revista jurídica 426 - o desvirtuamento do sistema

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DOUTRINA D OUTRINA P ENAL PENAL O DESVIRTUAMENTO DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO PERANTE O CARÁTER RESSOCIALIZADOR DA PENA DIEGO AUGUSTO BAYER Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires, Especialista em Direito Penal (Uniasselvi/SC) e Gestão Estratégica Empresarial (FURB/SC), Membro da Comissão de Assuntos Prisionais da OAB/SC, Professor de Direito Penal (Católica/SC e Uniasselvi/FAMEG), Processo Penal (Uniasselvi/FAMEG) e Criminologia (Uniasselvi/FAMEG), Professor de Princípios Penais e Processuais Penais no Curso de Pós-Graduação em Direito Penal e Processo Penal (Faculdade Meridional/IMED). CAIO MATEUS CAIRES RANGEL Doutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires, Especialista em Ciências Criminais (Jus Podivm/BA), Professor na Faculdade Estácio de Sá, Faculdade Dois de Julho e Faculdade São Salvador. RESUMO: Este artigo teve como objetivo tratar da realidade atual do sistema prisional no Brasil. A pesquisa exploratória e bibliográfica possibilitou apresentar uma análise da pena, sua origem, história e sua evolução dentro do ordenamento jurídico até o surgimento da pena de prisão e dos sistemas penitenciários. O artigo se concentrou também em relatar o ideal ressocializador e seu conceito, tratando especificamente da evolução e aplicabilidade dentro do ordenamento jurídico brasileiro, trazendo as formas utilizadas para ressocialização e seus resultados quando aplicado. Por fim, apresentaram-se as reais condições dos estabelecimentos penais no Brasil, ana- lisando a efetividade das previsões legais acerca da execução penal, apresentando-se uma análise do princípio da dignidade da pessoa humana perante as condições atuais dos sistemas prisionais brasileiros.

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Artigo o desvirtuamento do Sistema Prisional - Revista Jurídica

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    PenalO DESVIRTUAMENTO DO SISTEMA

    PRISIONAL BRASILEIRO PERANTE O CARTER RESSOCIALIZADOR DA PENA

    Diego Augusto BAyerDoutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires,

    Especialista em Direito Penal (Uniasselvi/SC) e Gesto Estratgica Empresarial (FURB/SC), Membro da Comisso de Assuntos Prisionais da

    OAB/SC, Professor de Direito Penal (Catlica/SC e Uniasselvi/FAMEG), Processo Penal (Uniasselvi/FAMEG)

    e Criminologia (Uniasselvi/FAMEG), Professor de Princpios Penais e Processuais Penais no Curso de Ps-Graduao em

    Direito Penal e Processo Penal (Faculdade Meridional/IMED).

    CAio MAteus CAires rAngelDoutorando em Direito Penal pela Universidad de Buenos Aires,

    Especialista em Cincias Criminais (Jus Podivm/BA), Professor na Faculdade Estcio de S, Faculdade

    Dois de Julho e Faculdade So Salvador.

    RESUMO: Este artigo teve como objetivo tratar da realidade atual do sistema prisional no Brasil. A pesquisa exploratria e bibliogrfica possibilitou apresentar uma anlise da pena, sua origem, histria e sua evoluo dentro do ordenamento jurdico at o surgimento da pena de priso e dos sistemas penitencirios. O artigo se concentrou tambm em relatar o ideal ressocializador e seu conceito, tratando especificamente da evoluo e aplicabilidade dentro do ordenamento jurdico brasileiro, trazendo as formas utilizadas para ressocializao e seus resultados quando aplicado. Por fim, apresentaram-se as reais condies dos estabelecimentos penais no Brasil, ana-lisando a efetividade das previses legais acerca da execuo penal, apresentando-se uma anlise do princpio da dignidade da pessoa humana perante as condies atuais dos sistemas prisionais brasileiros.

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    PALAVRAS-CHAVE: Penas; teoria; priso; etiquetamento; desvir-tuamento; ressocializao.

    SuMRIO: Consideraes iniciais; 1 A origem das penas e a deri-vao das teorias; 2 Do surgimento das prises e da pena privativa de liberdade; 3 Da ressocializao e sua insero na legislao brasi-leira; 4 Atuais condies da ressocializao no sistema penitencirio brasileiro; Consideraes finais; Referncias.

    considerAes iniciAis

    O Brasil um dos percussores da ideia de ressocializao do indivduo que cumpre pena privativa de liberdade, ideal este contemplado desde a pro-mulgao da Lei n 3.274, de 02.10.1957. Aps a promulgao desta lei, veio ainda a Lei n 7.210/1984, chamada Lei de Execuo Penal, que dispe acerca das formas da execuo da pena e seu objetivo de reinsero social.

    Mesmo com o largo espao de tempo transcorrido aps a promulgao da referida lei, em quase nada alterou a forma de tratamento dos indivduos no sistema penitencirio brasileiro, pois o tratamento ressocializador nunca foi efetivamente implantado, e apesar da teoria prever a educao e o tra-balho do preso, para que este seja reinserido na sociedade e reintegrado na mesma, na prtica no o que vem acontecendo.

    O ideal de ressocializao muito bem visto pelos doutrinadores e ob-jeto tambm de muitos artigos, os quais trazem, em sua maioria, a ressocia-lizao como forma de reinserir o indivduo que cumpre pena na sociedade da qual foi retirado, para que este possa retomar uma vida normal e longe do crime.

    O que falta no Brasil e no somente no Brasil , segundo os diversos doutrinadores e pesquisadores do tema, que o ideal de ressocializao seja implantado no sistema carcerrio e seja cumprido, contemplando tudo o que previsto aos presos, que, alm de cumpridores de deveres, tambm so se-res humanos que possuem seus direitos.

    1 A origem dAs PenAs e A derivAo dAs teoriAs

    As penas sofreram muitas mutaes durante toda a histria, podendo estas ser divididas em duas fases: a) a primitiva, que comporta a vingan-a privada (Talio e Cdigo de Hamurabi), a vingana divina (Cdigo de Manu), a vingana pblica (a pena era entendida como meio de conservao

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    do Estado Roma Antiga); e b) humanitria, surgida no ano de 1764, com a obra de Cesare Bonesanna, o Marqus de Beccaria, intitulada Dos delitos e das penas. Em cada uma dessas fases, a pena apresenta sentido e finalidades distintas.

    A origem da pena vem com o surgimento da humanidade, onde as civilizaes mais antigas j conheciam o significado desta punio quando violados os direitos de outrem. Acerca disso, traz Dotti (2001, p. 123) que:

    Em todos os tempos, em todas as raas ainda as mais rudes ou degene-radas, encontramos a pena como o malum passions quod infligitur propter malum acciones, como uma invaso na esfera do poder e da vontade do indivduo que ofendeu e porque ofendeu as esferas do poder e da vontade de outrem.

    Nos primrdios da civilizao, a concepo da pena girava em torno da prevalncia da lei do mais forte, na qual cabia a autocomposio, conhecida como vingana privada, utilizada por quem foi ofendido para sanar o mal cometido, sendo facultada a resoluo por sua prpria fora, de seu grupo ou de sua famlia, para, assim, conseguir exerc-la em desfavor de quem o prejudicou.

    A pena de Talio foi o primeiro passo repressivo contra o abuso nas penas, a qual delimitou ao impor que delinquente sofresse o mesmo que produzira com sua ao. Tal pena foi adotada no Cdigo de Hamurabi, o qual havia explicitado que toda leso causada a outrem se pagaria na mesma moeda, formando-se o famoso jargo olho por olho, dente por dente. Tra-zem os historiadores que a pena de Talio tambm foi utilizada em outros cdigos da poca, tal como a Lei das XII Tbuas, Pentateuco e no Cdigo de Manu.

    No perodo da vingana divina, dominava-se a ideia de que a repres-so era a satisfao da divindade, qual fora ofendida pelo crime. Pune-se com rigor, pois o castigo deve estar em relao com a grandeza do Deus ofendido. Este perodo era colocado em prtica o chamado direito penal religioso, teo-crtico e sacerdotal. Com este carter de vingana divina, onde os principais cdigos criados foram o da ndia, China, Prsia, Israel e Babilnia, qual tinha como base a purificao da alma do criminoso por meio do castigo, para que ele pudesse alcanar a bem-aventurana, ficando a aplicao da pena a car-go do sacerdote.

    Na poca da vingana pblica, o objetivo era garantir a segurana do prncipe ou soberano, por meio de pena cruel e severa, visando intimidao,

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    sendo aplicada pelo monarca, a livre arbtrio, mas em nome de Deus. Ape-sar de no haver quaisquer garantias aos sditos ou subordinados, essa fase apresentou uma evoluo na aplicao das penas, pois outorga a sua aplica-o ao Estado, ainda que este a exera com rigor desmedido.

    No que tange a este perodo, Noronha (1997, p. 21) descreve que: O di-reito e o poder de punir emanavam de Jpiter, o criador e protetor do univer-so. Dele provinha o poder dos reis e em seu nome se procedia a o julgamento do litgio e a imposio do castigo.

    Combatendo todas as penas abusivas e desproporcionais, os julgamen-tos parciais e os mtodos desumanos de produo de prova, surge Cesare Bonesanna, o Marqus de Beccaria, inaugurando o perodo humanista, des-pertando na conscincia comum a necessidade de modificaes e reformas no direito repressivo.

    Marqus de Beccaria, ao invs de entregar-se a vida despreocupada e cmoda que sua posio proporcionava, preferiu voltar suas vistas para os infelizes e desgraados que sofriam os rigores e as arbitrariedades da justia daquela poca, expondo seus pensamentos por meio de seu famoso livro Dos delitos e das penas, do ano de 1764.

    Seu pensamento teve continuidade com a Declarao universal dos Direitos do Homem, em 1789, que teve a finalidade de construir um sistema penal mais justo e humano, o que, consequentemente, se refletiu nas espcies e finalidades das penas de priso.

    A partir da, vrias so as teorias que procuram justificar o fim da pena, nas quais as penas foram evoluindo em face de um sentido maior de huma-nizao. Podemos dividir as teorias em quatro pontos: a) Teoria absolutista ou retributiva da pena; b) Teoria relativa ou de preveno; c) Teoria mista ou unificadora; d) Teorias extremadas da pena: abolicionismo penal, direito penal mximo e garantismo penal.

    Para a teoria absolutista, a pena tem a finalidade retributiva, atuando como uma resposta ao infrator pelo mal cometido, no se vinculando a fim algum, impondo-se a pena com a exclusiva tarefa de realizar justia.

    Kant, segundo Carvalho (2003, p. 122), foi um dos grandes defensores desta teoria:

    O modelo penalgico de Kant estruturado na premissa bsica de que a pena no pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem,

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    ou seja, o fim utilitrio ilegtimo. Se o direito utilizasse a pena como instru-mento de dissuaso, acabaria por mediatizar o homem, tornando imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposio de um mal decorrente da violao do dever jurdico, encontrando neste mal (violao do direito) sua devida proporo. Muito embora utilize critrios de medida e propor-o da pena, Kant rememorar modelos primitivos de vingana privada. A teoria absoluta da pena sob o vis kantiano recupera o princpio talinico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade.

    Tentando suprir as falhas desta teoria, surgiu a teoria relativa ou pre-ventiva. Esta teoria parte do pressuposto de que o crime pode ser evitado, reconhecendo que a pena tambm causa um mal ao infrator, no bastando apenas a retribuio do mal pelo mal. Cria-se, ento, a pena como instrumen-to poltico-criminal, buscando uma alternativa possvel a ser realizada e que possa efetivamente evitar/prevenir o cometimento de outro crime.

    O carter preventivo da pena dividiu-se em dois aspectos, geral e es-pecial, que, por sua vez, subdividiram-se em outros dois cada. Desta forma, encontramos hoje quatro enfoques de carter preventivo: a) geral negativo; b) geral positivo; c) especial negativo; e d) especial positivo.

    A preveno geral negativa busca, no poder intimidativo que o Direito Penal representa a toda sociedade, destinatria da norma penal, a preven-o da prtica criminosa, procurando a intimidao por meio da tipificao de determinadas condutas. Traz a ideia de desestimular as pessoas de pra-ticarem o crime pela ameaa da pena. J a preveno geral positiva visa de-monstrar e reafirmar a eficincia do direito penal, por meio da afirmao da validade das normas, tentando neutralizar o efeito negativo do delito para a sociedade, aumentando a conscincia jurdica.

    Quanto preveno especial, essa se diferencia da geral porque tem por destinatrio o infrator e no a sociedade. A preveno especial negativa tem por finalidade impedir a possvel nova ao do infrator, e, para isso, utiliza-se de tcnicas discutveis e extremadas (pena de morte e isolamento). J a preveno especial positiva percebe o infrator passvel de recuperao e encontra a melhor forma para evitar que ele cometa novo crime, por meio de um trabalho multidisciplinar com socilogos, psiclogos, assistentes sociais, entre outros.

    Notando que somente a teoria preventiva no teria o sucesso pretendi-do, surge a teoria mista ou unificadora. A teoria mista procurou reunir carac-teres da preveno e da retribuio. Essa teoria trouxe que, ao aplicar a pena,

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    esta deveria ser dosada de modo suficiente para reprovar e prevenir o crime, alm de possibilitar o retorno do infrator ressocializado.

    Na tentativa de encontrar solues para o crescente aumento da crimi-nalidade e ineficcia da pena como preveno, surgem teorias que vo de um extremo ao outro. A teoria do abolicionismo penal sustenta a descriminaliza-o e a despenalizao de certas condutas, para que se resolva a ineficcia do sistema carcerrio. A teoria do direito penal mximo j o oposto da teoria abolicionista, entendendo que quanto mais severo o direito penal, quanto mais condutas punir e quanto maior for a pena, menos criminalidade haver.

    J a teoria do garantismo penal um meio termo entre o abolicionismo e o direito penal mximo. Ele respeita a estrita legalidade, procurando mini-mizar a violncia e maximizar a liberdade por meio de limites ao jus puniendi. A ideia a de que o Estado, detentor do direito de punir, precisa respeitar as garantias individuais previstas na Constituio Federal para aplicar uma sano.

    Esse modelo apresenta os seguintes caracteres: no h crime sem pena; no h crime sem lei; no h lei penal sem necessidade; no h necessidade de lei penal sem leso; no h leso sem conduta; no h conduta sem dolo e sem culpa; no h culpa sem o devido processo legal; no h processo sem acusao; no h acusao sem prova que a fundamente; no h prova sem ampla defesa.

    2 do surgimento dAs Prises e dA PenA PrivAtivA de LiberdAde

    As prises tm sua origem na Antiguidade, quando era completamen-te desconhecida a privao da liberdade como meio de reeducao e reinser-o do condenado na sociedade, sendo considerada estritamente uma sano penal. As prises eram utilizadas somente como forma de custdia ao prisio-neiro que estivesse aguardando julgamento ou execuo de pena de morte.

    Com a evoluo das penas e o momento em que o Estado chamou para si a responsabilidade de aplic-las, diminuiu as penas de morte, necessitando de uma soluo mais adequada. A partir da, temos o surgimento e o desen-volvimento da pena privativa de liberdade e a necessidade da construo de prises organizadas para punio dos infratores.

    O pas pioneiro na implantao do sistema penitencirio foi a Holanda, no sculo XVI, surgindo as prises como instituies. As primeiras constru-

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    es penitencirias como instituies foram a Penitenciria de Bremem, em 1609, a primeira Instituio Francesa, em 1656, o Hospcio de So Miguel, em Roma, no ano de 1703, e a Casa de Correo de Grand, em 1775.

    Os sistemas prisionais tambm evoluram muito durante o decorrer dos anos, podendo ser divididos em quatro formas: a) sistema panptico; b) sistema filadlfico; c) sistema auburniano; e d) sistema progressivo.

    O sistema panptico, apresentado no final do sculo XVII por Geremias Bentham, era um tipo de priso celular, caracterizada pela forma radical em que uma s pessoa podia exercer em qualquer momento, em um posto de observao, a vigilncia dos interiores das celas. Nesse sistema, o prisioneiro ficava trancado em sua cela, sozinho, espionado por um sentinela, sem que o pudesse ver, no havendo assim perigo de evaso, de projetos de novos crimes, ms influncias e violncia.

    Entendendo que o sistema panptico no era o adequado, a Priso de Walnut-Street foi construda na Cidade da Filadlfia, adotando um sistema que ficou conhecido como filadlfico. Nesse sistema, os presos passavam o tempo todo em celas individuais, sendo aplicada a regra do silncio absoluto. Entendia-se que o condenado deveria utilizar o tempo da priso para refletir e se arrepender de seus erros. Tinha carter religioso acentuado e procurava utilizar a prtica do trabalho como instrumento para a reinsero (Sedrez, 2008).

    A necessidade e a vontade de superar os defeitos e as limitaes do regime celular foram algumas das razes para o surgimento do sistema au-burniano, em que eram adotados o trabalho em comum e a regra do silncio absoluto. Criado em 1818, na Cidade de Alburn, Nova Iorque, esse sistema era baseado principalmente no trabalho forado do apenado, considerando que seria ressocializado por meio do trabalho.

    Por fim, baseando-se nos sistemas anteriormente adotados, criou-se, ainda no sculo XIX, o sistema progressivo, mais precisamente em 1846, na Inglaterra. No presdio da Ilha de Norfolk, o Capito da Armada Inglesa, Alexander Maconochie, introduziu o sistema de marcas, segundo o qual o condenado recebia vales quando o comportamento era positivo e os perdia quando no se comportava bem. Ainda na Inglaterra, o sistema foi aprimo-rado, criando-se fases de progresso de regime, alm de que, com a evoluo do comportamento, o condenado recebia regalias, podendo chegar at ao li-vramento condicional.

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    Explica Falconi (1998, p. 62):

    Posteriormente, ainda na Inglaterra, o sistema foi aprimorado, introduzin-do-se trs fases no cumprimento da pena privativa de liberdade: a primei-ra consistia num perodo de prova, com absoluto isolamento celular; na segunda, j o apenado tinha direito ao trabalho comum, mas obedecendo ao silen system, originrio de poca anterior; finalmente o condenado era transferido para o Public Work-House, passando da em diante por rega-lias cada vez maiores at alcanar o livramento condicional.

    O sistema progressivo significou um avano considervel ao sistema penitencirio, dando importncia vontade do recluso, alm de diminuir o rigor na aplicao da pena privativa de liberdade.

    3 dA ressociALizAo e suA insero nA LegisLAo brAsiLeirA

    Com a evoluo das penas, a pena privativa de liberdade se tornou a ressocializao do condenado, a qual visa que este indivduo cumpra a pena e possa retornar sociedade e continuar sua vida normalmente, com uma profisso da qual ir tirar seu sustento e de sua famlia.

    A palavra ressocializar transmite a ideia de socializar novamente, ou seja, aquele indivduo que convivia em sociedade e dela foi retirado para cumprir pena por delito cometido, nela deve ser reinserido de forma a no ser prejudicado pelo tempo que ficou longe e tambm para que no venha a prejudicar outros indivduos pertencentes a essa sociedade.

    Admite-se tambm outros termos, designados ao ideal de ressocializa-o, sendo eles: reeducao, reinsero social, readaptao social, e ainda ou-tros. Como se pode observar, todos exprimem a ideia de que a ressocializao tem funo de trazer de volta o indivduo que, por algum motivo, tenha se desvirtuado do grande grupo (Hassemer apud Bitencourt, 2004, p. 136).

    Para que essa ressocializao acontea, no basta apenas colocar o con-denado nos sistemas penitencirios somente para ficar enclausurado at que cumpra sua pena. necessrio, ento, que se tenha um programa que possi-bilite a ressocializao do preso.

    O Brasil foi um dos precursores do ideal ressocializador com a promul-gao da Lei n 3.374/1957, na qual previa, em seu art. 22 e pargrafo nico, o seguinte:

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    Toda educao dos sentenciados (art. 1, inciso XIII) levando-se em conta os ndices psicopedaggicos (art. 9) e orientada a sua vocao na escolha de uma profisso til, objetivar readapt-lo ao meio social.

    Pargrafo nico. Nesse sentido sero organizados os respectivos progra-mas, de modo que a educao intelectual, artstica, profissional e fsica se processem em equilbrio no desenvolvimento eugnico das faculdades mentais em consonncia com a sade e fortalecimento do corpo.

    Essa legislao trouxe os elementos necessrios para a readaptao do indivduo na sociedade, prevendo a organizao de programas, para que fos-se alcanado o objetivo do ideal da ressocializao.

    No ano de 1984, a Lei n 3.374/1957 foi revogada pela Lei n 7.210, de-nominada de Lei de Execuo Penal, vigente atualmente, a qual trouxe, em seu art. 1, a seguinte redao: A execuo penal tem por objetivo efetivar as disposies de sentena ou deciso criminal e proporcionar condies para a harmnica integrao social do condenado e do internado.

    Essa lei prev alguns elementos para a execuo da pena no Brasil, sendo eles a assistncia educacional e o trabalho, quais esto previstos res-pectivamente na Lei de Execuo Penal, na Seo V do Captulo II, e Sees I, II e III do Captulo III.

    Em relao ressocializao por meio da educao, esta surgiu somen-te por volta do ano de 1950, aps ter sido constatado o insucesso do sistema prisional de custdia, sendo necessria a busca por novos rumos, ocasionan-do, assim, a insero da educao escolar nas prises (Santos, 2005).

    A educao est prevista nos arts. 17 at 21, da Lei de Execuo Penal, na qual se dispe que a assistncia educacional ser prestada tanto na forma do ensino fundamental como tambm no profissional, podendo ser este feito por meio de convnio com entidades pblicas ou particulares que instalem escolas ou ofeream cursos especializados.

    A finalidade da ressocializao por meio da educao vem de encontro com a necessidade de que o indivduo que cumpre a pena esteja preparado para o retorno sociedade. Acerca disso, Santos (2005) comenta que:

    O Estado quando condena um indivduo que cometeu um crime contra a sociedade e por consequncia aplica a esse uma pena restritiva da liberda-de, teoricamente, acredita que aps o cumprimento da sentena expedida esse indivduo estar pronto para voltar, em harmonia, ao convvio social. O que ento se costuma chamar de reeducao social, uma espcie de pre-

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    parao temporria pela qual precisa passar todo criminoso condenado pela justia.

    No que tange educao como forma de ressocializar, h de se levar em considerao trs coisas fundamentais: em primeiro lugar, um programa muito bem estruturado, para que se atinjam os objetivos da assistncia edu-cacional; em segundo lugar, deve haver uma infraestrutura fsica que com-porte as previses legais, como uma biblioteca de acesso a todos; e, em ter-ceiro lugar, muito importante que haja verbas designadas a esse fim, para que se coloque pessoal qualificado que trabalhe com os apenados, e tambm para que se adquiram os materiais necessrios para a realizao dos estudos.

    Ocorre que estava muito difcil alcanar a pessoa do preso para que este tivesse interesse pelo estudo, haja vista que a ideia que eles mesmos tm de que esto ali somente para cumprir a pena imposta.

    Tentando alcanar o preso, a Lei n 12.433, do ano de 2011, trouxe al-gumas alteraes Lei de Execuo Penal, possibilitando ao condenado que cumpre pena privativa de liberdade (no regime fechado e regime semiaber-to), conforme art. 126, 1, inciso I, a diminuio de sua pena um dia a cada doze horas de frequncia escolar, divididas, no mnimo, em trs dias, fazendo com que o condenado se incentive a diminuir a pena por meio da educao.

    No que tange ressocializao da pena por meio do trabalho, esta j acontece antes mesmo de estar prevista na legislao brasileira. Segundo Bitencourt (2004, p. 89-91), Montesinos, quando este foi nomeado governador do Presidio de Valencia, em 1835, defendeu a ideia de que a melhor forma para se conseguir o propsito reabilitador da pena era por meio do trabalho. Por meio do trabalho diminui-se a repugnncia que tinha o antigo mal-estar dos presidirios, inspirando-lhes amor pelo trabalho, extinguindo seus vcios e maus hbitos.

    No entanto, o trabalho no deve ser visto apenas como uma forma de extirpar os maus hbitos do presidirio, e muito menos deve ser visto como forma de punio a quem cumpre sua pena. Tem o trabalho, acima de tudo, a funo de ensinamento, ou seja, a profissionalizao. Aprender uma profis-so para que possa exercer no mundo fora dos muros da penitenciria o qual possivelmente logo estar de volta.

    um dos problemas enfrentados pelo trabalho o fato de que a socie-dade, na maioria das vezes, no admite que saia algo da penitenciria que tenha sido feito pelos apenados e que seja to bom quanto os produtos que

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    so produzidos por quem se encontra livre. Acerca disso, discorre Bitencourt (2004, p. 93):

    Embora se fale na misso ressocializadora da pena, a prpria sociedade pressiona para que a realidade penitenciria seja somente um meio de iso-lamento, onde as possibilidades de conseguir uma autntica reintegrao social so praticamente inexistentes.

    Mas, apesar dos problemas encontrados, o trabalho tem sido a melhor forma encontrada para a reintegrao do apenado sociedade. Por meio do trabalho os presos aprendem uma profisso, mantm sua mente ocupada, alm de estarem prontos para o mercado por meio da qualificao profis-sional.

    No ordenamento brasileiro, a ressocializao por meio do trabalho en-contra amparo nos arts. 28 at 37, da Lei de Execuo Penal, na qual se dis-pe que este deve ter finalidade educativa e produtiva, sendo devidamente remunerado. No trabalho interno, conforme o art. 31, fica estipulado que o condenado pena privativa de liberdade est obrigado ao trabalho. Para ser efetuado o trabalho nas penitencirias, entende a lei que pode ser celebra-do convnio com iniciativa privada para implantao de oficinas dentro da empresa.

    J em relao ao trabalho externo, a legislao prev para os trs regi-mes (fechado, semiaberto e aberto), sendo que somente pode ser executado por presos em regime fechado em servio ou obras pblicas realizadas por rgos da administrao direta ou indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina.

    Para incentivar o trabalho, o art. 126 da Lei de Execuo Penal prev a remio de pena por meio do trabalho quando efetuado no regime fechado ou semiaberto, no qual, no 1, II, est previsto que a cada trs dias de traba-lho podem-se descontar um dia no restante da pena. Dessa forma, por meio da ressocializao, o preso incentivado a trabalhar para diminuir sua pena.

    Esse trabalho pode ser interno ou externo. O trabalho interno est pre-visto na legislao para presos condenados, cumprindo pena privativa de liberdade, e obrigatrio, conforme previsto na Lei de Execuo Penal.

    Segundo Barros (1999), o trabalho no prioridade, pois sai da condi-o de obrigao, como definido pela Lei de Execuo Penal, para a situao de concesso, privilgio de poucos. Observa-se a uma inverso do carter da norma.

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    Uma das dificuldades no trabalho interno espao fsico possvel para a instalao das empresas dentro dos presdios, bem como qual o modo de deslocar o preso at estas oficinas. Outra dificuldade encontrada que, a todo momento, tratam o preso como uma pessoa que no possui recuperao, a o medo de rebelies, fugas e at outros problemas em relao a estes trabalhos internos.

    Quanto ao trabalho externo, este ser realizado alm dos muros das prises, mas so apenas permitidos quando necessrios para realizao de obras pblicas, tanto pela administrao direta como pela indireta, com algu-mas excees para entidades privadas.

    Barros (1999) salienta que o trabalho externo (extramuros), previsto pelo legislador para o preso dos trs regimes, acompanha o sentido da pro-gressividade na execuo penal, ou seja, com o passar do tempo, deve-se di-minuir a vigilncia sobre o preso de forma a test-lo.

    No entanto, apesar de previsto na legislao, o trabalho externo para os trs regimes, na prtica no ocorre, eis que os apenados que cumprem pena em regime fechado necessitariam de uma vigilncia para sair dos presdios, conforme prev o art. 36 da Lei de Execuo Penal. Dessa forma, os agentes acabam no autorizando a sada dos presos que cumprem pena em regime fechado devido ao receio de que estes tentem a fuga.

    4 AtuAis condies dA ressociALizAo no sistemA Penitencirio brAsiLeiro

    Ocorre que este objetivo de reinsero por meio de educao e trabalho no vem sendo alcanado e essa possibilidade de remio de pena no est sendo executada devido s condies precrias e a superlotao do sistema penitencirio. Segundo os nmeros mais atualizados do Depen Departa-mento Penitencirio Nacional, o Brasil fechou o ano de 2011 com um total de 514.582 presos.

    Conforme pesquisas realizadas pelo Instituto Avante Brasil, instituto que tem como diretores Luiz Flvio Gomes e Alice Bianchini, o retrato do sis-tema penitencirio no Brasil semelhante em praticamente todos os Estados. As celas so verdadeiras jaulas, as instalaes so precrias, falta gua, co-mida, higiene, praticamente todos esto superlotados, existe muita violncia dentro das prprias celas, sem trabalho, sem estudo, vivendo em condies subumanas.

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    O sistema penitencirio brasileiro atual nada mais do que uma heran-a dos antigos instrumentos e das formas utilizadas para conter a criminali-dade e para punir indivduos que cometiam algum crime.

    Nilo Batista (1990, p. 125) j retratava que:

    Vestgios desse sistema, signo de uma formao social autoritria e esta-mental, encontram-se ainda hoje nas prticas penais (dis?) funcionais das torturas, espancamentos e mortes com as quais grupos marginalizados, pobres e negros costumam ser tratados por agncias executivas do sistema penal ou por determinao de novos senhores.

    A realidade atual dos presdios brasileiros est longe de alcanar o ob-jetivo ressocializador que tem a pena. As condies precrias e a superlota-o carcerria que contribuem para que as penas no Brasil tenham sentido inverso ao que se busca, que seria a reinsero social e o no cometimento, pelos mesmos indivduos, de novos crimes ao retornarem para a sociedade.

    Com a superlotao das penitencirias, no est sendo cumprido tam-bm o que dispe a Lei de Execuo Penal em seu art. 88, que prev a cela individual ao condenado e tambm que o local seja adequado s condies humanas.

    Ainda acerca da lotao dos estabelecimentos penais, a Lei de Execu-o Penal prev, em seu art. 85, que o estabelecimento penal dever ter lota-o compatvel com a sua estrutura e finalidade.

    Ou seja, no se respeita a lei que deveria regulamentar a ressocializa-o do preso, fazendo, portanto, que o carter de ressocializao da pena seja por completo desvirtuado. As atuais condies fsicas do sistema penitenci-rio no Brasil acarretam problemas muito maiores, que tm como expoente a m-acomodao dos presos e a prpria dificuldade de convivncia entre eles. Pior ainda a convivncia de presos de baixa ou nenhuma periculosidade com presos altamente perigosos, transformando os presdios em escolas do crime.

    Ainda quanto s condies atuais do sistema penitencirio brasileiro, a Comisso Interamericana de Direitos Humanos apresentou um relatrio no qual traz que, alm da superpopulao dos presdios, ainda so enfrentadas dificuldades nas reas de higiene e sade, alimentao, cama, roupa, entre outros. Conforme esse relatrio, a Comisso pode constatar as condies pre-crias em que se encontram os presos com relao higiene e tambm falta de atendimento mdico adequado.

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    A Comisso Interamericana de Direitos Humanos relata, ainda, acerca da realizao de trabalhos na priso brasileira, que:

    Sem embargo, muitos presos entrevistados pela Comisso se queixaram de que no h trabalho nas prises, o que os obriga a passar o dia todo dormindo ou andando de um lado para o outro. O censo penitencirio re-velou que 89% dos presos no desenvolvem qualquer trabalho, pedaggico ou produtivo, sendo esse um dos fatores mais decisivos para as tenses e revoltas nas penitencirias. Deve-se ressaltar que a maioria dos detentos tinha emprego produtivo antes de ir para a priso.

    Outro fator importante descrito pela Comisso acerca da diviso que deveria ocorrer dos presos de acordo com o delito cometido e tambm pela idade. Em visita a alguns presdios, a prpria Comisso constatou que essa diviso no ocorre nos estabelecimentos, o que contribui ainda mais para as complicaes encontradas na hora deste detento retornar sociedade. Muitos presos j condenados, que deveriam estar em estabelecimentos definitivos, encontram-se em locais destinados s prises temporrias, o que tambm no est dentro do que regulamenta a legislao.

    A Comisso recebeu, ainda, relatos quanto defasagem de pessoal qualificado para trabalhar nos estabelecimentos prisionais, recebendo depoi-mentos de que os agentes penitencirios muitas vezes tratam os presos de maneira desumana, cruel e prepotente, o que se traduz em torturas e cor-rupo.

    Por fim, abordou tambm a Comisso Interamericana acerca do srio problema das rebelies organizadas pelos presos na busca de melhorias. Re-latou a Comisso que, nos centros penais brasileiros, ocorrem em mdia duas rebelies e trs fugas por dia, todas com causas variadas.

    Portanto, de forma clara e at mesmo bvia, se observa que so muitos os problemas enfrentados por indivduos que cumprem pena privativa de liberdade, ou mesmo que aguardam julgamento nos estabelecimentos penais brasileiros, os quais certamente no atingem os seus objetivos, muito menos cumprem as previses legais acerca da execuo penal no ordenamento jur-dico brasileiro.

    considerAes finAis

    Verificou-se, neste artigo, que a efetividade da execuo penal nos esta-belecimentos penais brasileiros desvirtuada, uma vez que no se cumpre o

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    estabelecido na Lei de Execuo Penal. Apesar de estarem dispostos direitos e deveres do preso, na tentativa de alcanar o objetivo da ressocializao, existe um desvirtuamento gritante no sistema penitencirio brasileiro no que tange finalidade da pena.

    Observa-se, tanto pela anlise da pena como da anlise das prises, que muitos resqucios da histria ainda esto presentes dentro do sistema penitencirio brasileiro, o qual se encontra falido, em condies precrias, sem qualquer possibilidade de proporcionar ao preso uma condio de se ressocializar e se reintegrar sociedade.

    Conforme relatou o relatrio da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, em visita aos sistemas penitencirios brasileiros, as condies em que os presos esto cumprindo as suas penas no se adequam em nada no que est previsto na legislao acerca da execuo penal, estando estes viven-do em condies subumanas, sendo agredido frontalmente o princpio da dignidade humana garantido a todo ser humano.

    Portanto, conclui-se que o desvirtuamento do sistema prisional brasi-leiro perante o carter ressocializador da pena gritante dentro do sistema brasileiro, necessitando urgentemente de mudanas, em especial com mais investimento do Poder Pblico para a melhoria nas estruturas e condies do sistema, bem como a capacitao do responsveis pelo contato direto com o preso, a fim de possibilitar que o preso realmente, quando for a hora de re-tornar sociedade, possa faz-lo da melhor forma possvel e sem dificuldade.

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    ZAFFARONI, Eugenio Ral. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vnia romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceio. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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    A bArgAnHA e o Artigo 105 do PLs 236/2012: dos Perigos e retrocessos de umA disPonibiLizAo

    dA LiberdAde mediAnte confisso

    alexandre Brando rodrigueS Defensor Pblico do Rio Grande do Sul, Especialista em Direito e Processo

    Penal pela Uniju, Coordenador-Geral da Comisso Criminal Permanente do Conselho Nacional de Defensores Pblicos-Gerais (Condege).

    domingoS BarroSo da coSta Defensor Pblico do Rio Grande do Sul, Especialista em Criminologia

    e Direito Pblico, Mestre em Psicologia pela PUC-Minas.

    RESUMO: Em tempos de culto a uma falaciosa eficincia, potenciali-zado pelos clamores punitivistas irresponsavelmente difundidos pe-los meios de comunicao de massa, h de se aguar a ateno e o es-prito crtico, sob pena de graves retrocessos e atropelos a garantias historicamente conquistadas. Afinal, como bem aponta Zaffaroni, nas frestas do Estado de Direito espreita ameaador o Estado de po-lcia, exigindo do saber um constante esforo na conteno do poder. E como resistncia a essa viva ameaa que se constri o presente trabalho, o qual, sem perder de foco os riscos descritos, expressa se-vera crtica ao que se prope como regra no art. 105 do PLS 236/2012 (Projeto de Lei para o novo Cdigo Penal), bem como ao ideal que veicula, em clara afronta Constituio vigente.

    PALAVRAS-CHAVE: Direito penal; processo penal; garantismo; constituio; confisso.

    SuMRIO: Consideraes jurdicas introdutrias; 1 Alguns apon-tamentos interdisciplinares; 2 O ponto de vista interno: anlise con-forme a Constituio e o ensino de Ferrajoli; Consideraes finais; Referncias.

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    considerAes JurdicAs introdutriAs

    Em tempos sombrios de absolutismo e indiferena a garantias que pos-teriormente viriam a compor a base do que se definiu como direitos humanos, a confisso era considerada a rainha das provas, o objetivo ltimo de inquisido-res que deveriam obt-la a qualquer custo para legitimar a pena a ser imposta quele que admitiu sua culpa. Mas a civilizao progrediu1 e, em substituio s formas absolutas de imposio de poder, ergueu-se um modelo de Estado que, pela lei ento expresso mxima da razo , passou a se autolimitar, condicionando as manifestaes de poder ao saber. Trata-se do Estado de Di-reito, fundado em garantias que asseguram o indivduo contra intervenes absolutas e, portanto, no mediadas dos que representem o poder sobera-no que, nesses limites, se faz pblico2.

    Nessa moldura de garantias, o processo penal apresenta-se como ins-trumento inafastvel de conteno ao exerccio do poder de punir, que s se faz legtimo caso se venha a comprovar a culpa do acusado ao trmino de um rito que lhe assegure amplas possibilidades de defesa, prevalecendo seu estado de inocncia caso no haja provas seguras o suficiente para afastar essa inocncia presumida e, assim, autorizar a interveno estatal em sua li-berdade. Ou seja, frente ao poder punitivo do Estado, a liberdade individual torna-se direito indisponvel, de modo que nem a confisso judicial pode, por si s, autorizar a aplicao de uma pena, que pressupe o processo.

    Segundo Aury Lopes Jr.:

    A strumentalit do processo penal reside no fato de que a norma penal apresenta, quando comparada com outras normas jurdicas, a caractersti-ca de que o preceito tem como contedo um determinado comportamento

    1 Diz-se da civilizao ocidental, tomando-se por referncia de progresso a superao do ancien rgime a partir da Revoluo Francesa, que possibilitou a estruturao do Estado de Direito.

    2 Da a repblica, em que o indivduo e o povo fonte e limite para o poder. Na moderna tipologia das formas de Estado, o termo Repblica se contrape monarquia.

    Nesta, o chefe do Estado tem acesso ao supremo poder por direito hereditrio; naquela, o chefe do Estado, que pode ser uma s pessoa ou um colgio de vrias pessoas (Sua), eleito pelo povo [de quem emana todo poder, segundo o pargrafo nico de nossa Constituio republicana de 1988], quer direta, quer indiretamente (atravs de assemblias primrias ou assemblias representativas). Contudo, o significado do termo Repblica evolve e muda profundamente com o tempo (a censura ocorre na poca da revoluo democrtica), adquirindo conotaes diversas, conforme o contexto conceptual em que se insere. (Bobbio, 2010, v. 2, p. 1107)

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    proibido ou imperativo e a sano tem como destinatrio aquele poder do Estado, que chamado a aplicar a pena. No possvel a aplicao da re-provao sem o prvio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele no pode se submeter voluntariamente pena, seno por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu carter instrumental mais destacado que o do processo civil. (Lopes Junior, 2010, p. 7)

    Dessa forma, se, por versar sobre relaes que no mais das vezes dizem respeito a interesses exclusivamente privados, a confisso em processo civil absoluta, diferente o que se verifica no que diz da aplicao de uma sano penal3. Como garantia liberdade individual e conteno de abusos, o Esta-do de Direito fez com que o saber obrigatoriamente mediasse o exerccio de poder em sede penal, colocando entre si e o sujeito passvel de sofrer a san-o dessa natureza o processo, instrumento informado por princpios que, pelo menos abstratamente, se mostram eficazes em assegurar a condenao de culpados e a absolvio de inocentes, mas a partir de uma perspectiva liberal segundo a qual sempre ser prefervel a absolvio de um culpado condenao de um inocente4.

    Da poder-se afirmar que a um Estado Democrtico de Direito que tem por ideal a Justia interessa tanto a preservao da liberdade com garantias maximizadas em conteno aos abusos que advm do exerccio do poder de punir5 , quanto a condenao daqueles que, ao cabo de um processo em que viabilizado o contraditrio e a ampla defesa, tenham sua culpa demonstrada. Justamente por isso, em magistral ensino, esclarece Eugnio Pacelli que as questes envolvendo o exerccio do poder de punir no se resumem a uma oposio entre um interesse punitivo e um interesse de liberdade indivi-dual. A questo no se limita afirmao de um interesse sobre outro ou da

    3 A esse respeito, interessante a lio de Afrnio Silva Jardim, invocando Rui Barbosa: Note-se que mesmo a liberdade individual aqui no enfocada dentro de uma tica

    meramente privada, mas como algo que toca a todos enquanto cidados de uma coletividade civilizada. Isto est bem claro nas sbias palavras de Rui Barbosa: O paciente pode, at, no requerer a liberdade; pode, resignado ou indignado, desprez-la. indiferente. A liberdade no entra no patrimnio particular, como as cousas que esto no comrcio, que se trocam, vendem ou compram; um verdadeiro condomnio social; todos o desfrutam, sem que ningum o possa alienar; e se o indivduo, degenerado, a repudia, a comunho, vigilante, a reivindica. (Jardim, 2010, p. 16-17)

    4 Tanto que a dvida h de beneficiar o ru (CPP, art. 386, VI parte final e VII).5 Como a Histria demonstra.

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    preponderncia de um, coletivo, sobre outro, individual [...]6. Segundo o autor:

    J aqui salientamos que as normas constitucionais que frequentemente se pem em tenso no processo penal so constitutivas desse tipo de interven-o estatal. A imposio de sano quando destinada proteo de direitos fundamentais se coloca em posio de reciprocidade e de complementari-dade com a proteo liberdade individual, que tambm se qualifica como direito fundamental. No se cuida de mera oposio entre segurana pbli-ca liberdade individual, mas da afirmao de direitos fundamentais (po-tenciais) direitos fundamentais (individualizado). (Oliveira, 2012, p. 78)

    Afirmada a imprescindibilidade do processo na aplicao de uma san-o penal no mbito de um Estado Democrtico de Direito, dada a indis-ponibilidade da liberdade individual frente ao poder de punir, interessante destacar que esse entendimento foi preponderante at mesmo na elaborao de nosso Cdigo de Processo Penal, ainda que tenha ntida inspirao fascista (inquisitria). Nesse sentido, relativizou a confisso no s em seu art. 197, mas tambm e expressamente em sua exposio de motivos, de cujo item VII se extrai que a prpria confisso do acusado no constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. E, vale ressaltar, refere-se aqui a uma legislao de inspirao fascista.

    Nesse contexto, impossvel no se reconhecer que o art. 105 do PLS 236/2012 representa no s um grave retrocesso, mas uma fonte de riscos. Eis o texto proposto:

    Art. 105. Recebida definitivamente a denncia ou a queixa, o advogado ou de-fensor pblico, de um lado, e o rgo do Ministrio Pblico ou querelante responsvel pela causa, de outro, no exerccio da autonomia das suas vonta-des, podero celebrar acordo para a aplicao imediata das penas, antes da au-dincia de instruo e julgamento.

    1 So requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo:

    I a confisso, total ou parcial, em relao aos fatos imputados na pea acusatria;

    II o requerimento de que a pena de priso seja aplicada no mnimo pre-visto na cominao legal, independentemente da eventual incidncia de circunstncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuzo do disposto nos 2 a 4 deste artigo;

    6 Oliveira, 2012, p. 78.

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    III a expressa manifestao das partes no sentido de dispensar a produo das provas por elas indicadas.

    2 Aplicar-se-, quando couber, a substituio da pena de priso, nos ter-mos do disposto no art. 61 deste Cdigo.

    3 Fica vedado o regime inicial fechado.

    4 Mediante requerimento das partes, a pena prevista no 1 poder ser diminuda em at um tero do mnimo previsto na cominao legal. (des-taques nossos)

    Como se pode verificar, uma vez que o recebimento da denncia re-quer em exame precrio indcios de autoria e prova quanto materia-lidade, de um s golpe7 o texto proposto tornou dispensvel o processo (a produo das provas indicadas pelas partes) para uma imediata aplicao da pena, mediante confisso, total ou parcial, do acusado, deduzida em acordo a ser firmado pelo titular da ao penal e a defesa8. Em outros termos, tratou a confisso como prova absoluta, tornando disponvel a liberdade individual frente represso penal, com o que fez dispensvel o processo e a interven-o judicial na apurao da culpa. Assim, praticamente autorizou que a pena seja aplicada administrativamente9.

    um verdadeiro descalabro, considerando-se no s a impossibilidade de conformao entre o texto proposto e o modelo constitucional vigente, mas tambm as injustias que podem resultar de sua aplicao, o que se con-clui a partir de breve anlise metajurdica da regra sugerida e suas peculia-ridades, considerando-se que ela ser aplicada a sujeitos que convivem em uma sociedade, envolvidos em uma realidade dinmica que extravasa que lhe procura impor o Direito10.

    7 E aqui no h palavra mais adequada. 8 Chega-se a dizer do exerccio da autonomia das vontades do advogado ou defensor pblico,

    de um lado, e o rgo do Ministrio Pblico ou querelante responsvel pela causa, de outro.

    9 Alertando sobre a necessidade do processo para aplicao da pena e os riscos de sua imposio pela via administrativa, eis o que diz Afrnio Silva Jardim:

    Destarte, ao exigir que a pretenso punitiva seja submetida ao crivo processual, o Estado de Direito fez uma sbia opo em prol da segurana e da justia. Sem dvida nenhuma, seria mais eficaz a represso penal se a pena fosse aplicada administrativamente. Entretanto, dvida tambm no h de que, se assim fosse, se estaria instaurando o imprio do medo e da prepotncia. Assume-se, deliberadamente, o risco concreto de absolver alguns criminosos, mas no se assume o risco de condenar inocentes (2010, p. 17).

    10 Da se poder afirmar que quem s sabe direito, nem direito sabe, na lio que muitos atribuem a Pontes de Miranda.

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    1 ALguns APontAmentos interdisciPLinAres

    No necessrio maior esforo crtico para se concluir que o texto em exame encontra inspirao em modelos penais utilitaristas e atravessado por ideais de lei e ordem que visam otimizar a represso penal. O dispositivo proposto desempodera o acusado do qual retira a garantia de ser processado, tornando possvel que lhe seja aplicada instantaneamente uma pena, aps sua confisso e alguma negociao entre seu manager advogado ou defensor pblico e o titular da ao penal. Procura-se, obviamente, a uma maior efi-cincia no controle da clientela11 cativa do sistema penal brasileiro, asseguran-do-lhe uma represso administrativa ao mesmo tempo em que lhe priva de garantias judiciais mnimas, em adequao do modelo repressivo brasileiro ao paradigma globalizado do Estado neoliberal, rpido na penitncia, inerte quanto providncia12.

    Mas, talvez encantados pela chance de protagonismo e pelo canto de sereias miditicas, os idealizadores dessa revoluo eficienticista apenas se es-quecem dos sculos de histria de progresso da civilizao13 que pem por terra com semelhantes medidas. Ameaam fazer emergir do submundo em que jaz, em estado de latncia, o fetiche pela confisso, e todos os abusos e injustias que vm a seu reboque, passveis de ser rememorados a partir de breve estudo dos julgamentos e punies medievais14. Esquecem tambm que,

    11 Aqui, os jarges originrios do discurso da administrao de empresas so mais adequados que aqueles prprios expresso do saber jurdico.

    12 Wacquant, 2001.13 Que se marca pelo progresso dos direitos humanos.14 Como bem destaca Zaffaroni, os Estados de direito no so nada alm da conteno dos

    Estados de polcia, penosamente conseguida como resultado da experincia acumulada ao longo das lutas contra o poder absoluto.

    E prossegue, em aguda anlise: [...] Porm, estas couraas (ou corss) de conteno que foram sendo construdas atravs

    dos tempos no eliminaram o estado de polcia, apenas o encapsularam. No interior de todo Estado de direito histrico, quem detm o Poder Executivo ou suas agncias tenta livrar-se, com demasiada freqncia, de todos os controles e limitaes e, dependendo do vigor da conteno, , em maior ou menor medida, bem sucedido.

    Por isso, o Estado de direito histrico i.e., o Estado de direito concreto realizado no mundo no pode ser nunca igual ao ideal, porque conserva em seu interior, encerrado ou encapsulado, o estado de polcia, tal como Merkl observou, com grande acerto, muitos anos atrs, quando recomendava que no fossem escritos obiturios ao Estado de polcia, porque ele estava bem vivo dentro do Estado de direito. por isso que o modelo ideal do Estado de direito, no qual todos esto submetidos da mesma forma perante a lei, embora seja indispensvel como farol do poder jurdico, no nada alm de um elemento orientador para o aperfeioamento dos Estados de direito histricos ou reais, mas que nunca se realiza

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    ao tornar instantnea a aplicao da sano penal, fazem com que o poder se sobreponha ao saber, em desconsiderao a toda base filosfica que sustenta um Estado de Direito, relegando o tempo do direito ao converterem em regra a relativizao das garantias que deveria ser sempre excepcional e precria (Lopes Junior, 2010, p. 24-35).

    E o pior: todo esse ritual de ressuscitamento do Estado de polcia gira em torno do culto a uma confisso de poderes absolutos, como se a fragili-dade dessa prova j no tivesse sido suficientemente desvelada pela histria.

    De incio, no difcil imaginar situaes em que, prevalecendo o tex-to proposto, laranjas assumiro a culpa por terceiros, confessando crimes alheios e se submetendo sano penal seja por coao, seja em troca de um proveito qualquer. E tambm no se pode olvidar que a pressa em concluir o processo e aplicar a pena, em pronta resposta sociedade e s demandas por vingana propaladas pelos meios de comunicao de massa, ser decisiva na aceitao de pronto da primeira confisso que se apresentar minimamente coerente com o apurado em sede pr-processual at o recebimento da de-nncia. Mas e a Justia? E aquilo que at h bem pouco tempo com objetivos semelhantes, ironicamente se cultuava como fim ltimo do processo penal, a proclamada verdade real?

    Mas no s. Tambm no se pode desprezar a realidade de que Freud se ocupou em diversos de seus trabalhos15, referindo-se, aqui, aos indivduos que buscaro, em uma falsa incriminao e posterior confisso negocivel e prontamente apenvel, como sugere a proposta de texto legal que se critica , o alvio para sua necessidade de punio, decorrente de um sentimento difuso de culpa, levado ao extremo pelo que o referido autor definiu como masoquismo moral.

    Sobre tais indivduos, eis o que disse Freud, ao palestrar para um p-blico de juristas sobre a inadequao do uso de tcnicas psicanalticas em

    plenamente no mundo. Sabe-se, outrossim, que a realizao desse ideal ser sempre impedida pelas pulses que atuam para que todos estejamos simplesmente submetidos vontade arbitrria de quem manda, que a regra do estado de polcia, permanentemente tentado a chegar ao Estado absoluto, ou seja, sua mxima realizao (2007, p. 169-170).

    15 Podendo-se mencionar, guisa de exemplificao, os seguintes escritos: A psicanlise e a determinao dos fatos nos processos jurdicos, de 1906; Criminosos em conseqncia de um sentimento de culpa, de 1916 (abordado por Salo de Carvalho, em seu Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 240-241), e O problema econmico do masoquismo, de 1924.

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    processos judiciais, especialmente em razo da diferenas existentes entre o tempo do processo e o tempo de anlise:

    Gostaria tambm de assinalar que o teste dos senhores pode estar sujeito a uma complicao que, em virtude de sua prpria natureza, no ocorre na psicanlise. Os senhores, em sua investigao, podem ser induzidos a erro por um neurtico que, embora inocente, reage como culpado, devido a um oculto sentimento de culpa j existente nele e que se apodera da acusao. No julguem essa possibilidade como uma inveno ociosa; lembrem-se que isso pode ser observado com freqncia na infncia. Muitas vezes uma criana acusada de uma transgresso nega veementemente sua culpa, em-bora chore como um criminoso desmascarado. Talvez pensem que a crian-a mentiu ao afirmar sua inocncia, mas isto nem sempre verdade. Pode ser que, embora no tenha cometido uma falta de que a acusam, tenha co-metido uma outra que permanece ignorada e que no lhe foi imputada. Assim, fala a verdade ao negar ser culpada da primeira transgresso, ao mesmo tempo que revela seu sentimento de culpa proveniente da outra falta.

    E prossegue Freud:

    Nesse particular, como em muitos outros pontos, o adulto neurtico com-porta-se exatamente como uma criana. Muitas pessoas so assim, e ainda muito discutvel se sua tcnica lograr distinguir tais indivduos auto--acusadores daqueles que so realmente culpados. (1906, p. 103)

    Alis, de se destacar que, em decorrncia desse masoquismo moral, pode o indivduo no s assumir uma culpa que no sua como anterior-mente exposto , como tambm atuar criminosamente em busca de uma pronta punio como a garantida pelo texto do artigo em anlise , em uma espcie de rpido suicdio jurdico. Ou seja, visando providenciar uma razo para seu inconsciente, mas difuso e avassalador sentimento de culpa, pode vir o sujeito a atuar criminosamente e, dessa forma, materializar aquilo de que no sabia em conscincia, mas que internamente clamava por punio.

    Essa foi uma das hipteses supostas por Joel Birman, ao analisar o caso de um indivduo miservel, que teria assassinado e confessado uma criana que dele se aproximara para oferecer gua e comida. De acordo com Birman:

    Pode-se supor, no entanto, que algo da ordem do masoquismo estaria aqui em questo. De fato, nosso personagem estaria impossibilitado de receber qualquer coisa boa de algum, que lhe fosse oferecida generosamente, por-

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    que no seria digno de receber, no mereceria. Ele teria sido ento objeto de sua autopunio. Com isso, teria sido conduzido a realizar justamente o contrrio do que seria esperado de qualquer um que tivesse se inscrito em uma experincia como essa. De qualquer forma, o paradoxo que ca-racteriza a totalidade da experincia desse personagem, na desproporo flagrante que existia entre generosidade e gentileza, de um lado, violncia e crime, do outro. (2009, p. 85)

    Isso ainda no tudo. Tambm no se pode desprezar o fato de viven-ciarmos um culto ao espetculo da violncia e da criminalidade quotidianas, que se tornam banalizadas pela preferencial e ininterrupta exposio midi-tica.

    Pelas mos de uma mdia esvaziada de discurso poltico e vida por lucros16, o bizarro da criminalidade e da violncia ganha espao e fora no imaginrio popular, com o mundo das aparncias tomando ares de realida-de, concretizando-se, em sua literalidade, a conhecida mxima atribuda a Berkeley, segundo a qual ser ser percebido. Tomando-se por referncia a visi-bilidade, difunde-se o entendimento de que o que aparece bom, o que bom aparece17, em confirmao ao diagnstico de Debord de que o espet-culo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade18.

    E, se assim se para existir imprescindvel ser visto e se para ser visto necessrio integrar o espetculo , considerando-se que talvez a maior parte do contedo exibido na mdia, especialmente em se tratando de TV aberta, est relacionada a criminalidade e violncias de todo tipo da pau-ta jornalstica, s temticas de filmes e novelas, passando pelos programas de variedades , s se pode esperar que esses sejam os modelos conforma-dores das identidades de muitos dos que tm acesso a tais mensagens, sem o indispensvel senso crtico para questionar o porqu de sua desenfreada exibio. No por acaso, portanto, que, em meio a um contexto de canoni-zao imagtica da drogadio, criminalidade e todas as formas de violncia, tais comportamentos se expandem, protagonizados, em grande parte, por indivduos-espectadores cada vez mais jovens, justamente os mais influencia-dos pelo processo de identificao ilusionista oferecido pelos mass media. O desvio, em sua extraordinariedade, atrai enquanto espetculo, garantindo a

    16 Regida por uma mentalidade-ndice-de-audincia, denunciada por Pierre Bourdieu, na obra Sobre a televiso (1997, p. 37).

    17 Debord, 1997, p. 16-17.18 Idem, p. 14.

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    visibilidade e, logo, a existncia que se confirma por meio das manchetes jornalsticas, televisivas, radiofnicas ou impressas. Assim, o comportamen-to desviante instiga personalidades narcisistas e se apresenta como soluo para a invisibilidade social, na medida em que capaz de conferir o adjetivo de celebridade a seu protagonista, que tem, nessa condio, um passaporte de pertencimento sociedade do espetculo19-20.

    Nesse contexto, em que a condio de delinquente capaz de confe-rir ao que por ela se identifica a visibilidade necessria insero social21, nada mais bvio que o texto legal proposto no PLS 236/2012 para o art. 105 do novo Cdigo Penal tem, no mnimo, mais duas contraindicaes, que se somam s j expostas: alm de fomentar falsas confisses em delitos que al-cancem qualquer repercusso miditica22, a promessa de punio instantnea terminar por fomentar a prtica de crimes cuja autoria garanta visibilidade identidade social.

    E permanecem sem respostas as perguntas anteriormente feitas: qual o lugar para a justia e a verdade?

    2 o Ponto de vistA interno: AnLise conforme A constituio e o ensino de ferrAJoLi

    No anteprojeto que serviu de base para o PLS 236/2012, a Comisso de Reforma do Cdigo Penal justifica a incluso do plea bargain da seguinte forma:

    O acordo durante o processo. A ruptura do paradigma rgido da indispo-nibilidade da ao penal, e do processo penal, foi inaugurada, no Direito brasileiro, pela Lei n 9.099/1995, que permitiu a transao penal e a sus-penso condicional do processo. So importantes medidas de evitao do processo crime, oferecendo resposta tendencialmente mais rpida e efetiva a crimes de menor potencial ofensivo ou que possibilitariam a fixao de pena mnima, no superior a um ano. Ao contrrio do que se poderia su-

    19 Idem.20 As ideias expostas nos pargrafos anteriores foram originalmente trabalhadas no artigo

    Circuitos perversos II: os efeitos crimingenos da mdia exploradora da violncia enquanto espetculo (Boletim IBCCrim, n. 236, jul. 2012).

    21 Em contexto no qual a infmia no seno uma modalidade da universal fama (Foucault, 2010, p. 210).

    22 Valendo destacar que em cidades menores um simples furto pode ter a repercusso que um homicdio no teria em uma capital

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    por, tais medidas no ampliaram a sensao de impunidade (ainda que se deva desestimular o uso no-criterioso da obrigao de entregar cestas bsicas). Ao contrrio: permitiram solues de compromisso em face de largo nmero de crimes, muitos dos quais antes comporiam o rol das cifras negras, ou seja, dos crimes no apresentados s instncias formais de con-trole. Estes institutos foram assimilados pela doutrina e jurisprudncia bra-sileiras, ainda que, ao incio, muitos os criticassem por pretendido desres-peito ao devido processo legal. chegada a hora de novo e ousado passo, conforme deliberou a Comisso de Reforma do Cdigo Penal: a transao durante o processo, no para evit-lo, mas para abrevi-lo. Seguiu-se, com adaptaes realidade nacional, o modelo do plea bargain norte-americano, no sentido de conceder larga autonomia s partes para a concertao de termos de avena que possam convir a ambas. No h meios de compelir as partes ao acordo. Elas transigiro se assim for de seu interesse. No se de-senhou a proposta no sentido de erigir o acordo em direito da acusao ou da defesa, posto que acordo obrigatrio no um acordo, um oxmoro.

    A ideia bsica adotar o plea bargain como forma de abreviar o proces-so (qual?), possibilitando que as partes (Ministrio Pblico e acusado, por seu defensor) transijam no sentido de o acusado confessar o delito e, como prmio, receber a pena mnima ou, ainda, diminuda. Com isso, lograriam di-minuir as cifras negras de criminalidade impune (mas aumentariam conside-ravelmente as cifras negras da injustia23). Ocorre que tal instituto, admitido e aplicado no direito anglo-saxo, no se coaduna com a nossa ordem cons-titucional vigente, ou seja, inconstitucional por no observar o princpio da jurisdicionalidade24, sintetizado no brocardo nulla poena, nulla culpa sine judicio.

    A validade de uma norma jurdica se traduz na sua legitimidade co-erncia material em relao aos princpios e garantias estabelecidos pela Constituio. Assim, so legtimas ou vlidas as normas que esto de acordo com os princpios e garantias constitucionais e, por sua vez, invlidas e ile-gtimas as que vo de encontro a estes princpios e garantias. Sendo assim, certo que nos sistemas jurdicos haja normas em pleno vigor que no so

    23 Nesse ponto, ensina Ferrajoli: Chamarei cifra da ineficincia primeira, e cifra da injustia segunda, qual pertencem:

    a) os inocentes reconhecidos por sentena absolutria, aps terem se sujeitado ao processo e, no poucas vezes, ao encarceramento preventivo; b) os inocentes condenados com sentena definitiva e posteriormente absolvidos em segundo grau de reviso criminal; c) as vtimas, cujo nmero restar sempre ignorado verdadeira cifra negra da injustia dos erros judicirios no reparados (2006, p. 196).

    24 Ou princpio da necessidade do processo em relao pena.

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    vlidas, por se contraporem aos princpios e garantias constitucionais, recla-mando, portanto, dos juzes e dos juristas uma constante tenso crtica sobre as leis vigentes25.

    Em razo do exposto que dispositivos legais ou projetos de lei como no caso em tela no podem ser analisados sob uma perspectiva puramente formal (mera legalidade), mas devem e tm que ser analisados em seu as-pecto material, examinada a conformidade de seu contedo em relao aos direitos e garantias constitucionalmente institudos.

    Nesse ponto, nos ensina Ferrajoli que uma utopia exigir uma justia penal integralmente com verdade, mas uma justia penal completamente sem verdade equivale a um sistema de arbitrariedade26, pois o juzo penal um saber-poder uma combinao de conhecimento (veritas) e de deciso (autoritas). Em tal entrelaamento, quanto maior o poder tanto menor ser o saber, e vice-versa. Por esse motivo, a Constituio da Repblica prev como garantias fundamentais o devido processo legal, o contraditrio e ampla de-fesa enquanto pressupostos bsicos para aplicao da pena.

    Ocorre que esta verdade que busca o processo penal de cunho consti-tucional e, consequentemente, garantista, a verdade formal (ou processual) que pode ser decomposta em uma verdade ftica e outra jurdica. A verdade ftica enquanto seja comprovvel pela prova da ocorrncia do fato e da sua imputao ao sujeito incriminado27 e a jurdica enquanto seja comprov-vel por meio da interpretao do significado dos enunciados normativos que qualificam o fato como delito (subsuno). Alm disso, ela condicionada pelas normas constitucionais e legais de produo da prova, da dizer Ferra-joli que a relao entre a verdade e a validade resulta complicada, pois:

    No s a verdade que condiciona a validade, mas tambm a validade que condiciona a verdade do processo. Esta , com efeito, por assim dizer, uma verdade normativa, no trplice sentido: a) uma vez comprovada de-finitivamente, tem valor normativo; b) est convalidada por normas; c) verdade na medida em que seja buscada e conseguida mediante o respeito s normas. (Ob. cit., p. 62)

    Assim, para impor uma pena, o raciocnio judicial necessita de uma inferncia indutiva (prova de processo), outra dedutiva (subsuno ou de-

    25 FERRAJOLI, Luigi. Ob. cit., p. 787.26 Idem, p. 48.27 Idem, p. 51.

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    duo jurdica) e um silogismo prtico ligando as duas. Claro que, como j dissemos, a verdade a que ter acesso o juiz nunca ser a verdade absolu-ta (ou real, como alguns preferem), mas sim a verdade verossmil, plausvel, diante das provas que foram produzidas no processo. Fora desse contexto, a pena inadmissvel (ao menos em um Estado democrtico de Direito). Como destaca Ferrajoli:

    Nem uma amplssima maioria e nem sequer a totalidade dos consentimen-tos podem justificar que se aceite como pressuposto de uma deciso penal uma tese no provada ou no submetida prova. No se pode sacrificar a liberdade de um homem, de quem no se tenha verificado a responsabili-dade penal no interesse e na vontade de todos. (Ob. cit., p. 69)

    Desse modo, a garantia do devido processo legal, diferentemente do que pensam alguns adeptos do positivismo dogmtico, exige no a mera ade-quao formal da lei, ou seja, a aplicao da lei vigente, mas implica todas as demais garantias da materialidade da ao ao juzo contraditrio como outras tantas condies de verificabilidade e de verificao e constitui por isso tambm o pressuposto da estrita legalidade do sistema (Ob. cit., p. 94).

    Assim, uma vez que, em ltima anlise, termina por contrariar o que Ferrajoli denomina pressuposto da estrita legalidade do sistema, que o art. 105 do PLS 236/2012 afigura-se inconstitucional, na medida em que prev a apli-cao de pena sem o contraditrio, ampla defesa, em exceo ao devido pro-cesso legal material (que exige, alm de outras garantias, que haja prova do fato imputado). Para aplicao da pena, segundo o instituto criticado, basta o acordo e a confisso, o que torna o procedimento no se pode aqui cogitar de processo, em sua atual concepo garantista marcadamente inquisitorial, esvaziando-o de qualquer pretenso verdade que seja admissvel no con-texto de um Estado Democrtico de Direito, em aberto e medieval retrocesso, no qual retoma o trono a confisso, enquanto rainha das provas.

    Alm de afrontar as garantias do devido processo legal, do contradi-trio e ampla defesa, o dispositivo projetado afronta, como j destacado, uma das principais garantias processuais (seno a principal), que a submisso da acusao jurisdio, a qual, no modelo cognitivo do processo penal (e no dispositivo, como no instituto do plea bargain):

    [...] confere um fundamento e uma justificao especfica legitimidade do Poder Judicirio e validade de seus provimentos que no residem nem no valor poltico do rgo judicante nem no valor intrnseco da justia de suas decises, mas sim na verdade, inevitavelmente aproximada ou relativa,

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    dos conhecimentos que a ele idneo obter e que concretamente formam a base dos prprios provimentos. (Ob. cit., p. 499)

    Em suma, o plea bargain, por esvaziar a dinmica de aplicao das pe-nas de qualquer incidncia de garantias fundamentais, um instituto total-mente ilegtimo frente nossa ordem constitucional vigente.

    considerAes finAis

    Diante do exposto, s resta concluir pela absoluta inviabilidade do pro-posto no art. 105 do PLS 236/2012, seja em razo de sua inadequao ao mo-delo garantista constitucionalmente previsto, seja pelas injustias que podem resultar de sua aplicao.

    Fora da excepcionalidade, o instantneo no se harmoniza com o Direito e, muito menos, com o que diz respeito ao direito penal e sua aplicao, por meio do processo penal. O tempo do processo necessrio maturao de uma deciso judicial que fundamente, com o saber extrado da relao dia-ltica e democrtica entre acusao e defesa, a aplicao do poder que se materializa na sano penal. Fora desse tempo, que deve respeitar o razovel (CF, art. 5, LXXVIII), emerge o arbtrio, como bem se extrai da seguinte lio de Aury Lopes Jr.:

    Nesse cenrio, juzes so pressionados para decidirem rpido e as comis-ses de reforma, para criarem procedimentos mais acelerados, esque-cendo-se de que o tempo do direito sempre ser outro, por uma questo de garantia. A acelerao deve ocorrer, mas em outras esferas. No podemos sacrificar a necessria maturao, reflexo e tranqilidade do ato de julgar, to importante na esfera penal. Tampouco acelerar a ponto de atropelar os direitos e as garantias do acusado. Em ltima anlise, o processo nasce para demorar (racionalmente, claro), como garantia contra julgamentos ime-diatos, precipitados e no calor da emoo. (2010, p. 27)

    No caso, o instituto do plea bargain, diferentemente do que pensou a Comisso de Juristas, no um instituto idneo para conferir ao processo pe-nal um de seus objetivos, que a pacificao social. Na verdade, ao contrrio, por solapar garantias, por no exigir sequer a verdade processual, visto que as provas seriam at dispensadas, expressar-se- como fonte de intranquilida-des e arbtrios, como bem destaca Ferrajoli:

    A discricionariedade da ao e a conseqente disponibilidade das imputa-es e at mesmo das provas, mantidas em alguns dos sistemas acusatrios

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    hodiernos, representam, portanto, um resduo do carter originariamente privado e posteriormente estritamente cvico ou popular da iniciativa pe-nal , agora injustificado. Entende-se que essa discricionariedade e dispo-nibilidade que nos Estados unidos se manifestam sobretudo na transio entre o acusador pblico e o imputado (plea bargaining) da declarao da culpabilidade (guilty plea) em troca de uma reduo do peso da acusao ou de outros benefcios penais representam uma fonte inesgotvel de ar-btrios: arbtrios por omisso, no sendo possvel qualquer controle eficaz sobre os favoritismos que podem sugerir a inrcia ou a incompletude da acusao; arbtrios por comisso, sendo inevitvel, como a experincia en-sina, que o plea bargaining se torna regra e o juzo uma exceo, preferindo muitos imputados inocentes declararem-se culpados em vez de se subme-terem aos custos e aos riscos do juzo. (Ob. cit., p. 523-524)

    Enfim, se pode assegurar uma satisfao opinio publicada ao difun-dir o punitivismo fomentado por uma imprensa descompromissada com os direitos humanos e o que representam em termos de progresso civilizatrio, por outro lado a implementao de regras como a veiculada pelo art. 105 do PLS 236/2012 representa grave involuo histrica, arriscada na medida em que abre as frestas para a emerso do Estado de polcia que pulsa e espreita nos frgeis limites que lhe impe a Constituio que vem garantindo a to recente democracia brasileira.

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