, totalizando 91unidades de agricultura urbana. Apesar de JPScontar com quase o dobro de unidades de cultivo,a área total deste bairro é nitidamente maior,contando com 457 lotes, quase todos com 200m²cada. Das unidades de cultivo identificadas nestebairro, apenas oito (13,3%) estavam em áreaspúblicas, e todas as demais (86,7%) encontravam-se em terrenos privados, em área residencial. Jáem FEP existem 302 lotes em uma gleba ocupadade 47.049,91m², cujos tamanhos dos terrenos sãomuito irregulares, variando entre 43 e 590m², namaioria ocupando uma área de 80 a 160m². Nestebairro, 64,5% das atividades de agricultura urbanaeram realizadas em áreas públicas, e apenas35,5% eram realizadas nos terrenos residenciais.

Foram realizadas 18 entrevistas, sendo 12entrevistas no JPS e seis em FEP, efetuadas comos representantes das unidades familiares,responsáveis por tais atividades agrícolas.Considerando todos os membros das unidadesfamiliares envolvidas na agricultura urbana,contamos com um universo populacional de 70indivíduos, dos quais 43 residem em JPS e 27 emFEP. Não foi encontrada nenhuma hortacomunitária ou institucional neste estudo.

No bairro JPS, 75% das famílias avaliadas

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eram compostas por dois a quatro membros, comuma média de 3,6 pessoas por família, enquantoem FEP as famílias eram mais numerosas, commédia de 4,5 membros, sendo que 50% destascontavam com seis ou mais pessoas. Somadas asduas populações amostradas, pode-se verificarque as unidades familiares não eram muitonumerosas, com 3,8 indivíduos em média(V=1,6000; Dp=1,2649). Resultados semelhantesforam obtidos por Pessoa et al. (2006). Essesdados podem ser relacionados à queda aceleradana taxa de fecundidade ocorrida no país nas duasúltimas décadas, com consequente redução notamanho das famílias brasileiras (IBGE, 2009).

A distribuição do estado civil foi similar entre osbairros, com maioria do total de adultos2 (n=53)casados (63,3%), seguido por solteiros (22,4%),divorciados (8,2%) e viúvos (6,1%), sendo esteúltimo grupo presente apenas entre as pessoascom mais de 60 anos.

Diversas pesquisas incorporam o enfoque degênero nas metodologias, a fim de verificar aparticipação diferenciada entre homens e mulheresnas práticas agrícolas urbanas e segurançaalimentar (SMIT et al., 1996; RUAF, s.d.).Entretanto, no presente estudo, mesmo quandoquestionado sobre a contribuição ativa da mão-de-obra nas atividades de agricultura urbana, não foiencontrada diferença significativa entre a

participação de homens e mulheres (JPS:p=0,297; FEP: p=0,439), semelhante aosresultados observados por Pessoa et al. (2006).Assim não se pode afirmar que existepredominância de um dos gêneros no trabalho daagricultura urbana nas comunidades avaliadas nopresente estudo.

Em JPS, as atividades de cultivo eramrealizadas individualmente em 50% dos casosamostrados. Outros 33,4% eram realizados pelocasal com a contribuição de filhos e/ou outrosparentes, e em 16,6% eram realizadas apenaspelo casal. Já em FEP a existência de áreascultivadas por uma só pessoa foi registrada emapenas 16,6% dos casos. A maior parte delas(50%) era realizada em conjunto pelo casal e nosdemais 33,4%, os filhos contribuíam com um dospais, sem a presença de respectivo cônjuge no lar.Não houve nenhum registro de participação demembros da comunidade ou de instituições –como associações de bairro, igrejas, ONGs ouórgãos públicos – seja na mão de obra ou nacontribuição material e/ou de informaçõestécnicas.

Para avaliar a distribuição dos membros dasfamílias produtoras de acordo com a estruturaetária, foi utilizado como referencial a Síntese deIndicadores Sociais dos Estudos e Pesquisas deInformação Demográfica e Socioeconômica do

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Tabela 1: Distribuição dos membros das famílias produtoras urbanas, segundo classes etárias.

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IBGE3 (Tabela 1). Segundo esta classificação, ogrupo predominante em JPS foi de adultos(48,9%), seguido por 27,9% de idosos. Entretanto,em FEP houve predomínio de jovens (37,0%) eadultos (29,6%) sendo o grupo de idosos o menosexpressivo (14,8%), demonstrando que estacomunidade apresenta perfil de famílias jovens etambém mais numerosas, como já havia sidoobservado. A diferença não foi significativa entreas classes etárias no total amostrado (p=0,0104),ou na distribuição entre os dois bairros (p=0408).

A origem rural se fez presentesignificativamente entre os adultos,compreendendo 83,0% do total e mostrando que aépoca de migração campo-cidade ocorreu a pelomenos uma geração. Por outro lado, entre osmenores de 18 anos (n=17), 88,2% eram deorigem exclusiva no ambiente urbano (Tabela 2).Este dado remete ao questionamento quanto àorigem geográfica da população, que demonstraser oriunda predominantemente do estado de SãoPaulo (SP) entre os menores (88,2%), enquantoentre os adultos o padrão diferiu significativamenteentre os dois bairros. Em JPS, 65,7% destesnasceram no estado de SP, enquanto em FEP64,7% vieram de outros estados. Na categoria

'outros estados', Minas Gerais é o que aparececom maior frequência nos dois bairros, citado em87,0% dos casos, e os demais 13,0% são daBahia ou Rio de Janeiro. Em Porto Ferreira, aquestão da imigração de outras regiões do Brasilgeralmente está relacionada à demanda detrabalhadores para o corte de cana. Estestrabalhadores passam a residir nos bairrosperiféricos deste e de outros municípios da região(PROCURADORIA..., s.d.).

Existe uma forte correlação entre o estado desegurança alimentar e nutricional e as condiçõessocioeconômicas da população (FROZI eGALEAZZI, 2004). O grau de escolaridade atuacomo um dos indicadores de acesso aos direitossociais básicos, cujos efeitos relacionam-se aaspectos de qualificação de mão-de-obra,produtividade do trabalho, melhora dos cuidadoscom a saúde, participação política e cívica entreoutros (SEADE, 2010). Os dois bairrosapresentaram padrões semelhantes (p=0,8467),em que a elevada taxa de analfabetismo foi nítida,correspondente a 20,0% do total de adultos, valormuito superior ao atual índice registrado para omunicípio (7,7%) (PREFEITURA, 2009). Somadosaos 50,9% dos adultos que estudaram apenas até

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Tabela 2: Distribuição da origem rural e urbana entre membros das famílias agricultoras urbanas em doisbairros de Porto Ferreira/SP, segundo grupos etários.

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a 4a série do Ensino Fundamental, tivemos 70,9%da população adulta envolvida nas atividades deagricultura urbana constituída por pessoas comnenhuma ou pouca escolaridade, com os demais30,1% distribuídos entre Ensino FundamentalIncompleto (9,1%), Ensino Fundamental Completo(9,1%) e Ensino Médio (10,9). Não houve nenhumcaso de participantes com nível superior deeducação, uma evidência de que a exclusão socialse faz presente nesta parcela da população.

Quanto à ocupação dos membros adultos dasfamílias agricultoras, no bairro JPS predominaramos grupos de mulheres 'do lar' (31,4%), que nãoexercem atividades remuneradas, e deaposentados e pensionistas (20,0%), sendo este obairro que conta com maior presença de idosos.Cabe destacar que estes dois grupos de pessoasque se dedicam à prática de agricultura urbananão se enquadram, segundo os critérios do IBGE,à parcela da 'população economicamente ativa'(IBGE, 2004). Em FEP, por outro lado, houvepredomínio de trabalhadores em atividades queexigem maior vigor físico, com 22,2% exercendotrabalho na colheita de cana/laranja e 16,7% comooperários em indústrias. Além das atividadesmencionadas, ambos os bairros registraram apresença de empregadas domésticas, agricultoresrurais e trabalhadores temporários, em menorfrequências, e de ceramistas e funcionáriospúblicos em JPS. Em ambas as áreas, o percentualde desempregados foi similar, correspondente a5,9% do total de adultos participantes.

Em JPS, 31,3% dos participantes declararamestar sem renda atualmente, 18,8% com rendamédia inferior a um salário mínimo (SM), 25,0 %com renda média igual a um SM, 9,4% com até 2SM, outros 9,4% com 2 a 3 SM e 6,3% dosparticipantes declararam ter renda muito variável.Já em FEP, 16,7% declararam não possuir rendano momento atual, 27,8% recebem menos de umSM, e outros 16,7% recebem um SM completo.Neste bairro, porém, uma parcela de 22,2% das

pessoas afirmou receber até dois SMmensalmente e 11,1% tem renda muito variável.No total avaliado, consideradas as duas áreas,70% dos membros familiares adultos nãorecebiam renda alguma, ou recebiam até umsalário mínimo ao mês. As ocupações declaradaspelos participantes, assim como os dados jáapresentados referentes à sua escolaridade,demonstraram a baixa qualificação desta parcelada população, que repercute no baixo rendimentoeconômico desses trabalhadores econsequentemente nas condições de pobrezaobservadas.

O Resource Centres on Urban Agriculture andFood Security (RUAF) reconhece cinco grupostípicos de agricultores urbanos, dos quais trêspuderam ser identificados nas populaçõesenvolvidas neste estudo, diante dos resultadosaqui apresentados. O primeiro grupo é de famíliasde origem rural que gradualmente foramabsorvidas pela expansão das cidades, e quegeralmente trazem consigo hábitos e costumes,adaptando seus sistemas agrícolas às novasoportunidades urbanas; o segundo é constituídopor migrantes recentes, que se engajam naagricultura como uma estratégia de sobrevivênciano novo ambiente. Segundo o RUAF, estesgeralmente utilizam-se de conhecimentos de suaregião de origem; e o terceiro grupo é constituídopor moradores urbanos muito pobres, que sofremproblemas com insegurança alimentar, e seenvolvem nas atividades de cultivo como meio degarantir o acesso ao alimento.(RUAF, s.d.)

Características gerais da agricultura urbana -posse da terra, motivações e dedicação àsatividades de cultivo

O trabalho das Nações Unidas 'UrbanAgriculture: food, job and sustainable cities' (SMITet al., 1996), que faz uma extensa revisão arespeito da agricultura urbana ao redor do mundo,apontou que os produtores de baixa renda, que

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constituem o principal grupo de agricultoresurbanos, em geral utilizam áreas que não são desua propriedade, cultivando em pequena escala afim de garantir a segurança alimentar e ampliar osrendimentos para suas famílias. Este perfil condizem parte com o levantado no município de PortoFerreira.

Nos dois bairros avaliados constatou-se querealmente os agricultores urbanos não detêm aposse da terra que exploram para a produção. Emapenas 22,2% dos casos a terra era depropriedade da família responsável pelasatividades agrícolas. Nos demais 77,8% das áreas,o uso da terra dividiu-se proporcionalmente entreautorizado mediante acordo pessoal (38,9%) e usonão autorizado (38,9%). Não houve registro dearrendamento, aluguel ou qualquer envolvimentode transações comerciais da terra a ser cultivada.

Tais características refletem na proximidade daárea cultivada em relação à moradia do agricultor,assim como na dedicação à atividade. No bairroJPS, 25% das áreas de agricultura urbanasituavam-se no mesmo terreno da residência doagricultor, e em 50% dos casos essas duas áreaseram próximas, com menos de um quarteirão dedistância entre elas. Em 16,7%, porém, a distânciaentre a área cultivada e a residência do agricultorera de até cinco quarteirões, ou aproximadamente500 metros. Apenas 8,3% dos agricultorescultivavam em terrenos localizados em outrosbairros, que exigia um esforço maior delocomoção. Neste bairro, o tamanho da áreacultivada era em média de 210,8m², por diversasvezes ocupando o lote residencial por completo(200m²), sendo que a menor área cultivada foi de30m², e a maior, de 900m², ambas localizadas emáreas públicas. Entre as áreas amostradas nestebairro, 75% estavam situadas em terrenosresidenciais, e os demais 25% estavam emespaços públicos. Em FEP, por outro lado, grandeparte dos terrenos era de dimensão muitopequena, em função da falta de planejamento na

ocupação da gleba, constituindo lotes total ouquase totalmente construídos. Neste, a maior áreacultivada foi de aproximadamente 35m², e a menorcom 15m². Em média, o tamanho das unidades decultivo nesse bairro foi de 27,5m². Este éprovavelmente um fator determinante da realidadeobservada no bairro, onde 83,3% dos cultivosamostrados ocorreram nas áreas públicas, todassituadas nas proximidades da residência dosagricultores.

Quanto ao tempo de atuação nas atividades deagricultura urbana, também houve uma diferençasignificativa no perfil dos bairros. Em JPS, bairromais antigo e com infra-estrutura bemestabelecida, 50% dos agricultores cultivavam emárea urbana há mais de cinco anos, e outros41,7% tinham área cultivada entre 3 e 5 anos.Apenas 8,3% dos moradores participavam destasatividades há menos de três anos. Já na área FEP,de ocupação mais recente, 66,6% dosparticipantes estavam na agricultura urbana amenos de três anos sendo que metade destesiniciaram suas atividades a menos de um ano.

Porém, quando questionados sobre qual aprincipal razão que levou estas pessoas à práticada agricultura urbana, a alimentação paraconsumo e subsistência se destacou em ambas asáreas, sendo o principal fator a 61,1% do total departicipantes. Apesar de diversos estudos citarema geração de renda como uma das funções daagricultura urbana, o levantamento realizado nestapesquisa não registrou nenhum participante quetivesse esta como a razão principal para o cultivo,e a venda de excedentes não era uma práticacomum, como veremos mais adiante. Esteresultado evidencia a importância da agriculturaurbana na garantia da segurança alimentar enutricional desta parcela da população, objeto dediscussão em diversas pesquisas (SMIT et al.,1996; ARMAR-KLEMESU, 2001; MACHADO eMACHADO, 2002; PESSOA et al., 2006). Alémdisso, 27,8% dos participantes afirmaram ter a

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tradição com a agricultura como principalmotivador, e 11,1% apontaram a questão sanitáriacomo fator central, uma vez que o cuidado com osterrenos baldios através do cultivo agrícola tambémresulta no controle de vetores de doenças eanimais peçonhentos. Os exemplos citados pelosmoradores incluíram mosquitos, aranhas,escorpiões, ratos e cobras. A melhoria na saúde ebem-estar humano através da manutenção doambiente limpo e controle das endemias eepidemias pela redução na proliferação de vetoresdas principais enfermidades foram destacados porMachado e Machado (2002) como uma dasprincipais contribuições da agricultura urbana àscomunidades locais.

A agrobiodiversidade na agricultura urbana – adiversidade vegetal cultivada e a criação animal.

A riqueza de biodiversidade encontrada nasáreas de cultivo urbanas é uma característicafrequente. Smit et al.(1996) identificaram que a

horticultura é o sistema mais comum e também omais diversificado na agricultura urbana, cujavariedade de cultivos depende das preferênciaslocais. Em Porto Ferreira, 38,9% das áreas deagricultura urbana analisadas contavam com maisde 15 espécies agrícolas. Outros 27,8% cultivavam11 a 15 espécies, seguido por 22,2% com 6 a 10espécies. Apenas 11,1% das unidades deprodução avaliadas cultivavam menos de cincoespécies. A média foi de 14 cultivares por unidadede cultivo, e máxima diversidade agrícolaobservada foi de 32 espécies, em uma área deaproximadamente 30 m2, no bairro FEP. Ementrevista, a agricultora responsável pelasatividades de cultivo nesta área de altadiversidade, afirmou que não há dificuldades naprática da agricultura urbana, e de acordo comsuas palavras “para tudo tem que ter força devontade'. No total amostrado, foram encontradas71 espécies cultivadas com finalidadesalimentares (Tabela 3).

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Tabela 3: Distribuição de frequência na ocorrência das espécies cultivadas nas unidades de AgriculturaUrbana em Porto Ferreira/SP.

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Em um estudo sobre riqueza e diversidade deespécies vegetais em hortas urbanas eperiurbanas na Nigéria, Bernholt et al. (2009)identificaram 116 espécies, na maioria frutas ehortaliças, com uma média de 14 espécies porunidade de cultivo. Estes autores reconheceram aimportância das atividades de agricultura urbana eperiurbana como uma ferramenta de conservaçãoin situ dos recursos genéticos vegetais, ainda quea grande parte das espécies cultivadas sejamexóticas.

No presente estudo, a agrobiodiversidadevegetal foi classificada nos seguintes grupos:verduras (folhosas), legumes, tubérculos, cereais,leguminosas, condimentares, medicinais efrutíferas (Tabela 4). Na categoria das hortaliçasfolhosas, 50% das 18 áreas analisadas contavamcom 3 a 5 cultivos, cujas mais frequentes, emordem decrescente, foram couve, alface, almeirão,rúcula e mostarda, 27,8% contavam com 1 ou 2cultivos e apenas 22,2% não cultivavam folhosos.Entre os legumes, 66,7% cultivavam uma ou duasespécies, entre as quais chuchu, quiabo, abóbora e

tomate foram as de maior ocorrência. Também foifrequente o cultivo de um ou dois tubérculos(77,8%), com presença unânime de mandiocanessas áreas, em alguns casos acompanhados debatata doce, batata ou inhame.

A ocorrência de cereais, no entanto, foi muitoreduzida, sendo que este grupo de cultivaresestava presente em apenas 16,7% das áreas deagricultura urbana analisadas. Este dado, porém,pode estar associado à sazonalidade agrícolarelativa ao período de amostragem, uma vez quediversos agricultores mencionaram o cultivo demilho, apesar deste não ter sido observado nolevantamento dos dados. As espéciesleguminosas, conhecidas tanto pelo fatornutricional na alimentação quanto pelo papel quedesempenham na adubação do solo, foramencontradas em 44,4% das áreas, com cultivo defeijão ou de guandu, porém estava ausente nosdemais 55,6% das áreas de agricultura urbana. Asplantas condimentares, estavam presentes namaioria das áreas cultivadas (66,7%), sendo queem 38,9% das áreas foram encontradas um ou

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Tabela 4: Distribuição da diversidade dos grupos de espécies cultivada nas áreas de agricultura urbanano município de Porto Ferreira/SP.

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dois cultivos, e em 27,8%, três a cinco cultivos,dentre os quais as mais comuns foram salsinha,cebolinha, coentro e pimenta.

Plantas medicinais também compuseram adiversidade agrícola urbana, com 33,3% das áreascontendo três a cinco espécies, e 22,2% com umaou duas espécies, cujas principais foram erva-cidreira, boldo e hortelã. Este foi um dos gruposcom maior diversidade encontradas entre as áreasanalisadas, com um total de 16 espécies. No total,foi registrada a presença de plantas medicinais em61,1% do espaço da agricultura urbana realizadapor essas populações de baixa renda, cujo acessoaos medicamentos convencionais é restrito. Umestudo realizado por Santandreu et al. (2002) nacidade de Montevidéu, Uruguai, identificou apresença de plantas medicinais em 48% dos locaisque realizam alguma prática de agricultura urbana,cuja importância, segundo eles, está na diminuiçãodos gastos das famílias mais pobres com ocuidado de sua saúde. No Brasil, o GovernoFederal, estabeleceu recentemente o ProgramaNacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, pormeio do Ministério da Saúde, visando garantir oacesso seguro e uso racional de plantasmedicinais à população brasileira. Ainda, esteprograma propõe-se a promover o uso sustentávelda biodiversidade e a repartição dos benefíciosdecorrentes do acesso aos recursos genéticos deplantas medicinais e ao conhecimento tradicionalassociado, assim como promover e reconhecer aspráticas populares e tradicionais de uso de plantasmedicinais,fitoterápicos e remédios caseiros, entreoutras medidas (BRASIL, 2007b), um indicativo darelevância de atividades de cultivo como essas.

O grupo mais diverso, porém, foi o dasfrutíferas, com 23 diferentes espécies, sendo estasmajoritariamente de porte arbóreo, mas tambémcontando com herbáceas, como o morango eabacaxi, e lianas, como o maracujá. Uma parcelade 38,9% das áreas cultivadas apresentaram detrês a cinco espécies, e 27,8% possuem, em sua

unidade, mais de cinco espécies de frutíferas,constituindo verdadeiros pomares urbanos. Alémdisso, outros 27,8% apresentaram uma ou duasespécies frutíferas em suas hortas, com apenas5,6% do total sem nenhum componente destacategoria de cultivo. Entre as frutíferas maisfreqüentes, podemos citar, em ordem depredomínio: banana, mamão, manga, goiaba,limão, acerola, jaca e abacate.

A riqueza de plantas cultivadas é um fatorimportante que merece destaque para estudosmais detalhados, tanto sob a perspectiva doconhecimento etnobotânico do grupo avaliado,bem como da preservação deste conhecimento.

Se a agrobiodiversidade vegetal foi elevada, acriação animal, por outro lado, se mostrouincipiente. Em 77,8% dos casos não havianenhuma criação animal, excluídos os animaisdomésticos como cães e gatos. Dentre os demais,16,7% criavam frango para fornecimento de ovos ecarne, e outros 5,5% criam animais de pequenoporte, como gansos e galinhas, apenas para finsde lazer. Nestas áreas não houve nenhum registrode criação de animais de porte maior, parafornecimento de leite ou de aporte de força detrabalho, por exemplo, e neste caso o tamanhodas áreas disponíveis para agricultura urbanapode ter sido o fator limitante central. Algunsentrevistados mencionaram problemas com rouboda criação pela vizinhança, inclusive de caprinos,além da instabilidade no planejamento einvestimento em infra-estrutura, já que a área nãoé própria, sendo estas algumas das razões quecausaram o desestímulo à continuidade de talatividade. Apesar de citado como uma dasabrangências de agricultura urbana pelo Programade Apoio à Agricultura Urbana e Periurbana/MDS(BRASIL, 2007a), a baixa ocorrência de criaçãoanimal também pode estar relacionada àexistência de legislação proibitiva da permanênciade bovinos, eqüinos, caprinos ou ovinos na zonaintraurbana, salvo aqueles encontrados em

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terrenos cercados em zonas de expansão urbana,ou seja, periurbanas (PORTO FERREIRA, 1995).Neste sentido, diversos autores alertam sobre orisco da manipulação animal inadequada em áreasurbanas, que pode levar ao surgimento dezoonoses, causando riscos à saúde humana(WATERS-BAYER, s.d.; MOUGEOT, 2006).

Porém, a integração de pequenos animais àsatividades de cultivo pode ser uma oportunidadeespecialmente interessante ao ambiente urbanopor atuar na reciclagem de dejetos orgânicos(WATERS-BAYER, s.d.) e ciclagem de nutrientes(MOUGEOT, 2006). Sua prática é observada emcidades latino-americanas, como Lima, La Paz,Cidade do México e regiões da Ásia, comoCingapura, Hong Kong e Calcutá (SMIT et al.,1996; WATERS-BAYER, s.d.), onde o fornecimentoao mercado consumidor por meio de pequenosprodutores é crescente, podendo tambémcontribuir para a sobrevivência de populações emáreas de risco.

Segurança Alimentar – a participação daagricultura urbana no acesso aos alimentos.

O acesso regular aos alimentos é um dospontos fundamentais para a garantia da segurançaalimentar de dada população (FROZI e GALEAZZI,2004; FAO, 2009).

No município de Porto Ferreira, 100% dosagricultores urbanos entrevistados afirmaramconsumir verduras e legumes regularmente, assimcomo leguminosas, como o feijão, apesar dasfrutas serem citadas por apenas 55,6% destes.Verduras, legumes e frutas são ricos em vitaminas,minerais e fibras, e a presença destes alimentosnas refeições diárias é fundamental ao aspecto dasegurança nutricional, contribuindo para a proteçãoà saúde e diminuição do risco de ocorrência dedoenças (BRASIL, 2006). Boog et al. (2008), emestudo sobre o consumo de frutas, verduras elegumes por famílias agricultoras, verificaram queapesar de 80,0% destas famílias possuírem

árvores frutíferas no quintal, para consumo próprio,as frutas não são categorizadas como 'alimento'quando esses sujeitos são entrevistados, sendoque estes priorizam citar alimentos 'quesustentam', segundo sua percepção.

Farináceos e cereais foram citados como parteda composição da dieta alimentar regular porapenas 66,7% dos agricultores. Conformeinformações do Guia Alimentar para a PopulaçãoBrasileira (BRASIL, 2006), a alimentação saudávelinclui grandes proporções de carboidratoscomplexos, e o consumo diário deve conter seisporções proveniente do grupo de cereais, raízes,tubérculos e derivados. Caroba et al. (2008)também verificaram que o consumo deste grupode alimentos pelas famílias urbanas da RegiãoSudeste não atendem a tais recomendações.

Quanto ao consumo de proteína animal, 72,2%dos entrevistados afirmam alimentar-se de carnevermelha e 55,6% do total também consomemcarne branca, compreendendo tanto aves comopeixes. Uma consideração deve ser feita nesteaspecto, já que por vezes os indivíduos seesquecem ou omitem alimentos consumidos defato (MARCHIONI et al., 2003), e neste casoconsideramos que é possível que algunsentrevistados possam ter supervalorizado oconsumo de um componente da dieta, nesse casoa carne, que tem maior valor de mercado, e podeestar associado a status socioeconômico. Nessesentido, diversos estudos utilizam-se de mais deuma abordagem metodológica para reforçar aacurácia do inquérito alimentar verificar o consumoalimentar (MARCHIONI et al. 2003). Os demaisprodutos derivados de origem animal, porém,apareceram com menor frequência, com 55,6%destas famílias contando com ovos na suaalimentação, e 38,9% consumindo leite e seusderivados, como queijo. Ao avaliar a contribuiçãonutricional da agricultura urbana a uma populaçãoem Santa Maria/RS, Pessoa et al. (2006)verificaram que esta população encontra-se

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suprida dos nutrientes oriundos das hortaliças,frutas e legumes. Porém houve deficiência emalimentos mais ricos em minerais como cálcio eferro, encontrados principalmente nas carnes, leitee derivados, uma vez que a produção animal nomeio urbano é rara, e o acesso através da comprarestrito, devido ao custo elevado destes alimentosno mercado. Apesar do consumo de alimentos deorigem animal pela população brasileira teraumentado desde meados da década de 1990, arenda familiar e os preços relativos são fortesdeterminantes da aquisição e da escolha dascategorias dos alimentos. Por conseguinte, apresença de carnes e embutidos, tanto quanto deleite e derivados é proporcional à renda familiar, ouseja, é maior conforme ocorre o crescimento dosrendimentos familiares (CAROBA et al., 2008).

De fato, 11,1% das famílias entrevistadas emPorto Ferreira afirmaram ter a produção desubsistência como fonte exclusiva dos alimentoshortifruticolas, e outros 66,7% a complementamcom a compra em supermercados e varejões domunicípio, sendo que apenas 22,2% afirmaramque a produção local é irrelevante, comprandotodos os hortifruticolas em supermercados. Issodemonstra que agricultura urbana e o mercadoconvencional exercem funções complementares noacesso desta população aos alimentos de origemvegetal. Além disso, 16,7% afirmaramcomplementar a compra de verduras e legumesdiretamente de sitiantes e de vendedoresambulantes que realizam a distribuição destesprodutos diretamente no bairro. Não houve registrode utilização de hortas comunitárias ou de feiraslivres.

Por outro lado, 100% dos participantes queconsumiam alimentos de origem animal, osadquiriam em supermercados, que atualmentecontam com açougues integrados à sua rede decomercialização, provavelmente um indicativo deopção pela conveniência do acesso aos diferentesprodutos em um único local, uma vez que nenhum

entrevistado mencionou a utilização de açougues,padarias ou feiras. A produção para subsistênciaestava presente na complementação alimentar deorigem animal em 16,7% destas famílias,consistindo em ovos e carne de frango. Alémdisso, 5,6% afirmaram buscar o leite em sítiopróximo à região.

Outro aspecto da segurança alimentar estárelacionado à qualidade do alimento. SegundoBelik (2003) isso implica, entre outros fatores, queos alimentos não estejam submetidos a qualquertipo de risco por contaminação. Nesse sentido, ossistemas urbanos de produção, em pequenaescala, sem utilização de fertilizantes químicos,agrotóxicos ou herbicidas representam um fatorchave na garantia do alimento saudável e dequalidade aos consumidores. Nesses sistemas foipossível notar que o aproveito de recursos locais épriorizado, em que 88,9% das unidades deagricultura urbana avaliadas afirmaram utilizaresterco e/ou restos culturais na adubação, 88,9%afirmaram não apresentar problemas de pragas edoenças e, portanto, não necessitar aplicação deagrotóxicos e ainda 94,4% utilizavam a capinamanual, ao invés de herbicidas, no controle davegetação espontânea.

Destino da produção – a abrangência e osbeneficiários da agricultura urbana

O destino dos produtos da agricultura urbanafoi predominantemente para o autoconsumo(88,9%), o que confere com os dadosapresentados acerca das razões da participaçãoem tais atividades, na maioria relacionadas àsubsistência e tradição cultural. Apenas 11,1%afirmaram realizar algum tipo de comercializaçãodos produtos oriundos da agricultura urbana e,ainda assim a venda era de apenas parte daprodução.

Os beneficiários destas atividades de cultivo,entretanto, não se limitaram aos contribuintes namão-de-obra e seus familiares imediatos. Uma

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expressiva parcela de 83,3% dos participantesafirmaram distribuir os excedentes da produçãopara a vizinhança, e 50,0% também os enviavampara parentes que residiam em outras localidades.Apenas 16,7% da população amostrada consumiatudo o que era produzido exclusivamente entre osmembros familiares residentes no local. SegundoBoog et al. (2008), uma estratégia importante paraa obtenção de alimentos é a doação entre vizinhosde gêneros produzidos nas próprias áreas, no casosítios, sendo essa uma prática comum entre asfamília por eles estudadas.

Ao realizar uma auto-avaliação sobre acontribuição da agricultura urbana na economiafamiliar, 94,4% dos participantes atribuíram a estaatividade a economia na compra de alimentos. Asfamílias pobres da América Latina destinam entre50 e 80% de seus rendimentos em alimentação(FAO, 2009), sendo a redução dos gastos comalimentação uma das questões centrais nagarantia da segurança alimentar e nutricional dasfamílias pertencentes aos estratos inferiores derenda (FROZI e GALEAZZI, 2004). Neste sentido,a agricultura em pequena escala tem potencialpara produzir alimento suficiente não apenas paracobrir as necessidades dos agricultores e suasfamílias, mas também contribuir para melhorar asegurança alimentar e ser uma ferramentacatalisadora do crescimento econômico (FAO,2009), também em escala regional.

Assim, embora a produção oriunda daagricultura urbana não esteja interiorizada comouma fonte de renda, mesmo que indireta, suautilização para autoconsumo contribui na SAN e namelhora do nível de vida dessas comunidades(FAO, 2009).

Considerações FinaisPodemos ressaltar os seguintes aspectos

acerca da avaliação da Agricultura Urbana emPorto Ferreira:

- As atividades envolviam majoritariamente a

população carente, tanto em termos de rendacomo de acesso à educação. A maioria dasfamílias produtoras eram de origem rural,entretanto os membros mais jovens, eram deorigem urbana.

- A principal razão que levou à prática agrícolafoi a produção de alimento para consumo esubsistência, seguido pela tradição comagricultura, demonstrando a importância daagricultura urbana à segurança alimentar e aobem estar.

- O cultivo nas áreas urbanas não é recente,porém o terreno não é de propriedade doagricultor, o que pode causar insegurança noinvestimento em tais atividades.

- O principal sistema de cultivo foi ahorticultura, com alta diversidade de frutas,legumes, medicinais e condimentares. A presençade criação animal foi mínima.

- O acesso a hortifrutícolas pela agriculturaurbana foi garantido à maioria dos participantes,complementados pela compra em supermercados.Já os derivados animais necessitam ser adquiridosem supermercados em 100% dos casos.

- Em termos de qualidade, os alimentosproduzidos na agricultura urbana em geralestavam livres de contaminantes como agrotóxicose herbicidas.

- Os beneficiários da agricultura urbanaestavam além das famílias produtoras, uma vezque os excedentes da produção eramfrequentemente distribuídos a vizinhos e parentesnão-residentes no local, de forma solidária.

- A agricultura urbana também é benéfica àeconomia familiar, uma vez que houve reduçãodos gastos destinados à alimentação, cujoorçamento pôde ser relocado a outros setores dobem-estar social destas famílias.

Diante desta avaliação, podemos afirmar que aagricultura urbana desempenhou um forte papelna garantia da segurança alimentar desta

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população, tanto em termos de produção e acessoao alimento, em especial os de origem vegetal,quanto em termos de diversificação e qualidadedeste alimento, produzido e processadolocalmente, com potencial de contribuição namelhoria do estado nutricional desses indivíduos.Além disso, a agricultura urbana pode constituiruma importante fonte de rendimento não-monetário, que se refere à utilização e consumo deprodutos que são adquiridos através de produçãoprópria, pesca, trocas, doações entre outros, quesegundo o IBGE constituem 13,9% do rendimentomédio familiar nas áreas urbanas (IBGE, 2004).

Seria válido, ainda, em pesquisas futuras,avaliar a contribuição da agricultura urbana para asegurança alimentar da comunidade como umtodo, assim como, enquanto sociedade civil erepresentantes governamentais, estimular ofortalecimento de sistemas alimentaressustentáveis, como fortalecer a segurançaalimentar em escala comunitária, uma iniciativaque já vem sendo observada em algumaslocalidades.

Nas perspectivas em longo prazo, a agriculturaurbana poderá ser um elemento atuante nasustentabilidade das cidades, especialmente se oseu potencial de uso multifuncional for reconhecidoe completamente desenvolvido. Dada aimportância destas atividades como complementoalimentar e indiretamente de renda, políticaspúblicas municipais que incentivem este tipo deagricultura deve ser implementadas,complementando outras ações sociais. Esperamosque este trabalho possa contribuir noreconhecimento das atividades que vem sendodesenvolvidas pelas comunidades, e servir comoferramenta na formulação de ações voltadas àimplantação e suporte à prática de agriculturaurbana, especialmente às comunidades de baixarenda.

Notas

1 Segundo o artigo 3º da Lei Orgânica deSegurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), asegurança alimentar e nutricional consiste narealização do direito de todos ao acesso regular epermanente a alimentos de qualidade, emquantidade suficiente, sem comprometer o acessoa outras necessidades essenciais, tendo comobase práticas alimentares promotoras de saúde,que respeitem a diversidade cultural e que sejamsocial, econômica e ambientalmente sustentáveis”(CONSEA, 2009).

2 Para fins de análise dos dados no presenteestudo, em geral foi considerado adultos aquelescom maioridade legal segundo o Código CivilBrasileiro, com idade a partir de 18 anos, capazpara o exercício dos atos de vida civil. Únicaexceção para análise da estrutura etária, para aqual foram criadas classes com maiordetalhamento de informações.

3 Segundo a qual a estrutura etária éclassificada em crianças e adolescentes (até 14anos), jovens (15 a 24 anos), adultos (25 anos a59 anos) e idosos (mais de 60 anos) (IBGE, 2009).

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