revista princípios, vol. 04, número 5, 1997

241

Upload: principiosufrn

Post on 23-Jun-2015

332 views

Category:

Documents


8 download

DESCRIPTION

Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 2: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitor Jose Ivonildo do Re go Yice-Reitor Otorn Anselmo de O liveira DIRETOR DO CENT RO DE cIt, C L\ S I-IUMANAS , L ETRAS E ARTES Zenei de Ferreira Alves CHEFE DO DEPARTA MENTO DE FILOSOFIA Jaime Biella

E D ITORES RE.'iPONSAVEIS : C laudio Ferreira Costa e Lia Maria Alcoforado de Melo C OMISSAO EDIT O R L\L : Antonio Basilio No vaes Thomaz de Menezes, C inar a Maria Le ite Nahra, Claudio Ferre ira Cos ta , Fernanda Mach ado de Bulhoes, Lia Maria Alcoforado de Me lo e Markus Figueira da Silva. C ONSELHO EDIT O R L\L : Colin B. Grant (UFR J), Frankl in Trein (UFRJ), Gu ilherme Cas te lo Branco (UFRJ), Marco Zfn ga no (U FRGS), Juan Adolfo Bon accini (UFRN ), Walt er E. Wrigh t(C lark Unive rsity), Enrique Dussel (U NAm - Mexico). Andre Lecl erc (UFPB ) c Danie l Vande rveken (Q uebec), Mari a das Gracas de M oraes Augusto (UFRJ), Elena Morais G arci a ( UERJ), Gottfried Ga brie l (Friedrich Schiller U ni vers itat), Mario P. M. Cai mi (Univ, de Buen os Aires).

NOR S EDI TORL\S A Revista Princfpios cum anuari que tern co mo objctivo a pub licacao de tex tos originals. crfticos ou inforrnativos, perte ncentes a qualquer area da filosofia, Os textos deverao ser ineditos, podendo se r escritos em portug ues , ingles ou qualque r outra lingua aval iavc l pe los mem bros do conse lho ed itorial. Quando ap rovados , a publicacao dar -se -a no prime iro mimero da rev ista em es pac o disponivel. A com issao ed itori al nao sc res po nsabilizara pcla corrccao grarn at ical dos art igos. Exigencias referentes as colaboracees : Os tra balhos deverao ser ined itos, em area filosofica, aprese ntando resul tados de natureza crfticu ou inlo rm ativa. Serao be rn vindas resenhas de textos filosoficos e traducocs. Os ori ginals deve rao ser apresentados em disquete, d igitados no edi tor de tex tos Word for Windows 7.0 e acorn pan hados em duas copias irnprcssas , sem nome do autor. Os art igos dcverao vir preccdidos de resumo de mais de 30 palavras, de preferencia em Ingles. As notas e re ferencias bib liograficas deverao vir no final do artigo, eguindo uma normatizacao coercnte . As co laboraeoes deverao ser cnviadas para 0 scguintc endereco:

U NIVE RSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Departamento de Fi losofia, CCHLA Princfplos Campus Univers itari o, Km 1.DR 10 1 Lagoa Nova 59078-970 · NatallRN Te l. (084 ) 215 .3566 Prcco do Exemplar: R$ 10.00 Rcvista Prindpios - n° 05 . ano 4. 199 7

Aceita -se Permuta EDU FRI We ask for exchange r

ISSN 0 104- 8694

Page 3: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Errata: 1) No artigo de Elisabeth Maia da Nobrega, "0 1taxoc; do heroi na iliada" (pp. 103­113), onde se Ie pacoV leia-se 1taxo~ , onde se Ie bomov Ieia-se ~0J10~, onde se Ie escara Ieia-se Ecrxa.pa, onde se Ie qusia Ieia-se eucrta, onde se Ie enagismoV leia-se Eva"(lcrJ10~, onde se Ie timh leia-se TIJ..l.l1, onde se Ie areth Ieia-se cosm, onde se Ie IogoV Ieia-se AOrOe;. Tambem na p. 106, onde se Ie ralacao, Ieia-se relacao.

2) 0 artigo de Emilia Maria M. de Morais, "A Filosofia entre 0 Logos e 0 Mythos; Licoes que recebemos de Platao" (pp. 115-116) contou com a colaboracao de lose Lourenco Pereira, mestrando em Filosofia pela UNICAMP. Na pagina 135, Ultimo paragrafo, leia-se 'racionalizacao' no lugarde 'acionalizacao'.

Page 4: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

ISSN 0104-8694

, PRINCIPIOS

Revista de Filosofia

...

DEPARTAMENTODEFILOSOFIADAUNIVERSIDADE FEDERALDO RIO GRANDE DO NORTE

Ano 04, n. 05, 1997 EDUFRN - Editora da UFRN

Page 5: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Catalog~ na publi~. UFRNlBiblioteca Central ''Zila Mamede". Divisiio de Servi\Xls Tecnicos

PrincipioslUFRN, CClll..A - Ano 04 n. 05 (1997) Natal: UFRN.CClll..A, 1997

Anual

EDUFRN - Ed. da UFRN. 1. Filosofia - Peri6dicos

ISSN 0104-8694 RNIUFIBCZM CDU 1 (05)

Page 6: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Principios Ano 04, n 05, 1997

sUMARIO Artigos

INTERSUBJETIVIDADE: NECESSIDADE SOCIAL OU IMPOssmIUDADE COGNITIVA? UMA CONTRIBUIl;AO AO DEBATE ENTRE HABERMAS E LUHMANN Colin B. Grant 5

TRANSVERSALIDADE. BIOETICA E COMPLEXIDADE: CONSIDERAl;OES ACERCA DE UMA METABJOETICA

Antonio Basilio N. T. Menezes 29

A MEGERA EO PRiNCIPE I Cinara Nahra 41

A DEFINIl;AO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO Claudio Ferreira Costa 63

o nxeo, 00 HER61 NA ILIADA Elizabeth Maia da Nobrega 103

A FILOSOFIA ENTRE 0 L600s EO MYTHOS: Ul;OES QUE RECEBEMOS DE PLATAO Emilia Maria Mendonca de Morais 115

A MODERNIDADE EM FOUCAULT: UMA BREVE EXPOSIl;AO Guilherme Castelo Branco 137

UMA HEURISTICA PLATONICA PARA TERNOS PITAG6RICOS John A. Fossa Glenn w: Erickson

147

Page 7: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Principios Ano 04, n 05, 1997

ACERCA DO CONCEITO DE FENOMENO NA CRiTICA DA RAZAO PURA Juan Adolfo Bonaccini 159

HILLARY PUTNAM E A QUESTAO FATO-VALOR

Maria Simone Cabral Marinho 187

o LUGAR DA FILOSOFIA VISADO POR PLATAO NO iON

Miguel Antonio do Nascimento 199

o HOMEM CINICO Samir Haddad 215

A ESTRUTURA TEMPORAL DAS IMAGENS Dietmar Kamper 229 (Traduciio de Juan A. Bonaccini)

Page 8: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

INTERSUBJETIVIDADE: NECESSIDADE SOCIAL OU IMPOSSmILIDADE COGNITIVA?

UMA CONTRIBUU;AO AO DEBATE ENTRE HABERMAS ELUHMANNI

Colin B. Grant

para Beatriz

Abstract In this essay I set out to problematize the concepts of intersubjectivity and interaction in the theories of Germany's two foremost social philosophers: Jiirgen Habermas and Niklas Luhmann. To do so, I shall briefly reconstruct Husserl's phenomenological concept of intersubjectivity and its relationship with rational horizons and lifeworlds. I shall then demonstrate the importance of Husserl's thought in the theory of (rational) communicative action in

1 \ersao ampliada da palestra de encemunento da Semana de Filosofia, organizada pelo Departamento de FilO'iOfia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em Natal, apresentada em 28.11.97. Gostaria de agradecer Franklin Trein e os colegas do Departamento de Filosofia da UFRGN pela oportunidade tao generosamente oferecida. Nessa versao, procuro manter 0 mimero das notas aominimo.

Principios Ano 04, n 05, p. 05-28, 1997

Page 9: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

6

Habermas. The third section deals with the radical rethinking of the subject (and hence intersubjectivity) in the theory of Niklas Luhmann. My principal question will then be: is it possible to reconcile critical theory with systems theory? Or, alternatively: is intersubjectivity a reality or a useful fiction?

I

Interface, interacao, interdisciplinaridade, intertextualidade: testemunhamos a inflacao do prefixo 'inter'. Nos mais variados campos das ciencias humanas ele infiltra (=e) 0 discurso e logo, atraves da mera repeticao, toma-se, de certo modo, uma realidade acima de critica. 0 prefixo, conhecidamente, designa ligacao, conexao, entrelacamento e contato. E esta designacao tampouco muda no caso do conceito da intersubjetividade. Apesar da frequencia do seu uso e do vigor dos deus defensores, nao se trata evidentemente de urn conceito desprovido de valor ou ideologia; muitas vezes este einvocado enquanto afirmacao de realidade. Esta realidade e afinnada para demonstrar a superacao do isolamento do ator social. Vma definicao chissica na sociologia desta ideia e fomecida pela abordagem fenomeno16gica de Peter Berger e Thomas Ludemann: A realidade da vida cotidiana epartilhada com outros .... Na situaciio face a face 0 outro eapreendido por mim num mundo vivido presente partilhado por nos dois. Sei que no mesmo vivido presente sou apreendido por ele (Berger e Ludemann: 46 - 7). A ideia ­urn tanto banal - aqui expressa subjaz a nossa n~ao intuitiva daquilo que ecomunicacao, sociedade e amizade. Porem, uma questao permanece em aberto: de onde provem a necessidade de invocar a intersubjetividade com tamanha insistencia? De onde provem a ira dos lingiiistas, dos cientistas sociais ou de dogrnaticos quando se problematiza este fundamento intuitivo? Qual ea garantia, como ja disse 0 fil6sofo alemao Manfred Frank, de que as afirmacoes sejam mesmo a realidade?

Talvez em decorrencia da inflacao do seu usa, perdeu-se a origen do tenno "intersubjetividade": seu embasamento filos6fico nos conduz, necessariamente, afenomenologia de Edmund Husser! (1859 - 1938). Surgindo da crise da filosofia do sujeito do seculo 19, que earticulada de modos diferentes por Weber e Nietzsche, a fenomenlogia estuda 0

Page 10: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

7

fenomeno que se apresenta aconsciencia, mas tambemeste fenomeno para uma detenninada consciencia. 0 ego absoluto cartesiano cede, portanto, a relacao (dinamica) entre fenomeno e consciencia, Desta relacionalidade transcendental, 0 ego e concebido como sujeito interligado num mundo dos fenomenos, dos outros (da vida), dentro do qual ele forma suas ideias, Ao constituir 0 sentido dos fenomenos ao seu redor, este se refere a e se relaciona com uma apreensao do fenomeno enquanto outro. Esta orientacao para 0 outro ultrapassaria, segundo Husserl, 0 status do sujeito enquanto monade.

Segundo Husserl, Descartes teria confundido 0 cogito transcendental com 0 eu psicologico. Apenas 0 transcendentalismo, baseando todo saber num ego fundamental, gerador de sentido e hospedado num mundo pre-objetivo, pre-cientffico, permitiria a reconciliacao do subjetivismo com 0 objetivismo (cf. Lyotard: 36). Nos ensaios sobre a Fenomenologia do Mundo da Vida (1929)2, Husserl afirmou: De qualquer modo, pelo menos em mim, no contexto da minha experiencia da consciencia pura, experiencio 0 mundo, inclusive os outros, ndo enquanto uma construciio particular e sintetica, mas sim como algo estranho a mim, intersubjetivo, accessivel a todos (Husserl, [1929] 1992: 168). A acessibilidade universal, este mundo dos outros, e o mundo da vida. Na Crise das Ciencias na Europa (1936) Husserl argumentou que as coisas vistas sempre sao algo mais que aquilo que realmente se percebe nelas. Husserl havia visto 0 mundo da vida como 0

fundamento esquecido de sentidos das ciencias naturais (Husserl, [1936] 1982: 52) - e isto significa, como compensacao para uma perda de sentido), no entanto, este tambem seria urn lugar da existencia empfrica, o mundo realmente dado, experienciavel e experienciado (ibid.). Seu conceito do mundo da vida oscila, por assim dizer, entre dois p6los: por urn lado, entre 0 mundo percebido pelo sujeito, e por outro lado, 0 mundo

2 Neste texto, as referendas sempre indicam 0 ano de publicacao original entre parenteses quadrados, antes do ana da edicao usada. Com isto evita-se a impressao ridicula de que Husser! ainda estaria escrevendo textos nos anos W deste seculo

Page 11: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

8

tal como ele supera estas percepcoes ligadas ao sujeito. Assim, Husser! pede tirar a conclusao: As coisas vistas silo sempre algo mais do que aquilo que observamos "realmente e essencialmente". Ver, perceber, e, em sua essencia, um ter-de-se, junto com pre-tender, pre-pensar. A percepcdo de urnsujeito 000 e, portanto, apenas aquela de um observador de uma distdncia comoda; mas 0 sujeito se garante vendo (ibid: 56). Husser! havia em mente niio as estruturas de interacao, como familia, igreja, amizade etc., mas a possibilidade de objetividade, isto e, os motivos pelos quais varies sujeitos poderiam perceber urn objeto de modo intersubjetivo. Para Husserl, 0 nao-eu, como elemento dos fenomenos ao seu redor, e0 eu alheio. Este fato abre para urn reino infinito de estranhos, uma natureza objetiva e urn mundo objetivo. Estes outros constituem uma comunidade monadologica de eus; desta maneira, a intersubjetividade adquire carater transcendental. A experiencia eintersubjetivavel, 0 mundo objetivo sendo 0 correlado necessario da experiencia intersubjetiva. Desta forma e inerente a consituicdo do mundo objetivo uma harmonia dos monades (Hnsserl, [1936] 1992: 185 - 6).

II

No ensaio "0 que ea pragmatica universal?", Habermas afirma ",que 0 processo do entendimento na comunicacao ocorre no fundamento

de uma relacao intersubjetiva (Habermas, 1976: 9). A fundamentacao da comunicacao - entendimento e coesao social- na intersubjetividade e de uma relevancia especial, pois marca a guinada de Habermas dos paradigmas do sujeito pensante e da producao para a hermeneutica consensual e a comunicacao: A filosofia da consciencia estd esgotada. Se eassim; os sintomas do esgotamento devem se dissolver na transicdo ao paradigma do entendimento mutua. (Habermas, 1990: 296)3 .

Habermas, reconhecidamente, parte da tese de que 0 projeto da modernidade contem reservas inesgotadas. Crucial na possibilidade de uma renovacao da modernidade e0 fato de que 0 projeto da filosofia do

3 Retornaremos a esta diferenca adiante.

Page 12: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

9

sujeito desde Hegel ate Nietzsche, Derrida e Foucault, segue uma opcao -, portanto, deixou uma outra op~ao inexplorada. Esta outra op~ao e 0

:-chamado contradiscurso da modemidade. Assim, Habermas busca a reconstrucao de urn projeto racional tracado em termos de uma intersubjetividade nao-coerciva baseada no reconhecimento recfproco, a agir comunicativo em termos sociol6gicos encontra seu equivalente em termos epistemol6gicos no conceito da intersubjetividade, pois as pretensoes erguidas no primeiro sempre pressupoem a possibilidade de reconhecimento ou retirada de reconhecimento.

No contexto da teoria social, a integracao atraves da relacionalidade pressupoe uma referencialidade comum, que faz com que os atores - sujeitos - se encontrem numa relacao de intersubjetividade reciproca. Habermas refmou este principio de reciprocidade na sua Teoria do Agir Comunicativo (1981 - e ainda sem traducao em portuguesl), Ali, Habermas transpoe 0 conceito do horizonte de expectativa de Husser! para a area social, e recontextualiza 0 conceito como mundo social vivido. Mas esta sociedade repousa em cornunicacoes. Em termos de comunicacao social, pois, 0 horizonte e 0 pano de fundo contra 0 qual os atos de fala sao avaliados. Cada ato de fala levanta tres pretensoes de validade: 1. verdade; 2. correicao; 3. autenticidade e estabelece uma relacao complexa de subjetividade (do falante), objetividade (0 receptor) e intersubjetividade (a sociedade): 0 interprete que entende 0 sentido 0

experiencia fundamentalmente como um participante na comunicaciio, na base de uma relacdo intersubjetiva, estabelecida simbolicamente, com outros individuos, mesmo quando este estd sozinho com um livro, um documento ou uma obra de artre (Habermas, 1976, loco cit.). As pretensoes sao sempre contestaveis, e somente passam a adquirir legitimidade no processo de contestacao. A pratica da contestacao, denominada Diskurs em alemao, por Habermas, garante a imunidade da comunicacao defronte das tendencias de controle por parte dos sistemas. au, nas palavras de Max Weber, a racionalidade se opoe aracionalizacao tecnico-administrativa. a esforco intersubjetivo e, para Habermas, uma pratica discursiva e motor da integracao social. A coesao social e 0

controle do poder repousam nesta contestacao, cujo lugar hist6rico era a

Page 13: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

10

esfera publica (cf. Habennas, 1984 e Grant, 1996, 1997). Portanto, a hermeneutica passa a ser urn agir social de importancia fundamental. Precisa-se de uma ponte de entendimento, que pode ser determinada de varias maneiras: pelo horizonte abrangente de uma tradicdo ou cultura, na ausencia desta por universais lingidsticos ou estruturas bdsicas antropologicas, na interaciio face a face por papeis sociais tipificaveis, generos de fala ou padriies de agir (Jauss, 1994: 23).

Na contestacao, essa hermeneutica cotidiana, na comunicacao Habennas parte do princfpio do horizonte de expectativa como represa de racionalidade. A tentativa de Husser! de distinguir entre as ciencias naturais abstraentes e as experiencias da existencia empfrica e fundamental na concepcao habermasiana do mundo da vida. Com este conceito Habermas pretende criar urn estoque de racionalidade no qual as tendencias de racionalizacao (que incluem desemprego proposital, concentracao de lucro, autismo de sistemasjurfdicos - cf. Habermas, 1992) nao conseguem dominar sem controle. Porem esta concepcao social do conceito transcendental de Husser! implica num distanciamento das intencoes deste. Ego efetua urn ato (comunicacional) e alter responde. A rel~ao einterpessoal. A referencia e comum aos dois participantes. As perspectivas sao estruturadas de modo entrelacado. A intersubjetividade gerada linguisticamente (comunicacao como coesao social) coloca 0 falantelator sempre numa relacao com urn referencial alem do ego e do alter. A questao da auto­consciencia, reino privilegiado da filosofia do sujeito, cede portanto a uma reconstruciio das regras pre-te6ricas de pessoas capazes de falas bern estruturadas. A reconstrucao visa justamente a consciencia crftica das regras corretas. Os falantes numa rel~ao intersubjetiva se deslocam dentro do horizonte do mundo da vida em comum formando contexto e recursos para os atos do entendimento rmituo. 0 mundo da vida tern carater duplo: urn horizonte E urn estoque de coisas tidas como aprioris, das quais os participantes tiram padroes de interpretacao consensual. Eprereflexivo, pois sedimentado. 0 mundo da vida nao pode ser, portanto, uma construcao ex nihilo, e desempenha tres funcoes: 1. a integracao de grupos atraves de nonnas e valores; 2. a propagacao de tradicoes culturais; 3. a socializacao de geracoes posteriores.

J j,

Page 14: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

11

o modelo da intersubjetividade pressupoe 0 reconhecimento normativo da regra. Ao mesmo tempo, trata-se da auto-reflexividade do proprio sujeito. Neste contexto vale a pena lemrar a influencia de Mead na teoria de comunicacao de Habermas. Este adota e critica 0

interacionismo simb6lico de George Herbert Mead na sua teoria da intersubjetividade. Para Mead, a a~ao entre participantes emediada por sfmbolos, nao incluindo interacao lingufstica. Fundamental na interacao simb6lica e a ideia de "taking the attitude of the other". Assim, cada participante atua como urn ego para 0 outro. Porem, Mead negligencia uma dimensao importante, aquela dimensao da auto-reflexividade e da regra. Mead nunca realmente precisou 0 processo pelo qual 0 interprete intemaliza a resposta do outro. Como eque esta internalizacao se efetua? A regra, a forca unificadora da validade intersubjetiva, nao e urn fruto de regularidades empfricas, Depende da validade intersubjetiva, isto e, das circunstancias das desviacoes das regras; das circuntancias das crfticas do comportamento desviante.

A identidade da regra repousa nao nas invariantes observaveis, mas na intersubjetividade de sua validade. Em suma, Mead apenas traca o desenvolvimento que comeca com a a~ao normativamente regulada, e negligencia 0 caminho que desemboca na comunicacao diferenciada da linguagem.

Para Habennas, a questao da consciencia transcendental passa a ocupar uma posicao secundaria; mais importante na area da teoria da comunicacao social e a pratica intersubjetiva de contestacao: Se largarmos os conceitos bdsicos da filosofia da consciencia nos quais Husserl trata da problemdtica do mundo da vida, podemos conceber 0

mundo da vida como uma represeniaciio de urnestoque de padriies de interpretaciio legados pela cultura e organizados pela linguagem (Habermas, 1988 2: 189). Habermas pleteia, assim, pela suspensao do metodo fenomenol6gico.

Na sua reconstrucao critica das condicoes ideais de urn agir comunicativo social, Habermas desloca 0 seu questionamento dos invariaveis em nfvel de consciencia subjetiva para a pragmatica dos contextos de referencia. Noutras palavras, a filosofia da consciencia que inspira 0 pensamento husserliano sobre 0 mundo da vida ederrotada na

Page 15: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

12

sua tentativa de fomecer respostas as questoes da cultura e linguagem, pois estas somente podem ser concebidas em tennos pragmaticos - e isto significa tambem - sociais. Em vez de analisar 0 mundo da vida com os instrumentos da fenornenologia ou da psicologia, Habermas define 0

contexto de referencia como contexto de significacao. Os contextos tern sua propria gramatica que funciona como a organizacao do conhecimento. Portanto, 0 mundo da vida einconcebivel sem a gramatica da linguagem.

o conceito da gramatica, evidentemente, nao significa aqui apenas a codificacao sintatica de uma dada linguagem, mas sim uma rede comp1exa de relacoes intemas. Ali reside a grande influencia de Ludwig Wittgenstein na teoria da comunicacao social de Habennas. Wittgenstein, como econhecido, nas Investigaciies Filosoficas, comecou a analisar linguagem como jogos da linguagem e fonnas da vida. A linguagem nao seria mais uma essencia rigida, mas expressoes somente adquiririam sentido em deterrninados jogos que sao complexos de discurso e a~oes. Este contextualismo nao eurn apelo ao relativismo, no entanto, pois os atos de fala procedem de estruturas reconhecidas (gramaticas), Nas Investigaciies Filosoficas, Wittgenstein abandonou 0

essencialismo e comecou a investigacao para os fatos e dados 1empiricamente verificaveis. Como eque uma proposicao (agora sempre interrelacionada) e

verificavel? 0 sucesso de uma comunicacao depende da ratificaciio (estabelecida por nonnas). No entanto, como que essa ratificacao se produz? Para Wittgenstein, 0 entendimento e uma contingencia que depende da reciprocidade da avaliacao de uma deterrninada proposicao, Como se da entao essa ratificacao que depende apenas de uma contingencia tao precaria? 11. pragmaticamente: as consequencias da nao-ratificacao seriam desastrosas. 2. sistemicamente: cada sistema de proposicoes ergue seu proprio sistema de regras intemas.

Como no caso das Investigaciies, a Filosofia Gramdtica e tambem uma colecao editada postumamente. Provavelmente escrita nos anos 40, ela contem analises aforisticas nas quais Wittgenstein apresenta sua ideia de gramatica, de jogo de linguagem, da linguagem como

Page 16: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

13

entendimento. Como ja se constatou acima, a nocao de gramatica nao e usada no sentido formal-sintatico. A gramatica eurn complexo de regras pragmaticas. Essa gramatica consiste em acordos ("Vereinbarungen": 30). 0 sentido se constitui atraves das ligacoes ("Verbindungen"), e nao atraves do efeito ("Wirkung"). A regra, portanto, nao se constr6i em cima de urn telos, de urn objetivo, mas segue as linhas relacionais entre os falantes. Sentido nao eontologicamente dado, mas econstrufdo. A gramatica wittgensteiniana e, eminentemente, relacional, contextual, social e dinamica,

Segundo Wittgenstein, 0 signo e sempre para um ser vivo. 0 signo lingufstico encontra-se numa dinamica. Portanto, ha uma analogia entre as regras pragmaticas e suas expressoes formais. Wittgenstein define o ser vivo segundo a sua capacidade de usar uma linguagem semiol6gica (ibidem: 192). A linguagem eumjogo. Mas, isto nao significaurn ludismo arbitrario: Consideremos uma meta do jogo de xadre: - por exemplo a diversiio - as regras niio siio arbitrdrias. Andlogas aescolha de uma medida (30). Se as regras da linguagem fossem arbitrarias, 0 conceito do jogo nao poderia definir adequademente os efeitos que este jogo produz em nos (192). A linguagem, enquanto complexo interrelacional de regras nao arbitrarias no qual significados sao construidos, visa sempre entendimento: A linguagem eum cdlculo: ela ecaracterizada por atos defala (193).

Partindo da mesma concepcao da regra semi6tica, Habermas sustenta que 0 carater intersubjetivo do entendimento nao e uma objetividade externa, pois os atores/falantes estao sempre situados dentro destaintersubjetividade: Com a ajuda [do mundo da vida] ... osfalantes e ouvintes niio podem se referir a alguma coisa como "algo intersubjetivo". Os atores da comunicaciio se deslocam sempre dentro do horizonte do mundo da vida; dele niio podem sair (Haberrnas, 1988: 191-192). Pode-se dizer: 0 mundo da vida e0 contexto de significacoes reciprocas.

o parentesco com a concepcao do mundo da vida em Alfred Schutz e seu aluno Thomas Luckmann, cujo nome nao foi citado por coincidencia acima, eevidente, porem Haberrnas questiona a abordagem fenomenol6gica e as aporias que decorrem disso. 0 modelo da

Page 17: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

14

consciencia na fenomenologia e egol6gico, 0 mundo da vida pre­estabelecido. 0 problema em Schutz e Luckmann e que estes permanecem atrelados a urn modelo ate certo ponto intuitivo (Habermas, 1988 2: 198) da intersubjetividade e derivam 0 conceito do ator enquanto sujeito isolado, ou: monado16gico. Com isto, negligenciam 0 papel da comunicacao. Quando pressupoem a intimidade ingenua de cada ator com 0 mundo da vida, eles adotam urn apriori social: 0 mundo da vida nao pode ser problematizado, apenas, na pior das hip6teses, destruido (ibidem: 198). Com 0 negligenciamento do agir comunicacional, Schutz e Luckmann estariam afirmando uma comunidade intersubjetiva alem da pratica: de urn dissenso, alem de uma interacao. Fundamental para Habermas e a capacidade de auto-critica no projeto da modemidade. 0 mundo da vida precisa ser contestavel (cf. Habermas, 1980).

o conceito da contestacao reveste uma importancia central na obra de Habermas e fomece 0 eixo que liga seus estudos politicos aos estudos da pragmatica da comunicacao. Como mostrei noutro lugar (Grant, 1990, 1995, 1997b), 0 que liga 0 primeiro grande estudo, Mudanca Estrutural da Esfera Publica (1963) ao ultimo A Inclusiio do Outro (1997) e precisamente a contestacao, A democracia modema, baseado, segundo Habermas, no republicanismo kantiano, vive de uma legitimacao do poder atraves da critic a do publico - ora nos saloes da esfera publica embrionaria no seculo 18. ora numa comunicacao porosa proveniente de urn mundo davida que resiste acolonizacao por parte do poder. Se a contestacao, enquanto fato comunicacional, e de tamanha importancia, a fenomenologia do mundo da vida e condenada a insuficiencia: Enquanto ndo nos livrarmos da visiio ingenua ... de um ator embutido na prdtica comunicativa do dia-dia, ndo poderemos trazer atona a limitaciio de um mundo da vida que depende de um estoque de conhecimento cultural particular e sempre capaz de ampliaciio e que varia com este (Habennas, 19882: 202). Seguindo os passos de Husserl, Schutz e Luckmann niio pode senao se perder numa aporia culturalfstica: a (mera!) afirmacao de conhecimento compartilhado sem interacao comunicacional. Esta aporia pode ser evitada, segundo Habermas, quando se suspende a pretensao fenomeno16gica no estudo do mundo da vida. A

J ~

.,

Page 18: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

15

perspectiva sem comunicacao euma perspectiva aporetica: As estruturas simbolicas do mundo da vida se reproduzem no processo da continuaciio do conhecimento va lido, da estabilizaciio da solidariedade grupal e da formacao de atores responsdveis (ibidem: 209).0 mundo da vida precisa ser repensado de acordo com premissas comunicativas, quais sejam entendimento, integracao, socializacao, pois e0 locus privilegiada da contestacao, do dissenso racional, da critica e nso a calice de uma racionalidade padronizada. Uma racionalidade imutavel esinonimo de uma racionalidade petrificada.

A teoria habermasiana, de forte ressonancia no Brasil enos paises anglo-saxonicos, exerce urn forte apelo por sua erudicao, sua relevancia polftica, por sua resistencia ao filistinismo do espirito da epoca. Porem, urn ideal elonge de ser uma teoria plausfvel em si, e as crfticos tern sido ferozes. Alguns mantiveram uma certa fidelidade ao projeto da teoria critica (por exemplo, Axel Honneth); outros (marxistas) criticaram as abstracoes hist6ricas (por exemplo, Hans Peter Kruger), outros ainda criticaram a concepcao imaculada da comunicacao (por exemplo, Albrecht Wellmer), enquanto Jean-Francois Lyotard acusou Habermas de terrorismo, pelo fato deste idealizar a gramatica ao ponto de aniquilar a paralogia (cf. Lyotard, 1979). Contudo, as criticas mais interessantes tern sido as de Niklas Luhmann, pouco conhecido fora dos departamentos de direito no Brasil.

III

Niklas Luhmann (*1927), aluno de Talcott Parsons e titular de sociologia na universidade de Bielefeld desde 1968, faz uma leitura pouco comumdo conceito do mundo da vida (assimidealizado). Na sua analise do esclarecimento, Luhmann enfoca a hegemonia da semantica da interacao, na qual ele situa 0 modelo do mundo da vida de cunho husserliano. 0 paradigma da interacao encontra-se realizado em Kant, na area do discurso filos6fico, e em Lessing, na area do discurso literario no seculo 18. A teoria da esfera publica em Kant encontra urn equivalente no principio dial6gico encenado por Nathan, 0 sabio, na peca classica

Page 19: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

16

de Lessing que inaugura a autonomia do sistema literaria desta epoca, Para Luhmann, esta semantica da interacao nao se restringe a comunicacoes, mas interpreta-se como paradigma da sociedade como urn todo.

Numa critica a Kant, observam-se as serias limitacoes a publicidade strictu sensu da esfera publica: a razao publica nao supera as hiearchizacoes sociais. Portanto, a interacao pode sererguida como modelo da sociedade, ocupando, no entanto, apenas dimensoes locais na realidade, por exemplo, 0 diaologo entre autor e leitor nas casas de cafe, os grupos de leitura das Corresponding Societies. A socialidade interativa e dificil de ser localizada: na amizade? Na comunalidade das saloes? E 0 que seria aqui a causa socio-estrutural para que isto seja socialidade (HGeselligkeit") na sua verdadeira forma e 0 modelo de racionalidade social? Alem disto, a auto-realizaciio do social niio pode ser adequadamente concebida nestas condiciies extremas. 0 obice aparece logo: todos tem de respeitar as limitacoes que ao mesmo permitem aos outros de introduzir sua propria atividade (Luhmann, 1993: 153)4. 1

Portanto, a semantica da interacao dos varies discursos do seculo 18. (do discurso politico da Revolucao Francesa, da metafisica da etica em Kant, e do dialogo ecumenico de Lessing) nao passa de uma ficcao: o principio da reciprocidade ali embutido e ate em contradicao com a 16gica da economia (mercantil). Segue Luhmann: Um entendimento da reciprocidade niio emais compativel com exigencias funcionais e induz a reduciio da teoria da reciprocidade acomunalidade (Luhmann, 1993: 153). Em vez da tradicional concepcao interacional, Luhmann coloca a asimmetria. Pode-se argumentar que 0 discurso kantiano implicito- e explicitarnente se inscreve muito mais no paradigma da asimmetria do que no modelo da interacao. Lembra Luhmann, desta vez criticando explictamente Kant: Kant havia comecado com 0 preconceito que a

4 Esteproblema foi apontado pelo grande historiador ingles E.P. Thompson, quando afumou que a historiografia das mudancas hist6ricas precisa atender as "articulate minorities". a. Thompson, E.P. [1%7] (1991). TbeMaking oftheEnglish Woming Class. Hannondsworth: Penguin: 59.

Page 20: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

17

pluralidade precisa ser dada e unidade sintetizada. Somente a separaciio detes aspectos, isto e a problematizaciio da complexidade torna 0 sujeito sujeito - e isto sujeito da relaciio entre pluralidade e singularidade, niio apenas como autor da sintese. A teoria do sistema rompe com esta premissa e portanto niio usa 0 conceito do sujeito. Ela 0 substitui com 0 conceito do sistema autoreJerencial (Luhmann, 1987: 51). Nesta critica contra a ontologia kantiana, Luhmann ecoa os principios da autopoiesis cognitiva e1aborada por Humberto Maturana e Franciso Varela, a quem retomaremos.

Tanto Husserl quanta Habermas concebem 0 mundo da vida como urn locus de resistencia a uma realidade considerada rna: aquilo que Weber denominara a racionalizacao tecnico-administrativa. Pois as duas concepcoes - de Husserl e Habermas - fazem parte de urn contra­discurso da racionalidade que se propoe a corrigir esta realidade. Os ecos das Teses sobre Feuerbach podem ser ouvidos: Numa longa historic, a descriciio da vida social do homem ... orientava-se em ideiais que a realidade dada niio satisfazia. Isto valia para a tradiciio na Europa antiga, com seu ethos da perfeiciio natural do homem, assim como seu esforco em educar e perdoar pecados. Mas isto tambem vale para a Europa moderna, para 0 Esclarecimento e sua deidade dupla, razdo e critica. Ainda neste seculo, a consciencia da imperfeiciio emantida - vide Husserl ou Habermas (Luhmann, 1997: 21-22). Anota-se nesta releitura do Esclarecimento a influencia da logica formal do te6rico da matematica George Spencer Browns Para Spencer Brown, a forma somente adquire sentido diante do seu oposto, que ea nao-forma. Juntam-se a esta unidade paradoxal da diferenca a diferenca entre linguagem e silencio, presenca e ausencia, sistema e ambiente, fechamento e abertura". 0 nome de Niklas Luhmann e, como ja vimos, sinonimo de mudanca, de uma despedida de varies pressupostos de ordem:

5 Ver SPENCER-BROWN, George (1972). Laws ofForm:New York: The]ulian Press.

6 Par urn vies bastante diferente, jacques Denida, na sua aitica a Husserl publicada pela primeira vez em 1%7, afuma que 0 problema central da fenomenologia

Page 21: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

18

1. epistemologico (palavra-chave.observacao); 2. sociol6gico (palavra-chave: sistema); 3. cognitivo (palavra-chave: construtivismo).

o empenho de Luhmann desde suas primeiras obras sobre 0

Direito e 0 Poder precisa, portanto, ser colocado diante do pano de fundo da necessidade de mudanca na sociologia: A sociologia estd numa crise de teorias. (Luhmann, 1993: 7). Para ele, as escolas chamadas estruturalismo, marxismo, interacionismo, teoria da comunicacao etc. nao conseguem dar uma resposta suficiente a esta crise. A estas teorias subjaz, segundo Luhmann, urn particularismo, que precisa ser corrigido por uma sociologia que visa tratar de todos os fenomenos sociais. A sociologia encontra-se diante de uma fronteira. Esta fronteira pode ser concebida de varias maneiras: 1. como a diferenca basica entre sistema e arnbiente; 2. como uma epistemologia que se tematiza; 3. como urn aumento sensivel de complexidade e abstracao,

Esta posidio teorica exige uma representaciio numa posiciio de abstraciio bastante incomum. 0 VDO precisa ocorrer em cima das nuvens, e pode-se pressupor uma camada bastante fechada de nuvens. Precisa­se confiar nos proprios instrumentos. De vez em quando e possivel lancar um olhar para a terra - urn olhar para areas com caminhos,

husserliana residiria justamente na afirmacaode presencas no lugarde ausendas; A1'1den1a5~pamesjJOCffiaJraquina.."£linJerlfiio,quea.fenornendqsianiisJXlfW! atonnentoada, !Bt1iioconteskldadentrodossuasprCpriasde:<x:ri¢esdomwimentoda ~eda~da~.NJfX»1JDrnaisprfimdJdaquihque

IifpeJa:scbsrrunenJa;~ uma~'I'f.Ub!um~

eaxruiaumanitJ-Uda, ~w:na)·ademasimesmacbjJtfN!nletiw,umanit>­originaridade indesmiztlt.el(Denida, 19)4: 5). a prOprioLuhmann reconhere este parentesco entre a teoria dos siternas autopoieticos e a desconstrucao (d. Luhmann, 1997).

Page 22: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

19

aldeias, rios ou litorais, que lembram fatos conhecidos; ou um olhar para uma paisagem maior com os vulciies extintos do marxismo. (Luhmann, 1993: 13). Quais sao as consequencias desta mudaca de paradigma para a teoria geral dos sistemas sociais? Precisa-se destacar tres nfveis de analise:

1. sistemas 2. maquinas: organismos; sistemas sociais; sistemas politicos; 3. interacoes; organizacoes, sociedades.

Este mode1o triadico econcebido sobretudo para evitar 0 recurso a modelos antigos baseados nametafisica ou na euto-tematizacao na sociedade. Por exemplo, a invocacao da esfera publica por Kant apenas interpreta-se enquanto modelo da sociedade, modelo este que subjaz a sociologia como disciplina de Weber, Durkheime Habermas. Descrevera sociedade emtennos de inte~ao ou de dialogo e perpetuar a metafisica: Tambem fracassa a tentativadeconstruir teoriasgerais do social na base de teorias da interaciio. (Luhmann, 1993: 17). Luhmann tern em mente, portanto, uma superteoria, com pretensao universal. Este tipo de teoria e impulsionada por sua capacidade de construir diferencas. A teoria dos sistemas se despede de tais pressupostos. Mas de que forma? De que formaeque e1aefetua uma guinada da diferenca entre 0 todo e suas partes? A diferenca tmdicional entre 0 tudo e suas partesesubstituidapeladiferencaentre sistemae arnbiente. Diferencia­se entre sistemas abertos e fechados: A teoria dos sistemas auto-referenciais afirma que uma diferenciaciio de sistemas somente pode acontecer atraves de referencia sistemica; isto significa atraves do fato de que os sistemas se referem a si mesmos na constituicdo de seus elementos ... e 0 fechamento auto-referencial, pois, somente epossivel num ambiente, sob condicbes ecologicas. 0 ambiente e um correlato necessdrio de operaciies auto­referenciais... (Luhmann, 1993: 25).

Sabemos que a sociologia luhmanniana nao se restringe ao campo sociol6gico per se. Visa sobretudo uma plausibilizacao tao perfeita quanto possivel ao nive1 epistemol6gico. De importancia central entao precisa ser 0 conhecimento, 0 conhecedor e 0 conhecer. A teoria dos sistemas e

Page 23: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

20

uma teoria dependente do observador. 0 observador e importante na medida em que nele se cristalizam as diferencas metodol6gicas. 0 observador e urn sistema auto-referencial. Precisa-se, portanto, se despedir da epistemologia baseada na diferenca entre sujeito e objeto. 0 novo paradigma ea diferenca identidadel diferenca. Para Luhmann, 0

conceito do sistema nao e urn conceito que nasce com a diferenca introduzida por Weber entre racionalizacao e racionalidade. 0 conceito tern urn valor epistemol6gico e metodol6gico pr6prio. Por isto: Todo contato social e concebido como sistema, ate a sociedade enquanto totalidade da consideraciio de todos os contatos possiveis. (Luhmann, 1993: 33). Os pressupostos da teoria sao:

1. a diferenca entre sistema e ambiente. Nesta, a manutencao da fronteira ebasica. 0 sistema nao existe sem seu ambiente. A relacao emarcada pela interdependencia;

2. 0 paradigma da diferenca entre 0 todo e as partes e substitufdo pelo conceito da diferenciacao sistemica. 0 sistema geral adquire, neste processo, a fun~ao de urn ambiente intemo dos sub-sistemas;

3. a causalidade precisa ser repensada, diante da interdependencia entre sistema e ambiente. Conceitos: producao, reproducao, autopoiesis;

4. a diferenca sistemalambiente precisa ser ampliada pela diferenca elemento e relacao, Nao existem elementos sem relacao e nao existe rela~ao sem elementos. Portanto, os elementos sao de-ontologizados;

5. a relacao entre os elementos e conceptualizada com 0 conceito da condicionamento. Sistemas nao sao apenas relacoes entre os elementos; as relacoes precisam ser reguladas;

6. complexidade. Complexidade ea exigencia de selecao. Esta pres sao etambem contingencia, e contingencia erisco.

Precisa-se, antes de mais nada, esclarecer a enorme guinada que Luhmann efetua em nfvel epistemol6gico. Para Luhmann, a distincao objeto-sujeito precisa ceder arelacao sistema-ambiente. De acordo com o te6rico da biologia Humberto R. Maturana, 0 sistema biol6gico emarcado por dois momentos: fechamento e abertura operacional. A cognicao, como

Page 24: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

21

ja demonstrou Piaget, e uma operacao cognitivafechada, auto-referencial, pois 0 sujeito constr6i a sua propria realidade. Esta auto-referencialidade e denominada por Maturana autopoiesis. Ele problematiza a tradicao ontol6gica da cognicao que rege todo 0 discursodafilosofia da modernidade, contrapondo urn modelo da cognicao derivado da biologia. Ao inves de presumir a facticidade da cognicao na sua condicao de base para toda atividade, Maturana diz que e necessario conceber 0 fen6meno da cognicao enquanto produto do nosso ser biol6gico. A sua questao e: "Que tipo de fenomeno biol6gico e 0 fenomeno da cognicao?" (Maturana, 1994: 89). De importancia fundamental para Maturana e 0 fato - banal ate - que a analise da cognicao pressupoe sempre 0 uso da cognicao. 0 ato cognitive e incomensuravel.Ao mesmo tempo, quando a cognicao e considerada algo analisavel que deriva do ser biol6gico, isto implica que 0 pressuposto da possibilidade de aproximacao it. realidade cai,

De acordo com os princfpios da homeostase, da acoplagem e do equilfbrio em Piaget, Maturana diz que as operacoes cognitivas visam duas coisas basicas: 0 agir sucedido e 0 comportamento adequado. Desta forma, a sua teoria biol6gica da cognicao se despede de tais aprioris como significacao, informacao ou verdade. Seu interesse e voltado para os processos ocorridos no ato de conhecer. Estamos diante de urn deslocamento da observacao: substitui-se a ontologia da significacao, verdade e realidade pelo funcionamento dos processos que produzem tais conceitos. A condicao basica para uma teoria biol6gica da cognicao enquanto operacao empirica e a observacao do ser humano como sistema biol6gico. A concepcao deste sistema nao pode ser confundida com uma caixa preta, ou 0 cerebro como maquina. Pois Maturana e Franciso Varela ofereceram uma concepcao bastante especffica do sistema vivo. 0 sistema vivo preenche as seguintes condicoes:

1. formam a rede das producoes atraves de interacoes; 2. constituem as fronteiras da rede como marcam a mesma; 3. constituem a rede como unidade composta no espaco.

Este tipo de sistema, de sistema vivo e urn sistema autopoietico, de uma organizaciio autopoietica. Urn sistema vivo e urn sistema autopoietico no espaco ffsico (ibidem: 94-5). As suas caracteristicas sao:

Page 25: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

22

1. Sao sistemas estruturalmente especfficos. Precisam obedecer as leis de processos fisicos, senao colapsam.

2. Sistemas autopoieticos funcionam de acordo com 0 principio da homeostase. Mudancas somente sao possfveis se nao perturbam a autopoiese.

3. 0 sistema autopoietico e dinamico, Sofre mudancas estruturais permanentemente. A identidade do sistema nao se perde, porem, pois a urn dado momento as novas estruturas alteradas marcam as fronteiras do sistema e definem 0 espaco da sua organizacao.

4. 0 sistema autopoietico existe num espaco que difere do espaco no qual existem os elementos do sistema.

5. A homeostase existe apenas por causa da co-operacao dos elementos. o principio do born funcionamento obedece it contiguidade (acoplagem).

6. 0 sistema autopoietico determina 0 meio, no qual ele funciona atraves da sua estrutura.

Resumindo, podemos afirmar: urn sistema autopoietico operacomo sistema fechado, que somente produz condicoes da autopoiesis. Ou, em outras palavras: Toda condicao nurn sistema autopoietico eurna condicao da autopoiesis, senao, 0 sistema se encontraria nurn processo de dissolucao. No que tange aos seus elementos, porem, 0 sistema autopoietico eaberto no sentido de que a sua producao irnplica urna troea com urn meio (ibidem: 97). 0 cerebro etambem urn sistema autopoietico operacionalmente fechado. o sistema nervoso nao opera na base de relacoes de input/output. Temos uma rel~ao recfproca entre as superficies sensoriais e efetoriais (ibidem: 98). Os neuronios interagem de acordo com a arquitetura da rede (cerebro). As consequencias para a concepcao da cognicao (ou: da cognicao da cognicao) sao fundamentais. Maturana: Se tudo 0 que acontece num sistema vivo eespecijicado atraves da sua estrutura, e se um sistema vivo somente pode se encontrar em condicoes da autopoiesis, pois seniio se decomporia (e deixaria de ser um sistema vivo), entiio 0 fenomeno da cognidio, que aparece ao observador como comportamento sucedido num meio, ena realidade a realizaciio da autopoiesis do sistema vivo. Para um sistema vivo vida significa cognidio. (ibidem: 101).

Page 26: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

23

Tanto0 sistema biol6gico quanto 0 sistema social somente podem ser concebidas como sistemas em ambientes. Por exemplo: 0 corpo humano, como sistema organico, somente pode funcionar em determinadas condicoes: tornar-se-ia disfuncional em temperaturas acima de 120 graus celsius ou durante periodos prolongados sem oxigenio debaixo d' agua, Ate certo ponto, 0 sistema social obedece as mesmas necessidades funcionais: 0 sistema educacional tornar-se- ia disfuncional sem professorese alunos. Decerto, a aproximacao da sociologia a biologia suscita urn mal-estar geral e leva logo a acusacao de biologismo. 0 argumento - plausivel em si - os leva ate Darwin ou Spencer, ou ate as teorias raciais repugnantes de Adolf Hitler. Mas a acusacao nao cabe. Luhmann, em nivel epistemologico, adota urn instrumento capaz de observar qualquer sistema, seja este 0 corpo ou 0 sistema juridico. Em nivel sociol6gico nem sequer reduz a complexidade social a impulsos biol6gicos, nao reduz a vida social a lei da selva etc., e a obfuscacao da acusacao pode ser superada no nome de uma critica mais refinada.

Comunicacao tampouco e urn regulador, apenas desempenha a funcao vital para a continuacao da mesma comunicacao; portanto, e autopoietica, Aquilo que designamos <sociedade> e, na realidade, comunicacao que se reproduz. 0 principio da autologia - a comunicacao que comunica, e nao manda <mensagens>, isto e, a dependencia da sociedade da comunicacao - a comunicacao sobre comunicacao e,em si, uma comunicacao; 0 conceito da generalizacao generaliza. Toda operacao deste sistema produz, como tambem teria de ser concedido ao sujeito, uma diferenca entre sistema e ambiente: Alguns problemas da filosofia do sujeito podem ser ... resolvidos, sobretudo 0 problema da intersubjetividade. Ao contrdrio do que efreqiientemente pressuposto, o funcionamento das relaciies sociais - isto significa para nos: a autopoiesis da sociedade - niio depende da <intersubjetividade>, e nem do «consenso», Nem a intersubjetividade esempre dada, nem ela pode ser gerada ... . As premissas da <intersubjetividade> ou do consenso podem ser simplesmente abandonadas (Luhmann, 1997: 874-875).

Niio se pode eliminar a desorientaciio teorica de uma teo ria social baseada no sujeito ao se designar 0 paradoxo explicito da

Page 27: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

24

<inter-subjetividade> como um fenomeno (de qual sujeito?) e ao se tratar dele como umfato do mundo (Luhmann, 1997: 1029n). Com isto Luhmann rompe de vez com a tradicao da filosofia de praxis que, afina1, apenas colocava 0 juizo acima da realidade e se decepcionava quando esta nao correspondia a critica (Marx, Adorno, Habermas). As consequencias sao radicais: 0 sistema social... ndo emais caracterizado por uma «essencia> definida, e nem sequer por uma moral determinada (disseminaciio da alegria, aproximaciio das qualidades de vida, integraciio racional-consensual etc.), mas somente pela operaciio que produz e reproduz a sociedade. E isto ea comunicaciio (Luhmann, 1997:70).

o deslocamento efetuado por Luhmann tern uma grande ressonancia nos te6ricos do Construtivismo Radical? Peter M. Hejl, por exemplo, comenta que 0 dualismo tradicional entre individuo e sociedade nao corresponde a nenhuma realidade onto16gica pre-estabelecida. Sao apenas construcoes cognitivas. Sistemas sociais sao synreferenciais, isto e, se observame se tematizam. Desta maneira, 0 discurso do lluminismo jamais representava uma aproximacao a condicao pura de liberdade, mas sim urnanova auto-tematizacao da sociedade burguesa (vide tambem Lessing).

o sistema consiste em organizacao e componentes. Os atores sociais sao componentes do sistema. Para conseguirem urna boa interacao e comunicacao, os atores precisariam, segundo Hejl, ter gerado urn dominio comum de conhecimentos. Este reino e0 reino synreferencial. Segundo Hejl: Quando membros de um sistema social se referem, ou implicita- ou explicitamente nas suas comunicacoes enos seus comportamentos ao reino do conhecimento especijicamente sistemico do sistema, eu chamo este reino de conhecimento de reino synreferencial. o fato de a synreferencialidade desempenhar uma funcao fundamental somente em sistemas sociais faz comn que pode-se categorizar tais sistemas de outros - p.ex. do sistema biologico (Hejl,

7Adctovfuias ideias doConstrutivismoRadical nomeu Fic¢o-O;munico¢o-O>gni¢o. EnsaiosfLJbreanJa¢oentrefic¢ese~~previSapara 1%8).

Page 28: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

25

1995: 307). Portanto, urn sistema social consiste em tres niveis: organizacao, componentes, e reino synreferencial: Um sistema social e um grupo de individuos que (a) participam no mesmo reino synreJerencial, e (b) agem e interagem com respeito a ele. Deste modo, individuos tornam-se tanto componentes do sistema, como tambem constituem a organizadio do sistema (ibidem.), A tendencia de absolutizar 0 conceito de autopoiesis, de se concentrar tanto no paradigma do observar ate esmagar a possibilidade te6rica do agir, tern sido os mais recentes enfoques do Construtivismo Radical. Tanto e que Schmidt fala do mito da autopoiesis. Para ele: Cogniciio e comunicaciio siio estruturalmente acopladas por oJertas mediaticas atraves de um recurso coletivo as ordens simbolicas da cultura (Schmidt, 1995: 317) e: 0 entendimento pode ser teoricamnete modelado em termos daquilo que a comunicaciio atribui a ou exige de cogniciio no momento do processamento das ofertas dos meios. Comunicaciio e cogniciio pressupiiem esta expectativa. Neste sentido, 0 entendimento e algo como uma ficciio util. Presupomos compreensiio a Jim de supor que a comunicaciio e razoavel, po is supomos que outros "pensam" (Schmidt, 1995: 323).

Referencias Bibliogrmcas

BERGER, Peter L. e Thomas Luckmann (1997). A Construciio Social da Realidade. Tratado da Sociologia do Conhecimento. Petr6polis: Vozes

DERRIDA, Jacques (1994). La voix et le phenomene. Paris: Quadrige/ PDF

FRANK, Manfred (1995). Subjektivitat und Intersubjektivitat. In: Revue Internationale de Philosophie (Numero Especial: Habermas. Contemporary Philosophers. Philosophes contemporains) 4/1995 (dezembro 1995): 523 - 550

GRANT, Colin B. (1990) The departure from dialogue in GDR reader­writer relations in the 1970s and 1980s. In: GDR Monitor (Amsterdam) 22 (1990): 69 - 82

Page 29: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

26

GRANT, Colin B. (1995) Literary communication from consensus to rupture. Theory and practice in Honecker's GDR. Rodopi: Amsterdam!Atlanta (GA)

GRANT, Colin B. (1997) Procedures of exclusion and reserves of inclusion in the public spheres. In: Interfaces (Rio de Janeiro) III (1997) 3: 91 - 100

GRANT, Colin B. (1997a) Kritik der Dialogiztitiit. Zu Asymmetrien literarischer Kommunikation. LUMIS-Schriften (Siegen- Alemanha) No. 4911997

GRANT, Colin B. (1998) Ficciio - Comunicacdo - Cogniciio. Ensaios sobre a relaciio entre ficcoes e sociedades (em preparacao)

HABERMAS, Jurgen (1988). Theorie des kommunikativen Handelns (2 vols.). Frankfurt a. M.: Suhrkamp

HABERMAS, Jurgen (1990). 0 discurso filosofico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote

HABERMAS, Jiirgen (1993). Pensamento pos-metafisico, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro

HABERMAS, Jiirgen (1995). Replik. In: Revue Internationale de Philosophie (Niimero Especial: Habermas. Contemporary Philosophers. Philosophes contemporains) 4/1995 (dezembro 1995): 551 - 565

HABERMAS, Jiirgen (1997). Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt a. M.: Suhrkamp

HEJL, Peter M. (1995). Autopoiesis or Co-Evolution? In: Paragrana (Berlim) 4: 2: 294 - 314

HUSSERL, Edmund (1982). Die Krisis der europiiischen Wissenschaft und die transzendentale Phiinomenologie. Eine Eileitung in die phanomenologische Philosophie. Hamburg

HUSSERL, Edmund (1992). Phiinomenologie der Lebenswelt. Ausgewiihlte Texte II. Stuttgart: Reclam

JAUSS, Hans Robert (1994). "Riickschau auf die Begriffsgeschichte von Verstehen". In: JAUSS. Wege des Verstehens. Munique: Fink

KRAMASCHKI, Lutz (1994). Intersubjektivitat, Empirie, Theorie. ProblemaufriB zur Methodologie einer Konstruktivistischen

Page 30: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

27

Empirischen Literaturwissenschaft. In: LUMIS-Schriften (Siegen - Alemanha) N. 40 (1994)

LUHMANN, Niklas (1987). Soziale Systeme. Grundrifi einer allgemeinen Theorie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp

LUHMANN, Niklas (1993). Gesellschaftsstruktur und Semantik 1. Frankfurt a.M.: Surhkamp

LUHMANN, Niklas (1994). Poder. Brasilia: EdUnB LUHMANN, Niklas (1997). Die Gesellschaft der Gesellschaft.

Frankfurt a. M.: Suhrkamp LYOTARD, Jean-Francois (1990). 0 Pos-Modemo. Rio de Janeiro:

Jose Olimpio LYOTARD, Jean-Francois (1992). La phenomenologie. Paris: PUF MATURANA, Humberto (1997). A Ontologia da Realidade (org. por

Cristina Magro, Miriam Graciano, Nelson Vaz). Belo Horizonte: Editora UFMG

SCHMIDT, Siegfried J. (1995). Cognition, Communication, and the Myth of Autopoiesis. In: Paragrana (Bedim) 4: 2: 315 - 324

SCHMIDT, Siegfried .J. e Colin B. Grant (1997). Fundamentos cognitivos e relevancia social da ciencia da literatura. In: FORUM DEUTSCH. Revista Brasileira de Estudos Germdnicos (Rio de Janeiro) II (1997) 1: 7 - 22

VARELA, Francisco (1992). Sobre a Competencia Etica. Lisboa: Edicoes 70

WITTGENSTEIN, Ludwig (1988). Philosophische Grammatik. Frankfurt a. M.: Suhrkamp

Page 31: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 32: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

TRANSVERSALIDADE, BIOETICA E COMPLEXIDADE: CONSIDERAC;OES ACERCA DE UMA METABIOETICA

Antonio Basilio Novaes Thamaz de Menezes

Resumo A ideia central deste texto e de discutir as condiciies de compreensiio da bioetica, a partir da hipotese de um quadro referendal que residiria no proprio entendimento do conceito. Assim, 0 texto inicia por uma analise da compreensiio do conceito, para depois apontar para um quadro referendal derivado do mesmo, e, finalmente, apresentar a ideia de uma metabioetica, enquanto uma perspectiva de compreensiio da bioetica que pode ser estruturada a partir do principia da complexidade, aplicado as Ciencias Humanas (Morin), e fundamentado na concepciio do pensamento transversal (Deleuze/Guattari).

Abstract The central idea of this article is to discuss the conditions ofbioethics comprehension from a referential picture hypothesis that it resides in its own conceptual understanding. Thus, this articles starts with a conceptual comprehension analyzes, and then it looks for a referential picture of concept; and, finally, it points out an idea of metabioethics while a comprehensive perspective of bioethics that it can be structured by the complexity principle applied to the Human Science (Morin). It is also founded on the conception of transversal thought (Deleuze/Guattari].

Princfpios Ano 04, n 05, p. 29-40, 1997

Page 33: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

30

Considera~oes iniciais

Chegar perto de ideias assim i como montar uma vassoura de bruxa. Eu jd ndo era mais 0 mesmo homem ... (Deleuze, apud Alliez, 1995,p. 11).

Longe de ter a ambicao de constituir urn saber sedimentado, tao caracteristico do rigor mortis que 0 conhecimento apresenta nas hostes da Academia, este texto prima, antes de tudo, pela ousadia aventureira do pensamento nomade, 0 mesmo que caminha por terras hostis e ignotas, apropriando-se do que the eoferecido, atraves de continentes em busca do novo; este novo que etao conhecido como as verdades mais 6bvias, mas que, por ser assim, permanece desconhecido, ignorado pelos "academicos" nas margens do pensar.

A margem das margens, longe das fronteiras cognocionais e dos empedernidos vigilantes de plantae, este texto, inspirado num espirito bricoleur, eurn mosaico que atravessa a diferenca dos seus fragmentos. E, na sua pr6pria cartografia, desenhando uma totalidade da composicao, produz 0 diferente, atraves dos labirintos do pensamento, que segue pelos caminhos da transversalidade, em busca de uma passagem que conjugue complexidade e bioetica numa mesma dimensao.

A ideia de uma metabioetica, implicita no titulo e desenvolvida ao longo do texto no entrelacamento das suas pr6prias consideracoes, revela uma tentativa, nao raro ousada, de pensar a bioetica como urn conceito' transversal que a partir de si abre-se para uma nova dimensao compreensiva. Entender entao esta transversalidade do conceito constitui entao 0 primeiro passo deste texto que, em tomo da composicao da ideia de uma metabi6tica, conjuga os nfveis da fundamentacao filosofica e do estatuto epistemol6gico, num topografia de ideias e perspectivas, reunidas nos diferentes planos de urn mesmo topos.

Superffcie de enlace do ethos com a episteme, a transversalidade datrama conceitual, guarda 0 flo condutor do texto que delimita no labirinto das ideias, 0 lugar de analise da metabioetica nas esferas e micleos de problematizacao da pr6pria bioetica, que se coloca entao sob 0 paradigma

Page 34: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

31

do pensamento complexo. A complexidade caracteriza 0 aporte referencial da investigacao que permite configurar a metabioetica sob a perspectiva de urn sistema aberto de "metapontos de vista", 0 qual possibilita vislumbrar 0 horizonte de urn corpus teorico estruturado simultaneamente no campo episternico da articulacao das esferas segmentalizadas da bioetica; e no campo filosofico, do desafio da compreensao etica para alem do normativismo estrito da regulacao tecnica ou moral.

Assim, 0 texto deixa urn alerta ao leitor, que apesar do seu esforco por urna maior objetividade, muito ainda permanecera implfcito ou por construir, na medida em que, a sua ideia emerge da latencia da trarna dos conceitos na sua propria tessitura. 0 texto lanca-se no desafio do pensar.

Por uma compreensiio de transversalidade

A necessidade de relacionar, relativizar e historicizar 0

conhecimento niio traz somente coaciies e limitacoes, tambem impiie exigencias cognitivas fecundas.

(Morin, 1996).

A transversalidade, enquanto urna forma de designacao de urn certo tipo de abordagem epistemological, caracteriza urn olhar oblfquo sobre 0 objeto que 0 dimensiona na sua multiplicidade. 0 olhar atravessa a compreensao do objeto, no campo intensi vo das significacoes possiveis. E, sob 0 aspecto da construcao do conceito, este ultimo aparece como uma "superficie", que na sua forma apresenta urn "estado de sobrevoo", circunscrito a cifra dos seus componentes aos seus limites, e as pontes que se delineiam.

o conceito como forma de compreensao do objeto "nao tern outro objeto senao a inseparabilidade de variacoes distintas" (Deleuzel

1 Nesse ponto enecessario explidtar que a transversaliclade aparece como uma expressao ciatransdisdplinaridade, enquanto uma forma de estruturaeao desta Ultima, que se coloca no plano do pensamento, sob 0 aspeeto da construcao do conceito, localizado na fundamentacao da perspectiva de abordagem transdisdplinar.

Page 35: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

32

Guattari, 1992, p. 33). Na sua configuracao 0 objeto se traduz na forma do conceito, como 0 "acontecimento" que 0 conceito diz, enquanto urn ato do pensamento, expressao da multiplicidade de uma regiao do real.

Assim, 0 conceito talha e retalha 0 "acontecimento" na sua forma e aseu modo, na medida em que 0 proprio conceito se apresenta como uma totalidade fragmentaria', ao mesmo tempo, absoluto e relativo: absoluto, na dimensao do seu todo, isto e, da condensacao que opera no real, da contextualizacao que demarca 0 plano da sua problematizacao e das condicoes que impoe ao problema; relativo, na dimensao da sua propria estrutura, fragmentaria nos seus pr6prios componentes, nos outros conceitos que interrelaciona, no lugar que ocupa no seu plano de abordagem enos supostos problemas os quais deva resolver.

A transversalidade como urn olhar obliquo, caracteriza entao 0

olhar do conceito que se abre amultiplicidade do real como urn multiple do "acontecimento" que traduz 0 seu proprio objeto. Nessa medida, 0

conceito nao e proposicional; nao se refere a correspondencia de urn estado de coisas ou as suas condicoes de relacao. Ao contrario, 0 conceito e intensional, ou seja, uma intensidade, urn ponto de coincidencia ou condensacao dos seus proprios componentes, uma heterogenese ou ordenacao de variacoes por zonas de vizinhanca, que caracteriza 0 carater singular da sua expressao frente ao real. Nesse aspecto, cabe ainda lembrar que, como forma de articulacao dos diferentes planos do real, "os conceitos sao centros de vibracoes, cada urn em si mesmo e uns em relacao aos outros (...) [E] por isso que tudo ressoa, em lugar de se seguir ou de se corresponder" (Deleuze/Guattari, 1992, p. 35).

Na sua forma de apresentacao singular, 0 conceito nao deixa de ser conhecimento, mesmo nao tendo urn carater proposicional ou descritivo. 0 conceito econhecimento na medida emque, na sua estrutura

2 Sob esse aspecto cabe salientar a advertencia de Deleuze e Guattari 0992, p. 35-36) ao assinalar que: "as conceitos como totalidades fragmentarias, nao sao requer os pedacos de urn quebra-cabecas, pois seus contomos irregulares nao se correspondem. Eles formam urn mum, mas eurn mum de pedras secas e, se tudo etornado conjuntamente, epor caminhos divergentes. Mesmo as pontes, de urn conceito a urn outro, sao ainda encruzilhadas ...".

Page 36: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

33

intensional, 0 conceito econhecimento de si. Pois 0 seu objeto e0 "puro conhecimento", ou seja, a construcao sobre urn plano, 0 quallhe autonomia de existencia na relacao imanente que ele mantem com 0 real. Assim na estrutura intencional do conceito, nao se descarta a dimensao da verdade. Uma vez que a verdade eaquilo que advem das condicoes de criacao do conceito, na forma do contomo, configuracao ou construcao de urn "acontecimento".

o que parece indireto no olhar conceitual, compreende entao uma 16gica do sentido" pr6pria, que se clarifica no atravessamento do conceito desenhado nos multiples pIanos do real. A transversalidade e o que passa de traves, como uma serie de "parentescos colaterais" que se criam nas bordas dos conceitos, dentro de uma perspectiva do devir, caracteristico do pr6prio conceito.

Todo conceito bifurca sobre outros conceitos, tendo urn mimero de componentes finito e naturezas distintas. Cadacomponente de cadaconceito constitui diferentes regioes de urn mesmo plano do real. E sendo cada componente conceito, estendem conjuntamente problemas conectaveis, De tal modo que, "0 conceito define-se pela inseparabilidade de urn mimero finito de componentes heterogeneos percorridos por urn ponto em sobrevoo avelocidade [movimento] infinita" (DeleuzelGuattari, 1992, p. 33).

Assim, a perspectiva da transversalidade, articula a partir da fundamentacao filos6fica do olhar conceitual, constitui a justificativa epistemol6gica do corte transversal na dimensao dos diferentes campos do conhecimento, sobre a base interconectiva que esses campos estabelecem entre si, no jogo conceitual pr6prio a caracterfstica da construcao do conceito. Onde, num mesmo conceito existem componentes vindos frequentemente de outros conceitos, os quais se reportam aoutras problematizacoes e supoem outros pIanos. De forma que, a pr6pria construcao do conceito abre-se a transversalidade entre os diferentes campos do conhecimento. E tal como ainda assinala Deleuze

3 Nestaaoepcaoa 16gica dosentido tern a conotacaode estrutura de expressiiodo real, do movimento e do pensamento que caracteriza a dirnensao obliqua do olhar corxeaual

Page 37: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

34

e Guattari (1992, p. 30): "cada conceito opera urn novo corte, assume novos contornos ...".

A fundamentacao filos6fica do conceito, com isto, serve de base aconfiguracao do estatuto epistemol6gico da transversalidade, a partir dos modos de ideacao do conceito e da sua formacao em rede, que tambem se encontra no paradigma do pensamento complexo. Este ultimo considerado aqui sob a nocao-chave de "sistema aberto", necessaria a concepcao primordial da complexidade, no ambito de compreensao dos seus pr6prios objetos. Onde, por fim, a transversalidade caracteriza a estrutura da abordagem complexa nos seus tres principios fundamentais de compreensao (Morin, 1994, p. 141-148): (1) no principio hologramdtico - da composicao da imagem em pontos que contem em si a informacao do conjunto - relacionado aformacao estrutural da totalidade fragmentaria do conceito; (2) no principio da recursividade - do retorno do efeito na sua forma causal acausa que 0 produz - inferido da dinamica e tessitura da rede do conceito; e (3) no principio dialogico - da unidualidade ou de duas logicas reunidas, sem que a dualidade se perea na unidade - imanente ao plano da construcao do conceito no seu dimensionamento frente amultiplicidade do real.

De modo que, a transversalidade do conceito se faz presente no primeiro "mandamento" da complexidade, ou seja, da "validade mas insuficiencia do principio de universalidade" como urn "principio complementar e inseparavel de inteligibilidade a partir do local e do singular" (Morin, 1994, p. 254).

A ideia de uma metabioetiea

Fica em suspenso (...) a questiio do estatuto da necessidade segundo a qual 0 principio geofilosofico de contingencia deve se contrapor ao tempo da ciencia e as 'series' do progresso cientifico colocados sob 0 regime de uma razdo necessaria.

(Alliez, 1995, p. 31).

Page 38: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

35

A ideia de uma metabioetica aparece na transversalidade dos campos da bioetica e da complexidade, a partir da perspectiva de urn metaponto de vista, no qual "nenhum sistema cognitivo poderia se conhecer exaustivamente, nem validar-se completamente a partir dos seus proprios instrumentos" (Morin, 1996, p. 20). A bioetica, tomada dentro deste referencial complexo, supoe na constituicao do seu pr6prio conhecimento, os princfpios de indeterminacao e de incompletude que caracterizam a diversidade dos seus modelos de cornpreensao (Engelhardt, 1995, p. 30). Esses modelos apontam no seu conjunto para urn "sistema de metapontos de vista", como uma estrutura presente na dupla aptidao do "conhecimento do conhecimento", de tratar-se como objeto e considerar-se a si mesmo a partir de uma segunda instancia de reflexao (Morin, 1996, p, 20). De tal forma que, a transversalidade dos horizontes bioetico e complexo se estabelece a partir do pr6prio estatuto epistemico, da condicao epistemol6gica do "metaponto de vista" do conhecimento, que permite uma aproximacao desses campos na abordagem das suas pr6prias condicoes de compreensao.

Tal como Morin apresenta (1992, p. 83), a ideia de urn metaponto de vista nao se refere a busca de urn ponto de vista superior ou fixo mas, ao contrario, emerge da dial6gica e da recursividade das dimensoes de estruturacao do campo do conhecimento no seu esforco de auto­compreensao, Aplicada aautocompreensao da bioetica a ideia caracteriza uma entrearticulacao das suas diferentes instancias constitutivas, numa dial6gica de pontos de vista, onde a recursividade de uma instancia a outra demarca 0 metaponto de vista a qual cada uma tenta referir-se. Deste modo, a ideia do metaponto de vista, como uma condicao epistemol6gica do campo de conhecimento da bioetica, possibilita na sua pr6pria estrutura a apropriacao metodol6gica da bioetica pela complexidade, a partir de uma abordagem transversal da configuracao dos campos interconectaveis no seu contorno, possfvel desde uma perspectiva ampliada de compreensao da bioetica, no seu locus de delimitacao. Isto e, "0 lugar virtual, mas disciplinado, do encontro das dificuldades emergentes no tocante as modalidades modernas da vida humana" (Lepargneur, 1996, p. 15 - grifo no original).

Page 39: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

36

A compreensao da bioetica; como urn Lugar de disparidades posicionais, em que 0 seu conteudo varia com 0 tempo (Lepargneur, 1996, p. 15); possibilita com essa ideia uma perspectiva ampliada no sentido de uma metabioetica, ou da ultrapassagem dos "canones'" da disciplina, enquanto urn nfvel de reflexao dos pressupostos, que se encontram nas variacoes da configuracao do campo nacional dos seus princfpios fundamentais e concepcoes. Pressupostos como vida, corpo, pessoa, que constituem eixos transversais na compreensao do campo do conhecimento bioetico. E que sao ao mesmo tempo eixos interpretativos, implfcitos na dimensao da estruturacao nacional dos princfpios e concepcoes, no campo da construcao das imagens no plano simb6lico da subjetividade, que se efetiva no horizonte nonnativo das perspectivas de articulacao tematica,

Nesse aspecto, cabe ainda salientar aqui, que a perspectiva da metabioetica, tal como se apresenta, constitui urn outro nfvel de compreensao no quadro das distintas esferas de problematizacao da bioetica nos nfveis micro, meso e macros (Mainetti, 1991, p. 19). A metabioetica compreende neste gradiente os demais niveis, no plano do entrecruzamento reciproco dos mesmos, atraves da recursividade dial6gica que eles

40 ernprego do termo canonenao denota 0 sentido ordinario de urn oonjunto de regras geralmente proibitiva, na medida em que este artigo nao pretende partidpar da polemica ern tomo da fundamentacao au nao da bioetica. Assim,

. 0 mesmo considera 0 dinonecomo pacimetros de configuracao ternatica que carncterizam 0 quadro referendalespedfico do campo de conhecimento bioetico.

5A microbioetica<XlIllJXreflde a eticamedica smaosensu; ondese temaIi2a: 0;aspectos morais da relacao terapeutica, no oontexto do; direitos e deveres do medico em relacaoao paciente; e a etiddade na aterl¢o asaUdebern como 0 direito a mesrnae a politicaderecursos, A mesobioiJticacompreende asintervenif:lesbiOID.'Xhcas sabre avida humana desde onasdrreraoare a morte; o queabarcaternas comogenetica, aborto,~

humana, transplantes, morte, etc ... A macrobioeticaerwclve a eticaplanetariaau espedfica ern tomo detemas como a problernatka ambiental, populacional, nuclear-estrategica ou do; limites morais da investiga\iiodentffico-temol6gica.

Page 40: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

37

estabelecem entre si. De modo que, por exemplo, os aspectos morais especfficos da relacao terapeutica medico-paciente se entrearticulam com a dimensao da intervencao biomedica na vida humana individual e, sob 0

aspecto da experimentacao humana, esta tambem se entrearticula com a dimensao mais ampla dos limites morais da investigacao cientifica .,. e assim reciprocamente em cada dimensao. Onde, na base desta rede de miiltiplas recorrencias, contrastes e complementaridades, esta a n~ao de corpo como uma construcao imagetica que perpassa obliquamente todos os demais rnicleos de problematizacao.

De outro modo, no plano de compreensao etica da bioetica, a perspectiva ampliada da metabioetica se estrutura a partir do horizonte de uma "etica das verdades" (Badiou, 1995), isto e, do animal humane convocado a se tomar sujeito pelas circunstancias de uma verdade, as quais abrem campo a producao de novos saberes, atravessando os estabelecidos e heterogeneos a ela. Campo no qual epreciso supor que, "0 que convoca acomposicao de urn sujeito esta a mais, ou sobrevem as situacoes como aquilo de que essas situacoes e amaneira usual de nelas se comportar nao podem dar conta" (Badiou, 1995, p. 54)6.

Nesse sentido, a metabioetica amplia 0 conteudo de uma simples "etica descritiva", ou da descricao fatica das crencas e comportamentos morais; a partir do horizonte de uma "etica das verdades". 0 mesmo que aponta para uma dimensao fundamental, constitutiva do sujeito, situada dentro do campo de problematizacao da bioetica, no ambito filos6fico-antropol6gico da relacao Natureza e Cu1turaque the einerente.

6 Embora Badiou considere a bioetica dentre do quadro das tendendas intelectuais do nosso tempo que "no melhor dos casos sao variantes da antiga predica moralizantee religiosa, e, no pier [uma] mistura ameacadora do ronservadorismo e da pulsao de motte" 0995, p. 97). A rnetabioetica, mesrno assim, compreende urn horizonte etico de uma "etica das verdades" na medida em que para a metabioetica, a bioetica etomada no sentido problemitico da sua eompreensao e nao como uma perspectiva fechada, tal como Badiou a apresenta, dentro de uma interpretacao prescritiva da mesma. E, do mesmo modo, 0 horizonte de uma "etica das verdades" permite salientar as dimens6es do singular e do multiple na problematizacao da propria bioetica.

Page 41: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

38

o redimensionamento da "etica descritiva" se da a partir da perspectiva na qual a evolucao da sociedade produz e altera valores e nonnas, assim como os seres vivos se desenvolvem em funcao das condicoes da sua propria existencia (Sgreccia, 1996, p. 69-70). A partir desta perspectiva, a metabioetica amplia 0 seu campo, no ambito do exame das condicoes subjacentes aproducao e transformacao dos valores, sob a dimensao complexa do carater singularda subjetividade, dentro do contexto das configuracoes culturais da sociedade que ultrapassam urn tipo de compreensao funcionalista. 0 que, no horizonte da problematizacao especifica da bioetica, aponta para uma dimensao constitutiva do seu horlzonte etico, no plano fundamental da construcao das imagens, que se coloca na esfera da estruturacao e producao de codigos e significados pela subjetividade, a partir da relacao Natureza e Cultura.

Deste modo, a proposta de uma perspectiva metabioetica se encontra nas proprias condicoes de compreensao etico-descritiva da bioetica e no redimensionamento da sua abordagem. Onde a bioetica e considerada sob uma otica ampliada do seu contexto de problematizacao, nos aspectos emergentes da subjetividade e da cultura, que se interrelacionam dentro de um quadro de recorrencia do todo aparte e vice-versa, 0 qual revela a construcao das imagens pela subjetividade como a dimensao dial6gica destas duas esferas, na configuracao de urn campo nacional; eixo da investigacao metabioetica.

A bioetica compreende no seu contexto de problematizacao, urn quadro de fragmentacao da culturacontemporanea, 0 qual reflete 0 colapso da moralidade can6nica frente a diversidade das narrativas morais conflitantes (Engelhardt, 1995, p. 19).Talquadro expressa simultaneamente o espirito do seu proprio tempo (Hegel, 1992, p. 62)1, presente nos profundos desacordos quanto a concepcao de uma bioetica secular 8 •

7 a.§72 ''VIVen1a) alias mumepocaem que a universaIidadedoespiritoesti forterrente ronsolidada, e a singularidade, como convemtomou-setanto mais insignificante ..".

8 A bioetica secular euma ideia que deriva do projeto filosofico modemo - isto e, da busca de uma moralidade dotadade conteUdo, distinta dasmoralidadesreligiosas tradidonais - que se acentua com 0 desenvolvimento dasdendas biornedicas, a partir dos limitesda discussiio bioetica nos seus diferentes niveis de tematizacao.

Page 42: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

39

De forma que, este espirito nada maise do que a expressaoda subjetividade latente, ou seja, a dimensao estruturante das crencas e valores, constitutiva do horizonte etico, no qual a bioetica se encontra, dentro de urncontexto de evolucao s6cio-cultural.

Assim, partindo do holograma recursivo da dialogica cultura e subjetividade, a metabioetica revela uma perspectiva de exame que penetra a configuracao do campo nacional da bioetica, imanente ao seu proprio contexto. De modo que, a interrelacao das esferas da cultura e da subjetividade, aponta para urn plano comum a multiplicidade do horizonte da bioetica e ao mesmo tempo revela a imagem como objeto de investigacao da metabioetica, articulada em tomo da configuracao do campo nacional.

Referenclas Bibllograflcas

ALLIEZ, Eric. A assinatura do mundo: 0 que ea filosofia de Deleuze e Guattari. Rio de Janeiro: 34, 1995.

BADIOU, Alain. Etica: um ensaio sobre a consciencia do mal. Traducao por Antonio Transito. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.

DELEUZE, Gilles e Felix Guattari. 0 que eafilosofia? Rio de Janeiro: 34,1992.

ENGELHARDT, H. Tristan. Los fundamentos de la bioetica. Traducao por Olga Domingues. Barcelona: Paidos, 1995.

HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do espirito. Traducao por Paulo Menezes. Petr6polis: Vozes, 1992.

LEPARGNEUR, Hubert. Bioetica, novo conceito a caminho do consenso. Sao Paulo: Loyola, 1996.

MAINETII, Jose A. Bioetica sistematica. La Plata: Quiron, 1991. MORIN, Edgar. Ciencia com consciencia. Traducao por Maria

Gabriela de Braganca, Lisboa: Europa-America, 1994. ____,. 0 metoda IV: As ideias; A sua natureza, vida, habitat e

organizaciio. Traducao por Emilio Campos de Lima. Lisboa: Europa-America, 1992.

Page 43: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

_______. 0 metoda III: 0 conhecimento do conhecimento/L. Traducaopor Maria Gabriela de Braganca, Lisboa: Europa-America, 1996.

SGRECCIA, Elio. Manual de bioetica I: Fundamentos e etica biomedica. Traducao por Orlando Soares Moreira. Sao Paulo: Loyola, 1996.

Page 44: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

A MEGERA E 0 PRINCIPE I

Cinara Nahra

Resumo o objetivo deste artigo e mostrar que na peca "A Megera Domada" de William Shakespeare e no classico "0 Principe" de Maquiavel estiio apresentadas nove regras e um principio que podem ser utilizadas em qualquer processo de dominaciio, tanto pessoal quanto politico. 0 principio eo do fingimento (ou mascaramento e dissimulaciio] e as regras siio: tratar os outros como meio e niio como fins, obter riquezas por quaisquer meios, mentir, apropriar-se, utilizar da [orca, fazer-se temido, maltratar, dar para receber e aniquilar.

A historia da Megera Domada de Shakespeare eantes de tudo uma historia de poder, tanto quanta 0 Principe de Maquiavel. A diferenca eque enquanto na Megera temos uma radiografia de como a dominacao dos indivfduos se processa, no Principe temos a radiografia de como a

Principios Ano 04, n 05, p. 41-62, 1997

Page 45: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

42

dominacao estatal se processa. Individuos ou Estados, urn ou muitos, pessoas ou povos, 0 fato e que as duas obras expoern as regras do processo de dominacao.

Para dominar e preciso antes de tudo convencer, ou ao menos, persuadir. 0 maior dos convencimentos possfveis, aquele que mostra a adesao total e incondicional do "convencido", do que "se convenceu", e quando este perde a sua propria identidade. Quando urn indivfduo qualquer realmente acredita no que querem que ele acredite ou faz 0 que querem que ele faca, esta concluido 0 processo de convencimento. Quando 0

resultado final deste processo e a crenca que somos "urn outro", corn perda da identidade, temos 0 convencimento absoluto. Na filosofia de Maquiavel isto corresponde ao aniquilarnento, 0 esmagarnento total da cidade conquistada, corn a conseqiiente destruicao da liberdade e dos antigos costumes. Eo final da batalha, corn vit6ria clara e incontestavel do "convencedor". 0 "convencedor" domina. 0 "convencido" eja 0

dominado. Na cena introdut6ria da Megera Domada, quando Shakespeare

apresenta a relacao do Nobre corn 0 mendigo Sly, se desenha 0 pano de fundo de sua obra e sua intencao, qual seja, a de expor 0 processo de dominacao e suas regras. 0 Nobre encontra Sly bebado, caido na sarjeta e propoem aos que the acompanharn.

"Que tal a ideia de 0 porrnos numa carna e de 0 cobrirrnos corn lencois bern macios, colocarrno-Ihe aneis nos dedos, urn banquete opiparo junto ao leito the pormos e solicitos serventes ao redor quando ele a ponto de acordar estiver? Nao esquecera sua pr6pria condicao este mendigo?"1

E assirn procedem. 0 Nobre ordena que se proceda a brincadeira. Sly sera entao colocado ern urn bela quarto, arrumado e cheiroso. A melhor rmisica the sera tocada, os criados a ele se dirigirao corn deferencia, vestes de qualidade the serao apresentadas para que ele escolha a muda de sua preferencia, Falar-lhe-ao dos seus cavalos, caes de caca, e de sua esposa, convencendo-o de que lunatico esteve.

I Shakespeare,w - A Megera Domada- Ediouro pp 312

Page 46: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

43

"E se aeaso declarar seu estado verdadeiro, dizei que esta sonhando, pois, de fato, ele e urn nobre importante'?

Ao que os aeompanhantes do Nobre asseguram: "Garanto-vos milorde, que sairemos bern em nosso papel, sendo

eerteza vir ele a eonveneer-se tao somente por nossa diligencia, de que e tudo quanta lhe sugerimos'".

E assim fizeram. E tao perfeita foi a farsa, que Sly aeaba se eonveneendo, admitindo finalmente:

"Sou fidalgo? Tenho uma esposa assim ou sonho aeaso? Ou sonhei ate agora? Nao; donnindo nao estou; vejo, eseuto, falar posso, sinto perfumes suaves, toeo em eoisas agradaveis, Por minha vida e eerto: sou nobre de verdade, nao latoeiro. Nao sou Cristovao Sly. Trazei-nos logo nossa nobre eonsorte e, novamente, uma eaneea de fina cerveja.?"

E assim se fez. E ao mendigo Sly, eonvencido ser agora urn nobre que loueo esteve, e apresentada uma comedia: A Megera Domada. Na Megera Domada 0 que esta em jogo e 0 problema da dominacao, Catarina, a rnegera, e indomada por natureza. Ind6cil, turrona, braba, e dotada de personalidade que a desqualifiea para 0 convfvio social e principalmente matrimonial. Batista, seu pai, e urn rico homem de Padua, e apesar de ofereeer rico dote para desposar a filha, nenhurn pretendente se aventura a tal tarefa. Urn dia surge na eidade Petrueehio, que de olho nos bens deBatista se dispoem a realizar a empreitada: desposar Catarina, domar a Megera.

Shakespeare vai apresentando, entao, a forma e 0 proeesso utilizado por Petrueehio para curnprir seu prop6sito. Trata-se , na realidade, do uso de nove regras e de urn princfpio. Ao utilizar-se destas regras e ao nao afastar-se deste principio, obtem-se como resultado 0 domfnio na Megera. Na realidade 0 principio e as regras expostas por Shakespeare podem ser utilizadas em qualquer processo de dominacao e conquista do poder, e sao as mesmas propostas por Maquiavel no seu Principe.

2 Op.Cit pp 313 3 Op.Cit. pp 313 4 Op.Cit. pp 316

Page 47: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

44

a PRINcipIa

Finja! ( Apresente-se como sendo quem voce nao e! Use mascaras! Esconda sua identidade!).

"Todos veem 0 que pareces ser, poucos sentem 0 que es: e estes poucos nao ousam opor-se a opiniao dos muitos que contam com a majestade do Estado para sua defesa" 5 •

Este principio, que ebasico em qualquer processo de dominacao, ecuriosamente baseado em urn recurso amplamente utilizado no teatro grego: a "persona". Como se sabe, no teatro antigo os atores mudavam de persona, mudavam de mascaras, assumindo, assim, diferentes personalidades, diferentes mascaras.

a principio basico da dominacao e0 de mascaramento da propria identidade. Voce deve fmgir, apresentar-se como sendo quem voce nao e.

Na trama paralela da Megera, Lucencio, pretendente de Bianca a irma da megera, troca de identidade com seu criado Tranio para conseguir aproximar-se de sua bem-amada:

"Lucencio- Basta. Fica tranquilo; tenho urn plano. Nao fomos vistos em nenhuma casa; pelo rosto ninguem nos reconhece como patrao e criado. Assim faremos: vais ter criados e casa como eu pr6prio; yOU

ser outra pessoa, urn florentino, napolitano ou cidadao de Pisa .Ja esta chocado 0 plano, vai ser isso. Nao percas tempo Tranio: tira a roupa, toma meu manto e meu chapeu de cores. Quando Biondello vier ira servir-te, sendo que antes preciso industria-lo para nos dentes nao bater com a lfngua'" .

Ainda na trama paralela , Hortensio, tambem pretendente da d6cil e bela Bianca, irma da megera, transforma-se em professor de rmisica para aproximar-se da pretendente:

"Hortensio - Fazei-me ora urn favor, caro Petrucchio: ireis apresentar-me, tendo eu posto vestes s6brias, ao velho pai de Bianca, como perito professor de rmisica, para the dar licoes, Com este plano terei vagar e liberdade, ao menos, de, sem suspeita, the fazer a corte'":

5 Maquiavel- 0 Principe - Cultrix pp 113 6 A Megera Domada pp 320 7 Op.Cit pp 323

Page 48: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

45

Na briga de Hortensio e Lucencio pelo amor deBianca, Lucencio, com a ajuda de Tranio, seu criado-travestido- de- Lucencio, e Biondello, seu outro criado, desfecha 0 golpe fatal: obtem a permissao de Batista, pai de Bianca, para 0 casamento, as custas de urn fingimento, de uma outra troca de identidade:

"Tranio- 0 amor de Bianca, senhor, e nada sem que the ajuntemos a permissao paterna. Para obte-la, como ja disse a Vossa Senhoria, YOU

procurar urn homem - pouco importa quem seja- .Havemos de instruf-lo que Vicencio de Pisa vai chamar-se e aqui em Padua caucao plena nos dara de tudo quanto prometi e mais ainda. Assim, de vossa dita calmamente desfrutareis, e com consentimento vireis a desposar a doce Bianca'" .

E assim fazem, saindo os criados a procura de urn homem que possa passar-se pelo rico Vicencio de Pisa, pai de Lucencio, ate concretizarem seu intento:

"Biondello - 6 meu caro patrao! Fiquei de espreita por tanto tempo que esfalfado me acho. Mas afinal descer vi da colina urn angelica velho que serve muito bern aos nossos intentos.

Tranio - Quem e ele Biondello? Biondello - Urn mercador, patrao, ou mesmo pedagogo, nao sei,

Porem de vestes muito formais e de aparencia e vestes de verdadeiro pai Lucencio- E agora Tranio, que faremos com ele? Tranio - Se for credulo e acreditar em minha historia , alegre

fara 0 papel paterno de Vicencio, dando as caucoes que forem necessarias a batista Minola como se ele fosse mesmo Vicencio. Retirai-vos com vossa noiva, quem estar sozinho "9.

Assim e feito, e 0 resultado, mais positivo nao pode ser. Batista consente com 0 casamento e antes que descubra a farsa este ja esta consumado. Na luta entre os pretendentes ganha 0 que usa melhor do fingimento, 0 mais habil na manipulacao das mascaras, 0 que menos escnipulos tern na manipulacao das identidades.

8 Op. Citpp 339 9 Op.Cit pp 346

Page 49: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

46

E e exatamente este uso da dissimulacao, do finjimento, do mascaramento da identidade que Maquiavel tambem determina como urn principio que deve ser observado por todo aquele que se proponha a conquistar e manter 0 poder:

"Nunca faltaram a urn prfncipe razoes legitimas com que mascarar as inobservancias. Disso poder-se-iam oferecer numerosos exemplos modernos e mostrar quantas convencoes de paz, quantas prornessas se fizeram irritas e vas em razao da infidelidade dos principes; e que aquele que melhor soube usar a natureza da raposa teve mais exito. Mas enecessario saber bern disfarcar essa natureza e ser grande simulador e dissimulador. E sao tao simples os homens e tanto obedecem as necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrara quem se deixe enganar.""

ASREGRAS

1. Trate 0 outro (os outros) como meio(s) e niio como f"un(s)! (ou os fins justificam os meios!)

Na Megera Domada Batista, 0 pai de Bianca, afirma: "Deixai de importunar-me, cavalheiros, pois conheceis qual seja

meu prop6sito, a saber: nao casar minha cacula sem que amais velha tenha dado esposo" 11

Batista dis poem de sua filha Bianca como se fora sua propriedade, nao concedendo sua mao em casamento a nao ser que antes, Catarina, a megera, seja desposada. Deste modo acredita obter aliados dispostos a arranjar urn pretendente para Catarina, 0 que efetivamente acontece. Aqui, sem nenhum prurido, Batista trata suas duas filhas como seres sem vontade propria, como meros objetos, enfim, invertendo a maxima kantiana, como meios para atingir determinados fins. De modo semelhante temos no Principe:

10 0 Principe pp 111 11 A Megera Domada pp 318

Page 50: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

47

"Nas a~Oes de todos os homens, especialmente os principes, contra os quais nao ha tribunal a que recorrer, os fms eque contam. Faca, pois, o Principe tudo para alcancar e manter 0 poder; os meios de que se valer serao sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque 0 vulgo atenta sempre para aquilo que parece ser e para os resultados "12

2. Obtenha riquezas por quaisquer metodos e meios! Na Megera Domada os pretendentes de Bianca, aliados agora

de seu pai na busca de urn esposo para Catarina, encontram Petrucchio, que em Padua se encontra de passagem. Ao ser informado sobre 0

temperamento de Catarina e a vontade do pai de desposa-la, Petrucchio afirrna:

"Entre amigos, signior Hortensio, nao se fala muito. Se conheces alguem bastante rica para que esposa de Petrucchio seja- pois 0 ouro tilintar na danca deve do casamento dele- embora seja tao feia quanto a amada de Florencio, velha como a Sibila, tao maligna e impertinente quanto a propria esposa de Socrates, Xantipa, ou mesmo pior: nao podera deixar-me transformar nem embotar de meu afeto 0 gume, embora seja como 0 mar Adriatico quando se altera. Vjm para casar-me, para uma noiva rica achar em Padua; sendo rica, feliz serei em padua".13

Na fala de Petrucchio aparece a riqueza como 0 maior de todos os bens, condicionando, inclusive, a propria felicidade a ele. Inversao das maximas aristotelicas, segundo 0 qual , 0 bern supremo e a felicidade, ligada sempre ao bern da polis. Na Megera, a riqueza aparece como urn bern em si, e nao ha limites para sua obtencao. No Principe, as riquezas, tambem obtidas por quaisquer meios, sao urn modo eficiente de alcancar poder, e portanto, honra.

"Nao ha coisa que faca mais considerado urn principe do que a realizacao de grandes empreendimentos e 0 dar de si exemplos extraor­dinarios. Vemos em nossos dias os de Fernando de Aragao, atual rei da Espanha. Pode ele ser considerado quase principe novo, pois, de rei

120 prindpe pp 113 13A Megera Domada pp 323

Page 51: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

48

desimportante, conquistou a fama e a gl6ria e fez-se 0 mais alto rei da cristandade. Considerando os seus feitos, vereis que sao todos grandio­sos e alguns, mesmo, extraordinarios, No inicio do seu reinado atacou ele Granada e esse empreendimento tornou-se a base do seu estado. Agiu a princfpio sem alarde, afim de ter certeza de nao ser impedido; e messe empreendimento manteve ocupado 0 espfrito dos baroes de Castela, os quais, entretidos com a guerra, nao pensavam em inova­~Oes. Assim fazendo adquiria Fernando reputacao e poder sobre eles, que disso nao se davam conta. Com dinheiro da Igreja e do povo pode manter os exercitos, dando-lhes, mediante 0 exercfcio daquela guerra prolongada, urn poderio que 0 cobriu de honras".14

Tanto na Megera, quanto no Principe, observa-se que a obtencao de riquezas nao esta condicionada a nada, ou seja, a principio valem todos os meios possiveis para obte-las, e por qualquer modo que sejam obtidas elas trazem felicidade ou poder e honra.

3. Minta! (Afirme 0 falso!) Na Megera a primeira tatica usada por Petruchio para dominar

Catarina e conduzi-la ao casamento ea da mentira. Vejamos na fala de Petrucchio:

"Petrucchio - Vou corteja-la com algumespirito. Se me insultar .dir-lhe-ei sem circunl6quios que como 0 rouxinol tern ela 0 canto; franzindo 0 rosto the direi que e limpida como a r6sea manha que 0

orvalho banha; se nao disser palavra e ficar muda, elogios farei ao seu talento de expressar-se, afirmando que a eloquencia dela earrebatadora. Convidando-me a retirar-me, agradecido mostro-me, como se 0 grato invite eu recebesse de ficar junto dela uma semana. Se desposar-me nao quiser, the falo sobre os proclamas e 0 feliz evento. Mas hei-la ai. Vamos Petrucchio; fala." IS

E continuando a mentira, afirma-a descaradamente no seguinte dialogo:

14 a Principe pp 131 15 A Megera Domada pp 330

Page 52: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

49

"Petrucchio- Pai, 0 negocio e assim: vos e os mais todos que falais dela estais muito enganados. Ela so e indigna por polftica; rabugenta nao e , mas tao modesta quanto a rola; nao tern genic esquentado sendo tao fresca quanto a manha bela. Em paciencia e Griselda rediviva; a romana Lucrecia, em castidade. Em conclusao: deixarnos combinado casarmo­nos no proximo domingo Catarina- Primeiro nesse dia quero ver-te pendurado na forca Gremio- Ouve, Petrucchio, ela disse que te quer ver na forca Tranio- Eassim vossa hist6ria? Entao boa noite para nosso contrato Petrucchio - Cavalheiros .paciencia, Eu a escolhi de motu proprio. Se nos doisestivennos satisfeitosque importao resto? Combinamos, quando ficamos 80S, que em companhia de outras pessoas ela impertinente devia se mostrar. Posso afiancar-vos: nao fazeis ideia de quanto ela me tern amor. Oh tema Catarina. Do pescoco pendeu-me ,prodigando-rne beijo em cima de beijo, juramentos de amor os mais ardentes, tao de pronto se revelou de mim apaixonada. Oh! Sois novices. Eurna maravilha verificar, quando a mulher e o homem ficam 80S, como pode urn mariquinhas dominar a megera mais rebelde. Quetinha, da-me a mao. Vou a Veneza compra a roupa para 0

casamento. Preparai os festejos, pai, mandando logo convites para os conhecidos. Certo estou de que minha Catarina vai mostrar-se galante Batista- Disso tudo nao sei 0 que pensar, mas dai-me as maos Petrucchio, Deus vos de felicidade. Esta assentado."'"

A apologia da afirmacao da mentira, do falso, como urn modo eficiente de dominar, encontra-se tambem no Principe:

"Nao quero deixar de lado urn exemplo atual. Alexandre VI nao fez jarnais outra coisa, niio pensou jamais em outra coisa senao enganar os homens: e encontrou sempre ocasiao para faze-lo, E nao houve nunca outro homem que tivesse maior eloquencia no asseverar uma coisa, e que com mais solenes juramentos a garantisse e menos a observasse do que ele. Nao obstante sempre se beneficiou como quis das perffdias, porque conhecia bern estas coisas da vida. "17

16 Op.Cit. pp332 17 0 Principe pp 112

Page 53: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

50

4. Aproprie-se! (inclusive do outro e das coisas dos outros!) As mulheres, esposas e filhas, sao propriedade de maridos e

pais, assim como os povos e territories, sao propriedades dos principes. Esposas e mulheres precisam ser comandadas, tuteladas, e a elas nao e permitido exercer suas vontades autonomamente, assim como os povos conquistados. 0 poder do Principe, esta relacionado as suas conquistas na guerra, e portanto suas propriedades. Tera este mais poder quanto mais territories conquistar e anexar.

Na Megera, na trama paralela, tendo sido Catarina finalmente desposada por Petrucchio, e portanto, podendo agora Bianca casar-se, restam digladiarem-se os dois pretendentes de Bianca. Sendo dois os pretendentes e uma a futura esposa, Batista, pai de Bianca, tern a solucao: "Batista- Nao brigueis cavalheiros; tenho urn meio para solucionar a desavenca. Vao decidir os fatos .De vos ambos 0 que fmnar a minha filha dote mais opulento, 0 amor tera de Bianca".18

E na trama principal Petrucchio, uma vez casado com Catarina, assume, na lua de mel, sua propriedade: "Petrucchio - Todos irao cear, minha Quetinha, porque assim 0 ordenaste. Ide Senhores para 0 banquete! Obedecei a noiva, bebei a larga a sua virgindade, soltai redeas ao jubilo, mostrai-vos ledos ate a loucura, ide enforcar-vos...Mas a minha Quetinha encantadora devera ir comigo. Nada disso, nao precisais crescer para meu lado, nem sapatear, nem escumar de raiva. Quero ser dono do que me pertence; ela e minha fazenda, meus bens moveis, a mobilia, 0 celeiro, a casa, 0 campo, meu burro, meu cavalo, minha vaca, meu tudo enfim. Aqui ela se encontra. quem coragem tiver, que toque nela; saberei defender-me contra 0 ousado que 0 passo me quiser barrar em Padua. Desembainha, Gnimio, que cercados estamos por bandidos. Se homem fores, salva tua patroa. Nao, Quetinha, ninguem te tocara; hei de amparar-te contra urn milhao que seja"."

18 A Megera Domada pp 333 19 Op.Cit pp 341

Page 54: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

51

No Principe a arte da guerra e vista como a maior de todas. Afinal, e ela que permite que territ6rios sejam conservados e outros anexados. Eela que garante a defesa e a conquista da propriedade:

"Deve, portanto, urn prfncipe nao ter outro objetivo e outro pensamento nem dedicar-se a outro empreendimento rotineiro que nao os relacionados com a guerra e a organizacao e disciplina das tropas, pois a pratica da arte da guerra e a iinica que se espera daquele que govema, Ela e de tal valia que nao apenas sustenta os que nasceram principes, como, muitas vezes, faz com que homens de condicao privada ascendam aquela posicao, enquanto que, ao contrario, ve-se que principes que cuidaram mais de amenidades que das armas perderam seus Estados. A razao principal de perderes estes ea negligencia da arte da guerra; e a razao de 0 conquistares eseres nela versado."?'

E como "conselho prudencial" para que se mantenha 0 Estado conquistado temos:

"A esta altura ha que notar que, ao apossar-se de urn Estado, deve 0 que 0 tomou verificar todas as ofens as que precisa fazer; e faze­las todas de uma vez, a fim de nao ter de repeti-Ias todos os dias e poder, assim, nao as repetindo, tranqiiilizar os homens e, beneficiando-os, conquista-los. Quem age diferentemente, ou por timidez ou por mal aconselhado, necessitara sempre estar com a faca em punho; nao podera nunca confiar nos seus suditos, por nao poderem estes, em virtude das novas e continuas injurias, sentirem-se seguros sob seu govemo. Eque as injurias se devem fazer todas de uma vez, a fun de que, tomando-se­lhe menos 0 gosto, ofendam menos; os beneffcios devem serfeitos pouco a pouco, a fim de que melhor sejam saboreados"."

s. Use da for~! (erie fatos consumados!) Na obra de Shakespeare, na luta entre os pretendentes de Bianca, 0

estratagema de Lucencio- usando urn falso pai para assegurar bens que na realidade nao existem, discutindo, entao, urn contrato que nao se cumprira ­funciona a medida que como Ultimoato da trama cria-se 0 ''fato consumado",

20 0 Principe pp fJ7 21 Op.Cit. pp 73

Page 55: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

52

no caso, antes que Batista descubra que contratou com urn pseudo-pai de Lucencio, este ja tera desposado Bianca e a deflorado: "Lucencio- Entao explica-me a moral do caso Biondello- Ei-la: Batista esta em lugar seguro conversando com 0 falso pai de urn filho embusteiro Lucencio- E dai? Biondello - Tereis de levar a filha dele para a ceia Lucencio - E depois? Biondello- 0 velho padre da Igreja de Sao Lucas ficara todo esse tempo a vossa disposicao Lucencio - E no fim de tudo isso? Biondello - Nao saberei dize-lo a nao ser que eles se encontram atarefados com urn falso contrato.Assegurai-vos portanto dela, cum privilegio ad imprimendum solum. A igreja! Levai 0 padre, 0 sacristao e algumas testemunhas suficientemente honestas. Se esta nao for a ocasiao que esperaveis com tanta alegria, dizei adeus a formosa Banca, sem perda de umdia. Lucencio -Escuta Biondello Biondello- Nao posso ficar mais tempo. Conheco uma rapariga que se casou numa tarde, ao ir ahorta apanhar salsa para encher urn coelho. 0 mesmo podereis fazer, meu senhor. E com isto, adeus. Meu amo mandou que eu fosse aIgreja de Sao Lucas, a fim de dizer ao padre que se aprontasse para quando chegasseis com vosso apendice Lucencio- Posso-o e falo-ei, se ela ficar alegre. Hade ficar, porque duvidar? Eis 0 momenta de me declarar; mal ficarei se Cambio a nao pegar"."

o fato consumado nada mais edo que uma demonstracao de forca. Para que se force a aceitacao de algo, realiza-se este algo, contrariando qualquer impedimento ou proibicao de ordem social ou legal. E quando 0 fato novo esta criado nada mais ha a fazer senao aceita­10. 0 uso da forca eaconselhado por Maquiavel:

"Deveis pois saber que ha duas maneiras de combater: uma, com a lei, outra, com a forca. A primeira epr6pria do homem; a segunda

22 A Megera Domada pp 353

Page 56: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

53

dos animais. Como, porem, a primeira muitas vezes nao seja suficiente, convem recorrer a segunda. Eportanto necessario a urn principe saber bern usar 0 animal e 0 homem'F'

6. Seja temido ! ( e use da prepotencia e da coercao se necessariol)

Fazer-se temido, usando para isso dos mais diversos metodos, como a prepotencia, a coercao e 0 que mais for eficaz, emais uma das regras que devem ser utilizadas por quem pretende dominar . Na Megera temos: "Gnimio- A dois passos daqui ; provavelmentejeiesta apeando do cavalo. Por isso nao sejas ...Santo Deus! Silencio! Estou ouvindo a voz do patrao, Petrucchio - Onde estao estes biltres? Como! A redea ninguem me veio segurar a porta, nem pegar 0 cavalo? Onde se encontram Greg6rio, Nataniel, Jose.Filipe? Todos os criados- Aqui Senhor! Petrucchio- Aqui senhor! Aqui senhor! Aqui senhor! Cabecas ocas, mocos de estrebaria e0 que sois todos. Deveres ninguem tern? Nao ha service? Atencoes ninguem mostra? Onde se encontra aquele tolo que eu mandei na frente? Gnimio- Aqui senhor, tao tolo quanto era antes Petrucchio- Riistico, mandriao, rocim maldito. Nao mandei que no parque me esperasses e que levasses esses outros biltres? Gnimio- 0 casaco, senhor, de Nataniel estava s6 alinhavado; ainda faltava por salto no sapato de Filipe; nao havia morrao para darmos cor ao cnapeu de Pedro; falta bainha para a espada de Valter, S6 estao prontos Greg6rio, Ralph e Adao. Todos os outros estao que nem trapos, velhos e indigentes. Mas mesmo assim vieram receber-vos. Petrucchio- Ide mariolas, preparar a sopa'?'

Ja no Principe, Maquiavel questiona e aconselha: "Nasce disso uma questao, a saber: e melhor ser amado do que

temido ou 0 contrario? Responder-se-a que se desejaria ser uma e outra

23 0 Prindpe pp 111 24 A Megera Domacla pp 342

Page 57: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

54

coisa; mas como e dificil casa-las, e muito mais seguro ser temido que amado, quando se haja de optar por uma das alternativas. Eque dos homens pode­se dizer geralmente 0 seguinte: que sao ingratos,vohiveis.dissimulados, esquivadores dos perigos, ambiciosos de ganho; que ,enquanto os beneficias, sao inteiramente teus, oferecendo-te 0 proprio sangue, os bens, a vida, os mhos, como atras se disse, desde que nao se mostre a necessidades disso. Quando, porem, ela se apresenta, eles se viio.E 0 principe que haja conflado inteiramente na palavra dada perde-se se estiver desprevenido de outras medidas, pois as amizades baseadasno interesse, e nao nagrandeza e nobreza da alma, nao se tern a altura do que se merece, e na ocasiao necessaria nao se podem usar. E os homens receiam menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faz temer: 0 amor mantem-se vinculado a gratidao, e esse vinculo, por serem mfseros os homens, rompe-o toda ocasiao conveniente; ao passo que 0 temor e mantido pelo receio aos castigos, e jamais faz com que te abandonem?"

7. Maltrate! Seja cruel! Na obra de Shakespeare, para amansar a megera, no caso sua

ja esposa Catarina, Petrucchio explicita urn de seus metodos: "Petrucchio- Comecei desse modo 0 meu reinado com muita habilidade, tencionando chegar aos fim com exito completo. Meu falcao esta afiado e com bern fome, e, enquanto nao ficar bastante afiado nao enchera 0

papo. De outro modo nao obedecera ao meu aceno. Tenho tambem outro processo para deixar manso 0 gaviao, fazer que volte a habitua-lo ao meu grito, isto e, forca-lo a ficar acordado, como e de habito fazer com esses milhanos indomaveis que se debatem muito. Ate agora ele nao comeu nada, sendo certo que vai ficar assim 0 dia todo. Na ultima noite nao dormiu, nem ha de dormir na noite entrante. De igual modo que com a comida fiz acharei meios de encontrar hipoteticos defeitos na arrumacao do leito: os travesseiros atiro para urn lado, as almofadas para outro,jogo longe os cobertores, faco voara os lencois, Sim, e em toda essa barulheira infernal direi que faco tudo por causa dela. Em suma: ela ha de vigil

2Sa Prindpe pp 1~

Page 58: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

55

passar a noite; e caso os olhos venha a fechar farei tao grande bulha com ralhos e disputas que por forca tera de despertar. Essa ea maneira de matar com carfcias uma esposa. Dobrarei desse modo 0 genic dela, opinioso e violento. Se alguem sabe como amansar melhor uma megera, venha ensinar-me que aqui fico a espera ".26

Na obra de Maquiavel a crueldade eadrnitida na paz e exaltada na guerra:

"Examinando as outras crueldades arras enumeradas, direi que todo principe deve desejar ser tido como piedoso e nao como cruel; nao obstante deve cuidar de nao usar mal a piedade. Cesar B6rgia era tido como cruel; entretanto essa sua crueldade havia posto ordem na Romanha, promovido a sua uniao e pacificacao e inspirado confianca, 0 que, bern considerado, mostra ter sido ele muito mais piedoso do que os fiorentinos, os quais, para se esquivarem da reputacao de crueis deixaram que Pist6is fosse destruida. Deve urn principe, portanto, nao se importar com a reputacao de cruel, a fun de poder manter seus siiditos em paz e confiantes, pois que, com pouquissirnas repressoes sera mais piedoso do que aqueles que, por muito clementes, permitem as desordens das quais resultam assassinios e rapinagens. Estas atingem a comunidade inteira, enquanto que os castigos impostos pelo principe atingem POUCOS"27

E prossegue: "Mas quando 0 principe esta a frente dos seus exercitos e tern

soldados imimeros sob seu comando, entao epreciso que nao se irnporte com a reputacao de cruel, porque, sem ela, nao se mantem jamais 0

exercito unido nem disposto a a~ao. Entre os notaveis feitos de Anfbal conta-se este: no seu imenso exercito, composto da mescla de irnimeras qualidades de homens e conduzido aa~ao em terras estrangeiras, jamais surgiu qualquer dissensao, quer entre os soldados, quer entre estes e 0

seu chefe, tanto nos bons quanto nos maus momentos. Isto nao pode ter tido outra causa senao a da inumana crueldade de Anfbal a qual, somada as imimeras virtudes suas, fe-lo sempre, no conceito dos seus soldados ,venerando e terrivel. Sem essa, nao the teriam bastado as outras suas

?hA Megera Domada pp 344 27 0 Principe pp 107

Page 59: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

56

virtudes para alcancar tal efeito. Os historiadores pouco judiciosos por urn lado admiram suas acoes e, por outro, entretanto, reprovam a principal causa delas."."

8. It dando que se recebe! (Troque favores!) Na Megera Domada Petrucchio usa, como estrategia para

domar e dominar sua megera, a tatica da "troca", quase ao estilo de urn condicionamento, como se usa para domar animais ou ensinar criancas. Vejamos no seguinte dialogo: "Petrucchio-Novidades, senhor? Que nos trouxestes? Modista- Esta touca, por Vossa Senhoria encomendada Petruccchio- Como! 0 molde para isso foi alguma sopeira? Ora, ora! Urn prato de veludo! Banal e sujo. Emais urn caramujo, uma casca de noz, urn brinquedinho, gorrozinho de crianca, bugiaria...Quero urn maior, ja disse! Levai esse Catarina- Nao, nao quero maior; esta na moda; e assim que as damas elegantes usam. Petrucchio - Quando fores gentil teras urn desses, antes nao "29

A regra do "e dando que se recebe" aparece tambem no Principe:

"Passarei a conclusao deste capitulo dizendo que os prfncipes de nossos tempos tern menor necessidade de satisfazer excessivamente seus soldados. E e que, embora se lhes deva dedicar alguma consideracao, isso nao requer continuada atencao, por nao possufrem estes prfncipes exercitos que se hajam formado com os govemos ou administracoes das provfncias, como eram os exercitos do Imperio Romano. Assim, pois, se entao era necessario contentar mais os soldados que 0 povo, era porque os soldados podiam mais que 0 povo. Hoje e mais necessario a todos os prfncipes, excecao feita do grao-turco e do sultao, contentar mais 0 povo que os soldados, porque 0 povo pode mais que aqueles'?"

28 Op.Cit pp 109 29AMegera Domada pp 348 30 0 Principe pp 123

Page 60: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

57

E adiante: " Mas ha uma maneira que jamais falha de 0 principe conhecer

o ministro: quando vires 0 ministro pensar mais em si proprio do que em ti, e, em todos os seus atos, buscar 0 seu proprio interessse, sabe que urn homem de tal feitio jamais sera born ministro, que jamais podera confiar nele, porque aquele que tern 0 Estado de alguem em suas maos nao deve jamais pensar em si proprio, mas no principe, e nao apoquenta-Io com coisas que nao the dizem respeito. De outro lado , 0 principe, para conservar born 0 ministro, deve pensar nele, honrando-o , tomado-o rico, suscitando a sua gratidao, fazendo-o participar de honrarias e cargos, de modo que ele veja que nao pode afastar-se do principe, e que as muitas honrarias nao 0 facam desejar mais outras, as muitas riquezas nao 0

facam desejar mais ainda, os muitos cargos facam com que tema as mudancas. Quando, pois ,os mini stros , e os principes em relacao aos ministros, sao assim, podem confiar urn no outro; e quando nao 0 tim sera sempre mau para urn ou outro". 31

9. Aniquile! (Se necessario negue a razao e desafie os fatos!) A ultima regra e a do aniquilamento, a tal ponto, que a propria

razao e desafiada, e os fatos contrariados. Nega-se a razao e a racionalidade, nega-se os fatos e 0 outro e forcado a aceitar esta negacao. Trata-se de uma especie de "afirmacao do absurdo", mas dentro de uma estrategia clara e maligna de dominacao, com 0 objetivo de aniquilar e destruir a identidade e a liberdade do outro, forcando-o a aceitar 0 que quer que seja. Vejamos como age Petrucchio na Megera:

"(A Gnimio) - Chama meus homens; montaremos logo; poe os cavalos na alameda grande, ape iremos ate la.Vejamos: sao sete horas, quero crer, agora; chegaremos com tempo de jantar.

Catarina- Senhor,posso afiancar-vos; sao duas horas; nem a ceia, e certeza, alcancarernos

Petrucchio- Seriio sete horas antes de montannos. Veja bern: quanto eu diga, ou faca, ou tenha ideia de fazer, contrariais sempre.

31 Op.Citpp 136

Page 61: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

58

Deixai amigos; hoje ja nao saio. Quando vier a sair, dagora em diante, a hora que eu disser e que esta certa

Hortensio- Ate no sol este gal ante manda ".32

E para confirmar que a megera esta realmente dominada, Petrucchio provoca duas situacoes, Vejamos a primeira:

"Petrucchio- Depressa, pelo ceul Vamos a casa de vosso pai, de novo. Oh Deus bondoso! Como brilha no ceu a lua amiga!

Catarina- Lua? Isto e sol. Nao ha luar ainda Petrucchio- Digo que e a lua que tao claro brilha Catarlna- E0 sol, vejo bern que tao claro brilha Petrucchio- Pois pelo filho de meu pai, eu mesmo, tern de ser lua

ou estrela, ou 0 que eu quiser, antes de a casa de teu pai nos irmos, Recolhei os cavalos! Contrariado de novo! Contrariado sempre e sempre!

Hortensio- Oh! Concordai com ele; do contrario nao partiremos nunca

Catarina- Por obsequio, ja que chegamos ate aqui, sigamos ate 0

fim, seja lua ,ou sol, ou quanto bern entenderdes. Caso resolvais dar-lhe o nome de vela, doravante para mim sera isso

Petrucchio- Elua disse Catarina- Vejo que e lua mesmo Petrucchio- Estas mentindo, pois e 0 sol abencoado, Catarina- Deus bendito! Pois e 0 sol abencoado. Mas ja deixa

de ser 0 sol quando negardes isto, Muda-se a lua como vosso espirito; sera 0 que quiserdes, e isto mesmo ficara sendo para Catarina

Hortensio -Petrucchio, segue teu caminho; ganha foi a batalha ."33

Na segunda situacao Petrucchio tern sua prova definitiva, 0 dorninio esta definitivamente estabelecido. Catarina aceitara tudo que Petrucchio quiser ou fizer:

"Petrucchio- (A Vicencio) - Gentil dama, born ilia. Qual e 0 vosso itinerario? Doce Quetinha, com franqueza fala-me: ja viste uma senhora assim tao fresca? Como em suas faces 0 vermelho e 0 branco dura guerra mantem? Jamais os astros .e 0 ceu tao belamente tachonaram

32 A Megera Domada pp 351 33 Op.Cit pp 353

Page 62: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

59

como estes olhos 0 seu rosto angelico. Adoravel menina, novamente muito born dia para ti. Abraca-o Doce Quetinha, por ser tao formosa.

Hortensio- Vai deixar 0 homem louco pretendendo transforma­10em mulher.

Catarina- Botao formoso, fragrante e virginal, para que ponto te diriges agora? Onde resides? Felizes pais de tao galante filha! Mas mais feliz 0 moco a quem os astros propfcios te destinam para sua companheira tao meiga!

Petrucchio- Ora Quetinha! Nao estas louca, penso. Eurn homem velho, cheio de rugas, murcho, enfraquecido como estas vendo.

Catarina- Velho pai, perdoa 0 engano de meus olhos. Ofuscados tanto 0 solos deixou que quanta eu veja so verde me parece. Agora eu noto que es urn pai venerando. Novamente peco que perdoes este engano.

Petrucchio- Perdoa-lhe born velho; e ao mesmo tempo conta­nos teu carninho. Sendo 0 mesmo que 0 nosso, muito alegre ficaremos com tua companhia

Vicencio- Belo moco .e vos, alegre dama, que bastante me espantastes com vosso cumprimento tao esquisito: chamo-me Vicencio; moro em Pisa, e em carninho estou de Padua, para fazer uma visita a urn filho que ha muito nao revejo.'?'

No Principe Maquiavel aconselha 0 "aniquilamento", como a melhor forma de manter 0 domfnio sobre uma cidade conquistada:

"E que na verdade nao ha maneira mais segura de dominar as cidades conquistadas do que aniquila-las. Quem se toma senhor de uma cidade afeita a viver livremente e nao a aniquila deve esperar ser aniquilado por ela, pois esta tern sempre, como divisa de rebeliao, a liberdade e os seus antigos costumes, os quais nem 0 transcurso do tempo nem os beneffcios recebidos farao esquecer. Nao obstante tudo quanta se faca e nao obstante as cautelas que se tomem, se nao se dividem e dispersam os habitantes, estes nao se esquecem de sua liberdade e costumes antigos e a eles recorrem na primeira oportunidade que se lhes ofereca, como fez Pisa depois de estar havia cern anos sob 0 domfnio dos Fiorentinos'?",

34Op.Citpp 354 35 0 Principe pp 55

Page 63: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

60

o resultado da aplicacao deste principio e destas nove regras e o dominio e a dominacao incondicional. Isto serve para os individuos e para os Estados. Catarina, a megera, esta ja domada por Petrucchio, totalmente dominada. E a Italia estaria unificada e livre dos barbaros, caso houvesse urn Principe disposto a segui-las. Vejamos a fala final de Catarina e a conclusao de Maquiavel:

"Catarina - ... A submissao que 0 servo deve ao Principe e a que a mulher ao seu marido deve. E se ela se mostrar teimosa.indocil, intratavel, azeda, rebel ada contra suas razoaveis exigencies, que mais sera senao por isso abjeta traidora, sim traidora de seu proprio devotado vergonha de ver que sao tao simples as mulheres, para fazerem guerra onde deveram de joelhos pedir paz ou pretenderem dominar, dirigir, mandar em tudo quanta servir lhes cumpre tao-somente. obedecer e amar? Por que motivo temos 0 corpo delicado e fraco, pouco afeito aos trabalhos e experiencias do mundo, se nao for apenas para que nossas qualidades delicadas e nossos coracoes de acordo fiquem com nosso habito extemo? Deixai disso, vermezinhos teimosos e impotentes! 0 carater ja tive assim tao duro, 0 coracao tao grande quanto 0 vosso, e mais razoes, talvez, para palavra revidar com palavra, picardia com picardia. Mas agora vejo que nossas lancas sao de palha, apenas. Nossa forca e fraqueza; somos crianca que muito ambicionando logo cansa. Abatendo 0 furor nos exaltamos. Ponde a mao sob os pes de vossos amos. Caso 0 meu queira, a minha ja esta pronta; para mim nao consiste nisto afronta".36

E no Principe: "Nao se deve, portanto, deixar passar esta ocasiao, a fim de que

a Italia, depois de tanto tempo, encontre 0 seu redentor. Nao tenho palavras para dizer com quanta amor seria ele recebido em todas aquelas provincias que sofreram a invasao estrangeira; com que sede de vinganca, com que fe obstinada, com que piedade, com que lagrimas. Que portas se cerrariam diante dele? Que povos the negariam obediencia? Que inveja se the oporia? Que italiano the negaria reverencia? Cheira mal a todos este barbaro dominio. Empreenda, pois, a vossa ilustre casa esta tarefa,

36A Megera Domada pp 361

Page 64: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

61

com 0 ammo e a fe com que se empreendem as campanhas justas, a tim de que ,sob sua bandeira, esta patria se enobreca e, sob seus auspfcios, se veritique 0 que disse Petrarca: a virtude tomara annas contra 0 furor, eo combate sera curto, pais 0 valor antigo ainda nao morreu nos coracoes italianos'"?

A Megera domada e a Italia livre da dominacao barbara. Mas seriam estes fins tao "bons" e necessaries que justificariam a aplicacao de regras tao malignas? Atinal, quem sao as megeras e os barbaros do mundo? Megera ede fato Catarina ou seria Petrucchio com os metodos utilizados para doma-la? Barbaros sao os que dominaram a Italia ou urn Principe que a unificasse seguindo as regras de Maquiavel?

Para alem desta reflexaot que sera objeto da segunda parte deste artigo) fica a constatacao e 0 alerta de que as regras aqui apresentadas sao usadas cada vez mais, no todo ou em parte, em processos de dominacao a nfvel micro e macro-social, por indivfduos e por Estados, com requintes inimaginados mesmo pelo genic de homens como Shakespeare e Maquiavel.

Referencias Bibliogr8flcas

MAQUIAVEL. 0 Principe. Sao Paulo: Editora Cultrix, 1994 SHAKESPEARE, William. A Megera Domada, em Teatro Completo

de Shakespeare: Comedias, Sao Paulo: Ediouro sid

37 0 Principe pp 150

Page 65: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 66: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

A DEFINI<;AO TRADICIONAL DE CONHECIMENTO

Claudio Ferreira Costa

Summary In this paper the relevance of so-called "propositional knowledge" is at first compared with other forms ofknowledge. Secondly, the traditional and standard definition ofpropositional knowledge as justified true belief is discussed and defended against its most relevant objections. The third and main focus ofthis paper is a discussion of Gettier's objection to the tradicional definition and some answers to it, with the purpose ofdeveloping a more elaborate version of the traditional definition, one which makes it immune to counter-examples, such as those ofthe Gettier type.

Uma area central da epistemologia contemporanea ea da assim chamada analise do conhecimento, cuja principal tarefa ea de encontrar definicoes que explicitem apropriadamente 0 que entendemos por conhecimento. Dentre as diversas altemativas propostas para se definir conhecimento, a mais importante continua sendo a definicao tradicional (tambem denominada definicao classica, tripartite ou standard). Contra

Princfpios Ano 04, n 05, p. 63-102, 1997

Page 67: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

64

ela tern sido feitas objecoes que sugerem a sua revisao ou abandono, a mais seria delas tendo se tornado conhecida como 0 problema de Gettier. Nesse artigo quero expor e defender a definicao tradicional de conhecimento, mostrando que ela pode ser compreendida de maneira a permitir-nos responder plausivelmente as objecoes mais relevantes, inclufndo 0 proprio problema de Gettier. Comecarei, porem, com 0

trabalho preliminar de distinguir, dentre as principais formas de conhecimento, aquela a qual a definicao tradicional mais propriamente se aplica.

1. FORMAS DE CONHECIMENTO

Uma analise dos usos de expressoes de conhecimento costuma evidenciar a existencia de pelo menos tres formas relevantes de conhecimento'".

A primeira forma a ser distinguida eaquilo que podemos chamar de conhecimento como habilidade ou performance, como um "saber fazer" (knowing how). Exemplos de tal forma de conhecimento sao 0

saber falar portugues, 0 saber andar de bicicleta, 0 saber engatinhar. Essa forma de conhecimento nao eem todos os casos aprendida e a sua existencia pode ser admitida, mesmo entre os animais: quando dizemos que urn passaro sabe como construir urn ninho, estamos nos referindo ao conhecimento como uma habilidade. Tal conhecimento nao precisa vir acompanhado da capacidade do sujeito de justifica-lo, nem mesmo de pensa-lo, Todos sabemos, por exemplo, engatinhar, ou falar portugues, mas isso nao implica que sejamos capazes de descrever corretamente cada movimento que uma pessoa faz ao engatinhar, ou de expor as regras que aplicamos quando falamos portugues.

A segunda forma de conhecimento que costuma ser distinguida e0 que poderiamos chamar de conhecimento de particulares (knowing oj). Trata-se do conhecimento de coisas, de pessoas, de locais etc., basicamente, daquilo que podemos identificar como ocupando determinada regiao do espaco e possuindo certa duracao temporal. De

Page 68: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

65

urn ponto de vista lingufstico, 0 criterio para a sua distincao em lingua portuguesa eque 0 verbo usado e 'conhecer", em geral seguido de urn artigo definido ou indefinido e do nome do indivfduo que est! sendo considerado; por exemplo: "Conheco a Lia", Se tomarmos como guia para a identificacao do conhecimento de particulares esse criterio lingufstico, nao ha por que nao estender essa forma de conhecimento tambem a construcoes abstratas (ex: "Conheco a teoria dos quanta").

Em geral, essa forma de conhecimento costuma pressupor uma experiencia pessoal direta do indivfduo em questao. Se digo: "Conheco a Lia", trata-se de urn saber acerca de uma pessoa que me foi pessoalmente apresentada; se digo "Conheco as cataratas do Iguacu", quero dizer que eu as vi quando lei estive. Essa consideraeao sugere proximidade entre 0

conhecimento de particulares e 0 que B. Russell chamou de conhecimento porfamiliaridade (acquaintance). uma forma de conhecimento imediata, certa, nao passfvel de ser expressa de forma descritiva, como 0

conhecimento dos sense-dour". Mas admitir essa proximidade e algo que implica em riscos especulativos desnecessarios. Diversamente do conhecimento por familiaridade, 0 conhecimento direto que temos de particulares pode, em geral, ser comunicado atraves de descricoes: posso descrever como eLia, possibilitando assim que alguem a reconheca, 0 conhecimento de particulares tambem nao einfalfvel: posso pensar que visitei 0 templo de Apolo em Delfos, quando 0 que realmente vi foram as minas da fonte de Castalis. Alem disso, deve 0 conhecimento de particulares pressupor sempre a experiencia pessoal do indivfduo em questao? A primeira vista pode parecer que nao: alguem pode, de certo modo, conhecer uma cidade atraves de mapas, fotografias e relatos, sem nunca ter estado lei; urn bi6grafo pode conhecer a pessoa cuja vida estuda, mesmo sem ter sido pessoalmente apresentado a ela. Contudo, essa sugestao eenganosa, nao encontrando apoio linguistico: nao diremos, em tais casos, que a pessoa conhece a cidade, mas sim que sabe muito acerca dela, nem diremos que 0 bi6grafo conhece a pessoa, mas sim que sabe de fatos acerca de sua vida, os seus feitos, os seus habitos... Costumamos, pois, reservar 0 verbo 'conhecer' a algo associado a experiencia pessoal do particular em questao.

Page 69: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

66

A terceira e mais discutida forma de conhecimento, aquela que nos interessara aqui, e 0 conhecimento proposicional (knowing that): o saber acerca de fatos. Se digo: "Sei que Schliemann descobriu as rufnas de Troia", a frase subordinada "...Schliemann descobriu as ruinas de Troia" expressa uma proposiciio, algo capaz de ser verdadeiro ou falso, de representar urn fato. Nesses casos se usa em portugues 0 verbo 'saber' ao inves do verbo 'conhecer', seguido da preposicao 'que' e da frase subordinada. A linguagem atesta aqui a diferenca entre esse conhecimento e 0 de particulares: nao e possfvel dizer "Conheco 0 ...

Schliemann descobriu Troia", nem "Sei que... Lia". Simbolicamente, podemos representar como aSp (a sabe que p) 0 conhecimento tido por uma pessoa a da proposicao p, ou seja, de que esta everdadeira (uma vez que saber que p e0 mesmo que saber que p everdadeiro, ainda que de forma inexplicita).

o conhecimento proposicional ecognitivo e informativo: eele que mais propriamente envolve atribuicoes de verdade; e edele que e constituidoo imenso corpo de informacoes acumuladas e partilhaveis que possuimos acerca do mundo e que contem a nossa heranca cientifico­cultural. Por tais razoes, ele pode ser considerado a forma essencial de conhecimento. E a ele que diz respeito a definicao tradicional de conhecimento como crenca verdadeira justificada, que sera exposta a seguir.

2. APRESENTANDO A DEFINI<;Ao TRADICIONAL

A definicao tradicional ou tripartite de conhecimento proposicional tern sua origem nos dialogos platonicos, tendo sido desde entao freqiientemente assumida pela tradicao'". Segundo tal definicao, conhecimento e crenfa verdadeira justificada. Mas 0 que e crenca verdadeira justificada?

Eimportante se entender claramente cada uma das condicoes expressas nessa definicao. Para isso podemos comecar considerando exemplos concretos. 0 que nos faz admitir que alguem sabe que as

Page 70: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

67

Bachianas Brasileiras foram compostas por Villa Lobos? Uma primeira condicao eque isso seja verdadeiro. Se isso nao fosse verdadeiro, dizer que uma pessoa sabe seria tao absurdo quanto dizer que alguem sabe que a Lua e feita de queijo suico. Nao se pode ter conhecimento de proposicoes falsas.

Podemos resumir a primeira condicao para 0 conhecimento dizendo que s6 podemos ajuizar ou afirmar que uma pessoa a sabe que p, ou seja, que a sabe que a proposicao p everdadeira no caso em que p seja uma proposicao verdadeira. Assim, se for 0 caso que a sabe que p, isso implica tautologicamente na verdade de p. Em sfrnbolos:

aSp ->p. Essa condicao de verdade da proposicao enecessaria, mas nao

suficiente. Digamos, por exemplo, que seja perguntado a Alfonso quem compos as Bachianas Brasileiras, sendo-lhe apresentadas tres altemativas: (a) VillaLobos, (b) Carlos Gomes, (c) Tom Jobin. Tratando­se de urn perfeito pascacio, Alfonso resolve apostar na sorte e escolhe (a), 0 que casualmente e a resposta certa. Eevidente que nesse caso, apesar de ter dado a resposta certa, ele ndo sabe. Tipico dessa situacao e que a pessoa tambem nao costuma ter qualquer conviccao acerca de seu palpite. Com isso passamos a segunda condicao do conhecimento: e preciso que a pessoa ereia na verdade daquilo que diz ou pen sa. E inconsistente supor que alguem saiba de algo sem crer que esse algo seja 0 caso.

o conceito de crenca aqui considerado demanda esc1arecimento. Ha autores que desistiram de usar 0 conceito de crenca, que seria demasiado vago ou ambiguo, sugerindo urn conceito substituto como 0

de assentimento'". Penso que uma analise da natureza da crenca em termos de probabilidade e capaz de mostrar que essa altemativa e prescindfvel. Minha sugestao e a de que uma maneira proffcua, ainda que algo intuitiva, de se entender 0 sentimento de crenca relativo ao conhecimento proposicional, consiste em considera-lo geralmente caracterizavel como sendo uma disposicao da mente em assentir uma proposicao, consistindo tal assentimento no ato mental de atribuir a

Page 71: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

68

suposta verdade dessa proposicao urn certo grau de probabilidade, que varia da suspeita a certeza'". Considerarei esse ultimo ponto.

No grau mais baixo de crenca, quando uma pessoa a supoe haver algo mais do que 50 % de chances de que a proposicao p seja verdadeira, 'crer' tem 0 sentido de achar, de suspeitar, de se ter 0 palpite de que p seja verdadeira. A mera suspeita nao eurn grau de crenca freqiiente nos casos de conhecimento. Mas isso niio significa que nao possa ocorrer: quando nos recordamos de alguma coisa como urn mimero de telefone, por exemplo, pode ser que nao estejamos certos, que apenas suspeitemos que a nossa recordacao seja correta. Mas sendo ela correta trata-se, apesar da falta de conviccao, de urn caso inequfvoco de conhecimento. Quando o grau de crenca for mais elevado fala-se de opiniiio, e quando for mais elevado ainda, fala-se de se estar convicto, de se estar certo, de se ter certeza. A certeza e0 grau mais elevado de crenca, dividindo-se em dois casos. Um deles e0 das certezas empfricas, que costumam se dar quando todas as evidencias positivas requeridas foram obtidas e as negativas niio foram encontradas. Aqui 0 grau de crenca deve ser proximo a 100%, embora nao deva chegar a 100%, na medida em que 0 conhecimento de fatos empiricos e sempre falfvel: nesses casos dizemos que temos conviccao, que estamos certos. 0 outro caso e 0 de certezas logico­conceituais, da crenca em verdades analfticas, cuja negacao conduz a contradicao, posta que derivam dos significados que convencionamos atribuir aos seus termos constituintes. Dessa maneira sabemos com certeza que urn triangulo tern tres angulos ou que uma coisa eela mesma. Nesses casos, 0 grau de confianca na verdade da proposicao pode ser considerado igual a 100%, posto que a sua verdade egramaticalmente inquestionavel. 0 seguinte grafico ilustra a rela~ao de compatibilidade entre graus de crenca ou de confianca na verdade de uma proposicao (geralmente correlacionaveis a expressoes da linguagem natural) eo seu conhecimento:

Page 72: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

69

GRAUS DE CRENC;A:

certeza logico-conceitual 100% ter certeza, estar certo ter conviccao ser de opiniao suspeitar ter urn palpite...

50%

Compatibilidade com conhecimento proposicional

Pelo que considerarnos fica evidente que a maioria dos estados de conhecimento contem graus muito elevados de crenca, proximos, senao iguais a 100 %. 0 conhecimento envolve geralmente uma crenca firme. Mas isso nao pode ser generalizado: M exemplos que mostram que qualquer dos graus de crenca considerados pode acompanhar estados de conhecimento. Verno-nos, pois, diante de uma vaguidade constitutiva do conceito de conhecimento proposicional, e seria uma tarefa enganosa sair em busca de urn outro conceito com a finalidade de precisar 0 que e intrinsecarnente vago.

Simbolizando a crenca como C, podemos resumir a segunda condicao necessaria ao conhecimento como sendo a de que uma pessoa a acredite na verdade de p, formalmente Cap. Quando julgarnos que a sabe que p, isso implica que acre na verdade de p, 0 que pode ser simbolicarnente expresso por:

aSp -> aCp.

Mas tambem essa segunda condicao pode revelar-se insuficiente. Isso fica claro pela consideracao de mais urn exemplo. Suponharnos que Alfonso sonhe com cavalos, acreditando entao que ira sair cavalo no jogo do bicho. Suponharnos que com base nisso ele aposte no cavalo e ganhe a aposta. Ele sabia que iria sair cavalo? Certamente que nao, ainda que a sua crenca tenha se revelado verdadeira.

Para prevenir que crencas verdadeiras merarnente acidentais sejam classificadas como casos de conhecimento enecessario acrescentar

Page 73: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

70

uma terceira condicao: a de que a pessoa tenha boas razoes para a sua crenca, isto e, de que ela tenha como fundamenta-la, como justificd-la de uma maneira que possamos considerar razoavel. Se Carlos sabe que Villa Lobos compos as Bachianas Brasileiras, eporque isso everdade, porque ele esta certo disso e porque ele tern uma justificacao razoavel ou adequada para a sua crenca nisso, uma justificacao baseada em informacoes que obteve de fontes confiaveis como textos escritos, documentaries, testemunho de autoridades etc., que por sua vez se baseiam em evidencias factuais indiscutiveis.

Podemos agora formular a terceira condicao de conhecimento. Ea condicao de que, se ajuizamos que uma pessoa a sabe que p euma proposicao verdadeira, entao ela deve ter uma razao ou justificacao adequada para a sua crenca em p. Formalmente, simbolizando a justificacao adequada por J, essa condicao se formula como aJCp. Quando julgamos que a sabe que p, isso implica, pois, que a tern uma adequada justificacao para a sua crenca em p, ou seja:

aSp ->aJCp

Assumindo que nao existem outras condicoes, se conjugarmos as tres condicoes implicadas por Sap, poderemos resumir a definicao tradicional de conhecimento na seguinte formulacao:

(Df.) aSp == p & aCp & aJCp (i) (li) (iii)

Tal definicao nos diz que julgar ou afrrmar que uma pessoa a sabe que everdade que p equivale a (ou, talvez, e0 mesmo que) dizer (i) que p everdadeiro, (ii) que a cre que p seja verdadeiro e (iii) que a tern uma justificacao para a sua crenca na verdade de p. Cada uma dessas tres condicoes e, em si mesma, necessaria para que possamos afmnar que a sabe que p; juntas elas constituem uma condicao suficiente.

3. OBJE<;6ES As CONDI<;6ES NECESSARIAS

Nenhuma das tres condicoes de conhecimento acima apresentadas deixou de ser objeto de consideracoes criticas. Quero

Page 74: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

71

restringir-me aqui as mais importantes, mostrando que esempre possfvel responder satisfatoriamente a elas.

Alguns poucos fil6sofos negaram a necessidade da primeira condicao, a da verdade da proposicao. Seriam casos como aqueles nos quais nos referimos ao conhecimento possuido pelos povos antigos, ou ao conhecimento cientffico de uma epoca anterior a nossa, conhecimentos esses que hoje em dia considerados falsos'". Assim, podemos dizer que os gregos antigos sabiam que os deuses viviam no monte Olimpo, ou que os planetas se moviam em epiciclos. Essa objecao emuito facil de ser respondida: em tais casos usa-se a palavra 'saber' em urn sentido derivado e secundario, no qual esta significa tanto quanto "pensavam saber". Se, diversamente, usarmos a palavra 'saber' em seu sentido proprio, entao deveremos admitir que eles na verdade nao sabiam onde moravam os deuses, nem como os planetas realmente se moviam.

Contra a segunda condicao da definicao classica, objetou-se que pode haver conhecimento nao acompanhado de crenca, Ha diversos casos. Quero restringir-me aos mais importantes, comecando com 0 exemplo, freqiientemente apresentado, de uma mae que nao acredita que 0 seu filho tenha sido morto em combate, apesar de possuir provas incontestaveis disso.

A resposta dependera dos detalhes adicionais envolvidos. Digamos que a mae admite as provas, que ela aceita que 0 seu filho esta morto, mas que continua a agir como se esperasse a sua volta. Nesse caso, devemos admitir que ela tern duas crencas conflitantes: a crenca propria de quem sabe que 0 filho esta morto, e, ao mesmo tempo, a crenca irracional de que ele nao esta morto. Elas sao, decerto, conflitantes, mas nao sao contradit6rias: crer que 0 filho nQO morreu nao implica em nao crer que 0 filho morreu. D. M. Armstrong evidenciou esse ponto utilizando a negacao interna'"; crer que 0 filho nao morreu simboliza-se como aC -, p; nao crer que 0 filho morreu simboliza-se como aC-,p; temos, com isso, a conjuncao "aCp & aC -,p", e nao a proposicao contradit6ria "aCp & --,aCp".

Outra possibilidade ea de que a mae se recuse a aceitar as provas de que 0 seu filho esta morto como sendo suficientes; ela se recusa a

Page 75: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

72

acreditar que ele morreu. Devemos notar, contudo, que nesse caso ela tambem se recusara a admitir que sabe. Mas pode ser que mesmo contra a admissao consciente da pessoa, sejamos de opiniao de que ela sabe. Isso so pode ser feito, porem, com a admissao de que ela possui urn conhecimento inconsciente do fato. Mas se estamos preparados para admitir que a pessoa tern urn conhecimento inconsciente do fato, nao ha razao para nao admitir que esse conhecimento venha acompanhado tambem de uma crenca inconsciente, que the corresponde. A questao de se saber como isso 15 possivel cai no dominio da psicologia: 0 psicologo pode sugerir que 0 saber e a crenca inconscientes em p tenham sido reprimidos, caso em que temos uma contradicao real entre a crenca e 0

saber inconscientes, e a ausencia de crenca e saber conscientes. Mas nesse caso a contradicao seria admissfvel, uma vez que a instancia psfquica, 0 sujeito inconsciente da crenca, aI, nao 15, para a psicanalise, identificado ao sujeito consciente que manifesta verbalmente a sua ausencia de crenca, ou seja, a2. Logicamente, a conjuncao "al Cp & .,a2Cp" tambem nao forma uma contradicao. Concluo, pois, que nem sob essa forma, nem sob a anterior, 0 exemplo demonstra a existencia de conhecimento sem crenca.

Uma terceira objecao, apresentada por C. Radford'", consiste na historia de urn viajante franco-canadense que, embora certo de nada saber acerca da historia da Inglaterra, em urn jogo de adivinhacao responde corretamente a questoes precisas acerca desta, como a data da morte da rainha Elisabeth. Mais tarde ele se recorda de ter de fato certa vez aprendido datas da historia inglesa, 0 que explica 0 seu sucesso em adivinhar as respostas. Como notou D. M. Armstrong, no momento em que 0 viajante pensa estar adivinhando, por exemplo, que a rainha Elisabeth morreu em 1603, essa pessoa deve ter urn certo grau de crenca nesse palpite, alem da crenca de que, por se tratar de mera adivinhacao, essa deva ser uma data errada'". Trata-se tambem aqui da conjuncao compativel entre uma crenca e uma negacao intema da crenca: aCp & aC-,p. De fato, como ja foi notado, nao 15 infreqiiente nos recordarmos corretamente de conhecimentos sem termos 0 menor grau de certeza acerca da correcao de nossa recordacao, 0 exemplo so seria uma objecao

Page 76: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

73

aideia de que 0 conhecimento implica em certeza ou crenca finne. Como o interpretamos, ele serve para evidenciar que em certos casos urn grau minimo de crencaja ecompativel com 0 conhecimento.

Ainda outra objecao de algum interesse ea de que seria possivel imaginar alguem que ao compreender uma proposicao de 0 seu assentimento momentaneo a ela, mas que seja incapaz de, ap6s esse assentimento, manter a disposicao de assentir caracteristica da crenca; essa pessoa teria entao conhecimento sem crenca'".

Uma indicacao para 0 que parece ser a resposta certa surge quando notamos que na verdade nao diriamos que a pessoa em questao continua possuindo conhecimento apos ter dado 0 seu assentimento, posto que ela nao tern uma disposicao para voltar a admitir a verdade de p. Mas por que 0 seu conhecimento s6 dura enquanto dura 0 seu assentimento? A resposta 6bvia e: porque 0 conhecimento depende da existencia da crenca, a qual esta envoIvida no assentimento; como, nesse caso , a crenca nao existe fora do assentimento, com 0 seu desaparecimento deixa tambem de existir 0 conhecimento.

Para exarninarmos melhor a questao, devemos distinguir entre urn mero assentimento verbal e 0 ato mental de assentimento ou admissdo, que deve acompanha-lo, Eesse ultimo que importa, pois s6 dizemos que ha conhecimento ligado ao assentimento quando supomos a existencia de urn ato mental de assentir, i.e., uma admissao que a pessoa faz para si mesma de possuir urn suficiente grau de confianca na verdade da proposicao. Tal assentimento, tal admissao, contudo, supoe urn estado atual de crenca, mesmo que nao duradouro, pois nao epossfvel admitir­se algo para si mesmo sem, ao faze-lo, se crer nesse algo. Concluo, pois, que 0 assentimento ligado ao conhecimento contem ao menos uma forma atual de crenca como ato ou ocorrencia mental, que enao-disposicional e, supostamente, primaria. A pessoa teria urn conhecimento sem duracao, dado que a forma de crenca envolvida nao dura mais do que 0 seu assentimento.

A conclusao que parece se impor ea de que a crenca pertence a pr6pria estrutura daquilo que chamamos de conhecimento, nao podendo ser dela separada. Com efeito, parece ser urn fato gramatical 0 de nao

Page 77: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

74

podermos dizer de alguem que realmente niio ere, que esse alguem conhece. Afinal, se a pessoa a sabe que p, isso envolve necessariamente, da parte de a ao menos 0 assentimento de que p eou deve ser verdadeiro, assentimento esse que sera entendido, ou como sendo uma atualizacao de urn estado de crenca, ou como contendo, ele proprio, momentaneamente, uma forma de crenca. Qualquer que seja 0 caso, 0

conhecimento, pressupondo 0 assentimento da verdade, pressupoe a crenca,

Vejamos agora as objecoes a terce ira condicao necessaria ao conhecimento: a condicao de justificacao adequada. Uma primeira objecao erelativa ao dominio de aplicacao da definicao assim concebida: a terceira condicao exige que para que uma pessoa a possua conhecimento, ela tenha uma justificacao para a sua crenca em p. Ora: nem sempre 0 conhecimento proposicional exige justificacao; nao precisamos nem podemos justificar, por exemplo, nosso conhecimento do principio da nao-contradicao. Podemos fazer uma distincao muito geral entre proposicoes inferenciais, cuja verdade exige justificacao, e proposicoes ndo-inferenciais, cuja verdade nao admite justificacao'", Escapam essas ultimas proposicoes adefinicao tradicional?

Antes de responder, quero considerar uma objecao a essa distincao: a de que nao existem proposicoes nao-inferenciais: todas as proposicoes sao revisaveis, por conseguinte, proposicoes ditas nao­inferenciais sao susceptfveis a exigencia de verificacao, Exemplos poderiam ser proposicoes como "A soma dos angulos de urn dado triangulo eISO"" e "Ha uma pessoa diante de mim"; urn triangulo tracado sobre uma superffcie esferica possui angulos com mais do que ISO", e na penumbra podemos confundir uma outra coisa com uma pessoa.

Uma resposta para esse tipo de dificuldade foi sugerida (em outros termos) por Wittgenstein em Sobre a Certeza(IO). Usando uma terminologia diferente da de Wittgenstein, podemos dizer que essa resposta consiste em se distinguir uma proposicao como sendo inferencial/nao-inferencial, sempre relativamente ao seu papel no contexto da prdtica lingiiistica (do jogo de linguagem) na qual ela vier expressa. Uma proposicao inferencial pode entao ser definida como

Page 78: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

75

aquela que, no interior de uma dada pratica linguistica, demanda justificacao, enquanto uma proposicao ndo-inferencial sera aquela que em uma dada pratica lingufstica nao demanda justificacao, possuindo geralmente urn papel fundamentador, se for usada para justificar proposicoes inferenciais na pratica em questao. Como uma mesma proposicao pode aparecer em diferentes praticas lingufsticas, uma mesma proposicao pode funcionar ora como inferencial, ora como nao-inferenclal. Com essa distincao, a dificuldade acima mencionada desaparece. Uma proposicao como "A soma dos angulos de urn dado triangulo e 180"" e nao-inferencial em uma pratica lingtiistica na qual 0 espaco pressuposto e euclideano; se 0 contexto for tal que geometrias nao-euclideanas puderem ser admitidas, a mesma proposicao podera ser considerada inferencial. V rna proposicao como "Ha uma pessoa diante de mim" sera geralmente tida como nao-inferencial em praticas de observacao comuns, que pressupoem boa iluminacao, visibilidade adequada etc. - mas em outras praticas, digamos, em uma brincadeira em que alguem deve, com os olhos vendados, fazer uma adivinhacao, pode se tomar inferencial. Nos primeiros casos, segundo Wittgenstein, essas proposicoes tomam­se proposicoes de certeza (Gewi]3heitsiitze), nao fazendo sentido colocar a sua verdade em discussao.

Voltando a questao de se saber se as proposicoes nao-inferenciais escapam adefinicao tradicional de conhecimento, ha varias respostas possiveis. Wittgenstein, por exemplo, rejeitou que proposicoes nao­inferenciais fossem autenticamente conhecidas, com base no fato de que, dado que nao temos diivida acerca delas e nao costumamos asseverar conhecimento do que estamos certos, daquilo que fundamenta 0

proferimento, do lance feito em uma pratica lingtiistica Gogode linguagem) aceita'!", Em urn sentido isso e correto. Nao obstante, a linguagem, mesmo a linguagem natural, na qual Wittgenstein quer se apoiar, tambem pode desempenhar papeis reflexivos. Segundo ela faz sentido dizer que sabemos que solteiros sao nao-casados, que sabemos que percebemos os objetos ao nosso redor etc.(12) Assim, em concordancia com a maioria dos autores, preferimos estender a definicao tripartite ao caso do conhecimento de proposicoes nao-inferenciais. Para faze-lo, basta ampliar

Page 79: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

76

o conceito de justificacao, considerando as proposicoes nao-justificadas como proposicoes que se "auto-justificam", reconhecendo-as como cases­limite de conhecimento. Pode-se reclamar da artificialidade dessa solucao, mas ela e tecnicamente desejavel, tanto quanta a decisao do logico de aceitar tautologias e contradicoes como casos-limite de proposicoes, apesar delas nada dizerem acerca do mundo, tanto quanto adecisao do matematico de admitir 0 conjunto vazio como urn caso limite de conjuntos, apesar de nunca nos referirmos a conjuntos sem elementos no uso ordinario da palavra.

Essas consideracoes nos auxiliam a responder a objecoes feitas a terceira condicao, nas quais sao apresentados exemplos de conhecimento pretensamente sem justificacao, Esse seria 0 caso do personagem de urn conto de D. H. Lawrence, que por mero palpite sempre acerta qual 0 cavalo que ira veneer a corrida, bastando para isso cavalgar sobre ele'!". A pessoa nao sabe dizer por que acerta. Mas embora ela nao seja capaz de oferecer justificacao para 0 seu palpite, somos ao final forcados a reconhecer que ela sabe qual 0 cavalo que ganhara a pr6xima corrida! Sabemos disso com base em uma conclusao indutiva resultante do fato da pessoa ter sempre vencido as apostas.

A resposta nao edificil, variando na dependencia do modo como o exemplo for detalhado. Imagine que a pessoa tenha descoberto por mero acaso a ligalYao entre urn sentimento que ela tern ao cavalgar certos cavalos e 0 fato deles posteriormente vencerem as corridas. Nesse caso, na primeira vez que a pessoa aposta ela tern apenas urn palpite. Mais tarde, considerando que sempre acerta, ela desenvolve completa confianca na relacao entre 0 seu sentimento e a sua previsao, Nesse caso, a pessoa sabe que ecapaz de predizer qual 0 cavalo que ganhara a corrida com base em uma inferencia indutiva, da mesma forma que, em urn exemplo real e paralelo, urn epileptico sabe por inducao que as suas experiencias da aura epileptica serao seguidas de crises convulsivas. A pessoa justifica a sua afirmacao "0 cavalo x vencera a corrida" apelando abase evidencial oferecida pelo sentimento que tern ao cavalgar sobre x, adicionada a toda a sua experiencia anterior da relacao entre esse sentimento e previsoes similares. Nesse caso temos uma justificacao indutivamente fundada.

Page 80: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

77

Tambem podemos supor, em uma variante do caso acima, que desde 0 infcio a pessoa afirme estar absolutamente certa de que cavalo ira veneer, simplesmente por possuir uma especie de visao do futuro, urn sentido premonit6rio do qual nao compartilhamos. Nesse caso, sentir­nos-emos mais inclinados a admitir que a proposicao "0 cavalo x vencera a corrida" 15, para a pessoa, uma proposicao nao-inferencial. Como n6s nao compartilhamos dessa visao premonit6ria, para n6s tal proposicao nao 15 nao-inferencial. N6s chegamos aconclusao de que a pessoa sabe que a previsao 15 verdadeira com base em urn processo indutivo, i.e., por sabermos que a pessoa sempre acertou as apostas, 0 que 15 urn caminho diverso daquele seguido pela pr6pria pessoa. Isso da ao caso uma certa impressao de paradoxo. Contudo, posso Iembrar-me de urn exemplo real e similar, capaz de mostrar que nada ha aqui de realmente paradoxal: sabemos que daltonicos foram usado em guerras para, em avioes de reconhecimento, visualizar artefatos belicos camuflados na selva embaixo e invisfveis para as demais pessoas. Para 0 daltonico a proposicao "Vejo lei embaixo urn tanque de guerra" seria, nesse contexto, autojustificada. Como esse carater de evidencia nao 15 intersubjetivo, s6 sabemos que ele sabe indutivamente, na medida em que verificamos a posteriori a verdade do enunciado. Concluo, portanto, que, seja qual for 0 caso, 0 exemplo do apostador nao deixa de satisfazer a condicao de que a pretensao de conhecimento deve ser justificavel.

4. OBJEC;OES ADEFINIC;AO COMO CONDIC;AO SUFICIENTE: CONTRA-EXEMPLOS DO TIPO GETTlER

Consideramos ate aqui objecoes a cada uma das condicoes necessarias da definicao de conhecimento, tomadas em separado. Como penso ter evidenciado, nao 15 diffcil mostrar que ha respostas plausfveis para elas. Tambem foi visto que a definicao tradicional de conhecimento tambem assume que a conjuncao das tres condicoes necessarias constitui uma condicao suficiente para 0 conhecimento. Ejustamente essa ultima assuncao que veio a ser colocada em questao pelos contra-exemplos do

Page 81: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

78

tipo Gettier. Essa denominacao alude a urn problema apresentado em urn breve artigo publicado por E. Gettier em 1963, que deu inicio a urn vasto mimero de trabalhos objetivando soluciona-lo'!". No artigo original de Gettier sao apresentados dois contra-exemplos nos quais todas as tres condicoes da definicao classica parecem estar sendo satisfeitas, sem que isso resulte em casos de conhecimento. A conclusao imediata que parece decorrer dos exemplos e a de que as tres condicoes juntas nao sao suficientes para definir conhecimento. Ou seja: a definicao tradicional talvez se constitua de uma apresentacao de condicoes necessarias; mas nao chega a ser suficiente para definir 0 conhecimento proposicional. Eimportante discutirmos os contra-exemplos do tipo Gettier, dado que para a maioria dos epistemologos eles constituem urn desafio real it definicao tradicional de conhecimento. Para nos familiarizarmos com 0 problema, ao inves de expor os pr6prios exemplos de Gettier, que sao urn tanto artificiais, apresentarei tres exemplos similares, retirados e adaptados de diferentes autoresv":

Exemplo 1: Suponhamos que Lia ollie para 0 seu rel6gio de pulso, cujos ponteiros mostram ser nove horas. De fato, sao realmente nove horas. Mas 0 rel6gio esta parado e mostra apenas por acaso a hora certa. As condicoes da definicao tradicional sao satisfeitas: e verdade que sao nove horas, Lia ere nisso e inclusive pode justificar isso dizendo que acabou de consultar 0 seu rel6gio. Mas ela nao sabe realmente que horas sao.

Exemplo 2: lmagine-se que estejamos no ano de 1996, e que urn adulto pergunte a uma crianca qual a letra inicial do nome do atual presidente do Brasil. A crianca responde: "0 nome inicia-se com F'. No entanto, quando se pede para ela justificar, ela responde dizendo: "Porque ele se chama Fernando Collor de Mello". Tambem aqui constatamos: e verdade que 0 nome do presidente comeca com F, a crianca acredita na verdade do que esta dizendo, ela tern uma justificacao para 0 que diz. Mesmo assim, como em 1996 0 nome do presidente era Fernando Henrique, devemos admitir que a crianca realmente nao sabe que 0 nome do presidente comeca com F, e que respondeu corretamente por pura coincidencia,

Page 82: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

79

Exemplo 3: Urn caso algo mais complicado, mas que segue 0

mesmo padrao dos demais. Alfonso liga a televisao para ver os momentos finais do jogo decisivo do Campeonato Brasileiro deste ano. Ele ve 0

Gremio veneer 0 jogo. Com base nessa evidencia, ele conclui p: "0 Gremio venceu 0 Campeonato Brasileiro deste ano". Essa conclusao se baseia, contudo, em uma evidencia falsa: 0 que Alfonso realmente viu foi apenas urn reprise do ultimo jogo do Campeonato Brasileiro do ano passado, que 0 Gremio venceu. Enquanto isso, porem, 0 Gremio realmente vence 0 ultimo jogo do campeonato brasileiro desse ano, tornando-se realmente campeao,

Nesse exemplo, mais uma vez as tres condicoes da definicao classica sao satisfeitas: e verdade que 0 Gremio e 0 campeao, Alfonso acredita nisso, e ele justificap atraves da evidencia e. ou seja, recorrendo ao fato de que ele viu pela TV 0 Gremio veneer a final do campeonato. Mas ninguem diria que Alfonso realmente sabe disso. Afinal, sabemos que sua evidencia e falsa e que e por mera coincidencia que atraves dela ele chegou a uma conclusao verdadeira. Mesmo assim, a justificacao nao deixa de valer como tal, uma vez que e baseada em urn erro razoavel,

Como reacao a contra-exemplos como esses, urn born mimero de filosofos concluiu que a definicao tradicional de conhecimento e insuficiente, sugerindo complementa-la com uma quarta condicao; ja outros preferiram tentar uma definicao altemativa, que a substitufsse. Meu objetivo aqui sera mostrar que a definicao tradicional nao precisa ser modificada nem abandonada, mas melhor compreendida e analisada. Antes, porern, quero considerar algumas tentativas de complementar a definicao tradicional pela adi~ao de uma quarta condicao, dado que elas nao sao capazes de ensinar alguma coisa.

5. ALGUMAS TENTATIVASDE COMPLEMENTAR A DEFINIf;AO

As respostas mais infIuentes ao problema de Gettier propoem a adicao de uma quarta condicao, A primeira e quase imediata resposta consiste em se notar que em todos os exemplos ate aqui considerados, a

Page 83: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

80

justifica a sua crenca na verdade de p com base em uma proposicao evidencial falsa. No exemplo 1, a evidencia e0 relogio marcando as 12 horas, embora seja a rigor efalso dizer que urn relogio parado marca as horas; no exemplo 2, a evidencia eque 0 nome do presidente brasileiro em 1996 eFernando Collor, 0 que tambem efalso, assim como efalso 0

suposto de que Alfonso viu pela TV 0 Gremio veneer a final deste ano no exemplo 3. Em todas essas justificacoes ha uma proposicao evidencial e, a qual, caso verdadeira, deve tornar a proposicao p verdadeira. Mas e eem todos esses casos falsa. Isso sugere que uma quarta condicao, a de que a proposicao evidencial seja verdadeira, seja adicionada:

(iv) Para que a estejajustificado em sua crenca na verdade de p atraves de uma inferencia baseada na proposicao evidencial e, esta ultima niio pode ser falsa.

Com efeito, seria ridiculo se alguem dissesse: "Eu justifico a minha crenca na verdade de p com base na evidencia atestada por e, embora saiba que essa evidencia nao existe."

Contudo, logo se mostrou que a adicao da condicao (iv) ainda e insuficiente'l", Nao ediffcil construir exemplos nos quais a proposicao evidencial que fundamenta ajustificacao everdadeira, mas que mesmo assim nao constituem casos de conhecimento:

Exemplo 4: Digamos que Carlos tenha urn empregado em sua firma chamado Arthur, e que este tenha se demonstrado sempre uma pessoa inteiramente confiavel. Arthur the conta que Marta, uma sobrinha sua, acaba de ganhar urn carro em uma loteria. Com base nisso Carlos conclui que Marta ganhou urn carro na loteria. Acontece, porem, que Arthur esta entrando em seu primeiro surto psicotico, sendo essa informacao resultado de urn delfrio seu: tudo 0 que ele realmente sabe e que Marta apostou na loteria. Nao obstante, essa conclusao ecasualmente verdadeira: sem que Arthur realmente tenha sabido disso, Marta realmente ganhou urn carro na loteria desta semana.

A proposicao p e: "Marta ganhou nesta semana urn carro pela loteria". Carlos pensa saber que p e uma proposicao verdadeira. Se

Page 84: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

81

pedinnos a Carlos parajustificar a sua crenca emp, ele 0 fara com base em e: "Arthur me disse que a sua sobrinha Marta ganhou nessa semana urn carro pela loteria e Arthur sempre se mostrou confiavel". A proposicao e e verdadeira, bern como as informacoes que ela contern, mas apesar de tudo nao diriamos que Carlos sabe que p. As quatro condicao para 0

conhecimento ate aqui consideradas estao sendo satisfeitas e mesmo isso nao basta.

Vma maneira de se remediar a dificuldade consiste em se exigir que as evidencias para as evidencias tambem ndo sejamfalsas, e assim por diante''", Mas isso e urn tanto vago, alem do que temos sempre evidencias falsas associadas a nossas evidencias, as quais, no entanto, nao chegam a desempenhar papel relevante. Sei, por exemplo, que Napoleao foi urn grande estrategista, mesmo que algumas informacoes nas quais me baseio para chegar a essa conclusao sejam falsas. Seria preciso mostrar sob que circunstancias uma falsidade ligada a uma evidencia chega a ser relevante para torna-la inadequada'!",

Uma outra especie de solucao provern da observacao de que em urn caso como 0 acima exposto, a justificacao de p por e e destruida pelas informacoes contidas em urn outro enunciado, no caso, r: "Arthur esta entrando em urn surto psic6tico e ele nao foi infonnado de que Marta ganhou na loteria". Com base nessa especie de constatacao foram sugeridas solucao mais sofisticadas, que podem ser chamadas de condicoes de niio-refutaciio das evidencias justificacionais (undefeating evidence'['", Vma sugestao inicial e a de que seja introduzida uma quarta condicao, exigindo que que nao haja nenhuma proposicao verdadeira que refute ou destrua a justificacao considerada. Sem maiores especificacoes, podemos fonnular essa condicao como se segue:

(iv') Ajustificacao que a tern para crer na verdade de p baseada na evidencia e, nao pode ser refutada pela conjuncao de e com uma verdade qualquer t.

Segundo essa proposta, conhecimento e crenca verdadeira justificada e nao destrufda por uma refutacao, Com efeito, em todos os

Page 85: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

82

exemplos apresentados ate agora, sempre encontramos proposicoes verdadeiras que, em conjuncao com a proposicao que serve como evidencia, desfazem a sua funcao justificat6ria. Esse e 0 caso das informacoes de que 0 rel6gio estava parado, de que 0 verdadeiro presidente em 1996 era Fernando Henrique Cardoso, de que a transmissao na TV era apenas de urn reprise do jogo do ano anterior.

Mas ha urn problema: refutacoes podem ser elas pr6prias refutadas! 0 seguinte exemplo mostra como uma justificacao refutada pode ser restaurada por uma nova evidencia:

Exemplo 5: Suponhamos que Mario creia na verdade de p: que a sua mulher se encontra no trabalho. Sua crenca em p e justificada pela proposicao evidencial e, segundo a qual e horario de trabalho e hoje e dia 11tH. Mas ele nao esta a par da evidencia expressa por r, ou seja, do fato de que ela havia marcado uma consulta com 0 medico para hoje nesse exato horario. Se Mario soubesse disso, ele concluiria obviamente que ela nao se encontra no trabalho. Assim, r destr6i a sua justificacao, No entanto, ele tambem nao esta a par da verdade s, que afirma 0 fato de que a sua mulher recebeu esta manha urn telefonema do medico adiando a consulta. Como vemos, s restauraa validade dajustificacao dep pore, que fora destruida por r. Com isso somos outra vez inclinados a dizer que Mario sabe que p!

A refutacao da refutacao da justificacao e sempre possfvel, podendo ser imaginada tambem para outros casos: assim, considerando o exemplo 3, pode acontecer que 0 aparelho de TV de Alfonso esteja desregulado, e que embora ele tenha ligado 0 canal 11, no qual passava o reprise, 0 que ele realmente assistiu foi a transmissao do jogo atual feita por alguma outra ernissora... 0 que precisa ser encontrado passa a ser por isso uma condicao que estabeleca em termos precisos que a evidencia justificacional adequada nao e refutada por urn balanceamento de verdades resultante da consideracao do conjunto total das evidencias.

Uma tentativa de precisar tal concepcao, recentemente proposta por P. K. Moserf?', consiste na introducao de uma quarta condicao que exige que, sempre que a evidencia for refutada, deva existir uma proposicao verdadeira capaz de, conjugada aproposicao refutadora da

Page 86: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

83

evidencia, restabelecer a forca justificacional desta ultima. Essa exigencia foi assim formulada:

(iv") A evidencia e para uma conclusao p deve ser veritativamente sustentada no seguinte sentido: para toda proposicao verdadeira t que, conjugada a e, destr6i a justificacao que a tern para p com base em e, ha uma proposicao verdadeira t' que, quando conjugada a e & t, restaura a justificacao de p para a do modo como ele esta efetivamente justificado em crer que p.(21)

o conhecimento proposicional define-se, pois, como a crenca verdadeira justificada que e veritativamente sustentada pelo conjunto total de evidencias. Assim, no exemplo 5, a crenca de Mario em p com base em e e refutada por r (t); mas ha uma verdade s (t'), de que a consulta foi desmarcada, a qual, conjugada a r, restaura a justificacao de p. No exemplo do carro ganho por Marta, temos as proposicoes res, que refutam a justificacao que Carlos tern para p; como falta aqui uma verdade t' que reestabeleca a justificacao de p com base em q, esse deixa de ser urn caso de conhecimento.

Essa ultima solucao responde aos contra-exemplos do tipo Gettier ate aqui considerados. Mas posso imaginar ao menos urn exemplo que ela falha em explicar. Suponha-se que ao exemplo 3 seja adicionada a informacao t': "0 televisor de Alfonso esta desregulado, embora ele nao saiba: ele ligou 0 canal 11, mas 0 prograrna que ele viu foi 0 do canal 21, querealmente apresentou ojogo atual do Gremio". Nesse caso a refutacao foi refutada, e devemos concluir que Carlos sabe que p. Mas suponha-se que, em adicao a isso, se venha a adicionar a seguinte (nao importa 0 quao implausivel) informacao t": "No momento em que Alfonso ligou a TV havia uma interferencia X, atraves da qual, apesar do defeito no aparelho, a transmissao por ele vista foi a do canal 11". Nesse caso, devemos concluir outra vez que Alfonso nao sabe que p. Mas como a condicao (iv") acima considerada nao leva em conta nenhuma evidencia relevante ulterior a expressa por t', deveriamos

Page 87: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

84

segundo ela ter aqui urn caso de conhecimento, inclusive porque p euma proposicao verdadeira. Conclusao: a quarta condicao proposta por P.K. Moser falha em resolver certos casos nos quais outras evidencias refutadoras alem de t' sao adicionadas...

Ainda que seja possfvel desenvolver uma solucao refutacionista capaz de dar conta de forma precisa de todos os contra-exemplos do tipo Gettier, restara uma dificuldade intrfnseca e incontornavel'P', Essa dificuldade decorre da seguinte consideracao. Como a adicao de novas verdades sempre podera desequilibrar novamente 0 balanceamento das crencas, para que se possa justificar uma crenca, torna-se necessario levar em conta 0 conjunto total de evidencias; essa exigencia de se considerar 0 conjunto total das evidencias vale tanto para solucoes que exigem justificacoes nao-refutadas, como tambem para solucoes que exigem que ajustificacao nao seja relevantemente fundada em evidencia falsa. Ora, uma tal exigencia euma ficcao, que desconsidera 0 atualismo de nossas intuicoes sobre 0 conhecimento: se admitimos que alguem sabe que p, somos sensfveis as evidencias de que realmente dispomos, nao ao que ocorreria se novas evidencias viessem a entrar em questao, Alem disso, essa euma exigencia forte demais: como nunca chegamos a ter acesso a todas as evidencias, 0 conhecimento parece tornar-se impossfvel, Essa dificuldade eimportante, e mostra que algo deve estar errado com essa maneira de abordar 0 problema.

No que se segue quero elaborar uma solucao muito diversa, que nos permite lidar de forma generica com todos os exemplos e que nao exige 0 insustentavel recurso ao conjunto total de evidencias.

6. PROPONDO UMA SOLU~AO CONSERVADORA: A RELA~AO INTERNA ENTRE AS CONDI~6ES (I) E (III)

A solucao que quero desenvolver aqui nao parte de uma tentativa de responder diretamente aos contra-exemplos do tipo Gettier, mas de uma analise explicitadora de elementos pragmaticos envolvidos na definicao tradicional, a qual relaciona entre si as duas condicoes que

Page 88: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

85

costumam ser inferencialmente determinaveis, que sao (i) e (iii). Na definicao tradicional do conhecimento, tal como ela tern sido apresentada, nao se explicita nenhuma dependencia entre as condicoes necessarias, Isso e, porem, uma falha em se expor parte do que e intuitivamente considerado em nosso entendimento da definicao, Ha de fato uma relaciio logica implicita entre a condicao (i), de que p seja verdadeira, e a condicao (iii), de que a tenha uma justificacao adequada para a sua crenca emp. Tal relacao deixa-se formular pelo que chamaremos de requisito de adequaciio justificacional, ou:

RAJ A justificacao dada por a para a sua crenca em p deve ser tal que ela seja por nos considerada como capaz de estabelecer a verdade de p.

Em outras palavras: nos so julgamos que a sabe que p quando a justificacao que a oferece para a sua crenca fizer parte daquilo que estamos em condicoes de reconhecer como sendo uma razao suficiente para 0 estabelecimento da verdade de p(23). E a nao-explicitacao dessa relacao que faz com que surja 0 problema de Gettier, que consiste na apresentacao de exemplos nos quais a justificacao dada para a crenca em p nada tern a ver com as razoes que estamos dispostos a admitir para o reconhecimento da verdade de p. A solucao do problema nao consiste, nessa perspectiva, em se propor uma quarta condicao, mas em se notar que se a definicao tradicional for satisfatoriamente compreendida, entao os contra-exemplos realmente niio a satisfazem, por isso mesmo deixando de constituir casos de conhecimento.

Para elaborar essa sugestao quero primeiro explicitar aquilo que se encontra encoberto nas formulacoes usuais das condicoes de verdade e de justificacao constitutivas da definicao tradicional de conhecimento.

Comecemos com a condicao (i): a de que p seja uma proposicao verdadeira. 0 que temos em mente quando dizemos que 0 conhecimento implica em verdade? Essa questao nao costuma ser tematizada nas respostas ao problema de Gettier. Se considerarmos 0 que echamado de a condicao da verdade de p, a primeira impressao pode ser a de que se

Page 89: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

86

trata da verdade de p em si mesma, para todo 0 sempre: do valor de verdade absoluto de p, i.e., do valor de verdade de p na independencia de sua atribuicao por sujeitos conhecedores faliveis. A pr6pria forma Iogica "p e verdadeira", desconsiderando 0 sujeito, favorece essa interpretacao. Contudo, e claro que nao e assim. Se fosse assim, considerando a falibilidade de nossas atribuicoes de verdade, jamais poderiamos saber se p, sendo uma proposicao empfrica, e, no sentido indicado, verdadeira, e, por conseguinte, se a pessoa a sabe que p; s6 0

pr6prio Deus poderia avaliar se a possui ou niio conhecimento de p, posto que s6 ele, por ser infalivel e onisciente, seria capaz de saber qual e 0 valor de verdade de p em termos absolutos. Contudo, aquilo que logicamente s6 Deus pode conhecer, niio pode interessar aos homens.

De fato, quando, ao avaliar a existencia de conhecimento, admitimos que uma proposicao p e verdadeira, a atribuicao de verdade e sempre feita por nos atualmente, na medida em que julgamos que p satisfaz as condicoes de verdade ate agora disponiveis e que consideramos pertinentes. Isso e tornado bastante claro pelo fato de que com muita frequencia, aquilo que foi considerado verdadeiro no passado ja deixou de ser considerado verdadeiro, deixando com isso de ser considerado objeto de conhecimento, tambem podendo ocorrer 0 contrario. Eis urn exemplo hipotetico quanto ao futuro:

Exemplo 6: Suponha-se que Carlos nos faca a afirmacao p: "Os irmaos Wright fizeram voar 0 prirneiro veiculo auto-sustentado em 1903", e que ele justifique isso por alusao as fotos tiradas na ocasiao, ao relata de testemunhas etc. Diremos que Carlos sabe disso, afinal a sua crenca foi justificada e e incontestavelmente verdadeira. Suponhamos, porem, que descobertas historicas totalmente inesperadas venham a nos provar que certas informacoes acerca dos feitos dos irmaos Wright foram forjadas, que as fotos foram tiradas posteriormente, e que essa data foi inventada por razoes que ate agora nos eram completamente desconhecidas. Nesse caso, concluiremos que Carlos realmente niio sabia. Ele niio sabia, nao so porque a justificacao por ele apresentada foi refutada, mas tambem porque junto a isso a primeira condicao, a de que a proposicao p seja verdadeira, deixa de ser cumprida. 0 que

Page 90: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

87

consideramos, na definicao tradicional, como sendo 0 valor de verdade de p e, assim, relativo as evidencias de que atualmente dispomos e sempre passivel de ser alterado.

Fica assim claro que a condicao (i), da verdade de p, nao e ada verdade absoluta de p, independente de qualquer contexto dentro do qual temos acesso a ela. Se essa exigencia fosse feita, dado que urn valor de verdade absoluto de proposicoes inferenciais, na suposicao de que exista, nao poderia ser por nos como tal conhecido, seriamos levados ao ceticismo. Tambem nao pode ser admitido que a verdade de p seja estabe1ecida pela propria pessoa a: nesse caso, qualquer coisa que a decidisse estabelecer como verdadeira seria verdadeira, 0 que nos conduziria ao relativismo.

Trata-se, de fato, da verdade da proposicao p para nos, enquanto nao a tivermos refutado. 0 que queremos dizer ao estabelecer que p deve ser verdadeira e que, face aquelas evidencias de que atualmente dispomos, devemos considera-la verdadeira. E se nos consideramos p verdadeira, e com base na satisfacao das suas condiciies de verdade, i.e., com base no fato de que tal satisfacao nos proporciona justificacoes ate agora nao-refutadas. A atribuicao de verdade a p evidencia-se, assim, como sendo atualista e perspectivista. Ela e atualista, no sentido de que ela e feita com base em justificacoes que presentemente aceitamos; e e perspectivista no sentido de que isso e assim considerado do ponto de vista de quem julga se a sabe ou nao sabe que p. Normalmente usamos aqui 0 pronome pessoal 'nos'. Epara nos que p e ou nao e verdadeira, assim como e para nos que a sabe ou nao sabe p. Mas a quem se refere 0

pronome 'nos'? Primeiramente, aquele que julga se a sabe que p: 0 sujeito que atualmente ajuiza, que chamarei de sujeito ajuizador, 0 qual, em urn ato de fala, e aquele que profere 0 jufzo acerca do conhecimento/ nao-conhecimento que a tern de p. Por isso 0 pronome aparece na primeira pessoa. Se fosse apenas isso, contudo, ele apareceria na primeira pessoa do singular e nao do plural. 0 fato do pronome vir no plural mostra que ele alude tambem a uma conclusao aqual 0 sujeito ajuizador supoe que deveria chegar qualquerpessoa razodvel, de posse das informacoes relevantes por ele possufdas.

Page 91: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

88

Essas consideracoes tern repercussao no proprio definiens, da definicao de conhecimento: aSp euma definicao que pode ser enganosa, visto que nao explicita que se esta prentendendo uma definicao do conhecimento pretendido por a segundo a perspectiva de quem ajuiza essa pretensao.

7. EXPLICITA<:Ao E COMPLEMENTA<:Ao DA APRESENTA<:Ao FORMAL DA DEFINI<:Ao TRAD1C10NAL

Com base nas consideracoes recem efetuadas, encontramo-nos agora em condicoes de fazer uma explicitacao formal mais adequada de nossa concepcao intuitiva de conhecimento como crenca verdadeira justificada. 0 que precisa ser melhor explicitado e, primeiro, 0 definiens, e, quanto ao definiendum, a primeira e a terceira condicao.

Comecemos com 0 definiens. Devemos aqui introduzir s para designar 0 sujeito ajuizador do conhecimento, ou seja, aquele que ajuiza ou exprime em urn proferimento 0 seu juizo concernente as pretensoes de conhecimento manifestadas por a. Com isso, em vez de aSp, 0

definiens lorna a forma de

sS(aSp) =,

ou seja: s sabe que a sabe que p se e somente se... A caracterfstica de todas as nossas avaliacoes de conhecimento, de serem relativas ao ponto de vista do falante, do sujeito ajuizador das pretensoes de conhecimento, torna-se assim suficientemente explicitado. Eimportante notar, contudo, que 0 sujeito ajuizador s normalmente pressupoe que 0 seu juizo sera compartilhado por todos os outros sujeitos ajuizadores que disponham das mesmas informacoes que ele, 0 que inclui urn auditorio e, geralmente, o proprio a. Isso e atestado pelo uso frequente da palavra 'nos' em avaliacoes de conhecimento. Exemplificando: se, como sujeito ajuizador, considero ser verdadeiro que Cristovao Colombo nao sabia que nao havia chegado as Indias, pressuponho que 0 leitor, de posse das mesmas

Page 92: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

89

informacoes, concordara comigo, inclusive porque emateria de consenso que e falso que ele tenha chegado as Indias, Quanto ao pr6prio Colombo, tambem suponho que, como sujeito ajuizador potencial, ele nao teria dificuldade em concordar conosco que era injustificada a sua pretensao de Ter chegado as Indias.

Para redefinir a primeira condicao, devemos cornecar introduzindo J* para designar 0 corpo de razoes ou justificacoes que s, no momenta de sua avaliacao, admite como sendo capazes de individualmente justificar a verdade de p. J* defme-se como uma classe, cujos constitufntes sao razoes ou justificacoes que s considera, no momenta de sua avaliacao, admissiveis por ele e por qualquer sujeito ajuizador potencial, como sendo individualmente suficientes para garantir a verdade de p. 0 mimero de razoes que nos permite concluir que algo e verdadeiro e muitas vezes indeterminado, e J* e constituido apenas por aquelas razoes que sao presentemente dadas a s. Se J* tiver ao menos urn membro, considerando que cada membro e por definicao suficiente para estabelecer a verdade de p, isso ja sera suficiente para que s considere a proposicao p verdadeira. Podemos agora reformular a condicao de que p seja verdadeira relativamente as. Ela fica sendo:

(i-e) sS(J*p & (J*p ---7 p)).

sSJ*p diz que 0 sujeito ajuizador tern acesso a urn corpo justificacional J* para 0 conhecimento do valor de verdade de p. Como esse corpo de justificacoes pode ser uma classe vazia - caso no qual s nao possui justificacoes para crer na verdade de p, caso no qual ele deve considerar p uma proposicao falsa -, s6 isso nao nos diz se p e ou nao e uma proposicao verdadeira. 0 segundo membro da conjuncao, contudo, s6 sera verdadeiro se J* implicar a verdade de p, ou seja, se J* nao for uma classe vazia. Ora, (i-e) s6 sera uma conjuncao verdadeira se ambos os membros dela forem verdadeiros, ou seja, se stiver acesso cognitivo a J* e se J* incluir como membro ao menos uma condicao suficiente para a verdade de p. Disso resulta, no entanto, 0 mesmo que a afirmacao up e verdadeiro" da condicao (i) da formalizacao usual, posta que da

Page 93: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

90

verdade de ambos os membros de (i-e) se deixa derivar, pelo modus ponens, a verdade de p. A diferenca e que a formulacao que estou propondo explicita claramente que p everdadeiro "para nos", ou seja: para 0 sujeito ajuizador s e para todos os que tiverem acesso as mesmas razoes.

Explicitemos agora a terceira condicao, de modo a evidenciar a sua relacao com a primeira. A condicao (iii), alCp, esta ligada a p, nao so pela verdade de p, mas tambem porJ. Eque a evidenciajustificacional que a oferece para a sua crenca em p deve ser um elemento constituinte do corpo de justificacoes que podemos admitir para a verdade de p. Se, por exemplo, Carlos diz que os irmaos Wright fizeram voar 0 primeiro aviao e justifica isso por alusao as fotos, aos testemunhos historicos, e porque isso pode ser por nos aceito como constitufnte do conjunto de evidencias que os sujeitos ajuizadores podem admitir como sendo cada qual capaz de justificar suficientemente a verdade de p. E isso 0 que queremos dizer quando requeremos que a justificacao para a crenca de a na verdade de p seja adequada. A terceira condicao deve incorporar RAJ, 0 requisito de adequacao justificacional, tomando-se relativa ao que se deixa abranger no domfnio das condicoes capazes de tomar p verdadeira.

Simbolizando a relacao considerada entre J e J* como J E J* (J pertence a classe J*), podemos dizer que a pessoa a esta justificada em crer que p somente quando a sua justificacao pertence ao corpo de justificacoes J*, ao qual s tern acesso, sendo, pois, uma condicao suficiente para a verdade de p. Formalmente, a terceira condicao pode ser explicitada como

(iii-e) sS(aJCp & (J E J*»,

o que, para ser verdadeiro, exige nao somente que a tenha uma justificacao para a sua crenca em p, mas que essa justificacao seja parte de J*. Nessa formulacao, 0 primeiro membro dadefinicao epropriamente a condicao (iii) da formalizacao usual, enquanto 0 segundo membro constitui-se na adi~ao de RAJ: 0 requisito de adequacao justificacional.

Page 94: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

91

Com isso, as condicoes constitutivas da definicao tradicional podem ser reconstrufdas de modo a fazer juz e explicitar mais completamente 0 que 0 senso comum percebe como sendo intuitivamente correto na ideia de que conhecimento e crenca verdadeira justificada. Eis 0 que chama de uma definicao explicitada do conhecimento proposicional:

(Def. e) sS(aSp) - sS(J*p & (J*p ~ p)) sS(aCp) & sS(aJCp & (J E J*)).

Essa nao eobviamente a unica maneira de explicitar formalmente nosso entendimento do que seja 0 conhecimento proposicional. Mas ja basta para tomar evidente 0 papel do sujeito ajuizador e da relacao entre a condicao de justificacao e a condicao de verdade estabelecida por este sujeito - condicoes que antes apareciam como se fossem independentes uma da outra.

Se considerarmos agora a aplicacao dessa versao explicitada da definicao tradicional aos exemplos do tipo Gettier, veremos que 0

problema a eles relacionado desaparece. Nao satisfazendo a condicao RAJ, toma-se evidente que eles nunca satisfizeram nosso entendimento intuitivo do conhecimento como crenca verdadeira justificada; eles pareciam satisfaze-Io, apenas porque ele nao estava sendo suficientemente analisado e adequadamente aplicado. Em todos os exemplos do tipo Gettier, recusamo-nos, com s, a admitir a justificacao que a tern para crer em p como constituinte do corpo de razoes J*, que somos capazes de admitir como tomando p uma proposicao verdadeira, devendo disso concluir que a definicao de conhecimento nao esta sendo satisfeita. Para tomar isso claro, reconsideraremos a seguir alguns dos exemplos.

No exemplo 3, posso imaginar que sei que Alfonso justifica 0

seu conhecimento de p por meio de uma proposicao falsa, digamos, porque ao faze-lo ele me contou ter ligado 0 canal II(e), no qual sei ter sido transmitido apenas urn reprise; outros poderao confirma-lo. Como

Page 95: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

92

estou de posse do conhecimento de que 0 canal 11 transmitiu urn reprise do jogo do ano passado (r), isso falseia (e), tornando-o inadequado para justificarp, pois por principio nao pertence aJ*. Pode serque eu mesmo diga isso a Alfonso, quando quero mostrar-lhe que ele na verdade nao sabia. De posse dessas informacoes, Alfonso concordara cornigo, pois ele deve pertencer aclasse dos sujeitos ajuizadores potenciais. Note-se que aquele que ajuiza se a sabe p (no caso, eu mesmo) ealguem que esta ciente da justificacao dada por a para a sua pretensao de conhecimento, aqual se adicionam geralmente outras informacoes. Mas pode ser que nao haja nenhuma informacao a ser adicionada ajustificacao apresentada por a, ou seja, que J seja identico ao que 0 sujeito ajuizador sabe de J*, ou mesmo que as justificacoes dadas por a incluarn tudo 0 que esta em J*. 0 primeiro caso ocorreria quando 0 proprio a quer certificar-se para si mesmo que esta sabendo p, recordando-se da justificacao; 0 segundo caso poderia ser 0 de alguem querendo testar a competencia de a, como especialista no assunto que inclui p.

Consideremos agora 0 exemplo 1. Nesse caso s, aquele que vern a ajuizar que a nao sabia, ea propria pessoa a, em urn momento posterior. Lia ve que 0 seu relogio de pulso mostra 9 horas (e); disso ela conclui que sao 9 horas (P). Que isso everdade, ela propria confirma a seguir, digamos, ao ver que 0 relogio da praca rnarca 9 horas (r). Mas agora ela mesma constata, com surpresa, que 0 seu relogio ha muito deve estar parado, por the ter sido retirada a bateria (s). Nesse caso, a verdade de p einicialmente justificada por e e por r. Lia, como urn sujeito ajuizador que se auto-corrige, ere inicialmente que e forma base para uma justificacao que pertence a J*. Mas a adicao da informacao s, forrnando a conjuncao "s & e", exclui a justificacao com base em e do corpo de justificacoes aceitaveis para a verdade de p.

Passemos agora ao exemplo 5: Carlos tern a evidencia e parap, a proposicao de que a sua esposa esta no trabalho. Aqui J pertence ao corpo de justificacoes J* por nos aceito, visto que embora conhecamos r, a proposicao segundo a qual a esposa de Carlos marcou uma consulta para este horatio, estamos tambem de posse de s, que, afirmando 0

adiamento dessa consulta, neutraliza r, refutando uma suposta refutacao

Page 96: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

93

da justificacao por r, e nao estamos de posse de nenhuma outra informacao que refute tais verdades. Note-se que aquele que ajuiza nao precisa conhecer todas as verdades. Ele estabelece quais as razoes que podem pertencer ao corpo de justificacoes com base nas informacoes que atualmente possui, ainda que essas informacoes - e consequentemente o corpo de justificacoes - sejam (no conhecimento ernpfrico) sempre passiveis de alteracao e ampliacao, A avaliacao do conhecimento de a e, como notamos no inicio, atualista e perspectivista; ela e relativa a informacao atual daquele que ajuiza 0 conhecimento.

Note-se que em nenhum dos casos aquele que ajuiza nao precisa conhecer todas as verdades. Ele estabelece quais as razoes que podem pertencer ao corpo de justificacoes com base nas informacoes que atualmente possui, ainda que essas informacoes - e, consequentemente, o corpo de justificacoes suposto - sejam (no conhecimento empirico, ao menos) sempre passfveis de alteracoes e ampliacoes. A avaliacao do conhecimento de a e, como notamos no infcio, atualista e perspectivista - ela e relativa a informacao atual daquele ou daqueles que ajuizam 0

conhecimento.

8. CONSEQUENCIAS DA ADOC;Ao DA DEFINIC;Ao TRADI­ClONAL EM SUA FORMA EXPLICITADA

o que essas explicacoes mostram esta em conformidade com a nossa intuicao, que tende a considerar que contra-exemplos do tipo Gettier, pela estranheza de suas justificacoes, de fato nao satisfazem a definicao de conhecimento: tais justificacoes nao nos parecem adequadas. Na definicao explicitada, a propria ideia de adequaciio da justificacao, que nao havia sido esclarecida na primeira versao da definicao tradicional, e formalmente resgatada pelo RAJ, a condicao de que J pertenca a J*, a classe das razoes que podemos admitir como sendo condicoes suficientes para tomar p urna proposicao verdadeira.

As formas explicitadas da definicao tradicional de conhecimento possuem, com relacao as outras solucoes, a vantagem de nao permitirem que qualquer justificacao baseada em evidencia verdadeira e nao refutada

Page 97: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

94

possa ser aceita. Considere-se os seguintes exemplos de pretensa justificacao episternica:

7. Alfonso justifica a sua pretensao de saber que 0 Gremio venceria com base no fato de ter sonhado que isso iria ocorrer.

8. Mario afirma saber que 0 Gremio venceria, por ter ganho todas as partidas jogadas ate entao,

9. Arthur diz que sabia que 0 Gremio iria veneer porque 0 dia amanheceu nublado.

Supondo-se que 0 Gremio venceu a partida e que as referidas pessoas acreditam nisso, e supondo-se que as evidencias apresentadas sejam verdadeiras e nao-refutadas, parece que pela definicao deveremos considerar os exemplos 7, 8 e 9, mesmo adicionando uma quarta condicao, como sendo casos de conhecimento. Alem do que foi apontado pelos contra-exemplos do tipo Gettier, ha toda uma variedade de insuficiencias e aberracoes justificacionais, como e 0 caso de justificacoes baseadas em caprichos, fantasias, supersticoes, preconceitos, evidencias irrelevantes... Tais inadequacoes sao bern mais comuns do que aquelas apontadas por Gettier, mas ninguem pensou em eleva-las ao nivel de contra-exemplos da definicao tradicional, talvez por serem demasiado obvias, Na verdade, sao rmiltiplas as maneiras pelas quais justificacoes podem ser inadequadas, e nem a definicao explicitada nem nenhuma outra ira prover condicoes suficientes para a identificacao da adequacao de justificacoes em casos individuais. Nessas circunstancias, a formulacao explicitada da definicao tradicional prove uma formula geral para tal identificacao: ela nos dira que os tres exemplos acima nao constituem casos de conhecimento, posto que as justificacoes apresentadas nao sao adequadas, e que elas nao sao adequadas porque nao as consideramos suficientes para tomar p verdadeiro, 0 que e urn requisito para que J possa ser elemento de J*.

Uma outra vantagem da formulacao explicitada, com relacao as outras aproximacoes consideradas, e que ela resolve 0 problema que haviamos deixado sem solu~ao ao final da discussao dessas solucoes:

Page 98: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

95

ela niio exige a consideraciio do conjunto total de evidencias. A existencia de urn conjunto J* nao vazio, ou seja, capaz de implicar p, e reconhecida por quem ajuiza se a sabe que p, com base no conjunto de informacoes e evidencias de que ele atualmente dispoe, cujo assentimento daparte de outros sujeitos ajuizadores potenciais epor ele presumido. E J e admitido sem discussao como constitufndo justificacao adequada, caso aquele que ajuiza puder admiti-lo como pertencendo a J*. Isso faz juz ao atualismo de nosso conceito de conhecimento, pois nao se faz necessario que conhecamos mais que uma pequena parte do corpo de evidencias total. Algo bern diverso ocorreria se a verdade a ser exigida fosse absoluta: nesse caso, ao menos para 0 conhecimento empirico, nao parece que terfamos outra opcao para estabelecer J*, que nao fosse a de buscar uma totalidade ilimitada de evidencias.

Qual e, em tal contexto, 0 lugar de solucoes que introduzem uma quarta condicao, como a de que a justificacao nao pode em sua fundamentacao pressupor uma proposicao falsa para ela relevante, ou a de que uma justificacao nao pode ser refutacla por uma verdade que no balanceamento da totalidade das verdades, permanece irrefutada? Ora, elas podem ser adicionadas como subcondicoes da condicao de justificacao adequada, necessarias para que uma justificacao J possa pertencer a J*. Assim, a condicao de que uma proposicao evidencial adequada nao possa ter urn fundamento falso pode ser introduzida como uma subcondicao para que J possa pertencer a J* no esquema definit6rio. E a condicao de nao-refutacao da evidencia justificat6ria tambem se incorpora ao esquema definit6rio como uma subcondicao para que J possa pertencer a J*, perdendo nisso aquilo que a tomava metafisica e irrazoavel: 0 apelo a totalidade das evidencias, Tudo 0 que se passa a exigir nesse domfnio eque uma justificacao adequada seja tal que a sua evidencia nao seja refutacla aluz da totalidade das evidencias disponiveis ao sujeito ajuizador atual, de maneira a poder pertencer a J*.

Niio obstante, a elucidacao dessas subcondicoes parece servir menos como uma contribuicao para uma definicao geral de conhecimento proposicional, do que como uma contribuicao para uma teoria da justificacao epistemica; pois exigir que a definicao de conhecimento

Page 99: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

96

proposicional contenha uma teoria da justificacao epistemica relativa a terceira condicao seria tao pouco razoavel quanto exigir que tal definicao contivesse uma teoria da crenca para a condicao (ii) e uma teoria da verdade para condicao (i). Essa exigencia deriva de uma confusao entre diferentes pIanos de analise, possibilitada, alias, pela falta de uma analise das relacoes intemas entre as condicoes inferencialmente deteminaveis,

A solucao aqui proposta pode ser vista como insatisfatoria para quem esperava mais de uma definicao de conhecimento proposicional. De fato, 0 seu rendimento e limitado: a definicao tradicional de conhecimento proposicional nao so ebastante vaga, mas nao nos oferece qualquer analise mais detalhada das condicoes que uma justificacao pode precisar satisfazer para poder ser aceita como pertencente ao corpo de justificacoes J*, especialmente em ambitos mais particulares. Contudo, pedir isso significa ir alem de uma definicao geral de conhecimento proposicional e passar ao domfnio de uma teoria da justificacao epistemica, sendo na verdade para essa ultima que muita discussao equivocada em tomo do problema de Gettier mais tern contribufdo. 0 esquema definit6rio que estivemos estudando diz respeito a algo muito generico, que e 0 conceito de conhecimento proposicional. Conceitos tao gerais sao irredutivelmente vagos, e tudo 0 que podemos esperar de uma definicao eque ela de conta da maneira vaga como os entendemos e aplicamos.

9. SERIA A DEFINIC;AO TRADICIONAL EXTENSIvEL?

Outra questao pertinente e se nao haveriam relacoes entre a definicao tradicional de conhecimento proposicional e formas nao­proposicionais de conhecimento. Sugiro que a nocao de conhecimento proposicional aqui analisada eparadigmatica, sendo aplicada as outras duas formas derivativamente; eporque em alguma medida a definicao tradicional tern a ver com essas outras formas de conhecimento que tambem usamos a palavra 'conhecimento' para nos referirmos a elas.

Para tornar isso plausfvel, consideremos primeiro 0

conhecimento de particulares. Se digo que conheco a cidade do Rio de

Page 100: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

97

Janeiro, is so pode ser, ao menos em certa medida, reduzido ao conhecimento de umconjunto de proposicoes identificadoras da cidade, como "A praca 11 fica na Lapa", "0 trem para 0 Corcovado parte do Cosme Velho" etc. 0 conhecimento dessas proposicoes, por sua vez, exige crenca verdadeira justificada. E verdade que as imagens e experiencias que guardo da cidade do Rio de Janeiro - aquilo que seria apropriadamente nomeado pelo termo 'farniliaridade' (acquaintance)­nao podem ser inteiramente traduzidas em palavras; mas ao menos em certa medida isso e possfvel, Ao menos enquanto 0 conhecimento de particulares puder ser reduzido ao conhecimento proposicional, ele cai no dornfnio da definicao tradicional, e essa poderia ser a razao pela qual a nocao de conhecimento e estendida a esses casos.

E quanto ao conhecimento como habilidade? A definicao tradicional de conhecimento pode ser em algurna medida a ele estendida, posto que ha urn equivalente comportamental para a satisfacao de cada uma de suas tres condicoes. Digamos que Alfonso tenha 0 seguinte conhecimento como habilidade: ele sabe dirigir motocicletas. Dizemos que ele sabe porque e capaz de dirigir motocicletas e porque ele tern condicoes de provar-nos isso dirigindourna motocicleta 0 que observamos aqui sao condicoes paralelas e equivalentes as da definicao tradicional. Nao ajuizamos se a sabe a verdade da proposicao p, mas se a sabe realizar urna ~ao f Para tal, as tres condicoes a ser satisfeitas sao:

(i) que seja verdade que a e capaz de realizar a a~aof(e verdade que Alfonso dirige motos);

(ii) a tern uma habilidade, uma disposicao para, em dadas circunstancias, realizar a a~ao f(Alfonso e capaz de dirigir motos);

(iii) a disposicao possuida por a para realizar a a~ao f pode ser justificada atraves de sua propria realizacao (Alfonso prova que sabe,dirigindo urna moto).

Essas tres condicoes sao equivalentes as do conhecimento proposicional, com a diferenca de que 0 saber possufdo por a nao e

Page 101: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

98

cognitivo - uma habilidade nao eurn ato de consciencia, embora se possa ter consciencia dela. Embora nao seja requerida uma crenca, como disposicao para assentir, erequerida a habilidade, como disposicao para fazer. Finalmente, ao inves de uma justificacao consciente, temos uma demonstracao pratica da habilidade. Ha inclusive urn equivalente ao RAJ, posto que a demonstracao pratica so faz sentido se for entendida como uma prova de que everdade que a ecapaz de realizarj. Assim, eplausivel supor que 0 conceito de conhecimento se aplica ao "saber fazer" por derivacdo, devido ao seu paralelismo com 0 esquema tripartite definidor do conhecimento proposicional.

10. CONCLUSOES

Os argumentos desenvolvidos ate aqui mostram que a definicao tradicional de conhecimento nao precisa ser substitufda por outra mais adequada, nem complementada pela adicao de novas condicoes: 0 que ela requeria era uma analise mais detalhada de cada uma de suas condicoes e do modo como elas se inter-relacionam, e foi isso 0 que foi aqui desenvolvido.

Vimos que as objecoes adefinicao tradicional sao dirigidas as condicoes definicionais isoladas, como condicoes necessarias, ou a conjuncao dessas tres condicoes, ou seja, a propria definicao como condicao suficiente. Quanto as objecoes anecessidade de cada uma das condicoes em particular, nao encontramos dificuldades em responde-las de maneira plausivel, mediante uma adequada analise dos contra­exemplos sugeridos.

A objecao a definicao como fonnando uma condicao suficiente ea que se deriva dos contra-exemplos do tipo Gettier. Para responde-Ia, recorremos a uma abordagem pragmatica: uma analise do que realmente acontece quando avaliamos pretensoes de conhecimento com base na definicao tradicional. Isso evidenciou a existencia de relacoes logicas implicitas entre a condicao de verdade e a condicao de justificacao, relacoes essas que tornam possivel evidenciar quando e licito considerarmos uma justificacao adequada. Isso evidenciou que 0 que

Page 102: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

99

entendemos intuitivamente por conhecimento, e que as formulacoes da definicao tradicional tentam resgatar, incorpora de forma tacita 0 que chamamos de requisito de adequacao justificacional, segundo 0 qual aquilo que a oferece como justificacao para a sua crenca em p tern de estar entre aquilo que estamos em condicoes de admitir como tornando o enunciado p verdadeiro. Epor nao satisfazer a essa condicao que os exemplos de Gettier tambem nao satisfazem a definicao tradicional de conhecimento, tal como ela foi aqui explicitada. Nao ha, portanto, nada de errado com a definicao tradicional, afora a maneira insuficientemente explicitada como ela tern sido apresentada. Quanto as exigencies de condicoes adicionais que alguns fil6sofos propuseram, como a de que a evidencia se baseie em verdades, ou a de sua nao-refutacao por outras evidencias (ambas, no fundo, aproximadas), podemos admiti-las, mas nao ao nivel das tres condicoes basicas, mas sim como subcondicoes da condicao de justificacao. Se fizermos isso, uma condicao como a da nao-refutacao deixa de ser problematica, por definir-se como nao­refutacao por parte das evidencias atualmente possuidas pelo sujeito ajuizador do conhecimento. Essas exigencias adicionais encontram-se, no entanto, em urn nivel menos geral do que 0 do esquema definicional, dizendo respeito a uma teoria da justificacao epistemica, e nao mais ao problema de se estabelecer uma definicao generica do conhecimento proposicional. Com base nessas consideracoes, creio poder sustentar que a versao explicitada da definicao tradicional proporciona a solucao definitiva para 0 problema da natureza do conhecimento proposicional. Com base nessas consideracoes, sustento que a versao explicitada da definicao tradicional proporciona a solucao definitiva para 0 problema da natureza do conhecimento proposicional.

Em uma reconsideracao das outras formas de conhecimento, foi finalmente sugerido que 0 esquema definit6rio do conhecimento proposicional poderia ser em certa medida estendido a elas, e que a propria possibilidade dessa extensao seria a razao tacita pela qual tambem as chamamos de conhecimento. No caso do conhecimento de particulares, isso pode ser demonstrado na medida em que ele puder ser substituido pelo conhecimento de urn feixe de proposicoes descritivas acerca do

Page 103: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

100

individuo em questao, as quais podem ser analisadas em termos de conhecimento proposicional. No caso do conhecimento como habilidade, e plausfvel supor que 0 conceito de conhecimento seja aqui usado em uma aplicacao derivativa, devido a uma certa similaridade entre as condicoes pelas quais avaliamos 0 "saber fazer" e as tres condicoes necessarias ao conhecimento proposicional. Nesse caso ha uma proposicao implfcita envoIvida, que e a de que a pessoa a sabe realizar uma a~ao f. Tal proposicao, que resgata 0 saber fazer, so everdadeira se forem satisfeitas tres condicoes paralelas as da definicao tradicional: (i) everdade que a e capaz de fazerf, (ii) a ecapaz de, em certas condicoes, fazerf, e, (iii) que a ecapaz de fazerf edemonstrado pela realizacao de f por a.

Notas

1 Platao sugeriu algo assim nos dialogos Menon (97e-98a) e Teeteto (201c­202d). Convem lembrar que a mencao a Platao ou a qualquer outro fil6sofo e uma homenagem ao senso comum, mais do que a eles pr6prios. Na verdade, Platao s6 qualificaria como conhecimento uma crenca verdadeira justificada, cuja verdade fosse sabida como necessaria, visto que ele se orientava por urn modelo rnatematico de conhecimento (Cf. F.Rieken: Die Philosophie der Antike, Stuttgart 1988), p. 78). Contudo, nao egeralmente nesse sentido forte que ordinariamente usamos 0 conceito de conhecimento, mas em urn sentido mais fraco. N6s admitimos que as proposicoes acerca do mundo empfrico que julgamos conhecer possam ser falsas, que elas sejam contingentes, que os estados de coisas representados possam ser outros. Com a expressao 'definicao tradicional' nao pretendemos, pois, referir-nos a esse ou aquele fil6sofo classico, mas antes refletir 0 que 0 senso comum entende por conhecimento.

2 Cf. K. Lehrer: Theory ofKnowledge, Sao Francisco 1990,p.ll. 3 Retiro a sugestao de esclarecer a relacao entre crenca e conhecimento com

base na probabilidade do livro de F. von Kutschera, Grundfragen der Erkenntnistheorie, Berlin 1981, p. 2,0 qual, por sua vez, se reporta aos trabalhos de B. Finetti.

4 O'Connor, D. J. & B. Carr: An Introduction to the Theory of Knowledge, Sussex 1982, p. 68.

5 Ver D. M. Armstrong: Belief, Truth and Knowledge, London 1973, pp. 143-145.

Page 104: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

101

6 C. Radford: "Knowledge - by examples" Analysis, 27 p. 9. 7 D. M. Armstrong, op. cit., p. 145 ss. 8 P. K. Moser: Knowledge and Evidence, Cambridge 1989, p. 20 e ss. 9 D. M. Armstrong utiliza essa tenninologia (Cf. Op. cit., caps. 12, 13 e 14). lOA nocao de jogo ou pratica de conhecimento e a relacao entre proposicoes

de conhecimento e proposicoes fundamentadoras e considerada por Wittgenstein em Uber Gewij3heit (Frankfurt 1984) e explorada de forma esclarecedora por T. Morawetz em Wittgenstein on Knowledge: The Importance ofOn Certanity, Amherst 1978.

11 Cf. L. Wittgenstein, ibid., seccoes 10, 204, 348, 553. 12 Ver, por exemplo, D. W. Hamlyn: The Theory ofKnowledge, New York

1970, p. 110. 13 D. J. O'Connor & B. Carr, Ibid., pp. 74-75. 14 E. Gettier: "Is justified true belief knowledge?", Analysis 23 (1963), 121-3.

Para uma orientacao na extensa bibliografia relativa ao problema de Gettier, ver os entries sobre 0 problema de Gettier e conhecimento proposicional em J. Dancy & E. Sosa (eds.): A Companion to Epistemology, Oxford 1992.

15 Os primeiros dois exemplos foram adaptados de B. Russell: Human Knowledge: its Scope and Limits, New York 1948, pp. 154-5. 0 terceiro exemplo encontra-se exposto em J. Dancy: An Introduction to Contemporary Epistemology, Oxford 1985, p. 25. Exemplos como esses foram sugeridos na verdade muito antes do artigo de Gettier. A novidade do artigo de Gettier consiste no fato dele ter se utilizado de semelhantes exemplos em urn desafio explicito adefiniltiio tradicional de conhecimento (ver R. M. Chisholm: Theory ofKnowledge, cap. VI).

16 M. Clark: "Knowledge and Grounds: a comment on Mr. Gettier's paper" Analysis 24 (1963), p. 46.

17 M. Clark: Ibid., p. 47. 18 VerJ. Dancy: Introduction to Contemporary Epistemology, Oxford 1985, p. 28. 19 Uso 0 verbo 'refutar' na tentativa de encontrar urn equivalente ao verbo

Ingles 'defeat' (literalmente: 'frustrar', 'veneer') no senti do tecnico em que ele eusado aqui. Faco-isso por sugestao da traducao alema em P. Bieri (ed.), Analytische Philosophie der Erkenntnis (Weinhein 1994), onde 0 verbo usado e 'Widerlegen' (refutar). Ver K. Lehrer & T. Paxson Jr.: "Knowledge: undefeated, justified true belief', The Journal ofPhilosophy 66 (1969), 225­237, cuja traducao alema se encontra no volume editado por P. Bieri.

20 P. K. Moser: Knowledge and Evidence, Ibid. pp. 242-255.

Page 105: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

102

21 P. K. Moser: "Gettier problem", in: J. Dancy & E. Sosa: A Companion to Epistemology, ibid. p. 158.

22 J. Dancy: Ibid., p. 31. 23 Essa me pareceu, desde que me deparei pe1aprimeira vez com os exemplos de

Gettier, a resposta quase 6bvia. Procurando por algo seme1hante na literatura, acabei por encontrar uma posicao essencialmente identica, esbocada no texto de D. J. O'Connor e B. Carr (ver nota 4). Segundo esses autores, "a razao pela qual a proposicao e verdadeira nao deve ser independente dos fatos asseridos nas proposicoes que constituem os fundamentos da crenca" (p. 81) Nao mais do que eu, e1es acham surpreendente que em toda a discussao acerca do problema de Gettier nao tenha sido dada a semelhante altemativa 0 merecido destaque. Meu principal objetivo com esse artigo e0

de tentar resgata-la,

Page 106: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

o TIA8De; no HEROI NA ILlAnA

Elizabeth Maio da Nobrega

Resumo Esse trabalho procura demonstrar; que 0 paqoV do heroi, de Aquiles em particular, se instaura, entre outras colsas, em funciio de seu desejo de reconhecimento.

Por volta do ano 620 A.C. Dracon transfonnou em lei escrita, 0

que ja era costume entre seus ancestrais: que os deuses e her6is da patria fossem honrados conjuntamente.

Na avaliacao de Rohde' esse e talvez 0 mais antigo e segura testemunho que dispomos sobre 0 culto aos her6is gregos. No mais, tudo 0 que temos a esse respeito provern do que se conservou do acervo literario dos seculos VI eVIl. E, e principalmente atraves da poesia epica e lfrica que podemos ter acesso aexistencia do her6i.

Trata-se de uma das ideias mais fundamentais ainteligibilidade do pensamento religioso antigo grego. Para compreende-la e indispensavel

1 Erwin Rohde, Psyche, p. 121.

PrincipiosAno04,n05,p. 103-114, 1997

Page 107: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

104

que nossa atitude diante do texto seja de absoluto recolhimentol acolhimento. Epreciso nos despossuir do olhar modemo.

A analise etimologica da palavra indica que hrwV (heros) significa "0 guardiao, 0 defensor, 0 que nasceu para servir"2. Isso responde a pergunta, 0 que e 0 heroi", apenas no registro da lingua, posto que 0 que encontramos como resposta ao que indagamos, diz simplesmente do sentido etimologico de hrwV. Por essa razao talvez devessemos levantar outras questoes. Por exemplo, qual a origem do heroi? Ou melhor dizendo, que origem 0 grego antigo atribufa ao heroi? Humana? Divina?

Embora possamos concluir a partir do que fez Dracon, que estamos diante de uma categoria de seres superiores, objeto de culto e sacriffcios, como eram-no os deuses, pouco sabemos entretanto sobre seu carater e natureza.

Nao desconhecemos que os sacriffcios que honravam ora deuses ora herois, nao se eqiiivaliam no que conceme tempo, lugar e modo' . Aos deuses sacrificava-se em pleno dia; aos herois atardinha ou noite. o bomoV (bomos), altar sacrifical erguido aos deuses era alto e posta sobre uma base. A escara (eskhara) edificada aos herois, era uma lareira baixa quase ao nfvel do solo. Aos deuses imolavam-se animais de cor branca; aos herois, de cor preta e de sexo masculino. Cortava-se 0

pescoco da vftima erguido para 0 ceu, quando esta era dedicada ao deus. A oferenda destinada ao heroi era decepada com 0 pescoco voltado para a terra. Mas a diferenca mais fundamental, entre esses numerosos procedimentos Iinirgicos, reside no modo como 0 final do sacriffcio era encaminhado. A cerimonia celebrada aos deuses ocorria como qusia (thysia), e nessas circunstancias parte da vftima era queimada, mas a melhor era consumida pelos ofertantes. 0 culto em honra dos herois assumia 0 carater de enagismoV (enaguismos), ou seja rito fiinebre. Neste caso a vftima era inteiramente queimada, posta que se tomara

2 Junito de Souza Brandao, MitologiaGrega, ~ V, p. 15. 3 Erwin Rohde, op. cit., p. 123 e ss. a. tambernjunito de Souza Brandao, op. cit.,

p. 16 e ss. e ainda Karl Kerenyi, as her6is gregos, p. 19.

Page 108: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

105

sagrada no momenta em que fora ofertada aos mortos. Em decorrencia disso era interditado aos humanos 0 consumo de tal carne.

Essas sao, grosso modo, as diferencas e semelhancas de procedimentos, que caracterizavam os cultos realizados seja em intencao dos deuses, seja dos her6is.

Tal analise comparativa foi 0 inicio da polemica que se instaurou entre os helenistas a prop6sito da origem do her6i, e os argumentos que daf decorreram nem sempre serviram de caucao amesma conclusao.

Comecemos com Rohde. Dado 0 carater sue into de sse trabalho abster-nos-emos de

reproduzir aqui 0 raciocinio demonstrativo do brilhante fil6sofo, que a partir do cotejo dos dois cultos" chega a seguinte conclusao: o nascimento do her6i esta situado numa crenca antiga pre-homerica, que 0 concebe como espirito. Espirito de urn homem morto, que notabilizara-se entre os homens. As representacoes que 0 concebem 0

remetem a urn passado longfnquo. Seu culto e0 culto ao ancestral. Esses ancestrais foram os fundadores dos agrupamentos politicos, municipais e farniliares. E como sua adoracao esta relacionada ao lugar em que foi sepultado, 0 heroi mantem vinculos estreitos com as divindades ctonias, com quem divide poderes e influencias sobre os homens' . Por essa razao, alias, seu altar econstruido pr6ximo ao solo.

Por outro lado, para Kerenyi? a hist6ria do her6i esta profundamente entrelacada com ados deuses. Mas alguns her6is acabam fazendo parte do tempo hist6rico. Ao contrario de Rohde nao se preocupa em atribuir ao her6i uma origem primeva. Fala de her6is como de seres que certamente existiram seja factualmente seja na poesia. E se urn dia existiram na hist6ria, safrarn desta para perpetuar-se na lenda. Provar a

4 Caminhamos aqui no terreno especffico ciahist6ria cIas religi6es, tocIavia nunca e demaislembrarque esses helenistastarnbem recorreram ao exame dos objetos de arte, apesquisa arqueol6gica, as teorias antropol6gicas, enfim aos textos poeticos e praticarnenre a todo genero de literatura antiga.

5 Erwin Rohde, op. dt., 121 e ss. 6 Karl Kerenyi, op. dt., p. 15 e ss.

Page 109: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

106

existencia hist6rica do her6i e priva-lo de, "a semelhanca dos deuses, agir como Prototipos". Portanto, conclui Kerenyi, "0 her6i encerra urn ensinamento relativo a humanidade". Nem totalmente deus nem totalmente homem, 0 her6i eaquele que alcanca a vida p6stuma no culto. Seu nascimento e urn nascimento na morte. Ele e uma estranha combinacao da gloria dos deuses abismada na morte do homem.

Chegamos finalmente a Walter Ott07 , cuja leitura que faz do

her6i me pareceu surpreendentemente original, todavia sem the conferir uma conotacao modemizante.

Para compreender 0 heroi grego, diz 0 helenista, epreciso dar­se conta do que foi 0 pensamento religioso desse povo. "La religion grecque est si naturelle, que la saintete semble n' avoir aucune place en elle'"'. 0 grego nao experimentava em ralacao aos seus deuses nem "estremecimentos da alma" nem sentimentos de "gravidade moral". Os deuses eram deuses e os homens, homens". Aqueles nao cogitavam libertar os homens de sua humanidade.

o grego era urn arguto observador da natureza. Essa atitude lhe permitiu evitar concepcoes religiosas fantasticas 10 e 0 conduziu posteriormente ao conceito de natureza (do homem e do que lhe circunda), fundamental no desenvolvimento da hist6ria da filosofia 11.

7 Walter Otto, Lesdieux de IaGreoe 8 A religiao grega etao natural, que a santidade parece nao ter nenhum lugar

nela. Ibidem, p. 23. 9 Quando Zeus, 0 deus dos deuses, sentiu a motte proxima de Sarpedon, seu filho

querido, quis rapta-lo para a Ifcia, mas foi duramente advertido por Hera que lhe lembrou 0 destino mortal dos homens e the acrescentou: "Se the dedicas afeto, e seu fado, em verdade, te punge, deixa que seja prostrado sem vida na pugna teIrivel pela potenda de Patrodo, 0 filho do c1aro Menedo". n., XVI,450/ 2, p. 262.

10 As Erinias fecham a boca do cavalo de Aquiles, que adquirira voz por obra e graca da deusa Hera. Cf. n., XIX, 418, p. 306.

11 Nao nos deteremos na analise desse conceito em funcao do carater e dimensao desse trabalho. No entanto, como nos ensinaJaeger, epreciso lembrar que "os gregos tiveram 0 sensa inato do quesignificanatureza",Talamceito foip1asmado no que 0 fil6s0fo chama de constituicao espiritual do grego. Ou seja, antes de

Page 110: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

107

o mundo pode se manifestar ao homem de diversos modos. Segundo Walter Otto", entre as fonnas possfveis de representacao ou maneiras de pensar, duas parecem resumir todas as tendencies. A primeira, que qualifica de objetiva ou racional, cujo objeto e a realidade natural, tern como proposito medir a consistencia dessa realidade. A Segunda forma de pensar ea magica, Seu objeto de conhecimento e a forca e 0 ato, por essa razao, 0 que se procura af e0 extraordinario.

Todos os povos primitivos, observa 0 helenista13,tiveram uma certa afmidade com esse modo de pensar, em relacao ao qual mesmo os gregos nao se mantiveram inteiramente indiferentes. No entanto, sua atitude fundamental relativa ao pensamento magico ede recusa. Eclaro, segue Walter Otto", que 0 grego concebe 0 sublime e 0 divino. Mas estas sao ideias inseparaveis da ideia de natureza. De modo que quando os deuses intervem, 0 extraordinario desse fato ecompreendido nao como monstruoso ou fantastico, mas como 0 eco da mais profunda experiencia natural.

Essa concepcao do mundo, que 0 citado autor afirma ser especificamente grega, e representada nos poemas homericos.

Foi antes de Homero que 0 genic grego criou seus deuses e her6is. Coube ao bardo imortaliza-los, Eis 0 que nos ensina: coletiva ou individualmente 0 homem realiza-se autenticamente, quando encontra seu modo particular para exprimir seu mundo e seu proprio ser. Por isso, o acontecimento mais notavel na vida de urn povo ea formacao de urn pensamento que the indique seu lugar no mundo.

passaracategoria de oonceito propriamenteelaborado, eles j:ipercebiam0 mundo drcundante como urn todo ordenado, de modo quenada podiasercompreendido foradesse conjunto, onde cada ooisa recebiasua posicaoe sentido. Denomina-se organicaessa concepcao, porque aqui as partes sao oompreendidascomo partes apendiculares de urn todo. Ea partirde talconcepcaodo ser comoestrutura natural e agamca, que0 gregoapreendeas leisdo real, sejanoquea:IlIX1're ao "pensamenro, tanto no que conceme alinguagem, aacao e todasas formas de arte". a.werner Jaeger, Paideia, p. 8.

12 Walter Otto, op. cit., p. 27. 13 Ibidem, p.28. 14 Ibidem, p. 29.

Page 111: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

108

Os versos homericos nao oferecem certezas religiosas, nao oficiam nenhuma doutrina. "Querem apenas olhar", diz Walter Otto","e no prazer de olhar, figurar." Nos descortinam toda a riqueza da natureza sob uma nova visao, Esse novo eexpresso no confronto de dois mundos, que sera recorrentemente enfatizado pelos tragicos'",

o pensamento religioso pre-homerico esta relacionado com 0

mundo terrestre, 0 mundo elementar. Suas divindades sao benevolentes para quem lhes permanece fiel, e temiveis para quem lhes ousa desafiar. Assim impoem ordem ao individuo e a comunidade. E apesar de sua existencia multiplice pertencem todas ao mesmo reino, a terra. Tanto lhes diz respeito a vida quanta a morte. 0 que explica alias 0 fato de permanecerem igualmente ligadas ao mundo subterraneo, E 0 caso das Moiras, Erinias, Eris, Horas, Geia, Reia, Persefone etc, que figuram ao lado de nada mais nada menos que os titas, e no entanto dominam completamente a cena", 0 que autoriza Walter Otto a defender a tese que na religiao pre-homerica 0 poder feminino sobrepuja 0 masculino. A divindade pre-homerica e normalmente representada, nao como uma pessoa ou figura mas como potencia obscura. Nesse contexto, a no~ao

de ordem sinonimiza com 0 que os antigos criam ser, a vontade sagrada do mundo elementar. A outra face dessa visao de mundo ea magia. Ou seja, posta que diante da ordem 0 homem pode transgredir, entao sao concebidas asdivindades vingadoras que correrao ao seu encalco, Alias convem lembrar que esse mundo magico eposto em a~ao, quando uma

15 Ibidem, p. 36. 16 Cf. a esse respeito os epis6dios de Meleagro e Alteia, 11, IX, 527/599, p. 164/

6;Edipo, Od., XI,p. 132; Telernaco, Od., II, p. 19 e ss., os quais constituem ilustracoes precisas do confronto dos dois mundos.

17 Seja quando garantem a ordem: par exemplo, aHera apesar de sua divindade, nao Ihe foi concedido 0 direito de mudar a natureza do cavalo de Aqulles. Seja em casas especfficos, como aquele em que Geia pedea urn de seus filhos, que a Iiberte do abraco fecundante de seu marido Vrano. Crono atende ao pedido da mae, corta 0 sexo do pai e lanca-o ao mar. Outra evidencia de dorninacao astuta, ve-se no caso em que Reia engana Crono e the da uma pedra para devorar, salvando assim 0 jovem Zeus.

Page 112: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

109

regra basica da natureza e violada. Essa maneira antiga de ver 0 mundo, em que divindades iradas garantem a ordem, esta intimamente relacionada a consciencia das normas universais que estabelecem limites para as a~oes do individuo.

Mas esse mundo regido pelo feminino nao e 0 mundo homerico, apesar de que, tanto na Ilfada quanta na Odisseia, sejam imimeras as aparicoes das divindades ctonias.

Com Homero surge uma nova geracao de deuses, e uma nova maneira de pensar. Antes na religiao ctonia havia urn excesso no feminino: os filhos estavam ao lado da mae e 0 pai figurava af como urn estranho. Mesmo 0 grande Poseidon, quando era invocado 0 era na qualidade de esposo da terra (como seu nome 0 indica).

Todos lembramos de que modo Homero enuncia seus deuses e herois, com que insistencia todos recordam sua filiacao paterna. Ora, nao se trata em absoluto de uma formula pronta da qual faz uso recorrente para se expressar. Trata-se sim do registro de algo novo. 0 mundo de Zeus e regido pela paternidade, e 0 mundo da masculinidade. Esse e finalmente 0 tempo e 0 pais dos herois, Eles surgem no momenta em que suas potencias nao dependem mais da forca magica, mas do ser da natureza. Estamos diante do quilometro zero das artes e ciencias gregas.

Resumidamente eis 0 que pensam Erwin Rohde, Junito de Souza Brandao, Karl Kerenyi e Walter Otto sobre a origem do heroi,

Como poderiamos caracterizar as circunstancias e formacao do heroi?

Ele e geralmente fruto de urn nascimento traumatico, envolto em misterios, seus vfnculos paternos sao ambiguos e 0 que e pior, e devedor de uma dfvida que nso cometeu: urn ancestral, sabe-se hi. quem, ousou ultrapassar a metron. Somada a tudo isso pesa-lhe uma sentenca oracular.

Antes de se notabilizar por seu herofsmo guerreiro, 0 jovem deve percorrer urn longo caminho educativo, que comeca com aseparacao dos pais, segue-se urn grande periodo de isolamento, durante 0 qual submete-se aos ensinamentos de urn mestre, com quem deve aprender princfpios da arte medica, arte divinatoria e naturalmente todos os

Page 113: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

110

procedimentos relativos aluta. Contudo, 0 aspecto mais relevante da formacao do heroi, escreve Jaeger", reside na aprendizagem das concepcoes fundamentais da nobreza cavaleiresca, que podem ser expressas em duas palavras: timh e areth. Comecemos pela ultima. Os latinos a traduziram por virtus. E se compreendermos virtude como uma forca que atua ou pode atuar, no sentido em que, por exemplo, a virtude de uma faca ecortar, de urn remedio ecurar, talvez nos desimpregnemos do sentido moral que a palavra assumiu para nos. A palavra areth diz do ideal cavaleiresco. Quando se refere ao homem indica conduta cortes e herofsmo guerreiro, quando se refere aos deuses designa forca, quando se refere aos cavalos denomina rapidez. 0 vocabulo da ainda a concepcao de destreza e virilidade, de disposicao para a luta, para a a~iio. Essa ideia permeia todo 0 pensamento de Homero. Eilustrativo a esse respeito a atitude dos competidores nos jogos funebres de Patroclo".

o conceito de timh no contexto da Iliada e Odisseia esta profundamente associado ao de areth. Isto porque a destreza garante 0

merito, A honra do grego antigo decorre dessa forma de suas qualidades, mas expressa-se enquanto reconhecimento que the manifesta 0 outro. 0 desejo de reconhecimento aqui atinge seu paroxismo. 0 heroi que acima de tudo aspira ahonra niio encontra limites para alcanca-la, cuja vida e seu tributo final. So entao ele everdadeiramente heroi,

So e possivel compreender 0 que motivou a ira de Aquiles, se formos capazes de avaliar 0 que significou para 0 heroi ser atingido em sua timh, ele que por assim dizer, viveu capturado pelo desejo de reconhecimento.

Chegamos final mente ao termino de nossa exposicao, sem que tenhamos sequer mencionado a palavra paqoV.Procedemos dessa forma, pelo simples motivo que no contexto homerico, assim como 0 conceito de timb nao e inteligivel sem estar relacionado ao de areth, da mesma forma a nocao de paqoV niio econcebfvel fora da relacao com 0 heroi,

PaqoV que epaixao e tambem 0 radical de patologia, caracteriza na verdade toda a vida do heroi,

18 WernerJaeger,Paideia,p. 18e ss. 19 n., XXIII, p. 343 e 58.

Page 114: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

111

Ele nasce em circunstancias traumaticas, que 0 aproximam da morte mais do que ocorre ao comum dos mortais, a fato de ter sobrevivido parece the ter conferido capacidade para a luta, numa proporcao exageradamente maior que ados homens comuns. au teria sido 0

contrario? Teria sobrevivido 0 her6i em fun~ao de sua singular suportabilidade de encarar a morte?

a her6i emovido apaixao, e, eapaixonadamente, irascivelmente que defende os ideais da nobreza cavaleiresca. a descomedimento the e comum. Mas isso nao nos autoriza a ve-lo como aquele que caminha reto para a morte. Ele nao arrisca a vida por pouco. Todos lembramos do que responde Aquiles a Ulisses na raps6dia IX20

, versos 315/322, na traducao de Carlos Alberto Nunes:

Nem Agamemnone, certo, nem outro qualquer dos Arquivos, Conseguird convencer-me, pois graca nehuma me veio De meu esforco incessante ao lutar contra os nossos inimigos. Tanto ao ocioso, que ao mais esforcado, iguais premios sao dados; As mesmas honras se outorgam ao fraco e ao heroi mais galhardo. Morre da mesma maneira 0 inativo e o esforcado guerreiro. Vede! Nenhuma vantagem me veio de tantos trabalhos, A par em risco a existencia nos mais temerosos combates. Aquiles fala de graca, honra e vantagem. Nao se trata aqui de bens materiais, posto que em sendo principe dos Mirmidoes e 0 maior guerreiro da Grecia obte-Ios-ia sem grandes dificuldades, por compra ou saque. a her6i tern consciencia de tal situacao, 0 que deixa claro nos versos 364/467:

Quando, por minha desgraca, parti, ld deixei bens inumeros, Que aumentarei com 0 que levo, muito ouro

20 Epis6dio da embaixada a Aquiles em que estao presentes: Fenix, como apelo ao nome do pai; Ajax, 0 segundo maior guerreiro dos aqueus, par quem 0 pelida nutre grande adrniracao; Ulisses, 0 senhor do logoVe os arautos Odio e Euribates. Cf. II., IX, p. 156 e ss.

Page 115: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

112

e, tambem, bronze rubro, Ferro brilhante e formosas escravas de bela cintura, Quanto ganhei nas partilhas

Os presentes enviados por Agamenon para aplacar a ira de Aquiles soam-lhe como injuria, por essa razao recusa-os veementemente, como podemos ler nos versos 378 e mais adiante 401/405:

Sao-me seus brindes odiosos e abaixo do minima pre(:o.

A minha vida, sem diivida, vale bern mais do que quanto Dizem que Troia possuia, a cidade de bela tracado, Antes, em tempos de paz. sem que houvessem chegado os Arquivos, E dos tesouros que dentro se encontram da petrea soleira De Febo Apolo, 0 frecheiro esplendente, na rocha de Pito

Tudo 0 que Aquiles queria era 0 reconhecimento de sua areth. No caso, os presentes oferecidos pelo Atrida, nao eram signa de reconhecimento, mas constituiam uma compra previa dos services guerreiros que 0 Pelida deveria prestar.

Trata-se portanto de garantir urn lugar proprio. Ter 0

reconhecimento de seuspares e ter finalmente urn lugar no mundo, aquele que nao encontrara ao nascer. Essa parece ser uma preocupacao comum a todo mortal. Mas 0 heroi, de acrescimo, sonha com a etemidade, por essa razao 0 auge de seu paqo V e a morte.

Junito de Souza Brandao chama a atencao, para as circunstancias da morte do heroi: fruto de traicoes, mortes violentas, ou no anonimato, situando af mesmo 0 auge de seu paqo V,uma vez que em podendo optar pela vida corporea 0 heroi opta pela morte. E caminha direto para a morte para nao morrer. Esse e seu movimento de negacao, Ele vislumbra essa hiancia insuturavel" e em funcao de sua timb e areth, constroi urn

21 Aquiles sabe, que se nao participar ciaguerra de Troia vai viver e morrer talvez de velho como qualquermortal. No entanro, se partidpar obtera gloria, mas morrera w:h

Page 116: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

113

movimento em tomo do nada, obtendo 0 reconhecimento dos que the sao conternporaneos, e com a morte assegura 0 reconhecimento etemo.

Essa foi talvez a primeira tentativa do homem de negar sua condicao de mortal.

Referencias Bibliograflcas

BRANDAO,Junito de Souza Mitologia Grega. Petr6polis: Vozes. 1987. 3 V. GRIMAL,Pierre. Dicion8rlo da Mitologia Grega e Romana. Traducaode Victor

Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1992.556 p. HOMERO. Diada. Traducao em versos, direta do grego, de Carlos Alberto

Nunes. Sao Paulo: Tecnoprint. 1985. Col. Univ. de Bolso. 378 p. ____. A Diada. Traducao em forma narrativa de Fernando C. de Araujo

Gomes. Rio de Janeiro: Tecnoprint. 1985. Col. Univ. de Bolso. 275 p. ____. Odlssela. Traducao direta do grego de Manuel Odorico Mendes.

Sao Paulo: Ars PoeticalEdusp. 1992. Col, Texto&Arte. N°5.397 p. ____. Odisseia. Traducao direta do grego, introducao e notas de Jaime

Bruna. Sao Paulo: Cultrix. 1994.293 p. JAEGER, Werner.Paldela, 2& edicao. Traducao de Artur M. Parreira Sao Paulo:

Martins Fontes. 1989. 966 p. KERENYI, Karl. Os herois gregos. Traducao de Octavio Mendes Cajado.

Sao Paulo: Cultrix 1993. 332 p. OTTO, Walter.Les dieux de la Grece. Traduzido do alemao por Claude-Nicolas

Grimbert e Armel Morgant. Paris: Payot. 1993. Col. Bibliotheque Historique Payot. 330 p.

ROHDE, Erwin. Psyche. Traducao do alemao de Auguste Reymond. Paris: Payot.1928. 647 p.

Page 117: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Errata: 1) No artigo de Elisabeth Maia da Nobrega, "0 1tUX<><; do heroi na iliada" (pp. 103­113), onde se Ie pacoV leia-se 1tUX0C; , onde se Ie bomoV Ieia-se ~oJ.J.OC;, onde se Ie escara Ieia-se EO'Xapa, onde se Ie qusia Ieia-se 8uma, onde se Ie enagismoV leia-se EVUytO'Jl0<;, onde se Ie timh leia-se TIll", onde se Ie areth leia-se cosm, onde se Ie logoV Ieia-se AOY0C;. Tambem na p. 106, onde se Ie ralacao, leia-se relacao.

Page 118: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

A FILOSOFIA ENTRE 0 LOGOS EO MYTHOS: LU;OES QUERECEBEMOSDE PLATAO

Emilia Maria Mendonfa de Morais

Abstract Ayant pour but souligner l'importance de la fabulation comme forme d 'expression de I'exercice philosophique, chez Platon, nous presentons d'abord dans cet article les passages principaux du Teeteto, dont la fin aporetique decoulerait de la non exploitation par les interlocuteurs des hypotheses de la Reminiscence et des Idees, qui ne se limitent pas au logos plus strict ni se detachent du recit mytique. Ensuite, nous mettons en evidence, surtout apartir des dialogues de la maturite que la reinvention poetique de la tradition constitue un support doctrinaire essentiel a la consolidation dialectique de la philosophie. Enfin, sont evoques les echos du logos et du mythos platoniciens dans les representations non seulement de la mentalite primitive mais surtout de la physique contemporaine.

Resumo Com 0 objetivo de ressaltar a imporuincia da fabulaciio, como meio de expressiio do exercicio filosofico, em Platiio, reconstituem-se inicialmente,

Principios Ano 04, n 05. p. 115-136, 1997

Page 119: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

116

neste artigo, os principais passos do Teeteto, cujo final aporetico decorreria da niio exploraciio pelos interlocutores das hipoteses da Reminiscencia e das Ideias, as quais ndo se restringem ao logos mais estrito nem se dissociam do relato mitico. Em seguida, evidencia-se que, sobretudo a partir dos didlogos da maturidade, a recriaciio poetica da tradicdo constitui um suporte doutrindrio indispensdvel a consolidaciio dialetica da filosofia. Finalmente, siio evocados os ecos do logos e do mythos platonicos, em representaciies niio so da mentalidade primitiva mas sobretudo da fisica contemporiinea.

Podemos reler Platao a partir de algumas ambiguidades que permeiam 0 seu pensamento. Nurna primeira abordagem, parece-nos possivel registra-las sob sete aspectos:

1) No plano das relacoes entre a politica e a pedagogia: a sua postura anti-democrata, sustentada no Protdgoras, na Republica ou no Politico, ou seja, desde os primeiros aos ultimos dos seus escritos, pode ser contraposta ao proprio didlogo, a partir do qual toda a sua obra foi construida e que se constitui 0 instrumento, por excelencia, da democracia. Embora Socrates, ou algum porta-voz do filosofo, conduza as discussoes, nao podemos esquecer das palavras que teriam sido pronunciadas pelo mestre de Platao quando, na prisao, Criton the propos a fuga: deve-se "em todas as partes obedecer a patria ou persuadi-la (...); deve-se convence-la por persuasao ou obedecer a seus mandatos e sofrer sem murmurar tudo aquilo que ela ordena'" . Estas palavras atribuidas a Socrates nem sequer sugerem que 0 saber possa legitimar 0

recurso seja da asnicia seja da forca a quem se pretenda exemplo para a polis.

2) Quanto a concepcao do artesao (demiurgo): lembramos a ambiguidade evidenciada por Pierre-Vidal Naquef - seriam artesaos todos os menosprezados habitantes da polis (tanto na Republica quanto nas Leis); mas tambem seria urn demiurgo 0 paradigma do "homem real", 0 governante representado pelo tecelao, criador das tramas e urdiduras que compoem 0 tecido do social delineado no Politico; assim

I Criton, SIb. Trad.]ayme Bruna, S.Paulo, Hemus,1979. 2 Cfr, NAQUEf, P. - V. LechasseurNoir, Paris, La Decouverte, 1991, p. 289 - 315.

Page 120: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

117

como 0 proprio universo seria obra de urn arquiteto, 0 grande artifice que, diante da materia originaria e caotica, engendrara este nosso mundo, segundo a cosmologia do Timeu, conformando-o, tanto quanto possivel, ao mundo das Ideias, regido pelo Bern.

3) Em relacao a separacao das esferas do sensivel e do inteligfvel: embora Platao tenha subordinado a dimensao das paixoes e emocoes ao juga de uma ascese racionalizada, saltam aos olhos os apelos emocionais a seus leitores, atraves da dramatizacao dos seus dialogos, onde uns riem, outros choram, uns se lamentam, outros se envaidecem, uns se deixam abrandar, outros se encolerizarn, uns se mostram perplexos, outros sabios complacentes; uns tentam seduzir, outros cedem ou reagem as seducoes: e ha ainda quem adormeca durante uma discussao dialetica, ou quem seja forcado a conter a sua fala por urn simples soluco" . Assim, o que 0 pensamento nega no seu mais estrito conteiido, parece ressurgir com Impeto inaudito na forma em que se exprime: sentimentos ou ressentimentos, paixoes, emocoes, hesitacoes, Impetos e, ate mesmo, espasmos fisiologicos permeiam os dialogos platonicos, como se a vida mesma, com toda a sua intensidade, pulsasse nas linhas e entrelinhas das falas dos seus personagens. Aristoteles que, formulando as dez categorias, resgatou a esfera do sensivel para 0 domfnio do "ser", mostrar-se-a, em contrapartida, 0 autor dos discursos arduos e aridos, avesso as seducoes estilfsticas do seu mestre Platao,

3 Enquanto SOcrates se mostrava mais irOnico, persuasivo ou sereno, Criton, Cebes, Simiase Apolodoro d1oravam;Trasimacoe caliclesse initavam; Glaucogracejava; Protagoras e G6rgias se envaideciam; Menon e Teeteto se resignavam; Filebo ironizavaaS6crates eadonnecia. Se nao,ernmemo S6cratesainda jovem, quem se surpreendia perplexo diante das questOes dovelhoe sabioParrnenides; Hip6tales que ronfessava sua mdinacao amorosa para lisis, ou Alcibfadesque reclamava cia indferenca de S6crates aos seus apeloser6t:i<Uij ou, entao,Arist6funes via-se foreado a retardaro sell discurso emlouvorde Eras,are quepassasseurn aoessode soluco, CCfr. R?don,117d; G6rgias, 481be segs, e 449a; Protiigoras, 318a-<:; RepUblica, 336be segse~Menon,95aesegs.; T~21(besegs;~ 15ce22c;Parmenltie;1~­d; Lisis, 203be segs,eBanquete, 185c-de 218besegs.

Page 121: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

118

4) Ainda na esteira da subordinacao do sensfvel ao inteligfvel: apesar de toda beleza possfvel dos corpos dever ser submetida a beleza que vern das almas, a pratica da "eugenia", defendida por Platao no livro V d'A Republica, exigiria a exclusao da "polis" de qualquer crianca que nascesse com alguma deformacao ffsica" ,como se se tratasse de uma surpreendente inversao: nao haveria alma ou inteligencia que compensasse uma deficiencia corporal.

5) Sobre 0 lugar reservado amulher na polis: a partir do mesmo livro V d' A Republica, sabemos que Platao, embora tendo concedido as mulheres a chance de se tomarem guardias, nao deixou de admitir a inferioridade geral do sexo feminino. No entanto 0 proprio Socrates, na plena maturidade da sua missao pedagogica, fez-se porta-voz de duas mulheres: Aspasia e Diotima. Se a adesao ao discurso da primeira e permeada de ironia, no Menexeno, e inegavel a devocao socratica a iniciacao doutrinaria acerca de Eros que recebera atraves da segunda, no Banquete' a •

6) Quanto ao processo dialetico proprio a filosofia: eindubitavel que 0 pensamento se constr6i, em Platao, atraves do exame das hip6teses contrarias e das analogias; todavia, esse percurso conjetural do pensar havera de se submeter ao principio presumido como apoditico ou a­hipotetico do Bern. Assim, tudo 0 que se pode perguntar ou supor deve ser respondido a partir de urn pressuposto que nao pode ser contraditado. Todo exercicio pelos meandros da dialetica, nao visando senao a superacao dos seus impasses inevitaveis, atraves da dianoia, razao discursiva, e da noesis, intuicao intelectual, que capta as Ideias, deveria sempre se subsumir aTheoria, ou contemplacao do Bern. fundamento nao so do agir na vida publica e privada, mas tambem causa de tudo 0

que se constitui ser e pensar' . 7) Enfim, chegamos a ambigiiidade que constitui 0 objeto deste

nosso breve ensaio. 0 que nos incita a pensar: 0 mesmo Platao que

4 or. RepUblica, 4tfr. 4aor. RepUblica, 451de segs, Banquete, a:Jld-212a;Menexeno; 236be segs, 5 or. RepUblia:i., 517c

Page 122: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

119

concebeu as ciencias matematicas como propedeuticas da filosofia e escreveu na entrada da sua Academia - "Nao entre quem nao for geometra" - pois, na conversao da alma para 0 inteligivel, as matematicas "acendem a chama pura mais importante do que dez mil olhos'" , esse mesmo pensador, crftico implacavel dos poetas, rechacando aqueles "imitadores" da sua Republica, nao deixou de recorrer, sem hesitacao, aos mitos e as fabulas como meio de expressao de alguns aspectos, mais ou menos essenciais a sua doutrina. Do logos ou da racionalidade mais estrita, sempre suscetivel de demonstracao, a mera fabulacao, avessa a toda e qualquer verificacao ou procedimento logico, como compreender essa instigante ambigiiidade do pensamento ou da linguagem?

Ja nao se trata aqui de examinar a passagem do mito a filosofia como "ruptura", de acordo com a tese de J. Burnet, ou como "continuidade", segundo a altemativa de F. Cornford ou de W. Jaeger? . Trata-se sobretudo de tentar compreender por que 0 mito pertence ou permanece como componente indispensavel a expressao de urn pensamento, nao apenas herdeiro da cosmologia matematica dos pitag6ricos, mas tambem da racionalizacao iluminista dos sofistas.

Tomemos como ponto de partida para 0 exame desta ambigiia coexistencia mythos-logos, 0 dialogo Teeteto, onde se trata da questao que, por suposicao, haveria de ser do dominio exclusivo do discurso verificavel ou do logos: 0 que ea ciencia (episteme) ou conhecimento e se epossfvel distingui-lo da sabedoria?

A definicao inicial proposta a S6crates por Teeteto,jovemdiscipulo do matematico Teodoro, identificava 0 conhecimento a sensacao. S6crates refuta essa hip6tese em tres etapas.

Na primeira, associando a definicao proposta ao relativismo, subentendido no principio de Protagoras - "0 homem e a medida de

6 efT.JAEGER, W.,Paideia-aformacdo do bomemgrego, sao Paulo,Martins Fontes, 1986, p.618.e Cfr; RepUblica, 527e.

7Cfr.BURNEf,J., O~rdaFiklsofiaGroga,saoPaulo,Siciliano, 1994,p.15-36; (DRNRJRD, F., Princium~asorigensdopensamento.filax!fk:ogrr:go, li<boo, Calousre Gulbenkian, 1989, Z1 Parte;JAEGER, w., op. cit., p. 3 - 26.

Page 123: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

120

todas as coisas" - Socrates leva Teeteto a concluir que, a partir da sensibilidade, a mais humana de todas as medidas, nada poderia ser determinado, estabilizado ou unificado no processo do conhecimento. Se o discurso sobre 0 ser equivalesse ao perceber, existiriam tantos saberes quantas fossem as sensacoes e as percepcoes de cada indivfduo, ou de cada polis, e todo objeto do conhecimento permaneceria enredado no fluxo fragmentario das infinitas particularidades. Por conseguinte, todas as opinioes deveriam ser tomadas como igualmente validas. Mas, se assim fosse, que altemativa restaria ao proprio sofista, Protagoras, diante de duas opinioes contraditorias: a partir de quais criterios definir qual das duas seria, se nao a verdadeira, pelo menos a mais iitil ou a melhor? Protagoras parece, enfim, refutado pois nao sendo 0 homem a "medida de todas as coisas", sera apenas a referencia no ambito restrito da sensacao, no qual somos todos a medida do que percebemos.

Na segunda etapa da refutacao a primeira hipotese, a identificacao do conhecimento a sensacao e associada ao permanente devir. Socrates confuta a doutrina do mobilismo universal, sustentada pelos defensores de urn heraclitianismo exacerbado. Se tudo se movesse incessantemente, no plano espacial ou qualitativo, nada poderia ser efetivamente conhecido ou sequer percebido. Ora, num mundo onde nada permanecesse por mais de urn instante fugaz, identico a si mesmo, nao existiriam nem objetos que pudessem ser conhecidos nem, consequentemente, a propria atividade cognoscitiva. 0 ''tudo se move", em sua acepcao mais extremada, impossibilita qualquer ciencia, Se nao podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio ou nem sequer podemos perceber duas vezes 0 mesmo rio, que sensacao poderia se tomar a medida do conhecimento?

Enfim, na terceira etapa da refutacao a primeira definicao de ciencia, Socrates rechaca definitivamente a proposicao de Teeteto, pois o conhecimento nao poderia advir das sensacoes isoladas; porem, a partir da reuniao das impressoes recebidas atraves de cada urn dos nossos sentidos, alcancamos uma "percepcao comum" que nos possibilita desenvolver raciocinios ou jufzos sobre tudo aquilo que percebemos.

Page 124: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

121

Assim, 0 conhecimento seria uma operacao da mente, e nao decorrente apenas de nossas sensacoes"

Teeteto sugere, entao, a Socrates uma segunda hipotese: a ciencia seria a opiniao verdadeira. 0 exame dessa proposicao foi precedido por uma longa discussao em tomo da possibilidade da opiniao falsa ou do erro, negada pelos sofistas. Se 0 jufzo falso sobre as coisas fosse impossivel, restar-nos-ia apenas a altemativa: conhece-las ou ignora­las, de modo que nao poderiamos saber 0 que ignoramos nem ignorar 0

que sabemos. Abordando essa intricada questao na perspectiva da soffstica, os dois interlocutores apenas enredam-se em aporias e 0

problema da possibilidade do juizo falso permanece sem solucao. Voltando a considerar a segunda hipotese de Teeteto, Socrates ressaltou que, sendo a opiniao um fruto apenas da persuasao, distingue-se essencialmente da ciencia, pois carece da propriedade discursivo­demonstrativa dessa ultima? .

o direcionamento da maieutica socratica leva Teeteto a fonnular sua terceira e ultima hipotese: a ciencia seria entao a opiniao verdadeira acompanhada de logos ou da explicacao racional. Assim, seriam cognosciveis as coisas das quais se poderia dar as justificativas da razao e incognoscfveis as demais. Porem, se as coisas complexas pertencem ao primeiro caso, isto e, podem vir a ser explicadas, 0 que nao seria possivel com as mais simples ou elementares, Socrates, entao, objeta: como 0 que ecognoscivel (0 complexo), poderia derivar do incognoscfvel (0 simples)? Na tentativa de apreender a acepcao do logos, Socrates expoe a Teeteto tres significacoes possfveis:

1) a de um enunciado;

2) a enumeracao ou especificacao das partes de um todo;

3) a indicacao dos signos distintivos de um objeto.

1) Se 0 logos ou explicacao racional fosse apenas um enunciado, qualquer enunciado seria valido pois exprimiria uma opiniao aliada a um conhecimento objetivo, mas essa possibilidade ja fora refutada.

8 ar. Teeteto, I45a -186e. 9 Cfr. Teeteto, I87a - 20Ic.

Page 125: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

122

2) Se 0 detalhamente das partes correspondesse ao conhecimento do todo, bastaria enumerannos os elementos componentes de urn nome ou deurnobjeto composto para conhece-lo, 0 que nem sempre ocorre, sobretudo quando desconhecemos a ordenacao das partes desse mesmo todo.

3) Enfim, se a opiniao verdadeira fosse apenas 0 que nos permitisse apreender 0 que uma coisa apresenta em comum com as demais, enquanto a explicacao racional fosse, ao contrario, 0 que nos possibilitasse a compreensao das suas diferencas especificas, toda apreensao dos sinais distintivos de urn objeto ultrapassaria 0 domfnio da opiniao, 0 que nao e passivel de comprovacao. Qualquer opiniao verdadeira, mesmo quando nao acompanhada de uma justificativa da razao, ja pressupoe alguma percepcao das diferencas ou especificidades dos objetos 10 •

o dialogo interrompe-se nessa refutacao da terceira hipotese e, por conseguinte, a conclusao que se impoe de toda a discussao eque a ciencia nao pode ser sensacao, nem opiniao verdadeira, nem opiniao verdadeira acompanhada de logos ou razao, Socrates, finalmente, despede-se de Teeteto, comunicando que deveria se apresentar diante do arconte-rei no Portico real, para responder as acusacoes que the fizera Meleto. Veremos que essa referencia final ao processo instaurado contra Socrates alcanca urn significado para alem do episodico ou do meramente casual.

Embora inconcluso ou aporetico, 0 dialogo entre Socrates e Teeteto nos deixa tres importantes licoes, A primeira eque 0 exercicio do conhecimento, quando atrelado apercepcao sensfvel, nao alcanca a plena apreensao dos seus objetos. A segunda li~ao permanece tao implicita quanta silenciosa: seria preciso Teeteto romper os cercos da sensibilidade, para atingir a essencia da Ciencia, do Belo, da Justica, enfim, das Ideias subsistentes aparte num mundo intangivel. A terceira e talvez a mais importante li~ao: uma compreensao efetiva do que significa conhecer, para alem das contigencias do mundo percebido, apenas se daria no domfnio da sabedoria pratica.

10 Cfr. Teeteto, 201d - 21Od.

Page 126: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

123

Desde 0 inicio do dialogo, SOCrateschamara a atencao de Teeteto para a relacao entre 0 conhecimento e a sabedoria (Sofia, 145d-e). 0 discipulo de Teodoro viu-se perdido, diante da maieutica socratica, porque nao fora iniciado em urn metodo propfcio aefetiva compreensao de que toda opiniao, mais ou menos verdadeira, permanece incapaz de dar conta de si mesma, ou seja, de efetuar a sfntese que the possibilitasse ultrapassar, pelo pensamento, 0 fluxo permanente de toda multiplicidade indeterminada, da qual nao seria possfvel retirar os parametres para a ciencia, definida, em ultima instancia, em relacao asabedoria pratica, 0 longo discurso, inserido na discussao da primeira hip6tese, em tomo da vida santa e justa dos que se dedicam afilosofia, vida cujo paradigma era a perfeicao divina (l72d - 177c), nao fora uma "digressao" senao para a imprevidencia pedag6gica de Teodoro. Se importava sobretudo atingir a verdade, era preciso compreender que a sabedoria haveria sempre de ultrapassar toda empiria e ate mesmo toda propedeutica geometrica, Principalmente, se a justica haveria de ser a medida do humano, quando se assemelhava ao divino (l76b), por mais sagazes ou eloqiientes que fossem Teodoro ou Teeteto, jamais poderiam dar-se conta de que 0

conhecimento do sabio ou fil6sofo, para alemde todas as opinioes incertas ou das proposicoes dos teoremas, haveria de se debater com os processos e as penas dos tribunais.

Aqui abrimos urn parenteses para colocar apenas urna questao: ao evidenciar limites para todo conhecimento atrelado asensibilidade e, sobretudo, por sustentar a preeminencia da sabedoria pratica, 0 Platao do Teeteto ja nao teria esbocado ou antecipado a "novidade" kantiana formulada no seculo XVIII?

Retomemos as nossas indagacoes acercada ambigiiidade mythos­logos, na filosofia de Platao. 0 que visamos ressaltar, a partir dessa summa reconstituicao dos passos do Teeteto e a marca, inevitavelmente, aporetica inscrita ao longo de todo 0 seu percurso, e nao somente no seu final inconcluso, apesar de ser urn dialogo escrito na plena maturidade do fil6sofo. Eevidente que 0 Teeteto teria ultrapassado as aporias se Platao nao tivesse contido as interrogacoes do seu personagem, Socrates, no espaco teorico estrito das hip6teses propostas por Teeteto; mas tivesse

Page 127: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

124

efetuado 0 salto, se nao logico, pelo menos rnetodologico, ahipotese da reminiscencia ou ao paradigma das Ideias (como ja 0 fizera em escritos anteriores). Se toda opiniao deve ser superada, por trazer 0 signo do falso ou do insuficiente, sendo-lhe a ciencia sempre inacessivel, isso nao implica que 0 logos, por si mesmo, possa dar conta do que significa, efetivamente, conhecer. Poderiamos entao inferir, a partir dos demais dialogos, desde os primeiros aos posteriores que tratam da apreeensao dos objetos da ciencia, uma outra conjectura; uma possivel quarta hipotese, certamente nao aporetica, a ser formulada em parafrase suplementar ao Teeteto - a ciencia seria logos acompanhada de mythos ou de fabulacao verossimel e, inversamente, seria mythos ou fabulacao verossimel que se faz acompanhar de logos?

A maieutica socratica, tal qual se revelara a Teeteto, passou ao largo das li~oes ministradas no Menon quando, atraves do dialogo com urn escravo, SOCrates busca comprovar que tudo aquilo que denominamos saber (mdthesis) nao seria senao decorrencia do que podemos lembrar ou re-conhecer (anamnesis), pois verdade, enfim, e a-letheia, a composicao do prefixo negativo a ligado ao derivativodo substantivo lethe, esquecimento. Porem a hip6tese da recordacao geometrica nao se constr6i apenas pelo exercicio de uma estrita razao. Neste dialogo, onde a chamada teoria da reminiscencia e introduzida, 0 empenho argumentativo de Socrates faz-se acompanhar de uma narrativa mitica, relativa a metempsychosis (a transmigracao da alma por varies corpos em vidas sucessivas). Podemos ainda constatar: em todosos dialogosda maturidade, onde as hipoteses acerca do conhecimento sao construidas como altemativa,sejaaindeterminaeao propriada multiplicidade ou da relatividade inerentes asoffstica, seja ainsuficiencia das analises matematicas, Platao sempre interliga 0 seu engenho racional ao esboco do mito ou da fabula (aqui tornados em conjunto pelos seus aspectos comuns, porquanto sao composicoes narrativas nao passiveis de comprovacao).

A fabulacao impoe-se, desse modo, como urn recurso discursivo imprescindivel, urn apelo persuasivo para a necessaria sustentacao do logos. E0 caso do Fedon, do Banquete, d'A Republica e do Fedro. Nao nos propomos a considerar, neste breve artigo, dialogos como 0

Page 128: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

125

Parmenides ou 0 Sofista, circunscritos ao ambito da discussao dialetica que nao se apoia em relatos poeticos pois, nesses escritos posteriores, a hipotese das Formas ja se apresenta como uma aquisicao firmada a ser questionada ou repensada, porem nao descartada.

Enecessario portanto reter: a hipotese platonica de urn mundo inteligfvel separado ou inverso ao mundo sensivel sustenta-se sobretudo nas duas referidas conjecturas: a crenca orfico-pitagorica na metempsychosis e a denominada teoria da reminiscencia que, nao apenas no Menon, mas tambem no Fedon e no Fedro, Socrates sustenta ser a genese e 0 fundamento de todo conhecimento. Todo saber adquirido ­nao atraves de urn processo de invencao ou revelacao, mas do desvelamento das Ideias ou do que na alma de cada urn de nos, a partir do seu encarceramento no corpo, estando encoberto pelo esquecimento, pudesse vir a ser objeto de nossa lembranca rnetaffsica - decorreria de dois exercfcios simultaneos: 0 das virtudes [ternperanca tsophrosyne) coragem (andretay; prudencia (phr6nesys), consumadas pela justica (dikaiosyne)] e odo pensamento. Devemos ainda levar em conta que, de todas as fontes das quais se nutriu Platao, Socrates e Pitagoras (ou os pitagoricos) foram as iinicas mantidas fora de qualquer suspeita ou revisao dialetica, Anaxogoras foi criticado no F edon; se nao Heraclito, pelo menos 0 heraclitismo foi, como virnos, contestado no Teeteto; Parmenides no denominado "parricfdio" do Sofista; e a soffstica mesma, objeto das mais severas criticas, foi examinada, dentre outros dialogos, no Protdgoras, no Gorgias, no Eutidemo, na Republica, no Fedro, no Politico e sobretudo no proprio Sofista. Assim, apenas Socrates e os pitagoricos foram poupados da dialetica construtiva mas tambem corrosiva do filosofo. Presumirnos, por conseguinte, que da heranca pitagorica nasce e se nutre, no discurso platonico, a tensao mythos-logos. Da cosmologia matematica, Platao acolhe 0 logos mais estrito, mas da crenca na metempsychosis que os pitagoricos acolheram do orfismo, 0

logos parece evadir-se para ceder lugar ao mythos, ou asabedoria legada pela tradicao.

No Fedon, Platao faz Socrates relatar a origem da segunda navegaciio que 0 levou a formular a hipotese das Formas ou Ideias. De

Page 129: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

126

infcio, propoe, via logos, a aplicacao dos princfpios heraclfticos a justificacao da sobrevivencia da alma, evocando a alternancia incessante dos contraries que mutuamente se engendram (no caso, os vivos adviriam dos mortos, assim como os mortos advem dos vivos). A partir dessa suposicao, reforca a nocao do conhecimento como reminiscencia, e 0

dialogo conclui-se pelo mito concemente a recompesas e castigos ap6s a morte. No Banquete, a explicacao da ascensao gradativa da alma desde o plano da sensibilidade ate a Ideia do Belo em si, associa-se ao mito de Eros, como mediador entre 0 humano e 0 divino. Na Republica, 0 relato da alegoria da cavema e subsequente a exposicao argumentativa das dimensoes correlatas do ser e do conhecer, representadas pela reta segmentada que sobrepoe 0 mundo inteligivel ao mundo sensivel. No Fedro, e sobretudo pelo mito da atrelagem alada que Platao sustem as suas conjecturas acerca da metempsychosis, da reminiscencia e das Formas, hip6teses precedentes a discussao final entre a ret6rica e a filosofia". Embora a narrativa mitica esteja ausente de dialogos posteriores tais como 0 Teeteto, 0 Parmenides e 0 Sofista, como ja lembramos, ela retoma com todo 0 vigor nos dialogos da velhice como 0

Timeu, 0 Critias e 0 Politico, alem das vanas alusoes poeticas que perpassam 0 Filebo e as Leis.

Nao nos cabe senao perguntar: por que, ao expor os temas axiais da sua doutrina, Platao nso prescinde da fabulacao que ora precede ora sucede ao esforco argumentativo do logos? Se 0 mito e, convencionalmente, concebido como uma modalidade pre-cientffica ou pre-filosofica de apreensao do real, trazendo sempre, segundo a interpretacao de Hegel, a marca da impotencia conceitual do pensamento, a sua utilizacao na trajet6ria dialetica, denotarla sobretudo uma debilidade argumentativa no pensamento do discipulo de Socrates?", Seria por uma carencia do mais pleno amadurecimento filos6fico das suas hip6teses

II or. Ri1on, 7<b -75d,l00::e~e l07ce~ Banquete; alld- 2123; ~ica, SQki -518be Fedro246a -257b.

12 Cfr. HEGEL, G. W F.Lecionessobrelahistoriadelafilosojia, v. II, trad. W Races,

Mexico, FCE, 1977, p. 150 e segs.

Page 130: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

127

que Platao incorreria no "desvio" da recriacao poetica dos mitos? Se nao, como pensar a relacao subsistente entre mythos e logos na sua doutrlna? Seriamos nos capazes de responder a esta questao, herdeiros que somos de uma possivel hipertrofia da racionalizacao da linguagem na ciencia e na filosofia?

No Sofista, Platao define 0 "pensamento" como dialogo da alma consigo mesma, tal como ja 0 fizera no Teeteto" . Por sua vez, 0 logos seria 0 discurso formado pela ordenacao de nomes e verbos referindo-se sempre a algum ser ou objeto e, por isso mesmo, discurso suscetivel a avaliacao do verdadeiro e do falIso. Discurso, por definicao verificavel, o logos se constr6i como hip6tese argumentativa que nomeia, discorre, "emana da alma e sai pelos labios em emissao vocal?" . As proposicoes do logos sao falsas quando remetem ou a fatos inexistentes ou a fatos distintos do que se pode perceber. No entanto, sao de proposicoes desta natureza que se constituem todos os mitos. Nos termos de Luc Brisson:

o mito einverificavel pois 0 seu referente se situa, seja no plano de uma realidade inacessivel, tanto ao intelecto quanto aos sentidos, seja no plano das coisas sensiveis, em um passado do qual, aquele que pronuncia 0 discurso niio pode ter experiencia, direta ou indiretamente'? .

Assim, em oposicao ao logos, ao substituir 0 argumento pelo relato poetico, faz-se discurso inverificavel e impossivel, por conseguinte, de ser submetido aos criterios do verdadeiro e do falso por sua adequacao, ou nao, ao logico ou ao mundo percebido.

Platao alerta-nos freqiientemente para os limites da narrativa mitica Porem este recurso discursivo, nao apenas estilfstico, mas tambem

13Sojista, 263e e Teeteto; 15X}a.

14 Cfr. Sofista, 25ge - 264b e Cfr. Teeteto, 206d. IS BRISSON,1. Platon: les mots et les mythes. Paris, Maspero, 1982, p. 127 ­

128 e Cfr. 114 - 113.

Page 131: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

128

metodologico, nao 0 tomaria menos fil6sofo do que os seus pares ou contemporaneos; torna-lo-ia, possivelmente, urn escritor mais astucioso e are mesmo urn pensador mais arguto? Vejamos as justificativas que nos ofereee dos seus relatos poeticos em alguns dos seus dialogos: ora a fabula se impoe como apelo pedagogico, caso da alegoria da cavema no livro vn d' A Republica; oraea expressao de uma crencamediadora entre a esperanca e a conviccao, caso dos mitos escatol6gicos contidos no Gorgias, no Fedon e na Republica; ora surge como urn necessario reforco moral ao logos pois, segundo 0 Menon, a reminiscencia nos toma melhores e nao apenas mais perspicazes; ora decorre de urn convite ao interlocutor para tomar 0 dialogo mais arneno e agradavel a exemplo do Protdgoras ou do Politico;ora surge como 0 iinico meio possivel de expressao do sagrado, da sabedoria contida nas mais antigas tradicoes da qual 0 fil6sofo nao pode ou nao deve prescindir, caso sobretudo do Fedro, do Timeu e do Critias" . Mas nem por isso a narrativa poetica, hip6tese que tange menos ao verdadeiro do que ao verossimel, deve sercompreendidapelo homem de born senso,em seu sentido literal, segundo a advertencia de S6crates no F'edon.

Por haver proposto a existencia de urn mundo arquetfpico, e assimilado 0 sagrado imemorial a sua doutrina, Platao foi considerado por Mircea Eliade, no Mito do eterno retorno, 0 fil6sofo, por excelencia, da mentalidade primitiva pois, nos graus mais arcaicos da cultura,

um objeto ou uma actio so se tornam reais na medida em que imitarn ou repetem um arquetipo. Assim, a realidade so eatingida pela repeticao ou pela participacao; tudo 0 que niio possui um modelo exemplar e desprovido de sentido, isto e, niio possui realidade. (...) Poderiamos entiio dizer que esta ontologia "primitiva" tem uma estrutura plattmica" .

16Cfr. RepUblica, 514ae~; G6Tgias, 523e seg>; Iedon; l07ceseg>; Protdgoms,3n::e segs, Politim, 268e e seg>; Pedro, 214ce ~; Timeu, 23deseg>;Critias, 1<& e~;

e err. DROZ, G. Lesmythes platoniciens; Paris, Seuil, 1992,p. 9 -19 17 EUADE, M. o mitodo eterno retorno, Lisboa, Edicoes 70, p. 49.

Page 132: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

129

Mas, afmal, quao distante estamos nos das sociedades tradicionais e de todas as culturas arcaicas! Se Platao ainda pode nos interessar, para alem de todos os deleites da erudicao, e pelo que permanece "vivo" ou claramente explicito apenas nos pressupostos e proposicoes do seu logos? Alguns dos mais notaveis homens de ciencia do nosso seculo se reconheceram devedores de sua filosofia. Nao focalizaremos logicos­matematicos platonicos tais como Frege ou Goedel, dentre outros que postularam a realidade ou a existencia objetiva das representacoes e objetos da matematica; pois 0 que nos parece mais significativo, para atestar a heranca platonica na ciencia moderna e contemporanea, e a correspondencia entre os fenomenos fisicos e as formulacoes ideais das equacoes matematicas. Vamos nos ater, portanto, ao dominio da fisica. Tomemos 0 caso exemplar de Werner Heisenberg; lembremos de quando evocou Goethe que pretendera derivar toda a botanica de uma unica planta originaria:

Esta planta original devia ser um objeto, mas constituir ao mesmo tempo a estrutura fundamental em funciio da qual todas as plantas sao construidas. No sentido de Goethe, poder-se-ia entiio designar 0 dcido nucleico como 0 ser vivo original, desde que, por um lado, esta substiincia e tambem um objeto e, por outro lado, ele constitui uma estrutura fundamental para toda a Biologia. Quando se fala assim, jd se estd seguramente em plena filosofia de Platiio. As particulas elementares podem ser comparadas aos corpos regulares do Timeu ... Siio as imagens originais, as ideias fundamentais da materia. 0 dcido nucleico e a ideia fundamental do ser vivo. Essas imagens originais determinam todos os fenomenos ulteriores. Elas sao as representantes da ordem central. E mesmo se, no curso do desenvolvimento da grande quantidade de estruturas existentes, 0 acaso vem mais tarde desempenhar um papel importante, epossivel que 0 proprio acaso seja de uma

Page 133: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

130

certa maneira religado a ordem central. Afinal conclui: (...) Aquele que medita sabe que 0 mundo edeterminado por imagens'?".

No ano de 1964, 0 mesmo Heisenberg pronunciou em Atenas urna conferencia intitulada A lei da natureza e a estrutura material. Ali referiu-se a Dem6crito e a Arist6teles, como exemplos da concepcao mecanica da ciencia que vigorou ate a Fisica newtoniana, aos quais opos o Platao do Timeu e Galileu que, herdeiros de Pitagoras, perguntavam antes de tudo sobre a estrutura matematica dos fenomenos da natureza. E advertiu:

Vamos entrar num mundo de fenomenos muito remotos. Ou vamos para as estrelas distantes ou para as infimas parttculas atiimicas. Nesses novos dominios, a nossa linguagem deixa de servir como instrumento racional. Teremos de confiar na matematica como a unica linguagem que resta. Sinto realmente que emelhor ndo afirmar que as particulas elementares siio pequenos pedacos de materia: e melhor dizer que elas siio representaciies de simetrias... As estruturas matemdticas siio atualmente mais profundas do que a existencia do espirito ou da materia. 0 espirito ou a materia siio uma consequencia da estrutura matemdtica. Esta e evidentemente uma ideia muito platonica'" .

o que nos cabe agora 1embrar e que a cosmologia do Timeu, dialogo paradigmatico para Werner Heisenberg, e toda ela apresentada

173. HEISENBERG, W. "Particules elementaires et philosophie de Platon", in: La partie et Ie tout -Ie monde de laphysique atomique, Paris, Flammarion, 1990, p325e332.

18 Apud. TAPIlN, O. Ofogogrego, Lisboa, GraclivaIRTC, 1990, p. 166 -167.

Page 134: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

131

atraves de urn mito sobre a genese do mundo ordenado pelo Demiurgo. Heisenberg parece nao ter observado que pensar por imagens significava, para Platao, nao somente ater-se as estruturas rnatematicas, mas tambem as possiveis representacoes das intuicoes intelectuais atraves das descricoes poeticas, Constatamos, assim, que a idealizacao matematica, propedeutica a filosofia, nos moldes concebidos por Platao, nao ousou romper os seus elos com a imaginacao rnitica. Werner Heisenberg assim como James Jeans, David Bohm, e mesmo 0 matematico Roger Penrose quando examina as leis ffsicas, embora passando ao largo dos relatos rmticos, souberam entretanto reconhecer a nossa indubitavel dfvida para com 0 legado de Platao!? . Outros dos seus pares e sucessores se detiveram sobre as hip6teses relativas aideia do universo cfclico e simetrico no tempo, ou seja, apossfvel reversibilidade do proprio tempo (formuladas por ffsicos como Thomas Gold e John Wheeler) e parecem nao se ter dado conta de que, nesse campo, a ciencia contemporanea flertava nao apenas com a matematica mas com a fabula e a poesia platonicas. No seu livro Breve historia do Tempo Stephen Hawking registra algumas especulacoes sobre as consequencias de urn possivel movimento de contracao do universo, a partir do momento em que fosse contida a sua fase atual de expansao:

19 Sabre olegado platOnicoadenda contempocinea, v. do mesmo Heisenberg, "A tradicao na ciencia" in: Paginas de auto-retrato e reflexdo, Lisboa, Gradiva, 1990, p. 81; e ''Eldebate entre Platon y Democrito", in: Cuestones Cuantieas, Ed. Ken Wilber, Barcelona, Kair6s, 1994, p. T7 - 90. V. tambem as observacoes de J. Jeans, para quem Deus seria urn maternatico: descobrimos ainda que 0

unioerso apreserua indiciosde umpoderque 0 projetaecontrola eque tern algo em comum com nossasproprias mentes indioiduais - naopelo que agora descobrimos com a emocdo, a moralidade ou a.fruicao esteuca, mascom a tendencia apensarda maneira que,parJalta depalavra melber", descreoemos como matematica. (7be mysteriousuniverse, Cambridge University Press, 1931). Quanto aD. Bohm, embora nao endosse 0 privilegio exclusivo concedido a maternatica, nao deixa de assinalar: Os.fisicospoderiio niio concordar, masde Jato estiio atribuindo amateria qualidades que estiio alem daquelas queem geralsao consideradas materiais. Siio qualidades espirituais na rnedida em

Page 135: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

132

Mas que aconteceria quando 0 universo parasse de se expandir e comecasse a contrair-se? A seta termodindmica inverter-se-ia a desordem comecaria a diminuir com 0 tempo? Isto levaria a toda especie de possibilidades do genero ficciio cientifica para as pessoas que sobrevivessem a passagem da fase de expansiio para a de contraciio, Yeriamos xicaras partidas juntarem os seus pedacos do chiio e voltarem de novo para cima das mesas? (... ) Isto significaria que a fase de contradio seria como 0 inverso do tempo e da fase de expansiio. Na fase de contradio as pessoas viveriam uma vida as avessas: morreriam antes de terem nascido e ficariam mais novas a medida que 0 universo se contraisse" .

Anteriormente, Carl Sagan no seu livro Cosmos ja se referira as mesmas especulacoes:

~ex:iltirumaon:JemmaJemiitica!6nromiatiwernterma;maIeriais.(in:WEBER, R Didlogoscomcierutsiasesilbios, sao Paulo, Cultrix, 19)5, p. UD).Ao se reportar a Platao, Balun nao se refere afabulacao como indissociavel da propedeutica matematica, mas eprovavel que seja uma exoecao entre os fisicos, na medicla em que tenta esboearpossiveiseloserure a arte e a denda, V.a esse respeito, "Aordem gereralivaeacrdemimplidta",in:BOHM,D.ePEAT,D. Ctencia,orrJernecriatividade, Lisboa, Gradiva, 1S69,p.201-251 e cfr. p. 7-25.Por sua vez, R Penrose, no seu livro Tbeemperorsneurmmd: roncerningromputers, mindsandthelausqfp/:J)sk:s, Oxfoo:l UnivetsityPress, 159),afurna: PammimedfficiJacn3ditarque, comoa/gunsteruaram

sustentar, ~~surg;rdamem~natumJaJwi5riasdeide;as,

~as~~na~~~

~deumgruJXJdeideiasque~demaneimaleaJDria.AoaJrll:ftirtJ,

dael:aeralgumaprfitnda arnak!millK:aea jisica, isJoe, erureomundoplat6nicoeomunOOfisico. [l.jeanse R Penroseforamaqui dtados atraves de DAVIFS, P. A mentedeDeus, Rio dejaneiro, Ediouro, 1994, p. 204e 151].

2IJHAWKING, S. Brevebistoriado tempo, lisboa, Gradiva, 1988,p. 200 - 201.

Page 136: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

133

Admitir as oscilaciies do universo faz surgir problemas estranhos. Existem sdbios a pensar que, quando a expansiio vier a ser seguida de um contraciio, quando um espectro de longiquas galdxias estiver completamente recuado no espaco a causalidade sera invertida, os efeitos precederiio as causas (... ) E dificil compreender o que quer dizer uma tal inversiio da causalidade. As pessoas nasceriam em seu tumulo e morreriam no ventre de suas miies? 0 tempo fluiria ao inverso? Essas questiies teriam mesmo um sentido?"

o que nem S. Hawking, nem C. Sagan parecem ter reconhecido e que essas surpreendentes hip6teses sobre as quais eles pr6prios se debrucaram e nao ousaram endossar, suposicoes aventadas, todavia, pela cosmologia contemporanea quando tangencia a ficcao, em principio, sao as mesmas expostas no Politico atraves do mito dos ciclos invertidos do universo. Ali 0 Estrangeiro de Eleia pede ao jovem Socrates que se digne conceder atencao a uma fabula, assim como 0 fazem as criancas, Este nosso universo, regido por ciclos alternados, ora teria seu curso circular guiado pela divindade, ora seria abandonado, quando, entao, passaria a se mover em sentido contrario. Ao ocorrer a mudanca de rotacao, a morte faria as maiores devastacoes: muitos poucos dentre os seres humanos sobreviveriam a tal colapso e os sobreviventes sofreriam os mais insolitos acidentes. A similaridade que podemos, entao, constatar entre a fabulacao de Platao e as especulacoes de fisicos contemporaneos e notavel. 0 fil6sofo discorre com desenvoltura em torno das especulacoes a que Sagan e Hawking se reportararn; vale a pena determo­nos no seu relato mitico:

Todos os seres vivos, entiio, passaram da idade em que estavam e tudo 0 que era mortal,ja niiocontemplou mais 0 espetdculode

21 SAGAN,C. Cosmos, Ed. Marabout, 1985, p. 337.

Page 137: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

134

um envelhecimento gradual. Depois, progredindo em sentido contrario, cresceram em juventude efrescor. as cabelos brancos dos velhos tomaram-se pretos. Naqueles em que a barba jd era crescida as faces se alisaram e cada urn retornou aflor da mocidade. as corpos dos imberbes, tomando-se mais tenros e menores, dia por dia, noite por noite, voltaram afinal ao estado de criancas recem-nascidas, a elas semelhantes em corpo e alma, e prosseguindo, apos 0 seu decltnio acabavam por desaparecer completamente (...) A meu ver impiie-se pensar assim: desde que os anciiios voltavam a ser criancas, os mortos sepultados na terra, consequentemente, deveriam reconstituir-se e voltar a vida, levados por esse movimento de volta que fazia com que as geracoes caminhassem em sentido oposto: e sendo assim nasciam necessariamente do seio da terra, dela receberam 0 seu nome e sua historia: quando niio foram dirigidos por um dos seus para outros destines'? .

Platao inscreveu este mito no Politico ao justificar a necessidade de urn condutor humano para os homens que a divindade desamparou relegando-os a sua pr6pria sorte. Esta fabula toma-se uma das mais instigantes advertencias de que a nossa ciencia, talvez desmedidamente racionalizada, pode findar reencontrando os paradoxos das suas origens e, extrema ironia, surpreende-se tentada a recair nas tramas de urn enredo que com todo 0 seu esforco pretendeu renegar. 0 salto de ascensao para fora do mundo mftico legado pela tradicao parece tomar-se, assim, urn movimento circular, onde urn hipotetico ponto de parada da ciencia ou do logos incide sobre 0 ponto primordial da fabula,

Para alguns interpretes de Platao, a narrativa poetica deveria ser compreendida como urn desdobramento da discussao dialetica, visando aexpressao de uma probabilidade:

o uso filosofico do mito the confere uma untca e mesma funciio: exprimir a possibilidade de uma passagem, de uma

22 Politico, 270d- 27lc e or. ~ -273e, , in: Platiio, trad JagePaleik:at, Os pensadores, Abril Cultural, 1979.

Page 138: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

135

articulaciio, de uma inscriciio, quando a argumentaciio se defronta com os limites da percepciio e as aporias da razao, deparando-se, entiio, com a probabilidade que contemple 0

divino e 0 transcendental. Atravesdesserecursopara-cientifico, Platao consolidaria, assim, 0 seu logos original ou, nos termos concisos de P. Frutiger, Platon hair un grand philosophe double d'un grand poete" .

Podemos, enfim, concluir que, se 0 logos exprime a razao argumentativa e passivel de verificacao, 0 mito reporta-nos it persuasao concemente ao verossimel e ao plausivel, para con-formar os habitantes da polis it poesia que deve se manter submissa it sofia. Quando a razao se toma opaca, 0 mito faz as hipoteses transparecerem atraves de imagens mediatizadoras, inusitadas vestes da linguagem para a filosofia que se transfigura e transmuta, recriando a phantasia. Af, entao, todo possivel esclarecimento decorrente da razao, refaz-se cumplice da crenca (pistis) ou da esperanca (egpis) - Fed6n 67b-c, 68a, 114c.

Como filosofo exemplar, seja para a mentalidade arcaica, seja para a ciencia contemporanea, Platao deve ser repensado nao so como instaurador da racionalidade metaffsica, mas tambem como 0 primeiro critico da acionalizacao desmesurada pois, atraves do entrelacamento mythos-logos, construiu talvez a mais solida ponte entre poesia e filosofia ou ainda entre rnistica e razao.

23 DIXSAUf, M. I.eNaturelphilosophe, Paris, Belles Lettres,J.Viin, 1985, p. 164; e FRUTIGER, P. I.esmythes de Platon, Paris, Felix Alean, 1930, p. 267. V. ainda LABORDERIE,J. 1£ dialogueplatonicien de La maturite, Paris, Belles Lettres, 1978, p. 445- 450;JOLY, H. 1£ renversementplatonicien, Paris,J. Vrin, p. 337

Page 139: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

2) 0 artigo de Emilia Maria M. de Morais, "A Filosofia entre 0 LOgos e 0 Mythos: Licoes que recebemos de Platao" (pp. 115-116) contou com a colaboracao de Jose Lourenco Pereira, mestrando em. Filosofia pela UlrrCAMP. Na pagina 135, Ultimo paragrafo, leia-se 'racionalizacao' no Lugar de 'acionalizacao' .

Page 140: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

A MODERNIDADE EM FOUCAULT: UMA BREVE EXPOSI<;AO*

Guilherme Castelo Branco

Resumo o artigo trata da compreensiio da Modemidade no pensamento de Foucault abordando a dimensiio historica da atualidade na esfera de problematizaciio socto-politica dos nossos dias. Seu nucleo de argumentacdo concentra-se nas condicoes de exame da questiio etica atraves da leitura que Foucault faz de Kant do principia da maioridade , do telos da afiio e da autonomia individual. Com isto 0 artigo propiie um eixo de analise da ideia foucaultiana de uma estetica da existencia a partir da relaciio entre subjetividade e poder.

Abstract The article is about the understanding of the Modernity in the thought of Foucault approaching the historical dimension of the present time in the sphere of social-political proposition about our days. Its argument nucleus concentrates on the conditions of exam of the ethical subject through the reading that Foucault does of Kant of the beginning of the age of majority, of the telos of the action and of the individual autonomy. With this the article

Princfpios Ano 04, n 05, p. 137-146, 1997

Page 141: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

138

proposes an axis ofanalysis ofhis idea about an aesthetics ofexistence starting from the relationship between subjectivity and power.

A polissemia do termo 'modemidade', na hist6ria recente, gerou uma quantidade quase infinita de modos de entendimento do que ele seria, em domfnios que vao da arte amacroeconomia, 0 que complica-se ainda mais por existirem em torno do tema as avaliacoes as mais dispares. Nossa perspectiva limita-se a consideracoes estritamente filos6ficas, e ap6ia-se na releitura de Imanuel Kant por Michel Foucault: centra suas vistas numa ideia de modernidade que nada tern a ver com a de urn momento hist6rico detenninado, nem com a ideia de vanguarda, nem com a no~ao de urn processo economico em curso; de modo diverso do usual, Foucault resgata a hip6tese de que a modemidade pode ser definida como uma atitude, centrada na subjetividade, realizavel por qualquer sujeito hist6rico que seja capaz de diagnosticar 0 seu momento e 0 quadro que 0 envolve, assim como tenha condicoes de atuar sobre suas circunstancias e sobre seu presente hist6rico de modo a exercer sua autonomia diante das rmiltiplas pressoes com as quais tern que lidar no decorrer de sua vida. Numa atitude como esta, falando de modo generico, da-se todo urn trabalho individual visando realizar as formas de libertacao possfveis no momento hist6rico do indivfduo, que 0 impele a franquear as limitacoes por ele percebidas. Bern entendido, 0 telos dessas a~oes nao eiinico nem 0 mesmo para todos os indivfduos e para todas as epocas; 0

que importa eque a atitude de libertacao apareca a cada indivfduo como necessaria, que a tarefa compareca na forma de urn imperativo. Alem do mais, a partir desta visao de que a modernidade consiste numa atitude, deve-se ter em mente que ela toma necessariamente a fei~ao de uma atitude-limite, com dois sentidos complementares: por urn lado, exige a superacao de limites internos, como os que circunscreveriam 0 sujeito a urn acomodamento aos interesses imediatos de obtencao de bens materiais e de usufrutos decorrentes do reconhecimento e/ou prestigio social, e por outro lado demanda a superacao dos limites impostos pelas regras, valores e modos de gestae social, 0 que leva tantos, por exemplo, ao

Page 142: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

139

acomodamento puro e simples ao que se determina de forma idiossincratica na ordem politica e juridica e na gestae dita racional da ordem economica.

Esta maneira de compreender a modemidade, como ja citamos, e de inspiracao kantiana, e Foucault reinterpreta, de maneira notavel, 0

pequeno e denso texto de Kant Was ist Aufkliirung?( 0 que e Iluminismo?), publicado numjomal berlinense em 1784, a partir de uma convocacao publica do jomal para a elaboracao de textos que dessem conta da questao, Kant responde, de modo incisivo, que 0 esclarecimento e a passagem do estado de minoridade ao estado de maioridade. 0 texto deixa duvidas no leitor quanto ao escopo dessa passagem de estado: Kant nao elucida se esta entrada na maioridade seria urn fato historico, ou se corresponderia a uma tarefa a ser realizada pela coletividade, assim como nao explicita se ela teria urn alcance individual ou coletivo. 0 que o filosofo alemao explicita e que a minoridade, por oposicao amaioridade, deve ser definida como uma privacao de liberdade, por culpa do proprio sujeito, que prefere ser tutelado em suas acoes, em suas escolhas e em seu modo de viver, a ter que exercer uma forma de vida onde entrem em jogo escolhas racionais e livres. Kant da alguns exemplos dessas escolhas que caracterizam a minoridade: obedecer irrefletidamante aos ditames govemamentais, seguir arisca determinacoes de urn guia espiritual, seguir sem restricoes recomendacoes medicas e terapeuticas. Por sua vez, a maioridade e entendida como resultado de uma escolha atraves da qual emerge uma conciliacao das regras e valores instituidos na vida socio­politica com aquelas advindas da livre consciencia do sujeito, escolha essa que tern por ponto de partida 0 mundo etico subjetivo e que desagua no mundo social e politico. Deste modo, antes de ser uma atitude de oposicao franca e radical as regras e avida social, ela consiste em escolhas estrategicas, alicercadas na vida subjetiva, que visa deixar aberto 0 campo para a atividade livre e critica do sujeito, dentro do grande contexto no qual se insere e do qual nao nenhum sujeito poderia se furtar. Deste modo, a maioridade tern urn alcance espiritual, etico, institucional e politico, apesar de seu motor e ponto de partida ser 0 mundo subjetivo e racional do sujeito. A maioridade, alicercada na autonomia individual,

Page 143: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

140

implica na superposicao do uso publico e uso privado da razao, e a liberdade nao poderia jamais ser vista de forma unilateral, seja enquanto liberdade com base no social, seja de modo apenas individual e pessoal.

o que a atitude de modemidade poe em jogo sao os modos de relacionamento e de afrontamento reciprocos dos sujeitos e dos poderes, assim como as estrategias postas em a~ao de parte a parte. Como sugere Foucault, referindo-se as condicoes previas de uma possfvel atitude de modemidade, "deve-se buscar a analise de nos mesmos enquanto seres historicamente determinados, por urn certo lado, pela Alfkliirung. Isto implica numa serie de analises historicas as mais precisas possfveis; e estas pesquisas nao serao orientadas para 0 'rnicleo essencial da racionalidade' que poderia ser encontrado na Aufkliirung e que deveria ser salvo a todo custo; antes disso, elas serao orientadas para 'os limites atuais do necessario', isto e, para 0 que e ou nao indispensavel para a constituicao de nos mesmos como sujeitos autonomos'T Foucault, 1994; p. 572 ). Deste modo, 0 que eprioritario sao as estrategias de contestacao pelas quais certas formas de libertacao sao tomadas viaveis no interior do mundo social. Ora, realizar uma etica autonoma pressupoe urn diagnostico do presente e das formas de libertacao possfveis, e isto nao e, de modo algum, urna questao meramente te6rica. Em nosso seculo XX, a titulo de exemplo, muitos tiveram que conviver com formas 'patologicas' de poder como 0 stalinismo e 0 fascismo, e tiveram que buscar formas de exercfcio da liberdade no interior delas. Mas para Foucault, essas formas de poder, analizadas mais de perto, auxiliam na elucidacao do que seja nosso presente historico e de quais tarefas eticas temos diante de nos: " urna das irnimeras razoes que fazem com que elas sejam tao desconcertantes para nos eque, a despeito de sua singularidade historica, elas nao sao, de maneira alguma, absolutamente originais. 0 fascismo e 0 stalinismo utilizaram e ampliaram mecanismos ja presentes na maioria das outras sociedades. Nao somente isto mas, apesar de sua loucura intema, elas utilizaram, em larga medida, as ideias e os procedimentos de nossa racionalidade polftica"( Foucault, 1994; p. 224). A partir dai, segundo Foucault, seria indispensavel, para se considerar quais seriam nossas tarefas eticas, analizar e avaliar as relacoes entre 0

Page 144: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

141

excesso do poder politico com a gestae tecnica e racional da vida social. Para Foucault, ademais, estas formas de gestae tecnica e administrativa das coletividades sao, curiosamente, as que melhor representam os ideais humanistas: sao elas que se justificam, sobretudo em suas crises e nas suas tomadas de decisao menos populares, por trabalharem a service do bern comum, sempre com resultados que seriam vistos a longo prazo, e que, por isto mesmo, operam visando defender os direitos inalienaveis dos membros da sociedade.

Foucault indica, em suas breves analises de nossa conjuntura hist6rica, que nao estamos diante de uma questao simples; a seu ver, 0

desenvolvimento crescente das estruturas de poder tomou duas direcoes em aparencias opostas , quando na verdade sao complementares: em primeiro lugar, elas tern 0 cuidado crescente em conhecer os indivfduos, de modo mais detalhado e minucioso possfvel, de forma a antecipar e moldar desejos e de criar expectativas, objetivando 0 gerenciamento de suas acoes, no trabalho, em suas casas, nos lazeres, nos ritmos possfveis de vida. Esta tecnica do poder, no limite, e0 que Foucault designa por 'govemo por individuacao' ...."que se exerce sobre a vida cotidiana imediata, que classifica os indivfduos em categorias, os designa em sua pr6pria individualidade, lhes impoe uma lei da verdade que lhes faz se reconhecerem e que os outros devem reconhecer neles" (Foucault, 1994; p. 227 ). Em segundo lugar, 0 Estado modemo desenvolveu, de maneira crescente, uma anatomo-polftica do corpo e uma bio-polftica da populacao. Neste aspecto, os Estados tern trabalhado de modo totalizante e globalizante, sobretudo quando se trata da administracao e de decisoes acerca da vida e da morte de toda uma populacao ou de sub-segmentos desta. Exemplos dis so sao os levantamentos estatfsticos que indicam qual seria uma quantidade razoavel de mortes admissivel numa operacao militar, ou mesmo a quantidade de informacao tecnica e administrativa, associada a pessoal tecnico especializado, que sao necessaries numa operacao explfcita de exterminio de massas. Em suma, 0 Estado modemo tern posta em pratica todo urn conjunto de conhecimentos e de tecnicas que destinam-se ao controle do corpo de sua populacao, Urn dos efeitos mais evidentes desse exercfcio do poder, pouco importa 0 regime politico,

Page 145: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

142

e que, operando sobre 0 fenomeno da vida, ele acabou constituindo novas formas de racismo, mais ou menos explicitadas nas politicas economicas, de educacao, saude, etc., mas claramente perceptive is nos conflitos reginais recentes.

As formas de contestacao e e resistencia aos mecanismos de poder,dentro deste quadro, nao se dirigem apenas a urn modo de producao ou a urn tipo de governo; segundo Foucault, hoje, as lutas sao transnacionais, apesar de serem mais evidentes em certos paises que em outros; alem disso, elas sao sobretudo anarquicas e imediatas, visando bern mais a autonomia dos individuos que a transformacao da totalidade do social. Neste aspecto, 0 sentido das lutas sociais nao se restringe as contestacoes contra a exploracao economica ou dominacao de classes; elas tomam tambem a forma da negacao das tecnicas de assujeitamento e de bio-poder operados pelos Estados modernos. Para Foucault, as formas de assujeitamento e as tecnicas de bio-poder sao solidarias das formas de exploracao economicas, mas nao estao a elas subsumidas. No seu entender, no contexto contemporaneo, as lutas sociais assumem tres grandes modalidades: "as que se opoem as formas de dominacao (etnicas, sociais, religiosas); as que denunciam as formas de exploracao que separam 0 individuo do que ele produz; e aquelas que combatem tudo 0 que liga 0 invividuo a si mesmo e assegura, deste modo, sua submissao aos outros( lutas contra 0 assujeitamento, contra as diversas formas de subjetividade e de submissao)" (Foucault, 1994; p. 227).

Foucault ressalta que nao lutamos tao somente para nos libertarmos do Estado e de suas instituicoes, mas para nos libertarmos, a n6s mesmos, do Estado e dasformas de individuacao que este promove. Por esta razao, acrescenta Foucault, "sem diivida, 0 objetivo principal hoje nao 0 de descobrirmos, mas 0 de nos recusarmos a ser 0 que n6s somos. Devemos imaginar e construir 0 que poderfamos ser, para nos desmbaracarmos dessa especie de 'duplo constrangimento' politico que sao a individuacao e a totalizacao simultaneas das estruturas de poder moderno" (Foucault, 1994; p. 232). Pois 0 que se disseminou, ao longo do percurso do capitalismo recente, foi a generalizacao das formas de vidae dos c6digos moraisda burguesia.Esta moral demanda 0 afastamento

Page 146: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

143

dos vfnculos de solidariedade ainda existentes em sub-segmentos do universo social, em nome de uma ideia de conforto, seguranca pessoal e seguranca financeira que nada mais fez do que intensificar 0

individualismo. Eeste 0 tipo de indivfduoque 0 govemo por individuacao espera constituir: almas fechadas e previsfveis, d6ceis em aceitar as regras do jogo, pouco importa quais sejam,e adequadas aos valores e ao cotidiano desejavel atecno-burocracia. Uma moralidade como esta tern efeitos, a nosso ver, bastante claros: passa-se a aceitar, ate mesmo se desejar 0

fato de que, no interior das sociedades passe a existir urn enorme contingente de exclufdos, que sao percebidos como merecedores de estarem nessa situacao por nao possufrem as competencies necessarias para participar da evolucao do processo economico e social.

Apesar de Foucault nao ter tratado do tema da globalizacao, ao menos sob esta rubrica, pode-se, por inferencia e por comparacao, chegar a alguns indicativos.Por exemplo, Habermas. Na interpretacao deAntonio Basflio de Menezes (Princfpios,1995), para Habermas, a nova divisao mundial entre pafses repete as formas e graus de violencia inerentes a malha estrategica-instrumental da sistematizacao economica na nova ordem mundial. Segundo Menezes, "sobre a velha divisao entre primeiro e terceiro mundo se coloca uma nova ordem transnacional que tern a face de urn sistemaanonimo, auto-operacionalizavel, 0 qual se diferencia apenas no processo de sistematizacao do mundo vital em suas diferentes instancias. Deste modo, 0 dito 'primeiro mundo' pode ser caracterizado pelo processo de sistematizacao que se operacionaliza no contexto de uma socializacao democratica com a destruicao lenta, mas progressiva, dos valores e culturas de tradicao s6lida. Eo 'terceiro mundo' atraves de urn processo de sistematizacao que se operacionaliza no contexto de uma socializacao selvagem com a destruicao acelerada dos valores e culturas recentes. As consequencias de tais processos, ainda que se diferencie em cada caso, como especificidades regionais do processo de sistematizacao, todos apresentam urn dado comum: a reacao aviolencia da sistematizacao do mundo vital, diante de sua pr6pria degradacao" (Menezes, 1995,pp 9-12).Habermasnao deixade partilharde uma posicao otimista, uma vez que supoe que da reacao do mundo vital seria possivel

Page 147: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

144

se resgatar 0 velho ideal de emancipacao elou esclarecimento, nos tennos de urn projeto de vida nao fracassado no interior do sistema. Esta tese nao poderia ser partilhada por Foucault, pela simples razao de que 0

pensador frances vislumbra no govemo por individuacao e na planificacao bio-politica da populacao instrumentos eficazes em eliminar, de muitas fonnas, toda e qualquer reacao que partisse de segmentos importantes da vida social, sobretudo nos pafses perifericos, onde os niveis de violencia e 0 uso da forca sao bern mais acentuados.

Na perspectiva de Foucault, a atitude de modemidade, por incitar o indivfduo a uma tarefa de superacao de limites que se inicia na propria subjetividade, seria menos permeavel a manipulacoes do sistema economico e politico. A tomada de posicao etica que uma atitude de modernidade acarreta poderia superar os controles e as tecnicas do poder pelo fato de que ela e, por peticao estrategica, limitada e parcial. Em verdade, gracas aconciliacao do exercfcio subjetivo da liberdade com as pressoes socio-historicas com as quais tern que lidar, nem todos podem ser considerados sujeitos de uma etica da modernidade. A vida etica e para aqueles com disponibilidade subjetiva para 0 exercfcio de uma racionalidade que se dobra sobre ela mesma, 0 que configuraria uma 'ontologia crftica de nos mesmos'. Por este motivo, em todo momento historico, urna forma de etica como a preconizada por Foucault representa urn pensamento e uma a~ao possiveis apenas a segmentos determinados do universo social. Mas esta etica, temos que ressaltar, nao e urn privilegio de elites, uma vez que, para Foucault, nao somente pela diversidade de fonnas e de fins que pode assumir, mas sobretudo pelo poder de incitar 0 indivfduo acriacao de urn modo de vida subtrafda das morais interessadas da mundanidade, ela chama os mais diversos tipos de indivfduos a distintos modos de realizacao subjetiva e pessoal. E neste particular advem a tese crucial de Foucault de sua fase etica: a atitude de modernidade desagua numa estetica de existencia, atraves da qual e 0 proprio sujeito que toma-se objeto de sua invencao e auto­constituicao. Segundo Foucault, seria impossfvel desvincular a autonomia do sujeito da articulacao entre vida e arte. A estetica da existencia vern a ser 0 apice de uma operacao etica, enquanto atitude de modemidade: "a

Page 148: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

145

formacao eo desenvolvimento de uma pratica de si tern por objetivo 0 de se constituir enquanto artifice da beleza de sua propria vida" (Foucault, 1994; p. 671). E, neste caso, seria possfvel se ter urn instrumento especial para se refutar 0 govemo por individuacao: a govemabilidade, que se exerce do sujeito para consigo mesmo e face as estruturas de poder, que eem verdade a antftese da moral individualista. Pois nesse caso, pela afirmacao da arte, da vida como uma obra de arte, se afirma urna etica que eexpressao de forca e autonomia. Dai, uma consequencia toma-se inevitavel: uma vida bela eindissociavel de uma sutil generosidade e solidariedade.

* 0 texto e versao, ligeiramente modificada, do trabalho apresentado no Seminario 0 Nordeste Brasileiro no Mundo globalizado, realizado no Recife-PE, no perfodo de 18 a 21 de novembro de 1997, na Fundacao Joaquim Nabuco.

Bibliografias

1. FOUCAULT, Michel. Histoire de la Sexualite, Paris, Gallimard, v. d., 3 vols.

2. Dits et Ecrits, Paris, Gallimard, 1994,4 vols. 3. LACAN, Jacques. Le Seminaire. Livre VII. L'ethique de la

Psychanalyse, Paris, Seuil, 1986. 4. MENEZES, Antonio.A ideia de uma "nova ordem" ou 0

remapeamento do caos: ensaio sobre a sistematizaciio do "mundo vital" in Principios, Natal, UFRN, Ano II, n° 3, 1995.

Page 149: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 150: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

UMA HEURISTICA PLATONICA PARA TERNOS PITAG6RICOS

John A. Fossa Glenn lv. Erickson

Abstract In The Republic, Plato presents the analogy of the divided line in order to unify his ontological, epistemological and cosmological doctrine. It is rarely noted, however, that the divided line has mathematical applications. In this paper, we explore the relationship ofthe divided line to the problem ofderiving Pythagorean triples, that is, sets of three integers that serve as the sides of Pythagorean triangles. We also note the significance ofthis application within a broader context.

Na Republica, Platao apresenta a analogia da linha dividida para sintetizar sua doutrina ontol6gica, epistemol6gica e cosmol6gica. Em consequencia, virtualmente todos os comentadores de Platao tern dedicado, merecidamente, longas explicacoes a esse passagem. Ninguem, porem, tern notado que a analogia da linha dividida tern uma aplicacao ao seguinte importante problema matematico relacionado ao Teorerna de Pitagoras. Os comentadores nao vislumbram a referida aplicacao porque nao tomaram a matematica platonica a serio, Em ERICKSON e FOSSA (1996), porem, mostramos como a matematica platonica euma

PrincipiosAno04,n05,p.147-158,1997

Page 151: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

148

parte integral da sua doutrina e que ha uma interrelacao surpreendente entre as varias passagens matematicas platonicas. 0 fato de que a linha tern este elenco variado de aplicacoes, deveria ter levado Platao a ve-la como uma estrutura basica do universo.

Voltando nossa atencao para 0 problema em tela, lembramos que havia na Antigiiidade tres formulas interessantes para gerar temos pitagoricos, ou seja, tres mimeros inteiros que medem os lados de urn triangulo retangulo. Eclaro que os termos de urn temo pitagorico (a,b,c) sao relacionados pelo Teorema de Pitagoras: a2+b2=c2, onde a e b sao os catetos do triangulo e c ea sua hipotenusa. No presente trabalho, (a,b,c) representara urn terno pitagorico em que a-cb-cc: assim, c sempre representara a hipotenusa.

A primeira das referidas formulas, atribuida a Pitagoras, pode ser formulada da seguinte maneira: se nE N,

(2n+ 1, Y2(2n+ 1)2_Y2, Y2(2n+ 1)2+Y2) eurn terno pitagorico, A formula gera urn temo para todo inteiro impar maior ou igual a tres e, em todo temo gerado pela formula, temos c-be l , Listamos a seguir os seis ternos pitagoricos (a,b,c) com a<b e c<lOO, dados pela regra atribuida ao Pitagoras:

1. (3,4,5) 2. (5,12,13) 3. (7,24,25) 4. (9,40,41) 5. (11,60,61) 6. (13,84,85).

HEATH (1981) sugere que a formula poderia ter sido descoberta pela examinacao de dois quadrados figurados sucessivos.

Desde que 0 gnomon acrescentado ao quadrado de 1000 k para obter 0 quadrado de lado k+ 1 e 0 mimero Impar 2k+ 1, basta deixar 0

gnomon ser urn mirnero quadrado (isto e, 2k+ l=n2) e resolver para k.

0000;0 0000;0 0000;0

_'??_~_?jo 0000 0

Page 152: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

149

No exemplo acima, 2k+l=9=32 e temos 32+42::5 2• A sugestao

de Heath, porem, nao parece inteiramente convincente porque a formula de Pitagoras vale para todo mimero Impar (maior que 1) e nao somente os que sao tambem mimeros quadrados. Achamos mais provavel que Pitagoras (ou os seus predecessores babilonicos) notou que, nos triangulos em tela, a2=b+c onde c=b+ 1. Desde que a e Impar, a2 tambem sera fmpar. Mas, a caracterizacao pitagorica de mimeros Impares consiste precisamente no fato de que nao podem ser divididos em dois mimeros iguais, pois sempre resta urn seixo. Assim, dado urn mimero Impar, Pitagoras teria achado 0 seu quadrado e dividido este quadrado em partes que diferem por urn iinico seixo. As referidas partes fomecem 0 cateto maior e a hipotenusa do triangulo procurado. Por exemplo, 112=121=60+61; portanto, (11,60,61) eurn temo pitagorico. Depois de ter feito este raciocfnio, a sugestao de Heath seria uma maneira pitagorica natural para fazer uma demonstracao figurada do teorema.

A segunda formula a que nos referimos acima e atribufda a Platao. Pode ser formulada da seguinte maneira: se nE N-{1},

(2n,n2-1 ,n2+1) eurn temo pitagorico. Em contraste aformula de Pitagoras, a formula de Platao gera temos pitagoricos em que a epar e c-b=2. Ao exemplo do que fizemos para temos gerados pela formula de Pitagoras, listamos a seguir os oito temos (a,b,c), gerados pela formula de Platao, com a<b (excepcionalmente a>b para n=2) e c<100:

1. (4,3,5) 2. (6,8,10) 3. (8,15,17) 4. (10,24,26) 5. (12,35,37) 6. (14,48,50) 7. (16,63,65) 8. (18,80,82)

Mais uma vez, Heath sugere que a formula poderia ter sido descoberta considerando dois quadrados de lados k e k+2, bern como os dois gnomons usados para formar este daquele. Omitiremos aqui os

Page 153: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

150

detalhes. Observamos que 0 consenso dos historiadores da matematica parece ser que 0 resu1tado de Platao "e apenas uma versao ligeiramente modificada de urn resultado ja conhecido pelos babilonios e pitag6ricos" (BOYER, 1983; pag. 65). Assim, a f6rmula de Pitagoras e a de Platao sao vistas como complementares, porern insuficientes para gerar todos os ternos pitag6ricos.

Para ter uma ideia melhor da relacao entre as duas f6rmulas e os ternos nao gerados por elas, listaremos todos os ternos com eel00. Antes, porem, definiremos urn conceito que nos ajudara a organizar toda esta informacao, 0 referido conceito e0 de terno pitagorico primitivo que e urn terno pitag6rico (a.b,c) em que 0 M.D.C.{ a.b }=1 - portanto, M.D.C.{a,b,c}=1. Deveria ser claro que se urn terno (a,b,c) nao e primitivo, entao eurn rmiltiplo de urn terno primitivo (d,e,t); desta forma (a,b,c)=(kd,ke,kf) para qualquer ke N. Assim, os 50 ternos pitag6ricos (a,b,c) com a<b e c<l00, agrupados segundo os 16 ternos primitivos com c<l00, sao:

1.1. (3,4,5) 2.1. (5,12,13) 6.1. (11,60,61) 1.2. (6,8,10) 2.2. (10,24,26) 1.3. (9,12,15) 2.3. (15,36,39) 7.1. (12,35,37) 1.4. (12,16,20) 2.4. (20,48,52) 7.2. (24,70,74) 1.5. (15,20,25) 2.5. (25,60,65) 1.6. (18,24,30) 2.6. (30,72,78) 8.1. (13,84,85) 1.7. (21,28,35) 2.7. (35,84,91) 1.8. (24,32,40) 9.1. (16,63,65) 1.9. (27,36,45) 3.1. (7,24,25) 1.10. (30,40,50) 3.2. (14,48,50) 10.1. (20,21,29) 1.11. (33,44,55) 3.3. (21,72,75) 10.2. (40,42,58) 1.12. (36,48,60) 10.3. (60,80,82) 1.13. (39,52,65) 4.1. (8,15,17) 1.14. (42,56,70) 4.2. (16,30,34) 11.1. (28,45,53) 1.15. (45,60,75) 4.3. (24,45,51) 1.16. (48,64,80) 4.4. (32,60,68) 12.1. (33,56,65) 1.17. (51,68,85) 4.5. (40,75,85) 1.18. (54,72,90) 13.1. (36,77,85)

Page 154: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

151

1.19. (57,76,95) 5.1. (9,40,41) 14.1 (39,80,89) 5.2. (18,80,82) 15.1. (48,55,73)

16.1. (65,72,97)

Desta listagem constatamos que ha ate ternos pitag6ricos primitivos que nao sao gerados pelas f6rmulas. 0 terno (20,21,29), por exemplo, nao egerado pela f6rmula de Pitagoras desde que c-b'I e nao egerado pela f6rmula de Platao desde que c-b:t:2.

Em ERICKSON e FOSSA (1996), mostramos que a alegoria platonica da "linha dividida" erelacionada ao Teorema de Platao, 0 que afirma, em parte, que entre cada dois mimeros quadrados ha uma (iinica) media geometrica integral. De fato, mostramos que se x1u/v/ye uma linha dividida segundo as especificacoes de Platao, entao u=v e u e a media geometrica de x e y (isto e, u2=xy). Mostramos ainda que quando x=l, a linha dividida se reduz a forma elegante de 1/nlnln2

, onde, eclaro, ne N e detectamos varias linhas divididas desta natureza, representando varies conceitos platonicos, na estrutura matematica ("a piramide platonica"), Curiosamente, estas linhas divididas tambem rem uma relacao estreita com os ternos pitag6ricos gerados pela f6rmula de Platao. De fato, dado 1/nInI n2, (n+n,n2-1,n2+1) sera uma terno pitag6rico, mas esta f6rmula e precisamente a f6rmula de Platao: (2n,n2-1 ,n2+1). Comecando, por exemplo, da linha dividida 1/6/6/36, geramos urn terno deixando a=2x6, b=36-1, c=36+1. Relacionamos a seguir os ternos gerados pela f6rmula de Platao (para c<l(0) com as linhas divididas geradores:

1/1/1/1 1/2/2/4 (4,3,5) 1/3/3/9 (6,8,10) 1/4/4/16 (8,15,17) 1/5/5/25 (10,24,26) 1/6/6/36 (12,35,37) 1/7/7/49 (14,48,50) 1/8/8/64 (16,63,65) 1/9/9/81 (18;80,82)

e, emgeral, 1/nlnln2

Page 155: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

152

o caso n=1 nao gera urn terno, mas a razao da sua inclusao aqui sera esclarecida logo. Primeiro, porem, queremos sugerir que foi do estudo intensivo das propriedades das linhas divididas que nasceu a f6rmula de Platao para ternos pitag6ricos. As linhas divididas eram objetos que mereceram escrutfnio cuidadoso, pois estruturaram a ontologia, epistemologia e cosmologia platonicas, Ainda mais, seria naturalligar as linhas divididas com triangulos retangulos atraves do diagrama de Pappus, que e usado para construir a media geometrica de dois extremos (veja ERICKSON e FOSSA). Assim, se nossa linha dividida e 1/n/n/n2

, n e a media entre 0 termo extremo pequeno 1 e 0 termo extremo grande n2.

Justapomos estes dois extremos para formar a base de uma semicircunferencia de raio r; entao a media geometrica, n, sera dada pela perpendicular abase, no onto dajuncao dos extremos, conforme ilustrado pela figura.

r

Desde que 0 raio r da semicircunferencia discutida no paragrafo anterior e igual a Yz(n2+1), r sera integral quando n (e, portanto, n2

) for impar. Assim, 0 diagrarna de Pappus nos fornece urn outro triangulo retangulo associado as linhas divididas. Dada, por exemplo, a linha dividida Impar (isto e, n impar) 1/5/5/25, c=r=Yz(25+1)=13; b=13-1=12; e a=5. Portanto, 0 terno (5,12,13) e associado areferida linha dividida. Conforme a nossa pratica anterior, calculamos os triangulos achados nos diagramas de Pappus com c<l00 para as linhas divididas Impares:

1/3/3/9 (3,4,5) 1/5/5/25 (5,12,13) Inn/49 (7,24,25) 1/9/9/81 (9,40,41) 1/11/11/121 (11,60,61) 1/13/13/169 (13,84,85)

Page 156: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

153

Que surpresa! Os ternos pitag6ricos achados dentro do diagrarna de Pappus referentes as linhas divididas Impares sao exatamente os que sao gerados pela f6rmula de Pitagoras - pelo menos, para os casos com c<100. Sera que esempre 0 caso? Desde que n eurn inteiro Impar maior do que 1, deixamos n=2k+1 onde kiN. Entao, pelo teorema de

2+(r-l)2=(2k+1)2+(r-l)2. Pitagoras r=n Resolvendo para r, achamos c=r=Y2(2k+1)2+Y2 e isto implica que 0 outro cateto e b=r-1=Y2(2k+1)2­Y2. Mas estes valores sao precisamente os dados pela f6rmula de Pitagoras,

2+1o que acontece quando a linha dividida epar? Para n par, neImpar e, portanto, r=Y2(n2+1) nao eintegral. Assim, 0 triangulo dentro do diagrarna de Pappus nao tera lados integrais. 0 denominador, porern, esempre 2 e, portanto, se multiplicamos todos os lados por 2, acharemos urn triangulo retangulo com lados integrais. Com efeito, desde que n e par, n=2ke r2=n2+(r-l)2=(2k)2+(r- l)2. Portanto, r= Y2(4k2+ 1) er-1=Y2(4k2­

1). Lembrando que n=2k, ou seja n2=4k2, temos r=Y2(n2+1)e r-1=Y2(n2­

1). Assim, os triangulos dentro dos diagramas de Pappus referentes a linhas divididas pares sao dados pelo terno (n,Y2(n2-1),Y2(n 2+1)). Multiplicando este terno por dois achamos 0 terno (2n,n2-1 ,n2+1) que nao esomente integral, mas tambem eexatamente a f6rmula de Plataol

Dado 0 exposto, parece razoavel supor que Platao, na sua investigacao das linhas divididas, notou que para linhas divididas fmpares os triangulos dentro dos diagrarnas de Pappus erarn os que sao gerados pela f6rmula de Pitagoras. Assim, ele naturalmente investigaria 0 que acontece com linhas divididas pares, 0 que Ieva-lo-ia asua f6rmu1a para n par. Mas, desde que (2a,2b,2c) sera urn terno pitag6rico sempre que (a,b,c) 0 e, a sua f6rmula tambem vale para n Impar, Assim, associados a linhas divididas fmpares temos dois ternos, urn dado pela f6rmula de Pitagoras e 0 seu dobro dado pela f6rmula de Platao, enquanto para as linhas divididas pares s6 temos urn terno associado - 0 que edado pela teorema de Platao.

Uma caracteristica marcante da matematica pitag6rica e platonica ea presenca ubiqua de algarismos que sistematizarn e geram as varias estruturas estudadas. Talvez 0 gerador mais conhecido seja a unidade como 0 gerador de todos os mimeros. Uma coisa semelhante acontece

Page 157: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

154

com as linhas divididas, 1/1/1/1 sendo 0 gerador das outras. 0 algoritmo em questao, que e bastante simples e era bern conhecido na Antiqiiidade, implica que a soma do extremo menor com a media sera a media entre 0

extremo menor original e a soma de todas as partes da linha. Na linha 1/ 2/214,por exemplo, 0 extremo menor e 1 e a media e 2, dando uma soma de 3, enquanto a soma das partes e 1+2+2+4=9. Assim, 0 novo extremo menor e justamente 0 extremo menor anterior, ou seja, 1; a nova media e 3; e 0 novo extremo maior e 9. Isto nos da uma nova linha dividida 1/ 3/3/9. Portanto, 0 algoritmo gera a terceira linha a partir da segunda, e assim por diante. Verificamos 0 algoritmo para as primeiras nove linhas:

1/1/1/1 ~ 1/1+1/1+1 ~ 1/2/2/4 1/2/2/4 ~ 1/1+211+211+2+2+4 ~ 1/313/9 1/3/3/9 ~ 1/1+3/1+3/1+3+3+9 ~ 1/4/4/16 1/4/4/16 ~ 1/1+4/1+4/1+4+4+16 ~ 1/5/5/25 1/5/5/25 ~ 1/1+5/1+5/1+5+5+25 ~ 1/6/6/36 1/6/6/36 ~ 1/1+6/1+6/1+6+6+36 ~ 1/7/7/49 1/7/7/49 ~ 1/1+7/1+7/1+7+7+49 => 1/8/8/64 1/8/8/64 ~ 1/1+8/1+8/1+8+8+64 ~ 1/9/9/81

Emgeral, 1/n/n/n2 ~ 1/n+ 1/n+ 1/1+n+n+n2 ~ 1/n+1/n+ 1/1+2n+n2 ~ 1/n+1/n+ 1/ (n+ 1)2,e, portanto, cada linha gera a pr6xima da sequencia pela aplicacao do referido algoritmo.

A existencia de urn algoritmo que gera todas as linhas divididas da forma 1/n/n/n2 e urn resultado extremamente interessante, mas niio muda 0 fato de que a formula de Pitagoras e a formula de Platiio ­juntas - niio geram todos os temos pitag6ricos, nem todos os temos pitag6ricos primitivos. Niio obstante, 0 algoritmo acirna apresentado e obviamente incompleto, pois seria patente para Platiio que a soma da media com 0 extremo maior tambem nos dara uma nova media. Assim, a linha 1/4/4/16, por exemplo, nos da niio somente 1/5/5/25, confonne a explicacao feita acima, mas tambem

1/4/4/16 ~ 16/4+16/4+16/1+4+4+16 ~ 16/20/20/25. Desde que 202=16'25=400, 20 e a media geometrica entre 16 e 25 e,

Page 158: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

155

portanto, 16/20/20/25 e uma linha dividida do tipo que Platao especifica na Republica. Quando 0 extremo menor e 1, 0 resultado e 6bvio, pois

lIn/n/n2 :::::} n2/n(n+1)/n(n+1)/(n+1)2. Mas, 16/20/20/25, por exemplo, tambem gera duas novas linhas da seguinte maneira:

16/20/20/25 :::::} 16/16+20/16+20/16+20+20+25 :::::} 16/36/36/81 16/20/20/25 :::::} 25/20+25/20+25/16+20+20+25 :::::} 25/45/45/81.

E claro que 362=16'81 e 452=25'81 e, assim, os resultados sao linhas divididas legftimas,

Podemos generalizar este resultado? Sejam m20 extremo menor 2e n 0 extremo maior; entao, pelo Teorema de Platao mn e a media

geometrica entre estes extremos e m2/mn/mn/n2sera uma linha dividida. A soma das suas partes e m2+mn+rnn+n2:m2+2mn+n2=(m+n)2. Assim, o algoritmo nos da: rrr/rnnlmnln2 :::::} 2/m2+rnn!Irr+mn/(m+nf :::::} rrrlm(m+n}'m(m+n}'(m+nf

2/mn/mn/n2:::::} 2/mn+n2/mn+n2/(m+n)2:::::} 2/n(m+n}'n(m+n)/(m+n)2.m n nDe novo, 0 Teorema de Platao nos garante que m(m+n) e a media geometrica de m' e (m-en)", enquanto n(m+n) e a media geometrica de n2e (m-n)" e, portanto, as linhas resultantes sao linhas divididas legftimas,

Reitemos pitagoricos associados a estas novas linhas divididas? Considere 0 diagrama de Pappus referente alinha m2/mn/mn/n2. Desde que 0 diametro da semicircunferencia e n2+m2, c=r=Y2(n2+m2) e os dois catetos sao dados por rnn e r-m2=Y2(n2-m2). Ora, se n2+m2e par, r sera integral; senao, basta multiplicar todos os lados por dois. Assirn, como no caso anterior em que 0 extremo menor era 1, se r for par, dois temos pitagoricos serao gerados, urn 0 dobro do outro; se rfor Impar, somente urn temo sera gerado. Portanto, toda linha dividida m2/mn/mn/n2gerara urn temo (2rnn,n2-m2,n2+m2).

r

r r-m2

~--- n 2 ------+) m2

Page 159: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

156

Sera interessante ver alguns exemplos concretos destas linhas e os triangulos gerados. Para tanto, listaremos a seguir os primeiros seis Niveis de linhas e os ternos gerados. S6listaremos ternos em que e-el 00 e manteremos acb, embora 20m pode ser maior do que n2_m2 e, assim, 0

cateto procedente da media geometrica sera escrito em letras italicas, Para facilitar a comparacao, tambem notaremos 0 mimero de cada terno na lista de ternos com c<100 que foi dada no infcio do presente trabalho.

linha dividida N1. 1/1/1/1 N2. 1/2/2/4 N3. 1/3/3/9

4/6/6/9 N4. 1/4/4/16

9/12/12/16 4/10/10/25 9/15/15/25

N5. 1/5/5/25 16/20/20/25 9/21/21/49

16/28/28/49 4/14/14/49 25/35/35/49 9/24/24/64 25/40/40/64

N61/6/6/36 25/30/30/36 16/36/36/81 25/45/45/81 9/30/30/100 49nOn0/100 16/44/44/121 49n7n7/121 4/18/18/81

terno para r par

(3,4,5)

(8,15,17) (5,12,13)

(20,21,29)

(12,35,37)

(28,45,53)

(36,77,85)

terno para r Impar

(3,4,5) (6,8,10) (5,12,13) (8,15,17) (7,24,25) (20,21,29) (16,30,34) (10,24,26) (9,40,41) (40,42,58) (33,56,65) (28,45,53) (24,70,74) (48,55,73) (39,80,89) (12,35,37) (11,60,61) (65,72,97) c>100 c>loo c>100 c>100 c>100 (36,77 ,85)

N°· na lista de ternos

1.1 1.1/2 2.1 4.1 3.1 10.1 4.1/2 2.1/2 5.1 10.1/2 12.1 11.1 7.1/2 15.1 14.1 7.1 6.1 16.1 11.1

13.1 13.1

Page 160: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

157

49/63/63/81 (16,63,65) c>l00 9.1 25/60/601144 c>l00 49/84/841144 c>l00 9/33/331121 (33,56,65) c>100 12.1 64/88/881121 c>100 25/65/651169 (65,72,97) c>100 16.1 64110411041169 c>100

Observamos que 0 iinico temo que aparece na segunda coluna, mas nao na terceira, e (16,63,65). A primeira linha dividida de Nivel8, porem, nos fomece 0 referido temo, pois

1/8/8/64::::> (2 '8,64-1 ,64+ 1) = (16,63,65). E tambem notavel que 0 unico temo primitivo com c<100 que

nao aparece na terceira coluna e N°· 8.1: (13,84,85). Mas, esta falha e somente aparente porque a segunda linha de Nfvel 8 gera 0 referido temo da seguinte forma:

36/42/42/49::::> (49-36,2'42,49+36) = (13,84,85). Observamos ainda que cada temo da terceira coluna e ou urn

temo primitivo ou 0 duplo de urn temo primitivo. Finalmente, comparando a f6rmula de Platao,

(2n,n2-1 ,n2+1), com 0 algoritmo que gera a terceira coluna,

(2rnn,n2-m2,n2+m2) ,

vemos que 0 novo algoritmo e uma generalizacao da f6rmula de Platao e, de fato, se reduz a f6rmula de Platao quando deixamos m= 1. Assim, denominamos 0 novo algoritmo de "f6rmula generalizada de Platao", ou "FGP".

As observacoes feitas no paragrafo anterior nos leva as seguintes indagacoes:

1. Ha urn temo dado por urn diagrama de Pappus que nao e gerado por FGP?

2. FGP gera todos os temos pitag6ricos? 3. FGP gera todos os temos pitag6ricos primitivos? A nossa investigacao empirica ate agora indica que as primeiras

duas perguntas sejam respondidas negativamente, enquanto a ultima seja

Page 161: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

158

respondida afinnativamente. De fato, e facil ver que FGP nao gera todos os temos pitag6ricos pois 15 nao pode ser escrito como m2+n2 com m,niN e, portanto, 0 temo (9,16,15) nao e gerado por FGP. Que FGP gera todos os temos pitag6ricos primitivos e 0 teor parcial de urn teorema classico da Teoria dos Niimeros: mas, 0 teorema todo e tambem facilmente percebido a partir da nossa evidencia empirica, pois basta observar que FGP da temos primitivos para linhas fmpares com men sendo primos entre si. Desde que todos os temos primitivos sao gerados por FGP, e evidente que nao ha ternos dados por urn diagrama de Pappus que nao sao gerados por FGP.

Assim, parece muito provavel que Platao possuia urn algoritmo sistematico para gerar todos os temos pitag6ricos, pois uma vez que ele pudesse gerar os temos primitivos, os demais seriam apenas rmiltiplos destes. Como vimos acima, bastaria que Platao tivesse notado que 0

triangulo dado no diagrama de Pappus para linhas divididas pares e gerado pela f6nnula de Pitagoras, Este triangulo, portanto, teria urn papel fundamental na descoberta de Platao; nao obstante, na sua investigacao do que acontece com linhas divididas Impares ele perceberia que, em tennos do algoritmo, nao era este triangulo que era importante, mas 0

seu dobro. 0 resto sai quase de imediato do algoritmo que gera as linhas divididas a partir de 1/1/1/1. 0 resultado e ate mais elegante do que a terceira f6rmula mencionada no infcio deste trabalho, dada em EUCLIDES (1956) - Lema 1 aProposicao X.29.

Referenclas Bibliograticas

1. Boyer, Carl B., Historia da Matematica (traducao de Elza F. Gomide), Edgard Blucher, SaoPaulo: 1974.

2. Erickson, Glenn W. e John A. Fossa,A Pirtimide Platonica, Editorada UFPb, Joao Pessoa: 1996.

3. Euclides, The Elements (traducao e comentario por Thomas L. Heath), Dover, New York: 1956.

4. Heath, Thomas L, A History ofGreek Mathematics, Dover, New York: 1981.

Page 162: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

ACERCA DO CONCEITO DE FENOMENO NA CRiTICA DARAZAOPURA

Juan Adolfo Bonaccini; PhD.

Abstract The notion of Appearance (Erscheinung) plays a fundamental role in Kant's Critical Philosophy. It functions in the Kritik der reinen vemunft' as the key notion by opening the gates to the transcendental point ofview and by locking reason out of traditional metaphysics. This claim has often been accepted by Kantians and other philosophers. Yet there has been a longstanding polemic concerning the epistemological legitimacy ofthe notion, mostly because of its implications. Some of these implications and some of the main historical objections raised against this notion since the time of German Idealism are analysed, and it is argued that, even from a transcendental point ofview, the notion of Appearance involves a paradox. This difficulty is not, however, due

1 Kritik derreinen Vernunft, nach der ersten und zweiten Original-Ausgabe neu herausgegeben von Raymund Schmidt. Hamburg: Felix meiner Verlag.141956 CNachdruck von 1971).Coma ede praxe, dtamos a mimero da paginapreredida pelas letras A au B, que indicam respectivamente a primeira (Riga:].F.Hartknoch. 1781) au a segunda (Riga:J.F.Hartknoch. 1787) das edicoes,

Principias Ano 04, n 05, p. 159-186, 1997

Page 163: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

160

to a simple mistake on Kant's part, but arises for any theoretical standpoint in the light ofthe problems ofgrounding and of justification.

Key-Words: Transcendental Idealism; Appearance; Thing in Itself; Objections; Paradox.

Resumo o conceito de fenomeno (Erscheinung) cumpre um papel fundamental na filosofia de Kant. Na Crttica da Raziio Pura', constitui a chave que abre todas as portas afilosofia transcendental e as fecha ametafisica tradicional. Isto parece ser urn ponto pacifico para os kantianos e para muitos outros 0 que, contudo, tem gerado urna ampla polemica e 0 estatuto de legitimidade deste conceito, sobretudo em funriio de suas implicaciies. 0 presente texto pretende elucidar algumas dessas implicaciies a lu: dos argumentos de Kant e de objecoes que foram levantadas por filosofos e interpretes desde a epoca do Idealismo a Alemdo. Meu intuito e0 de evidenciar urnproblema. Sugiro que 0

conceito implica urnparadoxo, mas que este ndo se deve imputar a um erro de Kant, e sim a uma dificuldade essencial a todo discurso teorico do ponto de vista de sua fundamentaciio.

Palavms-chave: Idealismo Transcendental- Fenomeno - Coisa em si - Paradoxo - Objeciies.

1

Aparentemente existiriam duas possfveis estrategias para a analise do conceito de fenomeno, A primeira consistiria em frisar cada uma das passagens onde Kant apresenta, define e justifica a sua necessidade, a fim de poder contar com elementos suficientes para elucida-lo, Neste caso, poderfamos partir do conceito de intuicao, tal como Kant faz no infcio da Estetica, para mostrar 0 que ele quer dizer quando defme fenomeno inicialmente como "0 objeto indeterminado de uma intuicao empfrica'? e explicar por que epreciso distinguir a forma

2B34.

Page 164: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

161

da materia do fenomeno: poderiamos somar a isso as conseqiiencias que Kant apresenta na propria Estetica e tentar ver como elas cobram sentido na Analitica, notadamente.com 0 "novo" estatuto que 0 conceito recebe na da Analitica dos Principios, no capitulo que trata de distincao entre Fenomenos e Noumenos" .

No entanto, existem no meu entender duas boas razoes para recusar esta primeira estrategia. A primeira e simples: semelhante abordagem exigiria ultrapassar os limites de urn paper (inicialmente destinado aleitura num congresso, como aqui e 0 caso). A segunda reside em que nao e preciso comentar em detalhe as principais passagens onde Kant se refere explicitamente ao conceito de fenomeno para examinar 0

seu estatuto. Basta resumi-las a urn argumento ou a urn conjunto de argumentos. Dessa maneira podemos reduzir a questao a urn minima de principios, como Kant aconselhava" , e torna-la mais clara. Desta conviccao parte a segunda estrategia, que foi a escolhida para a presente exposicao,

A segunda estrategia parte do pressuposto que Kant apresenta uma tese e que 0 ceme do que ele propoe pode ser considerado como 0

desenvolvimento de urn iinico argumento. Mas este pressuposto nao e injustificado, se e verdade que 0 pr6prio Kant fomece explicitamente subsfdios para fundamenta-lo. Inclusive constitui urn ponto pacifico entre varies estudiosos". Trata-se da tese do chamado "Idealismo Transcendental". Nestes termos, a estrategia escolhida consistira em dizer que 0 conceito de fenomeno e urn elemento fundamental desta tese e que por isso mesmo pode ser elucidado a luz do conceito do "Idealismo Transcendental". A estrategia supoe, portanto, que 0 argumento de Kant

3 ':J:l se ganha muito quando urn conjunto (Menge) de investigacoes econduzido aformula de urn unico problema(Aufgabe)"(B19); d. B361.

4Veja-se Paton, H.]. Kant'sMetaphysicofExperience. London!NewYork: Allen & Unwin. 21951 (II Volumes) , I p. 42; Strawson, P.E TheBounds cf'Sense. london: Methuen & Co. 1%6, p.25. As leituras de Ewing, AC. (A Short Commentary on Kant's Critique ofpureReason.Chicago: The University of Chicago Press.1938, pp.9ss), Lebrun, G. (Kant e 0 Fim daMetafisica. Trad.de CA Ribeiro de Moura.

Page 165: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

162

nos permite analisar 0 conceito de fenomeno porque este euma de suas condicoes, Isto significa, por sua vez, que sem 0 conceito de fenomeno nao subsiste nem se pode fonnular a tese do Idealismo Transcendental. E que se ele trouxer implicitas quaisquer dificuldades, as mesmas irao afetar toda a tese. A questao que nos ocupa agora pode ser fonnulada da seguinte maneira: qual a tese do Idealismo Transcendental, ou melhor, qual 0 argumento central de Kant?

2

o argumento de Kant poderia ser reconstrufdo da seguinte maneira: "nao conhecemos as coisas tal como elas sao nelas mesmas, mas isto nao significa negar sua existencia porque conhecemos suas aparicoes, i.e, seus fenomenos",

Ora bern, como se explica esse argumento? Quais as condicoes sob as quais ocorre sua exposicao?

No meu entender ele se baseia num problema; no impasse gerado pelas antinomias da metaffsica tradicional. A partir desse problema Kant avanca do is sub-argumentos que sustentam 0 argumento central do Idealismo Transcendental.

o problema surge a partir da indiferenca e do ceticismo fomentados pelo dogmatismo dametaffsica tradicional" -¥'2defmido por Kant como 0 uso da razao para alem da experiencia sem urn exame

Sao Paulo: M.Fonres.1993, p.4), e Allison, H.E. (Kant's TranscendentalIdealism: AnInterpretation an Defense. New HavenlLondon: Yale University Press.1983, pp.3ss/25ss.) nao me parecem incompativeis com esta estrategia. Ta!vez 0

opositor mais ferrenho de uma exegese seme1hante seja Hans Vaihinger (CommenfarzuKantsKritikderreinen Vernunfl..(I. Band 1881/11. Band 1892). Herausgegeben von R.Schmidt. Stuttgart:Union Deutsche Verlagsgesellschaft.2 1922 (Neudruck: Sdentia Verlag Aalen. 1970), quem considerava impassive! reduzir a Criticaa urn unico e!emento (I, p.448)'

5 AIX- X.

Page 166: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

163

previo da sua capacidade" . Com base nesta atitude a filosofia anda em cfrculos, freqiientemente volta atras, via de regra quando mais parece se aproximar do tim, e nao consegue chegar a urn consenso, mergulhando em contradicoes e desavencas? . Este problema ira mostrar que e a falta de urn criterio seguro 0 que impede a metafisica de encetar 0 "caminho segura de uma ciencia'" e leva os interlocutores ao conflito? . E uma vez que os argumentos dos metafisicos se contrariam uns aos outros, mas sao aparentemente coerentes do ponto de vista logico, 0 conflito da opinioes e dos sistemas de metafisica patenteia urn conflito da razao consigo mesma: uma aporia aparentemente insohivel que abriga a propria razao a urn rigoroso auto-exame'". E precisamente esta situacao que conduz aos dois sub-argumentos (1,2) que operam como condicoes da formulacao do argumento principal do Idealismo Transcendental (3):

1. Se 0 pressuposto basico dos metaffsicos e que mediante a razao pura e possfvel conhecer as coisas tal como elas sao nelas mesmas, mas isso levou a inumeras contradicoes (mais precisamente: provocou antinomias ate agora insohiveis), entao ele deve ser abandonado sob a suspeita de conter urn erro oculto nas premissas;

6BXXXV.

7 Cf. B VII/B XlV. 8 Ibidem. 9 Vide B xx. a. com B8 e B 43458 ;d. Kritik derpraktischen Vemunft (doravante

Kp"V) ,AI93, in: WerlwJinzw6!fBiinden. FranfurtamMain: Suhrkamp. 61982, VII, pp.234-235. Sabre oproblema das antinomias ciametafi'sica cr. nossos trabalhos: ADialeticaemKanteHegel.(Dissertac;aodeMestrado apresenraclaao Depto.de Filosofia do IFCS/UFRJ e aprovada em 28/05/93) (no prelo), pp.7ss; "Del motivo Ultimo y rector de la Critica de laRaz6n Purd' in: Anais da VUSemana IruemacionaldeFiIosofia. Rio deJaneiro. 1992, \bU, pp.I48-155. a.tambem com Erdmann, B.Rejlex:ionen KanJszurkritiscbenPbilo.qJbielrirmg: Fues's (R.Reiland)1.

Bd.I882/11.Bd.l884 (Neudruck: Hrsg. VonN. Hinske. Stuttgart: Bad Cannstadt: Frommann- Holzboog.I992), II, pp. XXIVsslXXVIss.

10 B 434 ss: KpV, A193.

Page 167: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

164

2. Aparentemente haveria uma falacia no procedimento geral dos metafisicos dogmaticos, pois eles pretendem obter urn conhecimento a priori das coisas em si mesmas atraves da simples analise de seus conceitos" . Porem, para saber algo a priori das coisas nelas mesmas seria preciso que elas fossem dadas primeiramente de algum modo, mas nesse caso ja nao se poderia saber a priori nada a respeito delas12. Alem disso, mediante analise conceptual posso apenas trazer atona 0 que esta implicito num conceito" , mas disso nao se segue de modo algum que 0 conceito seja verdadeiro . Donde se segue que seria urn contra-senso pretender urn conhecimento a priori das coisas em si mesmas. E basicamente por duas razoes: 2.1) ou bern nao seria a priori, e neste caso nao haveria conhecimentos universais e necessaries que nao fossem analiticos, 0 que contrariao progresso dasciencias, visto que 0 aciimulo de novos conhecimentos cuja validade universal e reconhecidapor todos nao se deixa explicarcomo simples resultado dadeducao (analise) a partir de conceitos e proposicOes ja conhecidos; 2.2) ou entao ele seria urn conhecimento a priori, mas nao seria urn conhecimento das coisas em si mesmas; pois, afmal, como se poderia conhecer a priori qualquer coisa em si mesma, antes mesmo que ela fosse dada? Para tanto seria preciso que nosso entendimento fosse intuitivo: urn entendimento capaz de veruma coisa no mero ato de pensa-la, em sua essencia mais recondite, 0 que so poderia ocorrer , por sua vez, sob a condicao de que 0 mero ato de pensar urn objeto fosse suficiente para produzi-lo, como se os objetos reais fossem as ideias de umamente divina Mas isto tambemeimpossivel porque somos seres racionais finitos14. Somente uma inteligencia infmita seria capaz de criar as coisas no mero ato de pensa-las.

3. Mas, e se nao conhecessemos as coisas tal como elas sao em si mesmas; se as conhecessemos apenas na medida em que se manifestam diante de nos, travando relaciio conosco a partir das

11 Ver B :xxxv e comparar com B XXX. 12B xvn -comparar com ProIegOmenos, §§ 14,15,16 -A72-75(Welke V,pp. 159ss.). 13 BIG-II. 14Eo que estaimplicado jiino §1da Fstetica Transcendental, e explidto no §8e na III

capitulo da Analitica dos Principios.

Page 168: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

165

condicoes subjetivas da nossa sensibilidade e do nosso entendimento, e as captassernos entao segundo as limitacoes do nosso "aparelho cognitivo", de acordo com a capacidade e estrutura da nossa mente finita, incapaz de conhecer realidades iiltimas? Nesse caso, poderiamos saber algo a priori das coisas antes mesmo que elas nos fossem dadas, muito embora esse saber nada pudesse dizer a respeito da essencia das mesmas, mas tao-somente ao modo como aparecem para n6s sob 0

crivo das nossas faculdades cognitivas. E0 que Kant sugere numa celebre passagem do Prefacio:

"... se a intuicao tivesse que se regular pela natureza dos objetos [enquanto coisas em si - J.A.B], nao vejo como se poderia saber algo a priori a respeito desta ultima; se, porem, 0 objeto (como objeto dos sentidos) [como fenomeno -J.A.B.] se regular pela natureza da nossa faculdade de intuicao, entao poderei muito bern me representar esta possibilidade ..."15.

Deste modo se explica 0 carninho pelo qual Kant chega a formular o seu argumento: se com base no pressuposto que conhecemos coisas em si mesmas fomos levados a imimeras contradicoes, e se e vao para os seres humanos 0 fato de pretenderem urn conhecimento a priori das coisas em si mesmas, entao facamos 0 experimento de considerar que nao conhecemos objetos que sao coisas em si mesmas, mas sim objetos que sao fenomenos , i. e, apariciies de coisas que nelas mesmas desconhecemos.

Eis a tese do Idealismo Transcendental.

Que ela nao faz sentido sem 0 conceito de fenomeno, depreende­se tanto das consideracoes que fizemos acima como das observacoes explicitas de Kant, por exemplo, no Prefacio (B), na Critica do Quarto Paralogismo (A), no capitulo sobre a chave da Solucao das Antinomias Cosmol6gicas (B) - que ejustamente 0 Idealismo Transcendental- e em

15 BXVI-XVII.

Page 169: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

166

varies outros lugares , funcionando em certo modo como urn Leitmotiv e perpassando todos os movimentos dessa sorte de sinfonia conceptual que e a Critica. Nao obstante, e sobretudo na Estetica onde 0 conceito e estabelecido. Notadamente, nos argumentos que Kant extrai das exposicoes metaffsica e transcendental do espaco e do tempo, onde nos e dito que: 1) se objetos sao dados a sensibilidade, entao sao necessariamente submetidos a certas condicoes de intuicao, e por isso sao considerados fenomenos (porque as coisas em si nao se submeteriam em principio a essas condicoes, nao seriam espacio-temporais, ou seja, nao deveriam ser pensadas assim porque ao se submeterem as coordenadas do espaco e do tempo passariam a ser fenomenos); e 2) como essas condicoes sao inalienaveis do nosso modo de conhecer nao podemos conhecer jamais coisas em si mesmas. Donde se seguiria que se a tese do Idealismo Transcendental nao faz sentido sem 0 conceito de fenomeno, e este nao faz sentido sem seu correlato, a saber, 0 conceito de coisa em si, uma vez que fenomenos sao aparicoes de coisas em si, (i.e, coisas que se subordinam a urn certo conjunto de condicoes), entao tampouco se pode entender a tese de Kant (tese que a princfpio e formulada como uma hipotese capaz de resolver 0 problema inicial das aporias da metaffsica) sem 0 conceito de coisa em si. Sem pressupor coisas existindo independentemente de nos e de nossas condicoes subjetivo-cognitivas, coisas capazes de afetar os sentidos e fornecer de algum dado a materia dos objetos para que seja subordinada as condicoes da nossa sensibilidade e constitua a percepcao de fenomenos que ocupam espaco e persistem no tempo; sem isso a tese de Kant nao faz nem pode fazer sentido.

Se isso for verdade, porem, parece que a tese de Kant se ve ameacada por graves circunstancias, Por urn lado, e bern verdade que 0

argumento de Kant se apresenta como uma alternativa aparentemente viavel para abolir0 impassecriado pela metaffsica.Mas por outro, contudo, nao explica como e que se pode afirmar a existencia e a aparicdo daquilo que se confessa desconhecer. Dito de outro modo: entendemos como e por que Kant levanta a hipotese do Idealismo Transcendental (cuja tese sera demonstrada ao longo da Critica), mas nem por isso nos vemos

Page 170: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

167

obrigados a adrnitir sem mais que conhecemos objetos que seriam fenomenos, i.e, aparicoes de coisas que devemos pensar como existentes mas nao podemos conhecer. Sobretudo se considerarrnos que fenomenos para Kant sao representacoes'", mesmo que - para ele - diferentes das representacoes entendidas enquanto simples estados subjetivos de consciencia.

Poderia parecer que esta colocacao eurn falso problema. Com efeito, autores de peso no ambito da Kantforschung como Henry Allison e Gerold Prauss'? tern considerado que e suficiente estabelecer uma distincao entre 0 sentido empfrico e 0 sentido transcendental do uso das expressoes "fenomeno" e "coisa em si" para dirimir todas as diividas e mal-entendidos. Bastaria dizer que do ponto de vista empfrico as coisas efetivamente reais sao consideradas como coisas em si e os fenomenos como meras representacoes subjetivas , enquanto que do ponto de vista transcendental as coisas sao consideradas como fenomenos objetivos (diferentes dos meros estados de consciencia subjetivos) e as coisas em si comourn modo meramente negativo de nos referinnos a estes fenomenos, a saber,na medida em que sao considerados independentes das condicoes subjetivas da sensibilidade (e do entendimento). Neste sentido, parece quepoderfamosdizer: eurnfato que certos objetos sao dados na experiencia como objetos que existem, objetos ernpfricos que em princfpio consideramos como coisas que rem certas caracterfsticas nelas mesmas e outras devidas anossa subjetividade (como Locke, por exemplo). Num

16A369ss;B66;Bl64;Al901B235-236;B518ss,etc. - AincIaque do ponto de vista transcendental.

17 Prauss,G. KantunddasProblemderDingeansich. Bonn: Bouvier.31~.,pp.9ss/

32ss/44ss/47ss, etc. Allison, op.cit., pp.6ss/237ss. Cf. com Merbote, R. "The UnknowabilitydThing'sinThemselves", pp.l66ss. in: Kant's1beoryojKnowIedge. Ed. byL.W.Beck. Dordrecht: Reide1.1974, pp.166-174. Trata-se cIateoria dos dois modos de consideracao do mesmo objeto, sugericIa pelo proprio Kant no prefacio (BXXVss) e em varias passagens cIaCritica (como por exemplo em A38/B55), conhecida hoje (a partir de Allison) como a "Two Aspects Theory" ou teoria dos "two ways of considering one and the same object".

Page 171: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

168

segundo passo reflexivo, analisando em que consistem estes dados, chegariamos a conclusao que eles nao sao coisas "puras" em si mesmas; como se nossa percepcao, ao submete-Ias a certas condicoes epistemicas" , as tornasse opacas ou lhes fizesse perder algo de si mesmas com esse acrescimo formal. A representacao das mesmas despojadas deste condicionamento eque viria dar 0 misterioso conceito de coisa em si formulado como uma proibicao, ou seja, como a tese negativa da incognoscibilidade das coisas em si mesmas. Assim, do ponto de vista empfrico as coisas sao consideradas coisas em si que provocam representacoes em n6s 19 (fenomenos do ponto de vista empfrico); mas do ponto de vista transcendental os mesmos objetos sao fenomenos empiricamente reais dados no espaco e no tempo - diga-se de passagem que objetos somente sao dados enquanto nos afetarrr" - , diferentes do que devem ser neles mesmos se considerados negativamente como coisas em si do ponto de vista transcendental. A tese de Kant - 0 idealismo transcendental - coincide com este ultimo ponto de vista. Todavia, a maioria destesautores considera que Kant pode falar desde ambos atraves de diferentes passos analiticos, Uma boa questao seria determinar se Kant poderia falar legitimamente decoisas em si e de fenomenos (meros estados de consciencia) do ponto de vista empfrico (por exemplo quando admite que coisas devem ser dadas para que haja uma materia passivel de ser subordinada a condicoes epistemicas), ponto de vista no qual se considera objetivo e real tudo que se refere a "qualidades primarias" e subjetivo tudo que se refere as "qualidades secundarias", uma vez que esse e 0

ponto de vista que Kant quer criticar. E, alem disso, suposto que este fosse tiio-somente 0 ponto de partida, se com isso 0 ponto de vista transcendental ndo pressuporia entdo necessariamente 0 ponto de vista empirico, 0 que parece ser [orcoso; e mais ainda, se ao partir dessa pressuposiciio necessaria ndo se comprometeria ontologicamente de modo positivo com a existencia de certas entidades que 0 ponto

18 A expresaoede Allison, op.cit, p.lO. 19 Vide BI, B33-34. :aJIbidem.

Page 172: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

169

de vista transcendental deveria necessariamente negar e ndo poderia absolutamente provar ?

Em principio, parece ser que: 1) Kant nao se pode comprometer com 0 ponto de vista empirico

porque este reflete justamente a tese dos dogmaticos que quer refutar, que estao certos de que existem coisas em si (e que estas nao sao fenomenos, porque fenomenos sao - para eles - representacoes subjetivas);

2) Se Kant se comprometesse com essa tese apenas para ter urn ponto de partida que seja ponto-pacifico, teria que se comprometer epistemicamente com as implicacoes ontologicas dessa sorte de empirismo dogmatico que quer refutar.

Nao podemos aqui fazer uma analise pormenorizada de cada uma das alegacoes emjogo nesta antiga e complex a discus sao, como ja fizemos noutro lugar" , mas faremos algumas breves observacoes que nos parecem pertinentes para sugerir que a teoria dos dois aspectos e fiel a Kant mas insuficiente para dirimir todas as duvidas que algumas objecoes levantam; isto e suficiente para justificar nossa preocupacao presente.

Em primeiro lugar, Kant diz que os fenomenos sao representacoes. Naturalmente, essa alegacao so pode ser interpretada do ponto de vista transcendental; os fenomenos sao coisas empiricamente reais quanto ao seu conteiido mas idealmente transcendentais quanto a sua forma. Se e assim, porem, por que dizer que sao representacoes? Kant, vale lembrar,esta discutindo comos dogmaticos; para os dogmaticos "fenomenos" sao meros estados de consciencia, de modo que dizer que so conhecemos fenomenos implica urn compromisso com urn certo tipo de fenomenalismo que 0 dogmatico nao tern obrigacao de aceitar. Se fenomenos sao representacoes, Kant tern que mostrar que pode

21 Oconceuodecoisaemsino ldealismoA1emiio. Suaaiualidadee releviinciaparaa compreensiio doproblema daFiJosofia, Parte II, Caps.2 e 3 (Tese de Doutorado em Filosofia defendida e aprovada no Instituto de Filosofiae Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 16/12/97),

Page 173: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

170

diferenciar representacoes objetivas de representacoes subjetivas ­porque nao e suficiente dizer que eles sao fenomenos apenas quanta a forma para dizer que sao representacoes objetivas, i.e, representacoes de objetos dados. Mas, a menos que parta da experiencia de que representacoes subjetivas mutaveis e passageiras sao diferentes de representacoes de objetos permanentes no espaco'", Kant nao podera faze-lo, 0 dogmatico, como por exemplo Feder e Garve" , nao se sentira inclinado a aceitar a tese de que so pelo fato de existirem certas condicoes formais haja que dizer que objetos sao fenomenos e alegara que isso implicaria reduzir tudo as representacoes; e que nao basta distinguir entre as objetivas e as subjetivas porque ambas, enquanto estados de consciencia sao indiscemfveis'"; 0 que significa que por sua vez nao aceitara a distincao empfrica, que para ele einquestionavel, mas exigira de quem diga que as coisas sao representacoes uma prova transcendental, comportando-se analogamente ao cetico cartesiano que Kant procura neutralizar sem sucesso na Refutacao do Idealismo" .

Digamos que Kant parte de que objetos sao dados. A questao e se eles sao fenomenos ou coisas em si mesmas. Coisas em si nao podem ser, se estas sao incognoscfveis, Mas, como seriam fenomenos, se fenomenos pressupoem coisas independentes das condicoes subjetivas da nossa sensibilidade que em alguma medida nos afetam e que, em nos

2Z 0 proprio Praussmostraque esta distincao eernpirica, op.cit., pAS. 23Os autoresda celebreresenha da primeira Critica que apareceuem 19de janeiro

de 1782no Suplemento(Zugabe) dos GOttingischenAnzeigen vongelehrten Sachen,Dritten StUck, pp.4O-48, os quais acusavam Kant de transfonnar 0 mundo em simples representacoes, Vma parte do texto, seguido do cornentario indignado de Kant, aparece geralmente como Apendice nas edicoes dos ProlegomenosCWerke V, pp.251ss./A202ss). Vma edicao integral do texto apareceu recentemente em: Landau,A. (Hrsg.). Rezensionen zur kritischen Phi/osophie.1781-1787.Bebra: ALandau.1991.,pp.1G-17.

24 Cf. Frangiotti, M.A. "Refuting Kant's 'Refutation of Idealism' ", p. 98, in: Idealistic Studies, vo1.25,n.1 (Wmter 1995): 93-10(5.

25 Frangiotti mostrou de modo inegavel este ponto no artigo citado na nota anterior.

Page 174: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

171

afetando, provocamsensacoes que submetemos aformada nossa sensibilidade, a fun de obtennos so entao, atraves desse processo, a intui~ao de fenomenos?26 Se aceitassemos a tese de Prauss, por exemplo, haveria que dizer que essas coisas sao coisas empfricas, coisas em si do ponto de vista empfrico, as quais seriam tomadas como entidades metafisicas em virtude da confusao entre niveis diferentesde reflew. Porem, do ponto de vistada filosofia tnmscendental coisas empfricas sao fenomenos; e nan podemos explicarcomo representaeoes objetivas (fenomenos) pressupoem a afeccao de coisas que tambem sao fenomenos, porque isso e circular enos deixaria presos ao ambito das representacoes", Se ficamos nessa situacao, porem, nao podemos saber ou argumentar conclusivamente que coisas sao dadas ou existem, porque 0

oponente sempre podera argiiir que a tese da incognoscibilidade nos veda essa via Allison negariaessa consequencia, nao tanto contra Vaihinger como contra Kemp Smith, Strawson e Prichard, dizendo que representacoes do ponto de vista transcendental nao sao 0 mesmo que representacoes do ponto de vista empfrico. Todavia, se Kant nao pode dizer que as coisas que nos afetam provocando representacoes sao fenomenos, porque estes sao tambem representacoes, e ndo pode tampouco alegar que sao representacoes objetivas porque a obj~ao poeemquestao a possibilidade da distincao transcendental­portanto, nao-empfrica - entre representacoes objetivas (do ponto de vista transcendental) e subjetivas (do ponto de vista empfrico); e se muito menos pode dizer que sao coisas em si, de vez que isso iria de encontro coma tese da incognoscibilidade das mesmas, entao parece que a distincao proposta pela teoria dos dois ''ways ofconsidering" nao estataoisenta de problemas quanto seus principais expositores pretendem. Admitamos que em principiopode ser considerada fiel a Kant - apesar das varias passagens do Opus Postumum que pareeem dar ramo a Adickes"', e outras da Critica que parecem

26 Vaihinger percebeu e formulou este problema com extrema clareza; vide op.cit.,1l,41-42/52-53.

27 Ibidem. 2B Kants Lebre von der doppeltenAffektion unsereslcbs als Scblussel zu seiner

Erkenntnisstbeorie. Tiibingen: ].C.Mohr. 1929, pp.58ss. Cf. Lehmann, G. ''Erscheinungsstufung und Realitiitsproblem in Kants Opus Postumum', in: Kant­Studien45 0953-54): 140-154.

Page 175: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

172

apoiar as teses de Rescher" - , mas dai nao se segue que todos os problemas foram resolvidos com isso - a nao ser para os kantianos ortodoxos.

Ao que parece, para resolver urn impasse Kant acabaria por criar outros. Desde cedo pensadores como Jacobi, Eberhard, Schulze, Maimon, Schelling, Hegel, e outros, como Vaihinger, viram series problemas na tese de Kant'". Depois das defesas de Reinhold, Fichte, Beck (e antes deles, de Mellin e J.Schultz), muitos comentadores e epigonos de Kant, dentre os quais Adickes, Paton, Rescher, Meerbote e outros tern considerado que se trata de urn problema serio: tentaram soluciona-lo de varias maneiras. Os trabalhos de Prauss e Allison tern tentado mais recentemente, como vimos, explicar a tese de uma maneira bastante convincente, mas nao ao ponto de encerrarem a discussao". De ora em diante nao nos deteremos especificamente nas opinioes destes comentadores, mas esclareceremos algumas das objecoes classicas e tentaremos responde-las aluz do texto de Kant.?

29 Rescher, N. "Noumenal Causality", in: Kant's 1beoryojKnow/edge. Ed. par Lewis White Beck. Dordrecht: Reidel. 1974, pp.176-183.

30 Sobre estes autores, em sua maioria contemporaneos de Kant, lancou-se recentemente em Portugal uma coletanea de excertos de suas obras acompanhadas de estudos introdut6rios assinados par estudiosos de peso no vemaculo, Vide: F.Gil Cotgani2ador). Recep¢oda CriticadaRaziio..Pum (Antologia de EscritosSobreKant/1786-1844). Usboa: Calouste Gulbenkian. 1992.

31 A "teoria dos dois aspectos" tern sido criticada recentemente par varies autores de relevanda, ainda que numa perspectiva diferente da nossa: Richard Aquila. Representational Mindlnd.iana: Indiana UniversityPress. 1983;Moltke S.Gram. Tbe Transcendental Tum. TbeFoundationsofKant'sIdealism. GainesvilleIF1orida: University Press of Florida; Walter Pan. " 'Things in themselves' and 'Appearances': some Misunderstandings, and a solution", in:Alden des Sieberuen Iruemationalen Kant-Kongresses. Kurllirstliches SchlosszuMaim, 1990,Hrsg. von G. Funke, Bonn: Bouvier. 1991, IU, pp.149-157.

32 Na nossa Tese de Doutoramento acima citada fazemos uma analise pormenorizada das pricipais obiecoes e respostas deJacobi a Hegel (parte I) e das tentativas recentes de solucao no ambito da teoria dos dois aspectos, sobretudo as de Gerold Prauss, Gerd Buchdahl e HeruyAllison (parte II).A tese

Page 176: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

173

3

Ao que parece existiriam tres objecoes que denominaremos "classicas": 1. como podemos dizer que conhecemos os objetos se admitimos que

nao os conhecemos tal como eles sao neles mesmos, mas seus fenomenos, i.e, meras representacoes, ainda que estas sejam pretensamente objetivas?

2. Dizer que nao conhecemos as coisas em si mesmas, mas tao somente os seus fenomenos, nao implicaria considerar as primeiras como causas dos segundos? E isso nao constitui uma aplicacao ilicita das categorias de substancia e causalidade?, nao supoe como conhecido urn aspecto essencial da coisa em si, enquanto se diz que ela e incognoscivel?

3. Se Kant admite que a coisa em si e meramente pensada, no sentido de ser um ente de pensamento considerado como 0 substrato do fenomeno, trata-se claramente de uma abstracao e deve ser suprimida.

A primeira objecao e a mais antiga, tendo sido feita inicialmente por Feder e Garve na resenha acima citada, e e depois formulada por Jacobi'", ate que se populariza com Hegel, que a retoma a seu modo, na Introducao a Fenomenologia do Esptrito": e na Logica da Enciclopedia'". Ela parece ter sido ignorada, pois nenhum dos

de Buchdahl difere urnpoucoda teseAllison/Prauss, masargumenta tambem com base na distincao de dois niveis epistemicos, 0 mesmo cabe dizer de R. Meerbote.

33 DavidHumeiiberden GIauben, oderIdeaJismusundRealismus, Bei/age; "Oberden transcedentaien Idealismus", in;]acobis W~, hrsg.von F. Roth und F.KOppen Leipzig.1812-1825., II, p.299 (21815); reimpresso em Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft. 1976-1980.( 1. Aufl. Breslau, 1787, pp.216-217)

34PhiinomerwlogiedesGeistes. Neu herausgegebenvonH-F. ~undH Clairmont Hamburg. F.Meiner. 1988(philosophische Bibliothek, Bd.414), pp.57ss.

35 Tbeorie W~aOO (W~inzwanzig Banden), Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1970.,VIII,pp.114-116 (Enzyklopadw, I, § 41, Zusiitze 1, 2).

Page 177: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

174

comentadores classicos se ocupa de1a. Talvez isso se deva ao fato de evidenciar em parte 0 carater paradoxal da tese kantiana. Tentar responde-la pareceria provocaruma sorte de antinomia, posta que a melhor resposta consistiria em dizer que Hegel nao entendeu Kant e que sua objecao supoe a esperanca num conhecimento essencial das coisas que exige justificacao, ao que Hegel poderia responder que 0 onus da prova nao lhe cabe e que a acusacao de Kant, para provar qualquer coisa, devera admitir que conhece algo de modo "essencial" sob pena de entrar em contradicao, etc. Mas ainda se poderia objetar a Hegel que Kant tern razao porque fenomeno nao e 0 mesmo que aparencia e a reflexao transcendental permite chegar a urn conhecimento negativo do tipo: sei que conheco fenomenos porque sei que nao conheco as coisas em si senao enquanto as subordino as condicoes subjetivas do meu aparelho cognitivo; e tambem sei que nao conheco as coisas em si porque quando acreditava conhece-las me enredei em contradicoes. Mas Hegel njio seria obrigado a aceitar a resposta, e nao necessariamente por achar salutar que haja contradicoes, mas sim porque 0 fato de que os objetos do conhecimento sejam condicionados a forma do nosso pensamento e da nossa sensibilidade poderia nao ser urn argumento suficiente para afirmar-se a tese da incognoscibilidade das coisas em si, que implica necessariamente, como bern lembrou Jacobi, afmnar positivamente a tese da ignorancia absoluta acerca da essencia da realidade" .

Isso, porem, nao nos parece suficiente para dizer que Hegel e Jacobi estao certos e Kant errado; porque ambos os lados tern objecoes e argumentos que poderiam estender a discussao sem fim, e quica sem chegar a lugar algum. Por isso emelhor suspender 0 jufzo, por enquanto, quanta a esta obje~ao e as respostas que se pode dar a ela.

A segunda objecao tambern e antiga e foi primeiramente enderecada a Kant por Jacobi, e depois por Schulze e outros" . Pode-se

36Werke, II, 310. 37 \eja-se N.lliJItrnann,AFiIosofiadoldealisnwAlemiio. Trad.De]. Goncalves Bela.

Lisboa: Calouste Gu1benkian. 21983. pp. 25/26 -39ss.

Page 178: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

175

dizer ate que 0 Idealismo Alemao em certo modo comeca propriamente com essa discussao em tomo da coisa em SP8 . Inclusive Maimon"', que defende Kant contra Schulze e Jacobi, considera a objecao ao ponto de dizer que 0 conceito de coisas em si afetando os sentidos deve ser suprimido, mas sem resolver muito bern como se pode manter 0 conceito de fenomeno sem seu correlato necessario e lancando mao de teses que Kant avanca na Kritik der Urteilskraft" do ponto de vista do jufzo reflexionante, proibindo-as do ponto de vista do jufzo determinante - 0

que Maimon parece ignorar". Esta objecao talvez seja a mais classica, conhecida como "0 problema da afeccao", pois foi retomada por autores como A. Trendelenburg e pelos proprios comentadores de Kant (B. Erdmann, H. Vaihinger, N. Kemp Smith, P.F.Strawson, etc.). Muitos admitem que a palavra causa aparece no texto mas por causa de urn deslize de Kant. Na verdade trata-se de uma acusacao de inconsequencia que costuma ser defendida pelos comentadores de Kant de modo bastante infeliz. Pois eles geralmente argumentam (paton, por exemplo) que Kant nao poderia ter dito isso porque a categoria da causalidade so se aplica aos fenomenos; quando na realidade a objecao vaialem e questiona,precisamente, como e que Kant poderia ter sustentado 0 conceito de coisa em si sem aplicar ilicitamente as categorias de substancia e de causalidade. A solucao mais comum consiste em apelar para a distincao entre conhecer e pensar, como 0 proprio Kant sugereemalgumas passagens? . A questao mais crucial

38W.WmreJha.rrl(IehrhucbderGeschicbtederPbiloscpbie.Tiibingen.].CMcru:1957., pp.487ss) defende essa ideia, par exemplo. Tambemjacinto Ribera de Rosales, La realidad en 51 en Kant. Madrid: Universidad Complutense de Madrid. 1988, pp.377-78.

39 Hartmann, op.cit., pp. 29ss. 4OCriticadojuizo07f:X))-\eja-se].RiveIaygue-/.efonsdem&physiquealJemande.

Paris. Grasset. 1980,Tome I, pp. 134ss. 41 Ibidem 42 a.Seidl,H. "Bemerkungen zu Ding an sich und transzendentalem Gegenstand

in Kants Kritik der reinen \ernunft", pp. 305-306/308-309ss., in: Karu-Studien 63 (972) :305-314. \b" tarnbern Feuler;1. Karuet la metaphysiquespeculative. Paris: \Tin. 1992., pp.195ss/242ss.

Page 179: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

176

e-paraalem de saber emque medida epossivel urn uso legitimo das categorias nao-esquematizadas - seesuficiente pensarque existemcoisas em si mesmas no fundamento das representacoes objetivas? (ou da possibilidade de que certos noumenos existam em si para alem das ideias que deles temos) para que possamos garantir do ponto de vista transcendental sua existencia no contexto de uma discussao com urn dogmatico que considera que representacoes sao sempre meros estados de consciencia ou com urn idealista empirico que nega emprincipio a possibilidade de diferenciar representacoes objetivas de representacoes subjetivas.

A terceira objecao efeita por Hegel na Ciencia da Logica 44 (e antes dele por Fichte, mas nao contra Kant e sim contra os kantianos da epoca)"', guardando urn parentesco inegavel com a objecoes de Jacobi. Consiste em dizer que 0 conceito de coisa em si epostulado como algo fora do pensamento mas desde dentro do pensamento. Dito de outro modo, se no entender de Kant nos conhecemos somente fenornenos, e se fenomenos nao sao coisas em si mesmas, mas as representaciies que nos temos delas enquanto nos aparecem, e licito admitir que em momenta algum temos acesso a nada que nao seja nossas proprias representacoes. Sendo assim, perguntaria Hegel, qual 0 sentido de dividir nossas representacoes dos objetos em dois funbitos e de dizer que urn deles nao pode ser conhecido, muito embora nao possa ser negado? Aparentemente esta objecao e a mais fraca das tres. Pois de algum modo parece como se devessemos aceitar urn certo tipo de solipsismo. Pareceria ser facil

43Como Rescher,par exemplo. 44WerkeV,pp. 25-26/29/41/57/129-130 (WissenschajtderLogik, I). 45 Uma versao aproximada dessa ~ apareda jana UilIntrodUfljo aDoutrinacia

Cienciade Fichte,poremoomo urn casoespedal, uma vez quenaoJ::W.ofichteana aparecem combinadas a segunda e a terceira das obieeoes que denominamos classicas: a coisa em si aparece a urn mesmo tempo como mero ente de pensamento e oomo apli~illdta da categoria dacausalidade.d. Uelntroduction alaDoctrinedelaScience.(tIadu~franresadaAPhilonenko)Paris,VTin.p.287.

Apud G.Lebrun, "AAporeticadaCoisa a em si", p.62,in: SobreKanJ. RRodrigues Torres Filho (OIg.). Sao Paulo: IluminuraslEdusp.1993., pp51-68.

Page 180: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

177

responder que de urn lado pensamos naquilo que aparece e do outro conhecemos sua aparicdo. Mas em virtude da primeira objecao, aqual e sempre associada, e da qual retira sua forca, esta em principio vedada a possibilidade dessa distincao porque se parte do fato de que nada conhecemos senao representacoes: e nessa medida realmente nao faz muito sentido dizer que algumas delas se referem a entidades extra­representacionais que existiriam independentes de nos e de nossas condicoes subjetivas. Todavia, antes de decidir se euma boa objecao ou nao, e licito reconhecer que chama pelo menos a atencao para urn problema que surge quando refletimos sobre 0 texto de Kant: a saber, a dificuldade que Kant enfrenta para poder dizer no ambito do dizivel aquilo que ele mesmo reconhece ndo poder ser dito - para utilizar metaforicamente uma linguagem wittgensteiniana.

Se pensarmos agora no desconforto que causam tanto as objecoes como as possfveis respostas, veremos que existe uma questao que se configura realmente como urn problema. 0 conceito de fenomeno e constitutivo da tese do Idealismo Transcendental mas inseparavel do conceito da coisa em si. A. primeira vista, se as objecoes triunfam, 0

Idealismo Transcendental cai por terra; se nao, sustenta-se. Entretanto, o que ocorreria se, "a segunda vista", a discussao permanecesse sem qualquer resultado conclusivo para cada uma das partes?

Posta a dificuldade, talvez fosse de born alvitre rever alguma ou outra passagem de Kant antes de aventurar qualquer insinuacao,

4

Kant comeca a sexta se~ao daAntinomia daRazao Pura com uma passagem que se tornou no minimo bastante conhecida. Nela define explicitamente0 conceito do Idealismo Transcendental utilizando 0 conceito de fenomeno e fornecendo-lhe urn estatuto inseparavel do seu correlato:

"Demonstramos suficientemente na Estetica Transcendental - diz Kant - que tudo que e intuido no espaco ou no tempo, portanto, todos os objetos de uma experiencia possivel para nos niio passam de

Page 181: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

178

fenomenos, i. e, de meras representaciies que tal como sao representadas, como seres extensos e series de mudancas, ndo possuem uma existencia fora de nossos pensamentos e fundada em si [0 sublinhado e nosso ­l.A.B.]. Denomino este conceito doutrinal de Idealismo Transcendental "46.

Temos agora que Idealismo Transcendental nao e apenas a hip6tese de que nao conhecemos coisas em si mesmas, e sim fenomenos, mas tambem a tese de que os fenomenos sao representacoes de seres extensos que sofrem mudancas de acordo com series temporais, representacoes de substancias extensas interagindo e mudando atraves do tempo. 0 problema e que a passagem diz que extensao, mudanca, temporalidade, substancialidade e todos os conceitos - nao somente quanto asua forma? - mencionados tacita ou explicitamente sao tambem representaciies. Cabe indagar: onde fica 0 representado't"

Para responder a essa questao devemos ver 0 que segue no texto. Para Kant "representacoes" neste contexto significam "modificacoes de nossa sensibilidade", fenomenos que se apresentam aintuicao ocupando urnespacoe permanecendo no tempo.Quanto asubstancialidade(implicito na ideia de "seres" extensos), aextensao,atemporalidade, etc., nao podem ser consideradas "modificacoes da sensibilidade", mas sim representacoes que se reportam aforma de intuicao ( a extensao, a temporalidade) ou a forma do entendimento (substancialidade). Ora, em contrapartida, para 0

"realista transcendental" (por exemplo, Newton) sao "coisas subsistentes em si",d:iz Kant, ou ''realidades absolutas".Mudanca, extensao, substancia, espaco, tempo, para 0 realista transcendental nao seriam meras representacoes. Seriam coisas em si mesmas. Mas afinnar isso nos conduziu a imimeras contradicoes, dira Kant. Portanto, nao podemos admiti-lo.

46B 518-519 47 Vaihinger (op.cit., II, 504-505; d. 4%ss.) acha que Kant diverge de Berkeley

justamente porque afirma as coisas em si.

Page 182: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

179

De outro 1000, 0 conceito do Idealismo Transcendental nao se opoe apenas ao conceito de "Realismo Transcendental", mas tambem aquilo que Kant denominou por vezes "Idealismo Empfrico". Este parece que "aceita a realidade propria do espaco", diz Kant" , mas "nega ou, pelo menos, considera duvidosa a existencia de seres extensos", nao concedendo "nenhuma diferenca suficientemente demonstravel entre 0

sonho e a verdade", aceitando todavia a realidade dos fenomenos do sentido interno no tempo. Esta postura, que as vezes Kant reporta explicitamente a Berkeley, mas sobretudo a Descartes" - notadamente na Refutacao do Idealismo- assemelha-se ou identifica-se ao ceticismo acerca dos sentidos, 0 qual para Kant nega ou duvida da existencia das proprias coisas exteriores ao levar ao extremo de nao permitir discernir o que e0 sonho do que ereal. Como Kant acredita te-lo refutado antes (em B274-279), acha que ele nao pode ser admitido.",

No § 13 dos Prolegomenos Kant vai acrescentar urn ponto importante para distinguir 0 seu Idealismo transcendental da tradicao que critica:

"...Sem duvida, concedo (gestehe) que hti corpos fora de nos, i.e, coisas que embora nos sejam totalmente desconhecidas quanto ao que possam ser em si mesmas conhecemos mediante as representacbes que o sua influencia sobre a nossa sensibilidade nos proporciona... ","

Isto significa que Kant aceita explicitamente a existencia dos objetos externos enquanto coisas em si mesmas, independentemente de nos, que apenas conhecemos mediante nossas representacoes. Coisas

48 B519;em B274-79as coisas sao formuladas de urn modo sutilmente diferente: o idealismo empirico pareceduvidar ou negar 0 espaco com tudo que esta nele, e nao somente os corpos, como aqui edito

49 No ApendioedosProIeg6menasCA210; ~e V, p.255n.)cIiz que se referea Wolff so Frangiotti mostrou de modo incontestavel que isto nao epossfvel, cf. op. dt 51 A64, Werke V, p.152

Page 183: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

180

que sao "a causa nao sensivel" (B522) dos fenomenos e permitem discernir estes iiltimos, enquanto representacoes que obedecem as leis da unidade da experiencia, dos sonhos e das representacoes ilus6rias. Mas nesse sentido, como diz 0 proprio Kant, eles "s6 sao reais na percepcao", na medida em que eso ela que nos apresenta "a realidade de uma representacao empirica, i.e, fenomeno" (B521-522)'2 Esta ultima frase nao nos ajuda muito, porem, pois nesse caso os fenomenos sao reais enquanto sao percebidos como reais - 0 que darla razao a Strawson (e antes dele a Garve, Feder e Jacobi) e aproximaria Kant de Berkeley muito mais do que ele gostaria de admitir" No entanto, a luz da passagem dos Prolegiimenos a tese de Kant parece ficar mais clara: eu nao nego que existam coisas em si, s6 nego que possamos conhece-las enquanto tais - diria Kant. Em outras palavras, Kant aceitaria a existencia real das coisas em si mas negaria seu conhecimento". Toda a dificuldade, e dai as objecoes, consiste porem no seguinte: ate que ponto aceitar a realidade de coisas em si nao prefigura urn conhecimento ou nao supoe urn conhecimento parcial delas? De resto, sera que a tese da incognoscibilidade me permitiria aceitar a existencia de coisas em si?

Se relembrarmos alguns pontos da Estetica, poderemos trazer elementos para a discussao: 1) nao podemos intuir nem conhecer nada que nao tenha duracao no tempo e que nao ocupe urn espaco; 2) por isso dizemos que espacoe tempo sao condiciies unicamente sob as quais objetos nos podem ser dados, i.e, condicoes da existencia dos objetos enquanto fenomenos; 3) que, nesse sentido, espaco e tempo sao as formas puras da sensibilidade porque condicionam a priori toda a materia da sensacao a forma espacio-temporal; 4) que precisamente por serem formas da sensibilidade, i.e, formas unicamente sob as quais seres racionais fmitos

52 Cf. Com A368ss 53Strawson, TheBoundsofSense, op. dt,p. 22 54\eja-se 0 que Kant admite (que as coisas em si fomecem a materia das sensaeoesl)

noJ:X!11fleroa:ntmfbe:rhard: UberetneEnJdockungnachderaUeneueKTiJikderreinen Vernunjtdurchetneiill:eroenJlxhrlichgemacbtuerrJensd10m), BA 55-56, ~V, pp.329-330

Page 184: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

181

podem intuir objetos, deve-se admitir que estes ultimos sao fenomenos e nao coisas em si mesmas. Este ultimo ponto epara nos 0 mais relevante. Porque aqui ja nao se trata de uma mera assercao que se mostra possfvel em face da contraria por resolver aparentemente as contradicoes. Agora afirma-se que sabemos que so conhecemos fenomenos e que nao conhecemos as coisas em si mesmas porque somos condicionados a ve­las e conhece-las de acordo com a nossa estrutura mental e corporal, a qual, por sua vez, limita nosso alcance determinando 0 tipo de acesso a tudoque conhecemos. Assim, enquanto 0 idealismo empirico ou material consistia para Kant em sustentar que os dados sensfveis sao ilusoes e que os corpos sao irreais, sendo sua existencia duvidosa ou indemonstravel, e enquanto 0 realismo transcendental sustentava que espaco e tempo eram propriedades reais das coisas e os fenomenos coisas em si mesmas, vemos agora que a tese de Kant combina dois aspectos que se reportam precisamente ao conceito de fenomeno e ao seu correlato:

1) 0 Idealismo Transcendental, 0 qual em resumidas contas consiste na negacao do conhecimento das coisas em si mesmas;

2) 0 realismo ernpfrico, para Kant correlato necessario do Idealismo Transcendental, que consiste em afirmar a realidade empfrica dos fenomenos; mas isto parece implicar 0 postulado da existencia das coisas em si mesmas.

Afinal, poderiamos perguntar: 0 que garante a "realidade" empirica do fenomeno, enquanto representacao (modificacao da minha sensibilidade a partir de urn fundamento que nao e urn estado de consciencia) senao a "existencia" de urn suporte que deve ser admitido provocando realmente representacoes, ainda que nao possamos conhece­lo? Nao basta dizer que sao as leis da unidade da experiencia porque e preciso que primeiro algo seja dado para que possa ser reunido na consciencia de uma experiencia e discemido, de acordo com analogias, das quimeras do sonho e da imaginacao em geral; e 0 que eassim dado remete-nos necessariamente para uma "causa inteligfvel": Kant chega a dizer que a doutrina da Estetica Transcendental e a doutrina dos noumenos em sentido negativo, a saber, "de coisas que 0 entendimento

Page 185: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

182

deve pensar sem esta relacao com nosso modo de intui~ao( ...) como coisas em si mesmas't"

Ora, por que 0 entendimento "deve" pensar noumenos? Ocorre que quem julga sempre e 0 entendimento e nao os

sentidos, diz Kant na Introducao aDialetica Transcendental" , portanto eele quem decide quando ha fenomeno e quando ha ilusao, de acordo com as suas leis, que sao as leis da experiencia; mas como ele pode julgar corretamente se esta em face de urn fenomeno ou de uma ilusao, mesmo contando com essas leis, a nao ser lancando mao da experiencia? E como distinguir 0 fenomeno da ilusao, sendo ambos representacoes, a partir do que e fenomeno? Parece ser impossfvel, a nao ser que haja outro elemento para tanto. Este elemento edecerto a coisa em si. Resta saber, todavia, se isto, que eurn postulado" nao configura urn problema insohivel, Pois como eque urn conceito-limite, que nos restringe ao campo de intuicao sensfvel, que nos profbe conhecer 0 que s6 poderia ser objeto de intuicao intelectual; que nao pode nem deve ser usado assertoricamente, pode ser postulado ou pressuposto desse modo sem que isso acabe por implicar a postulacao insuficientemente fundamentada de uma certa realidade por definicao inacessfvel? Nao sera urn contra-senso admitir como existente 0 que dizemos que nao pode ser conhecido, e que portanto nao pode ser provado como existente?

Se a existencia nao eurn predicado, a "existencia" da coisa em si nao pode ser derivada da analise do conceito de fenomeno, enquanto seu correlato, a menos que tenha sido subrepticiamente introduzida nas premissas como uma pressuposicao inconfessa; e tampouco pode ser dada numa experiencia qualquer, porque a experiencia s6 fornece fenomenos, Portanto, nao pode ser admitida. Quanto ao fato de ser uma aplicacao ilfcita das categorias de substancia e causalidade, a coisa se

55B307 56B 350-51. Cf. Com A2251B273, onde fica claro que isto efeito com base nas

Analogias.ver tb, B278-279 57 Isto, que ficara claro na passagem dtada do §13dos Prolegomenos, eadmitido

por Paton. Vide op.cit., I, pp. 62ss/64170.Cf. Rescher, op.cit., pp.l77ss

Page 186: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

183

complica. Porque a palavra causa "nao sensfvel" aparece no texto, embora o texto fale da necessidade de pensa-la e nao afirme seu conhecimento. Porque e preciso que algo forneca a materia dos fenomenos; algo tern que causar nossas afeccoes, algo que nos vemos como fenomeno mas que existe em si independente do que nos vemos ou experimentamos, sob pena de ser sonho ou ilusao, sem substrato, aquilo que consideramos como urn fenomeno objetivo. 0 carater de dificuldade que se experimenta ao relembrar essas duas objecoes faz pensar no que sugere a terceira: Kant precisa dizer 0 que ndo pode ser dito, Carece de vocabulario para dize-lo, posto que eliminou toda palavra capaz de dizer 0 que ele precisa dizer, mas se ve obrigado a admitir. 0 que nos reconduz aprimeira objecao: adificuldade de urn conhecimento que nega completamente 0

conhecimento das coisas em si. Parece que Kant acaba por afmnar indiretamente a existencia

daquilo que nao pode provar nem admitir, mas sem 0 qual 0 conceito de fenomeno e todo seu empreendimento nao faz sentido.

5

Aparentemente ha duas solucoes possiveis: ou as objecoes, ou algumas delas, sao validas, ou entao nao 0 sao. Mas e possfvel que exista uma outra via, mesmo que nao seja uma solucao, Na medida em que ambas as partes parecem ter boas razoes, parece ser diffcil, perante esta dificuldade, raciocinar de modo binario, Primeiro, porque nao resolve a contenda ao ponto de apaziguar ambas as partes, que tern todas duas suas razoes; segundo, porque face adificuldade e importancia do problema parece ser, senao evidente, pelo menos filosoficamente mais frutffero considerar que nao estamos perante uma aporia qualquer. Mais precisamente, talvez perante urn caso daquilo que Protagoras chamava antilogia e os ceticos caracterizavam como diaphonia . Este ponto de vista convida-nos a sustar as pretensoes de ambas as partes e a refletir sobre 0 problema enquanto tal, sobre seus pressupostos e suas implicacoes. Essa terceira via parece-me a mais adequada ao espfrito da filosofia, bern com ao das partes envolvidas na disputa.

Page 187: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

184

Nesse sentido, para concluir, gostaria de sugerir provisoriamente em que consiste a posicao a que me levou essa terceira via e qual a pedra que Kant, como muitos outros, teria encontrado no meio do caminho.

Na verdade a discussao esbarraria num paradoxo. Mediante 0

exame das partes, 0 que se revela e 0 que gostaria de chamar aqui "0

paradoxo da fundamentacao", 0 qual aparentemente nao pode ser resolvido e coloca serias dificuldades aempresa dos fil6sofos do ponto de vista da justificacao do seu discurso e da fundamentacao do seu ponto de partida. 0 paradoxo pode ser formulado mais ou menos da seguinte maneira: para conhecer 0 ser epreciso ter criterios, mas nao se pode ter criterios sem pressupor 0 conhecimento do ser. Dito de outro modo, para fazer filosofia epreciso supor uma certa ontologia (uma certa concepcao da realidade e dos elementos possfveis e reais que a povoariam), 0 que nao se pode fazer sem mais e requer que busquemos uma epistemologia capaz de fomecer os criterios para discursar sobre 0 ser (vale dizer, as condicoes sob as quais poderiamos nos comprometer com certas afirmacoes e com a existencia de certas entidades e nao de outras); mas ocorre que nao podemos fazer isto ultimo sem jd partirmos da pressuposicao de que 0 ser e de uma certa maneira e nao de outras. Assim, nao podemos fazer uma epistemologia sem recair num compromisso ontol6gico que nao pode ser justificado dentro dela; mas tampouco podemos elaborar uma ontologia sem supor certos criterios epistemol6gicos, 0 que nos leva por sua vez a outro compromisso ontol6gico que requer justificacao, e assim por diante.

o que ocorre com Kant e que nao pode admitir urn conhecimento de realidades iiltimas. Nega entao 0 conhecimento delas. Mas nega-lo implica uma certa auto-referencia que parece tomar autofagica toda tentativa de justificar suas proposicoes, que devem expressar algum conhecimento. Se expressam algum conhecimento, e preciso admitir que ele diz respeito de algum modo arealidade. E que conhecemos em algum grau ou medida coisas em si. Mas isso ja parece dizer mais do que podemos. Parece pressupor que podemos estar seguros de conhecer a realidade. Afirmar uma proposicao, mesmo que seja negativamente, significa admitir urn compromisso com a afirmacao de

Page 188: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

185

certas entidades e com a negacao de outras. E a justificacao de urn criterio que nao seja meramente convencional nos enreda no mesmo cfrculo. E nao parece haver saida. Por isso nao se pode dizer que Kant errou; mas pode-se dizer que se errou, entao errou tanto quanto outros, e isto, para nos dizer alguma coisa em torno do fundamento do real e dos princfpios que estao irnplicados pela natureza aporetica da propria "coisa" em questao desde 0 momento em que nos referimos a ela direta ou indiretamente de alguma maneira.

De urn lado, 0 problema aparece como a impossibilidade de encontrar urn ponto de partida isento de questoes, Mesmo partir da experiencia eurn problema serio, porque sera preciso encontrar urn acordo acerca de nocoes basicas e do que se entende por "experiencia", A tentativa de fundamentacao lanca-nos de imediato no plano do discurso frente a urn ou mais interlocutoresreais ou possfveisque exigemumajustificacaoracional e suficiente do nosso ponto de partida, seja porque eles tern outro, seja porque nao estao convencidos de que 0 nosso seja 0 melhor disponfvel. E uma resposta do tipo : partimos de convenciies, tal como a que a maioria dos logicos e boa parte dos fil6sofos contemporaneos tern apresentado, seguindo 0 exernplo dos matematicos - resignados ha algum tempo, desde que a crise dos fundamentos da matematica mostrou 0 aparente fracasso de toda tentativa de fundamentacao ultima de axiomas e principios -, nunca poderd se defender perante a alegadiojusta (racional] que isso significaria antes do mais abandonar a questiio, por uma incapacidade subjetiva ou contingente de responde-la aaltura, em vez de uma soluciio ou a busca genuina de uma solucdo acorde com as pretensiies emjogo.

Alguem podera retrucar que Arist6teles ja ensinara que epreciso admitir certos primeiros princfpios como inquestionaveis e certos. E que ha tempos aprendemos que nao se disputa acerca dos primeiros princfpios. Porem, eis 0 problema; e preciso partir de principios, mas como e de quais, se nao existe urn acordo real acerca deles? Alem disso, 0 que tern feito toda a filosofia nos ultimos dois milenios, senao disputar acerca deles? Mera metafisica, primitiva, desprezivel ou pouco relevante? ­Sera que neste seculo avancou-se realmente muito mais nessa direcao, e sem fazer outra metaffsica?

Page 189: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

186

Ou nao sera que, no fundo, nos tomamos mais dogmaticos que nossos predecessores ? Nao nos sugeriria 0 paradoxo da fundamentaciio que devemos repensar a ontologia e a epistemologia (entendendo ambos os termos no sentido mais amplo possfvel) em toda sua envergadura, mais uma vez, depois de Kant, do Idealismo Alemao, e de todas as herdades e implicacoes que delegaram a este nosso seculo, prestes a expirar tao ignorante e arrogante quanto outrora? Nao sera que estamos lidando com verso e reverso de uma medalha que ainda desconhecemos?

Creio que sim; e que essa medalha etodo 0 problema da Filosofia.

Page 190: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

HILLARYPUTNAMEAQUESTAOFATO-VALOR

Maria Simone Cabral Marinho

Resumo Este artigo parte da afirmaciio de Hilary Putnam feita no inicio do capItulo 6 - jato e valor - do seu livro Raziio, verdade e historia, ou seja, a afirmaciio de que 0 tema do jato e valor, ao contrdrio de outras questoes filosoficas como as relativas alinguagem, aepistemologia ou mesmo ametafisica; edo interesse de todas a pessoas. Assim, objetivamos mostrar a posiciio de Putnam frente a questiio jato e valor - tambem conhecida por Sein (ser) e Sol/en (Dever ser], procurando tecer algumas consideraciies a respeito do seu ponto de vista, pretendendo, porfim, mostrar que a ideia defendida por este filosofo ea de que niio existe uma separacdo absoluta entre jato e valor. Para uma melhor compreensiio deste artigo, ele sera dividido em duas partes:

1. Putnam e os defensores da dicotomia jato/valor;

2. Etica, ciencia e os padriies de aceitabilidade racional.

1. Putnam e os defensores da dicotomia fato/valor

Putnam abre 0 capitulo 6 do seu livro Razdo, verdade e historia, afirmando que 0 terna do fato e valor eurn tema que interessa a todos,

Principios Ano 04, n 05, p. 187-198, 1997

Page 191: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

188

Acrescenta que esta euma questao de escolha forcada para as pessoas que refletem. Afirma, ainda, que a dicotomia entre enunciado de fato e juizo de valor etao absoluta que assumiu 0 estatuto de instituidio cultural. Para Putnam, isto elamentavel, visto que esta dicotomia tomou-se tao corrente que mesmo que ele ou algum outro fil6sofo pudesse convencer as pessoas de que esta quebra nao tern bases racionais, ainda assim, nao conseguiria convenes-las, pais, "a concepciio de que niio existe evidencia sobre se as coisas siio ou niio boas ou mas, melhores ou piores, etc., tornou-se, em certo sentido, institucionalizada" (Putnam, 1992: p. 168).

Apesar de Putnam - pelo menos neste capitulo - nao criticar nenhum fil6sofo especificamente, eclaro que a sua critica se insurge, nitidamente, contra uma tradicao filos6fica que ajudou, de uma certa maneira, a cristalizar, ou falando na linguagem de Putnam, a institucionalizar a dicotomia entre fato e valor. Se olharmos para a hist6ria da filosofia, poderiamos levantar uma enorme lista de pensadores que defendem esta dicotomia. Citaremos, a titulo de ilustracao, tres pens adores que partilham esta visao, sao eles: David Hume, immanuel Kant e Max Weber I .

No Tratado da natureza humana, se~ao Ill, 1 -1, Hume coloca 0

problema da impossibilidade de se passar de uma proposicao descritiva para uma normativa: "... Mas de repente me surpreendo ao ver em Lugar do e e niio e, as copulas usuais das proposiciies, niio dou com nenhuma proposiciio que niio esteja conectada com um deves ou niio deves. Esta troca eimperceptivel, mas tem, sem davida, conseqiiencias extremas. Como este deves ou niio deves expressa uma nova relaciio ou afirmaciio enecessaria que seja observado e explicado, e que ao mesmo tempo se ofereca uma raziio para 0 que parece totalmente inconcebivel, quer dizen como esta nova relaciio pode deduzir-se de outras que siio

1 Nao vamos expor as ideias destes tres pensadores, no sentido de adentramos detalhadamente em seus sistemas. Vamos tao-somente mostrar os seus posicionamentos no tocante a questao fato/valor. Se esta ea quest:lo principal deste trabalho, consideramos irnportante que seja ilustrada are mesmo para entendermos melhor a posicao de Putnam.

Page 192: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

189

completamente distintas dela ... " (Hume apud MacIntyre) Este posicionamento de Hume e importante, uma vez que e

1embrado sempre que se aborda a questao do Ser e do Dever ser. MacIntyre vai dizer que uma leitura atenta da citacao nao esclarece se Hume afirma que a passagem do Ser ao Dever ser exige urn grande cuidado ou assinala que de fato a passagem e logicamente impossivel (MacIntyre, 1971: p. 170). Pela filosofia moral de Hume, parece que a primeira afirmacao e mais segura ja que 0 proprio Hume efetua claramente tal passagem. No entanto, alguns estudiosos preferem a segundainterpretacao e neste caso, instaura-se urna impossibilidade logica do Ser ao Dever ser e portanto, cria-se uma dicotomia entre fato e valor.

Menos controvertido, por sua vez, 0 pensamento de Kant pode ser dividido em dois niveis: razao teorica e razao pratica. A primeira permite ao sujeito conhecer as leis que regem 0 mundo da natureza; a segunda, desvenda as leis que regem 0 mundo dos costumes. Assim, 0

mundo da natureza representa para Kant 0 reino da necessidade, da contingencia e da determinacao, ao passo que 0 mundo dos costumes representa 0 reino da indeterminacao, da liberdade, da possibilidade. 0 mundo da natureza constitui 0 Sein (Ser), cuja finalidade ultima escapa avontade humana. 0 mundo dos costumes constitui 0 Sollen (Dever ser) cuja fmalidade ultima edefinida pela vontade humana. No primeiro valem os julgamentos cientfficos, no segundo, os julgamentos morais (Freitag, 1992: p. 47).

Como pudemos perceber, Kant distingue nitidamente fato e valor, ou seja,de urn 1000, no ambito do fato, nos temos a razao pura, a natureza, a sensibilidade, 0 Ser. Por outro lado, no ambito do valor, temos a razao pratica, a liberdade, a inteligibilidade, 0 Dever ser. Como afirma Barbara Freitag, H(...) ao contrdrio de kant, 0 sistema dos costumes (ou da sociedade existente) esubtraido ao espaco da liberdade e subordinado ao espaco da heteronomia. Os objetos (e suas relaciies) estudados nesse espaco resultam de uma vontade que escapa ao controle dos homens. Eles podem ser constatados pelo cientista mas niio julgados (ou valorados) por ele" (1992: p. 97).

Page 193: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

190

Importa notar que Weber defende 0 principio da neutralidade axiologica (0 que Putnam abornina), ou seja, para ele, 0 universal nao pode serpassfvel dejulgarnentode valore sim dejulgamentode realidade (criterios objetivos). Neste sentido, Weber separa fato e valor, tentando fazer do cientista uma figura neutra, cujo papel esomente descobrir e reconstruir as leis que regem a natureza, sem fazer qualquerjulgamento de valor. Segundo Weber, se 0 cientista abre mao da sua neutralidade diante dos fatos, ele age mal e desrespeita 0 objetivo ultimo da ciencia que consiste na busca da verdade e objetividade dos fatos (Freitag, 1991: p. 105).

Diante do exposto, notamos que a tradicao filosofica "instaura" a dicotornia fato e valor. No entanto, esta dicotornia, de certo modo, institucionaliza-se nao s6 pelas ideias apresentadas por estes pensadores, mas principalmente, pela aceitacao por parte da maioria das pessoas, destas ideias, Poderiamos ir urn pouco mais longe nas nossas constatacoes, afirmando que, independente das ideias filosoficas, as pessoas diferenciam - talvez nao consciente de que estao estabelecendo uma quebra entre fato e valor - frases constatativas e valorativas. Por exemplo, uma frase do tipo (1) Maria esta sentada, eindiscutivel tanto para urn observador «a» quanto para urn observador «b», ou seja, «a» e «b» vao concordar com 0 que estao vendo. No entanto, uma frase do tipo (2) Maria esta muito bonita, pode ser aceita por «a», mas nao necessariamente por «b», isto e, «b» pode achar que Maria nao esta bonita. 0 que diferencia a frase (1) da frase (2)? Sera somente a institucionalizacao da dicotornia fato e valor? Ou sera, 0 contrario? nos aceitamos a dicotornia nao porque ela nos foi "imposta", mas sim, ela se cristalizou porque realmente existe e, os defensores desta nao fizeram nada mais do que constatar tal fato.

Estas questoes forarn levantadas somente para mostrar que a tarefa a ser empreendida por Putnam nao edas mais faceis. Ele precisa argumentar nao so contra uma deterrninada tradicao filosofica, mas tambem contra 0

senso comum. Ele parece saber disso e vai pautar inteligentemente toda sua argumentacaocontra a dicotorniaentre fato e valor,emcirna,justamente do que tanto a filosofia quanto 0 senso comum acreditam que ecapaz de decidir seguramente sobre 0 que eou nao urn fato: a ciencia.

Page 194: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

191

2. lhica, Ciencia e os padrOes de aceitabilidade racional

o argumento usado por Putnam para mostrar que a dicotomia fato e valor nao faz sentido consiste em mostrar que a distincao e imprecisa devido aos pr6prios enunciados factuais e que as praticas cientfficas pressupoem valores. Em outras palavras, as definicoes e por extensao a demarcacao sobre 0 que eurn fato e valor sao feitas de formas precisas como se fato e valor fossem "categorias" simples e incontestaveis: "as coisas se passam como se dispusessemos de definicoes precisas paraJato e valor, mas ejustamente essa pressuposiciio que sera questionada" (Guerreiro, 1989: p. 289).

Alguns defensores da dicotomia ate admitem que a ciencia pressupoe alguns valores, como por exemplo, a verdade. No entanto, eles assinalam que estes valores nao sao eticos. Do ponto de vista da ciencia seriam valores puramente epistemologicos. Ora, visto desta forma, parece que estas pessoas alem de "instaurar" uma quebra entre fato e valor, terrninam por multiplicar estas quebras uma vez que no interior do proprio valor distinguem os que sao eticos, por exemplo, dos epistemologicos".

Partindo-se da ideia de que a ciencia pressupoe valores, como por exemplo, a verdade, Putnam tece suas criticas sobre as definicoes correntes, como: 1. a verdade enquanto copia: 2.0 principio deequivalencia, Quanto a primeira concepcao Putnam vai dizer que a verdade nao euma nocao simples e que esta nao pode ser vista como uma copia passiva do que <<realmente esta ai» - independente da mente e 0 do discurso (p. 168). Critica tambem 0 realismo metaffsico, mostrando que este e urn contra­senso, ou seja, a ideia de correspondencia entre mundo em si e mundo nocional pode ser refutada "se ndo existir nada no quadro fisicalista do mundo que corresponde ao Jato 6bvio de que <<gatos> > se refere

2 MasPutnam nao esta preocupado com estas divisoes. Ele pr6prio admite que existem valores eticos, epistemo16gicos, esteticos, etc. A preocupacao dele, parece que se volta muito mais para 0 fato de nao devermos aceitar estas distincoes como absolutas.

Page 195: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

192

a gatos e ndo a cerejas, entiio esta euma razdo decisiva para rejeitar a exigencia de que todas as nociies que usamos devem ser reduzidas a tennos fisicos" (Putnam, 1992: p. 184).

Quanto ao segundo ponto, 0 princfpio de equivalencia, Putnam vai mostrar a posicao de alguns filosofos como os que apelam para tal principio, a posicao de Alfred Tarski e ados filosofos positivistas. 0 princfpio de equivalencia afirma que dizer de um enunciado que ele e verdadeiro e equivalente a assertar 0 enunciado. Tarski, por sua vez, vai usar 0 mesmo principio so que empregando a logica simbolica, Assim, «P» everdadeiro se e somente se P. Por exemplo: (T) «a neve ebranca» everdadeira se e somente se a neve ebranca. Para os filosofos positivistas nao existe nenhum problema para esta notacao formal, desde que voce compreenda «neve» e «branca». Mas, segundo Putnam "0 problema ndo estd em ndo compreendennos «a neve ebranca»>; 0 problema estd em niio compreendennos 0 que e compreender <<a neve e branca> >. Este e 0 problema filos6fico. Sobre isto (T) ndo diz nada" (Ibid, p. 169).

Para 0 filosofo americano, examinar estas definicoes ou afirmar que a ciencia procura descobrir a verdade e dizer urn enunciado puramente formal e consequentemente vazio, ou seja, para que esses enunciados formais nao sejam vazios epreciso que saibamos ou pelo menos tenhamos alguma ideia de quais sejam os criterios de aceitabilidade racional para distinguir, por exemplo, 0 procedimento cientifico para determinar a brancura da neve de outros procedimentos cientificos.

Para ele, os padroes de aceitabilidade racionallevam em conta o modo racional de prosseguir uma investigacao: os padroes de objetividade; quando considera-se racional terminar uma investigacao; que fundamentos fomecem uma boa razao para aceitar urn ou outro veredicto de qualquer tipo de questao, etc. Somente de posse desses padroes de aceitabilidade racional que conforme Putnam estao implfcitos na ciencia eque a verdade ganha vida, tomando-se, de alguma maneira, algo que econstrufdo e desta forma, faz parte de urn processo onde fato e valor mantem uma interdependencia,

Page 196: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

193

Os criterios de aceitabilidade racional exercem urn papel importante na filosofia de Putnam, uma vez que 0 proprio afirma que "usamos os nossos criterios de aceitabilidade racional para construir um quadro teorico do mundo empirico, e entiio a medida que essa imagem se desenvolve revemos os nossos proprios criterios de aceitabilidade racional a luz desse quadro e assim por diante, e assim por diante sempre" (1992: 174).

A construcao desse quadro te6rico do mundo empirico tern como caracteristicas principais a eficacia instrumental, a coerencia, a compreensibilidade e a simplicidade funcional. Para Putnam palavras como «coerente», «simples». <<justificados» sao termos relativos a valores e tern algum tipo de aplicacao objetiva. Neste sentido epossfvel afrrmar que pelo menos alguns valores sao objetivos e que a ciencia nao pode abrir mao destes para se desenvolver e que portanto, ela nao evalorativamente neutra. Mario Guerreiro em seu artigo intitulado Erica e ciencia em Hilary Putnam, afirma que: "Putnam deixa bem claro que, ao contrario do que pensam muitosfilosofos analiticos, para ele a ciencia tem uma finalidade etica. Se, enquanto meio (metoda. criterio epistemologico, etc..) a ciencia estd envolvida com valores cognitivos, enquantoJim esta comprometida mesmo com valores eticos (pois ndo hd outra categoria onde se pudesse situar "felicidade coletiva"}" (1989: p. 292).

Para Putnam os valores implfcitos na ciencia revelam uma parte da nossa ideia de bern e a outra parte desta ideia pode ser extrafda a partir da extensao dos nossos padroes de aceitabilidade racional aoutras areas do conhecimento. Ou seja, os padroes de aceitabilidade racional nao sao utilizados somente para dizer quando devemos ou nao aceitar enunciados, eles devem servir tambem para julgarmos a adequacao e clareza dos enunciados. Voltamos novamente a questao da verdade, isto e, ela perde a sua aura canonica e precisa ser complementada por termos tais como adequacao, clareza e relevancia. Putnam nos mostra isso atraves do exemplo do mobiliario: uma pessoa de uma cultura que nao tivesse mobiliario podia ser capaz de entrar em urn quarto e dar determinado tipo de descricao do quarto, mas se nao soubesse 0 que e uma mesa ou uma cadeira ou uma secretaria, a sua descricao dificilmente

Page 197: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

194

transmitiria a informacao que urn membro desta cultura desejaria ter do quarto. A descricao dela podia consistir apenas em enunciados verdadeiros mas nao seria adequada (1992: p.178).

Putnam quer mostrar com esse exemplo que embora a descricao feita pelo narrador seja verdadeira, ela nao epertinente uma vez que a sua descricao nao se pautou nos conceitos de adequacao, clareza e relevancia. Por mais que 0 narrador faca uma descricao fiel e verdadeira do que eurna mesa, por exemplo, essa descricao nao sera pertinente se o narrador nao dispor de certos conceitos que possam ser usados corretamente relativos adetenninadas situacoes. Trazendo isto para 0

campo cientifico, Putnam vai mostrar que a ciencia se interessa nao so em estabelecer proposicoes verdadeiras, mas tambem proposicoes pertinentes, uma vez que a verdade de urna proposicao embora seja condicao necessaria para sua aceitacao, nao esuficiente. Assim, a nocao de pertinenciaque se faz necessaria para aceitacao de urna teoria cientifica pressupoe urn conjunto de interesses e valores.

Conforme Putnam 0 que e verdadeiro ao nivel simples do discurso sobre mesas e cadeiras, e tambem verdadeiro ao nivel da descricao de relacoes de situacoes interpessoais (1992: p. 178). Deste modo, ele pede que consideremos 0 seguinte exemplo: >John emuito «indelicado»; >John so «pensa nele mesmo»; >John «faria praticamente qualquer coisa por dinheiro».

Para Putnam os termos em destaque nao possuem nenhurna carga valorativa, isto e, sao tennos descritivos no sentido de que foram utilizados somente para descrever e nao para elogiar ou censurar. Os defensores da dicotomia fato/valor consideram que esta distincao pode ser tracada apenas tomando-se por base 0 vocabulario, 0 que para Putnam e impossfvel, ja que fazendo uso somente do vocabulario nao somos capazes de saber qual a intencao do falante - descrever, explicar, prever, elogiar, censurar - ao pronunciar tal sentenca. Alem do que, mesmo que estes enunciados sejam somente descritivos, qualquer pessoa que aceitasse a conjuncao dos tres, dificilmente deixaria de acrescentar: «John nao euma pessoa muito boa». Desta forma, completa Putnam,

Page 198: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

195

"a independencia do valor relativamente ao Jato e dificil de manter quando os proprios fatos siio da ordem do «indelicado», «<pensa apenas nele», «<faria qualquer coisa por dinheiro»>" (1992: p. 179).

Esta estreita relacao entre fato e valor evidenciada por Putnam, mostra, entre outras coisas, que nao podemos pensar a ffsica somente de forma realista, nem tao pouco a etica apenas de forma subjetiva. Devemos ser menos realistas em relacao affsica e menos subjetivistas em relacao aetica. Para Putnam vemos a ffsica como a Teoria Verdadeira Unica e nao como uma descricao racionalmente aceitavel apropriada para certos problemas e propositos, Vendo a fisica como a Teoria Verdadeira Unica, tendemos a considerar subjetivistas todas as descricoes que nao conseguimos "reduzir" ao quadro fisicalista. Ora, a etica nao tern que entrar em conflito com a fisica so porque 0 seu discurso nao se reduz ao discurso ffsico, Logo, como afirma Putnam, outros generos de discursos importantes nao sao redutiveis ao discurso ffsico e nao sao por essa razao ilegftimos (p. 185).

Como afmna Guerreiro: "a ciencia ndo poderia prescindir de descricoes de estados de coisas e tais descricoes (mesmo quando e 0

caso de descricoes de simples percepciies} seriam inseparaveis de construcoes teoricas. Em outras palavras, nem a ciencia, nem muito menos 0 senso comum poderiam ter acesso a dados puros, de tal modo que a distincdo entre proposiciies observacionais e proposicoes teoricas seria tdo fragil e obscura quanto a propria distincdo entreJato e valor" (1989: p. 294).

Deste modo, podemos concluir que Putnam consegue mostrar de forma pertinente que 0 fossa existente entre fato e valor e absurdo, uma vez que as relacoes apresentadas entre a etica e a ciencia sao necessarias e visam nada mais nada menos do que a ideia de Eudaimonia. Assim,

"Despojados da velha ideia realista da verdade como correspondencia e da ideia positivista da justificaciio como fixada por criterios publicos, somos deixados com

Page 199: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

196

a necessidade de ver a nossa procura de melhores concepciies de racionalidade como uma atividade humana intencional, que, como toda atividade que se eleva acima do habito e do mero seguir da inclinaciio ou obsessiio, egerida pela nossa ideia de bem" (Putnam; 1992: p. 177).

Podemos afirmar ainda que a argumentacao de Putnam em defesa da nao dicotomia entre fato e valor e relevante pelo fato deste fil6sofo nao procurar apagar, radicalmente, a quebra existente entre fato e valor, e tambem, pela sua tentativa de aproximar urn do outro, construindo uma ponte entre 0 abismo existente.

Afirmar severamente, ou tentar extrair da obra de Putnam a ideia de que nao existe uma diferenca entre fato e valor, emostrar que existe uma contradicao no pensamento deste fil6sofo, ja que 0 mesmo utiliza esta distincao varias vezes. Para citar apenas urn exemplo, ele afirma que a ciencia nao e neutra uma vez que pressupoe valores. Ora, tal afirmacao confirma que 0 proprio Putnam distingue fato de valor.

Deste modo, 0 seu pensamento, ao que nos parece epautado na ideia de que entre fato e valor nao pode haver esse fosso institucionalizado pelos defensores da dicotomia; mas pelo contrario, os termos necessariamente mantem uma dependencia urn do outro que por sua vez, dependem dos nossos criterios de aceitabilidade racional que segundo Putnam, sao absolutamente necessaries para ter de todo urn mundo; quer urn mundo de <<fatos empfricos> quer urn mundo de «fatos relativos a valor» - urn mundo no qual ha beleza e tragedia (1992: p.188).

Page 200: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

197

Referencias Bibliogr8flcas

GUERREIRO, Mario A. <<Etica e ciencia em Hilary Putnam». in Paradigmas filosoficos da atualidade. Org. Maria Cecilia de Carvalho. Campinas: Papirus, 1994, p. 289-305.

FREITAG, Barbara. Itinerdrios de Antigona: A questao da moralidade. Campinas: Papirus, 1992.

GUISAN, Esperanza. Rozon y pasion en etica: Los dilemas de La etica contemportinea. Barcelona: Anthropos, 1990 (pensarniento critico I pensarniento utopico, 19).

MACINTYRE, Alasdair. A short history of ethics. London: The MacMillan Company, 1995.

PUTNAM, Hilary. Reason, Truth and History. Cambridge University Press, 1981. rad. Antonio Duarte. Razao, verdade e historia. Lisboa: Dom Quixote, 1992.

QUINTANILLA, Miguel Angel. Hilary Putnam: Las mil caras deL realismo. Barcelona: Ediciones Paidos, [s.d.], (Pensamiento contemporaneo, 31).

Page 201: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 202: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

o LUGARDAFILOSOFIAVISADOPOR PLATAO NO iON

Miguel Antonio do Nascimento

Resumo A presente abordagem e uma pressuposiciio de que Platiio se ocupa do conteudo da arte mas, com isso, determina a instiincia da filosofia. Os argumentos do didlogo ion siio entendidos aqui como arttculacdo de um vinculo necessdrio entre saber da inspiraciio divina e saber de arte-ciencia. Indaga-se aqui, como isto se lid?

Abstract The present broaching is a presuposition that Plato is involved with the content of the art but, with this, he determines the instancy of the philosophy. The arguments of the Ion dialogue are understood here by articulation of a necessary link between the knowledge ofdivine inspiration and the knowledge ofart-science. It's inquired here how it happens.

o dialogo em estudo nao trata diretamente da natureza da filosofia. Mas, indiretamente, trata apenas disto. Entre 0 lugar da filosofia e 0

lugar da poesia encontra-se urn distanciamento proprio e peculiar. A poesia ealudida por Platao a partir do ambito onde residiria a filosofia. Em outras palavras: enquanto Platao tenta situar 0 saber poetico, aponta

Princfpios Ano 04, n 05, p. 199-214, 1997

Page 203: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

200

para a necessidade do conhecimento filos6fico. Entre os dois saberes se constitui, entao, uma distancia inevitavel.

Na conversacao, Ion eurn rapsodo. A nocao de rapsodo nos chega sob certa discussao em tomo do seu real significado. Mesmo assim, 0

termo raps6dia encontra-se ligado aos poemas gregos ou seus fragmentos, enquanto sao cantados pelos ditos rapsodos - tambem chamados aedos. Usa-se, tambem esta palavra para denominar cada urn dos livros de Homero. Assim, 0 rapsodo seria declamador ou cantor das raps6dias. Seria aquele que diz 0 que ja se tomou poesia. Seja como for, Ion e apresentado por Platao como alguem que recita a poesia do poeta Homero. Portanto, nao se trata, nesta situacao, de uma analise da poesia e do poeta, diretamente. Trata-se do campo do saber poetico em relacao aos modos de conhecimento, - e por extensao, posiciono ai tambem 0

conhecimento pr6prio da filosofia, E neste ambito que se detecta deterrninado questionamento filos6fico.

o rapsodo ereconhecido ai por Platao como aquele que esta mais proximo da poesia, naquilo em que esta se da a conhecer. 0 rapsodo pode ser tornado, entao, por mensageiro da possibilidade da poesia ser mantida e revelada, isto e, da poesia permanecer poesia. Mas, - conforme nos indica Platao - pode-se ser rapsodo sem que se saiba em que consiste este saber. Em outras palavras, 0 saber do poeta criador ou do revelador da poesia nao e0 mesmo que a explica e define. Esta declaracao conduz toda a problematica do debate entre S6crates e Ion - os interlocutores do dialogo. Ion acabara de ganhar 0 primeiro premio num concurso de rapsodos e aguardava ali, orgulhoso e envaidecido, 0 pr6ximo concurso ­referente as chamadas Panateneias - grandes festas em honra da deusa Atenas. 0 papel de S6crates edemonstrar a Ion que 0 conhecimento que 0 levava a recitar tao bern os poemas de Homero nao era 0

"conhecimento verdadeiro" da arte da poesia. Pretensioso, ion estava convencido de que ninguem 0 igualava e, portanto, nao se achava equivocado. Mas S6crates procura desmascara-lo, mostrando-lhe que e outra a natureza daquele seu saber. Eurn saber de pura comocao divina (qeia dunamis), nunca comparavel, portanto, com 0 saber de arte-ciencia,

Page 204: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

201

Logo se percebe, pois, que a discussao travada neste dialogo tern em vista 0 lugar do saber poetico frente ao saber que pode dizer 0 que uma coisa e, inclusive 0 que ea poesia.

E exatamente este aspecto que interessa evidenciar: a instancia da poesia determinada ao mesmo tempo em que edeterminada a instancia dos saberes de arte-ciencia, onde se vai encontrar, por extensao, a filosofia. Cabe, a partir disto, esta pergunta: Qual a diferenca entre as duas instancias - filosofia e poesia?

No inicio do dialogo ha, aparentemente, uma preocupacao de se saber em que consiste 0 rapsodo. Mas isto eapenas aparente, pois logo que este edefinido como sendo a expressao do divino, ja nao emais isso que se faz questao, isto e, Platao nao dirige a discussao para 0 significado deste ser do rapsodo, que etambem 0 ser do verdadeiro poeta. Af entao, temos 0 primeiro momenta em que 0 interesse de evidenciar a ciencia filos6fica se impoe sobre a aparente preocupacao pelo que significa 0

rapsodo e poeta. Estes sao destacados por nao estarem compreendidos no saber de arte-ciencia. Isto esta indicado numa afirmacao conclusiva, parte de uma resposta de S6crates a fon. S6crates explica que a causa da facilidade com que Ion pode falar de Homero mas nao dos outros poetas, nao se deve a ''uma arte" e sim a urn dom, urn "privilegio divino"! .

Era de se esperar que 0 dialogo tivesse como prioridade de aprofundamento a segunda parte desta afirmacao, qual seja: trata-se de "urn privilegio divino". 0 significado de "divino", no entanto, parece nao constituir problema, para Platao. Mas isto, no sentido de que se apresentaresolvido em si mesmo. 0 alvoque ele pretende atingir,encontra­se, entao, na primeira parte da afirmacao, qual seja: 0 saber de arte­ciencia. Este tal saber nao se encontraria no rapsodo fon. S6crates leva Ion a perceber 0 seu equfvoco de querer que sua exposicao de Homero provenha do dominio da arte exigida para esta finalidade. Nao quer deixar diividas quanto a isto. Eo que parece indicar uma afirmacao explicativa nestes termos: "... esta claro para todos que tu es incapaz de falar sobre

1 a. Platon, Ion, 536d. Para as dtaeoes do ion utilizo a edi~o francesa das ooras de Platao "LES BEllES LE1TRES'.

Page 205: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

202

Homero em virtude de uma arte e de uma ciencia; se a arte te desse 0

meio para isto, estarias na condicao de falar tambem de todos os outros poetas, sem excecao. Pois existe, suponho, uma arte da poesia em geral. Nao er»

Aqui aparece indicada a diferenca entre a instancia do divino e a instancia da arte-ciencia, Antes de se considerar cada uma destas partes, deve-se notar que, ao mesmo tempo que isto eaqui estabelecido, produz a exigencia de uma parte ser determinada em relacao a outra. auseja, a compreensao de "divino" depende da atitude Iogico-racional que 0 separe do saber de arte-ciencia,

Isso gera agora certa expectativa de se saber como 0 divino obedece a isto. 0 conhecimento de arte-ciencia aqui consiste, diferentemente do saber divino, em separar uma coisa de outra, mediante graduacao de cada uma delas, a partir de sua essencia, Na arte da rmisica, por exemplo o que intensifica a sua essencia e quantidade de sons articulados e combinados com vistas a unidade de harmonia. E, portanto, 0 grau de harmonia conseguido que indica a consistencia de sua verdade. A rigor, ja os sons espalhados indistintamente no diverso contem a possibilidade da coisa rmisica; mas sem nenhum sentido do que depois vern a ser rmisica. Musica so e dita rmisica apos a organizacao dos sons numa determinada forma. 0 mais alto grau da essencia da rmisica reside, pois, no maior mimero de sons articulados num determinado sentido, isto e, na unidade de sua harmonia. Entao temos determinada a rmisica. Somente a partir dai podemos dizer, tambem, que uma determinada rmisica e melhor que outra, ou seja, que uma coisa emais rmisica do que outra. Ve-se que 0 grau de essencia so epossfvel pela articulacao intelectual da variedade dos sons, fonnando melodia ou rmisica,

Num outro dialogo, no Filebo, Platao se detem neste assunto para indicar este processo como principio indispensavel ao conhecimento comum a toda e qualquer arte. Socrates se dirige a Protarco nestes termos: " ... quando examinares as luzes desse mesmo principio seja a unidade que for, tornar-te-as sabio com relacao a ela'" .

2532c. 317e.

Page 206: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

203

Conhecer, neste sentido, se toma metodo de dominar 0 diverso. Mais exatamente - na delimitacao do tema em questao -, trata-se de atingir o que ha de mais intenso na essencia de cada coisa. Nfvel que distingue o que emaior e 0 que emenor, 0 que ecerto e 0 que eerrado; em suma, o que e born e 0 que emau. Sob este modo de esclarecimento, Ion e conduzido a se desiludir quanto apretensao de conhecer a poesia de Homero. Seria preciso para isto, nao apenas repetir suas palavras, mas atingir 0 sentido profundo destas" .

Ai, entao, compreende-se que 0 ser do rapsodo nao reside em compreender nem explicar 0 que afirma, e sim em ser determinado poder de exprimir 0 divino. Como veremos ainda, a essencia do rapsodo e do poeta eser urnelo de lig~ao entre os deuses e 0 povo. Assim, a continuacao da discussao indica que nao se deve confundir 0 conhecimento de arte­ciencia com 0 saber divino da poesia. Isto se da aqui no que Ion elevado a se auto-desiludir de sua pretensao de ser 0 melhor conhecedorde Homero. Ion s6 poderia saber-se melhor entre outros rapsodos se dispusesse do conhecimento que avalia medindo 0 pr6prio saber. Ora, esse nao e0 saber do rapsodo e do poeta. 0 seu saber, 0 saber divino, nao se da como medida. o saber que mede e avalia eurn saber de arte-ciencia,

o dialogo prima pela insistencia em fazer passar 0 conhecimento de Ion pelo conhecimento de arte-ciencia, nao s6 para invalidar a pretensao indevida do rapsodo, como para definir 0 divino. Esta medida racional de julgar, considerada por Platao como ausente no rapsodo, justamente ela decide 0 impasse entre 0 saber divino e 0 saber de arte­ciencia. S6crates, neste sentido, instrui Ion, dizendo-lhe que este nao pode falar bern de assuntos de que trate Homero, uma vez que os ignora'. Tenta, com isso, levar Ion a perceber af urn erro grosseiro, a saber: confundir sua pr6pria a~ao de repetir os fatos anunciados nos versos de Homero como se fossem 0 conhecimento verdadeiro, que decorado, pudesse ser aplicado arealidade, sem que nunca se alterasse.

Ora, Homero fala de tudo, no sentido de que fala sobre muitas coisas. Fala de carros e de cavalos; fala do exercito e da guerra. Mas, se

4 a. Ian, 53Oc. 5 Cf. 536e.

Page 207: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

204

disser como e porque os carros sao puxados pelos cavalos quando 0

exercito faz a guerra, este nao sera urn conhecimento de arte-ciencia, Este "como" e este "porque" de Homero poeta sao, neste sentido, menos verdadeiros do que quando ditos pelo cocheiro que toea os cavalos e pelo general que cuida da estrategia dos combates. Estes conhecem pelo mimero de variacoes combinadas e dominadas numa determinada forma. Enquanto Homero apenas se serve desses conhecimentos, prontos e a disposicao na sua memoria para revelar urn saber que desconhece. Como poderia Ion, portanto, conhecer e explicar em Homero aquilo que 0

proprio Homero desconhece? Nao epois de surpreender que quando Ion e interrogado sobre que tipo de coisas, sua arte pode conhecer, ele responda, demonstrando-se completamente desinformado dessa diferenca de conhecimento, dizendo: Eu penso que conhece "a linguagem que convem a urn homem como a uma mulher, a urn escravo como a urn homem livre, a urn subaltemo como a urn chefe'" .

Como se ve, eflagrante em Ion, a incapacidade de "conhecer" 0

que diz Homero. Alem disso, teria de manter sua condicao de poeta­rapsodo, a condicao de continuar ignorando a diferenciacao entre 0

conhecimento divino e 0 conhecimento de arte-ciencia. Assim, a citada resposta de Ion tern 0 sentido de acentuar a incapacidade que 0 rapsodo e poeta tern de conhecer atraves da arte-ciencia. Platao, visando oferecer urn registro definitivo disto, compoe a seguinte instrucao:

o dom de bem falar sobre Homero eem ti ndo uma arte, como eu te dizia hd pouco, e sim uma forca divina. Ela te agita como ocorre com a pedra que Euripides denominou magnetica e que e mais conhecida como pedra de Heracleia. Essa pedra ndo somente atrai os aneis de ferro; ela comunica aos aneis uma forfa que lhes da 0 mesmo poder que tem a pedra, 0 poder de atrair outros aneis, a ponto de se ver, as vezes, uma

6 a. Ion, 54Gb.

Page 208: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

205

longa cadeia de aneis e de pedacos de ferro, pendentes uns aos outros. E todos tiram essa [orca da pedra7 •

A definicao e convincente. No entanto, permite que fique bern mais agucada tambem a intencao de Platao de definir 0 rapsodo e 0

poeta, justamente atraves deste conhecimento de arte-ciencia, ao qual Ion e submetido ate onde nao pode mais se contradizer. E, se este saber, cada vez mais, se efetiva no esclarecer 0 divino, nao parece, porem, que o divino se tome, ao mesmo tempo, mais esclarecido. Ao contrario, toma­se, cada vez mais ocultado e permanece, sempre mais, somente divino.

A presente abordagem evidencia 0 fato do sentido do divino ter sido conceituado de antemao a partir da evidencia do conhecimento de arte-ciencia, Ficou tachado a priori de instan cia da divindade e impossibilitado de ser avaliado sob outra perspectiva. Se a instancia do divino nunca pode se enquadrar no conhecimento de arte-ciencia, permanecera sendo ai urn problema, visto que njio desaparece e ate mesmo se toma 0 fundamento de todo conhecer. Nao desaparece, no sentido de estar presente como impossivel de ser conhecido. Neste caso, a instancia do conhecimento de arte-ciencia, conhecendo-o como impossfvel de ser conhecido, nao ja se livrou do problema de conhece­lo,ou seja, do problema de sua verdade. Em suma: Embora nso se reduza a nada de existente, 0 divino, ai, permanece tendo que ser alguma coisa; so que, compreendida apenas pela arte-ciencia,

Epossivel que esse meu entendimento do prop6sito de Platao esteja incorreto. Talvez falte 0 alcance do alvo que Platao pretende atingir. Em outras palavras, talvez a implicacao entre arte-ciencia e 0 divino nao se destine a enquadrar e determinar 0 divino mediante 0 conhecimento de arte-ciencia; e que a recorrencia de Platao a arte-ciencia seja, antes, para atribuir importancia ao divino. Existem mesmo, neste sentido, passagens em que 0 saber divino eengrandecido por Platao. Jano comeco do dialogo e em repetidas vezes encontramos esta declaracao do interlocutor Socrates: tenho inveja dos rapsodos" . Mas, se assim 0 for,

7533d-e. sa. 530b.

Page 209: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

206

isto aumenta ainda mais a expectativa inquietante frente ao fato da funcao do divino nao poder ser 0 simples consumir-se no pr6prio devir.

Se se admite esta possfvel ambigiiidade de Platao no tratamento do divino, deve-se fazer progredir 0 questionamento para alemda solucao conseguida no dialogo, no que conceme arelacao entre divino e arte­ciencia, Neste prop6sito observemos esta passagem do texto em estudo, - uma resposta de S6crates a Ion, chamando-o de sabio:

"... os sabios siio tu - eu imagino -, os rapsodos e autores, e aqueles [os poetas] cujos versos declamas; eu me limito a dizer a verdade, como e natural a um profano. Por exemplo, para a questiio que te punha ainda hd pouco, considera como e simples, vulgar e ao alcance de qualquer urn reconhecer, como eu dizia, que 0 modo de investigar e0 mesmo quando se toma uma arte no seu conjunto "9.

Deve-se levar em conta, a partir daqui, portanto, a intencao de Platao de exaltar 0 saber divino do rapsodo e poeta. Veremos que seria estranho S6crates nao se sentir contraditorio se quisesse que fon agisse, ao mesmo tempo como rapsodo e como aquele que conhece mediante arte-ciencia, Bern mais parece indicar que 0 conhecimento da arte decorre da necessidade pratica de justeza no diverso e justica na adversidade. Isto pode ser assim admitido, caso se interprete nesta direcao, 0 que diz Platao numa outra ocasiao - no Eutifron10

• Mostra que, mesmo quando se recorre aos deuses, eainda porque precisa-se de solucoes terrenas: precisa­se chegar a urn acordo a respeito do "justo e do injusto, do belo e do feio, do bern e do mal". Poroutro 1000 fica indicado que isto implica no divino por se tratar de algo que nao tern solucao em si proprio. Diz, por exemplo: "... ninguem se atreve a dizer ou a contestar que nao deve ser castigado quando comete algoma injustice; 0 que todos afrrmam, quero quer, eque nao

9532e. 10 Cf. 7b-8e.

Page 210: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

207

cometeram injustice", Quempode dizer 0 que seja injustica? Ve-se, de pronto, que 0 problematico aqui e saber 0 que e a injustice,Ecomo se devessemos admitir que nao podemos "conhecer' para alem do "conhecimento". Donde nao nos seria dado 0 direito de "conhecer' 0 divino.

Freqiientemente vemos Platao acentuar que 0 objetivo do conhecimento e distinguir entre verdade e erro, justo e injusto, certo e errado, bern e mal. Mas, no fundo, 0 que se faz problema e ter-se de decidir por uma verdade, ou seja, e se ter de saber a partir de onde se pode determina-la. Devemos adiantar que para Platao este onde aparece passivel de ser questionado aqui porque reside fora da possibilidade do conhecer. Este onde seria 0 divino. Entao, a dificuldade e transferida para 0 como chegar ate 0 divino, atraves do conhecimento de arte-ciencia.

Nao se pode dizer que Platao vacile em admitir 0 divino como comeco, A pr6pria verdade da justica, instancia do conhecimento de arte tern sua verdadeira excelencia projetada najustica eterna, portanto, divina. E tambem 0 pr6prio metodo de se chegar a e1a, a "dialetica", e procedente da instancia divina como diz este pensador no Filebo: "... dadiva dos deuses para os homens jogada aqui para baixo por intermedio de algum Prometeu, juntamente com um fogo de muito brilho"" . De outra feita, - na Carta Setima -, pondo em xeque a audacia de quem diz ser fi16sofo sem 0 ser, afirma que este precisa provar se realmente e dotado de "natureza divina?".

Ora, se se trata do divino, entao e justamente este que deve ser atingido e posto em questao. Quando, agora, Platao resolve a dificuldade mediante um conhecimento que se basta na excelencia da arte de conquistar 0 divino - a arte-ciencia -, temos que ver indicado at tambem o enigma da origem do pr6prio divino.

Epois a instancia do divino que por sija e comeco e enigma. Mas, nesta instancia nada se pode dizer sobre nada. Isso e problema em excesso para Platao, conforme expressa no dialogo Cdrmides, atraves de S6crates,

1116c. 12 Cf. 340c.

Page 211: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

208

nestes temos: "...fico sem compreender como pode ser a mesma coisa saber 0 que se sabe e 0 que nao se sabe'"" .

A filosofia, assim, nao poderia se dizer filosofia ou outra coisa se nao dispusesse de urn conhecimento, de urn saber, de urn metodo para isso. Eis pois sua dependencia do conhecimento de arte-ciencia. Fora disso estariamos na instancia do sentir, do mover, mas nao do distinguir e repetir. 0 divino, em certo sentido, apresenta aqui urn efeito andlogo ao efeito do sensivel. Em outros termos, porque nao pode se dar como conhecimento de arte-ciencia, 0 divino nao se esc1arece nem explica nada. Ai nao ha progresso. Nao se sai do lugar. 0 rapsodo e 0 poeta, porque tern sua essencia nesta instancia nao podem nunca conhecer nem dizer aquilo que sabem.

Resta acentuar, a partir do exposto, a nitidez da distancia entre filosofia e poesia; entre 0 conhecimento de arte-ciencia e 0 saber divino. o prop6sito eevidenciar urn problema: a filosofia aqui necessita acolher o divino como principio e refuta-lo, ao mesmo tempo, para poder assumir sua identidade de arte-ciencia. Platao mostra essa dicotomia, no que poe o fil6sofo a dizer: "os sabios sao os rapsodos e autores, e aqueles [os poetas] cujos versos dec1amas; eu me limito a dizer a verdade, como e natural a urn profano".

Todo esse embaraco e discussao poderiam ser evitados se dissessemos que a filosofia nao requisita a sabedoria como seu objeto; se dissessemos que ela deve se tornar urn saber etico-funcional e pragmatico. Mas, neste caso, a questao do divino fica dissimulada em vez de explicitada. Se 0 divino ainda pennanece como questao, nao e porque falte quem tenha a coragem de aniquila-Io. Consequentemente, niio basta jogar fora a dialetica platonica, 0 divino equestao porque e0

enigma de comeco e sentido. Neste ponto, Platao esta mais pr6ximo de sua pr6pria superacao que toda a critica "modema" que the e feita, a base da supressao sem mais do divino.

Eo divino, portanto, que desencadeia a problematica aqui abordada. Buscar 0 saber significa traduzir isso que se inicia como divino. No

13170a.

Page 212: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

209

Eutijron, aparece a este respeito, a seguinte afirmacao: "0 que e agradavel aos deuses eagradavel por ser amado dos deuses, nao amado por eles por lhes ser agradavel'" ". Entao: 0 que vemos, 0 que somos, 0

que e, ja 0 eassim enquanto prazer dos deuses. Mas nao que os deuses precisem disso assim para garantir a agradabilidade. Nisto esta contido o fato de que a realidade edadiva dos deuses, mas pelo prazer que os deuses sentem em cria-la. 0 que ela necessita fazer para cumprir 0 destino de ser 0 prazer dos deuses, 0 seu capricho, isso ela nao sabe de antemao, isso the eproblema, pois 0 que conta e0 querer dos deuses. Seria imitil ao fil6sofo, entao, por 0 conhecimento fora da arte-ciencia, embora 0

alvo esteja la e seja unicamente 0 divino. Apesar de ser evidente aqui certa ambigiiidade, a filosofia do

sensfvel-inteligfvel, no entanto, nao conseguiu assimilar 0 divino como o devir. Ao contrario, a partir do impasse, a fun~ao da filosofia se delineou como determinacao do supra-sensfvel. Neste sentido, isto justifica tanto o saber de arte-ciencia como 0 divino. Platao eclaro quandodeclara que aquilo que "as almas" "veem pelos seus pr6prios meios einteligfvel e, ao mesmo tempo, invisivelp5". 0 sentido de "invisfvel" coincide com inteligfvel e supra-sensivel; e, propriamente, nao como oposicao a visivel e sensfvel, Pode-se deduzir disto 0 fato de que 0 acesso ao supra-sensivel tenha que ser levado em conta como questao: como algo que tern de ser admitido enquanto nunca revelado. Naturalmente e isto ja 0 segundo aspecto importante. 0 primeiro e ser 0 supra-sensfvel, ou seja, 0

inteligfvel, a diferenca especffica entre 0 homem e os outros entes. Os dois aspectos dao 0 conteiido de questao filos6fica. Pois, com isso, temos de estar numa instancia pr6pria para a filosofia, instancia que nao pode ser ados entes pura e simples mas a instancia do homem enquanto diferenca especifica. Neste ambito, a discussao entre os fil6sofos tern de ser sobre 0 que seja 0 conteiido de verdade que constitui 0 supra­sensfvel. A funcao da filosofia seria libertar as almas do sensivel em relacao ao supra-sensivel-invisivel. Ao mesmo tempo, esta funcao

1410e. 15Fedon, 83b.

Page 213: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

210

coincide com 0 direito (0 iinico direito) de "participar da existencia do divino", do que e"puro e unico em sua forma?" .

A coincidencia de divino com invisivel conota 0 supra-sensfvel como ponte entre as almas e 0 divino. Conota como sendo 0 divino 0

que ha de mais importante mas como sendo 0 supra-sensivel 0 que ha de mais necessario. 0 supra-sensfvel aparece como meio imprescindivel de superacao, Como 0 alvo e0 divino, as almas nao podem pennanecer no sensfvel, embora nao possam tambem evitar de ter que viver somente no sensfvel.

Como se ve, a condicao de acesso ao divino nao pode deixar de se apresentar problematica. Para Platao, ninguem tern 0 "direito" de alcancar o divino, "se nao filosofou, se daqui partiu sem estar totalmente purificado'? ".

o divino se torna 0 ponto de partida da questao relativa ao ambito do supra-sensfvel, 0 supra-sensfvel ecomo que ponto de encontro entre o divino e 0 sensfvel. Significa dizer que 0 poder de diferenciacao do supra-sensivel em relacao ao sensivel reside no divino. Trata-se do conteiido constitutivo da verdade - 0 proprium da ideia, Questao e problema, articulados agora numa especulacao filos6fica, aparecem vinculados ano~ao de sentido. Mas 0 destaque no momenta e0 divino, no sentido de que 0 supra-sensfvel enecessidade e criacao nao do divino mas do humano. Significa que 0 supra-sensfvel diz respeito ao destino apoditico de superacao do sensivel e, que 0 homem tern de deterrninar sentido. Resulta disso, por fim, que 0 divino nao se reduz ao supra­sensivel nem pode ser conhecido, totalmente ai. Mais exatamente: 0 supra­sensivel ea meta destinada aos mortais e nao ao divino. Por conseguinte, o saber divino que alguns portam nao se da a conhecer como saber de arte-ciencia, A rigor, nem mesmo tern estes portadores do divino a consciencia e dominio de tal saber.Razaoporque, estes portadores, quando desconhecem a importancia do supra-sensfvel, quando nao se educam na compreensao deste iinico canal que vincula os mortais averdade de

16a.Fedon; 83a-e. 17 Fedon, 82b.

Page 214: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

211

seu sentido na terra, estao na condicao de errar ate mais que os que conhecem mediante 0 saber de arte-ciencia'". Por isso, os artistas em geral precisam ser excluidos do govemo do Estado. Pois tornam-se obstaculo em vez de passagem para a verdade do sentido do real. Mas nao se trata de refutar 0 divino nem condenar 0 artista. A questao e assegurar esclarecimento e educacao dentro da relacao sensfvel e supra­sensivel. Se 0 lugar visado para a filosofia se encontra em conexao com esta atitude, e porque a verdade deve ser defendida a todo custo. Garantido isto, 0 saber dos portadores do divino nao precisaria mais ser censurado. Eo que Platao indica, com 0 exemplo da poesia, declarando que e refutado nesta somente 0 carater de "imitativa e serva do prazer" - delirio ou mania. Mas seria bern aceita, no caso de ser a ratificacao do "bern construida" da cidade: "temos perfeita consciencia do fascinio que ela exerce sobre todos n6s; porem seria procedimento Impio trair 0 que temos na conta de verdade't",

E born repetir que os portadores da sabedoria verdadeira, isto e,do divino estao na condicao de errar ate mais que os que conhecem mediante o saber de arte-ciencia, Ponho dois pontos em relevo: (1) Que tipo (natureza) de erro e este? (2) Como 0 saber de arte-ciencia se toma 0

medidor deste erro? No primeiro caso, 0 tipo de erro consiste em nao se visar ao supra-sensivel. No segundo caso, 0 que constata e mede 0 erro e o saber de arte-ciencia em relacao com 0 supra-sensivel,

E preciso perceber que 0 supra-sensivel e a arte-ciencia sao a instancia dos mortais, 0 humano. Mais exatarnente: sao 0 engendramento da verdade como ideia, E importante dizer-se que nao seria este, propriamente, 0 ambito do divino. Assim temos a compreensao de que, embora 0 poder do supra-sensivel seja 0 divino, cabe ao humano efetivar o outro poder, 0 da vinculacao entre 0 sensivel e 0 supra-sensivel. Mas, apesar de apenas engendrado enquanto a superacao humana de si e do todo sensfvel, 0 supra-sensivel, no entanto, deixa de ser a busca do divino

18"•.• aquele quenao possui a arte [denda] nao estara em estado de conhecerbern 0

que se diz ou se faz nessa arte", (Ion, 538;1) 19 RepUblica, &J7c.

Page 215: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

212

para ser ja a verdade, ou seja, 0 imutavel, 0 etemo - 0 proprium da ideia. A no~ao da ideia esta sendo dada pela mistura de dois elementos: algo constatavel na realidade - vestigios do perfeito, busca disso, aperfeicoamento em direcao a isto - e algo inalcancavel - 0 perfeito em si, somente invocado como necessario, 0 conteiido da ideia 6 inerente a esta experiencia. Apesar disso, nao ha, para Platao, outra coisa dentro da experiencia que possa ser mais perfeito que apenas a ideia do perfeito. o espelho e a fotografia, embora sejam imitacoes perfeitas, conseguem apenas reproduzir novamente a ja copia do verdadeiro ser de algo - a ideia. De modo que, 0 que quer que justifique a excelencia de uma reproducao, isto sera sempre menos verdadeiro que a fiel reproducao primeira da ideia,

Como se ve, Platao conduz 0 filosofo a conceber 0 poder de engendramento da verdade ja como a verdade mesma em si. Com isso, 0

lugar visado para filosofia nao consegue ser tao somente poder de busca e engendramento da verdade; tern de ser ja a verdade. Mas, sera que se poderia dizer que sao duas coisas diferentes entre si? Dois poderes? Provavelmente nao, Neste caso, a diferenca esta na decisao pelo lugar visado para filosofia. Nao se poderia decidir pelo lugar em que 0 divino se consome no proprio poder de engendramento e busca da verdade?

o poder da "pedra de Heracleia" tanto guarda a verdade como nao a explicita. Guardar a verdade e nao explicitar a verdade e uma coisa so. Significa que a verdade 6 isto que nao se explicita e que se tern de guardar. Assim 6 que parece ser ao mesmo tempo verdade e divino. Indiretamente, isto esta sendo no dialogo a importancia de seu conteiido. Eo proprio Platao acaba por ratifica-lo ao dizer que se trata do poder que, tanto "atrai", como "comunica" aos que atrai a "mesma propriedade". E isto se da de tal modo que torna os que atrai capazes de atuar como a propria pedra. Por conseguinte, pode-se dizer, agora, que nao ha nada que nao seja apenas essa "forca da pedra".

Page 216: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

213

Referencias Bibliograticas

PLATAo. Didlogos. (vol. I-II, V, VI-VII, VIII) Traducao para 0

portugues por Carlos Alberto Nunes. Belem, UFPA, 1974 a 1980. __ Fedon. Traduzido para 0 portugues por Jorge Paleikat e Joao

Costa. Sao Paulo: Abril Cultural, 1979. tDialogos - Colecao OS PENSADORES).

PLATON. Oeuvres completes (Ion) (tomo V - primeira parte), traducao francesa de Louis Meridier, Paris: Les belles lettres, 1931.

Page 217: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 218: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

o HOMEM CINICO

Samir Haddad

Resumo Nosso trabalho procura descrever a escola cinica atraves de seu fundadot; Antistenes de Atenas (444-355) , analisando 0 comportamento do homem cinico e suas contradiciies, sua busca pela virtude e pelo agir correto. Mostramos 0 caminho que 0 homem cinico deve percorrer para chegar a seu objetivo : a autarquia. Ao mesmo tempo, revelamos seu reptidio a toda cultura estabelecida e a sua relaciio com 0 corpo e 0 prazen 0 ctnico deve distanciar­se da cidade, OOs atividades mundanas e da politica.

Abstract Our study aims at describing the Cynic school through its founder, Antisthenes of Athens (444-355), analyzing the behavior of the cynic man and his contradictions, his search for virtue and good works. We show the way which the cyniac man must follow to reach his goal: self­sufficiency. At the same time, we reveal his aversion to every established culture and his relation to the body and pleasure. The cynic man must keep himself away from the city, mundane activities and politics.

Principios Ano 04, n 05, p. 215-228,1997

Page 219: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

216

o Homem Cinico

1.1 0 Comportamento Cinico

o cinismo e, antes de tudo, urn modo de agir no mundo. Seu problema central sera, nitidamente, etico, A existencia do homem e seu comportamento sao as questoes fundamentais e nenhuma resposta teorica podera soluciona-las, 0 que importa sao os atos, 0 agir, 0 que acontece a cada instante. E cada instante cobra uma diferente decisao.

Antfstenes nao se preocupa em construir urn sistema acabado e logicamente consistente. Vive em contradicoes e as aceita sem nenhum problema. 0 perfeito uso da linguagem sera constantemente subvertido em prol da necessidade de admoestar os homens.

Contudo, 0 que leva urn homem a comportar-se como urn cinico e a tornar-se urn cinico? 0 que faz com que Antistenes e Aristipo' tendo freqiientado 0 mesmo Socrates tomem rumos opostos?

Aristipo de Cirene escolhera 0 prazer como bern supremo e 0

convfvio com os homens seu melhor aprendizado? . Antistenes, ao contrario, tomara 0 duro caminho da virtude e da continencia; isolar-se dos homens e do estado sera a verdadeira virtude.

Porem, deve haver algo que garanta comportamentos tao distintos. Em Platao, por exemplo, ha a necessidade de fundamentar seu discurso na crenca da imortalidade da alma e sua transmigracao, pois tais coisas seriam as garantias do conhecimento, 0 objetivo da filosofia e da vida. Nos cinicos, particularmente em Antistenes, nao encontramos crenca ou teologia que garantam a necessidade do seus procedimentos.

1 Aristipo de Cirene considerado 0 iniciador da escola cirenaica. Foi discipulo de SOcrates, como atestam: Di6genes Laercio II,65-104 e Xenofonte, Memoraoeis 11,1.

2 Aristipo aparece aqui porque e, geralmente, tido como 0 exato oposto de Antlstenes.Enquanto urn evitava 0 prazer 0 outro tomava-o como 0 fim Ultimo. Quando perguntado sabre 0 que haviaganho da filosofia Aristipo respondeu: "A capaddade de sentir-me avontade em qualquer companhia ".LAERQO, D. II,68.

Page 220: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

217

Respondendo a maneira de Nietzsche, poderiamos dizer ser mera questao de gosto, uma apreensao diferenciada dos ensinamentos de S6crates. Entretanto, a questao e de dificil solucao, tanto hoje como na Antigiiidade. Espantado com os rumos tao distintos que os socraticos tomaram, Augustinho (Augustin, Cite de Dieu, vIII,3 - Paquet, 1992, p. 55) pode dizer:

Os socrdticos tiveram, quanto ao Jim ultimo, sertas divergencias entre eles mesmo. E uma pena conceber que os discipulos de um mesmo mestre puderam chegar a isto: uns, como Aristipo, dizlam que 0 soberano bem e o prazer; enquanto outros, como Antistenes, identificavam a virtude.

De fato, 0 que podemos fazer e supor , pois nem Aristipo nem Antistenes justificaram suas preferencias de forma inequivoca. Sabemos que 0 que os move e ainda a mesma busca do agir correto, a etica.

Mesmo na impossibilidade de esclarecer as divergencies entre os varies socraticos, podemos, com seguranca, mostrar em que consiste o modo de vida cinico e os preceitos que devem ser observados.

Antistenes, 0 primeiro cfnico' ,pode ser descrito como urn homem que possui pouquissimo apreco pelo homem e a humanidade em geral. Neste ponto, se parece com Nietzsche que ve no homem apenas uma possibilidade que, na verdade, the esta alem,

o que Antistenes ve, na vida humana, e dor, sofrimento, 6dio e violencia, e e contra essas horriveis sensacoes que esta constantemente em luta. Nao as percebe exclusivamente nos outros, colocando-se amargem e a salvo, mas, ao contrario, percebe 0 inirnigo em si, em sua pr6pria alma. A sensacao e 0 inimigo : "melhor a loucura que a sensaciio" . E por esta agonia que se ve envolvido (Caizzi 108c, D.Laercio vi,3 108 a).

3 Consideramos Antistenes 0 primeiro dnioo, apesar de divergendas . Passamos ao largo da questao par ser irrelevante para 0 nosso trabalho.

0

Page 221: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

218

Nao e de forma alguma urn humanista, nao ere no homem nem nas sociedades que eles podem estabelecer. 0 homem esta em luta permanente consigo, e esta luta escapa de si indo ferir outros. Este martirio sem fim que e a propria vida nao tern vencedores ; mas algo ainda, talvez alguma coisa parecida com razdo nao 0 deixa abandonar-se livremente ao curso dos acontecimentos. Mesmo sabendo que nao pode veneer, pois contrariaria 0 proprio sentido de humano, 0 cfnico nao admite perder­se na multidao; repetindo as mesmas frases, imitanto os gestos, devotando­se ao estado e a fann1ia.

A saida, se ha uma, e a admoestacao" , transformar-se numa ferida; Di6genes desempenhara muito bern esse papel, sera uma ferida na cidade, sera a lembranca da humanidade do homem" .

Na possibilidade estetica, Antistenes e os cinicos nao acreditam. A arte e quimera, brincadeira de crianca, fuga. A beleza e 0 bern, sempre presentes no S6crates de Platao, nao encontram correspondencia nos cinicos. 0 humano e feio, e a bondade, uma mascara que os homens usam para protegerem-se uns dos outros. A eudaimonia, a felicidade que persegue, e ainda e apenas a felicidade possfvel a este homem cheio de instintos impossfveis de serem contrariados. A eudaimonia nao e, portanto, divina, nem eleva 0 homem por completo, assemelhando-o aos deuses.

oque se the permite, e que vai marcar todos os seus atos, podemos ate chamar arte, talvez a iinica que the seja permitida, talvez tambem a mais bela. Consiste a arte cfnica, atraves de uma tecnica, em produzir uma obra, edificar urn homem: a esta construcao chamou Antfstenes de sophos . Uma construcao, uma obra de arte que necessita de uma tecnica especffica.

A filosofia, ou melhor, a vida e para 0 cfnico a tentativa de estabelecer urn modelo de homem. Ha toda uma economia do corpo e da alma. Nao sao propriamentes dogmas, mas uma pratica que e prescrita e deve ser cumprida. Ao ser perguntado a respeito da vantagem que havia tirado da filosofia, a resposta de Antfstenes foi: "Poderfalar comigo

4 No sentido de exortar, indtar, aconselliare repreender. 5 Toda a vida de Di6genes revela esta preocupacao, Ver LAERQO,D.; VI, 20-81

Page 222: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

219

mesmo" (Caizzi, 1966, frag.l77, pag.71 - D.Laercio vi,6). Esta resposta nos remete a frase escrita sobre 0 portal de Delfos : conhece-te a ti mesmo, principio que serviu de guia a Socrates.

Entretanto, a obra cfnica nunca estara completa, estara sempre por fazer; por isso a imagem do soph6s admoestador, que estara sempre convocando os homens e a si mesmo. 0 cfnico sabe que seu sucesso sera incompleto, pois ja sabe a priori que dos instintos nao epossivel fugir: se dominasse , com suas tecnicas, toda a fome e toda sede, ele morreria, esta, por assim dizer, sob 0 imperio do corpo. Se dominasse a si taoperfeitamente que nao sentisse frio ou calor, ele morreria. Percebe que seu almejado sucesso etambem seu fun. Esta ea imagem do sophos adrnoestador : sob 0 imperio do corpo, e preciso encontrar 0 ponto de equilibrio, onde nao seja mais dominado pelos instintos, mas ainda permaneca hurnano.

o cfnico tem um destino para 0 homem, mas se ri dele. Ele mesmo nao acredita que isto seja possfvel, pois 0 destino eacaso e nao M alma imortal que subsista sempre ao acaso. 0 destino ironico e aporetico do homem traduz-se no sophos, um caminho individual que nao tem porque ser feito e, ao mesmo tempo, epreciso ser feito. Nao ha garantias para 0 cfnico e ele sabe dis so ; nesta aporia, encontramos sua forca,

ocetico se distanciaria do cfnico por suspender1000e qualquerjufzo; o cinico nao ere que isto seja possivel; a ~einevitavel e necessaria, epreciso escolhermesmo que, negativamente, negando todas as escolhas. 0 cfnico pode ser descrito como urn cetico que resolveu agir, por impossibilidade de nao faze-lo ou, ate mesmo, por vinganca para com a vida

Sua arte ea finalidade que escolheu, por um prazer que nunca confessa ou por impossibilidade de agir de outro modo" . Construir um homem, dominar os instintos, imitiltentativa; daf sua personalidade lugubre, de que Aristipo estava sempre zombando? .

6Eatraves do unico e rasgado manto que Socrates captura 0 orgulho ciniro: "Atraves dos furos de teu manto vejo teu anseiode gl6ria." (LAEROO, D. VI,8. p.154.).

7 (PAQUET ,1992, p.75)' "Aristipo nao parava de ridicularizar Antistenes por causa de sua personalidade lugubre."

Page 223: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

220

Como, porem, uma concepcao de vida tao higubre pode se mostrar de forma risivel e tao pouco seria? Eda propria natureza da questao ; para as aporias que levantava e vivia, a unica solucao era 0 riso, 0 escarnio e a ironia. Como poderia deixar de rir do homem e de si mesmo? A condicao peculiar de ser homem bastava para 0 riso ; era preciso ironizar e repudiar as tentativas propostas pelas academias. Nao ha solucao para sua questao. A ironia cinica, a mordacidade, eamarga, are mesmo rancorosa. Para 0

existir nao ha solucao, s6 continuar existindo, e como S6crates, a tinica coisa que podia ter importancia era 0 modo pelo qual esse existir poderia tomar forma. E essa era a tecne cinica, a sua arte.

1.2 0 Fim Previsivel

o homem que Antistenes deseja construir, 0 sophos, deve exercitar a continencia, dominar-se e tornar-se autarquico, 0 cfnico propoe urn caminho para 0 homem. A autarquia do sophos, e 0 pr6prio sophos sao metas a atingir. Porem, antes mesmo de percorrer 0 carninho, 0 cinico ja sabe 0 seu fim.

Perguntado sobre qual seria a maior bem-aventuranca para os homens, Antistenes respondeu: "Morrerfeliz" (CAIZZI, 1966; frag 164, p.69.) Este seria 0 objetivo alcancado pelo soph6s. Entretanto, quando Antistenes diz morrer feliz, ele nao se refere a nenhuma esperanca que subsista amorte. Trata-se, ao contrario, da pr6pria afirmacao da vida, dos atos humanos e sua conclusao previsfvel,

Uma est6ria envolvendo Antistenes e Di6genes nos da a exata medida da vida e da morte cinica. Antfstenes esta agonizante, sofrendo muito, Di6genes se aproxima e mostrando-lhe urn punhal, pergunta-lhe se precisa de urn amigo. Antistenes diz: "Quero me livrar dos meus tormentos e de minhas dores, e ndo de minha vida". (CAIZZI,1966; frag 142, p.66). Estranho apego a algo a que devota tao pouco valor. E, por que a resistencia em morrer, se acreditasse em algo alem da morte?

A crenca na imortalidade da alma e na vida ap6s a morte nao estao presentes na vida cinica. No testemunho acima, Antfstenes, em nada se parece com 0 S6crates que Platao nos mostra no Fedon: urn homem tranqiiilo com a chegada da morte, pois, tern:

Page 224: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

221

a firme convicciio que alem dela hd alguma coisa que as antigas tradicoes dizem ser melhor para com os bons do que para com os maus. (Fedon. 63C)

o S6crates do Fedon pode dizer:

considero que 0 homem que realmente consagrou sua vida a filosofia e senhor de legitima convicciio no momento da morte e, possui esperancas de ir encontrar para si no alem excelentes bens quando estiver morto! (Fedon. 64A)

Esta e, propriamente, a visao particular platonica; se S6crates foi ou nao ciimplice desta maneira de pensar n6s nao sabemos (aflnal, ele nada sabia a respeito deste mundo, que dira de outro). Mas, a imagem de urn lugarpos-morte, onde os bons se reuniriam, e recorrente na obra platonica. A mesma ideia encontramos no final do dialogo Gorgias (523a-526e - as ilhas da bem-aventuranca), e tambem, na Republica (614a), onde 0 mito de Er que the serve de epilogo e urn hino aimortalidade da alma.

Entretanto, encontramos em Antistenes a exata contradicao a esta crenca antiga referente ao lugar dos bonse dos bem-aventurados.Os misterios 6rficos que prometiam a paz e 0 reconhecimento ap6s a morte, e que eram a origemdos comentarios platonicos, receberam da parte de Antistenes ironiae pouco caso. Di6genes Laercio nos conta que, ao participar dos misterios, e como the fossem prometidas muitas riquezas, no alem, Antistenes teria sugerido ao sacerdote 6rfico que se matasse, para ir ele mesmo, e mais rapido ainda, ao encontro das riquezas prometidas. Este testemunho pode ser visto apenas como uma anedota, com intuito de ridicularizar os misterios, porem, devemos ter em conta que, para 0 cfnico, a vida nao e umjardim de delicias ; 0 cfnico deve fugir das sensacoes e do prazer facil: se the fosse garantido urn outro lugar ap6s a morte e provavel que realmente se matasse" .

A vida humana e unica e deve ser vivida ate 0 fim. Nao e uma doenca que a morte pode curar, dando a alma sua verdadeira alegria.

8 Antistenes nao faz referencia ao suicidio, apesar da sugestao de Di6genes. Entretanto, os est6icos que, de certa forma, continuaram a etica ciniea admitiam o suicidlo em determinadas circunstancias. (Cf LAERCIO, VII).

Page 225: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

222

Aqui podemos compreender a critica de Nietzsche as iiltimas palavras de Socrates, no Fedon : "6 Criton, nos devemos um galo a Asclepid'(Fedon. USA). Nietzsche nos diz que: "esta ultima palavra deveria ser ouvida assim: 6 Criton, a vida e uma doenca" (NIETZSCHE, EW. A Gaia Ciencia. aforismo 340) ; nos podemos acrescentar: e a morte e a cura.

Conquistar uma boa morte (eu'tUxouv-ra) nao ea esperanca da bem-aventuranca, mas assemelha-se mais a morte dos herois homericos, 0 tdrtaro brumoso e0 lugar onde encontramos os covardes e os herois, os prosperos e os infelizes, os filosofos e os politicos. 0 tim e0 mesmo. A opcao pelo duro caminho do sophos euma necessidade do homem cinico, a busca da eudaimonia nao e urn investimento para alem do corpo e da vida. Como dissemos, anteriormente, 0 cinico tern uma missao que deve curnprir diligentemente, nao the importaque 0 tim seja previsfvel eo premio pessoal nenhum. 0 desejo de vida etema seria indigno do sophos.

Antfstenes e Platao se aproximam algumas vezes, mas suas motivacoes sao distintas. A semelhanca entre 0 Socrates do Fedon e 0

cinico nao esta no alem da morte e no encontro da alma com 0 bern. Ena preparacao para a morte que ambos se aproximam ; a vida como preparacao para a morte. Socrates diz no Fedon:

Receio, porem, que quando uma pessoa se dedica a filosofia no sentido correto do termo, os demais ignoram que sua unica ocupaciio consiste em preparar-se para morrer e estar morto.(Fedon. 64A)

Esta preparacao para a morte e 0 caminho do sophos. Seus metodos nos sao descritos por Xenofonte em seu Banquete: vida regrada, longe das paixoes e das sensacoes mundanas. Morrer feliz significa ter chegado ao tim da vida tendo atingido a autarquia; tendo vivido so, sem nada a lamentar, por deixar atras de si. 0 sabio nada tern e a nada esta ligado, elivre. As palavras de Diogenes nos dao a medida exata:

Depois que Antistenes me libertou eu nunca mais fui escravo. Antistenes me ensinou ( aver) 0 que e meu, eo

Page 226: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

223

que ndo e meu; bens e propriedades niio sao meus, parentes, familiares, amigos, fama, relaciies sociais, nenhum Lugar me pertence; tudo isto pertence a outros. (CAIZZI, 1966, frag. 118, p. 58)

1.3 0 Corpo e as Sensaedes

Mesmo sendo a morte 0 fim do homem e a vida a preparacao para a morte, a vida cfnica nao pode se dizer feliz. Trata-se de uma vida de paciencia e remincia, recusa da sensacao e qualquer prazer efemero, Ha, na verdade, uma glorificacao da dor, eela que purga e corrlge. 0 prazer e visto com desconfianca, e a sensibilidade eposta em diivida, pois ee1aa raiz de todos os males. 0 tinico prazer que 0 cfnico admite e aquele resultante do esforco, 0 que nasce da superacao ciador. Estobeu nos diz assim: "Epreciso buscar 0 prazer resuLtantedo esforco, e ruio aqueLe que the precede". (CAIZZI, 1966, frag.113, p. 55)

Entretanto, 0 corpo (0 lugar ciasensacao) nao deve ser martirizado. Nao ha no pensamento cfnico 0 corpo cuLpado, apesar de todas as apropriacoes posteriores que os exegetas cristaos farao, ao comentar os cfnicos? . 0 cfnico reconhece as necessidades corporais ; a gula, a luxiiria e os demais vfcios (seculos depois serao chamados pecados capitais) nao pertencem ao corpo, ao contrario, sao imagens da ambicao humana. o corpo precisa comer, beber, de sono e de sexo, nao ha porque negar a satisfacao de suas necessidades.

Podemos dizer que os comentarios dos exegetas cristaos, a respeito de Antfstenes e dos cfnicos, sao direcionados, propositadamente, para torna-los uma antecipacao do cristianismo. Sao Geronimo (PAQUET, 1992; frag 2, p. 54.), por exemplo, enaltece, principalmente, sua pobreza e sofrimento asemelhanca de Cristo. Clemente explica 0 comentario de Antfstenes a respeito de Afrodite, de maneira inteiramente crista:

9 Prindpalmente0;comenIfuio;de Clementee sao GerOnimo, que chegam aoomparar suas palavras as do; proferas. (PAQUEf,1992, pp.5S e sg)

Page 227: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

224

Eu estou de acordo com Antistenes quando ele afirma: "Se eu pudesse por as mdos em Afrodite, eu the encheria de flechas por ter corrompido tantas de nossas virtuosas mocas." Quanto ao amor; ele 0 chama um vicio da natureza: os miserdveis que se assujeitam 0 chamam de doenca divina(...),mesmo levando em conside- raciio 0

Jato de se tratar de um dom de Deus. em vista da necessidade de procriaciio. (PAQUET, 1992, frag.9, p.55)

Este eurn exemplo do uso que 0 cristianismo fara do cfnico. A negacao do hedonismo transfonna-se num problema moral de ordem sexual, com interdicao do sexo, resguardando unicamente a necessidade de procriacao, Clemente e claramente desmentido por Xenofonte (Banquete. IV,34-44) ; no Banquete, Antistenes faz do sexo uma necessidade natural do corpo, que deve ser encarado de forma simples e sem discursos elaborados. As coisas de Afrodite nao fazem referencia a procriacao (coisa que 0 cfnico nao deseja), mas se refere, unicamente, a satisfacao do instinto, assim como 0 beber e 0 comer.

Temos que procurar outra razao para a negacao do amor e do sexo, e nao 0 pecado Ga presente em Clemente) ou a misoginia. Crates, 0

cfnico, foi companheiro de Hiparquia, urna mulher que se deixa levar pela vida filos6fica, urn caso raro na Antiguidade. A negacao das unioes se referiam aimpossibilidade de conjugar a vida cinica com a vidade homem casado e de estado, entre 0 sabio e 0 cidadao, A frase que Clemente comenta diz respeito a sensacao. 0 amor deixa 0 homem preso e impossibilitado de seguir 0 caminho do sophos. A frase de Antistenes e uma blasfemia" , urn desrespeito aos deuses, e sera muito usada pelos cinicos posteriores. Devemos notar a ironia cinica, pois os deuses eram, na Grecia Antiga, urna desculpa corrente; eram responsabilizados pelos exitos e os fracassos. Mais do que pudor, devemos considerar a frase de Antistenes

10 a ImperadorJuliano, a Apostata, criticava severamente as cinicos par suas blasfernias, isto e,a maneira desrespeitosa de tratar os deuses. (PAQUET,1992, pp.355-387)

Page 228: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

225

uma crftica aos valores gregos, ao mesmo tempo que uma exortacao sobre o poder da sensacao e das paixoes. Afrodite fora muitas vezes usada como desculpa" eo que Antfstenes faz eresponsabiliza-la ironicamente, deixando ver que, enquanto culpamos os deuses, esquecemos a verdadeira questao que ea sensacao.

A continencia cfnica (pelo menos a principio, com Antistenes) nao sao proibicoes ou tentacoes a veneer, trata-se de dar ao corpo aquilo que the e necessario, e mais nada. As necessidades aparentes como a mesa farta e requintada, as mais belas e melhores amantes, nao tern no corpo sua origem, ena alma (psique1 que a insaciabilidade tern origem. 0 corpo esimples nos seus desejos e 0 soph6s deve perceber a diferenca; satisfazer e nao brigar com 0 corpo, ou culpa-lo por necessidades que nao sao suas. 0 gozo ou 0 prazer da sensacao deve ser entendido como aquilo que ultrapassa a necessidade, isto econsiderado falta de sabedoria.

Sexto Empirico estabelece a diferenca entre Antfstenes e Epicuro: "Epicuro colocava 0 prazer sensivel como sendo um bem. Antistenes, ao contrario, dizia preferir a loucura ao gozo mau".(PAQUET, 1992, frag.6, p.54)

Deixar-se levar pela sensibilidade desvia 0 cinico de seu proposito, Nao buscar 0 prazer e0 ensinamento de Antfstenes; preferir : "a loucura a sensaciio" (CAIZZI, 1966; frag.108C, p.54). 0 amor ao prazer e a sensacao seria uma especie de loucura sii, a loucura que e aceita pela comunidade, pelos homens e seus semelhantes.

Eda sensacao que nasce 0 sofrimento; Epicuro tambem pensava assim, mas acreditava no prazer como sendo a boa sensacdo, que podia com sua forca diminuir a sensacao ruim, uma especie de equilfbrio precario entre os prazeres. Para Antfstenes a sensacao/sensibilidade eela mesma a causa da dor e do sofrimento humano, origem da ambicao e da busca desenfreada de riqueza e de gloria.

Cicero, falando de Antistenes e de Epicuro, eainda mais radical. Como estoico, recusa determinadamente 0 prazer, fazendo 0 elogio das virtudes socraticas, Cicero faz de Epicuro urn voluptuoso, apegado aos

11 Helena de Troia ea referenda classica,

Page 229: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

226

prazeres terrestres ; dessa forma, falseia tanto 0 epicurismo quanto 0

cinismo. Suas palavras sao:

Preferimos imitar Epicuro?(... ) Ele faz 0 elogio da vida simples: um tal elogio convem bem a um filosofo, com a condiciio que seja um Socrates ou um Antistenes que [ale, e niio aquele que coloca 0 bem ultimo como sendo a volupia. (PAQUET, 1992; frag.l3, p. 55).

De fato, na Antologia de Epicuro, encontramos passagens onde o gozo aparece como 0 oposto da dor, mas isso nao nos permite chamar Epicuro de hedonista, como poderfamos, perfeitamente, aplicar 0 termo a Aristipo de Cirene. Na etica de Epicuro, encontramos 0 seguinte comentario: "A ausencia de perturbaciio e de dor sao prazeres estdveis; por seu turno, 0 gozo e a alegria siio prazeres de movimento... "(LUCRECIO. Epicuro; IV).

Epicuro diz ainda :

Quando dizemos, entiio que 0 prazer ejim, ndo queremos referir-nos aos prazeres dos intemperantes ou aos produzidos pela sensualidade(...), mas ao prazer de nos acharmos livres de sofrimentos do corpo e de perturbacoes da alma.(LUCRECIO. Epicuro; N).

Para 0 cfnico, a questao nao esta em saber 0 que euma boa sensacao (aquela que nos da prazer), ou 0 que ea sensacao ruim (origem da dor), a questao esta centrada na propria sensibilidade.

A sensacao esta em questao. A atencao cfnica dirige-se ao centro do problemado homem no mundo, pois 0 que passa na alma recebe reflexos do corpo e das sensacoes. Nunca havera 0 pensamento puro, nao contaminado pelo corpo e suas sensacoes, 0 que chega aalma deve necessariamente passar pelo corpo. 0 corpo nao eurn peso que a alma carrega consigo, mas sua expressao ; esse e0 sentido da ascese cfnica: representar no corpo 0

que lhe passa na alma, e na alma 0 que lhe passa no corpo.

Page 230: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

227

Assim, Antistenes nunea poderia aeeitar as formas puras que PIatao propoe ; 0 importante esaber que ha urn homem, que eeorpo e sensacao: nao ha porque eseamotear a questao e dirninuir-Ihe a gravidade. Ser homem e viver perfeitamente esse eonflito: nao ansiar pela imortalidade e reeonheeer que 0 pensamento tern urn lugar, pertenee a urn eorpo e a urn homem deterrninado.

Page 231: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

228

Referencias Bibliogr8flcas

CAIZZI. F.D. Antisthenis Fragmenta. Milano: Istituto Editoriale Cisalpino, 1966.

JENOFONTE. Banquete. Traducao, Introducao e Notas por Juan David GarciaBacca. Edi~ao bilingiie.Cidade do Mexico: 1947. (Bibliotheca Scriptorum Graecorum et Romanorum Mexicana).

LAERCIO, Di6genes. ViOOs e Doutrinas dos Filosofos /lustres. Trad. do grego, introducao e notas de Mario da Gama Kury. Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 1988. (Colecao Biblioteca Classica UNB).

LAERTll, D. Vitae Philosophorum de Clarorum Philosophorum Vitis. Dogmatibuse t Apophthegmatibus. C. Gabr. Cobet, parisiis: Ed. Simim-Didot, et Sociis, 1929.

LUCRECIO. Epicuro. Antologia de Textos. In: Os Pensadores. Trad. Agostinho da Silva. Sao Paulo: Editora Abril, 1973, v.S.

PAQUET, Leonce, Les Cyniques Grecs. Fragments et Temoignages. Choix, Traduction, Introduction et Notes par Leonce Paquet. Avant­propos par Marie-Odile Goulet-Caze. Paris: Le Livre de Poche, 1992.

PLATAo. A Republica. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa : Fundacao Calouste Gulbenkian, 1987.

_____. Fhedon. Etab. et Trad. par Leon Robin. Paris : Belles lettres, 1970, t.4, 1p.

____. G6rgias. Trad. Patricio de Azcarate. Buenos Aires:

Page 232: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

Ediciones Anaconda, 1946. AESTRUTURATEMPORALDAS~GENS

Dietmar Kamper

E quantos novos ideais no fundo ainda sao posstveis! - Eis um pequeno ideal: que a cada cinco semanas eufaca urnpasseioporparagens virgens e solitdrias, no momento celestial de umafelicidade sacn1ega. Passar a vida entre coisas delicadas e absurdas, alheio a realidade; meio artista, meio pdssaro e metaftsico; sem dizer sim ou ndo arealidade, a menos que ela seja reconhecida aqui e acold, amaneira de um bom dancarino, com a ponta dos pes; sempre acariciada (gekitzelt) por algumfeliz efluvio solar, estendida e animada ate pela melancolia -pois a melancolia maniem afelicidade. Uma pequena cauda de farsa que ainda se pendura do sagrado: isto, como eevidente, eo ideal de um espirito pesado, muito pesado, de um esptrito de gravidade.

F. Nietzsche

1. Se se conseguisse conquistar as imagens nos vestigios de uma nova reflexao - em vez de continuar a confundi-Ias com 0 referencial da realidade (als Referenten von Realitiit zu missbrauchen) -, talvez existisse uma chance de transformar a TV, de uma paixao apatica e esnipida, numa telepatia clarividente. Os olhos humanos teriam entao, do ponto de vista do observador isolado, a possibilidade de serem nao apenas

Principios Ano 04, n 05, p. 229-236,1997

Page 233: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

230

palco de uma derrota secular da visao, mas poderiam tomar-se novarnente orgaos do conhecimento para a simultaneidade de urn acontecimento global que repele 0 espaco morto e responde ao tempo vital (der lebendigen Zeit iiberantwortet], 0 arnor ao distante (Fernstenliebe]', enquanto base de clarividencia reflexiva, so se poderia fazer presente se certos processos de aprendizagem resultantes da alternancia entre 0 usa dos meios de comunicacao e a experiencia corporal fossem percorridos.

2. As causas para 0 que hoje acontece nos e com os meios de comunicacao podem ser encontradas sem diivida na longa historia de cinco seculos da imaginacao, que projetou urn espectro da visao arrebatadora (hingerrisenen) are 0 tedio da televisao, A visao nlioeabsolutamente definida de modo uniforme, nem tampouco exaustivo, atraves do hard ware da midia. A ja proverbial tirania ocular tern sua ocorrencia (hat ihren Vorlauf) no desejo humano de organizar a relacao com 0 mundo de modo erninentemente visual atraves do dominio do espaco. Da visao aobservacao, passando pela intuicao, existe urn longo percurso de varias etapas. 0 espectador, que em sua visao se exclui do acontecimento e entende a percepcao ha muito tempo como urn ingrediente extrinseco que nada altera, nao eurn caso normal. Ha de fato imaginacao reprodutiva, mas tambem ha sem diivida imaginacao produtiva.

3. Nao e0 entendimento em sua instrumentalidade, nem a razao que compreende (vemehmende] e postula, mas a imaginacao a que sempre que sempre foi e e a faculdade realmente produtiva do Homem em sua tentativa de erigir urn mundo artificial feito por homens no lugar do mundo natural, tido de algum modo enquanto dadiva divina. Por isso atribuira-se a fantasia essa incumbencia, por considerar-se que ela fosse paradisfaca, que nao fosse urn conhecimento sujeito ao pecado original. Promoveu-se entao, em face da proibicao das imagens relativamente moderada ou rigorosa que se fez valer em todas as sociedades religiosamente determinadas, 0 desencadearnento da imaginacao, que apos diversos altos e baixos (Ruckschliige} alcanca hoje 0 seu apice. Neste processo as

1Jogo de palavras implicitoentre Niichstenliebe(arnor ao proximo) e Fernstenliebe (literalmente: arnor ao distante, i.e. ao que roo eproximo).

Page 234: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

231

imagens foram introduzidas como os instrumentos de poder (Machmittel) que deviam inscrever uma dorninacao do sujeito sobre 0 objeto.

4. A fantasia, por conseguinte, esta no poder ha muito tempo. Mas 0 desejo de poder de uma "coisa" pens ante - res cogitans - sobre uma "coisa" extensa - res extensa - naufragou na propria realidade (in und an der Realitiit). Ao instalar-se um olhar controlador, que tinha de vigiar e punir uma "vida despercebida (Blicklos) e incontrolavel", esqueceu-se 0 tempo que isso custou para vingar- . Este tempo agora se faz ausente por toda parte e finalmente se extingue (geht...aus) por completo. Nao se tem absolutamente consciencia (Geistesgegenwart) [dele]. Em sua forma atual, a fantasia serve apenas para transformar tudo que vai ser numa imagem do que [ja] era. 0 futuro vivo e sacrificado ao passado morto. Em vez de corpos mortais que fazem parte de uma vida outrora inimaginavel e imprevisfvel, logo ha somente imagens eternas que caem sob a pressao do arquivo (Archivdruck) e sobrecarregam a capacidade de armazenamento. Assim, 0 sacriffcio do tempo obriga a educar um rmaginario social que tem de conservar todo 0 entulho da hist6ria humana "para todo 0 sempre".

5. A transformacao dos corpos em imagens de corpos teve lugar numa serie de graus de abstracao. Abstracao significa aqui "subtrair 0

olhar a" (Absehen von). 0 poder do olhar manifesta-se naquilo que ndo evis to, que edeixado amargem como vftima da primeira distincao de uma visao focalizadora. Os corpos que nos circundam foram inicialmente distanciados e estilizados em retratos, estatuas e corpos imaginarios (Bildkorpem); depois fotografados em planos e feitos imagens de corpos [Kiirperbildern}; e finalmente projetados sobre suportes de imagens de materiais diferentes, da tela de linho ada TV, ainda que a tendencia a imaterialidade fosse inevitavel. Da circundancia, passando pela oposicao ao objeto e ao fantasma, do que nos circunda (Circumjekt) passando do objeto ao projeto e ao projetil nao parece haver detenca (Halten). Pois 0

fantasma-projetil comporta-se no fim como um zumbi (Wiedergiinger), como um agressivo espfrito que retorna de ultratumba (Revenant).

2 No original: dorninar.

Page 235: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

232

6. Esta revolta dos sinais, esta resposta do objeto comeca em uma perversao rara: as imagens tambem podem encobrir 0 que elas mostram. Imagens do mundo colocam-se frente (vorschieben) ao mesmo de tal modo que nada mais resta dele. As imagens das coisas fazem desaparecer as coisas, de modo que aqui e acola ocorrem a~oes de salvamento. As imagens dos homens recobrem os homens como annaduras e lhes retiram sua escolha, de tal modo que ainda precisam se tomar cavalheiros muitos seculos depois do feudalismo. Precisamente 0

exagero da imaterializacao do mundo e do Homem faz com que as imagens se tomem [suas] adversarias, Elas contrariam 0 jogo do poder. Fazem crescer 0 que se passa por alto e respondem aestrategia da transparencia forcada com novas sombras.

7. A tela brinda protecao diante da realidade, mas tambem protege o imaginario enquanto forma de transite (Verkehrsform). Cada vez mais forma-se a partir dafurn meio orbital que funciona como uma prisao, Os homens nao estao mais tao enredados em hist6rias como presos a imagens de gestos e situacoes. 0 medo depositado por tras da tela (Schirm) corresponde ao prazer da regressao no devaneio da imaginacao, Ambos atingem em comum, cada vez mais, uma norma que aparece como uma aspera necessidade. 0 curso inexoravel das coisas e 0 livre transcurso da imaginacao chegaram a uma encruzilhada (sind iiberkreuz geraten). Agora a realidade aparece como queda livre. Mas 0 imaginario tomou­se uma seria conjuntura de Terror que modela sem piedade a expectativa e a experiencia entre os homens. Difundiu-se por toda parte uma cavema de imagens que se transforma em inferno" ,na medida em que obedece ao slogan (Leitspruch): nao existe [nenhum] "AMm" [para alem] dos meios de comunicacao,

8. Com a imagem triunfa ha seculos 0 plano exiguo e panoramico sobre 0 grande espaco ilimitado. Isto esta acoplado a uma ilusao: que 0

espaco exibido sobre 0 plano enquanto miniatura do espaco real inaugura para quem 0 exibe uma posicao de dominio sobre as coisas. A ilusao consiste em que 0 dominio fracassa porque todos os espacos acabam se

3Jogo de palavras intraduzivel entre H6hle(cavema) e H6//e (inferno) - N. do T.

Page 236: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

233

tornando virtuais. Os homens perdem com seus corpos 0 espaco enquanto circundancia e nao conservam nada mais do que 0 campo visual e 0 plano da imagem. 0 sujeito que senta e se ve confrontado a uma tela onde aparece ou desaparece a imagem do mundo conforme a pressao de urn botao" , e a pr6pria metafora de uma perda desmedida. 0 triunfo do plano sobre 0 espaco evidencia de urn modo peculiarmente estrondoso aquele jogo de poder que hoje desemboca num poder aniquilador.

9. Nao apenas 0 ciberespaco carrega esta caracterizacao duplice de ser por urn lado 0 espaco da graca e adisposicao do plano, espaco emjogo para uma vontade de poder, e de promover por outro lado a perda e a destruicao dos espacos naturais (angestammten) aos homens, deixando arras de si 0 espaco belico, que etao inabitavel como a lua. Sobre a tela de Tv, a guerra contra 0 que eencontra urn fun antes de tudo ing16rio. Aquilo que e referido nos meios de comunicacao nao ea guerra - ainda que se possam ver muitas imagens da guerra antes como depois -, mas a referenda mesma. A referenciado mundo (WeltverhiiItnis) sobre as imagens, enquanto instrumentos de poder com os quais 0 sujeito domina 0 objeto, apaga sucessivamente 0

que deve ser dominado. 0 hard ware - arranjo da tela, plano da imagem, ponte da imagem (sobre 0 distanciamento dos olhos) - tern ele proprio a forma da guerra, aniquilacao do que existe, desprezo de todo fenomeno, perda do mundo por meio de urn olhar instalado nurn quadrado queixoso.

10. A imagem ede fato urn consolo para 0 olho. Mesmo 0 mais pavoroso deixa de infundir panico amedida que se adequa a uma imagem. Lembre-se 0 destino da Medusa, 0 de poder sobreviver apenas como a imagem que perrnite esquecer por completo a fonte de vida exibida na imagem, a morte. E no entanto 0 olhar que ve essa irnagem ede antemao catastr6fico. Esta afmado ao declinio do visfvel; sente prazerna destruicao daquilo que ve. E aliado do apocalipse, da revelacao derradeira do mundano (Weltendes). Nessa medida nao ha nenhum olhar "born", nao, em todo caso, sob as condicoes de uma fantasia desencadeada. Por isso a domesticacao do olhar sempre foi anunciada entre homens, no horizonte da linguagem. Olhares tern que ser discutidos. Quem permanece

4 Isto e,de acordo com 0 Interrupter do controle remoto da1V - N.do T.

Page 237: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

234

emudecido perante as imagens entra novemente em panico, no melhor dos casos em urn horror vacui.

11. A tal panico retoma 0 tempo reprimido (verdriingte), de inicio como 0 etemo retorno do mesmo que espelha 0 fracasso da vontade secular de poder: 0 tempo como 0 tedio que atonnenta, que se toma tanto mais poderoso quanto mais rapida ea rotacao da vida. Os homens que assim sentem (spiiren] procuram seu refugio numa resistencia (Gegenwehr) desesperada, na destruicao das imagens destrutivas. Ocorrem cada vez mais rituais de urn image killing5 ; seja ao modo do zapping" , seja na forma de Vfdeo-Arte. Se ora se prefere participar com cuidado no ligar e desligar ou na fragmentacao (Zerstiickelung), encontra­se siibitamente mais uma vez num processo reflexivo cujo sujeito e0

pr6prio fazer-imagens. Descobre-se a forca da imaginacao humana como doadora e tomadora de tempo e se obtem desse modo a chance de refletir sobre 0 [lado] coercitivo-obsessivo da producao e consumo das imagens.

12. Os vestigios da reflexao correspondem aos vestigios do tempo. Alvorecer e crepusculo da ocupacao do espaco via plano de imagem e tela de TV sao eles mesmos constituidos temporalmente. Houve urn drama. A humanidade ilustrada representou Edipo e Edipo em Colono, 0 drama da cegueira voluntaria (Selbstblendung) do feitor ap6s a visao do feito. Considerando isso eque a televisao pode significar uma paixao (passion) na qual se tome possivel uma ilustracao da Ilustracao (Aujkliirung iiber Aujkliirungp . A visao alveja a visao na intersecao de urn cruzamento de olhos. A interface e urn palco de especie peculiar: permite captar "mitologicamente",i.e, brotando dos mitos, a expressao excedentena hist6ria da visao. Os esforcos do Mythos e da Aujkliirung, aferrados cada urn ao outro, podem ser reciprocamente libertados por meio de uma percepcao exata daquilo que ocorre ao perceber. Isto vern antes de mais nada em beneficio da sensibilidade para a estrutura temporal das imagens.

5 Literalmente "matar imagens" (em Ingles no original) - N. do T. 6 Processo de mudar constarnentemente de canal com 0 controle remoto cia 1V

(em Ingles no original) - N. do T. 7 Isto e, uma explicacao cia Ilustracao - N. do T.

Page 238: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

235

13. Eclaro que a reflexao sobre as imagens nso pode continuar a participar no procedimento dorninante da teoria. Pois a teoria ehoje 0

palco do inconsciente precisarnente em funcao da falta de sensibilidade (Gespiirs) para 0 tempo que a possibilita e a perpassa desde sempre. Tarnpouco se trata mais do consenso, que e negociado por inclusao ou exclusao, dos que gozam do mesmo espaco (Raumgenossen). As distancias espaciais dos homens entre si sao irrevogaveis. Por isso toda doacao (Zuwendung) e todo apreco (Adresse) ocorrem como "arnor ao distante". A exigencia de uma telepatia clarividente vale apenas para os contemporaneos, que de resto nao tern consciencia disso (die weiterhin aufGeistesgegenwartaus sind). A requerida simultaneidade da percepcao nao dilui a paixao, mas sua apatia (Dumpfheit). 0 telepatico permanece preso ao patico (pathischen), e possivelmente tambern ao patetico. Mas sempre pode se transformar - junto ao muro do impossfvel - novarnente na clarividencia que prefere 0 olhar franco e toma transparentes para sua hist6ria as imagens mais sombrias.

Versao em portugues e notas de Juan A. Bonaccini.

Page 239: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997
Page 240: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

237

COLABORADORES DESTE NUMERO:

• Antonio Basilio N. T. Menezes, mestre em filosofia, professor do Departamento de Filosofia da UFRN.

• Cinara Nahra, mestre em filosofia, professora do Departamento de Filosofia da UFRN. Principal publicacao: Atraves da Logica (00.Vozes, 1998).

• Claudio Ferreira Costa, doutor em filosofia pela Universidade de Konstanz. Professor do Departamento de Filosofia da UFRN. Principais publicacoes: Filosofia Analitica (ed. Tempo Brasileiro, 1992), A Linguagem Factual (ed. Tempo Brasileiro, 1996).

• Colin B. Grant, doutor em filosofia, professor visitante na faculdade de letras e professor convidado no Instituto de Filosofia da UFRJ.

• Elisabeth Maia da Nobrega, doutora em Sociologia da Educacao (Sorbone); professora do Departamento de Metodologia da Educacao da UFPb.

• Ermlia Maria Mendonca de Morais, mestre em Filosofia pela USP. Professora do Departamento de Filosofia da UFPb.

• Guilhenne Castelo Branco, doutor em filosofia pela UFRJ. Professor de filosofia do IFCS, Rio de Janeiro.

• John A. Fossa, PhD. pela AeM-University. Professor dos Departamento de Matematica da UFRN. Principais publicacoes: Dictionary of Paradox (UPA, 1998), com Glenn W.Erickson, e A Pirtimide Platonica (ed. UFPb 1996), com G. W. Erickson.

• Glenn W. Erickson. Ph.D. pela Vanderbilt University. Professor do Departamento de Filosofia da UFRN. Principais publicacoes: Negative Dialectics and the End ofPhilosophy (Longwood 1990), A Piriimide Platonica, com J. A. Fossa, (Ed. UFRPb, 1996), Dictionary ofParadox (upA, 1998), com J. A. Fossa.

• Juan Adolfo Bonaccini, doutor em Filosofia pela UFRJ, professor do Departamento de Filsofia da UFRN. Principal publicacao: A Dialetica em Kant e Hegel - Ensaio sobre a Relacdo entre 0 Ser e 0 Pensar (EDUFRN, a sair).

Page 241: Revista Princípios, Vol. 04, número 5, 1997

238

• Maria Simone Cabral Marinho, mestranda em filosofia pela UFPb. • Miguel Antonio do Nascimento, doutor em filosofia pela UFRJ, professor

do Departamento de Filosofia da UFPb. • Samir Haddad, doutorando em filosofia pela UFRJ.