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DIRETOR GERALRicardo Feltre

DIRETOR EXECUTIVORicardo Arissa Feltre

DIRETOR EDITORIALSérgio Couto

DIRETOR DE PRODUÇÃOEduardo Arissa Feltre

DIRETOR DE MARKETINGEdaury Cruz 

DIRETOR ADM. FINANCEIRO José Maria de Oliveira

COORDENAÇÃO EDITORIALMaria Lúcia de Arruda Aranha

COORDENAÇÃO DA PREPARAÇÃOLuiz Vicente Vieira Filho

PREPARAÇÃO DO TEXTOMargaret Presser 

EDIÇÃO DE ARTEValdir Oliveira

CAPA E IL USTRAÇÕESD. J. Castanha

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

Eduardo Camargo do Amaral 

DIAGRAMAÇÃORegina Elisabeth Silva

COORDENAÇÃO DE REVISÃOLisabeth Bansi Giatti 

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Silva, Franklin Leopoldo e, 1947–

Descartes 1 Franklin Leopoldo e Silva. –São Paulo : Moderna, 1993. -- (Coleção logos)

Bibliografia.

1 .  Antropologia filosófica 2. Descartes, René,1596-1650 3. Descartes, René, 1596-1650 –

Critica e interpretação I. Título. II. Série.93-2055 CDD-128

Índices para catálogo sistemático:1 . Antropologia filosófica 128

1 Homem : Metafísica : Filosofia 128

ISBN 85-16-00859-2

Todos os direitos reservados

EDITORA MODERNA LTDA.

Rua Afonso Brás, 431

Tel.: 822-5099

CEP 04511-901 - São Paulo - SP - Brasil1994

 Imp res so n o B rasi l 

Sumário

IntroduçãoDualismo, 6; Idealismo, 7; Subjetivismo, 8; Representa-ção, 9

Parte   I. O PENSAMENTO DE DESCARTES

Uma época de conflitos, 12; A história de um espírito, 14;Descartes e a nova ciência, 22; Cronologia, 24

2 0 métodoCrítica da tradição, 25; Da dúvida à evidência, 29; Des-cartes e o ceticismo, 39

3 A c o n s t r u ç ã o d a f i lo s o f i a

Crítica do aristotelismo tomista: física e metafísica, 45; 0alcance da subjetividade, 50; Idéia e realidade, 58; A idéiade Deus e a questão do fundamento do saber, 63

4 E s s ê n c i a e e x i s t ê n c i a

0 mundo como conceito e como realidade percebida, 70; A natureza humana: experiência e conhecimento, 75; Pro-blemas do idealismo, 80

5 O i d e a l d e s a b e d o r i a

Conhecimento e moral, 85; Ciência e técnica, 93; 0 nacio-nalismo: método ou sistema?, 97

6 C o n c l u s ã o : a s d u a s f a c e s d a h e r a n ç a c a r t e s ia n a

 A consciência e o mundo, 101; 0 mundo e a consciência,103

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Parte II. ANTOLOGIA

Sabedoria, 106

Teoria e prática, 106; Método e verdade, 106

Crítica da cultura, 107

Transmissão do saber, 107; A unidade do saber, 108;

Em busca do fundamento das ciências, 109

Método e autonomia da razão, 110

As regras do método,   11 1

A dúvida, 112

Dúvida metódica, 112; Dúvida natural, 113; Dúvida me-tafísica, 114

O Eu pensante, 116

 A primeira certeza, 116; Pensamento: essência do Eu,

117; Prioridade do pensamento (do conhecimento inte-

lectual), 118

Deus e verdade, 120

 A questão do fundamento do saber, 120; Idéias e juí-

zos, 122; Realidade objetiva e idéia do infinito, 125; Daidéia de Deus à realidade de Deus, 126; Deus: funda-

mento de todas as certezas e causa de todas as coi-

sas, 129; Deus e o Eu pensante, 130

A causa do erro e como evitá-lo, 131

Essência e existência, 134

 A certeza da extensão geométrica e das demais essên-cias matemáticas, 134; A essência de Deus implica a

sua existência, 135; Deus como fundamento da verda-de e da ciência, 136

Conhecimento e mundo sensível, 137

Existência das coisas materiais: possibilidade e proba-bilidade, 137; Insuficiência do conhecimento sensível,139; Prova da existência das coisas materiais, 140; A

representação sensível não é totalmente objetiva, 142

A união substancial, 142

Moral provisória, 144

Moral: o bom uso das paixões, 146

Bibliografia

Obras de Descartes traduzidas para o português, 147;Obras de Descartes em tradução espanhola, 147; Prin-

cipais edições francesas das obras de Descartes, 147;Estudos e comentários em português, 148; Estudos e

comentários em espanhol, 148; Estudos e comentáriosclássicos em francês, 148

Sobre o autor, 149

Questões para reflexão, 150

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Introdução

 A importância de Descartes resolver e as alternativas até en-

como filósofo que inaugura o pen- tão apresentadas.sarnento moderno nos coloca an- Podemos ter uma idéia ini-tes de mais nada a questão de sa- cial desse enorme trabalho de re-ber o que nele existe de continui- construção do saber examinando

dade e de ruptura em relação à fi- algumas das noções que são ca-losofia anterior. Nenhuma dessas racterísticas do pensamento carte-

duas posições, tomada isolada- siano e explorando o significadomente, garante a adequada com- original que Descartes lhes atribui.

preensão da filosofia de Descartes. Essas noções, das quais voltare-Isso porque a ruptura com a tradi- mos a falar muitas vezes nos pró-ção não significa que o filósofo a ig- ximos capítulos, são as seguintes:nora, mas sim que ele a critica. Da dualismo, idealismo, subjetivismomesma forma, a continuidade em e representação.

relação à tradição não quer dizer que o filósofo simplesmente repete DUALISMOos seus antecessores, mas sim

que ele retoma os temas tradicio- Costumamos dizer que Des-nais para lhes dar um tratamento cartes é dualista, ou seja, admite a

que julga mais pertinente. existência de duas realidades com-Temos que admitir também pletamente separadas: a alma e o

que as modificações que Descar- corpo ou, na sua terminologia, ates introduziu na filosofia têm um substância pensante e a substân-

alcance bem mais amplo que o cia extensa. Essa divisão radicalde simples correções nas solu- determina todo o processo deções que historicamente foram constituição do saber, pois estabe-apresentadas para os problemas lece o tratamento metódico dasfilosóficos. Descartes opera uma questões da física exclusivamente

inversão radical das perspectivas a partir da extensão, através dametódicas, e o faz a partir de con- aplicação do método matemático.cepções metafísicas completa- Nessa perspectiva entrecruzam-mente diversas das que eram até se, portanto, as questões da inde-

então vigentes. Contudo isso se pendência completa entre o pensa-

faz através de uma profunda re- mento e a extensão (com a defini-flexão acerca da compatibilidade ção metafísica de ambos) e a pos-entre as questões que se devem sibilidade da existência do mecani-

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cismo, isto é, do tratamento da rea- verdadeiro, entendendo-se aqui ol idade física em termos de quanti- sujeito como exclusivamente odade e através da matemática. pensamento. Dizemos então que

Essa separação significa o conhecimento em Descartes seainda algo mais do que a inde- constitui a partir de idéias e quependência recíproca entre corpo e por isso ele é idealista. O termoespírito: significa a separação en- idealismo não significa necessa-

tre sujeito e objeto. Na medida em riamente que a realidade tal co-que o pensamento é estabelecido mo é dada aos sentidos perde de-na sua completa autonomia, o su- finitivamente todo valor e toda

 jeito de conhecimento se constitui consistência, ficando o mundotambém fora da relação imediata dos sentidos relegado para sem-de conhecimento, pois é preciso pre ao nível de pura fantasia. Oque se afirme primeiramente o su- idealismo pode significar que se

 jeito para que então possam apa- assume do ravante uma nova hie-recer para ele objetos, o elenco rarquia entre os sentidos e o inte-daquilo que ele pode saber, a par- lecto, não só do ponto de vistatir  de si mesmo, acerca daquilo dos resultados finais do conheci-que não é ele mesmo. A indepen- mento (e aqui o conhecimento in-

. dência do sujeito, no plano metafí- telectual sempre teve privilégio),

sico, é, pois, solidária do método mas também e principalmente daque se constituirá para a filosofia perspectiva do  ponto d e partida ee que consistirá fundamentalmen- dos princípios. Não se admitete em tomar o sujeito como ponto mais, por exemplo, a sensaçãode partida do conhecimento. como ponto de partida e como

princípio. Já não temos, como naIDEALISMO filosofia anterior, de um lado prin-

cípios lógicos e intelectuais queO que quer dizer  tomar o seriam abstrações vazias e, de

sujeito como ponto de partida do outro, a realidade à qual se apli-conhecimento? Significa não ape- cam esses princípios e que é to-

nas dizer que para haver conhe- mada em si mesma tambémcimento é preciso um sujeito que como um princípio, visto que o co-conheça, coisa que ninguém ja- nhecimento só começaria com asmais duvidou, mas significa prin- coisas ou as imagens das coisas.cipalmente que o sujeito é pólo ir- Sendo o intelecto, de agoraradiador de certeza e que é a par- em diante, o único princípio de co-tir  do que se encontra no sujeito nhecimento, a realidade sensívelque se constitui o conhecimento do mundo material terá que ser de

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alguma forma demonstrada no ní- mente de cada um detenha os cri-

vel do intelecto, da idéia, para que térios que orientarão o conheci-possa vir a possuir algum valor. O mento. Subjetivismo quer dizer mundo material não está irreme- apenas primado da subjetividade,

diavelmente condenado a desapa- precedência do sujeito no proces-

recer, mas a realidade que lhe é so de conhecimento, e essa é, se-

própria não provém, enquanto ver- guramente, a grande modificação

dade, da percepção dos sentidos, introduzida por Descartes na filo-

mas sim da demonstração intelec- sofia. Significa ela que o pensa-tual de que as coisas que perce- mento, metodicamente conduzido,

bemos existem verdadeiramente. encontra primeiramente em si os

 A separação tradicional en- critérios que permitirão estabele-

tre matéria e forma repousava no cer algo como verdadeiro.

pressuposto de que a materialida- O homem não se põe ape-de, ainda que indeterminada, é nas diante das coisas para apro-dada aos sentidos e recebe do in- priar-se abstrativamente dos con-

telecto a forma que a determina. teúdos de conhecimento veicula-

Quando as idéias são concebidas dos na relação sujeito/objeto,

como ponto de partida do conhe- mas assume a tarefa de fundar 

cimento, é evidente que Descar- na subjetividade todo e qualquer 

tes não as pensa apenas enquan- conhecimento. Só poderá tornar-to formas, mas enquanto seres se efetivamente conhecido aquilocompletos, cujo conteúdo, por ser  que puder ter a sua evidência ali-ideal, não lhes diminui em nada a cerçada na subjetividade metodi-

realidade: pelo contrário, torna-a camente conduzida, a qual semais evidente e mais segura, já põe como realidade  primeira e

que não sujeita às flutuações da fundante no plano do conheci-

experiência sensível. A realidade mento. Sendo assim, os conteú-

está sempre primeiramente no dos mentais não são considera-

espírito, isto é, no sujeito, e se dos apenas reflexos das coisas.

apresenta na forma de idéias. Se eles forem conteúdos autênti-

cos, isto é, se passarem pela pro-SUBJETIVISMO va dos critérios metódicos, suarealidade estará assegurada, in-

O sujeito tem uma função dependentemente de serem con-

pelo menos ordenadora do conhe- frontados com algum conteúdo da

cimento. É ele a sede da certeza experiência sensível.

de todos os objetos. Subjetivismo Isso supõe que os critériosnão significa, obviamente, que a de reconhecimento subjetivo da

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verdade sejam esclarecidos ante- denominar em Descartes de pri-riormente. Por isso para Descartes mado da representação. Podemoso conhecimento não é imediata- dizer, em princípio, que represen-mente uma relação a ser estabele- tação é todo e qualquer conteúdocida entre o sujeito e as coisas que presente na mente. Para uma teo-o rodeiam, mas é antes um proble- ria realista do conhecimento,

ma a ser solucionado para que en- como era por exemplo aquela quetão essa relação possa ser bem predominava na época de Descar-

estabelecida. Os critérios de reco- tes, a representação é apenas onhecimento, que são as garantias reflexo de objetos particulares oumetódicas da verdade, são pensa- então a transfiguração abstrata dados na esfera da subjetividade, pri- ordenação do mundo material.meiramente de forma autônoma e Nessa perspectiva, tudo aquiloindependente. Não é por outra ra- que o espírito representa já foi al-zão que a primeira verdade, para- guma vez objeto de percepção,digma de todas as outras, será pois nada poderia estar presenteaquela relativa à própria existência na mente sem que tivesse estadodo sujeito enquanto pensamento. antes nos sentidos. Assim, a ques-O conhecimento não pode ser ime- tão do conhecimento consistiriadiatamente uma relação entre o su- em explicar o trajeto das coisas à

 jeito e o mundo externo porque mente por intermédio da sensibili-este deixou de funcionar como dade e a transformação do parti-princípio de conhecimento. A pri- cular e divisível em essência uni-meira realidade que é dada a um versál e indivisível, presente no in-sujeito pensante não pode ser ou- telecto. Os gêneros intelectuais

tra senão o próprio pensamento. eram reconhecidos como abstra-Essa prioridade é que determina ções que representavam o univer-que Descartes estabeleça um fun- so das coisas para além do quedamentoúnicoparaoconhecimen- era dado de maneira singular.to. Se puder ser estabelecida algu- Para apreender o real efetivo de-ma forma de concordância entre as via-se visar o particular através de

idéias do sujeito e o mundo exte- um gênero universal. Exemplo: arior, esse acordo se constituirá a substância, enquanto tal, é umapartir da hegemonia do sujeito. abstração; real é este ou aquele

indivíduo que reconheço comoREPRESENTAÇÃO substância. Portanto, para repre-

sentar algo como substância seria À hegemonia do suje ito cor- preciso que houvesse um conteú-

responde o que se convencionou do sensível determinado através

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desse conceito. Isso quer dizer das representações, que poderáque, para a filosofia anterior a Des- me levar à existência daquilo quecartes, mais precisamente a filoso- no mundo corresponde às repre-fia aristotélico-tomista, qualquer  sentações.representação que aspire à reali- Esse é um trabalho exaus-dade tem que ser primeiro uma re-  tivo, razão pela qual o mundo ex- presentação sensível,  pois é das terior será a última coisa tomadacoisas para o intelecto que segue como objeto de demonstração

a trajetória do conhecimento. metafísica. É preciso percorrer Em Descartes o que ocorre  primeiro a esfera de todo o co-

é o inverso: tudo que temos primei- nhecimento naquilo que ele tem

ramente são representações das de interno à mente, para depois

quais se trata de atestar a realida- tentar sair da representação para

de. Como não há um fundamento as coisas. Ainda assim, todo ematerial reconhecido como válido, qualquer resultado obtido aqui

uma vez que a experiência sensí- será tributário da análise das

vel é posta entre parênteses, terei idéias, nunca de qualquer recur-

que buscar na própria representa- so à sensação como critério de

ção os critérios que me mostrarão  prova. Por isso dizemos que a fi-

a sua validade. Significa que parto losofia cartesiana parte da repre-das idéias e procuro nelas os índi- sentação enquanto puro conteú-

ces que atestarão que existe na do mental, e não tomada como

realidade algo que lhes correspon- reflexo de um mundo cuja realida-

de. Isso quer dizer que Descartes de não se questionaria.não é um idealista inteiramente fe- Como o objetivo de Des-

chado às coisas exteriores. Pelo cartes é reconstruir o saber a par-contrário, as representações me le- tir  de bases mais sólidas que

vam espontaneamente a crer que aquelas que ele encontra na filo-os seus conteúdos correspondem sofia tradicional, e como esse sa-

a realidades efetivamente existen-  ber deve em princípio abranger 

tes. Só que, como os sentidos játudo, ele não poderá abdicar do

não bastam para garantir o outro conhecimento das coisas. A filo- pólo da correspondência, terei que sofia passa a ser então uma re-

sair da idéia contando apenas com construção do saber enquanto

os recursos que ela própria me pro- marcha pelo caminho da repre-

 porciona. Será uma inspeção de sentação em direção ao reencon-

idéias, um percurso pelo interior  tro da realidade.

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P a r t e

0P E N S A M E N T O

D E

DESCARTES

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Vida e obra

UMA ÉPOCA DE CONFLITOS fronto em que vários outros países

acabaram se envolvendo.

 A primeira metade do sécu- Essa oposição entre gover-lo XVII, época em que viveu Des- no central e províncias não era

cartes, foi marcada por conflitos exclusiva da Alemanha. Também

políticos em toda a Europa. O na França, pela mesma época, o

mais importante foi sem dúvida a rei tentava consolidar seu poder 

Guerra dos Trinta Anos, que de frente à nobreza provincial, que

1618 a 1648 devastou a Alema- opunha forte resistência à preten-

nha e impôs grandes perdas hu- dida centralização. Henrique IV e,

manas e materiais à França, Es- principalmente, Luís XIII, através

panha, Holanda, Dinamarca e de seu poderoso ministro Riche-

Suécia. Entre as causas dessa lieu, consolidarão o poder abso-

longa guerra está a diferença reli-luto a duras penas, num esforço

giosa que então opunha católicos de mais de cinqüenta anos e ten-

e protestantes, e da qual ambas do que enfrentar inclusive revol-

as partes se serviam para consoli- tas armadas.

dar interesses políticos. Entre es- Para fazer frente aos gas-

ses estavam, por exemplo, os que tos ocasionados pela guerra e

opunham os príncipes alemães, pela pretensão absolutista, o go-

que detinham o poder nas várias verno aumentava os impostos,

regiões desse país que ainda não que incidiam principalmente so-

se encontrava completamente uni- bre as classes populares, ocasio-

ficado, e o imperador, que, embo- nando assim novos conflitos, aos

ra usufruindo de um poder central quais se somavam a falta de ali-

formalmente acima dos principa- mentos e as epidemias que asdos, encontrava grande dificulda- condições de vida tornavam fre-

de para impor de fato sua vonta- quentes. Como se vê, o século

de. Assim, o protestantismo do im- XVII não é apenas a época do

perador Fernando de Habsburgo e Rei-Sol, Luís XIV, que ascendeu

o catolicismo de vários príncipes ao poder somente em 1661 e go-

alemães estão na origem do con- vernou sob condições bem dife-

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rentes das de seus antecessores, vinda do exercício de "ofícios"beneficiando-se do grande esfor- como medicina, comércio e fun-go de Richelieu e de Mazarino ções públicas. A classe de Des-para fortalecer o poder real atra- cartes era, portanto, a pequenavés da submissão da nobreza nobreza, que podia usufruir asprovincial e dos Parlamentos. A vantagens do "enobrecimento"identificação entre o rei e o Esta- conservando ao mesmo tempo asdo que se observa no reinado de virtudes de equilíbrio herdadas

Luís XIV foi conseguida progres- dos ancestrais burgueses.sivamente ao longo de meio sé- Essa origem social nos aju-culo de conflitos políticos. da a entender as opções de vida

Numa época em que a an- do filósofo. Vivendo numa época

tiga nobreza sofre as conseqüên- extremamente conturbada, conse-

cias de seu enfraquecimento po- guiu no entanto organizar para silítico e financeiro, a família de uma vida tranqüila inteiramenteDescartes aparece, de um lado, dedicada à filosofia e em coerên-como pertencente à burguesia cia com um projeto formuladoque ascende nesses novos tem- quando ainda era bastante jovem.pos; de outro, como enobrecida Sua condição financeira permitiu-por via dessa mesma riqueza pro- lhe, durante toda a vida, gozar de

inteira liberdade, tendo sido sem-pre o único juiz de todas as suasdecisões. Essa independência eo gozo pleno da individualidadesão os fundamentos materiais daautonomia do espírito de que asua vida foi um grande exemplo.Pôde alimentar sem problemas o

gosto pela solidão e, embora man-tendo-se sempre muito bem-infor-mado acerca de tudo o que ocor-

ria à sua volta, principalmente noplano intelectual, esteve afastadode grupos e das discussões entreseitas filosóficas. É admirável que

Descartes jovem, de CI. Bulloz, obra que tenha conseguido manter esseretrata o filósofo na época em que se estilo de vida, levando-se em con-dedicava aos estudos de matemática eã elaboração do seu método. ta que a sua filosofia é bastante

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radical e de molde a suscitar sur- que Descartes desenvolverá mais presa e inquietação nos contem- tarde como método filosófico:

 porâneos. Não é possível saber  uma maneira segura de estabele-até que ponto o próprio Descar- cer, a partir do modelo matemáti-tes tinha plena consciência des-   co, um   saber  filosófico acerca de

se caráter inovador de seu   pen- todos os assuntos que interes-

sarnento. O certo é que nunca sam ao progresso humano. buscou a notoriedade e a glória Embora de maneira geral

nem procurou impor-se como  sá- seguissem a tradição, os jesuítas bio perante o mundo, bastando- de La Flèche não deixavam delhe sempre a aprovação dos ami- acompanhar o progresso científi-gos que o respeitavam e admira-   co. Foi assim que o jovem Descar-

nam sua genialidade. O caráter  tes, em 1611, teve notícia das des-

discreto que imprimiu à sua vida cobertas feitas por Galileu, possí-faz com que sua história seja prin- veis graças à invenção da luneta,cipalmente a história da evolução que permitiu observar os satélitesdo seu espírito. de Júpiter e as manchas solares.

Tais novidades não chegavam, noA HISTÓRIA DE UM ESPÍRITO entanto, a constituir uma prova

definitiva dos erros inerentes à fi-Desca r t es nasceu a 31 de losofia natural de Aristóteles e,

março de 1596 em  La Haye e aos menos ainda, à sua metafísica.

oito anos foi enviado para estudar  Essas duas partes da filosofia

no Colégio Jesuíta de La Flèche. constituíam um sistema  explicati-

A formação aí recebida constituiu vo do Universo, que era ensinado para Descartes objeto de medita- através de manuais que resumiam

ção durante grande parte de sua a síntese feita por São Tomás devida, tanto para reconhecer os   Aquino entre a filosofia aristotélica

méritos do ensino que lhe foi mi- e a religião cristã. Descartes terá

nistrado quanto para criticar o que sempre em mente que a solidez

nele havia de dogmático, de   in - do saber depende da coesão e docerto e de vazio. Ensinavam-se encadeamento de todas as suas

gramática, retórica, poesia, latim,  partes. Por isso ele dará ênfase,

grego e filosofia, aí incluídas a   ló - no seu trabalho, ao caráter siste-

gica, a matemática, a física, a éti- mático do pensamento.

ca e a metafísica. Essa amplitude Descartes terminou seus

que era então conferida à filoso- estudos regulares em 1616, e a

fia nos ajuda a entender aquilo decisão que tomou por essa épo-

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ca nos indicaque não estavamuito satisfeitocom os resulta-dos de sua edu-cação. Nada ti-nha a opor aosmétodos de en-

sino praticadosno Colégio de La

Flèche, em parti- O Colégio dos Jesuítas em La Flèche, no século XVII. Gravado

cular, que era  por Aveline. Essa instituição exerceu importante influência na

seguramente formação acadêmica de Descartes, tanto pelos méritos de seuensino quanto pelas críticas que o filósofo lhe dirigiu.

uma das melho-res escolas da época. O que o   l i vros e a tradição. São esses,descontentava era o próprio ensi-  pelo contrário, os meios que te-no tal como era em geral minis- mos de dialogar com os melhorestrado no seu tempo e que refletia espíritos que nos antecederam.uma certa concepção do que fos- Mas o saber é algo de que deve-se o saber. A extrema valorização mos participar. Se não somos nósda cultura antiga e um certo dog- a estabelecê-lo, pelo menos de-matismo, que faziam o saber de- vemos procurar ver  como foi es- pender da autoridade  mais que tabelecido o conjunto de verda-do exercício independente da ra-   des que herdamos da tradição.zão, levavam-no a desconfiar de Por isso Descartes resol-

quase tudo o que havia aprendi- veu, por volta de 1618, procurar do ao longo de seus anos de es- um outro tipo de saber, cujos fun-tudos. Quando o saber é adquiri- damentos e forma de aquisiçãodo apenas como um conjunto de  pudessem ser examinados de ma-resultados, sem grande preocu- neira mais imediata. Vai, então,

 pação com o método e com o fun- estudar em si mesmo e no "livrodamento, não podemos estar se- do mundo", ou seja, inteirar-se doguros de que o que nos está sen- que são as coisas e os costumesdo transmitido sejam  verdades, observando-os por si mesmo ao pois o que passa por isso pode longo das oportunidades que amuito bem ser a consolidação de vida oferece. Integra-se ao exérci-erros através dos anos. Não de- to do príncipe Maurício de Nassau,

vemos, bem entendido, ignorar os que combatia os espanhóis, com

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a única intenção de viajar e obser- sunto de sua predileção. Paravar. Com esse mesmo propósito isso muito contribuíram as re- junta-se, no ano seguinte, às tro- lações que por essa época tra- pas do rei da Baviera. Foi nessa vou com o matemático holandêsépoca, precisamente a 10 de no-   Isaac Beeckman, que o estimulouvembro de 1619, que, retido numa a buscar   a resolução de várioscidade da Alemanha pelo rigor do  problemas, entre os quais os queinverno, Descartes, segundo ele aparecem no tratado   Dióptrica,

mesmo nos relata num escrito de em que estuda a refração dosque temos apenas notícia,  Olimpi-  raios luminosos. É de se supor ca, teve a revelação de algo a que também que se ocupasse nessachamou de fundamentos da ciên- época de questões algébricas ecia adm irável, algo que ele mes- do tratamento de tópicos que te-mo só com preenderá no seu intei- variam à constituição da geome-ro significado muitos anos mais tria analítica.tarde. O caráter imaginativo e Entretanto, como nos dirámesmo místico desse episódio mais tarde, o que o fascinava nanos alerta para um aspecto da per- matemática, mais que o cálculosonalidade do filósofo que o racio- com números e figuras, era   o

nalismo de sua obra nos leva mui- método que tais cálculos indica-tas vezes a esquecer: a religiosi- vam. Para quem, como ele, pro-dade e, de maneira mais ampla, a curava no saber a ocasião do pro fun didade d o Eu, d e on de   pro- exercício independente da ra-vém o impulso que o levará a   re- zão, ou seja, a certeza atingidaconstituir toda a ciência a partir do  pelo próp rio racio cínio e não sim -fundo de si mesmo, de sua alma,  plesmente aceita através do ar-na qual está, justamente,  o funda-  gumento de autoridade, a mate-mento dessa ciência admirável. mática devia aparecer como

De 1619 a 1628 Descartes caso exemplar — e mesmo úni-segue o projeto de fazer a expe-   co — de uma verdade que mos-riência do mundo, observando e tra em si o seu próprio funda-refletindo sobre o que vê, na es- mento. É bem verdade que o mé-

 pera nça de t irar daí algu m prov ei- todo pelo qual os geômetras an-to para o aperfeiçoamento da tigos alcançaram as evidênciasciência. Mas, a par das viagens e que todos reconhecem nemda vida mundana, aplica-se  tam- sempre aparece claramente nas

 bém ao estudo da matemática, construções matemáticas. Mas a principalmente da geometria, as- certeza da matemática, seu ca-

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ráter auto-evidente, é prova da numa obra que Descartes escre-validade do método. Estará aqui veu por volta de 1628, mas queaquele fundamento da ciência só foi publicada postumamente,admirável? Se estiver, certamen- as Regras para a direção do es-

te ele não fundamentará apenas   pírito. Sendo a verdade uma só, aa matemática, mas poderá e de- certeza, que é a apropriação daverá ser estendido a outras esfe- verdade pelo espírito, é de umras do saber, que então se  bane- único tipo. Conseqüentemente, o

ficiariam da mesma certeza. método, isto é, as regras pelasQuais são essas outras es- quais o espírito atinge a verdade,feras do saber? Aquelas que, jun- é o mesmo para toda e qualquer tamente com a matemática,   cons- evidência que possa ser alcança-tituíam o sistema tradicional da fi- da. Essa descoberta de Descar-losofia: a física, a moral e a meta- tes marca a atitude teórica quefísica. É natural, portanto, que as inaugurará o pensamento dos preocupações de Descartes se tempos modernos.voltassem também para essas Em 1628 Descartes resol-ciências, principalmente para a fí- ve ir morar na Holanda. Não sãosica, que tomará como objeto no claras as razões que o levaram

tratado  Do mundo e  que, pruden- a tomar essa decisão. Apesar temente, deixará de publicar,  ten- de suas idéias estarem de acor-do em vista a semelhança de do com as de Galileu em muitossuas teses com as de Galileu,  pontos, entre os quais aquelecondenadas pela Igreja. Esses relativo ao movimento da Terra,nove anos de observação do que teria sido o motivo da con-mundo foram também, como se denação do astrônomo italiano,vê, empregados na formulação não há base para supor quede teorias que mais tarde integra- Descartes, permanecendo nariam o sistema; mas foram princi- França, viesse a sofrer qualquer  palmente empregados na   cons- incômodo por parte das autori-trução de um método geral do sa- dades políticas e religiosas. ber, que a matemática ilustra de Cabe ressaltar também que a fi-maneira privilegiada, mas cujo   al - sica e a cosmologia aristotéli-cance já é visto por Descartes na cas, ainda aceitas oficialmente perspectiva da unidade de toda  pela Igreja, já não o eram pelosa ciência. A relação entre a uni- melhores espíritos da época, in-dade do método e a unidade da clusive por aqueles cuja fé nãociência está claramente exposta  poderia ser colocada em ques-

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tão. O mais provável é que Des- ção era acompanhada por umcartes procurasse a solidão e progresso cultural favorecido pelaum certo anonimato que lhe per- tolerância e pelo pluralismo. Du-mitissem prosseguir com tran- rante os primeiros anos de per-qüilidade o seu trabalho. Embo- manência na Holanda, Descartesra ainda não tivesse publicado ocupou-se ainda da matemática,suas idéias fundamentais, elas como mostram o seu tratado de

 já circulavam de maneira relati- ótica   ( Dióptrica) e um estudo de

vamente ampla nos círculos cul- astronomia, os Meteoros, deno-tos, e já se criara, a essa altura, minação que na época era em-alguma expectativa em torno de pregada para designar os corpossua filosofia. Provavelmente es- celestes.sas pessoas do círculo de ami-zades de Descartes o estimulas-sem a expor publicamente suasidéias. Dentre os amigos de

Descartes, a maioria deles liga-dos às ciências, destaca-se opadre Mersenne, a quem esteveligado durante toda a vida e como qual manterá importante cor-respondência.

O certo é que, depois deuma estada no interior da França,Descartes se mudará para a Ho-landa, onde permanecerá até1649. Esse país, que então sechamava Províncias Unidas eque havia pouco conquistara suaindependência da Espanha, des-pontava como uma sociedade flo-

rescente e próspera, para ondeera canalizada grande parte doslucros com o comércio internacio-nal. Embora o protestantismo pre-   Casa de Descartes em Amsterdã.

dominasse, havia um clima de   O filósofo se mudou da França para a

relativa liberdade religiosa e finte-de

Holandarelativa

,onde predom

l i berdade

inava

religiosa

um

e

clima

lectual, e a riqueza da jovem na- intelectual.

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Como já observamos, os surou a filosofia escolástica, queestudos de matemática e de físi- para ele escondia o vazio de con-ca interessavam a Descartes teúdo atrás de uma terminologiaprincipalmente da perspectiva da confusa. Escreveu o Discurso do

aplicação do método. Por isso, o método em francês, o que nãoprimeiro livro em que expõe sis- era comum na época, pois o latimtematicamente suas idéias filo- era considerado o idioma apro-sóficas será o Discurso do méto- priado às obras cultas. Procurou

do, seguido, na mesma publica- também redigir o livro numa tin-ção, de três ensaios científicos: a guagem que fosse acessível

Dióptrica, os Meteoros e a Geo- mesmo àqueles que não estives-metria. O   l ivro foi publicado em sem familiarizados com os assun-1637, na Holanda. tos tratados. Assim, manifestava

 A associação de um texto que o bom senso, em princípio

sobre o método com ensaios cien- igualmente distribuído entre todos

tíficos visava mostrar o resultado os homens, constitui o requisito

do método quando aplicado a três fundamental para a filosofia.áreas do saber, ou seja, que o Há, no entanto, algo demesmo método se adequava a di- mais profundo sob esse culto daferentes objetos. Com isso, Des- simplicidade e da clareza: é acartes pretendia manifestar a uni- crença na autonomia do pensa-versalidade do método e a unida- mento, a idéia de que a razão,de do saber. É por essa razão que bem dirigida, basta para encon-o Discurso do método ocupa-se trar a verdade, sem que precise-também com assuntos de metafí- mos confiar na tradição livresca e

sica, como as provas da existên- na autoridade dos dogmas. O es-

cia do Eu pensante e de Deus. O pírito humano tem em si os meioscaráter sistemático do saber e da de alcançar a verdade, se souber verdade exige que os fundamen- cultivar sua independência e con-tos metafísicos do conhecimento duzir-se com método.apareçam como sustentáculos Os temas metafísicos trata-

dos procedimentos metódicos. dos no Discurso, mesmo de formaDescartes possuía uma resumida, nos indicam que Des-

crença profunda na simplicidade; cartes, por essa época, já estavapara ele, o verdadeiro aparece plenamente na posse das verda-naturalmente como claro e sem des fundamentais nas quais secomplicações. Era essa uma das baseará seu sistema. Por isso nãorazões pelas quais sempre cen- surpreende que, apenas três anos

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depois do Discurso do método, ele Mersenne, o texto circulou entreapresente a metafísica inteiramen- um certo número de pessoas es-te desenvolvida nas Meditações  colhidas, que apresentaram ques-metafísicas, que aparecem em tões, as quais foram respondidas1641. Nesse livro são tratadas as  por Descartes, sendo o conjuntograndes questões metafísicas: a das Objeções e respostas publica-existência da alma, de Deus e do do com as Meditações. Descartesmundo. Trata-se de um livro escri- havia solicitado ainda a aprovaçãoto em latim, em que as análises

da Faculdade de Teologia de Pa-técnicas são bem mais aprofunda-   ris, que não chegou a se pronun-das, embora Descartes conserve ciar antes da publicação. Com issoo estilo conciso que caracteriza a ele pretendia resguardar-se demaioria de suas obras. É interes- uma situação que considerava ex-sante notar que, ao expor suas tremamente incômoda: a polêmi- principais teses metafísicas, a ca e a necessidade de justificar existência da alma e a existência seus escritos perante pessoas quede Deus, Descartes formula tam- nem sempre os entendiam corre- bém os fundamentos da física e a tamente.   O Discurso do método

concepção de vontade, base teó-  já lhe valera algumas experiên-rica da ética. Com isso fica confi- cias desse tipo, inclusive a acusa-gurado o caráter sistemático da fi- ção de ateísmo. Mesmo na Holan-losofia de Descartes bem como a da, país "liberal", tais coisas nãounidade do saber assentada num ocorriam sem conseqüências,único fundamento. O título com- e Descartes teve, mais de uma

 pleto da obra, Meditações de filo- vez, que se defender de acusa-sofia primeira, indica-nos o seu ções perigosas.cunho fundamentacionista, uma Ainda assim encontrou tem-vez que o termo designava tradi-  po para redigir os  Princípios de fi- cionalmente, desde Aristóteles, o   losofia,  publicados em 1644, outratamento das questões relativas  pelo menos as duas primeiras par-aos princípios do pensamento. tes do livro originalmente planeja-

Descartes teve o cuidado do. Por essa época inicia-se entrede publicar as suas  Meditações  Descartes e a princesa Elizabethacompanhadas de objeções for- uma correspondência que temmuladas, a seu pedido, por filóso- a maior importância para a com-fos e teólogos da época, alguns de preensão de certos aspectos da fi-grande evidência, como Hobbes e losofia cartesiana, principalmenteArnaud. Por intermédio do padre os relativos à moral. No Discurso 

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do método Descartes havia formu- horas da manhã. Num país de in-lado uma "moral provisória", pe- verno rigoroso e com estradas co-queno conjunto de regras que lhe  bertas de neve durante grande

 permitissem viver e agir enquanto  parte do ano, Descartes tinha quetrabalhava nas questões metafísi-  percorrer, de madrugada, a distân-

cas e físicas que, sistematicamen- cia entre sua casa e o palácio real.

te, deveriam preceder uma moral  Não levou muito tempo para quedefinitivamente estabelecida. É ficasse gravemente doente, e sua

em torno de assuntos relaciona- desconfiança em relação aos mé-dos com a orientação da conduta dicos o impedia de aceitar o trata-

e com a fundamentação racional mento. Morreu a 11 de fevereiroda moral que se concentram, prin- de 1650, provavelmente vítima de

cipalmente, os temas das cartas  pneumonia. Por essa época, suastrocadas entre Descartes e Eliza- idéias já eram adotadas em mui- beth. Talvez estimulado por essas tas universidades holandesas e,

questões, o filósofo compôs o na França, filósofos do porte de

Tratado das paixões da alma, um Arnaud saudavam o sistema

 publicado em 1649. cartesiano como a expressão da

Quando esse livro saiu, verdade no plano da ciência e daDescartes já não se encontrava metafísica.

mais na Holanda, pois havia acei-tado um convite da rainha Cristinada Suécia para transferir-se paraaquele país. Também aqui não é

fácil supor os motivos que teriamlevado Descartes a tomar tal deci-são, principalmente se considerar-mos que a vida na Corte suecanão teria muitos atrativos para umfilósofo amante da solidão e datranqüilidade e com hábitos a essa

altura da vida já bem consolida-dos, que as excentricidades da.rainha deveriam perturbar. Exem-

Detalhe de A rainha Cristina cercada de

sábios, de Dumesnil. Em 1649, plo do comportamento incomum Descartes aceitou o convite da rainha

da soberana era o horário escolhi- sueca para fazer parte do grupo desábios de sua Corte. Pouco tempo

do para entreter-se com a filoso- depois, Descartes morreu emfia: o alvorecer, por volta de cinco Estocolmo.

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DESCARTES E A NOVA cluía o infinito entre os atributosCIÊNCIA divinos. Mas com isso marcava-

se mais fortemente o caráter fini-O século XVII foi fértil em to das coisas criadas, ou seja, de

descobertas científicas, e algumas todo o universo. Temos que le-delas vieram a alterar radicalmen- var em conta também que a cos-te a concepção que o homem ti- mologia aristotélica, vigente nanha do universo. Pode-se dizer  Idade Média, conservou no âm-que o primeiro golpe decisivo so- bito do pensamento filosófico afrido pela imagem antiga do mun- idéia de finitude para tudo o quedo foi a proposta, feita por Giorda- não fosse Deus. Quando Giorda-no Bruno ainda no século anterior  no Bruno aventou, portanto, a hi-(1584), de um universo infinito e pótese de um universo infinito,sem centro. Isso se chocava dire- isso somente poderia ser com-tamente com as idéias herdadas preendido se fosse eliminada ada Antigüidade, principalmente as diferença entre Deus e o Univer-de Aristóteles. Para os antigos, a so. Essa conseqüência valeu ainfinitude era sinal de imperfeição. Bruno a condenação à morte na

 Algo só podia ser bem conhecido fogueira.e determinado se fosse acabado.  As descobertas científicas,

Por isso os movimentos naturais no entanto, punham cada vezeram concebidos como ciclos, mais em evidência que a concep-cuja repetição assegurava o pro- ção da Terra como centro imóvellongamento indefinido das coisas de um sistema finito não se sus-sem que se precisasse concebê- tentava. No próprio ano em queIas dentro de um universo infinito. Bruno foi queimado em Roma, oO próprio movimento eterno era inglês Gilbert publica a obra

considerado como circular porque, Do magnetismo, na qual afirmanesse movimento, o fim coincide que a Terra gira sobre si mesmacom o começo, de tal maneira que devido à sua própria força mag-ele pode ser eterno sem ser ina- nética. Em 1605 Kepler enuncia a

cabável. Toda concepção do cos- lei do movimento elíptico dos pia-mos, isto é, do universo ordenado, netas em torno do Sol, aperfei-subordinava-se assim a uma pers- çoando assim a teoria de Copér-pectiva finita, a única em que se nico, que data do século anterior.podia ver uma ordem. Em 1610, as observações que faz

É verdade que a concep- Galileu, com a ajuda da luneta,ção judaico-cristã de Deus in- comprovam a teoria de Copérni-

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co e ainda dão margem a uma im- direta sobre Descartes. No que seportante conseqüência de ordem refere ao conhecimento do corpometafísica: o universo não é per- humano, o inglês William Harveyfeito, como o provam as manchas publicou, em 1628, uma descri-

solares e as montanhas da Lua. ção da circulação do sangue, oPerfeição significa imutabilidade; que o fez um precursor da moder-

não sendo perfeito, o universo na fisiologia.

não é imutável. Ora, movimento e  As descobertas, principal-

mudança são coisas que sempre mente no campo da física, obriga-estiveram associadas: eis agora o vam os sábios da época a aban-homem obrigado a encarar o fato donar o sistema aristotélico, ten-

de que a Terra não é o centro do do em vista a evidente discrepân-

universo, mas, ao contrário, ocu- cia entre a cosmologia do filósofopa um pequeno lugar num univer- grego e os fatos que eram trazi-

so cujo centro não se conhece, e dos à luz. O que se vê, então, é

gira como outros tantos astros em uma separação entre o saber filo-torno de uma estrela que lhe for- sáfico e o saber científico, que é

nece a vida. A contestação do muito menos uma progressiva in-

geocentrismo inaugura uma crise dependência das ciências em re-na concepção da posição do lação à filosofia, como muitas ve-

homem no universo, pois o retira zes se afirma, do que a constata-de sua posição central e o torna ção de uma insuficiência sistemá-

um ser relativo, entre muitos tica da filosofia aristotélica e dos

outros. Em 1616 e 1633, Galileu fundamentos que ela propunha. A

sofre duas condenações pela tarefa de Descartes será a de re-

Inquisição e é obrigado a renun- fazer o caráter sistemático do sa-

ciar às suas teses, coisa que fez ber, unindo novamente ciência epublicamente sem, no entanto, filosofia, física e metafísica. E pa-

deixar de afirmá-Ias clandestina- ra pensar essa nova fundamenta-

mente, como o provam escritos ção ele conta com uma concep-

posteriores. ção de Galileu que está implícita

 A esses progressos na físi - na nova física, e que é formuladaca devemos acrescentar os traba- pelo astrônomo na sua obra O en-

Ihos matemáticos de Napier e saiador: a natureza está escritaClavius. Este último foi o organi- em linguagem matemática. Issozador do ensino de matemática significa que contamos com umnos colégios jesuítas, tendo exer- poderoso instrumento de conhe-cido, por essa via, uma influência cimento, plenamente adequado à

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decifração da realidade natural: a 1619 Inicia uma série de viagens,matemática. Essa ciência não se acompanhando os exércitosopõe à física como a quantidade de Maurício de Nassau e

se opõe à qualidade (conforme do duque Maximiliano da Ba-pensavam os aristotélicos), mas a viera.própria natureza é tal que se 1628 Termina a redação das Re-presta naturalmente a um tra- gras para a direção do espíri-tamento matemático. Essa con- to, obra que só será publicada

cepção galilaica se transformará postumamente. Decide viver no ponto central do método de na Holanda.Descartes, cujo aspecto principal 1633 Galileu é condenado pelaconsiste na extensão do modelo Inquisição, o que faz com quede conhecimento matemático a Descartes renuncie à publica-todos os objetos. É por esse ca- ção do Tratado do mundo,

minho que Descartes tentará en- texto que continha idéias se-contrar os novos fundamentos melhantes às de Galileu.para o conhecimento não apenas 1637 Publica o Discurso do mé-

da natureza, mas também de todo.Deus e da alma. 1641 Publica as Meditações me-

tafísicas.CRONOLOGIA 1644 Publica os Princípios de fi-

losofia.1596 Nasce René Descartes em 1649 Publica o Tratado das pai-

La Haye, na província france-  xões da alma. Viaja para asa de Touraine. Suécia a convite da rainha

1606 Entra para o Colégio Jesuí- Cristina.ta de La Flèche, onde perma- 1650 Morre em Estocolmo a 11necerá até 1616. de fevereiro.

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Ométodo

CRÍTICA DA TRADIÇÃO de vista filosófico não cause emtorno de si um significativo abalo

Há duas coisas igualmente do ponto de vista cultural. Quan-notáveis no projeto cartesiano: de do lemos, por exemplo, o início do

um lado, sua ambição e grandio- Discurso do método, não é semsidade e, de outro, a modéstia alguma surpresa que verificamos

que Descartes emprega para for- que, ali, a proclamação do alcan-

mulá-Io. O projeto não é nada ce limitado do projeto cartesiano

menos que a reconstrução do sa- está ao lado da enunciação implí-

ber, com tudo o que isso implica cita daquilo que o filósofo verda-

de crítica e recusa da tradição deiramente almeja e acredita po-

cultural e dos procedimentos filo- der obter: a.verdade absoluta.

sóficos da Escolástica. A modés-

tia está na insistência com queDescartes o coloca como um

caso de desenvolvimento pessoalde reflexão sobre a ciência e a

metafísica que poderia eventual-mente indicar a outros um certo

caminho do filosofar.Certamente há alguma coi-

sa de prudência nessa acentua-

ção do caráter estritamente pes-soal da nova filosofia; Descartes

não deseja que o alcance de umapolêmica mais intensa perturbe opróprio processo de elaboraçãode sua filosofia. Mas não deixa de   Página de rosto da primeira edição do

ser curioso o fato de que o filóso- Discurso do método, lançado em 1637.Observe que o nome do autor nãofo pretenda que um projeto extra- aparece, o que não evita as polemicas

mamente revolucionário do ponto que a obra desencadeia.

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O Discurso do método con- ciente por todos os homens, natém, no seu início, duas afirma- exata medida em que todos sãoções que, se ligadas, nos permi- racionais, não garante por si só atem compreender o projeto carte- identificação da verdade. É neces-siano no âmbito do método. A pri- sário que a razão seja bem con-meira é a frase famosa que abre o duzida, e essa condução se dá por Discurso, e que nos diz que o bom meio de regras que permitem atin-senso é a coisa mais bem partilha- gir a evidência. Por isso, é primei-

da do mundo, pois cada qual pen- ramente a título de uma experiên-sa estar tão bem provido dele que, cia pessoal que Descartes falarámesmo aqueles que se mostram dos frutos do método e de como

difíceis de contentar em outras coi- tais frutos são obtidos indepen-sas, não desejam tê-lo maior do dentemente da erudição ou' de

que já o têm. A segunda afirma- dons particulares de memória e

ção, que se segue ao comentário argúcia. Descartes valoriza a taldessa primeira — no qual o bom ponto o método que atribui a ele asenso é identificado, entre outras capacidade de remediar em gran-coisas, como a capacidade de dis- de parte, senão mesmo substituir,tinguir o verdadeiro do falso —, é talentos pessoais que em princípio

uma retificação do que foi expres- suporíamos essenciais ao estudoso no início. Informa-nos que não da ciência e da filosofia.é suficiente ter o espírito bom, o

principal é aplicá-lo bem. Assim, Alcance da críticadesde as primeiras frases do Dis-  A crítica de Descartes aocurso do método ficamos alerta- ensino tradicional, a partir da ex-dos de que a capacidade de dis- periência pessoal que seus estu-tinguir o verdadeiro do falso, a que dos lhe proporcionaram, estáchamamos bom senso, embora centrada no desestímulo em rela-seja aquilo que os homens pare- ção ao uso da razão e ao exerci-

cem possuir em grau suficiente, cio do bom senso. É esse o senti-necessita contudo estar vinculada do que tem a espécie de resenhaa determinadas condições de apli- que Descartes faz dos estudos acação, para que o espírito exerça que se dedicou na juventude ecom êxito a sua função de desco- que tem o alcance de crítica dabrir o verdadeiro. O bom senso, cultura e dos métodos intelectuaisainda que repartido em grau sufi- herdados da Idade Média. O exa-

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me que Descartes faz da ciência reina na filosofia, na qual não hátal como era ensinada na sua uma só questão que não seja ob-

época tem a virtude de nos aju- feto de discussão e sobre a qual

dar a entender exatamente o que não haja pelo menos duas opi-

significa o uso da razão ou do niões diferentes, apesar de que

bom senso numa perspectiva só possa haver  uma verdade.

desvinculada do que ele entende Isso se torna mais grave se pen-

ser o verdadeiro método. samos a filosofia como funda-

Os pontos mais importan- mento das ciências, já que a pou-tes para ilustrar essa questão são ca firmeza dos fundamentos acar-

os seguintes: reta naturalmente a fragilidade

1. Em primeiro lugar, uma dos resultados alcançados em

apreciação geral relativa a toda tudo aquilo que deles depende.

a seqüência de estudos revela O balanço desses estudos,

que o resultado foi o acúmulo de que pode também ser entendido

dúvidas ao invés da aquisição como um balanço da cultura

do saber. transmitida, revela que a razão,

2. No que concerne parti- mesmo cultivada pelos espíritos

cularmente às matemáticas, Des- mais aptos de todas as épocas,

cartes nota duas coisas: primeiro, não produz resultados satisfató-

a firmeza da evidência que nelas rios quando não é conduzida por 

se encontra e a clareza dos racio- um método previamente concebi-

cínios empregados; segundo, o do. O que se vê, em geral, é um

fato de que uma ciência cujos fun- mero exercício de opinião que,damentos são tão firmes e que é quando muito, desemboca na ve-propriamente o lugar da evidência rossimilhança, isto é, em algonão sirva para nada de mais rele- que, embora tenha a aparênciavante do que o cálculo abstrato e de verdade, não pode ser de-

a aplicação nas artes mecânicas monstrado como tal. A partir daí

(engenharia), ninguém tendo se impõe àquele que busca a ver-pensado ainda na extensão da dade na figura da evidência abso-

certeza da matemática para ou- luta um certo desprezo das letrastros domínios do conhecimento. e das ciências tais como foram

3. Descartes observa tam- cultivadas na tradição, e a procu-bém, finalmente, a desencoraja- ra da verdade através de outrodora diversidade de opiniões que procedimento.

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Unidade da ciência, unidade que investiga a evidência dosdo método diversos conteúdos. Por isso a

Qual seria o procedimento ciência não poderá, na sua estru-para a busca da verdade? Pelo tura básica, progredir, pois oexame do itinerário pessoal do fi- acúmulo de contribuições suces-lósofo, abordado no capítulo an- sivas não altera o perfil sistemá-terior, já sabemos pelo menos tico do saber. E a razão disso éem que direção procurá-Io: na ainda o método: a unidade do

ciência que Descartes acredita método é determinante da unida-encontrar-se nele mesmo ou en- de da ciência. Ora, é duvidosotão "no grande livro do mundo". que gerações diferentes ao Ion-Embora não se possa ainda falar  go de séculos tenham seguido ocom rigor em subjetividade, tal mesmo método, e é isso que fazcomo esta será estabelecida com que a ciência não tenha sidomais tarde pelo próprio Descar- mais que o mero acúmulo de opi-tes, já temos como condição da niões, e não uma construção abusca da verdade a recusa da partir de fundamentos metodica-tradição cultural e de tudo o que mente estabelecidos e seguidosa ela se vincula em termos de de deduções também metodica-

procedimento filosófico. Ora, a mente conduzidas. Descartesreconstrução da ciência a partir  menciona o exemplo das cida-do espírito liberado dos conteú- des, que são mais ordenadasdos culturais aprendidos se faz, quando planejadas por um só ar-em Descartes, de acordo com quiteto do que quando crescemum pressuposto que aparece ao sabor da vontade de muitos.desde muito cedo em seu pensa-  Assim, também a ciência temmento, e que reaparece no Dis- sua verdade relacionada com acurso: a unidade do saber a par- unidade e coesão no âmbito dostir da unidade do intelecto. Essa procedimentos utilizados na suaidéia significa que a ciência é elaboração. E tais procedimen-

una, apesar da diversidade de tos têm, por sua vez, a unidadeseus objetos. Significa também consolidada no espírito que es-que, desde os fundamentos até tabelece os preceitos metódicos.os últimos resultados que deles Por que Descartes vê comopossam derivar, existe uma uni- incompatíveis com a verdade adade que é principalmente pro- variação e a pluralidade na cons-veniente da unidade do espírito trução do saber?

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Em primeiro lugar porque, mo, entretanto, não vale paracomo já vimos, a própria diversi- o domínio privado. É por issodade de opiniões acumuladas ao que Descartes insiste em que o

longo da história do saber se mos- seu projeto só abarca os seustra incompatível com o caráter úni- próprios pensamentos: nesse do-

co que deve possuir a verdade. mínio privado, a tarefa de superar 

Em segundo lugar, a relati- a relatividade das conjunturas a

vidade que as condições e os partir de uma recusa deliberada

costumes imprimem na maneira das várias tendências que for-

de pensar tornam o conhecimen- mam a tradição é algo viável, des-

to dependente dessas conjuntu- de que contemos com o método

ras, caso não estabeleçamos o adequado para empreender amodo de tornar a busca da verda- pesquisa. Nesse domínio, o cos-

de na ciência independente de tume e o exemplo não podem ser 

tais condições. A consolidação aceitos como signos de verdade.

das opiniões torna-as aceitasqualquer que seja o seu valor in- DA DÚVIDA À EVIDÊNCIAtrínseco. A própria formação doindivíduo, sujeita às opiniões e O método

aos preconceitos cristalizados Existe uma relação estrei-pela tradição, faz com que seu ta entre o método de aquisição

entendimento do que é verdadei- da evidência e a dúvida como

ro ou falso venha a depender  condição inicial da reconstruçãomais desses preconceitos do que do saber. Quando a dúvida co-

de um exame do valor do que lhe meça a ser exercida, o espírito jáé transmitido. tem que estar de posse do meto-

 Assim, toda a vida do indi- do que permitirá substituir as opi-víduo é orientada pela cristaliza- niões rejeitadas por verdadesção de opiniões cuja validade não sobre as quais não pairem dúvi-

é questionada. Para Descartes, das. Por isso, antes de exercer 

no tocante ao domínio público sistematicamente a dúvida, é(moral, política, sociedade) mais preciso buscar as condições de

vale se conformar, ainda que pro- elaboração do método. A primei-

visoriamente, ao que está estabe- ra coisa a verificar é se existelecido, tendo em vista a demasia- algo no saber legado pela tradi-

da complexidade da tarefa de mu- ção que possa auxiliar na elabo-dar todas essas coisas. O mes- ração do método, e Descartes se

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volta particularmente para o do- auxilia quando se trata de encon-mínio da matemática e da lógica. trar  novas verdades, uma vez A primeira por ser, como já vi- que devemos partir de conheci-mos, o domínio privilegiado da mentos universais para deduzir evidência, e a segunda por pas- os particulares. De modo que asar, aos olhos da tradição e dos matemática, tal como era vistacontemporâneos de Descartes, até então, e a lógica, de modopor detentora das regras do pen- quase completo, se acham ex-samento correto. cluídas como matrizes do méto-

Observe-se que Descartes do filosófico. No entanto Descar- já tivera oportunidade de reparar, tes as exclui por entender que ocomo vimos, no fato de que a uti- método por ele concebido reúnelização da matemática não ia as vantagens dessas duas ciên-além dos números e figuras, e cias sem conservar nenhum deque sua evidência limitava-se ao seus defeitos.terreno interno das operações Na origem do método esta-aritméticas e geométricas, o que rá uma reflexão sobre o que per-Descartes acreditava de pouca mite que a matemática atinja outilidade em relação à totalidade alto grau de evidência que a dis-do saber. A evidência matemáti- tingue, e isso levará o filósofo aca é aquilo que o espírito humano considerar o que a matemáticapode apreender de mais certo; o tem de fundamental nos seusmétodo consistirá em captar a ra- procedimentos: a ordem e a me-

zão dessa certeza para que se dida. São essas as característi-possa estendê-la a outros cam- cas básicas do pensamento ma-pos do conhecimento. temático, mas não são especffi-

Quanto à lógica, que na cas dele. A razão triunfa na mate-época de Descartes era a doutri- mática porque faz uso, quasena silogística de Aristóteles, com que espontaneamente, dessesos acréscimos feitos na Idade dois requisitos fundamentais deMédia, o filósofo não poupa críti-

todo pensamento. Por isso o mé-cas a essa ciência que ele consi- todo deverá inspirar-se na mate-dera completamente estéril. E mática para buscar nela a cau-isso deriva de que o mecanismo sa da certeza, os requisitos dedo silogismo, adequado, segun- ordem e medida, e, então, aplicá-do ele, para expor conhecimen- la a todos os objetos que podemtos já encontrados, em nada nos ser conhecidos.

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 As quatro regras mente a precipitação, ou seja,O método, tal como Des- não efetuar um juízo até que a li-

cartes o expõe no Discurso, con- gação entre os termos represen-

siste em quatro regras: tados apareça com inteira clare-

1. Clareza e distinção. Só za e total distinção.

devo acolher como verdadeiro o  A segunda regra pressu-que se apresente ao meu espírito põe a anterioridade dos elemen-

de forma tão clara e distinta que tos simples sobre as composi-

eu não tenha como duvidar. ções. Trata-se de uma idéia tradi-

2. Análise. Em presença de cional da filosofia, mas Descartes

dificuldades no conhecimento, confere a ela um teor matemáti-

devo dividi-las em tantas parcelas co, já que a divisão das dificulda-

quantas forem necessárias para des é pensada por ele segundo o

chegar a partes claras e distintas modelo da decomposição de

e, assim, solucionar o problema. equações complexas ou da redu-

3. Ordem. Devo conduzir  ção de múltiplos aos seus multi-

meus pensamentos por ordem, plicadores.

começando pelos mais simples e  A terceira regra é a que

prosseguindo na direção dos permitirá a dedução como forma

mais complexos ou compostos.de ampliar o saber. A importância

Devo estabelecer uma ordem en- da ordem está em que cada ele-

tre as idéias quando elas não mento que entra no sistema deve

se apresentarem naturalmente seu valor  à posição que ocupa

ordenadas. num determinado conjunto. Por 

4. Enumeração. Proceder  isso o encadeamento é essencial

a revisões e enumerações com- para a demonstração da verdade.

pietas, para ter a certeza de que Finalmente, o preceito da

todos os elementos foram consi- enumeração pode ser visto, em

derados. parte, como síntese,  já que per-

 A primeira regra supõe corre em sentido inverso o cami-

duas atitudes daquele que bus- nho feito pela análise, numa recu-ca a verdade. De um lado, deve peração da visão de totalidade do

evitar a prevenção, isto é, não conjunto. Embora todas as regras

formular juízos a partir de pre- possuam igual valor, a primeiraconceitos e prejulgamentos ou se sobressai, tendo em vista que

de opiniões simplesmente rece- é através dela que melhor se nota

bidas; de outro lado, evitar igual- o caráter de visão intelectual que

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a verdade tem para Descartes. mente pelo sujeito. Pois foi por viaUma representação clara e distin- metódica que o filósofo encontrouta é aquela em que a verdade a verdade enquanto evidência, emanifesta-se a um espírito atento o caráter subjetivo que ela agoraa partir de dois requisitos: primei-  possui não decorre de condiçõesramente,   a simplicidade ou o ca- subjetivas no sentido histórico ouráter elementar da representa-  psicológico, e sim da  subjetivida- ção; em segundo lugar,   a separa-    de como lugar e fundamento dação de uma dada representação verdade, como veremos no próxi-das demais que com ela se pode- mo capítulo.riam confundir.

O que Descartes procura é A dúvidaatingir um certo conteúdo de  r e- Dessas características que presentação abstraindo todas as o método impõe ao conhecimentocondições materiais e psicológi- verdadeiro decorre, como conse-cas que poderiam influir no pen- qüência, que tudo aquilo que a ra-samento. A partir daí, é no próprio zão não reconhece como portador método que o sujeito visa a repre- de tais características deve ser co-sentação, mas no nível do puro locado em dúvida. Aquele que pensamento, e não enquanto su-

 busca a verdade na evidência só jeito psico lógico ou psico fisio lógi-  pode aceitar o que aparece comoco. A verdade é algo a ser procu- claro e distinto usando única e ex-rado no próprio sujeito, na ciência clusivamente a razão para deter-que está nele mesmo. Se os   re- minar dessa forma o conhecimen-quisitos metódicos forem cumpri- to . Ora, o exame a que, como vi-dos, a representação não poderá mos, foram subm etidos os conteú-ser colocada em dúvida, e a   cer-  dos culturais transmitidos pela tra-teza do sujeito corresponderá à dição mostrou que tais conheci-evidência, que é uma visão obje- mentos não passaram pelo crivotiva da verdade (vidência). O  mé- racional da clareza e distinção. O

todo proporciona então o encon- mesmo ocorre com as crençastro de uma verdade subjetiva, isto que, direta e indiretamente, foramé, no sujeito. Essa verdade  sub- adquiridas pelos sentidos. É com o

 jetiva é, no entanto, profunda- se tudo aquilo que aparecia comomente diversa da apropriação verdadeiro antes da aplicação dosubjetiva da verdade proposta método não pudesse responder 

 pela tradição e aceita simples-  pela or igem de sua verdade.

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É, portanto, metodicamen- turalmente à dúvida. Para que ate necessário colocar tudo em dú- dúvida possa passar ao plano davida. Mas não serão colocados matemática será necessário queem dúvida apenas os conheci- se generalize não o   erro  propri a-mentos   efetivamente  adquiridos mente dito, como ocorreu com ano passado e no presente; é   pre- esfera do sensível, mas o   fato deciso ir mais longe, no sentido de que, mesmo em matemática, nosinvalidar a própria esfera do co- enganamos algumas vezes. Nonhecimento sensível. Isso signifi-   Discurso do método Descartes seca que as incertezas e as oscila- contenta com essa solução. Ve-ções que se podem constatar  remos que nas Meditações meta-

nas crenças que chegam pela   físicas a dúvida acerca da mate-sensação e pela percepção são mática será justificada de outratomadas como ilustrações de maneira, pois o foco será a exis-

uma possibilidade mais geral: a tência em geral, e não apenas ade que todo e qualquer conheci- matemática. É notório que nãomento gerado nesse plano seja  podemos manter, na esfera dafalso. É a denominada   generali-  matemática, as mesmas razõeszação: é o próprio  gênero do  co- de duvidar que consideramos vá-

nhecimento sensível que fica co-   l i

das para o plano do sensível.locado em dúvida. Isso porque, no que se refere àscoisas materiais, a verdade se

Conhecimento matemático  põe como adequação entre a re- A necessidade metódica  present ação e a própria coi sa. Foi

da dúvida exige que ela vá além a constatação de que tal adequa-do questionamento dos conteú- ção muitas vezes não se dá quedos transmitidos pela tradição. nos levou a considerar que osSegundo Descartes, é preciso sentidos enganam. Na matemáti-que a dúvida atinja também os ca não existe o problema da ade-conhecimentos matemáticos, dos quação, porque essa ciência é

quais entretanto não temos as constituída de entidades inteligí-mesmas razões de duvidar. Pois veis, e não de coisas materiaiso conhecimento matemático foi que são percebidas. Assim, na precisamente aquele que mos- matemática não há como pôr emtrou, no decorrer do exame a que dúvida a adequação entre per-todos foram submetidos, um grau cepção e realidade, pois a   reali- de evidência capaz de resistir  na- dade dos objetos matemáticos

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consiste precisamente em não texto foi escrito para ser um pre-serem percebidos como existên- fácio a ensaios científicos. Pre-cias sensíveis. Será preciso en- tende mostrar um método quecontrar um argumento que funda- em seguida será justificado por 

mente de maneira mais efetiva a resultados que, nos ensaios sub-

possibilidade de duvidar da mate- seqüentes, aparecerão como ob-

mática. tidos graças a ele. Nesse senti-do, o problema geral da realida-

Dúvida e existência de das coisas e das idéias não

 Ao examinar o papel da ocupa o primeiro plano. À ques-dúvida no Discurso do método, tão da existência das coisas enão devemos esquecer que esse das idéias em sua máxima gene-

ralidade chamamos problemaontológico, visto ser a ontologiaa parte da filosofia que trata daexistência dos seres, que podem

ser coisas percebidas ou idéiasmatemáticas, sendo estas as es-sências a que não correspondemnecessariamente coisas existen-

tes no mundo.Nas Meditações metafísi-

cas é precisamente o problemada existência em geral que estáem jogo. Nelas não está sendovisado nenhum problema particu-lar de física ou de matemática,mas sim a existência da coisa emgeral. O problema ontológico as-sume então o primeiro plano. Ora,por isso mesmo o problema da

adequação torna-se mais geral ePágina de rosto com o título completo mais crucial. O que se trata de re-das Meditações, de Descartes. Para solver não é apenas a questão doevitar os problemas que tivera com oscríticos do Discurso do método, acordo de certas representações

Descartes incluiu nas Meditações as de coisas sensíveis com as pró-" Objeções e respostas", nas quais prias coisas, mas a da adequaçãoconstam as observações de seusopositores e as respostas de Descartes. das exigências internas da razão,

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expressas no método, à realida- é objetivo segundo as regras dade externa. O método foi elabora- razão é também o que é objetivodo com base em exigências inter- do ponto de vista universal —nas da razão, visando alcançar  isto é, pura e simplesmente real.uma evidência cujo modelo se Por que tais exigências de pro-acha na atividade mais elevada e va? Porque as regras do métodomais autêntica da razão — a ma- são estabelecidas pela razão outemática, cujas leis são as da pró- pelo entendimento subjetivo, ao

 pria razão. Mas esse método temqual também pertencem as re-uma finalidade óbvia: o conheci- presentações. Mas a verdade é

mento das coisas, e não apenas universal e não apenas subjeti-um inventário de idéias. Não bas- va. Será preciso mostrar, então,ta, nesse sentido, dizer que só que a idéia — a representaçãopodemos aceitar representações no sujeito — possui um valor talclaras e distintas. É preciso en- que a verdade obtida atravéscontrar uma forma de vincular a dela vale para além da esfera daclareza e a distinção das repre- subjetividade. A isso Descartessentações àquilo que existe fora chama valor objetivo da repre-

do entendimento. O mundo de sentação: o conteúdo da idéia

Descartes não é apenas um mun- não tem validade apenas no su-do ideal; o problema da passa-  jeito e para o sujeito, mas é ver-gem da essência (idéia ou repre- dadeiramente objetivo, isto é,sentação) à existência é crucial, universal. Caso contrário, não te-e é exatamente por isso que o ria sentido procurar a verdade naproblema ontológico se põe com ciência que está "em mim mes-intensidade. mo", pois não desejo atingir algo

Pode-se dizer que a ques- semelhante ao que já possuíatão apresenta-se sob dois aspec- antes do método, isto é, verda-tos profundamente ligados: 1) é des dependentes de condições

preciso provar que há correspon- subjetivas entendidas como con-

dência entre representação e  junturas psicológicas. A unidaderealidade com base nas exigên- e a objetividade da verdade —cias da razão; 2) é preciso pro- seu caráter  absoluto — exigemvar também que as exigências que a subjetividade possua umda razão correspondem ao que alcance universal, devendo ser,existe na realidade. É preciso, portanto, um autêntico funda-em suma, demonstrar que o que mento inquestionado.

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 A radicalização da dúvida que a dúvida seja radical, isto é,É o caráter radical do que atinja inteiramente cada uma das

se procura que exige a radicaliza- antigas certezas, e hiperbólica,

ção do próprio processo de bus- ou seja, deve ser levada ao limiteca. Para que haja a passagem da extremo da generalização. Quan-representação subjetiva à exis- to mais intensa for a dúvida,

tência exterior é preciso uma ga- quanto mais ela se estender e serantia de total objetividade. Essa radicalizar, tanto mais firme serágarantia só pode ser dada por  a certeza que a ela resistir. A ne-

uma representação indubitável.   E cessidade dessa firmeza justificao processo posto em prática para as características da dúvida, poisencontrar tal representação será o que se procura não é nada me-a extensão da dúvida a todas as nos que o fundamento da ciência.representações, inclusive as ma-temáticas. A reflexão só encon- Dúvida natural e

trará a evidência absoluta se par- dúvida metafísica

tir da negação absoluta de todas O andamento da Primeiraas certezas. Por isso, não pode Meditação Metafísica inclui a ex-haver nenhuma exceção para a tensão e a intensificação progres-dúvida. Se todo o espaço do co- siva da dúvida, processo quenhecimento for ocupado pela dú- pode ser dividido em duas gran-vida, qualquer certeza que apare- des partes: a dúvida natural e a

ça a partir daí terá sido de algu- dúvida metafísica.

ma forma gerada pela própria dú- Todas as etapas da dúvi-vida, e não será seguramente ne- da natural estão relacionadasnhuma daquelas que foram ante- com a recusa do fundamentoriormente varridas por essa mes- sensível do conhecimento, isto é,ma dúvida. A geração da certeza a não-aceitação de que a ger-a partir da dúvida é que dá à dúvi- cepção sensível possa garantir,da o seu caráter  metódico. Da mesmo em parte, o conhecimen-mesma forma, o aparecimento de to. Uma vez verificado que tudouma certeza como que brotada que sei vem direta ou indireta-da própria dúvida mostrará que a mente pelos sentidos, o exercí-dúvida terá sido  provisória. Mas cio deliberado da dúvida deverápara que a certeza surgida a par- começar pela recusa dessa ori-tir da dúvida corresponda ao que gem de minhas certezas. Comoé exigido pelo método é preciso recuso o fundamento sensível do

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conhecimento, não preciso exa- o caráter pouco claro ou pouco fa-minar as certezas uma a uma, miliar da representação que mepois a derrubada do fundamento leva a colocá-la em dúvida; é ofaz com que caia com ele tudo o seu caráter sensível.que sobre ele tiver sido edifica- Talvez, no entanto, os ele-do. Não me contento, portanto, mentos últimos do sensível nãocom a enumeração dos erros possam da mesma forma ser co-eventuais dos sentidos, aqueles locados em dúvida. Tais elemen-que posso mais ou menos facil- tos são o tempo, o espaço, o nú-mente reconhecer como erros, mero, a relação e outros do mes-mas admitirei que tudo o que se mo gênero, que Descartes deno-relaciona com o conhecimento mina "coisas matemáticas". Em-sensível é falso, estendendo e bora incluídas no conhecimentoradicalizando a dúvida até os geral do mundo sensível, nãoelementos da sensação. Com são propriamente objetos deisso, tornarei objeto de dúvida sensação e percepção, e podemnão apenas as composições de ser considerados à parte, o queelementos sensíveis, precisa- precisamente a matemática fazmente por serem compostos, quando trata tais elementos se-mas estenderei a dúvida a toda

parados das coisas sensíveis.e qualquer representação rela- Ora, a dúvida natural significa acionada com a percepção de coi- existência de razões naturais de

sas exteriores. duvidar, e ela encontra aqui oNisso desempenha papel seu limite.

importante um argumento de que É importante notar que oDescartes lança mão: a impossi- entendimento não pode colocar bilidade de distinguir o sono da em dúvida as representações ma-vigília. Esse argumento me per- temáticas enquanto tais, porquemite colocar em dúvida não ape- elas não fazem parte do funda-nas as representações pouco ní- mento sensíveldo conhecimento.

tidas, longínquas, ou lembradas, Elas se vinculam ao fundamentomas também aquilo que me apa- intelectual. Com efeito, ainda querece mais claramente como fa- número, tempo, relação, etc. se-zendo parte de minha vida pre-  jam representações incluídas nosente e atual, pois no sonho tais conhecimento das coisas sensí-representações não correspon- veis, quando as conheço por essedem à realidade. Não é, portanto, lado conheço precisamente aqui-

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lo que elas não têm de especifi- tem o poder de me enganar ecamente sensível. Que uma coi- que, portanto, me leva a crer na

sa seja uma, ou menor, ou venha verdade das representações ma-antes, ou suceda a uma outra, aí temáticas fazendo com que elasestão características que não são me apareçam como claras e dis-do mesmo gênero de percepções tintas, quando em realidade nãocomo branco, redondo, etc.; se- o são. Se tenho dificuldade emguramente, as primeiras são mais acreditar, ainda que apenas me-claras e mais distintas. Por isso todicamente, que Deus possaelas fazem parte do conhecimen- me enganar, escolho então su-to intelectual. Mas, como o proje- por que há um Gênio Malignoto deliberado da dúvida tem que que detém tal poder e o exerceatingir a matemática, até porque quando penso nos seres mate-a matemática contém os elemen- máticos ou efetuo operações quetos últimos e fundamentais do co- correspondem a essa ciência.nhecimento sensível, devo sub- O que interessa é que emmeter tais elementos à dúvida, qualquer um desses casos o re-ainda que artificialmente. sultado é o mesmo: sou necessa-

E é assim que chegamos riamente iludido quanto às repre-à outra grande divisão da dúvida, sentações matemáticas, uma veza dúvida metafísica.  A dimensão que não posso recusar como ver-

metafísica da dúvida deve atingir dadeiro o que aparece como cia-representações que, em princí- ro e distinto. Através dessa supo-pio, são claras e distintas: pelo sição, que é uma ficção, tenhomenos assim aparecem ao exa-- como estender a dúvida à esferame espontâneo da razão, e é por  da matemática. De outro modoisso que a matemática sempre isso não seria possível, pois afoi o conhecimento que propor- matemática, enquanto atividadecionou mais certeza. Para subs- mais elevada da razão, não podetituir as razões naturais de duvi- de fato ser submetida à dúvida,

dar, que aqui não existem, Des- uma vez que o acordo entre a re-cartes vai supor uma razão de presentação matemática e as es-duvidar — ou seja, a dúvida me- sências matemáticas é como otafísica é artificial. Essa suposi- acordo da razão consigo mesma.ção consiste no argumento do Não se põe aqui, como jáGênio Maligno ou do Deus Enga- vimos, o caso da adequação en-nador. Suponho, pois, que Deus tre representação das coisas ex-

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ternas e essas próprias coisas, ca da onipotência de Deus, que,que tem um caráter naturalmente em princípio e no nível meramen-problemático. Por isso a ficção do te opinativo, não exclui que a ca-Deus Enganador ou do Gênio pacidade de enganar faça parte

Maligno é necessária. Será, tam- do poder divino ou do poder debém, legítima? Se repararmos no um Gênio. Tenho o direito de su-caráter metódico da dúvida, veri- por tais ficções metodológicas daficaremos que a suposição carte- mesma forma que o geômetrasiana tem a função de uma hipó- tem o direito de supor linhas que

tese de que lançamos mão para de fato não lhe são realmente da-melhor formular um problema vi- das na figura, ou como o astrôno-sando a sua solução. A inspira- mo pode imaginar linhas ondeção matemática do método apa- de fato não existem. A ficção,rece aqui de maneira nítida. As- aqui, tem um propósito: ela é ins-sim como o astrônomo supõe li- trumental e participa do caráter nhas imaginárias para melhor  metódico de uma dúvida que écompreender a trajetória dos as-  provisória.tros, ou como o geômetra prolon- Com a dúvida exercida

ga hipoteticamente linhas de uma nessa extensão e nessa profun-figura para melhor trabalhar com didade, o problema do conheci-ela, assim também o filósofo Ian- mento fica completamente formu-ça mão de uma ficção que lhe lado. Isso permitirá que a soluçãopermite prolongar a dúvida a fim que lhe for dada seja tambémde que o problema do conheci- completa e encontrada no nívelmento venha a ser inteiramente do fundamento do processo deformulado, para que se possa re- conhecer.solvê-lo a partir de uma visão to-tal de todos os seus termos. DESCARTES E O CETICISMO

 Assim, o argumento do

Deus Enganador ou do Gênio Por ter cultivado a dúvida

Maligno tem a mesma legitimida- como meio de se desembaraçar de dos procedimentos hipotéticos das certezas adquiridas sem oda matemática. Não sei se Deus exercício metódico da razão,

pode enganar ou se existe um Descartes é, quanto a esse as-Gênio que o faça, pois ainda não pecto, comparado aos céticos por conheço nada, segundo o méto- muitos estudiosos de sua filoso-do. Mas tenho uma opinião acer- fia. Os céticos tinham a dúvida

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 Montaigne, que, no século XVI, xões comprometendo uma postu-desenvolve, em relação ao co- ra que se pretende puramente ra-nhecimento, à moral, à política e cional, etc. Nesse sentido, Mon-

à própria racionalidade, uma cri- taigne recusa-se a aceitar que as

tica de caráter cético, principal- certezas da tradição são intocá-mente baseada na instabilidade veis e analisa detalhadamente a

e na variabilidade das opiniões flutuação dos sentidos — e con-

humanas. seqüentemente os conhecimen-

A atitude cética de Mon- tos que adquirimos através deles.taigne se expressa num trabalho Existe em Montaigne uma profun-de demolição das certezas em da consciência da interpenetra-quase todos os seus aspectos. ção entre intelecto e sensibilida-

 Num conjunto de textos delibera- de, razão e paixões, que faz dodamente não-sistemático, são homem uma criatura mista e, a

abordados inúmeros assuntos, da  bem dizer, inexplicável. Daí a difi-

 percepção à religião, passando culdade em aceitar uma objetivi-

 por questões de ciência, moral,   dade total do conhecimento, política e pelas certezas filosófi- como se a faculdade racional secas herdadas da tradição. São os  pudesse exercer de forma com-

 Ensaios, dos quais se pode dizer   pletamente independente dos ou-que a característica mais marcan- tros aspectos que constituem ate é antes o exercício da dúvida realidade humana.que a enumeração das certezas. Há, no entanto, um aspec-Visam questionar a posição do to para o qual tudo parece se di-

homem como consciência una, rigir, ou do qual tudo deriva — esistemática, dotada do privilégio é o ponto em que se torna inte-das certezas científicas, enfim, de ressante uma comparação entre

tudo aquilo que tradicionalmente Descartes e Montaigne. É o Euestava ligado ao exercício da ra- que constata a relatividade, é a

cionalidade nos vários planos da consciência que passeia pelas

teoria e da vida. Montaigne utiliza diferentes formas da existência para isso o procedimento cético do homem. Mas a consciência

de mostrar a relatividade dos pro- não encontra repouso em nenhu-dutos da razão, a impossibilidade ma delas, seja do ponto de vistade certeza definitiva em vários da certeza científica, seja dacampos, notadamente a filosofia,  perspectiva dos princípios filosó-a interferência constante das pai- ficos, seja ainda no plano das re-

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gras morais. Em tudo a aspira- se vê atingida por essa relativida-ção de universalidade se choca de. O Eu, portanto, tem o privilé-com a variabilidade dos costu- gio da reflexão, mas não tem a fir-

mes, das opiniões e das crenças. meza do fundamento.Portanto, não há como buscar a

certeza em qualquer das afirma- Em busca da certeza

ções humanas. Quanto mais Descartes busca a consis-

dogmática a crença, tanto mais tência do fundamento. No iníciose constata nela a força da tradi- da Primeira Meditação Metafísica

ção, dos preconceitos e das con- ele declara estar, como Arquime-dições históricas que relativizam des, à procura de um ponto fixo

o conhecimento. que lhe permita levantar o mun-

Resta então à subjetivida- do. A dúvida é a procura desse

de uma espécie de estado nôma-  ponto fixo. Existe um projeto an-

de: percorrer todas as certezas terior ao exercício da dúvida, queestabelecidas pelo homem mas é o projeto de reconstrução do

sem estabelecer-se, por sua vez, saber; a dúvida está a serviço

em nenhuma delas. Não há um desse projeto, e o seu sentido de- ponto de apoio, não há um lugar  riva da finalidade que ela deve

de partida nem um objetivo a que cumprir.

se chegar. Esse percurso inces- Descartes se distingue dossante caracteriza a supremacia céticos acadêmicos na medida

da dúvida sobre a certeza. Isso em que não julga que a certeza

significa que o Eu que constata a seja impossível de atingir. Para

variação é muito mais um foco ir- ele, a matemática é a prova de

radiador de dúvida do que de cer- que a razão humana é compatí-

teza. Embora o Eu tenha o privi- vel com a verdade. O projeto de

légio de refletir sobre toda essa reconstrução do saber só tem

variação, nem por isso ele se co- sentido a partir da convicção de

nhece melhor do que conhece as que o intelecto humano é capaz

outras coisas. Nem mesmo o Eu de atingir a verdade. Por isso, aé um ponto fixo, pois não apre- dúvida não tem sentido por sisenta aquela unidade que a no- mesma; não se trata de cultivar ação tradicional de verdade re- indiferença a partir da impossibili-

quer. Assim, apesar de ser a re- dade de distinguir o verdadeiro doflexão subjetiva a apontar a relati- falso. O sentido da dúvida derivavidade das certezas, ela mesma de algo que a ultrapassa e até

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mesmo, sob muitos aspectos, lhe mos, Descartes não se contenta

é contrário: o método enquanto em abalar as certezas sensíveis:

caminho que leva à verdade. ele invalida o fundamento sensí-Descartes, no entanto, vel do conhecimento, a certeza

não cultiva a dúvida apenas das certezas materiais. O quecomo forma de percorrer as cer- resta após a dúvida cartesianatezas infundadas e constatar a não é somente a desconfiançarelatividade daquilo que os ho- em relação às verdades adquiri-

mens têm admitido como verda- das; é o vazio que se segue àde. A dúvida é um percurso com destruição sistemática de todas

direção e objetivo, que consiste as certezas por via da recusa dosprecisamente no ponto de che- procedimentos pelos quais essasgada como ponto fixo, pois se o certezas foram adquiridas.ponto de chegada da dúvida for  Por isso a dúvida de Des-um ponto fixo, ele será o ponto cartes, embora metódica e provi-de partida do conhecimento. sória, não é fingida. É preciso des-

O caráter metódico e provi- crer radicalmente do conhecimen-

sório da dúvida cartesiana faz to adquirido sem método paracom que, por mais paradoxal que aceitar inteiramente o novo  pro-

possa parecer, ela tenha que ser  cesso metódico de construção damais radical do que a dúvida de ciência. É essa profunda autentici-Montaigne. Pois não se trata ape- dade da dúvida que dará absoluta

nas de abalar as certezas; trata- segurança quanto ao caráter ina-se de destruí-las para recomeçar  balável da certeza, principalmente

inteiramente. Por isso, como vi- da primeira certeza.

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A construção dafilosofia

CRÍTICA DO ARISTOTELISMO bre a refutação, ao menos implí-

TOMISTA: FÍSICA E cita, de certos conceitos-chave

METAFÍSICA da tradição aristotélico-tomista,ou seja, da síntese elaborada

O sentido da crítica principalmente por São TomásNa origem do projeto carte- de Aquino, no século XIII, entre

siano e também como sua força a filosofia de Aristóteles e a dou-geradora podemos colocar um trina cristã, e que permaneciatrabalho crítico, entendendo por  ainda muito viva na época deisso uma revisão do saber tradi- Descartes. O exame da ref uta-

cional. Descartes realiza esse tra- ção cartesiana da filosofia aristo-

balho através da dúvida metódica télico-tomista, que é na verdadea que já nos referimos. Não se mais uma substituição de concei-

pode situar o projeto cartesiano tos tradicionais pelas idéias do

dentro da história do pensamento próprio Descartes, pode nos aju-sem esclarecer primeiramente o dar a entender as modificações

significado desse ato de suspen- profundas que Descartes intro-são de juízo sobre o valor de ver- duz nos fundamentos da ciência.

dade de todos os conhecimentos Entre os conceitos cuja re-herdados da tradição. Já sabe- futação se pode seguir desde os

mos que Descartes não julga ne- primeiros escritos de Descartes

cessário, para levar a cabo essa está o de forma su bstancial, um

suspensão, examinar efetivamen- dos alicerces da filosofia da natu-

te todos os conhecimentos até reza tomista.então aceitos como verdadeiros,

mas simplesmente recusar todos O objeto da crítica

eles a fim de empreender de iní- Em Aristóteles há dois pa-cio a construção do saber. res de noções que desempe-

No entanto, o trabalho filo- nham função estratégica: forma/ 

sófico de Descartes repousa so- matéria e ato/potência.  A maté-

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ria é o indeterminado que se de- Ora, uma vez que cada

termina ao receber uma forma. A substância tem uma forma ou

 potência é a possibilidade, em uma essência que a identifica,si meramente indeterminada, nada seria mais estranho a Aris-

que se realiza concretamente tóteles do que conceber a física pela determinação de um ato. como um conjunto de leis da na-Uma substância é, pois, potência tureza válidas para todos os fenô-atualizada, ou matéria que ga- menos, independentemente da

nha uma determinada forma, tor- essência de cada um. O estudonando-se, então, algo. Toda da natureza é a compreensão da

substância compõe-se de forma essência dos fenômenos, da rea-e matéria, e a forma é precisa-   li dade em seus múltiplos movi-

mente o ato que faz com que a mentos, e não a explicação dassubstância exista de maneira de- leis que regem os conjuntos de

terminada. Ora, esse ato consti- fenômenos independentementetutivo da substância, pelo qual da especificidade de cada um. Aela existe, é a forma substancial  natureza se apresenta primeira-

ou a forma da substância. É essa mente na sua característica maisforma que faz com que alguma marcante e mais intrigante: movi-

coisa exista, primeiramente, mento ou mudança. Estudar acomo substância (essência) à natureza será principalmentequal se acrescentarão os aciden- considerar o movimento ou a mu-

tes, que são as determinações dança. Por esses termos Aristó-não-essenciais da substância. teles compreende não só as vá-

Essa noção desempenha papel rias passagens de um estado ade destaque no conhecimento outro, como também a geraçãodentro da filosofia aristotélico-to- de algo que não existia, o nasci-mista, pois é chegando ao co- mento. Isso é importante na me-nhecimento da forma enquanto dida em que, estando a geração

ato constitutivo da substância de um novo ser compreendida na

que podemos conhecer a essên- categoria de movimento ou mu-cia e, de maneira geral, a estru- dança, possui uma diferença ape-tura essencial do universo. Co- nas de grau em relação a outras

nhecer uma substância é conhe- mudanças e movimentos, como,cer aquilo que a identifica como por exemplo, mudança de quali-ela mesma e não outra: é conhe- dade ou movimento de um lugar cer sua forma substancial.  para outro.

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Mas, para Aristóteles, o analogia com o mecanismo denascimento ou geração aparece reprodução no que diz respeito àcomo a mudança mais relevante sua causa. Mudar ou movimen-

que ocorre no mundo físico, uma tar é engendrar, isto é, fazer nas-espécie de modelo de todas as cer. Ora, como conhecer,  para

mudanças e movimentos. É a par- Aristóteles,   é identificar causas,

tir dela que todas as outras podem a física deve ser entendida comoser concebidas e compreendidas. a explicação do movimento pelas

Assim como o nascimento nos fazsuas causas. E, sendo o movi-

 presenciar o aparecimento de uma mento concebido por analogia

substância que não existia antes, com o engendramento ou o nas-

assim também uma mudança de cimento, ele só poderá ser estu-

qualidade se assemelha ao nasci- dado através da identificação de

mento de uma nova propriedade suas causas ou princípios nos

numa dada substância. Por isso, diversos seres existentes.

o nascimento é a mais elevada e Os seres se dividem ema mais intensa das transforma-   naturais e artificiais.  Natural é

ções, o movimento mais notável todo ser que não foi fabricado

que de alguma maneira recobre e  pelo homem. Sua característica é

explica todos os outros.  possuir em si mesmo o princípioToda mudança, para Aris- de movimento ou de mudança.

tóteles, é a geração de um efeito Os animais e as plantas efetuam

 por uma causa. A conseqüência a partir de si mesmos os movi-

dessa concepção é muito impor- mentos de geração, corrupção,

tante para toda a física. Sendo crescimento, alteração de quali-

esta o estudo do movimento em dades, etc. Mesmo os minerais

termos de causas e efeitos, esse devem ser entendidos dessa ma-

estudo vai se colocar em todos neira: o ferro tende para baixo por 

os casos do ponto de vista de ser pesado, portanto por umauma analogia com o nascimento qualidade que lhe é interna, ine-

ou a geração de um ser, para rente. Ter em si o princípio decompreender todos os movimen- movimento é ter em si o princípio

tos ou mudanças. Costuma-se de vida. Todo processo de mu-

dizer que a física de Aristóteles dança e de movimento é um pro-tem uma característica biológica, cesso de vida, e isso é particular-e aqui está a razão: toda mudan- mente constatado com mais niti-ça deve ser considerada por  dez nos animais superiores e no

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homem, nos quais o princípio   in - Aristóteles e para os aristotélicosterno de mudança e movimento medievais era apenas uma força possui maior variação e comple- viva inerente a tudo o que é na-

xidade. Mas é o mesmo em todos tural. A natureza de uma coisa éos seres naturais. a sua forma. Quando essa coisa

Portanto, as propriedades é uma substância, a natureza éque os seres naturais possuem a forma substancial como seudevem ser concebidas como de-  princípio de vida.

rivadas desse princípio, por ana- Descartes julgava tudologia com a maneira pela qual as isso inaceitável, e ele não foi o

operações do ser vivo derivam  primeiro a ter essa atitude. Nado princípio que o define como verdade, todo o trabalho de Gali-ser vivo, que é o ser natural mais leu, com o método que o acom-

 perfeito. Esse princípio é a alma.  panha e a concepção de nature-Assim, toda a física deve estudar  za em que se baseia, envolve o

os movimentos e as mudanças a abandono da noção de forma partir desse paradigma de prin- substancial, uma vez que despre-cípio de movimento e mudança za a consideração das essênciasque é a alma. Ora, a alma é a  for-  qualitativas no estudo dos fenô-

ma substancial do homem. Em menos naturais. A compreensãocada substância deve, pois, exis- das essências é substituída pela

tir um princípio de movimento e visão das relações matemáticas

de mudança, e ao mesmo tempo que os fenômenos mantêm entrede conservação da substância si.  Nesse sentido, todos são con-no seu ser, que é a forma subs- siderados homogêneos do ponto

tancial de cada uma. Já se vê de vista do conhecimento. Mas aque a concepção de forma subs- crítica de Descartes à noção de

tancial por analogia com a alma forma substancial não é fruto de

faz com que exista um terreno uma reflexão sobre o trabalho decomum entre a física e a psicolo- Galileu. Ela tem um alcance me-

gia. O estudo de qualquer ser  tafísico mais amplo.natural, do homem ao mineral,

deve levar em conta, para consi- O alcance da críticaderar a "natureza" desse ser, ou O primeiro texto em que

o que ele é "substancialmente", aparece explicitamente a críticao aspecto que hoje chamaríamos cartesiana da noção de formade "psicológico", mas que para substancial é o tratado Do mundo,

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obra de juventude. Nele Descartes dessa separação, também a ver-recusa a compreensão do fenô- dadeira ciência da natureza sómeno físico através de noções  pode se constituir a partir de talcomo forma, qualidade, ação e separação.

outras assemelhadas. A análise A analogia aristotélica en-do fenômeno físico deve ser feita tre alma e natureza física é total-apenas em termos de partes ex- mente contrariada pela distinçãotensas e movimentos entre elas. radical entre substância extensa

Veremos mais tarde que, com   e substância pensante,  propostaefeito, extensão   e  movimento se por Descartes. A destruição da

tornarão, juntamente com a  figura, legitimidade dessa analogia é ne-os principais conceitos da física de cessária para que se possa esta-

Descartes. Qualquer considera-  belecer o domínio da física comoção de qualidades supostamente uma ordem de fenômenos total-interiores aos corpos, e que  pro- mente homogêneos e relaciona-

vocariam ações, significaria   intro- dos apenas com a extensão.duzir nos corpos físicos elementos É, no entanto, a relação

estranhos à extensão, provocando que a física possui com a metaf í-aconfusão que impossibilita a dis- sica que melhor explica a rejeição

tinção entre extensão e pensa- da forma substancial como uma

mento, o que é extremamente pre- exigência de coerência da filoso- judicial à física. fia de Descartes. Na época de

Vê-se que a crítica de  Des- Descartes, a sistematicidade do

cartes à física das formas subs- conhecimento exigia uma conti-tanciais contém como elemento nuidade entre a filosofia da natu- principal precisamente a denún- reza e a metafísica. É claro que acia de que conceber a presença física de Galileu, na medida em

de qualidades e ações nos corpos que situava o conhecimento dos

físicos nos impede de concebê- fenômenos na esfera das rela-los como físicos e que, portanto, ções e não na das essências qua-

a clareza que se deseja na ciên- litativas, não podia conceber essacia da natureza deve começar por  continuidade na forma como erauma separação completa entre o  posta pela tradição. O trabalho de físico e o psíquico. Assim como Descartes será, precisamente,as noções confusas que Descar- elaborar uma fundamentaçãotes crê encontrar na física tradi- adequada para a nova física. Issocional são devidas à ausência não significa que Descartes, a

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 partir de uma física já constituída, conhecimento do mundo físico setratará de pensar as noções me- dará apenas em termos geométri-tafísicas apropriadas para funda- cos, pois Descartes ainda não

mentar o conhecimento dos fenô- concebe uma físico-matemáticamenos. Muito simplesmente, o que possa integrar completamen-método matemático e a separa- te a dinâmica do movimenta e dação radical das substâncias se mudança. Isso se deve ao fato decomplementam na formulação do que, sendo seu método geométri-

novo ideal de conhecimento, que co, pode considerar apenas posi-supõe um universo de objetos ções, e não o movimento das coi-abordáveis matematicamente, sas de uma posição para outra.isto é, apenas em termos de figu- Os dois pontos aqui assi-ra, extensão e movimento, sem nalados nos indicam que a recu-que se considere qualquer essên- sa das formas substanciais e acia ou princípio interno não aces- contrapartida positiva dessa recu-sível ao método matemático. sa, que é a afirmação da separa-

Uma pluralidade de objetos con- ção entre substância pensante esiderados a partir de seus princí- substância extensa, podem ser 

 pios internos de vida não pode ter  entendidas como o princípio fun-lugar num universo concebido dador da física moderna.unicamente em termos de ordem A separação das substân-e medida. cias impõe a escolha do ponto ini-

Isso significa que: ciai da construção da filosofia. A1. O procedimento pelo substância pensante, sujeito e

qual a reflexão cartesiana chega fundamento do conhecimento,a estabelecer a doutrina da abso- será esse ponto de partida.luta distinção das substâncias

 praticamente coincide com o pro- O ALCANCE DAcedimento crítico de demolição SUBJETIVIDADEdas formas substanciais.

2. A independência da Da dúvida à certezasubstância extensa e sua absolu- Em Descartes o processota distinção em relação ao pensa- de dúvida é, como já vimos, me-mento configuram a possibilidade tódico porque, a bem dizer, duvi-de uma física que empregue o dar é procurar o fundamento, ummétodo matemático, e ao mesmo "ponto fixo e seguro" no qual setempo acarretam o fato de que o  possa apoiar a reconstrução da

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ciência. Embora Descartes subs- Para precisar o caminhocreva implicitamente a demolição que vai da dúvida à subjetividadedo saber tradicional empreendida enquanto princípio de certeza, pelo ceticismo de Montaigne, a  podemos primeiramente pergun-diferença entre o pensador renas- tar: até onde vai a dúvida? É elacentista e o projeto cartesiano tor- um processo que pode ser esgo-na-se evidente quando compara- tado em si mesmo? É possívelmos o contexto cultural de um e   permanecer  na dúvida? Ora, umade outro. Montaigne se move ain- dúvida cética conseqüente seriada num universo regido pelas aquela que se põe como atitudeconcepções cosmológicas aristo-  permanente. Mas, para Descar-télicas mas já em crise, tendo em tes, tal permanência só poderiavista o movimento científico mo- ser fruto de uma paralisação daderno. Descartes já pensa no am-  própria dúvida, ou do processo de bito de uma ciência praticamente interrogação. Isso porque o apro-triunfante, pois na sua época a fundamento da dúvida leva aoreação contra a cosmologia aris- desvendamento da instância ori-totélica é algo comum entre os ginal da dúvida e, assim, do pró-melhores espíritos. Isso vai reper-  prio pensamento. Quando aquelecutir na concepção cartesiana de que duvida se dá conta de que asubjetividade. Assim como a dú- dúvida é um determinado exercí-vida em Montaigne visa apenas cio do pensamento, percebe aoo abalo das certezas, sem a pro- mesmo tempo que a dúvida atin-

 jeção de uma ciência que resista gìu o seu ponto-limite. Por isso,

ao ataque cético, também a sub- só posso permanecer' na dúvida jetividade nele é, por essa mes- se não a radicalizo suficientemen-ma razão, flutuante e impreci- te: se não a faço voltar-se contrasa. Por satisfazer-se com a dú- si mesma. O limite da dúvida é avida, não necessita dos contor- descoberta do pensamento.nos sólidos e fundamentadores O significado dessa desco-

que receberá em Descartes. Nes-  berta é duplo: de um lado, o exer-te último, a subjetividade vai cum- cicio da dúvida leva à constata- prir o papel daquele ponto fixo ção da existência de um resíduoe seguro de que já falamos, e indubitável suposto no próprio ato por isso deverá revestir-se das de duvidar: o pensamento. Decaracterísticas de princípio e outro lado, a radicalidade da dú-substancialidade. vida faz com que o pensamento

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O t

 

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seja descoberto na sua singulari- O encontro   do pensamento

dade absoluta. Com efeito, o pro- É possível observar que,cesso compreende: embora o pensamento se colo-

a) a pergunta pelo que sei, que como existência indubitáveldiante de todas as incertezas a para si próprio, na verdade eleque chego pela dúvida; não é definido, como não deixa-

b) a consideração do per- ram de observar os contemporâ-curso da dúvida como atos de neos de Descartes. Mas há

pensamento; duas razões que o filósofo evo-c) a exclusão de mim ca para mostrar que a falta de

mesmo enquanto ser sensível na definição no caso não represen-detecção daquele resíduo indubi- ta inconsistência do raciocíniotável e a consideração de que nem compromete a verdade queapenas o pensamento escapa à foi encontrada. No entender dosradicalidade da dúvida. críticos de Descartes, seria pre-

O percurso é, pois, o se- ciso definir os termos  pensa-

guinte: tendo suspendido o juízo mento e existência, contidos naacerca do valor de todas as re- proposição  penso, logo existo.

presentações, não considero Em primeiro lugar, o pensamen-como verdadeira ou real coisa to é o caso privilegiado em quealguma daquilo que penso. Mas, o conhecimento coincide perfei-enquanto assim procedo, eu tamente com o seu objeto. Emmesmo, enquanto pensamento, segundo lugar,  pensamento e

me afirmo como tal no próprio existência fazem parte daquiloexercício da dúvida. Se a própria que constitui para Descartes asdúvida existe, então o pensa- noções comuns, primeiras e in-mento, do qual a dúvida é uma definíveis, evidentes por si.

modalidade, existe, e eu mesmo, Qualquer tentativa de explica-que duvido, logo penso, existo ção dessas noções somente asnecessariamente, ao menos tornaria mais obscuras.

como ser pensante. Disso não O intuitivismo de Descar-posso duvidar, pois é a própria tes dispensa que se leve a análi-dúvida que engendra esta cons- se dos termos mais longe do quetatação:  penso, logo existo. O uma clarificação psicológica damaior dos céticos não pode evidência conceitual, recusando,negá-Ia, sob pena de negar a por exemplo, um procedimentoprópria possibilidade de duvidar. analítico absolutamente redutor 

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à identidade lógica. Para Descar- alma. A representação implicadates, todos sabemos o que quere- no sentimento faz com que sentir mos dizer quando empregamos seja pensar, ou que sentir sejaas palavras existência e pensa-  primeiramente pensar, ou, ainda,mento, sem que para tanto te- que o pensamento seja condiçãonhamos que explicitar tais ter- da representação dita sensível.mos em definições logicamente Do ponto de vista puramente re-

anteriores a eles. presentativo posso, portanto, Ainda assim podemos afir - abstrair o julgamento acerca da

mar que o pensamento nada mais verdade ou falsidade do que éé que o conjunto dos conteúdos veiculado pela imagem: nem por da consciência — e é requisito isso a representação enquanto tal 

essencial o estado consciente deixará de existir na sua verdadedesses conteúdos. Não existe, de representação que não é ou-

portanto, uma distinção entre os tra senão a verdade do pensa-fatos internos, pela qual uns se- mento. Isso não quer dizer que,riam pensamentos e outros não. no caso do sentimento e dft sen-

Toda consciência interna é pen- sação, o corpo e os sentidds nãosarnento; por isso, o pensamento desempenhem papel algum.

recobre toda e qualquer repre- Como estado de consciência, en-sentação. As representações, tretanto, interessa a Descartesportanto, permanecem com o va- ver nesse estado primeiramente alor de conteúdos de consciência, consciência do sentimento, o quee isso será o campo inicial em equivale a pensamento.que se exercerá o método através  A variedade dos estadosde uma inspeção do espírito. de consciência não exclui, por-

o fato de que tudo é consi- tanto, a absoluta unidade do

derado antes de mais nada como pensamento. Não se trata ape-pensamento tem profundas impli- nas de uma unidade formal ligan-cações do ponto de vista da aná- do entre si os diversos estados

Ilse da consciência. Significa, por  de consciência, nem mesmo deexemplo, que não é preciso fazer  uma unidade de gênero ao qualuma distinção em termos de gê- esses estados pertenceriam

vero entre opensamento e o sen- como espécies. O pensamentotimento. Não se deve considerar, não é uma abstração, mas umadesse ponto de vista, a existência existência concreta. A unidadede duas faculdades distintas na do pensamento é imanente a

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cada um dos atos do espírito de gido na representação e pela re Nã h t t lid d d

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cada um dos atos do espírito, de gido na representação e pela re-

forma que cada um deles apenas  presentação .

modifica (é um modo de) uma Isso significa que se fosse

realidade única e mais imediata, tomada qualquer outra função domais presente a si mesma do que suponho que seja o Eu paraque cada um dos próprios atos concluir a partir daí a existência,em particular. o argumento não teria o mesmo

 A unidade do pensamento valor. Não poderíamos dizer, por manifesta plenamente que, ao exemplo: eu respiro, logo existo,

encontrar o pensamento, encon- pois esse argumento depende datro o ser. Podemos dizer que a demonstração de que é verdadepergunta que está implícita no tra- que respiro para que se possa jeto da dúvida é a seguinte: exis- associar o ato de respirar à exis-tirá pelo menos um caso em que tência. Agora, se acho ou sintoo pensamento alcança o ser? A que respiro e concluo então quedescoberta do pensamento é a existo, o argumento é válido, masresposta afirmativa a essa per- precisamente porque se estabe-gunta. O fato de que pensamos lece a partir da representação e,requer e supõe um ser que é o na verdade, se mantém dentropróprio pensamento; por isso o dela. Nesse caso,  penso que res-ser que a reflexão atinge é o ser   piro, logo existo é rigorosamentedo pensamento. Qual o alcance equivalente a penso, logo existo.

daquilo que dessa forma é atingi- E isso vale para todos os argu-do? Note-se que não atingimos mentos semelhantes, o que indi-nem a totalidade do ser, nem ca que pensamento e existência

mesmo a totalidade do nosso ser, do pensamento são indissociá-na medida em que nos descobri- veis. É isso o que significa a des-mos no ato do eu penso. Isso coberta de si mesmo como ser ocorre porque o pensamento sur- pensante.ge como um fato diante do qual a Temos então que o ser 

dúvida tem que se interromper. atingido primeiramente é o pen-Mas é importante constatar que sarnento e só o pensamento:ela continua existindo em relação pode ocorrer que o ser que pensaa tudo o mais: o pensamento é a possua outras propriedades alémexceção da dúvida universal. E do pensar; pode ser corporal ousomente o pensamento pode sê- extenso, por exemplo. No mo-Io, na medida em que o ser é atin- mento, isso não está em questão.

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Não conheço a totalidade do meu Conhecimento da natureza doser, nem todas as propriedades Eu pensanteque eventualmente o compõem. O fato de a anulação doMas sei com certeza que, en- corpo no processo da dúvida nãoquanto pensamento, existe e não impedir que o pensamento sejaé corporal, pois vejo claramente conhecido com toda certeza

não ser o corpo algo necessário mostra que existe uma priorida-para pensar. Se o meu ser con- de do conhecimento da alma so-tém algo mais que o pensamen- bre o do corpo. Isso já possoto, será através do pensamento constatar mesmo antes de saber que o descobrirei. com certeza que existem corpos,

Essa afirmação bastante devido à absoluta independênciaintensa do pensamento como úni- do pensamento. O que está,

ca propriedade por enquanto des- aliás, em perfeito acordo com ocoberta tem uma contrapartida, método, pois é natural, a partir que é a atualidade do pensamen- das regras de conhecimento játo. Penso, logo existo significa estabelecidas, que o espírito, natambém existo enquanto penso. sua simplicidade e autonomia, A vinculação entre pensamento e seja conhecido antes que os ob-existência é total precisamente  jetos caracterizados por compo-

porque o pensamento é a única sição e interdependência, comorealidade acerca da qual posso é o caso dos conteúdos das per-verdadeiramente afirmar que cepções sensíveis. Essa priori-existo. Essa conseqüência da li- dade se reflete não só na possi-gação estreita entre pensamento bilidade de conhecer o espíritoe existência faz com que o eu independentemente do corpo,

 pensonão possa por enquanto se como também na maior facilida-afirmar como um fundamento de (que aqui significa maior  sim-

contínuo no tempo, nem mesmo  plicidade) do conhecimento doser objeto de definição num senti- espírito. Dois movimentos ilus-

do mais rigoroso e constante, o tram essa afirmação:que poderia incluir a constatação   1.  A análise do conheci-de outras propriedades além do mento "natural" que tenho de mimpuro pensamento, como já men- mesmo mostra que esse conhe-cionamos. São esses problemas cimento é insustentável dianteque nos remetem à questão da das razões de duvidar. Nenhumnatureza do ser pensante. atributo corpóreo pode legitima-

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mente fazer parte do conheci ginar é produzir representações pensar que aquilo que se apre i õ é t t

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mente fazer parte do conheci- ginar é produzir representações

mento que busco em relação a ligadas ao domínio do corpóreo,mim mesmo. o conteúdo delas nada pode

2. 0 atributo  pensamento, acrescentar ao conhecimento deno entanto, não pode ser separa- mim mesmo enquanto ser pen-do de mim, sendo por enquanto o sante que não caia sob a interdi-único que me define. Os modos ção das razões de duvidar. Por em que se dá o pensamento, tais isso, imaginar não acresce nadacomo sentimento e imaginação, de positivo ao conhecimento do

podem ser considerados como Eu pensante. Aqui também sóoutros tantos atributos que devem posso considerar a imaginaçãoser acrescentados ao conheci- como um modo de pensamento e,mento de mim mesmo? Não, se nesse sentido, reduzir as repre-considerarmos os aspectos em sentações imaginativas àquelaque esses modos dependem da- homogeneidade fundamental dequilo que anteriormente foi colo- todos os conteúdos mentais.cado em dúvida. Por exemplo, o Os modos em que se dá osentimento: não se pode sentir  pensamento não constituem,sem o corpo, e por isso o senti- pois, faculdades autônomas nemmento, enquanto modo de pensa- acrescentam algo mais àquilomento, não pode ainda ser consi- que já os engloba a todos: o pró-derado como forma específica de prio pensamento. De maneiratomar contato com corpos através que, após o inventário dos mo-de órgãos sensoriais. Mas, naqui- dos, permaneço ainda com o quelo em que o sentimento implica o tinha no início. Mas sei agora quepensar (representação do sentir), existe uma variedade de modosele se reduz a um conteúdo men- de pensamento, correspondentestal que, enquanto pensamento, já às modalidades de representa-foi constatado na sua especifici- ção, sem que isso em nada inter-dade. Sendo assim, a represen- fira na unidade do pensamento. Otação do sentimento se beneficia

pensamento é toda e qualquer re-da certeza do pensamento. presentação na mente, e nãoÉ nessa mesma linha de consideramos ainda a questão do

raciocínio que se situa a exclusão valor objetivo que possam ter taisda imaginação como meio de ad- representações.quirir conhecimento sobre mim Ocorre, no entanto, que te-mesmo. Na medida em que ima- mos a inclinação natural para

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pensar que aquilo que se apre- as variações é uma certa exten-senta à imaginação, devido aos são: na verdade, é o ser extenso

contornos corpóreos próprios da da cera. Mas não é essa ou aque-imagem, deveria estar dotado de la extensão particular, líquida oumaior nitidez e ter precedência sólida, quadrada ou triangular. Éem relação àquilo que não pode a extensão como característicacair sob a imaginação. É por isso essencial, não perceptível em si,

que Descartes tratará de mostrar  mas apenas através de acidentesque, mesmo no caso mais favo- ou de circunstâncias nas quais o

rável a essa concepção, que é o objeto se apresenta. Essa exten-caso do conhecimento dos cor- são não depende dos sentidospos, o pensamento de uma es- nem da imaginação, mas apenassência que não pode aparecer à do pensamento no sentido puro

i maginação tem precedência e de intelecção.

maior clareza intelectual.  Apesar de a extensão ser 

Para isso Descartes realiza sempre, do ponto de vista sensí-

a análise de um hipotético peda- vel, determinada, cada uma des-ço de cera que seria submetido a sas determinações não é essen-

todas as variações da percepção cial. Todas elas derivam da ex-sensível: é duro, mas pode tor- tensão como essência, que en-nar-se mole se aquecido; seu quanto tal é idéia. E essa é a ra-cheiro pode mudar; pode assumir  zão pela qual, embora não  perce-

as mais variadas formas; pode li- ba a mesma cera, sei que é aquefazer-se, etc. Não há proprie- mesma, e o sei pelo  poder de ju l-

dade sensível que não possa mu- gar, isto é, pela representação fin-

dar e, no entanto, dizemos que é telectual da extensão como ger-

a mesma cera o objeto submeti- manente.do a todas as variações.  Assim, conclui-se que o

Mas como posso reconhe- próprio corpo, no que tem de es-cer que é a mesma cera se todas sencial, não é conhecido pelos

as suas características sensíveis sentidos, nem pela imaginação,mudam? Precisamente porque a mas pelo entendimento.

identidade que o objeto mantém Ora, se o espírito atua

não depende dessas variações, prioritariamente no conhecimen-mas de algo que não se apresen- to dos corpos, muito mais o fará

ta em si mesmo à percepção sen- no conhecimento de si, e isso erasível. Pois o que permanece sob o que se tratava de demonstrar.

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O pensamento é condição do co- IDÉIA E REALIDADE sabíamos uma vez que somente Enganador que me impede de

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O pensamento é condição do co IDÉIA E REALIDADEnhecimento dos corpos enquan-

to é condição de qualquer um de O alcance do fundamentoseus modos representativos. No subjetivocaso que apresentamos, a cera Depois que Descartes es-é apenas um exemplo que fun- tabeleceu de forma indubitável aciona como contraprova da con- existência do Eu pensante, o fun-clusão metafísica referente à damento da ciência, representa-prioridade do conhecimento da do por essa certeza, parece ter 

alma. Não é a cera que está em sido atingido de forma definitiva.questão, pois representações  A subjetividade ganha os contor-sensíveis ainda não estão legiti- nos de um incondicionado quemadas. Está em foco a ilustração responderia às exigências de umda precedência da representa- ponto fixo e seguro, verdadeiroção intelectual sobre a represen- alicerce, que se estava procuran-tação sensível. O que se quer  do. Por isso, sob esse ponto demostrar é que o Eu pensante não vista, a continuidade da trajetóriase conhece através de seus mo- cartesiana aparece quase comodos, mas através de sua essên- uma decepção para quem seguiucia, que no caso se confunde os passos da dúvida e aceitou acom a existência. autenticidade absoluta do pensa-

Tudo isso demonstra tam- mento como primeira verdade.bém que existe em Descartes Porque a seqüência da constru-uma hierarquia de representa- ção filosófica cartesiana vai mos-ções que se manifesta de forma trar que se o conjunto formadoprivilegiada quando o objeto do pelo Eu pensante e suas repre-pensamento é o próprio pensa- sentações pode, por um lado, ser mento, mas que vigorará, como considerado um mundo muitoveremos, no tocante a qualquer  bem ordenado, por outro não es-objeto que venha a ser conheci- capa ao risco de ser apenas umado. E isso decorre simplesmente ilusão coerente.de que, sendo o pensamento a Na verdade, a descobertaprimeira forma de encontro entre do Eu pensante não conferiu legi-o conhecimento e o ser, o conhe-   ti midade alguma ao liame repre-cimento de qualquer ser suporá sentação/representado, nem re-sempre que ele é primeiramente solveu o problema do valor objeti-pensado por um sujeito. vo das representações. Disso já

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sabíamos, uma vez que somente Enganador, que me impede deo Eu pensante escapa à dúvida, conferir realidade plena ao quedo ponto de vista da existência. está representado nas idéias cla-No entanto, as características de ras e distintas, principalmente asclareza e distinção inerentes à re- entidades matemáticas, conforme

presentação do eu penso levam- se viu no capítulo anterior. Issome a considerar que as represen- significa que, para conferir reali-

tações claras e distintas da cons- dade — ou validade objetiva —ciência também são verdadeiras. às idéias claras e distintas, devo

E tenho razão de pensar pôr em questão o estratagemaassim, sobretudo quando me que impede de vê-Ias como tais:

dou conta de uma conseqüência a ficção do Deus Enganador. E

importante da descoberta do Eu o fato de que a instauração dopensante, que se explicita quan- fundamento plenamente objeti-do reflito sobre as condiçõesque vo do conhecimento dependao tornam uma representação in- do desmonte de uma ficção me-dubitável. Essa reflexão me faz todológica é um dos aspectosconcluir que todas as coisas que mais interessantes do percursoconcebo muito clara e muito dis- cartesiano.tintamente, assim como concebo  Assim, vemos que   o Eu

a mim mesmo enquanto ser pen- pensante é ponto de apoio e fun-

sante, são sempre verdadeiras. damento da ciência; a cadeia de

Ora, se posso estabelecer tal re- razões que a partir dele se cons-gra geral, o que me impede de trói metodicamente se beneficia

revogar já o grau metafísico da de sua verdade. Mas ele é tam-

dúvida, aquele que focaliza as bém atual: só vale no ato de pen-entidades simples da matemáti- sar-se. Sendo assim, a clareza eca, uma vez que nessas repre- a distinção como regra subjetiva

sentações encontro clareza e geral, quando não beneficiadasdistinção? pelo pensamento atual, deixam

Mas, justamente, o grau de valer como regra geral, uma

metafísico da dúvida consistia em vez que as representações claras

levá-la até essas representações e distintas ficam com sua evidên-claras e distintas, forjando para cia comprometida pela possível

isso as ficções do Deus Engana- existência do Deus Enganador. Ador e do Gênio Maligno. É o grau ciência, dessa forma, não somen-

metafísico da dúvida, ou o Deus te seria apenas subjetiva, como

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careceria de duração e necessi- medida pela afirmação de Descar- nho que assegure a legitimidade

 nho que leva da subjetividade à

                    

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ç p çdade no tempo, pois estaria su- tes: sem o conhecimento de Deus, bordinada à instantaneidade da não poderei jamais estar certo deconsciência do Eu pensante. Se- coisa alguma.ria   subjetiva no sentido restritivo, Recordemos que no proje-o sentido em que   subjetivo se to cartesiano não está presenteopõe a  objetivo. apenas a finalidade do ordena-

mento das representações comPassagem ao fundamento  base na clareza e na distinção in-objetivo trínsecas a cada uma delas. Está

De acordo com o exposto  presente também a extensão daacima, se justifica, na ordem do clareza e distinção ao   valor  obje-

 percurso cartesiano, o apareci-   tivo das representações. Emboramento da questão  filosófica  de o  ponto de partida e o campo daDeus. Assim como a ficção do "inspeção do espírito" sejam asDeus Enganador invalida as repre- representações em si mesmas,sentações claras e distintas, é  pre-  jamais Descartes se contentariaciso verificar se e  como um Deus com uma ordenação exclusiva-não-enganador as validaria para mente subjetiva dos conteúdosalém da esfera lim itada da atuali- mentais. É preciso projetar-se da

dade do Eu pensante. O problema certeza para a evidência, sair que se coloca é, pois, o do alcan- do espírito.ce do fundamento objetivo. Dessa Mas como passar da "ins-forma é que se encaminha a solu-  peção do espírito" a algo que es-ção da necessidade de uma ga- teja fora do espírito? Por exigên-rantia de certeza externa ao Eu cia da dúvida metódica, a razão pensan te, d e âmb ito ma ior do que só pode exercer seus poderes emele, para legitimar a objetividade relação às idéias presentes nodas certezas adquiridas no plano espírito. E, mesmo assim, a razãoda representação. Não caberia, não tem o direito de relacionar então, desde logo, uma revisão do essas idéias com coisas fora docaráter fundamental e fundamen- espírito, a menos que possa ope-tador do Eu pensante, ou uma re- rar essa relação na forma de umlativização da instância da subjeti-  julgamento ele mesmo evidente,vidade como garantia das repre- e não com base em impulsos in-sentações claras e distintas? A im- fundados. É preciso que, pela via

 portância dessa questão pode ser  das idéias, se constitua um cami-

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q g g q jdo juízo de existência, o valor ob- objetividade, que leva o conheci-

 jetivo das representações. Que mento para fora do espírito atra-confira definitivamente valor obje- vés de um trajeto interior ao espí-tivo à própria regra geral subjeti- rito.  Nisso consiste o percursova da clareza e distinção.   idealista, que não é outra coisa

É essa necessidade que senão a via   racionalista de explo-faz confluir para o exame da ração da objetividade.questão filosófica de Deus o exa- E por que se pode dizer 

me dos gêneros de representa- que essa exigência racionalistações e principalmente o exame configura definitivamente o qua-

da origem das idéias. O senso dro em que se desenvolverá acomum se caracteriza por uma demonstração acerca das exis-crença espontânea nas relações tências? Se lembrarmos o trajeto

de semelhança e de causalidade da dúvida metódica, veremos queentre as idéias e as coisas. Des- a interdição do valor objetivo dascartes não pode concordar com representações se fazia numa or-essa crença porque as razões in- dem que ia do valor objetivo das

vocadas pelo senso comum para coisas, objetos de percepção cujaestabelecer dessa forma a origem existência não era questionada,

das idéias não correspondem às  para as partes e os elementosexigências   racionalistas  do  pen- matemáticos dessas coisas, últi-samento filosófico. São razões mo grau da dúvida. A dúvida se-

em que o universo da percepção guia, pois, o caminho que leva dae o mundo natural aparecem com origem externa das idéias para asuma solidez e uma efetividade de  próprias idéias e para aquelasmodo algum autorizadas pelo mais distanciadas dessa possívelmétodo. Descartes distingue rigo- origem — a percepção sensível.rosamente a  inclinação   natural  O restabelecimento do va-( i mpulsos) da   luz natural. A pri- lor objetivo das idéias vai seguir omeira me leva a  acreditar em al- caminho inverso. Já vimos que as

guma coisa; a segunda me faz representações matemáticas res-conhecer demonstrativamente vaiam na objetividade: apenasque algo é verdadeiro. Isso signi- uma razão "metafísica" (e ficcio-fica que, sendo a luz natural algo nal) as impede de ser considera-que ilumina o intelecto, será no e das totalmente verdadeiras. Mas pelo  intelecto que acharei o cami- a objetividade propriamente dita

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começará por um elemento ainda ponto de partida provisório ou algo além do espírito. Esse exa- sas representações situam-se emdif t t hi

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mais extremo, mais geral, e re- mesmo ilusório? O Eu pensantevestido das características de é ponto de partida legítimo secondição.  Assim como o Deus considero que é ele a primeiraEnganador era condição da dúvi- verdade e, através dele, consti-da no seu caráter mais radical, tuo o caminho que me leva a

também a demonstração da exis- examinar unicamente as repre-tência de Deus (não-enganador) sentações em si mesmas semserá a condição mais geral da ob- me fiar na crença que o senso

 jetividade. E para isso é preciso comum tem na semelhança en-que se estabeleça a objetividade tre essas representações e obje-primeiro para a própria idéia de tos possivelmente existentesDeus, para que em seguida se fora de mim e causa dessas re-instaure a das representações presentações. Mas a objetivida-matemáticas (já subjetivamente de exige que a idéia, emboraclaras e distintas) e, por fim, a seja em si mesma apenas umobjetividade das representações modo de pensar, uma modifica-materiais nos níveis de possibili- ção do espírito, do ponto de vistadade e de existência efetiva. do seu conteúdo remeta a algu-

Essa diferença entre o ca- ma realidade fora do espírito e

minho da dúvida e o caminho do que essa correspondência, devi-conhecimento se deve a que o damente estabelecida, legitime otrajeto da dúvida seguiu a ordem valor objetivo das representa-dos conhecimentos obtidos pelo ções. Caso contrário, não have-senso comum, que é ingenua- ria nenhuma diferença entre ser mente realista e não-metódico; e real e ser  representado, e nuncao estabelecimento da objetivida- haveria certeza de que existede segue o trajeto metódico, a via algo correspondente àquilo queracionalista, que parte do conhe- penso.cer e das próprias condições de Por isso, sem deixar deobjetividade. manter fidelidade ao método de

inspeção do espírito e sem, por-Fundamento e ponto de tanto, deixar de tomar o Eu pen-partida sante como ponto de partida,

 Agora podemos perguntar: Descartes vai examinar as idéiasqual é o verdadeiro ponto de par- para verificar qual delas, pelotida? Seria o Eu pensante um seu conteúdo objetivo, remete a

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me se diferenciará do anterior, diferentes pontos numa hierar-

que seguiu o senso comum, por- quia de realidade a que Descar-

que dessa vez o que estará em tes chama graus de ser. Isso sig-

questão será o poder do entendi- nifica, por exemplo, que a idéia

mento de produzir idéias. Poi& o que tem como conteúdo repre-

que se trata de saber é precisa- sentativo uma substância é hie-

mente se as idéias são simples rarquicamente superior a urna ou-

formas de pensar, produzidas no tra idéia cujo conteúdo represen-

entendimento, ou se apresentam tativo é um acidente, na medidanecessariamente uma vinculação em que urna substância possui

a algo que extrapola o puro pen- maior grau de serque um aciden-

sarnento. Só dessa maneira po- te: uma substância pode existir 

derei saber se idéias realmente sem um ou outro de seus aciden-

representam coisas e estabelecer  tes, mas nenhum acidente pode

assim o vínculo entre pensamen- existir se não estiver associado a

to e realidade. uma substância. Da mesma ma-

 A primeira condição para neira podemos dizer que uma

solucionar a questão é diferenciar  idéia que representa um ser infl-

as idéias sob dois aspectos: nito é hierarquicamente superior 

1. Idéias como simples a uma outra que representa seresformas de pensar ou modifica- finitos, pois o infinito é numa di-

ções do espírito, caso em que são mensão de realidade maior que o

todas iguais, enquanto puros con- finito. Essas observações são im-

teúdos mentais. portantes porque nos permitem

2. Idéias como imagens diferenciar os conteúdos repre-

veiculadas na mente, diferencian- sentativos das idéias quanto ao

do-se nesse caso entre si pre-  poder que tem o intelecto huma-

cisamente porque cada uma re- no de produzi-las.

 presenta uma coisa, e esses con-teúdos representados são di- A IDÉIA DE DEUS E A

ferentes. QUESTÃO DO FUNDAMENTOOra, quanto ao segundo DO SABER

aspecto, cabe notar que as idéiasse diferenciam não apenas pelo A realidade objetiva das idéias

fato de representarem coisas di- O fato de que o percurso

versas, mas também porque es- filosófico cartesiano se faz em

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 boa parte através de uma re- Para uma posição realista, entre a coisa e a idéia precisa ser  dade é a interioridade. Examinan-

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flexão sobre a idéia em si mes- o problema de Descartes não te-ma nos indica que a idéia não ria sentido, ou seja, não seria pre-apenas representa alguma coi- ciso estabelecer  a  vinculação en-sa, como também é, por si mes- tre idéia e coisa através de umama, real. Independentemente demonstração. Mas de um pontoda vinculação do conteúdo repre- de vista racionalista e idealista, asentativo à coisa mesma rea- crença espontânea nesse vínculol i dade exterior à mente —, esse constitui um juízo sem fundamen-

conteúdo, no seu estatuto de to. Por isso, para Descartes, oidéia, é alguma coisa, é precisa- campo de análise são as idéiasmente uma representação. É da mente enquanto  realidades. possível, portanto, em Descar- São as idéias consideradas des-tes, falar-se de algo como o ser  sa maneira que ele chama deda idéia: o seu caráter ontológi- realidades objetivas. O termo "ob-co, diríamos, numa linguagem fi-  jetivo", aqui, significa não o quelosófica mais exata. está frente ao sujeito no sentido

Isso é algo de novo que de exterior a ele, mas o que estáDescartes introduz na filosofia; a na mente do sujeito e lhe é pri- 

idéia pode ser considerada ape- meiramente acessível, na exata

nas enquanto idéia, e já aí se medida em que o   pensamento  é  pode falar de  ser. Antes de Des-  primeiramente acessível. Se nãocartes, considerava-se que o houvesse essa autonomia do ser conteúdo representativo da idéia da idéia, não se compreenderiaera a própria coisa ou objeto,  por que todas não remetem des- pois de onde a idéia poderia tirar  de logo àquilo que representam.esse conteúdo senão da própria É, no entanto, precisamente essacoisa que ela representa? Para autonomia da realidade objetivaDescartes, isso deixa de ser um da idéia que me permite tratá-ladado e passa a ser um problema, em si mesma. A realidade objeti-que deve ser resolvido através va da idéia explica por que devo

do estabelecimento de condi- ter cautela ao afirmar a vincula-ções corretas de aplicação do ção entre essa realidade objetiva princípio de causalidade entre a e existências efetivas fora dacoisa e a idéia, e através da ins- mente: nem tudo o que é pensa-tauração de um novo princípio, o do é, apenas por isso, existen-de  correspondência. te. A relação de causa e efeito

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examinada à luz de critérios me- do as idéias, poderei descobrir o

tódicos, isto é, precisa ser   de-  caso em que a própria inspeção

monstrada. do espírito me fará vincular obriga-toriamente a realidade objetiva à

A idéia de Deus e a realidade formal. Seria impraticá-

realidade de Deus vel examinar as idéias uma a uma

A idéia, enquanto repre-  para chegar a essa descoberta.

sentação, só pode ser efeito, nun- Existe, no entanto, um critério  m e- 

ca causa. Isso significa que o que   tafísico  que abrevia o percurso.ela contém de ser em si mesma, Pois, se posso supor que eu mes-

sua realidade objetiva, deve re- mo ou algo dentro de mim pode

meter àquilo que é representado, ser causa das idéias cujas realida-

isto é, a  realidade formal. Mas, des objetivas são finitas, certa-

 para esclarecer essa adequação mente não posso admitir nem

e verificar se a idéia é autentica- mesmo a hipótese de ser eu mes-

mente representativa, só há um mo a causa de uma idéia cuja rea-

caminho: partir da própria idéia,   l i dade objetiva seja infinita, uma

examinar seu conteúdo e desco- vez que me reconheço como ser 

 brir se essa análise me encami- finito: a dúvida, enquanto carência

nha para alguma realidade fora de conhecimento, é uma prova deda mente que seja causa da idéia. minha finitude. Deparo-me então

Para Descartes as idéias não com a seguinte situação: eu, ser 

são, como para a filosofia tradi-  pensante finito, possuo entre mi-

clonal, puros seres de razão, isto nhas idéias a idéia de infinito. Qual

é, algo que se esgota apenas na será a causa dessa idéia?

sua forma de conteúdo mental e Para estabelecer a causa

que não possui, propriamente fa- de qualquer idéia, Descartes Ian-

lando,   realidade. As idéias são ça mão de um axioma que pres-

algo e é por isso que cabe procu- creve a proporcionalidade entre a

rar por suas causas. Somente a realidade objetiva da idéia (efeito)

explicação causal esclarecerá e a realidade formal à qual corres-

completamente a adequação que  ponde a idéia (causa). A razão e -

se trata de encontrar entre a idéia o bom senso me mostram que noe aquilo que ela representa. efeito pode existir, no máximo, o

Fica, portanto, caracteriza- mesmo grau de ser ou de realida-

do que o caminho para a exteriori- de que existe na causa, mas não

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um grau maior. Ou seja, aquilo Chego assim ao caso em posso representar: quem pode o tudo recomeçasse a cada instan-

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que é efeito não pode ser mais do que a vinculação da realidade ob-que sua própria causa. Pois de  jetiva a uma realidade formal

onde o efeito tiraria esse exce- existente fora de mim é obrigató-dente de ser? Aplicando esse ria. Isso constitui a dedução da

 princípio de causalidade à idéia existência de Deus.de inf inito, sou obr igado a concluir Alguém poderia dizer que aque a existência em mim des- idéia de infinito não é uma idéiasa idéia só se explica pela exis- positiva, mas simplesmente for-

tência da causa dessa idéia fo- mada pela negação da idéia de fi-ra de mim, uma vez que eu mes- p ito. Para Descartes, é manifestomo não posso ser a causa des- que isso não poderia ocorrer, nasa idéia. exata medida em que o menos

Usando os termos de Des- não pode produzir o mais.  Antes,cartes, podemos então dizer que o que ocorre é o contrário: a idéiaa presença no ser pensante fini- de finito é que procede, por nega-to de uma realidade objetiva infi- ção e diminuição, da idéia de infi-nita remete necessariamente a   pito. É a finitude que é negativa,uma realidade formal infinita que não a infinitude.é a causa da idéia cuja realidade Essa precedência do infini-

objetiva é infinita. Sendo o efeito to sobre o finito nos alerta tam-infinito, a causa deve também bém que Deus não é apenas cau-ser infinita. sa de sua própria idéia, mas de

Ora, a idéia que em mim todas as idéias enquanto realida-representa o infinito é a idéia de des objetivas finitas e do próprio

Deus, na medida em que a infini- ser pensante. Se procuro a causatude é o predicado de todos os de mim mesmo, posso primeira-predicados de Deus. Tenho na mente supor que eu seja essamente a noção de Deus como um causa. Mas, se assim fosse, istoser que possui todos os predica- é, se tivesse o poder de me criar,dos em grau infinito, e o respon- por que então não me teria criadosável por existir em mim tal idéia com todas as perfeições de que

só pode ser o próprio Deus, que tenho idéia e que são, no limite,teria, segundo Descartes, deixa- as perfeições de Deus? Pois, su-do impressa em mim a infinitu- pondo que tivesse o poder de mede como a marca do artífice em dar o ser, teria também o poder sua obra. de me doar todos os atributos que

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mais, pode o menos. Se, por um te. Por isso, é preciso o mesmolado, suponho que os autores de poder tanto para criar quanto paramim mesmo foram meus pais, fazer com que as coisas conti-devo reconhecer, por outro lado, nuem existindo. A causa é sem-que, enquanto causa, eles não pre atual, isto é, continua sempre

possuiriam a suficiência e o cará- agindo com o mesmo poder comter absoluto para me criar inde- que agiu pela primeira vez. Umpendentemente de qualquer outra ser finito não se conserva por si

causa. E o mesmo se aplica aos mesmo na existência. Para quepais de meus pais, e assim su- persista em seu ser, deve ser re-cessivamente. Há necessidade, criado a cada instante pela mes-

portanto, de se chegar a uma ma causa infinita que o criou. Ocausa primeira e absoluta, causa tempo se caracteriza por umade si e de tudo o mais que existe. descontinuidade de instantes, eEssa causa só pode ser Deus, na não se passa de um a outro sim-medida em que é o único ser que plesmente por inércia. É precisosupera a cadeia de causas finitas que em cada um dos instantes aintermediárias que posso conce- causa infinita atue de modo aber. O que é dito aqui de meu ser  manter os seres finitos na exis-

se aplicaria a todos os seres fini- tência, por uma criação contínua.tos se porventura existirem. Mes-mo porque não se trata de regre- Deus: fundamento da verdadedir de causa em causa, o que Entre os atributos infinitos

talvez me levasse a uma regres- de Deus está o seu poder, inti-são infinita. Trata-se de atingir a mamente ligado à sua infinitacausa atual de minha existência perfeição. É hora de se pergun-atual, e não de conceber uma tar então se essa conexão entrepossível causa perdida num hipo- poder e perfeição é compatíveltético começo da série causal. com o engano, já que a última

Descartes não se contenta etapa de dúvida metódica incluía

com um simples início da série a hipótese de um Deus Engana-temporal de causas e efeitos. dor. Para Descartes, é óbvio que

Para ele, a causa primeira deve a capacidade de enganar não écontinuar agindo em cada um dos  poder, mas carência, visto que

momentos do tempo, e essa ação erro   e engano estão ligados àé sempre uma recriação, como se negatividade do ser finito. Quan-

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do ainda não conhecia Deus, induzisse ao erro, o que já foi re-f i d l

remetendo-se implicitamente a idéia de Deus enquanto pensa- 

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mas fazia dele uma mera   opi- futado.nião,  podia supor que o seu infi- Deus é a razão de ser denito poder incluísse a capacida- todas as verdades. Mas o Eude de me induzir ao erro. Mas  pensante já não desempenhavadepois de conhecer de forma de-  papel semelhante? Na verdade,monstrativa o real significado da   o Eu pensante é a razão de ser onipotência divina, vejo que de.todos os pensamentos, nãoaquela opinião não tinha sentido, de todas as verdades. Mesmo a

 pois um ser soberanamente per- verdade relativa a si próprio, jáfeito não pode promover a falsi- tida como inquestionável antesdade e, portanto, não pode me da prova da existência de Deus,levar a ter como verdadeiro o funda-se realmente em Deus. Oque de fato não o é. que ocorre é que há no percurso

Disso decorre que Deus é cartesiano de construção da filo-o fundamento da verdade, ou sofia duas trajetórias que se en-seja, todas as representações trecruzam exatamente no pontoque se me apresentarem metodi- em que se demonstra a existên-camente como claras e distintas cia de um ser supremo. O Euestão garantidas por Deus, verda-  pensante me deu a realidade do

de suprema e razão de ser de to-  pensamento, isto é, de todas asdas as demais. Assim como a representações enquanto con-realidade formal de Deus é a ga- teúdos mentais, mas não me au-rantia da objetividade do conteú- torizava a constatar o valor obje-do de sua idéia, também esse tivo de qualquer uma dessas re-máximo de verdade se põe como  presentações, que eram reaisgarantia da adequação entre rea- apenas enquanto conteúdos dol i dade objetiva e realidade formal Eu pensante.em todos os casos em que essa Quando o Eu pensanteadequação for atingida pelo pen- descobre em si a idéia de algosarnento segundo os critérios me- infinitamente perfeito, descobre

tódicos. Não há por que, a partir  também algo que o ultrapassadaqui, recear que algo que se me e que já vinha implicitamenteapresente com absoluta clareza e atuando como critério de buscadistinção possa ser uma repre- da verdade. Pois quando o Eusentação falsa, visto que isso so-  pensante se reconhecia imperfei-mente aconteceria se Deus me to por errar e duvidar, só o fazia

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algo de mais perfeito do que ele   mento; não é razão de ser dessamesmo. Quando essa idéia foi ex- idéia naquilo em que ela se reme- plicitada, a garantia subjetiva e te à sua causa real e infinita. Orelativa do Eu pensante cedeu lu- Eu pensante não é razão de ser gar à garantia objetiva e absoluta da realidade objetiva da idéia dede Deus. Lembremo-nos de que Deus. Nesse ponto as coisas seo Eu pensante era dotado de uma invertem, como vimos, pois Deusirremediável atualidade no senti- é que é razão de ser do próprio

do de instantaneidade: sendo o Eu pensante. Atinjo a realidade pensamento a única garantia de objetiva da idéia de Deus pela or-

si mesmo, o próprio Eu pensante dem de razões (método) internasé verdadeiro se  e enquanto o ao Eu pensante. Mas, ao atingi- penso. Quando atingimos uma la, vejo imediatamente que Deus,garantia absoluta, essa instanta- enquanto realidade formal infinita,neidade cede lugar à eternidade é a primeira verdade na ordem dodo verdadeiro, garantida pela ser, que não se confunde com aeternidade de Deus. Passo assim ordem do meu pensamento. O fi-do relativo ao absoluto. nito teve que partir do finito; mas

O fato de que o absoluto ao atingir o infinito reconhece que

tenha sido atingido através do re-   a   realidade  infinita é princípio elativo é devido apenas ao caráter  funda inclusive o pensamento,metódico da filosofia cartesiana: o que foi apenas o meio utilizadoEu pensante é razão de ser da  para atingi-la.

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pedaço de cera, que o único co- são geométrica, o conhecimento

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Essência e existência

O MUNDO COMO CONCEITO E trariem aquelas já estabelecidasCOMO REALIDADE e que, de alguma maneira, ser-

PERCEBIDA vem de suporte para as demais.Entre os conteúdos verdadeiros

A essência do mundo material que não podem ser contrariados, Após ter estabelecido que estão a garantia divina de evidên-

Deus é a garantia de todas as re- cia, o pensamento como essênciapresentações claras e distintas, do Eu e a separação absoluta en-é preciso ainda encontrar, pela tre substância extensa e substân-

via do método, tais representa- cia pensante.ções para que o saber se cons- Uma das conseqüênciastrua ao abrigo da veracidade di- imediatas da prova da existênciavina. Sobre as duas verdades de Deus (e do fato de que ele não

fundamentais da metafísica, Eu é enganador) é a validação das pensante e Deus, deverão er- representações matemáticas. Re-

guer-se outras, notadamente corde-se que o único obstáculo àaquelas referentes à matemática certeza das representações ma-

e à física, para que se complete temáticas era a hipótese do Deusa trajetória de conhecimento. Enganador. Uma vez suprimida

Para tanto disponho dos mes- essa hipótese, todas as represen-mos procedimentos metódicos tações inteligíveis do universoaté agora utilizados, e que se re- matemático tornam-se evidentes.sumem fundamentalmente na Ora, entre as essênciasanálise das representações. matemáticas assim validadas

É importante notar que o está a extensão em seu caráter caráter sistemático e dedutivo da de essência geométrica. De que

filosofia cartesiana exige que as maneira isso se relaciona com averdades que porventura venham possível validação das represen-

a ser descobertas nos planos da tações do mundo material? Já vi-matemática e da física não con- mos, ao analisar o exemplo do

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nhecimento indubitável acerca dessa idéia é a garantia da objeta-das coisas materiais, se é que vidade do extenso, na medida emexistem, refere-se à idéia de ex- que o objeto aí é uma representa-

tensão, que constitui a essência ção inteligível, ou seja, apenas odas coisas materiais. Agora que intelecto participa do conheci-possuo certeza acerca de todos mento. Trata-se de um conheci-

os entes matemáticos, essa evi- mento inteligível de essência,dência da extensão, que no mas que é determinante daquilo

exemplo era hipotética, torna-se que se lhe possa seguir em ter-plenamente real. Isso significa mos de existência, se porventuraque o mundo material, no que diz existirem coisas materiais. Esse

respeito à sua essência, é tam- caráter determinante do conheci-

bém uma certeza. Se tudo que é mento intelectual deriva da priori-material é essencialmente subs- dade do intelecto e de ser ele atância extensa, o conjunto de re- única fonte de conhecimento de

presentações que chamo de essências. Cabe ressaltar que omundo exterior pode ser desde conhecimento da essência das

 já considerado verdadeiro no coisas materiais é obtido antesque diz respeito à essência ma- mesmo de se colocar o problema

temática. da existência do mundo exterior,Mas e quanto às represen- pois a validação da extensão se

tações sensíveis em si mesmas dá no âmbito da verdade mate-no que se refere à existência de mática em geral.

coisas materiais? Isso ainda con- O problema que se coloca-

tinua em dúvida, mas obtive um rá agora é como passar dessaganho. Na medida em que a es- idéia geral à certeza das repre-sência do mundo material é uma sentações sensíveis através das

realidade, a existência das coisas quais se possa atestar a existên-passa a ser pelo menos uma pos- cia de coisas efetivamente perce-

sibilidade. bidas como exteriores ao sujeito. A possibilidade da existên-

cia das coisas materiais deriva A existência do mundo

exatamente de que o conheci- materialmento da essência precede o co- Para tentar validar as re-nhecimento da existência. E sen- presentações sensíveis é precisodo a essência, no caso, a exten- analisá-Ias naquilo que as distin-

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gue enquanto indicativas de cor- ocorre quando penso numa figu-pos realmente e istentes O pri d il l d í já ã

à possibilidade, dada pela es- provoca representações mais vi-sência essa probabilidade vem vas e nítidas Quando as recor

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pos realmente existentes. O pri- ra de mil lados; aí já não possomeiro recurso utilizado por Des- compor na imaginação, "ver" acartes é verificar como se dá o   i magem do polígono, emboratrabalho da i maginação, faculda- possa defini-lo e concebê-lo tãode que me faz representar coisas facilmente quanto faço com ona ausência delas. polígono de quatro lados. Isso

 A imaginação trabalha encoraja a hipótese de que acom a presença de objetos físi- imaginação trabalha com algo

cos, traçando os contornos dos mais do que o puro pensamento,mesmos quando não estão pre- embora seja um modo de pensa-sentes à sensação. Mas o fato mento. Precisamente, a imagina-de torná-los fisicamente presen- ção seria o pensamento voltadotes em imagem mostra que a para os corpos, para coisas ma-imaginação está intimamente li- teriais efetivas.gada a corpos. Essa ligação se Se por um lado isso refor-manifesta na necessidade de ça a prioridade do entendimentouma imagem corpórea no traba- no conhecimento de qualquer lho da imaginação: a delimitação coisa, por outro lado indica umado corpo presente em imagem pressuposição de representa-

indica uma dependência da ima- ções de corpos vindas dos pró-

ginação em relação a algo dife-  prios corpos através dos senti-rente do espírito. A necessidade dos, o que depois é recompostode delimitar corporalmente pro- na imaginação. O entendimentovém da finitude da imaginação — não representa apenas no regis-possibilidade finita de compor  tro do corpo extenso; vai muitodistintamente uma imagem — mais além. A imaginação pareceem contraposição às possibilida- representar apenas no domíniodes indefinidas do entendimento, do corpo extenso, visto que elaque trabalha com a definição ou não consegue acompanhar o en-concepção. Por exemplo: quan- tendimento além de um certo li-

do penso numa figura de quatro mite. Essa dependência da ima-lados, posso também imaginar  ginação me dá agora a probabili-com razoável nitidez a figura, isto dade da existência de coisas ma-é, posso compô-la em imagem, teriais, o que seria uma explica-vendo-a, por assim dizer, com os ção para a capacidade reprodu-olhos do espírito. O mesmo não tora da imaginação. Juntando-se

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sência, essa probabilidade vem vas e nítidas. Quando as recor-reforçar a crença na existência do ou as imagino, elas já não têmdo mundo exterior. a mesma nitidez e a mesma vi-

 A ligação ent re imaginação vacidade.

e sensibilidade exige agora a Prioridade. Certas repre-

análise da sensação, possível ori- sentações sensíveis acontecem

gem das imagens. Essa análise sempre antes que eu as repre-retoma todas as questões já colo- sente intelectualmente, e em al-

cadas por ocasião da dúvida me- guns casos a sensação parecetódica, isto é, todos os erros a que ser mesmo a condição de repre-me pode levar a crença no valor  sentações posteriores.

objetivo da representação sensí- Corpo próprio.  Algumas

vel. Só que agora o problema é sensações estão intimamente li-

recolocado à luz de verdades já gadas ao que julgo ser o meu cor-adquiridas, notadamente a garan- po. Órgãos e funções são quasetia divina da certeza. Com isso se irresistivelmente sentidos como

procura, na verdade, esclarecer  meus e me parece que não pode-melhor o estatuto da sensação. riam existir se não existisse o

 A novidade dessa retoma- meu corpo.

da é que Descartes, além de criti- Interação corpo-mente.car a sensação, enumera também Minha vontade provoca movimen-

os argumentos aparentemente fa- tos de meu corpo e, inversamen-voráveis à hipótese de uma fonte te, sensações provocam reaçõesde idéias sensíveis independente no meu espírito.

do pensamento. São eles: Todos esses fatores me le-

Coerção. Não depende de vam a crer que as representações

minha vontade ter ou não ter re- sensíveis têm uma causa fora depresentações sensíveis. Dadas mim. Não posso conceber distin-

certas circunstâncias, elas acon- tamente essa causa da mesmatecem. Por exemplo: se abro os forma que concebo a essência

olhos, vejo as coisas; se me apro- geométrica dos corpos, mas sintoximo do fogo, sinto calor; se toco uma forte inclinação para admitir 

alguma coisa, sinto-a, e assim por a causa externa das sensações e,diante. na verdade, não há como admitir 

Vivacidade. O contato para elas outra proveniência, pe-sensível imediato com as coisas Ias razões já alegadas.

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Ora, tendo em vista essa o método, que me encaminhaforte inclinação para crer que a paraesseresultado

Descartes sublinha que talvez as A NATUREZA HUMANA:

i í i ã j EXPERIÊNCIA E

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forte inclinação para crer que a  para esse resultado.causa das sensações situa-se Sendo esse o ponto máxi-

fora da mente e a impossibilidade mo a que posso chegar, estou

de atribuir outra causa para as re- autorizado a afirmar que existem presentações sensíveis, segue- coisas externas que são causasse que, se efetivamente não exis- de minhas percepções sensíveis.tir  essa causalidade externa, a Devido ao fato de não po-origem da sensação permanece- der alcançar acerca desse as-

rá inexplicável. Mas ainda há sunto uma certeza intelectualmais. Uma vez que Deus, autor   plena, Descartes nos alerta pa-de meu ser, é também responsá- ra as conseqüências disso novel pela fortíssima inclinação de que respeita à objetividade das

meu sentimento para a crença idéias sensíveis. É bem verdadenas coisas externas, ele estaria que, depois da possibilidademe induzindo ao erro se tais coi- dada pelo conhecimento da es-

sas não existissem. Há aqui uma sência geométrica do mundoaplicação do princípio da garantia material e da probabilidade da

divina de certeza à inclinação na- existência das coisas dada pela

tural. Embora essa inclinação não imaginação, concluí pela exis-seja fator de certeza intelectual, tência efetiva do mundo exterior,na medida em que nesse caso o  por ser essa a única maneira de

único meio de acreditar é a incli- entender a origem das represen-

nação natural, o princípio de ve- tações sensíveis, invocandoracidade divina estaria sendo vio-  para tanto o princípio da veraci-

lado se essa crença não corres- dade divina. Mas o que obtenho

 pondesse a algo de real. com essa prova é uma  tese ge- 

 Note-se que não disponho   ral: existem coisas exteriores à

de nenhuma idéia clara e distin- mente que são causas das sen-

ta acerca da proveniência das sações e das idéias sensíveis.

idéias sensíveis. Sobre esse as- Mas, como nenhuma dessassunto, portanto, nunca poderei idéias é clara e distinta, não háatingir a certeza intelectual que como estabelecer uma corres-estaria de acordo com o método.  pondência rigorosa entre cadaMas, ao mesmo tempo, é a análi- representação e a sua respecti-se das representações, portanto va realidade formal. Por isso

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coisas sensíveis não sejam exa- EXPERIÊNCIA E

tamente como nossas idéias as CONHECIMENTO

representam, já que, sendo taisidéias obscuras e confusas   por  União substancial

natureza, não há como estabele- A causa da dificuldade que

cer inteira correspondência que apontamos no item anterior está

venha explicitar a causalidade   l igada à doutrina cartesiana da

geral que admito existir entre o absoluta separação entre  subs- 

mundo exterior e as representa- tãncia pensante e substância ex-

ções sensíveis. tensa. Por que  a ciência do mun-

Essa ausência de clareza e do material se restringe à exten-

distinção nas idéias, que se refle- são, ou seja, não passa dos limi-

te na impossibilidade de verificar  tes da geometria? Certamente

o princípio de correspondência  porque a   idéia  de extensão é

entre realidade objetiva e realida- aquela que permite um tratamen-

de formal nesses casos, me im- to metódico de sua realidade ob-

 pede, por conseqüência, de esta-  jetiva, na exata medida em que é

 belecer uma   ciência  do mundo uma idéia clara e distinta. A es-

exterior que vá além daquilo que sência é real, mas tem uma exis- posso afirmar no âmbito matemá- tência ideal, ou seja, na mente.

tico em que se insere a idéia de Quando se trata de passar da es-

extensão. sência inteligível a existências

As idéias sensíveis, prove-  percebidas, Descartes se depara

nientes da percepção, são   por  com as barreiras da obscuridade

natureza obscuras e confusas e, e da confusão próprias dos senti-

 portanto,   à consciência  do mun- dos e do sensível. É por isso que

do externo não corresponde uma  posso ter com o mundo exterior 

ciência rigorosa das coisas exten- apenas um contato, nunca uma

sas, pelo menos naquilo em que relação de saber.

elas se relacionam com a percep- Ora, essa dificuldade seção. Isso significa que   o  propria-  agrava quando Descartes consta-

mente sensível não pode ser ob- ta que existe um caso em que a

 jeto de conhecimento. Essa será substância pensante e a substân-

uma das dificuldades insuperá- cia extensa, embora metafisica-

veis da filosofia cartesiana. mente separadas, na realidade se

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encontram unidas formando um  pios metafísicos de sua doutrina,composto indissociável quase Descartes só podia optar pela in

natural de modo a tirar o melhor  Pensamento e extensãopartido para nossa sobrevivência O problema que acabamos

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composto indissociável, quase Descartes só podia optar pela in-como se fosse uma outra subs- compreensibilidade teórica datãncia. É o caso do homem, na questão, resguardando, no en-medida em que nele o espírito e o tanto, a sua realidade e, de certacorpo estão   substancialmente  forma, o caráter verdadeiro des-unidos. Não se trata apenas de sa união, uma vez que, comouma relação entre as duas subs- tudo o que existe, ela foi estabe-tâncias, mas de uma associação tecida por Deus, sendo portantoíntima que corresponde àquilo real e verdadeira. Essas caracte-que vimos mais atrás como inte- rísticas, no entanto, não fazemração corpo/mente. O corpo rea- da união substancial um proble-ge à mente e a mente reage ao ma suscetível de ser abordadocorpo. Provam-no os movimentos   teoricamente, pois não é aceitá-voluntários e a relação estreita vel para o entendimento queque existe entre fenômenos sen- duas substâncias de direito se-síveis e manifestações do espíri-  paradas possam estar de fato in-to. Isso significa que o espírito   t imamente unidas. Assim comonão está apenas  alojado no cor- não há ciência do mundo exte-

 po, mas que forma com ele um rior, também não há ciência daúnico todo, de maneira que não é natureza humana enquanto com- possível separar, na vida desse  posto substancial.ser composto que é o homem,  Nos dois casos, a sabedo-aquilo que diga respeito apenas ria divina dispôs as coisas de tala uma ou outra dessas substân- modo que um saber intelectualcias, de maneira exclusiva. impossível de ser conseguido

Essa união entre duas seja substituído por uma orienta- substâncias metafisicamente in-   ção da natureza, espécie de sa-compatíveis não é certamente  ber "prático" suficiente para ga-algo que se possa compreender  rantir a interação entre o espírito

clara e distintamente como exigi- e o corpo e entre o homem e asria o método. Mas é um fato irre- coisas naturais que o rodeiam.cusável de experiência. Não po- Assim, comportamo-nos comodendo ignorar a experiência da se soubéssemos distinguir o queunião substancial, mas não po- é útil do que é nocivo e enfrenta-dendo também ignorar os princí- mos as situações de nossa vida

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 partido para nossa sobrevivência O problema que acabamose nosso bem-estar.   O   contato  de tratar é o caso limite de umacom o mundo, de que antes se questão mais geral e que é tam-falou, é regrado de maneira a  bém a mais difícil entre as que permitir que a vida prática e na- Descartes nos legou: a relaçãotural se desenvolva de forma re- entre o pensamento e a extensão.lativamente harmoniosa. Isso De um lado, temos a separaçãose mostra na maneira como rea- absoluta entre substância pen-

gimos às representações sensí- sante e substância extensa, que,veis, como as organizamos e como vimos, é necessária para aas interpretamos, como respon- constituição da física. De outro,demos às solicitações do meio temos a comunicação íntima en-e do nosso próprio corpo, sem tre as duas substâncias, no casoque nada disso dependa de sa- do homem. Entre a teoria metafí-

 ber teórico. sica e a experiência de fato, po-Podemos, portanto, pensar  dem ser colocados alguns proble-

a nossa inserção no mundo exter- mas que dizem respeito ao queno, a inserção do espírito no cor-  podemos realmente saber acerca

 po, a inserção desse composto da substância extensa.

substancial na natureza que o ro- O que Descartes necessi-deia e com a qual ele está em ta, do ponto de vista metodológi-constante contato, sem renunciar  co,  para a constituição da ciênciaàs teses metafísicas já enuncia- da física, é de uma extensão geo-das: o pensamento como essên- métrica suscetível de tratamentocia do Eu, a separação absoluta científico consistente com os prin-das substâncias extensa e  pen- cípios de sua filosofia. Dessesante e a prioridade do conheci-  ponto de vista, a consideraçãomento intelectual sobre a repre- teórica da extensão não significasentação sensível. Basta para uma comunicação entre as subs-isso que entendamos os limites tâncias pensante e extensa, masmetódicos do saber teórico, as a comunicação do intelecto comexigências metafísicas do conhe- uma de suas idéias. De maneiracimento objetivo, e que distinga- que, assim, a incomunicabilidademos a objetividade da orientação das substâncias não é violada, e prático-biológica que a natureza a física tem sua objetividade as-nos fornece. segurada. Mas, precisamente

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alma. Essa mescla obscura con-  para se chegar ao elemento sim-duz à incompreensibilidade.  pies que conferiria evidência ao

tem de mais simples, portanto de que é impossível que venham amais verdadeiro. se tornar claras e distintas, como

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 pensamento.PROBLEMAS DO IDEALISMO Ora, conforme já vimos,

quando Descartes considera asVimos que a filosofia de representações sensíveis pa-

Descar tes enfrenta suas maiores ra colocá-Ias em dúvida, ele odificuldades quando surge o  pro- faz em duas etapas. A primeira blema das relações entre o Eu é o caráter imediatamente sensí-

 pensante e as representações vel da representação, isto é,que remetem à exterioridade. a apreensão imediata das coisasIsso significa que o idealismo en-  pela percepção sensível, quecontra limitações para resolver o é em geral composta. A compo-

 problema da passagem da es- sição é fator de obscuridade, osência à existência. Essa dificul- que justifica a dúvida acerca dasdade tem dois aspectos: o pri-  percepções nesse nível. A se-meiro é a impossibilidade de gunda etapa é a consideraçãoconferir objetividade às repre- dos elementos últimos em quesentações que se caracterizam  pode ser decomposta a percep- principalmente como   qualitati-  ção sensível e que são em geral

vas, e o segundo refere-se à de- de ordem matemática: número,monstração da  realidade daquilo figura, espacialidade, temporali-cuja existência não decorre ime- dade, etc. Esses elementos sãodiatamente da análise da essên- suscetíveis de dúvida enquantocia ou da idéia. estão mesclados com os demais

aspectos da percepção. Em siRepresentações qualitativas mesmos, os elementos matemá-

 Não é difícil verificar a ra- ticos só podem ser postos emzão pela qual a demonstração da dúvida artificialmente. Isso sig-veracidade da essência do mun- nifica que, se a análise resultar do material, a extensão geométri- na separação desses elementos,ca, não apresenta problemas. Sa- chegaremos àquilo que, na re-

 bemos que o método de Descar-  presentação composta, constituites é inspirado na matemática, e a parte evidente. Por isso, o quedisso decorre seu caráter analíti- o mundo material tem de maisco, explícito no primeiro preceito, evidente é a extensão geométri-que é justamente o que prescre- ca, devido à qual o compostove a análise das representações material aparece naquilo que

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Mas ocorre que, quando exigiria o método. pretendo demonstrar a existên- Ainda assim, são esses as-cia do mundo exterior, não basta  pectos inanalisáveis que caracte-atingir a evidência dos elemen- rizam a existência das coisas notos simples de ordem quantitati- seu aspecto sensível. É  por issova, geométrica, por exemplo, que não posso analisar a sensa- pois as percepções sensíveis in - ção da mesma forma que anali-

cluem mais que isso. Elas  in-   so idéias matemáticas, e tenho

cluem o frio, o quente, a sensa- que passar da sensação à afirma-ção olfativa, o gosto, caracterís- ção de sua causa sem completar 

ticas que aparecem sempre as- a análise exigida pelo método.sociadas àqueles elementos últi- Tenho que aceitar que a sensa-mos de ordem matemática. Isso ção está também sob a jurisdiçãosignifica que o mundo dos senti- da garantia divina de verdade

dos é um composto de  quantida-  sem chegar à clareza e distinçãode e qualidade. que, no caso da matemática, pre-

O limite que o cartesianis- cedem essa garantia. Pois Deusmo encontra diz respeito à análi- garante a veracidade das repre-se das representações qualitati- sentações claras e distintas: es-

vas. O caráter matemático do sa havia sido a afirmação de Des

método não permite que as ca-   cartes por ocasião da prova da

racterísticas qualitativas sejam existência de Deus. O grandereduzidas a elementos simples,  problema que se põe, portanto, éanálogos a números e figuras. a aceitação do valor objetivo daEssa massa qualitativa que atin- sensação sem a clareza e distin-

ge imediatamente os meus senti- ção das idéias sensíveis. Somen-dos me é dada como um bloco in- te a esse preço posso afirmar adivisível, e o método é de alguma existência do mundo exterior,forma impotente para dividi-la uma vez que as informações dosquantitativamente. Por isso  Des- sentidos não são redutíveis à cla-

ca r tes considera essas represen- reza e distinção.tações indistintas e obscuras. E Mas, como a afirmação dado fato de não serem suscetíveis realidade do mundo sensível con-de análise decorre que tenho que figura a passagem da essênciaconsiderá-Ias indistintas e obscu- (idéia) à existência das coisas ma-ras  por natureza, o  que significa teriais, isso nos mostra a extraor-

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dinária dificuldade que o idealismo Representação e existênciacartesiano teria que superar para Todas essas dificuldades

Ora, possuindo todas as perfei- Mas isso não acontece. No ca-ções, deve possuir o predicado da so de Deus, a vinculação entre

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que a afirmação da existência do derivam de que, no caso das re-mundo material fosse inteiramen- presentações sensíveis, não pos-

te demonstrativa. Essa é a razão so pensá-Ias como necessaria-pela qual não pode haver conhe- mente vinculadas à realidade for-cimento teórico do mundo sensí- mal correspondente. Em outrasvel no que respeita aos seus as- palavras: a existência não decor-pectos qualitativos. É uma possi- re necessariamente da essência.bilidade de antemão excluída pe- Quando há uma vinculação ne-lo método. cessária entre essência e existên-

Tal exclusão Descartes a cia, só posso  pensar  a coisaopera em benefício da objetivida- como existente.de. O que ele criticava na ciência Isso acontece porque oaristotélica e escolástica era a idealismo parte da representação.mistura de quantidade e qualida- Então tenho que demonstrar quede que tornava essa ciência obs- o correspondente da representa-cura, que fazia com que as idéias ção existe fora da mente. O realis-que ela manipulava não fossem mo desconhece esse problemaclaras e distintas. A opção pela porque parte das próprias coisas,inspiração matemática do método e a representação se subordina ao

tem em Descartes este sentido: o contato com as coisas. Mas quan-mundo físico só pode ser conhe- do a representação vem em pri-cido naquilo em que puder ser  melro lugar, só tenho o direito deanalisado por procedimentos ma- afirmar a existência da coisa quan-tematizantes. Por isso a física do uma análise da representaçãoserá doravante físico-matemáti- mostra que essa existência é evi-ca . Mas para que isso se realize dente, ou porque há como fazer aé preciso que os aspectos quali- vinculação, ou porque tal vincula-tativos do sensível sejam despre- ção já aparece necessariamentezados em benefício do rigor ma- quando considero a idéia.temático que garante a verdade Há um único caso que cor-

do conhecimento físico. responde a essa segunda possibi-Dessa forma é que Descar-   l idade: é a idéia de Deus. Quando

tes constitui os fundamentos da considero a idéia de Deus, que é afísica moderna e dá respaldo à idéia de infinito, vejo que tal idéiaciência que já havia sido propos- representa um ser que possui to-ta por Galileu. das as perfeições em grau infinito.

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existência, se assumirmos, o que essência e existência é pacíficaDescartes faz, que a existência é porque ele é um ser necessário.uma perfeição e que, como todas Todos os demais seres são con-as outras, Deus deve possuí-la em tingentes, isto é, poderiam nãograu infinito. Isso significa que, se existir, posso mesmo concebê-los

pensasse a idéia de Deus como como não existindo. Não há ne-um ser possivelmente não-exis- nhuma contradição em supor que

tente, faltaria a ele um dos predi- tais e tais realidades que repre-sados que o tornam infinitamente sento em minha mente de fatoperfeito. Estaria pensando assim não existem. Essa é mesmo anum ser infinitamente perfeito ao grande dificuldade que se coloca

qual faltaria, no entanto, uma das para provar a existência do mun-perfeições, precisamente a exis- do exterior. Ele é composto de se-

tência, o que seria contraditório. res contingentes e, portanto, nãoEis por que a existência de Deus basta pensá-Ios para afirmar quedecorre necessariamente da con- existem. Tenho que chegar a eles

sideração de sua idéia. Isso signi- partindo do pensamento e tenho

fica que, nesse caso, basta a aná- que provar que há uma corres-

lise da representação para que se pondência que poderia muito bem

afirme o ser daquilo que é repre- não existir. Vimos que, quandosentado. E não posso deixar de represento a essência das coisas

afirmar a existência, sob pena de materiais, sua existência torna-se

cair em contradição.  possível, não necessariamente

Essa idéia, única em seu real. Isso porque a perfeição rela-

gênero, é aquela que realiza pie- tiva das coisas materiais exclui a

namente as pretensões do idea- necessidade de que existam. Olismo, pois em relação a ela pos- que é relativo não existe  por si,

so passar da essência à existên- mas por outro, sua existência de-cia sem sair da essência, isto é, pende de outro ser. Deus é o úni-

sem deixar o território exclusivo co ser que existe  por si e, nesse

do pensamento. sentido, ele é absoluto e neces-Se todas as idéias fossem sário. Um ser absolutamente ne-

desse tipo, a passagem da es- cessário só pode ser pensadosência à existência seria feita como existente.

sempre como que automatica- Nessa divisão entre verda-mente, porque necessariamente. des absolutas e contingentes,

83

como ficam as idéias matemáti-

 dois mais dois poderia não ser 

cas? Elas não dependem da sen- igual a quatro, e a soma dos ângu-

                

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sibilidade para existir e, nesse los de um triângulo poderia nãosentido, não são tão condiciona- equivaler a 180 graus. Não existe,das quanto as idéias sensíveis.  portanto, nem mesmo na matemá-Quando dizemos que a soma dos tica, uma necessidade que se so-ângulos de um triângulo é igual a  breponha à   vontade  de Deus.180 graus, sabemos que isso de- Descartes julga que deve ser as-riva de uma  n ecessidade interna  sim para que Deus possa ser afir-

da figura que faz com que isso mado como o ser absolutamentesejasempre verdadeiro, ainda que  primeiro e soberano.não exista nenhum triângulo na Isso coloca o problema denatureza, como de fato não existe, saber se dessa forma as verdadesse considerarmos o triângulo na não ficariam submetidas a um ar- sua perfeição de ente matemático. bítrio — mesmo que seja o arbítrio

Mas, embora não seja con- de Deus — em vez de estaremdicionada como as representa- vinculadas a uma necessidade.ções sensíveis, a verdade mate- Para Descartes esse problemamática está condicionada a Deus, não existe, visto que, sendo a von-que a criou, assim como a todas tade de Deus igual à sua sabedo-as verdades que têm caráter eter- ria, de vez que são ambas infini-no. Deus é o criador das verdades tas, Deus nunca seria arbitrário noeternas, e elas dependem de sua sentido em que um homem podevontade. Embora apareçam para ser arbitrário. Ou seja, Deus nun-nós com um caráter quase abso- ca determinaria algo como verda-luto, devido à necessidade interna deiro sem que houvesse razõesque as caracteriza, e também de-  para isso. Essa compatibilidadevido ao fato de serem  inatas*, isto entre vontade e entendimento éé, terem nascido conosco, Descar- que configura a sabedoria, e ates se recusa a desvinculá-Ias da  principal questão relativa à sabe- vontade de Deus. Isso significa doria humana será a de averiguar que, se Deus quisesse, essas ver- até que ponto essas duas faculda-dades poderiam ser diferentes: des são compatíveis no homem.

* Entre as idéias que possuímos, algumas são adquiridas e outras são   ina-tas. Sobre estas últimas é que repousa o conhecimento naquilo em que eleé fundamentalmente verdadeiro. Todas as idéias matemáticas são inatas,assim como a maior parte das idéias gerais, como, por exemplo, a de subs-tância. Elas gozam de uma participação mais direta na veracidade divina.

84

O ideal de sabedoria

CONHECIMENTO E MORAL rantia de todas as representa-ções claras e distintas, não pode

Entendimento e vontade ser responsabilizado pelo erro.Para formular uma teoria do Já vimos que a indução ao erro

conhecimento é indispensável, não seria em Deus uma perfei-como vimos, estabelecer as con- ção, mas uma carência. Há umadições em que podemos chegar  incompatibilidade entre a divin-ao conhecimento verdadeiro. Para dade e a falsidade.tanto, Descartes se debruçou Ion- Aprofundando essa idéia,gamente sobre os requisitos me-  percebo qual é a causa dessa in-todológicos e metafísicos do co- compatibilidade. Por um lado, anhecimento. Mas essa teoria não representação de Deus me reve-estaria completa se não incluísse la o ser no mais alto grau, ou seja,

uma reflexão sobre o erro, como e em grau infinito. Por outro lado, por que ele acontece, para que  percebo também que o erro não possamos evitá-lo tanto quanto está relacionado ao ser, que éisso nos seja possível.  plenitude, mas à carência, que no

O estudo do problema do   l i mite é o nada. Não poderia, pois,erro tem também outra finalida- haver qualquer relação direta en-de, bem mais ligada ao sistema tre Deus e o erro, posto que Deusmetafísico construído por Des- é o supremo ser, e o erro está docartes. É preciso saber em que lado do não-ser. E isso possocondições ocorre o erro para que constatar quando reflito que em possamos avaliar a quem deve mim o erro, enquanto ausência deser atribuída a responsabilidade conhecimento, provém de minha pelo conhecimento falso. Parte finitude. O caráter finito do meudessa questão já pode ser solu- ser é experimentado principal-cionada através do que vimos mente através do que me falta anteriormente. Deus, enquanto   saber  para não tomar o falsoabsolutamente verdadeiro e ga- como verdadeiro. A finitude indi-

85

ca claramente uma carência, e Mas possuo também um

 por essa carência participo do outro gênero de representações a

tem uma capacidade finita. Mas o Deus, que me dotou de uma von- poder de afirmar ou negar, isto é, tade que não se ajusta ao enten-

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não-ser. O homem, criatura finita, que denominamos juízos. Juízo éocupa uma posição intermediária: uma afirmação ou negação acer-enquanto se relaciona com a ver- ca de alguma coisa. Aí então já

dade através da certeza, partici- não me contento em conceber 

pa do ser e está voltado para  pelo entendimento alguma idéia,Deus. Mas, na medida em que mas pronuncio-me acerca dela,

experimenta o erro, participa do afirmando, por exemplo, que a

não-ser e está voltado para o alma é imortal ou que o cavalonada. Isso porque aquilo que é, é voador existe. Para que o juízosempre verdadeiro; o erro está do seja possível é necessária a com-lado daquilo que não é, não tem  binação de duas condições:nenhuma positividade.   1. Devo conceber pelo en-

Devo então procurar em tendimento aquilo acerca demim a causa do erro. E, seguin- que vou afirmar ou negar algu-

do o método, farei isso através ma coisa.de um exame das representa- 2.   0 ato de afirmar ou ne-ções. Volto-me primeiramente,   gar é um ato da vontade que se

 portanto, para as várias idéias exerce em relação às idéias doque possuo em minha mente. entendimento. Para que haja juí-Por exemplo: mesa, triângulo, zo é preciso que haja o exercícioalma, cavalo voador. Se tomo da vontade de afirmar ou negar.essas idéias apenas nelas mes- Isso significa que a faculda-

mas, isto é, somente enquanto de predominante no juízo é a von-

idéias, não posso dizer que são tade, pois é através dela que esta-verdadeiras nem que são falsas.  beleço a ligação entre a represen-Apenas existem enquanto repre- tação e aquilo que afirmo ou nego

sentações. No sentido de repre- a seu respeito.sentações, posso dizer que são Ora, aqui Descartes intro-

todas verdadeiras, pois, quer  duz uma diferença fundamentalexistam quer não enquanto réali- entre as duas faculdades. O en-

dades formais, a mesa, o triân- tendimento, poder de conceber guio, a alma ou o cavalo voador  idéias, é limitado. Certamente hácertamente existem na minha uma infinidade de idéias que nãomente enquanto idéias. concebo na minha mente, que

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a vontade, é infinito. Posso exer- dimento. Mas posso culpar Deuscê-Io sempre em relação a qual-  por ter-me criado com uma facul-

quer coisa. Poderia dizer, por  dade de poder infinito, na qual re-

exemplo, que a soma dos Angu- conheço inclusive a semelhança

los do triângulo não equivale a da criatura com o criador? Certa-180 graus e que o cavalo voador  mente não. E tampouco posso

existe. Certamente não posso culpar Deus por ter-me dotado de

afirmar ou negar coisa alguma um entendimento limitado, poisacerca de idéias que não tenho, isso faz parte da criatura finita. No

mas em relação àquelas que es- que me diz respeito, o problema

tão na minha mente o poder da está menos na defasagem entre

vontade é ilimitado. entendimento e vontade do que

Sendo esse poder ilimita- no  uso que faço de minhas facul-do, ele se exerce tanto em rela- dades. Pois o poder de afirmar ou

cão às representações claras e negar é a liberdade, e não pode-

distintas quanto relativamente às ria censurar Deus por ter-me cria-

obscuras e confusas. Aí está a do como um ser livre.

causa do erro. Quando afirmo ou Cabe-me, então, utilizar 

nego, quando formulo um juízo essa liberdade de modo a com-em relação àquilo que não conhe-  patibilizar o entendimento com aço bem, em relação a representa- vontade, formulando juízos ape-ções que não são claras e distin- nas acerca de representações

tas, então posso cometer um que puder conceber clara e dis-

erro. O erro é devido, portanto, à tintamente. Descobrindo a causadiferença de extensão entre o en- do erro, descubro também comotendimento e a vontade. O enten- evitá-lo: como sei que as repre-

dimento é limitado, e nem todas sentações claras e distintas es-

as representações são concebi- tão garantidas por Deus, limito-

das clara e distintamente. Mas me às afirmações e negações

sendo a vontade ilimitada, ela for- acerca dessas representações.mula juízos também acerca do Assim, meus juízos serão sem-

que não é claro e distinto.   pre verdadeiros. Essa limitação

De quem é a responsabili- voluntária da capacidade infini-

dade? Poderíamos argumentar  ta da vontade é própria de uma

que a responsabilidade seria de criatura racional e finita. A abs-

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tenção de juízo no caso de repre- tas, levando em conta as media-sentações obscuras e confusas ções que configuram a passagem

é a forma de evitar o erro de uma a outra dessas ciências

peitar a religião na qual se foi verdadeiras aquelas que me pa-educado. Para tanto, há que se- recem mais sensatas e as sigo

i i iõ i t i d l

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é a forma de evitar o erro. de uma a outra dessas ciências.Esse ajustamento entre Não há, portanto, como

vontade e entendimento configu- formular uma moral científica era um aspecto da sabedoria. A definitiva no estágio da dúvida ousabedoria consiste em utilizar  mesmo durante a elaboraçãocom equilíbrio e propriedade to- das ciências que lhe são anterio-das as faculdades de que Deus res. No entanto, diversamente

nos dotou, a fim de alcançar o sa- dos outros conhecimentos, aber e a felicidade. O ideal do sa- moral é necessária desde logo,beré o conhecimento claro e dis- uma vez que, mesmo enquantotinto da totalidade das coisas. reconstruo a ciência, devo viver Isso não é possível para uma em sociedade e em contato comcriatura finita. O ideal de sabedo- os outros homens, num certoria é dimensionar o que posso ao país e sob determinadas leis eque sei, isto é, adequar a vontade costumes.  A moral é de direito

à esfera dos conhecimentos cla- um conhecimento derivado deros e distintos que o entendimen- muitos outros anteriores, mas deto pode alcançar. fato não posso prescindir dela

enquanto me dedico a esses ou-Moral provisória e tros conhecimentos.moral definitiva Para resolver esse proble-

 A diferença entre vontade ma, Descartes elabora uma mo-e entendimento repercute inten- ral provisória constituída por trêssamente na vida moral. Sendo o máximas, isto é, três regras desistema de Descartes dedutivo, é caráter geral que deverão orien-preciso caminhar dos fundamen- tar sua conduta enquanto prosse-tos para as conseqüências. Des- gue na busca do saber, ao fim docartes exprime essa idéia na ima- qual poderá talvez formular meto-gem da árvore do saber, cujas dicamente uma moral científica e

raízes são a metafísica; o tronco, definitiva. Essas regras estão ex-a física; e os ramos, a mecânica, postas na terceira parte do Dis-

a medicina e a moral. Isso signifi- curso do método.

ca que uma moral científica só  A primeira máxima consis-poderá ser deduzida de uma me- te em obedecer às leis e costu-tafísica e de uma física comple- mes do país em que se vive e res-

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guir as opiniões mais sensatas, como se tivesse certeza delas.ou seja, as mais moderadas, Trata-se de uma aplicação doaquelas que se situam no meio- bom senso.

termo entre duas posições extre-  A segunda máxima consis-mas, e que são professadas pe- te em, uma vez adotada uma opi-

los homens mais equilibrados nião, segui-la constantementecom os quais se tem que convi- como se estivesse absolutamente

ver.  A razão desse procedimento seguro dela. Pois o bom senso meé simples: tendo me desfeito de indica que provavelmente é mais

todas as opiniões nas quais ante- adequado manter a constância deriormente acreditara, aí incluíam- uma opinião do que variar a todose naturalmente aquelas relativas momento, ainda que a opiniãoa preceitos morais. Não tendo adotada seja apenas  provável.

opinião, mas devendo adotar, ain- Descartes ilustra isso com a ima-da que provisoriamente, alguma, gem de um homem perdido numa

que pelo menos essas sejam as floresta: é mais sensato escolher 

dos homens que me parecem os uma direção, ainda que ao acaso,mais sensatos entre aqueles com e seguir por ela do que ficar dando

os quais vivo. Note-se que não voltas ou experimentando váriostenho ainda meios de saber se caminhos, todos igualmente Bes-tais opiniões são verdadeiras. conhecidos. Pois caminhandoMas, na medida em que elas me sempre na mesma direção é pro-

parecem as mais ponderadas e vável que chegue a algum lugar,

as menos radicais, julgo que são ainda que não necessariamenteverossimilmente as mais adequa- aquele a que gostaria de chegar.das para orientar a minha condu- Vê-se, portanto, que o bom senso

ta.  A verossimilhança é, pois, condena a irresolução, o fato de

o critério de escolha, e o verossí- manter-se numa hesitação perma-

mil é aquilo que parece se aproxi- nente. A vacilação deve ser subs-

mar mais da verdade. Enquanto tituída pela probabilidade. Isso de-opiniões, todas se equivalem, na riva de que, na vida prática, somosmedida em que nenhuma apre- obrigados a tomar decisões, mes-

senta reais fundamentos de- mo que não tenhamos conheci-

monstrativos. Mas, por comodida- mento suficiente de todos os ele-de, adoto como se fossem mais mentos envolvidos.

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Descartes enumera seis sensível e a alma por intermédiopaixões primitivas: admiração, da glândula pineal deve ser ex-ódio amor desejo alegria e tris- piorado

prioridade. Essa precedência se ria não é outra coisa senão a re-dá através do conhecimento e do lação bem estabelecida entre acontrole das paixões até onde teoria e a prática

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ódio, amor, desejo, alegria e tris- piorado.teza. Todas as demais são espé- Mas até onde as paixõescies desses gêneros. As paixões podem ser conhecidas? O própriorelacionam-se com a moral por- caráter misto que as distingue im-que a racionalidade da nossa pede que sejam completamenteconduta dependerá da manei- conhecidas. Sua existência era como utilizarmos as paixões. modo de operar dependem des-

Isso porque todas elas são boas sa região obscura e confusa emem si mesmas. Mesmo o ódio que a alma se comunica com oé excitado em nós quando nos corpo. Assim, não é possível totalrepresentamos algo como incon- racionalidade no domínio das pai-veniente ou nocivo. Portanto, o xões e, por conseqüência, totalconhecimento das paixões é im- racionalidade na esfera da moral.portante para que tenhamos al- Conhecendo tanto quanto possí-

gum controle sobre elas. Esse vel  as paixões, a utilização queconhecimento permitirá distinguir  faremos delas será, também, tan-nas paixões o que consiste em to quanto possível, racional. É,movimentos corporais e o que é portanto, na forma do  possível 

devido ao pensamento. Pois que se dá o conhecimento emexiste um elo de comunicação moral. A racionalidade moral é aentre os impulsos propriamente racionalidade possível. Descartessensíveis e a alma, constituído não prega a negação das pai-pela glândula pineal, que Des- xões, porque seria insensato ten-cartes denomina a sede da alma. tarmos ignorar algo que faz parteIsso não quer dizer que a alma da nossa natureza. Além do mais,se localize nessa glândula, pois tendo sido as paixões, como tudoo que não é extenso não pode o mais, criadas por Deus, não po-ocupar um lugar determinado. dem ser más em si mesmas, masMas é através da glândula pineal cumprem alguma função na re-

que a alma age sobre o corpo, presentação que fazemos doe é também através dela que re- mundo e de nós mesmos; e tam-cebe as excitações provenientes bém no desenvolvimento de nos-da sensibilidade. Para que o en- sa vida. O que devemos levar emtendimento possa agir sobre as conta é que, também no planopaixões, esse circuito entre o das paixões, o intelecto deve ter 

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controle das paixões, até onde teoria e a prática.podemos alcançá-los. No prefácio dos Princípios

 A racionalidade possível de filosofia, Descartes define ana conduta moral faz parte da sa- sabedoria como o perfeito conhe-

bedoria. Se não podemos consti- cimento de tudo o que um homem

tuir um saber acerca das paixões pode saber tanto para a condu-tal como constituímos a respeito ta de sua vida como para a gre-

da física ou da matemática, o que serração da saúde e a invençãosabemos acerca delas deve bas- de todas as artes.  Artes, na termi-tar para mantermos a nossa con- nologia tradicional aqui empre-duta nos limites da racionalidade. gada por Descartes, significa

 A consciência dos limites faz par- o que hoje entendemos por técni-

te do ideal de sabedoria. ca. Lembremos que os ramos daárvore do saber são a mecânica,

CIÊNCIA E TÉCNICA a medicina e a moral. Descartesos coloca como ramos porque

Finalidade do saber  são esferas de saber que se li-

É revelador que Descartes gam a outras mais fundamentais

encontre no saber acerca das e ao mesmo tempo derivam de-paixões um meio de dominá-Ias. ias, como numa árvore os ramos

Isso indica que a ciência tem não se ligam ao tronco e dependemapenas uma finalidade contem- dele para existir, o qual por suaplativa, saber pelo saber, mas vez depende das raízes. Assim

também se vincula ao domínio também, nesse caso, a física de-

prático, aquele do mundo da pende da metafísica, na qual es-

vida. A prioridade do conheci- tão suas raízes, isto é, seus fun-mento intelectual aqui aparece damentos, e a moral, a medici-

não só para ilustrar a maior dig- na e a mecânica dependem danidade do intelecto e sua supe- física, são como que as suas apli-

rioridade em relação à sensibili- cações.dade, mas também para nos in- O estudo das paixões, in-

dicar que uma tal superioridade clusive no que elas possuem de

fornece a possibilidade de orde- especificamente sensível no sen-narmos pela razão todos os as- tido de fisiológico, serve para que

pectos da nossa vida. A sabedo- o intelecto as compreenda e, a

93

 partir daí, as domine. Da mesma aplicação será apenas parcial.maneira,  a arte mecânica consi s- Por is so , como vimos , a v ida mo -

te na aplicação dos conhecimen- ral não pode alcançar a completa

das coisas que o rodeiam, mas suas relações. Descartes chegatalvez sobretudo o domínio que mesmo a dizer, na  Conversação 

 pode impor a essas coisas, fazen-   com  Burman, que grande parte

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te p ç p ç ptos físicos à construção de máqui- racionalidade. Mas o ideal de sa-nas que permitam ao homem  bedoria in clui a completa raciona-aproveitar as forças da natureza,   l ização de todos os aspectos dacomo a água, o vento e o ar. A vida através de um conhecimentomedicina, por sua vez, seria a   perfeito das verdades que dizemarte de aplicar conhecimentos   fí- respeito a esses diferentes as-

sicos e fisiológicos à erradicação  pectos. Isso pode ser apenas umde doenças e ao prolongamento ideal, mas está profundamenteda vida humana. arraigado na concepção cartesia-

São essas, portanto, três na de sabedoria.técnicas através das quais o ho- Vê-se, portanto, que, emmem aplica os conhecimentos Descartes, ciência e técnica es-que obtém nas ciências puras tão estreitamente ligadas. Essacom vistas a promover o progres- vinculação é uma característicaso e o aprimoramento das condi- marcante da civilização moderna,ções de vida. O êxito dessas apli- em que a ciência se prolonga va-cações está diretamente ligado turaimente nas suas aplicações

ao alcance de evidências nos co- técnicas. Descartes, enquantonhecimentos propriamente teóri- fundador da filosofia moderna, si-cos. Por essa razão a verdade tua-se também no início dessetem uma dupla finalidade: deve   caráter tecnológico  que o saber  proporcionar conhecimentos ab- passou a ter na história do mun-solutamente rigorosos, obtidos do moderno.metodicamente, o que em si já Tudo isso deriva da con-significa uma satisfação das ne- cepção da supremacia do sujeito.cessidades intelectuais; e deve Descartes herda do século XVI, perm itir que , a  partir desses co- mais precisamente de Francisnhecimentos, o homem promova Bacon, a idéia de que o homem

os meios adequados para a satis- está destinado não apenas a con-fação das necessidades ineren- templar, através do conhecimen-tes à vida. Quando não se obtém to, os segredos da natureza, masum conhecimento absolutamente também a dominá-Ios. O que dis-evidente, como é o caso do saber  tingue o homem não é apenas aacerca das paixões, o alcance da compreensão que ele pode obter 

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p p , , q g pdo do conhecimento da natureza dos erros que se cometem em fi-um meio de colocá-la a seu servi- losofia seria evitada se conside-ço. Isso faz parte da afirmação da rássemos mais atentamente o

subjetividade, da primazia do in- funcionamento das máquinas.telecto e do exercício da liberda- Ao tempo de Descartes, di-de, privilégios que diferenciam o fundia-se o conhecimento acerca

homem das demais criaturas. de  autômatos e o  interesse por máquinas e mecanismos que

O espírito e a máquina apresentassem a aparência deEm tudo aquilo que não diz um funcionamento independente

respeito à alma, o homem se as- de uma constante intervenção hu-semelha a uma máquina, se bem mana, como, por exemplo, as ins-que perfeita, posto que criada talações hidráulicas que permi- por Deu s. T odas as fun ções o rgâ- tiam o funcionamento de fontesnicas podem ser comparadas, em que a circulação da água sesegundo Descartes, ao funciona- fazia por movimento autônomo. Àmento de uma máquina muito vista de tais engenhos, Descartes

 bem construída. Os seres que concebia que se poderiam inven-

não possuem alma, os animais, tar máquinas que reproduzissemsão constituídos apenas por esse todos os fenômenos do universo.

maquinismo. Essa teoria do ho- A filosofia de Descartes é a pri-mem-máquina e do animal-má- meira em que essa preocupaçãoquina deriva da doutrina m etafísi- aparece de forma explícita.ca da absoluta separação das Mas se por um lado existe

substâncias. Tudo o que é exten- essa independência do físico eso deve ser explicado em termos do mecânico, por outro existe ade extensão e mecanismo. O cor- dimensão do espírito e sua priori- po hum ano e o corpo dos anim ais dade em relação ao corpo. Nodevem ser entendidos como me- homem, por exemplo, a indepen-

canismos, e existe pelo menos a dência do físico não significa que possibilidade teórica de reprodu- este não esteja, de alguma ma-zi-los artificialmente, usando para neira, subordinado ao espírito,isso os conhecimentos que obte- tanto no que respeita ao conheci-mos acerca do funcionamento mento quanto no que concernemecânico dos elementos e de às finalidades últimas da vida hu-

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mana, que só podem ser alcan- cia das qualidades humanas queçadas se houver uma hegemonia estão mais diretamente ligadasdo espírito sobre o corpo. A supe-

 ao espírito. A filosofia da repre-

             Reencontramos, portanto, medida do que pode ser consegui-

a questão do equilíbrio entre sa- do em termos de conhecimento.ber e sabedoria. Um saber com- Mas também significa uma proble-

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p p p ao espírito. A filosofia da reprerioridade metafísica do espírito sentação, que significa o predo-exige que as relações entre as mínio do sujeito naquilo que pos-duas instâncias sejam concebi- sui de interior, exige que a supre-das dessa maneira. Pela mesma macia do sujeito seja a suprema-razão, a existência de máquinas cia do espírito, pois é o pensa-e de mecanismos artificiais está mento que primeiramente definesubordinada às finalidades que o sujeito. A vocação do intelectoo espírito lhes prescreve. Para para o domínio tecnológico doDescartes, é metafisicamente im- mundo está, portanto, inteiramen-possível pensar uma inversão de te subordinada a valores racio-prioridades pela qual a máquina nais, que para Descartes sãopudesse existir independente- aqueles originados do espírito. Omente do entendimento que a domínio da natureza é sobretudoconstrói e lhe assinala uma fun- o domínio do pensamento sobreção; menos ainda se poderia pen- a matéria.sar que o espírito passasse aguiar-se por parâmetros própriosao funcionamento dos mecanis-

mos, configurando uma subordi-nação do espírito ao maquinismo.Há uma oposição entre espírito emecanismo, essencial à doutrinacartesiana do conhecimento. Masessa oposição sempre acabase resolvendo através da doutri-na metafísica da superioridadedo espírito.

Isso significa que a técnicaem Descartes é pensada num

contexto radicalmente humanista.O homem é uma natureza com-posta, mas o que o distingue e lheconfigura a essência é o pensa-mento; portanto, oespírito. O hu- O mais conhecido dos retratos de

Descartes, feito pelo pintor holandêsmanismo significa a preponderân- Frans Hals.

96

g ppletamente desvinculado de con- matização prévia do próprio co-

seqüências para a vida do ho- nhecimento.

mem seria também um saber   A grande novidade de Des-

desvinculado de sentido. Mas a cartes é exatamente esta: na suamaneira como tais conseqüên- filosofia, na sua teoria do conhe-

cias devem incidir sobre a vida cimento, o primeiro problema que

depende da sabedoria. Ela é que deve ser resolvido é o do conhe-prescreve as regras de convivên- cimento. O conhecimento é umcia entre o homem e a verdade. problema para si mesmo. EsseDescartes é um filósofo que vive problema só pode ser resolvido

na era das descobertas, geográfi- através de um exame das condi-cas, científicas e filosóficas. O  pões de conhecimento. Essassentido transformador dessas condições, em princípio, são as

descobertas e a qualidade das faculdades da mente, entendidastransformações que delas deri- como modos de pensar: sensa-vam dependem de um certo equi- ção, imaginação e intelecção.líbrio entre o saber  e o fazer, rela- Uma das tarefas do método será

ção que deve ser governada pelo a de descobrir qual dessas facul-intelecto. A sabedoria articula dades pode clarificara represen-

essa relação. tação, isto é, os dados de conhe-

cimento. Pois a clareza é ao mes-

O RACIONALISMO: MÉTODO mo tempo condição e resultadoOU SISTEMA? do conhecimento.

O problema do alcance doConhecimento e método conhecimento não é algo que

Descartes julgava que mais possa ou deva ser resolvido pelovale não tentar conhecer coisa al- próprio método. O método não

guma do que fazê-lo sem método. precisa necessariamente anteci-E não há dúvida de que uma de par os seus próprios limites. Asuas maiores contribuições à filo- pretensão de conhecimento emsofia e A . ciência foi o método. Mé- Descartes é universal. O método,todo significa caminho, direção portanto, pelo menos em princí-e ao mesmo tempo avaliação e pio, deve ser concebido com um

9 7

alcance universal, ou pelo menos ria de reformulá-Ia, parcial ou in-ili mitado. Isso porque ele não exis- teiramente, uma vez que é pró-te para limitar a razão, mas para prio de hipóteses poderem ser 

Conhecimento e sistema conhecimento. A unidade de am- A unidade do conhecimen- bos é assegurada por essa con-

to não é, pois, metodológica ape- cepção, baseada no teor de cer-

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proporcionar-lhe maior alcance e modificadas quando a experiên-fundamento. Eis por que, em prin- cia efetiva de conhecimento nãocípio, tudo pode ser objeto de co- as confirma.nhecimento. A soberania da razão Sabemos que, na filosofia

não permite que coisa alguma de Descartes, isso não aconte-escape ao exame racional. ceu. E o caso exemplar, como vi-

O princípio de que o méto- mos, é o das percepções qualita-do tem alcance universal é, pois, tivas relativas à existência dasuma hipótese necessária a uma coisas materiais. A razão disso éfilosofia racionalista com preten- que o método, em Descartes, não

sões à totalidade. Mais do que se resume a uma hipótese meto-uma hipótese, é um pressupos- dológica. Ele está carregado deto. Ora, à medida que o conheci- pressupostos metafísicos quemento vai se desenvolvendo no obrigam o filósofo a considerá-loprocesso de reconstrução do sa- como único possível. Entre esses

ber, essa hipótese vai sendo tes- pressupostos, o mais importantetada e esse pressuposto, experi- é o da unidade da razão, do qual

mentado. O que deveria aconte- decorre a unidade do conheci-cer, portanto, quando aparece mento e a unidade do tipo de ob-

um objeto que se revela rebelde jeto a ser conhecido. O conheci-

ao método? Deveríamos, talvez, mento deve expressar a unidadeconcluir daí que o conhecimento da razão: não se pode conceber faz, nessa ocasião, a experiência que a razão modifique seus pro-do li mite do método, e que seria cedimentos em face de diferentes

necessário formular um outro objetos, porque nesse caso elamétodo para dar conta desse ou- não seria una. Racionalismo, emtro objeto. Descartes, não significa, portan-

Mas, como dissemos, o to, a possibilidade da existência

método havia sido concebido de vários procedimentos metódi-como possuindo um alcance uni- cos, todos eles racionais.  A uni-versal, e nada poderia escapar a dade da razão implica a unidade

ele. Se essa pressuposição fosse do método. E isso faz com que,apenas uma hipótese metodológi- na filosofia de Descartes, o co-ca, nada realmente me impedi- nhecimento seja sistemático.

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nas, mas sobretudo metafísica. teza matemática. Já vimos que,Método e metafísica não se sepa- para Descartes, aquilo que fazram. Vemos então por que Des- com que a matemática seja evi-cartes não poderia ter modificado dente é também aquilo que fazo seu método quando topou com com que todo conhecimento sejaobjetos que não se adequavam a racional.

ele. Se o tivesse feito, romperia a Como fica, então, o objetounidade do conhecimento, e este que se mostra como não-adequa-deixaria de ser sistemático. Isso do ao método? Ele é excluído do

nos indica a característica princi- conhecimento, o que é a mesmapal da racionalidade cartesiana, coisa que dizer que ele não é, ver-que é também comum a várias dadeiramente, um objeto. Isso

outras concepções que se desen- porque, quando algo não é ade-

volveram na mesma época. Ra- quado ao método, não é adequa-

cionalidade é inseparável de sis- do ao conhecimento racional. O

tematicidade. Sistema significa caráter do método determina, as-

um todo coeso que obedece aos sim, o tipo de objeto que poderá

mesmos princípios e cujas partes ser conhecido. E como essa deter-se vinculam entre si através dos minação depende de pressuposi-

mesmos procedimentos. Se algo ções de ordem metafísica, ela senão se encaixa nessa totalidade, dá anteriormente ao encontro do

não pode ser aí introduzido, sob objeto, porque as possibilidadespena de ocasionar a dispersão, do método definem antecipada-

que é o contrário da sistematici- mente o campo de objetos quedade. O fundamento do sistema poderão ser conhecidos.

de conhecimento é fornecido pela Isso faz com que aquilomathesis, fundamento da mate- que não pode ser conhecido nãomática e do método. Esse funda- configure falha ou carência do

mento organiza o perfil do conhe- sistema. O sistema, por definição,cimento na medida em que todo é completo. Ele representa a rea-ele deve obedecer aos mesmos   l ização do conhecimento racionalpressupostos metódicos. Existe, de acordo com os requisitos queassim, uma concepção de razão esse conhecimento possui no ra-

anterior ao método e anterior ao cionalismo de Descartes. A pre-

99

tensão à universalidade não fica, da existência mesmo daquilo

dessa forma, prejudicada, pois que não compreendemos ou não

ela dizia respeito à totalidade dos podemos conhecer completa- Conclusão: as duas faces dah t i

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objetos de conhecimento. mente. Entretanto, no que dizMas há, ainda assim, coi- respeito à sistematicidade do co-

sas, representações ou percep- nhecimento, tais coisas estãoções que não poderão se tornar excluídas.objeto de conhecimento e, mes- Há, portanto, um resíduo

mo assim, existem. Vimos Des- de realidade que permanecerá

cartes afirmar que a incompreen- sempre desconhecido. Isso sig-sibilidade da união substancial e nifica que o idealismo de Descar-a incognoscibilidade das percep- tes não é total porque ele reco-ções qualitativas não devem di- nhece que em alguns casos nãominuir a crença que temos na podemos passar da idéia à exis-

existência delas. Pois a veraci- tência somente pela via da análi-

dade divina garante a verdade se metódica.

10 0 L 6378E5

herança cartesiana

Descartes, enquanto autor  A CONSCIÊNCIA E O MUNDO

que viveu no século XVII, estácertamente muito d is tante de nós. Todos os grandes fi lóso fos

O mesmo não ocorre com a sua modernos e contemporâneos con-

filosofia. Ela se situa na raiz do sideraram que o primado da repre-

pensamento moderno e forneceu sentação deve ser visto como um

as coordenadas básicas para progresso decisivo na marcha doo desenvolvimento das grandes espírito filosófico. O fato de a filo-

tendências filosóficas dos últimos sofia tomar como ponto de partida

séculos. Para além das soluções a consciência abriu perspectivas

específicas e das opções deter- de largo alcance para a ciência, a

minadas pelo contexto histórico ética, e de forma geral para a com-

em que Descartes viveu, existe preensão do homem e de suasuma série de elementos na sua realizações. A relação entre liber-

filosofia que ainda hoje alimentam dade e responsabilidade, configu-

a reflexão filosófica. De modo rada na noção cartesiana de sabe-

que devemos entender a filoso- doria, veio conferir à consciência

fia de Descartes não como algo o lugar de centro do universo, pon-

fixado no passado, mas como to ao qual devem ser referidos oum estímulo para que, a partir  conhecimento e a ação.

dela, e mesmo por vezes contra Mas a consciência assumia

ela, possamos equacionar melhor  em Descartes essa função e essa

os nossos próprios problemas importância na exata medida em

e dificuldades. A título de exem- que se punha solitariamente noplo, podemos mencionar duas caminho da construção do saber.

questões gerais em torno das  A coesão do sistema exigia que aquais se organiza uma fecunda ordenação de tudo o que se pode

relação com o fundador do pen- saber, bem como a sua funda-sarnento moderno. mentação, fosse obra de um úni-

1 01

co sujeito. O progresso da ciência Da mesma forma, as trans-

-suas redefinições, ampliações formações históricas que resulta-e especializações — mostrou a  i n-   ram no mundo em que hoje vive-

O MUNDO E A CONSCIÊNCIA o homem é senhor de suas pró-

 prias realizações. Há elementosO dualismo cartesiano e a  para acreditar que, embora os

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q jviabilidade dessa perspectiva. Ao mos serviram para mostrar que,

tempo de Descartes, ainda era do ponto de vista ético, também possível a um único homem domi- não é possível manter de formanar, em certa medida, todo o sa- estrita a auto-suficiência e o isola-

 ber de sua época. A diversificação mento do sujeito. Isso nos levou a

do conhecimento trouxe a neces- reformular a concepção cartesiana

sidade de uma separação: nesse da solidão da consciência, a partir sentido, o próprio progresso da ra- das próprias dificuldades que Des-cionalidade, em que Descartes   cartes experimentou para explicar tanto acreditava, motivou a corre- a intersubjetividade, ou seja, a re-ção desse individualismo, levan- lação entre o Eu e o Outro. As ca-do-nos a aceitar a maior eficácia racterísticas das sociedades mo-de uma divisão de trabalho e de dernas colocam inevitavelmenteuma inter-relação daquilo que  co- diante de nós o problema das  re-

letivamente é produzido em ter- ações intersubjetivas.mos de conhecimento. Ainda aqui, as correções

 No entanto tal modificação que somos obrigados a imprimir 

não contraria a inspiração funda- no pensamento de Descartes nãomental do pensamento cartesia- nos distanciam de seu projetono. Essa relativa impessoalidade fundamental. Pois é mantendo asque hoje caracteriza a tarefa do características de autonomia e li-conhecimento, depois do desapa-  berdade dos sujeitos que deve-recimento da figura do sábio uni- mos procurar alcançar os meiosversal, ainda é herança dos pres- de compreender a relação entresupostos básicos ligados à impor- eles, num mundo regido por pa-tância primordial do sujeito na drões de interdependência social,elaboração do conhecimento. A histórica e política. Vemos, por-interdependência que nos nossos tanto, que as aquisições originais

dias marca tão fortemente o tra- da filosofia cartesiana ainda se balho científico, e mesmo o filo- apresentam como requisitos in-sófico, representa a fidelidade à dispensáveis para que possamosidéia cartesiana de que o saber é resolver, prolongando-as no seufundamentalmente uma constru- alcance, os problemas que Des-ção humana.   cartes deixou em aberto.

10 2

p q ,doutrina da total separação das   meios que o progresso técnico esubstâncias levam, no limite, a científico colocou à disposição

um estranhamento da consciên- dos homens tenham um alcance

cia em relação ao mundo. Mas incalculável, a capacidade de

hoje sabemos que a consciência servir-se de tais meios para pro-

não pode ser posta como uma mover os   fins mais compatíveis

entidade absolutamente autõno- com a felicidade e a dignidadema e separada, a não ser em ter- humanas é limitada. Para Des-

mos estritamente metodológicos.   cartes,  a  sabedoria deveria apro-Por isso somos levados a consi- ximar meios e fins. Mas ele con-derar não apenas o problema das cebia essa relação sem a media-

relações   entre  a consciência e o ção significativa do desenvolvi-

mundo, como também a questão, mento histórico que obrigatoria- para nós talvez mais premente, mente aí se interpõe. A experiên-da consciência no mundo. Pois o cia nos ensinou que o progresso

 progresso e a obtenção da sabe- do saber nem sempre caminha

doria através do correto exercício  junto com o progresso da sabe-

da razão são inseparáveis da doria e que os homens por vezesconsideração da história da hu-  parecem ter dificuldades para li-

manidade, em que Descartes dar com os frutos do conheci-

toca apenas superficialmente. mento: os produtos da ciência

Hoje sabemos que todas as reali- ameaçam voltar-se contra nós. Ézações humanas, e mesmo a re- essa uma perspectiva que con-

lação do homem com aquilo que traria completamente as mais

eventualmente o ultrapassa e o autênticas aspirações da filosofia

transcende, passam pela media- cartesiana, mas que, ainda as-

da história, que é necessaria- sim, se coloca como distorção

mente o nosso contexto de co- a ser compreendida  a partir donhecimento e de ação. ideal de conhecimento como do-

Isso nos leva a procurar  mínio e posse da natureza.

saber, principalmente diante do Desse modo, podemos di-desenvolvimento histórico dos zer que a filosofia de Descartes

últimos tempos, até que ponto  projeta a luz e a sombra. A cons-

1 03

ciência humana, através do sa- dignidade e felicidade, o futurober e dos produtos desse saber, do homem pode apresentar-sepode iluminar o mundo e a vida. como um horizonte sombrio.

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Mas, se o progresso do saber  Entre essas duas faces danão estiver vinculado aos parâ- herança cartesiana, cabe ao ho-

metros de autonomia, liberdade, mem escolher.

1 04

P a r t e   I I

A N T O L O G I A

Sabedoria*

TEORIA E PRÁTICA

ram a considerações e máximas, de que formei um método, pelo qual me parece que eu tenha meio de aumentar gradualmente meu conhecimento, ede alçá-lo, pouco a pouco, ao mais alto ponto, a que a mediocridade de meu

í it t d ã d i h id lh it ti i P i já lhi

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Princípios de filosofia

(Prefácio)**

Primeiramente, desejaria explicar em que consiste a filosofia. Assim,

começando pelos sentidos mais vulgares, essa palavra, "filosofia", significa

o estudo da sabedoria, e por sabedoria não se deve entender apenas a prudên-cia nos negócios, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que aohomem é dado saber, tanto em relação à conduta da sua vida como no queconcerne à conservação da saúde e à invenção das artes. E, para que esseconhecimento assim possa ser, toma-se necessário deduzi-lo das primeirascausas, de tal modo que, para conseguir adquiri-lo, e a isso se chama exata-

mente filosofar, cumpre começar pela pesquisa dessas primeiras causas, ouseja, dos princípios. Estes devem obedecer  a duas condições: uma é que setomem tão claros e evidentes que ao espírito humano não seja permitido du-vidar da sua verdade, desde que se aplique com atenção a considerá-los; aoutra é que seja deles que dependa o conhecimento das outras coisas, de ma-neira que possam ser conhecidos sem elas, mas não reciprocamente. Depois

disso é indispensável deduzir desses princípios o conhecimento das coisasque deles dependem, de tal modo que não haja nada, no encadeamento dasdeduções realizadas, que não seja perfeitamente manifesto. Na verdade, sóDeus é perfeitamente sábio, pois os homens apenas têm maior ou menor co-nhecimento das verdades mais importantes. E suponho que não há nada nes-sa matéria com que os doutos não estejam de acordo.

MÉTODO E VERDADE

Discurso do método

(Primeira parte)

[...]  Não temerei dizer que penso ter tido muita felicidade de mehaver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos que me conduzi-

* Os títulos não são os originais da obra de Descartes.* * A referência completa se encontra na Bibliografia, no final do livro.

10 6

espírito e a curta duração de minha vida lhe permitam atingir. Pois já colhidele tais frutos que, embora no juízo que faço de mim próprio eu procure

 pender mais para o lado da desconfiança do que para o da presunção, e que,mirando com um olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos detodos os homens, não haja quase nenhum que não me pareça vão e inútil,não deixo de obter extrema satisfação do progresso que penso já ter feito na

 busca da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre

as ocupações dos homens puramente homens, há alguma que seja solida-mente boa e importante, ouso crer que é aquela que escolhi.

Crítica da cultura

TRANSMISSÃO DO SABER

Discurso do método

(Primeira parte)

Fui nutrido nas letras desde a infância, e por me haver persuadido

de que, por meio delas, se podia adquirir um conhecimento claro e segurode tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las.Mas, logo que terminei todo esse curso de estudos, ao cabo do qual secostuma ser recebido na classe dos doutos, mudei inteiramente de opi-nião. Pois me achava enleado em tantas dúvidas e erros que me parecianão haver obtido outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, estiveranuma das mais célebres escolas da Europa, onde pensava que deviamexistir homens sapientes, se é que existiam em algum lugar da Terra.Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo não me tendocontentado com as ciências que nos ensinavam, percorrera todos os livros

que tratam daquelas que são consideradas as mais curiosas e as mais ra-ras, que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízosque os outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgasseminferior a meus condiscípulos, embora entre eles houvesse alguns já des-tinados a preencher os lugares de nossos mestres. E, enfim, o nosso sécu-lo parecia-me tão florescente e tão fértil em bons espíritos como qualquer 

10 7

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[...]Eis por que, tão logo a idade me permitiu sair da sujeição de meus

 preceptores, deixei inteiramente o estudo das letras. E, resolvendo-me a nãomais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim pró-

As regras do método

Discurso do método

(Segunda parte)

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mais procurar outra ciência, além daquela que se poderia achar em mim pró prio, ou então no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha moci-dade em viajar, em ver Cortes e exércitos, em freqüentar gente de diversoshumores e condições, em recolher diversas experiências, em provar-me amim mesmo nos reencontros que a fortuna me propunha e, por toda parte, emfazer tal reflexão sobre as coisas que se me apresentavam, que eu pudesse

tirar delas algum proveito. Pois afigurava-se-me poder encontrar muito mais

verdade nos raciocínios que cada qual efetua no respeitante aos negócios quelhe importam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve puni-lo logo em seguida,do que naqueles que um homem de letras faz em seu gabinete, sobre especu-lações que não produzem efeito algum e que não lhe trazem outra conse-qüência senão talvez a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto maisdistanciadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artifícioque precisou empregar no esforço de torná-las verossímeis. E eu sempre tive

um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.

Método e autonomia da razão

Discurso do método

(Segunda parte)

[...] Pensei que as ciências dos livros, ao menos aquelas cujas ra-zões são apenas prováveis e que não apresentam quaisquer demonstrações,

 pois se compuseram e avolumaram pouco a pouco com opiniões de mui

diversas pessoas, não se acham, de modo algum, tão próximas da verdadequanto os simples raciocínios que um homem de bom senso pode efetuar naturalmente com respeito às coisas que se lhe apresentam. E assim ainda, pensei que, como todos nós fomos crianças antes de sermos homens, e como

nos foi preciso por muito tempo ser governados por nossos apetites e nos-sos preceptores, que eram amiúde contrários uns aos outros, e que, nem uns

nem outros, nem sempre, talvez nos aconselhassem o melhor, é quase im- possível que nossos juízos sejam tão puros ou tão sólidos como seriam setivéssemos o uso inteiro de nossa razão desde o nascimento e se não tivés-semos sido guiados senão por ela.

1 10

(Segunda parte)

Eu estudara um pouco, sendo mais jovem, entre as partes da filoso-fia, a lógica, e, entre as matemáticas, a análise dos geômetras e a álgebra,três artes ou ciências que pareciam dever contribuir com algo para o meudesígnio. Mas, examinando-as, notei que, quanto à lógica, os seus silogis-mos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar a

outrem as coisas que já se sabem, ou mesmo, como a arte de Lúlio, parafalar, sem julgamento, daquelas que se ignoram, do que para aprendê-las. E

embora ela contenha, com efeito, uma porção de preceitos muito verdadei-ros e muito bons, há todavia tantos outros misturados de permeio que sãoou nocivos ou supérfluos, que é quase tão difícil separá-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mármore que nem sequer estáesboçado. Depois, com respeito à análise dos antigos e à álgebra dos mo-dernos, além de se estenderem apenas a matérias muito abstratas, e de não

 parecerem de nenhum uso, a primeira permanece sempre tão adstrita à con-sideração das figuras que não pode exercitar o entendimento sem fatigar muito a imaginação; e esteve-se de tal forma sujeito, na segunda, a certas

regras e certas cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que emba-raça o espírito, em lugar de uma ciência que o cultiva. Por essa causa, pen-

sei ser mister procurar algum outro método que, compreendendo as vanta-gens desses três, fosse isento de seus defeitos. E, como a multidão de leisfornece amiúde escusas aos vícios, de modo que um Estado é bem melhor dirigido quando, tendo embora muito poucas, são estritamente cumpridas;assim, em vez desse grande número de preceitos de que se compõe a lógi-ca, julguei que me bastariam os quatro seguintes, desde que tomasse a fir-

me e constante resolução de não deixar uma só vez de observá-los.O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira

que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidado-

samente a precipitação e a prevenção, e de nada incluir em meus juízosque não se apresentasse tão clara e tão distintamente a meu espírito, queeu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinas-se em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem paramelhor resolvê-las.

11 1

O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando

 pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a

 pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e su-

pondo mesmo uma ordementre os que não se precedem naturalmente uns

que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente im-

 pedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e indu-

 bitáveis, do que às que nos parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar

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 pondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns

aos outros.E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e

revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.

Essas longas cadeias de razões, todas simples e fáceis, de que osgeômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demons-

trações, haviam-me dado ocasião de imaginar que todas as coisas possíveisde cair sob o conhecimento dos homens seguem-se umas às outras da mes-

ma maneira e que, contanto que nos abstenhamos somente de aceitar por 

verdadeira qualquer que não o seja, e que guardemos sempre a ordem ne-

cessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver quaisquer tão afas-

tadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram.

A dúvida

DÚVIDA METÓDICA

Meditações metafísicas

(Primeira meditação)

Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros

anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquiloque depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser se-

não mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seria-

mente, uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até

então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se

quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências.

Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que

consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-eiseriamente e com liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas

opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a cabo; mas, uma vez

11 2

motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar 

todas. E, para isso, não é necessário que examine cada uma em particular,

o que seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces car-

rega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei ini-

cialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões

estavam apoiadas.

DÚVIDA NATURAL

Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro eseguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos: ora, experimentei algu-

mas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se

fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez.

Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere

às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas ou-

tras, das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêsse-

mos por intermédio deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto

ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outrascoisas dessa natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo

sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo

cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres;

que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou

imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê? São loucos e eu

não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.

Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte,

que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas

coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigí-lia. Quantas vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar,

que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente

nu dentro de meu leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos

que contemplo este papel; que esta cabeça que eu mexo não está dormente;

que é com desígnio e propósito deliberado que estendo esta mão e que a

11 3

sinto: o que ocorre no sono não parece ser tão claro nem tão distinto quantotudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso, lembro-me de ter sido mui-

tas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-menesse pensamento, vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios

Eis por que, talvez, daí nós não concluamos mal se dissermos que afísica, a astronomia, a medicina e todas as outras ciências dependentes daconsideração das coisas compostas são muito duvidosas e incertas; masque a aritmética, a geometria e as outras ciências dessa natureza, que não

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p , j q q qconcludentes, nem marcas assaz certas por onde se possa distinguir nitida-

mente a vigilia do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu pasmo étal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.

Suponhamos, pois, agora, que estamos adormecidos   e que todas es-

sas particularidades, a saber, que abrimos os olhos, que mexemos a cabeça,que estendemos as mãos, e coisas semelhantes, não passam de falsas ilu-

sões; e pensemos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo,não são tais como os vemos. Todavia, é preciso ao menos confessar que as

coisas que nos são representadas durante o sono são como quadros e pintu-ras, que não podem ser formados senão à semelhança de algo real e verda-deiro; e que assim, pelo menos, essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça,mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, mas verdadeirase existentes. Pois, na verdade, os pintores, mesmo quando se empenhamcom o maior artifício em representar sereias e sátiros por formas estranhase extraordinárias, não lhes podem, todavia, atribuir formas e naturezas in-teiramente novas, mas apenas fazem certa mistura e composição dos mem-

 bros de diversos animais; ou então, se porventura sua imaginação for assaz

extravagante para inventar algo de tão novo, que jamais tenhamos vistocoisa semelhante, e que assim sua obra nos represente uma coisa puramen-

te fictícia e absolutamente falsa, certamente ao menos as cores com queeles a compõem devem ser verdadeiras.

DÚVIDA METAFÍSICA

[...] Ainda que essas coisas gerais, a saber, olhos, cabeça, mãos eoutras semelhantes, possam ser imaginárias, é preciso, todavia, confessar que há coisas ainda mais simples e mais universais, que são verdadeiras e

existentes, de cuja mistura, nem mais nem menos do que da mistura de

algumas cores verdadeiras, são formadas todas essas imagens das coisasque residem em nosso pensamento, quer verdadeiras e reais, quer fictícias efantásticas. Desse gênero de coisas é a natureza corpórea em geral, e suaextensão; juntamente com a figura das coisas extensas, sua quantidade ougrandeza, e seu número; como também o lugar em que estão, o tempo que

mede sua duração e outras coisas semelhantes.

11 4

q , g , qtratam senão de coisas muito simples e muito gerais, sem cuidar muito emse elas existem ou não na natureza, contêm alguma coisa de certo e indubi-tável. Pois, quer eu esteja acordado, quer esteja dormindo, dois mais três

formarão sempre o número cinco, e o quadrado nunca terá mais do quequatro lados; e não parece possível que verdades tão patentes possam ser'suspeitas de alguma falsidade ou incerteza.

Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que háum Deus que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou.Ora, quem me poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que nãohaja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma figura,nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os senti-

mentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de ma-neira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumasvezes os outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber commaior certeza, pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me enganetodas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumeroos lados de um quadrado, ou em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se

é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser que Deusnão tenha querido que eu seja decepcionado dessa maneira, pois ele é con-

siderado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse   A. sua bondade fazer-

me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhecontrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não pos-so duvidar de que ele mo permita.

Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de umDeus tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas.

Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fon-te da verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pen-

sarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisasexteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve parasurpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absoluta-

mente desprovido de mãos, de olhos, de  came, de sangue, desprovido de

quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas.Permanecerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse

11 5

meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verda-

de, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. Eis por que cuida-rei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e pre-

pararei tão bemmeu espírito a todos os ardis desse grande enganador que

dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma

coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de ter examinado cui-

dadosamente todas as coisas cumpre enfim concluir e ter por constante que

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 pararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande enganador que,

 por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.

O Eu pensante

A PRIMEIRA CERTEZA

Meditações metafísicas

(Segunda meditação)

Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo

 para outra parte, não pedia nada mais, exceto um ponto que fosse fixo e

seguro. Assim, terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante

feliz para encontrar somente uma coisa que seja certa e indubitável.

Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persua-do-me de que jamais existiu de tudo quanto minha memória referta de men-

tiras me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, afigura, a extensão, o movimento e o lugar são apenas ficções de meu espíri-to. O que poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outracoisa a não ser que nada há no mundo de certo.

Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que aca- bo de julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá

algum Deus, ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensa-mentos? Isso não é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por 

mim mesmo. Eu então, pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei

que tivesse qualquer sentido ou qualquer corpo. Hesito, no entanto, pois que

se segue daí? Serei de tal modo dependente do corpo e dos sentidos que não

 possa existir sem eles? Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo,que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos al-

guns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente

não, eu existia, sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei algu-

ma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso e mui ardilo-

so que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há, pois,

1 16

dadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que

esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as ve-

zes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.

[• .]

PENSAMENTO: ESSÊNCIA DO EU

[...]Eu, o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extre-

mamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega

todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me? Posso estar cer-to de possuir a menor de todas as coisas que atribuí há pouco à natureza

corpórea? Detenho-me em pensar nisso com atenção, passo e repasso todasessas coisas em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que

exista em mim. Não é necessário que me demore a enumerá-las. Passemos,

 pois, aos atributos da alma e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo

corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem alimen-

tar-me. Um outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo;além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais

reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; e

verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não

 poder ser separado de mim. Eu sou, eu existo: isso é certo; mas por quanto

tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez,

ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser oude existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro:

nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é,

um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significa-

ção me era anteriormente desconhecida. Ora, eu sou uma coisa verdadeirae verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pen-

sa. E que mais? Excitarei ainda minha imaginação para procurar saber se

não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros que se chama o

corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos

esses membros; não sou um vento, um sopro, um vapor, nem algo que pos-

11 7

so fingir e imaginar, posto que supus que tudo isso não era nada e que, semmudar essa suposição, verifico que não deixo de estar seguro de que soualguma coisa.

Mas também pode ocorrer que essas mesmas coisas, que suponho

Mas vejo bem o que seja: meu espírito apraz-se em extraviar-se e não podeainda conter-se nos justos limites da verdade. Soltemos-lhe, pois, ainda umavez, as rédeas a fim de que, vindo, em seguida, a libertar-se delas suave eoportunamente, possamos mais facilmente dominá-lo e conduzi-lo.

C l id ã d i i

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não existirem, já que me são desconhecidas, não sejam efetivamente dife-rentes de mim, que eu conheço? Nada sei a respeito; não o discuto atual-mente, não posso dar meu juízo senão a coisas que me são conhecidas:reconheci que eu era, e procuro o que sou, eu que reconheci ser. Ora, émuito certo que essa noção e conhecimento de mim mesmo, assim precisa-mente tomada, não depende em nada das coisas cuja existência não me é

ainda conhecida; nem, por conseguinte, e com mais razão de nenhuma da-quelas que são fingidas e inventadas pela imaginação. E mesmo esses ter-mos, fingir e imaginar, advertem-me de meu erro; pois eu fingiria efetiva-mente se imaginasse ser alguma coisa, posto que imaginar nada mais é doque contemplar a figura ou a imagem de uma coisa corporal. Ora, sei jácertamente que eu sou, e que, ao mesmo tempo, pode ocorrer que todasessas imagens, e, em geral, todas as coisas que se relacionam à natureza do

corpo sejam apenas sonhos ou quimeras. Em seguimento disso, vejo clara-mente que teria tão pouca razão ao dizer: excitarei minha imaginação paraconhecer mais distintamente o que sou, como se dissesse: estou atualmenteacordado e percebo algo de real e de verdadeiro; mas, visto que não o per-

cebo ainda assaz nitidamente, dormiria intencionalmente a fim de que meussonhos mo representassem com maior verdade e evidência. E, assim, reco-

nheço certamente que nada, de tudo o que posso compreender por meio daimaginação, pertence a esse conhecimento que tenho de mim mesmo e queé necessário lembrar e desviar o espírito dessa maneira de conceber a fimde que ele próprio possa reconhecer muito distintamente sua natureza.

PRIORIDADE DO PENSAMENTO (DO CONHECIMENTOINTELECTUAL)

[...] Não me posso impedir de crer que as coisas corpóreas, cujas

imagens se formam pelo meu pensamento, e que se apresentam aos senti-dos, sejam mais distintamente conhecidas do que essa não sei que parte demim mesmo que não se apresenta à imaginação: embora, com efeito, sejauma coisa bastante estranha que coisas que considero duvidosas e distantessejam mais claras e mais facilmente conhecidas por mim do que aquelasque são verdadeiras e certas e que pertencem à minha própria natureza.

11 8

Comecemos pela consideração das coisas mais comuns e que acre-ditamos compreender mais distintamente, a saber, os corpos que tocamos eque vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral, pois essas noções ge-rais são ordinariamente mais confusas, porém de qualquer corpo em parti-

cular. Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tiradoda colmeia: ele não perdeu ainda a doçura do mel que continha, retém ain-

da algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura, suagrandeza, são patentes; é duro, é frio, tocamo-lo e, se nele batermos, produ-zirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer co-

nhecer um corpo encontram-se neste.Mas eis que, enquanto falo, é aproximado do fogo: o que nele resta-

va de sabor exala-se, o odor se esvai, sua cor se modifica, sua figura sealtera, sua grandeza aumenta, ele torna-se líquido, esquenta-se, mal o po-demos tocar e, embora nele batamos, nenhum som produzirá. A mesmacera permanece após essa modificação? Cumpre confessar que permanece:e ninguém o pode negar. O que é, pois, que se conhecia deste pedaço de

cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada de tudo o que no-

tei nela por intermédio dos sentidos, posto que todas as coisas que se apre-sentavam ao paladar, ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição encon-tram-se mudadas e, no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fossecomo penso atualmente, a saber, que a cera não era nem essa doçura domel, nem esse agradável odor das flores, nem essa brancura, nem essa figu-ra, nem esse som, mas somente um corpo que um pouco antes me apareciasob certas formas e que agora se faz notar sob outras. Mas o que será, falan-do precisamente, que eu imagino quando a concebo dessa maneira? Consi-

deremo-la atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem àcera, vejamos o que resta. Certamente nada permanece senão algo de ex-tenso, flexível e mutável. Ora, o que é isto: flexível e mutável? Não estouimaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada ede passar do quadrado a uma figura triangular? Certamente não, não é isso,

 posto que a concebo capaz de receber uma infinidade de modificações si-milares e eu não poderia, no entanto, percorrer essa infinidade com minha

imaginação e, por conseguinte, essa concepção que tenho da cera não serealiza através da minha faculdade de imaginar.

11 9

E, agora, que é essa extensão? Não será ela igualmente desconheci-

da, já que na cera que se funde ela aumenta e fica ainda maior quando está

inteiramente fundida e muito mais ainda quando o calor aumenta? E eu não

conceberia claramente e segundo a verdade o que é a cera, se não pensasse

 portanto, o que é requerido para me tomar certo de alguma coisa? Nesse primeiro conhecimento só se encontra uma clara e distinta percepção da-

quilo que conheço; a qual, na verdade, não seria suficiente para me asse-

gurar de que é verdadeira se em algum momento pudesse acontecer que

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que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que jamais

i maginei. É preciso, pois, que eu concorde que não poderia mesmo conce- ber pela imaginação o que é essa cera e que somente meu entendimento é

quem o concebe; digo "este pedaço de cera em particular", pois para a cera

em geral é ainda mais evidente. Ora, qual é essa cera que não pode ser 

concebida senão pelo entendimento ou pelo espírito? Certamente é a mes-ma que vejo, que toco, que imagino e a mesma que conhecia desde o come-

ço. Mas o que é de notar é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebi-

da, não é uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e jamais o foi,

embora assim o parecesse anteriormente, mas somente uma inspeção do

espírito, que pode ser imperfeita e confusa, como era antes, ou clara e dis-

tinta, como é presentemente, conforme minha atenção se dirija mais oumenos às coisas que existem nela e das quais é composta.

[...]Mas, enfim, eis que insensivelmente cheguei aonde queria; pois, já

que é coisa presentemente conhecida por mim que, propriamente falando,

só concebemos os corpos pela faculdade de entender em nós existente enão pela imaginação nem pelos sentidos, e que não os conhecemos pelo

fato de os ver ou de tocá-los, mas somente por os conceber pelo pensamen-

to, reconheço com evidência que nada há que me seja mais fácil de conhe-

cer do que meu espírito.

Deus e verdade

 A QUESTÃO DO FUNDAMENTO DO SABER

Meditações metafísicas

(Terceira meditação)

[...] Considerarei mais exatamente se talvez não se encontrem ab-

solutamente em mim outros conhecimentos que não tenha ainda percebi-

do. Estou certo de que sou uma coisa pensante: mas não saberei também,

12 0

uma coisa que eu concebesse tão clara e distintamente se verificasse fal-

sa. E, portanto, parece-me que já posso estabelecer como regra geral quetodas as coisas que concebemos mui clara e mui distintamente são todas

verdadeiras.Todavia, recebi e admiti acima várias coisas como muito certas e

muito manifestas, as quais, entretanto, reconheci depois serem duvidosas e

incertas. Quais eram, pois, essas coisas? Eram a terra, o céu, os astros etodas as outras coisas que percebia por intermédio de meus sentidos. Ora, o

que é que eu concebia clara e distintamente nelas? Certamente nada maisexceto que as idéias ou os pensamentos dessas coisas se apresentavam a

meu espírito. E ainda agora não nego que essas idéias se encontrem emmim. Mas havia ainda outra coisa que eu afirmava, e que, devido ao hábito

que tinha de acreditar nela, pensava perceber mui claramente, embora na

verdade não a percebesse de modo algum, a saber, que havia coisas fora de

mim donde procediam essas idéias e às quais elas eram inteiramente seme-

lhantes. E era nisso que eu me enganava; ou, se eu julgava talvez segundo a

verdade, não havia nenhum conhecimento que eu tivesse que fosse causada verdade de meu julgamento.

Mas quando considerava alguma coisa de muito simples e de muito

fácil no tocante à aritmética e à geometria, por exemplo, que dois e três juntos produzem o número cinco, e outras coisas semelhantes, não as con-

cebia eu pelo menos bastante claramente para assegurar que eram verda-

deiras? Certamente, se julguei depois que se podia duvidar dessas coisas,não foi por outra razão senão porque me veio ao espírito que talvez algumDeus tivesse podido me dar uma tal natureza que eu me enganasse mesmo

no concernente às coisas que me parecem as mais manifestas. Mas todas as

vezes que essa opinião acima concebida do soberano poder de um Deus seapresenta a meu pensamento, sou constrangido a confessar que lhe é fácil,

se ele o quiser, proceder de tal modo que eu me engane mesmo nas coisas

que acredito conhecer com uma evidência muito grande. E, ao contrário,todas as vezes que me volto para as coisas que penso conceber mui clara-

mente sou de tal maneira persuadido delas que sou levado, por mim mes-

12 1

mo, a estas palavras: engane-me quem puder, ainda assim jamais poderá

fazer que eu nada seja enquanto eu pensar que sou algo; ou que algum dia

'seja verdade que eu não tenha jamais existido, sendo verdade agora que eu

existo; ou então que dois e três juntos façam mais ou menos do que cinco,

Não é preciso temer também que se possa encontrar falsidade

nas afecções ou vontades; pois, ainda que possa desejar coisas más, ou

mesmo que jamais existiram, não é por isso, todavia, menos verdade que

as desejo.

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ou coisas semelhantes, que vejo claramente não poderem ser de outra ma-

neira senão como as concebo.E, por certo, posto que não tenho nenhuma razão de acreditar que

haja algum Deus que seja enganador, e mesmo que não tenha ainda con-

siderado aquelas que provam que há um Deus, a razão de duvidar que

depende somente dessa opinião é bem frágil e, por assim dizer, metafísi-ca. Mas, a fim de poder afastá-la inteiramente, devo examinar se há um

Deus, tão logo a ocasião se apresente; e, se achar que existe um, devo

também examinar se ele pode ser enganador: pois, sem o conhecimento

dessas duas verdades, não vejo como possa jamais estar certo de coisa

alguma. E a fim de que eu possa ter a ocasião de examinar isso sem inter-

romper a ordem de meditação que me propus, que é d e passar gradativa-

mente das noções que encontrar em primeiro lugar no meu espírito para

aquelas que aí poderei achar depois, cumpre aqui que eu divida todos os

meus pensamentos em certos gêneros e considere em quais desses gêne-

ros há propriamente verdade ou erro.

IDÉIAS E JUÍZOS

Entre meus pensamentos, alguns são como as imagens das coisas, e

só àqueles convém propriamente o nome de idéia: como no momento em

que eu represento um homem ou uma quimera, ou o céu, ou um ano, ou

mesmo Deus. Outros, além disso, têm algumas outras formas: como, no

momento em que eu quero, que eu temo, que eu afirmo ou que eu nego,

então concebo efetivamente uma coisa como o sujeito da ação de meu espí-

rito, mas acrescento também alguma outra coisa por essa ação à idéia que

tenho daquela coisa; e, desse gênero de pensamentos, uns são chamados

vontades ou afecções, e outros juízos.

Agora, no que concerne às idéias, se as consideramos somente nelasmesmas e não as relacionamos a alguma outra coisa, elas não podem, pro-

priamente falando, ser falsas; pois, quer eu imagine uma cabra ou uma qui-mera, não é menos verdadeiro que eu imagino tanto uma quanto a outra.

122

Assim, restam tão-somente os juízos, em relação aos quais eu devo

acautelar-me para não me enganar. Ora, o principal erro e o mais comumque se pode encontrar consiste em que eu julgue que as idéias que estão em

mim são semelhantes ou conformes às coisas que estão fora de mim; pois,

certamente, se eu considerasse as idéias apenas como certos modos ou for-

mas de meu pensamento, sem querer relacioná-las a algo de exterior, mal

poderiam elas dar-me ocasião de falhar.

Ora, dessas idéias, umas me parecem ter nascido comigo, outras ser

estranhas e vir de fora, e as outras ser feitas e inventadas por mim mesmo.

Pois, que eu tenha a faculdade de conceber o que é aquilo que geralmente

se chama uma coisa ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que

não o obtenho em outra parte senão em minha própria natureza; mas se

ouço agora algum ruído, se vejo o Sol, se sinto calor, até o presente julguei

que esses sentimentos procediam de algumas coisas que existem fora de

mim; e enfim parece-me que as sereias, os hipogrifos e todas as outras qui-

meras semelhantes são ficções e invenções de meu espírito. Mas também

talvez eu possa persuadir-me de que todas essas idéias são do gênero dasque eu chamo de estranhas e que vêm de fora ou que nasceram todas comi-

go ou, ainda, que foram todas feitas por mim; pois ainda não lhes descobriclaramente a verdadeira origem. E o que devo fazer principalmente neste

ponto é considerar, no tocante àquelas que me parecem vir de alguns obje-

tos localizados fora de mim, quais as razões que me obrigam a acreditá-las

semelhantes a esses objetos.

A primeira dessas razões é que me parece que isso me é ensinadopela natureza; e a segunda, que experimento em mim próprio que essas

idéias não dependem, de modo algum, de minha vontade; pois amiúde se

apresentam a mim mau grado meu, como agora, quer queira quer não, eu

sinto calor, e por essa razão persuado-me de que esse sentimento, ou essa

idéia de calor, é produzido em mim por algo diferente de mim mesmo, ou

seja, pelo calor do fogo ao pé do qual me encontro. E nada vejo que pareça

mais razoável do que julgar que essa coisa estranha envia-me e imprime

em mim sua semelhança, mais do que qualquer outra coisa.

12 3

Agora é preciso que eu veja se essas razões são suficientemente for-

tes e convincentes. Quando digo que me parece que isso me é ensinado pela natureza, entendo somente por essa palavra, natureza, uma certa incli-

nação que me leva a acreditar nessa coisa, e não uma luz natural que me

Tudo isso me leva a conhecer suficientemente que até esse momentonão foi por um julgamento certo e premeditado, mas apenas por um cego e

temerário impulso, que acreditei haver coisas fora de mim, e diferentes de

meu ser, as quais, pelos órgãos de meus sentidos ou por qualquer outroi j i id i i i i i

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faça conhecer que ela é verdadeira. Ora, essas duas coisas diferem muitoentre si; pois eu nada poderia colocar em dúvida daquilo que a luz natural

me revela ser verdadeiro, assim como ela me fez ver, há pouco, que, do fato

de eu duvidar, podia concluir que existia. E não tenho em mim outra facul-

dade, ou poder, para distinguir o verdadeiro do falso, que me possa ensinar 

que aquilo que essa luz me mostra como verdadeiro não o é, e na qual eume possa fiar tanto quanto nela. Mas, no que se refere a inclinações quetambém me parecem ser naturais, notei freqüentemente, quando se tratava

de escolher entre as virtudes e os vícios, que elas não me levaram menos ao

mal do que ao bem; eis por que não tenho motivo de segui-las tampouco no

referente ao verdadeiro e ao falso.E, quanto à outra razão, segundo a qual essas idéias devem provir de

alhures, porquanto não dependem de minha vontade, tampouco a acho mais

convincente. Pois, da mesma forma que as inclinações, de que falava há pou-

co, se encontram em mim, não obstante não se acordarem sempre com minha

vontade, e assim talvez haja em mim alguma faculdade ou poder próprio para

 produzir essas idéias sem auxilio de quaisquer coisas exteriores, embora elanão me seja ainda conhecida; como, com efeito, sempre me pareceu até aqui

que, quando durmo, elas se formam em mim sem a ajuda dos objetos que

representam. E, enfim, ainda que eu estivesse de acordo que elas são causa-

das por esses objetos, não é uma conseqüência necessária que lhes devam ser 

semelhantes. Pelo contrário, notei amiúde, em muitos exemplos, haver uma

grande diferença entre o objeto e sua idéia. Como, por exemplo, encontro em

meu espírito duas idéias do Sol inteiramente diversas: uma toma sua origem

nos sentidos e deve ser colocada no gênero daquelas que disse acima provi-

rem de fora, e pela qual o Sol me parece extremamente pequeno; a outra é

tomada nas razões da astronomia, isto é, em certas noções nascidas comigo,ou, enfim, é formada por mim mesmo, de qualquer modo que seja, e pela

qual o Sol me parece muitas vezes maior do que a Terra inteira. Por certo,essas duas idéias que concebo do Sol não podem ser ambas semelhantes ao

mesmo Sol; e a razão me faz crer que aquela que vem imediatamente de sua

aparência é a que lhe é mais dessemelhante.

12 4

meio que seja, enviam-me suas idéias ou imagens e imprimem em mim

suas semelhanças.

REALIDADE OBJETIVA E IDÉIA DO INFINITO

[...] Há ainda uma outra via para pesquisar se, entre as coisas dasquais tenho em mim as idéias, há algumas que existem fora de mim. Asaber, caso essas idéias sejam tomadas somente na medida em que são cer-tas formas de pensar, não reconheço entre elas nenhuma diferença ou desi-

gualdade, e todas parecem provir de mim de uma mesma maneira; mas,

considerando-as como imagens, dentre as quais algumas representam umacoisa e as outras uma outra, é evidente que elas são bastante diferentes en-

tre si. Pois, com efeito, aquelas que me representam substâncias são, sem

dúvida, algo mais e contêm em si (por assim falar) mais realidade objetiva,

isto é, participam, por representação, num maior número de graus de ser ou

de perfeição do que aquelas que representam apenas modos ou acidentes.

Além do mais, aquela pela qual eu concebo um Deus soberano, eterno,infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas ascoisas que estão fora dele; aquela, digo, tem certamente em si mais realida-

de objetiva do que aquelas pelas quais as substâncias finitas me são repre-

sentadas.

Agora, é coisa manifesta pela luz natural que deve haver ao menos

tanta realidade na causa eficiente e total quanto no seu efeito: pois de onde

é que o efeito pode tirar sua realidade senão de sua causa? E como poderia

essa causa lha comunicar se não a tivesse em si mesma?

Daí decorre não somente que o nada não poderia produzir coisa al-

guma, mas também que o que é mais perfeito, isto é, o que contém em si

mais realidade, não pode ser uma decorrência e uma dependência do me-

nos perfeito. E essa verdade não é somente clara e evidente nos seus efei-

tos, que possuem essa realidade que os filósofos chamam de atual ou for-

mal, mas também nas idéias onde se considera somente a realidade que eleschamam de objetiva: por exemplo, a pedra que ainda não foi, não somente

12 5

não pode agora começar a ser, se não for produzida por uma coisa que possui em si formalmente, ou eminentemente, tudo o que entra na compo-sição da pedra, ou seja, que contém em si as mesmas coisas ou outras mais

excelentes do que aquelas que se encontram na pedra; e o calor não poded id bj d l i d i ã f

está em mim nem formal nem eminentemente e que, por conseguinte, não

 posso, eu mesmo, ser-lhe a causa, daí decorre necessariamente que não exis-

to sozinho no mundo, mas que há ainda algo que existe e que é a causadessa idéia; ao passo que, se não se encontrar em mim uma tal idéia, nãoterei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da exis

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ser produzido em um objeto que dele era privado anteriormente se não for 

 por uma coisa que seja de uma ordem, de um grau ou de um gênero aomenos tão perfeito quanto o calor, e assim os outros. Mas ainda, além dis-

so, a idéia do calor, ou da pedra, não pode estar em mim se não tiver sido aí

colocada por alguma causa que contenha em si ao menos tanta realidade

quanto aquela que concebo no calor ou na pedra. Pois, ainda que essa causanão transmita à minha idéia nada de sua realidade atual ou formal, nem por 

isso se deve imaginar que essa causa deva ser menos real; mas deve-sesaber que, sendo toda idéia uma obra do espírito, sua natureza é tal que não

exige de si nenhuma outra realidade formal além da que recebe e toma deempréstimo do pensamento ou do espírito, do qual ela é apenas um modo,

isto é, uma maneira ou forma de pensar. Ora, a fim de que uma idéia conte-

nha uma tal realidade objetiva de preferência a outra, ela o deve, sem dúvi-

da, a alguma causa, na qual se encontra ao menos tanta realidade formal

quanto essa idéia contém de realidade objetiva. Pois, se supomos que existe

algo na idéia que não se encontra em sua causa, cumpre, portanto, que ela

obtenha esse algo do nada; mas, por imperfeita que seja essa maneira de ser  pela qual uma coisa é objetivamente ou por representação no entendimento

 por sua idéia, decerto não se pode dizer, no entanto, que essa maneira ou

essa forma não seja nada, nem por conseguinte que essa idéia tire sua ori-

gem do nada.

DA IDÉIA DE DEUS À REALIDADE DE DEUS

[...] A luz natural me faz conhecer evidentemente que as idéias são

em mim como quadros, ou imagens, que podem na verdade facilmente não

conservar a perfeição das coisas de onde foram tiradas, mas que jamais podem conter algo de maior ou de mais perfeito.

E quanto mais longa e cuidadosamente examino todas essas coisas,tanto mais clara e distintamente reconheço que elas são verdadeiras. Mas,

enfim, que concluirei de tudo isso? Concluirei que, se a realidade objetiva

de alguma de minhas idéias é tal que eu reconheça claramente que ela não

12 6

terei nenhum argumento que me possa convencer e me certificar da exis-

tência de qualquer outra coisa além de mim mesmo; pois procurei-os a to-

dos cuidadosamente e não pude, até agora, encontrar nenhum.

Ora, entre essas idéias, além daquela que me representa a mim mes-

mo, sobre a qual não pode haver aqui nenhuma dificuldade, há uma outraque me representa um Deus; outras, as coisas corporais e inanimadas; ou-

tras, os anjos; outras, os animais; outras, enfim, que me representam ho-

mens semelhantes a mim. Mas, no que se refere às idéias que me represen-

tam outros homens ou animais, ou anjos, concebo facilmente que podem

ser formadas pela mistura e composição de outras idéias que tenho das coi-

sas corporais e de Deus, ainda que não houvesse, fora de mim, no mundo,

outros homens, nem quaisquer animais ou anjos. E quanto às idéias dascoisas corporais, nada reconheço de tão grande nem de tão excelente que

não me pareça poder provir de mim mesmo; pois, se as considero de mais

 perto, e se as examino da mesma maneira como examinava, há pouco, aidéia da cera, verifico que pouquíssima coisa nela se encontra que eu con-

ceba clara e distintamente: a saber, a grandeza ou a extensão em longura,largura e profundidade; a figura que é formada pelos termos e pelos limitesdessa extensão; a situação que os corpos diferentemente figurados guar-

dam entre si; e o movimento ou a modificação dessa situação; aos quais

 podemos acrescentar a substância, a duração e o número. Quanto às outrascoisas, como a luz, as cores, os sons, os odores, os sabores, o calor, o frio e

as outras qualidades que caem sob o tato, encontram-se em meu pensamen-

to com tanta obscuridade e confusão que ignoro mesmo se são verdadeirasou falsas e somente aparentes, isto é, se as idéias que concebo dessas quali-

dades são, com efeito, as idéias de algumas coisas reais, ou se não me re-

 presentam apenas seres quiméricos que não podem existir.

Quanto às idéias claras e distintas que tenho das coisas corporais, há

algumas dentre elas que, parece, pude tirar da idéia que tenho de mim mes-

mo, como a que tenho da substância, da duração, do número e de outras

coisas semelhantes. Pois, quando penso que a pedra é uma substância, ou

uma coisa que é por si capaz de existir, e em seguida que sou uma substân-

12 7

cia, embora eu conceba de fato que sou uma coisa pensante e não extensa, e

que a pedra, ao contrário, é uma coisa extensa e não pensante, e que, assim,entre essas duas concepções há uma notável diferença, elas parecem, toda-

via, concordar na medida em que representam substâncias. Da mesma ma-

i d l b lé di d id

não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia de

um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria ascarências de minha natureza?

DEUS: FUNDAMENTO DE TODAS AS CERTEZAS E CAUSA DE

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neira, quando penso que sou agora e me lembro, além disso, de ter sidooutrora e concebo mui diversos pensamentos, cujo número conheço, então

adquiro em mim as idéias da duração e do número que, em seguida, posso

transferir a todas as outras coisas que quiser.

Quanto às outras qualidades de cujas idéias são compostas as coisas

corporais, a saber, a extensão, a figura, a situação e o movimento de lugar,é verdade que elas não estão formalmente em mim, posto que sou apenasuma coisa que pensa; mas, já que são somente certos modos da substância,

e como que as vestes sob as quais a substância corporal nos aparece, e que

sou, eu mesmo, uma substância, parece que elas podem estar contidas em

mim eminentemente.

Portanto, resta tão-somente a idéia de Deus, na qual é preciso consi-

derar se há algo que não possa ter provindo de mim mesmo? Pelo nome de

Deus entendo uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onis-

ciente, onipotente e pela qual eu próprio e todas as coisas que são (se éverdade que há coisas que existem) foram criadas e produzidas. Ora, essas

vantagens são tão grandes e tão eminentes que, quanto mais atentamente asconsidero, menos me persuado de que essa idéia possa tirar sua origem de

mim tão-somente. E, por conseguinte, é preciso necessariamente concluir,

de tudo o que foi dito antes, que Deus existe; pois, ainda que a idéia dasubstância esteja em mim, pelo próprio fato de ser eu uma substância, eu

não teria, todavia, a idéia de uma substância infinita, eu que sou um ser finito, se ela não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que

fosse verdadeiramente infinita.

E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadei-

ra idéia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que

compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz:

 pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na subs-tância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma ma-neira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é,

de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pu-

desse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que

12 8

DEUS: FUNDAMENTO DE TODAS AS CERTEZAS E CAUSA DE

TODAS AS COISAS

Essa mesma idéia é também mui clara e distinta porque tudo o que meuespírito concebe clara e d istintamente de real e de verdadeiro, e que contém emsi alguma perfeição, está contido e encerrado inteiramente nessa idéia.

E isso não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o

infinito, ou mesmo que se encontre em Deus uma infinidade de coisas que

eu não possa compreender, nem talvez também atingir de modo algum pelo

 pensamento: pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita

e limitada, não possa compreendê-lo; e basta que eu conceba bem isso, e

que julgue que todas as coisas que concebo claramente, e nas quais sei que

há alguma perfeição, e talvez também uma infinidade de outras que ignoro,

estão em Deus formal ou eminentemente, para que a idéia que dele tenhoseja a mais verdadeira, a mais clara e a mais distinta dentre todas as que se

acham em meu espírito.

[...]Ora, se eu fosse independente de todo outro ser, e fosse eu próprio o

autor de meu ser, certamente não duvidaria de coisa alguma, não mais con-

ceberia desejos e, enfim, não me faltaria perfeição alguma; pois eu me teria

dado todas aquelas de que tenho alguma idéia e assim seria Deus.

E não devo imaginar que as coisas que me faltam são talvez mais

difíceis de adquirir do que aquelas das quais já estou de posse; pois, aocontrário, é bem certo que foi muito mais difícil que eu, isto é, uma coisa

ou uma substância pensante, haja saído do nada, do que me seria adquirir as luzes e os conhecimentos de muitas coisas que ignoro, e que são apenas

acidentes dessa substância. E, assim, sem dificuldade, se eu mesmo me ti-

vesse dado esse mais de que acabo de falar, isto é, se eu fosse o autor de

meu nascimento e de minha existência, eu não me teria privado ao menosde coisas que são de mais fácil aquisição, a saber, de muitos conhecimentos

de que minha natureza está despojada; não me teria tampouco privado denenhuma das coisas que estão contidas na idéia que concebo de Deus, pois

12 9

não há nenhuma que me pareça de mais difícil aquisição; e se houvessealguma, certamente ela me pareceria tal (supondo que tivesse por mim to-

das as outras coisas que possuo), porque eu sentina que minha força acaba-

ria nesse ponto e não seria capaz de alcançá-lo.E i d t l t h id

alguma. E, por conseguinte, não resta outra coisa a dizer senão que, como

a idéia de mim mesmo, ela nasceu e foi produzida comigo desde o mo-mento em que fui criado.

E certamente não se deve achar estranho que Deus, ao me criar,haja posto em mim essa idéia para ser como que a marca do operário

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E ainda que possa supor que talvez tenha sido sempre como sou ago-

ra, nem por isso poderia evitar a força desse raciocínio, e não deixo deconhecer que é necessário que Deus seja o autor de minha existência. Pois

todo o tempo de minha vida pode ser dividido em uma infinidade de partes,

cada uma das quais não depende de maneira alguma das outras; e assim do

fato de ter sido um pouco antes não se segue que eu deva ser atualmente, anão ser que neste momento alguma causa me produza e me crie, por assim

dizer, novamente, isto é, me conserve.

Com efeito, é uma coisa muito clara e muito evidente (para todos

os que considerarem com atenção a natureza do tempo) que uma subs-tância, para ser conservada em todos os momentos de sua duração, pre-cisa do mesmo poder e da mesma ação que seriam necessários para pro-

duzi-la e criá-la de novo, caso não existisse ainda. De sorte que a luznatural nos mostra claramente que a conservação e a criação não dife-rem senão com respeito à nossa maneira de pensar, e não em efeito.

Cumpre, pois, apenas que eu interrogue a mim mesmo para saber se

 possuo algum poder e alguma virtude que seja capaz de fazer de talmodo que eu, que sou agora, seja ainda no futuro: pois, já que eu souapenas uma coisa pensante (ou ao menos já que não se trata até aqui

 precisamente senão dessa parte de mim mesmo), se um tal poder resi-disse em mim, decerto eu deveria ao menos pensá-lo e ter conhecimen-to dele: mas não sinto nenhum poder em mim e por isso reconheço evi-dentemente que dependo de algum ser diferente de mim.

DEUS E O EU PENSANTE

Resta-me apenas examinar de que maneira adquiri essa idéia. Pois

não a recebi dos sentidos e nunca ela se ofereceu a mim contra minhaexpectativa, como o fazem as idéias das coisas sensíveis quando essascoisas se apresentam ou parecem apresentar-se aos órgãos exteriores de

meus sentidos. Não é também uma pura produção ou ficção de meu espí-

rito; pois não está em meu poder diminuir-lhe ou acrescentar-lhe coisa

13 0

haja posto em mim essa idéia para ser como que a marca do operário

impressa em sua obra; e não é tampouco necessário que essa marca seja

algo diferente da própria obra. Mas, pelo simples fato de Deus me ter criado, é bastante crível que ele, de algum modo, me tenha produzido àsua imagem e semelhança e que eu conceba essa semelhança (na qual aidéia de Deus se acha contida) por meio da mesma faculdade pela qualme concebo a mim próprio; isso quer dizer que, quando reflito sobre mim,

não só conheço que sou uma coisa imperfeita, incompleta e dependen-te de outrem, que tende e aspira incessantemente a algo de melhor e demaior do que sou, mas também conheço, ao mesmo tempo, que aquele de

quem dependo possui em si todas essas grandes coisas a que aspiro ecujas idéias encontro em mim, não indefinidamente e só em potência,mas que ele as desfruta de fato, atual e infinitamente e, assim, que ele éDeus. E toda a força do argumento de que aqui me servi para provar aexistência de Deus consiste em que reconheço que seria impossível queminha natureza fosse tal como é, ou seja, que eu tivesse em mim a idéia

de um Deus, se Deus não existisse verdadeiramente; esse mesmo Deus,digo eu, do qual existe uma idéia em mim, isto é, que possui todas essas

altas perfeições de que nosso espírito pode possuir alguma idéia, sem, no

entanto, compreendê-las todas, que não é sujeito a carência alguma e que

nada tem de todas as coisas que assinalam alguma imperfeição.Daí é bastante evidente que ele não pode ser embusteiro, posto que

a luz natural nos ensina que o embuste depende necessariamente de algu-

ma carência.

A causa do erro e como evitá-lo

Meditações metafísicas

( Quarta meditação)

[...] Experimento em mim mesmo certa capacidade de julgar, que

sem dúvida recebi de Deus, do mesmo modo que todas as outras coisas que

13 1

 possuo; e como ele não quereria iludir-me, é certo que ma deu tal que não

 poderei jamais falhar, quando a usar como é necessário. E não restaria ne-

nhuma dúvida quanto a essa verdade, se não fosse possível, ao que parece,

inferir dela a conseqüência de que assim nunca me enganei; pois se devo a

Deus tudo o que possuo e se ele não me deu nenhum poder para falhar

algum, desde que se tome a palavra "erro" em sua significação própria. E,ainda que haja talvez uma infinidade de coisas neste mundo das quais não

tenho idéia alguma em meu entendimento, não se pode por isso dizer queele seja privado dessas idéias como de algo que seja devido à sua natureza,

mas somente que não as tem; porque com efeito não há razão alguma

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Deus tudo o que possuo e se ele não me deu nenhum poder para falhar,

 parece que nunca devo enganar-me. E, na verdade, quando penso apenas

em Deus, não descubro em mim nenhuma causa de erro ou de falsidade;

mas em seguida, retornando a mim, a experiência me ensina que estou, não

obstante, sujeito a uma infinidade de erros e, ao procurar de mais perto a

causa deles, noto que ao meu pensamento não se apresenta somente umaidéia real e positiva de Deus, ou seja, de um ser soberanamente perfeito,

mas também, por assim dizer, uma certa idéia negativa do nada, isto é,daquilo que está infinitamente distante de toda sorte de perfeição; e que sou

como que um meio entre Deus e o nada, isto é, colocado de tal maneira

entre o soberano ser e o não-ser que nada se encontra em mim, na verdade,

que me possa conduzir ao erro, na medida em que um soberano ser me

 produziu; mas que, se me considero participante de alguma maneira do nada

ou do não-ser, isto é, na medida em que não sou eu próprio o soberano ser,

acho-me exposto a uma infinidade de faltas, de modo que não devo espan-

tar-me se me engano.Assim, conheço que   o erro enquanto tal não é algo de real que de-

 penda de Deus, mas que é apenas uma carência; e, portanto, que não tenho

necessidade, para falhar, de algum poder que me tenha sido dado por Deus

 particularmente para esse efeito, mas que ocorre que eu me engane pelo

fato de o poder que Deus me doou para discernir o verdadeiro do falso não

ser infinito em mim.

[• •]E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são

meus erros (que apenas testemunham haver imperfeição em mim), descubro

que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer 

que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu Livre arbítrio; isto

é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade. Isso porque só

 pelo entendimento não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas con-

cebo as idéias das coisas que posso assegurar ou negar. Ora, considerando-o

assim precisamente, pode-se dizer que jamais encontraremos nele erro

13 2

mas somente que não as tem; porque, com efeito, não há razão algumacapaz de provar que Deus devesse dar-me uma faculdade de conhecer maior e mais ampla do que aquela que me deu; e, por hábil e engenhoso

operário que eu mo represente, nem por isso devo pensar que devesse pôr em cada uma de suas obras todas as perfeições que pôde pôr em algumas.

 Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre

arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu

a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quais-

quer limites.

[...1De tudo isso reconheço que nem o poder da vontade, o qual recebi

de Deus, é em si mesmo a causa de meus erros, pois é muito amplo emuito perfeito na sua espécie; nem tampouco o poder de entender ou de

conceber: pois, nada concebendo senão por meio desse poder que Deusme conferiu para conceber, não há dúvida de que tudo o que concebo,concebo como é necessário e não é possível que nisso me engane. Donde

nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade mui-to mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mes-mos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais,

sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e esco-

lhe o mal pelo bem ou o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me

engane e peque.

[...]Ora, se me abstenho de formular meu juízo sobre uma coisa, quando

não a concebo com suficiente clareza e distinção, é evidente que o utilizo

muito bem e que não estou enganado; mas, se me determino a negá-la ou a

assegurá-la, então não me sirvo como devo de meu livre arbítrio; se garanto

o que não é verdadeiro, é evidente que me engano, e até mesmo, ainda que

 julgue segundo a verdade, isso não ocorre senão por acaso e eu não deixode falhar e de utilizar mal o meu livre arbítrio; pois a luz natural nos ensinaque o conhecimento do entendimento deve sempre preceder a determina-

ção da vontade.

13 3

Essência e existência

 A CERTEZA DA EXTENSÃO GEOMÉTRICAE DAS DEMAIS ESSÊNCIAS MATEMÁTICAS

alguma, de meu espírito; como parece, pelo fato de que se podem de-monstrar diversas propriedades desse triângulo, a saber, que os três ân-gulos são iguais a dois retos, que o maior ângulo é oposto ao maior ladoe outras semelhantes, as quais agora, quer queira, quer não, reconheçomui claramente e mui evidentemente estarem nele, ainda que não tenha

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Meditações metafísicas

(Quinta meditação)

[...] Antes de examinar se há tais coisas que existam fora de mim,devo considerar suas idéias na medida em que se encontram em meu pen-

samento e ver quais são distintas e quais são confusas.Em primeiro lugar, imagino distintamente essa quantidade que os

filósofos chamam vulgarmente de "quantidade contínua", ou a extensãoem longura, largura e profundidade que há nessa quantidade ou, antes, na

coisa à qual ela é atribuída. Demais, posso enumerar nela muitas partesdiversas e atribuir a cada uma dessas partes toda sorte de grandezas, defiguras, de situações e de movimentos; e, enfim, posso consignar a cada umdesses movimentos toda espécie de duração.

E não conheço essas coisas com distinção apenas quando as consi-dero em geral; mas, também, por pouco que eu a isso aplique minha aten-

ção, concebo uma infinidade de particularidades referentes aos números, às

figuras, aos movimentos e a outras coisas semelhantes, cuja verdade se re-vela com tanta evidência e se acorda tão bem com minha natureza que,quando começo a descobri-las, não parece que aprendo algo de novo, mas,antes, que me recordo de algo que já sabia anteriormente, isto é, que perce-

 bo coisas que estavam já no meu espírito, embora eu ainda não tivesse vol-

tado meu pensamento para elas.E o que, aqui, estimo mais considerável é que encontro em mim

uma infinidade de idéias de certas coisas que não podem ser considera-das um puro nada, embora talvez elas não tenham nenhuma existênciafora de meu pensamento, e que não são fingidas por mim, conquantoesteja em minha liberdade pensá-las ou não pensá-las; mas elas possu-

em suas naturezas verdadeiras e imutáveis. Como, por exemplo, quan-do imagino um triângulo, ainda que não haja talvez em nenhum lugar do mundo, fora de meu pensamento, uma tal figura, e que nunca tenhahavido alguma, não deixa, entretanto, de haver uma certa natureza ouforma, ou essência determinada, dessa figura, a qual é imutável e eter-na, que eu não inventei absolutamente e que não depende, de maneira

13 4

antes pensado nisso de maneira alguma, quando imaginei pela primeiravez um triângulo; e, portanto, não se pode dizer que eu as tenha fingido

e inventado.

 A ESSÊNCIA DE DEUS IMPLICA A SUA EXISTÊNCIA

[...] Se do simples fato de que posso tirar de meu pensamento aidéia de alguma coisa segue-se que tudo quanto reconheço pertencer cla-ra e distintamente a essa coisa pertence-lhe de fato, não posso tirar dissoum argumento e uma prova demonstrativa da existência de Deus? É certoque não encontro menos em mim sua idéia, isto é, a idéia de um ser sobe-

ranamente perfeito, do que a idéia de qualquer figura ou de qualquer nú-mero que seja. E não conheço menos clara e distintamente que uma exis-tência atual e eterna pertence à sua natureza do que conheço que tudoquanto posso demonstrar de qualquer figura ou de qualquer número per-tence verdadeiramente à natureza dessa figura ou desse número. E, por-

tanto, ainda que tudo o que concluí nas Meditações anteriores não fossede modo algum verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se emmeu espírito ao menos como tão certa quanto considerei até agora todasas verdades das matemáticas, que se referem apenas aos números e àsfiguras: embora, na verdade, isso não pareça de início inteiramente mani-festo e se afigure ter alguma aparência de sofisma. Pois, estando habitua-do em todas as outras coisas a fazer distinção entre a existência e a essên-cia, persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da es-sência de Deus e de que, assim, é possível conceber Deus como não exis-tindo atualmente. Mas, não obstante, quando penso nisso com maior aten-ção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essên-cia de Deus, tanto quanto da essência de um triângulo retilíneo não podeser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, daidéia de uma montanha, a idéia de um vale; de sorte que não sinto menosrepugnância em conceber um Deus (isto é, um ser soberanamente perfei-to) ao qual falte existência (isto é, ao qual falte alguma perfeição), do queem conceber uma montanha que não tenha vale.

13 5

DEUS COMO FUNDAMENTO DA VERDADE E DA CIÊNCIA

Meditações metafísicas

(Sexta meditação)

® Conhecimento e mundo sensível

EXISTÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS:POSSIBILIDADE E PROBABILIDADE

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[...] Após ter reconhecido haver um Deus, porque ao mesmo tem-

 po reconheci também que todas as coisas dependem dele e que ele não é

enganador, e que, em seguida a isso, julguei que tudo quanto conceboclara e distintamente não pode deixar de ser verdadeiro: ainda que nãomais pense nas razões pelas quais julguei tal ser verdadeiro, desde queme lembre de tê-lo compreendido clara e distintamente, ninguém podeapresentar-me razão contrária alguma que me faça jamais colocá-lo emdúvida; e, assim, tenho dele uma ciência certa e verdadeira. E essa mes-

ma ciência se estende também a todas as outras coisas que me lembro ter 

outrora demonstrado, como as verdades da geometria e outras semelhan-tes: pois, que me poderão objetar, para obrigar-me a colocá-las em dúvi-

da? Dir-me-ão que minha natureza é tal que sou muito sujeito a enganar-

me? Mas já sei que me não posso enganar nos juízos cujas razões conhe-

ço claramente. Dir-me-ão que outrora tive muitas coisas por verdadeiras

e certas, as quais mais tarde reconheci serem falsas? Mas eu não havia

conhecido clara nem distintamente tais coisas e, não conhecendo aindaessa regra pela qual me certifico da verdade, era levado a acreditar nelas

 por razões que reconheci depois serem menos fortes do que então imagi-

nara. O que mais poderão, pois, objetar-me? Que talvez eu durma (como

eu mesmo me objetei acima) ou que todos os pensamentos que tenho atu-

almente não são mais verdadeiros do que os sonhos que imaginamos ao

dormir? Mas, mesmo que estivesse dormindo, tudo o que se apresenta a

meu espírito com evidência é absolutamente verdadeiro. E, assim, reco-

nheço muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciência depen-

dem do tão-só conhecimento do verdadeiro Deus: de sorte que, antes que

eu o conhecesse, não podia saber perfeitamente nenhuma outra coisa. E,

agora que o conheço, tenho o meio de adquirir uma ciência perfeita notocante a uma infinidade de coisas, não somente das que existem nelemas também das que pertencem à natureza corpórea, na medida em que

ela pode servir de objeto às demonstrações dos geômetras, os quais nãose preocupam, de modo algum, com sua existência.

13 6

Meditações metafísicas

(Sexta meditação)

Só me resta agora examinar se existem coisas materiais: e certamen-

te, ao menos, já sei que as pode haver, na medida em que são consideradas

como objeto das demonstrações de geometria, visto que, dessa maneira, eu

as concebo mui clara e distintamente. Pois não há dúvida de que Deus tem

o poder de produzir todas as coisas que sou capaz de conceber com distin-

ção; e nunca julguei que lhe fosse impossível fazer algo, a não ser quando

encontrasse contradição em poder concebê-la. Demais, a faculdade de ima-

ginar, que existe em mim e da qual vejo por experiência que me sirvo quan-

do me aplico à consideração das coisas materiais, é capaz de me persuadir 

da existência delas: pois, quando considero atentamente o que é a imagina-ção, verifico que ela nada mais é que uma aplicação da faculdade que co-

nhece ao corpo que lhe é intimamente presente e, portanto, que existe.

E, para tornar isso mais manifesto, noto primeiramente a diferençaque há entre a imaginação e a pura intelecção, ou concepção. Por exemplo,

quando imagino um triângulo, não o concebo apenas como uma figura com-

 posta e determinada por três linhas, mas, além disso, considero essas trêslinhas como presentes pela força e pela aplicação interior de meu espírito; e

é propriamente isso que chamo imaginar. Quando quero pensar em um qui-

liógono, concebo na verdade que é uma figura composta de mil lados tãofacilmente quanto concebo que um triângulo é uma figura composta de ape-

nas três lados; mas não posso imaginar os mil lados de um quiliógono como

faço com os três lados de um triângulo, nem, por assim dizer, vê-los como presentes com os olhos de meu espírito. E conquanto, segundo o costume

que tenho de me servir sempre de minha imaginação, quando penso nascoisas corpóreas, ocorra que, concebendo um quiliógono, eu me represente

confusamente alguma figura, é, todavia, evidente que essa figura não é um

quiliógono, posto que em nada difere daquela que me representaria se pen-

sasse em um miriágono, ou em qualquer outra figura de muitos lados; e que

13 7

ela não serve, de maneira alguma, para descobrir as propriedades que esta- belecem a diferença entre o quiliógono e os demais polígonos.

Quando se trata de considerar um pentágono, é bem verdade que pos-so conceber sua figura, assim como a do quiliógono, sem o auxílio da ima-ginação; mas posso também imaginá-la aplicando a atenção de meu espírito

espírito por esse modo de pensar, que chamo "sentir", posso tirar alguma prova certa da existência das coisas corpóreas.

E, primeiramente, recordarei em minha memória quais são as coisasque até aqui considerei como verdadeiras, tendo-as recebido pelos senti-dos, e sobre que fundamentos estava apoiada minha crença. E, depois, exa-

i i õ b i id l á l dú id E

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a cada um de seus cinco lados e, ao mesmo tempo, à área ou ao espaço queeles encerram. Assim, conheço claramente que tenho necessidade de particu-lar contenção de espírito para imaginar, da qual não me sirvo absolutamente

 para conceber; e essa particular contenção de espírito mostra evidentementea diferença que há entre a imaginação e a intelecção, ou concepçãO pura.

 Noto, além disso, que essa virtude de imaginar que existe em mim,na medida em que difere do poder de conceber, não é de modo algum ne-cessária à minha natureza ou à minha essência, isto é, à essência de meuespírito; pois, ainda que não a possuísse de modo algum, está fora de dúvi-da que eu permaneceria sempre o mesmo que sou atualmente: donde me parece que se pode concluir que ela depende de algo que difere de meuespírito. E concebo facilmente que, se algum corpo existe ao qual meu es-

 pírito esteja conjugado e unido de tal maneira que ele possa aplicar-se a

considerá-lo quando lhe aprouver, pode acontecer que por esse meio eleimagine as coisas corpóreas: de sorte que essa maneira de pensar diferesomente da pura intelecção no fato de que o espírito, concebendo, volta-se

de alguma forma para si mesmo e considera algumas das idéias que ele temem si; mas, imaginando, ele se volta para o corpo e considera nele algo deconforme à idéia que formou de si mesmo ou que recebeu pelos sentidos.Concebo, digo, facilmente que a imaginação pode realizar-se dessa manei-

ra, se é verdade que há corpos; e, uma vez que não posso encontrar nenhu-ma outra via para mostrar como ela se realiza, conjeturo daí provavelmenteque os há: mas não é senão provavelmente e, embora examine cuidadosa-mente todas as coisas, não verifico, no entanto, que, dessa idéia distinta danatureza corporal que tenho em minha imaginação, possa tirar algum argu-mento que conclua necessariamente a existência de algum corpo.

Ora, acostumei-me a imaginar muitas coisas além dessa naturezacorpórea que é o objeto da geometria, a saber, as cores, os sons, os sabores,a dor e outras coisas semelhantes, embora menos distintamente. E na medi-da em que percebo muito melhor tais coisas pelos sentidos, por intermédiodos quais, e da memória, elas parecem ter chegado até minha imaginação,creio que, para examiná-las mais comodamente, vem a propósito examinar ao mesmo tempo o que é sentir, e ver se, das idéias que recebo em meu

13 8

minarei as razões que me obrigaram em seguida a colocá-las em dúvida. E,

enfim, considerarei o que devo a respeito delas agora acreditar.Primeiramente, pois, senti que possuía cabeça, mãos, pés e todos os

outros membros de que é composto esse corpo que considerava como partede mim mesmo ou, talvez, como o todo. Demais, senti que esse corpo esta-

va colocado entre muitos outros, dos quais era capaz de receber diversascomodidades e incomodidades e advertia essas comodidades por um certosentimento de prazer ou de voluptuosidade e essas incomodidades por umsentimento de dor. E, além desse prazer e dessa dor, sentia também emmim a fome, a sede e outros semelhantes apetites, como também certasinclinações corporais para a alegria, a tristeza, a cólera e outras paixõessemelhantes; e, no exterior, além da extensão, das figuras, dos movimentosdos corpos, notava neles a dureza, o calor e todas as outras qualidades quese revelam ao tato. Demais, aí notava a luz, cores, odores, sabores e sons,cuja variedade me fornecia meios de distinguir o céu, a terra, o mar e geral-mente todos os outros corpos uns dos outros.

E, por certo, considerando as idéias de todas essas qualidades que seapresentavam ao meu pensamento, e as quais eram as únicas que eu sentia própria e imediatamente, não era sem razão que eu acreditava sentir coisasinteiramente diferentes de meu pensamento, a saber, corpos de onde proce-diam essas idéias.

INSUFICIÊNCIA DO CONHECIMENTO SENSÍVEL

[...] Muitas experiências arruinaram, pouco a pouco, todo o créditoque eu dera aos sentidos. Pois observei muitas vezes que torres, que de longese me afiguravam redondas, de perto pareciam-me quadradas, e que colos-sos, erigidos sobre os mais altos cimos dessas torres, pareciam-me pequenasestátuas quando as olhava de baixo; e, assim, em uma infinidade de outras

ocasiões, achei erros nos juízos fundados nos sentidos exteriores. E não so-mente nos sentidos exteriores, mas mesmo nos interiores: pois haverá coisamais íntima ou mais interior do que a dor? E, no entanto, aprendi outrora dealgumas pessoas, que tinham os braços e as pernas cortados, que lhes parecia

13 9

ainda, algumas vezes, sentir dores nas partes que lhes haviam sido ampu-tadas; isso me dava motivo de pensar que eu não podia também estar seguro

de ter dolorido algum de meus membros, embora sentisse dores nele.E a essas razões de dúvida acrescentei ainda, pouco depois, duas

outras bastante gerais. A primeira é que jamais acreditei sentir algo, estan-d d d ã d bé l di i

sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele.

Ainda mais, encontro em mim faculdades de pensar totalmente parti-culares e distintas de mim, as faculdades de imaginar e de sentir, sem as quais

 posso de fato conceber-me clara e distintamente por inteiro, mas que nãod bid i i é b â i i li à

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do acordado, que não pudesse, também, algumas vezes, acreditar sentir, ao

estar dormindo; e como não creio que as coisas que me parece que sinto aodormir procedam de quaisquer objetos existentes, não via por que devia ter antes essa crença no tocante àquelas que me parece que sinto ao estar acor-dado. E a segunda é que, não conhecendo ainda ou, antes, fingindo não

conhecer o autor de meu ser, nada via que pudesse impedir que eu tivessesido feito de tal maneira pela natureza que me enganasse mesmo nas coisas

que me pareciam ser as mais verdadeiras.

PROVA DA EXISTÊNCIA DAS COISAS MATERIAIS

[ . . . ] Agora que começo a melhor conhecer-me a mim mesm o e a desco- brir ma is cla ram ente o au tor de m inha orig em, nã o pe nso , na verd ade, que devatemerariamente admitir todas as coisas que os sentidos parecem ensinar-nos,mas não penso tampouco que deva colocar em dúvida todas em geral.

E, primeiramente, porque sei que todas as coisas que concebo cla-

ra e distintamente podem ser produzidas por Deus tais como as concebo, basta que possa conceber clara e distintamente uma coisa sem uma outra para estar certo de que uma é distinta ou diferente da outra, já que podemser postas separadamente, ao menos pela onipotência de Deus; e não im- porta por que potência se faça essa separação, para que seja obrigado a julgá-las diferentes. E, portanto, pelo próprio fato de que conheço comcerteza que existo, e que, no entanto, noto que não pertence necessaria-mente nenhuma outra coisa à minha natureza ou à minha essência, a nãoser que sou uma coisa que pensa, concluo efetivamente que minha essên-cia consiste somente em que sou uma coisa que pensa ou uma substânciada qual toda a essência ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora

talvez (ou, antes, certamente, como direi logo mais) eu tenha um corpo aoqual estou muito estreitamente conjugado, todavia, já que, de um lado,tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que souapenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéiadistinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e quenão pensa, é certo que esse eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que

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 podem ser concebidas sem mim, isto é, sem uma substância inteligente àqual estejam ligadas. Pois, na noção que temos dessas faculdades, ou (para

servir-me dos termos da Escola) no seu conceito formal, elas encerram algu-ma espécie de intelecção: donde concebo que são distintas de mim, como asfiguras, os movimentos e os outros modos ou acidentes dos corpos o são dos

 próprios corpos que os sustentam.Reconheço, também, em mim algumas outras faculdades, como as

de mudar de lugar, de colocar-me em múltiplas posturas e outras semelhan-tes, que não podem ser concebidas, assim como as precedentes, sem algu-ma substância à qual estejam ligadas, e nem, por conseguinte, existir semela; mas é muito evidente que essas faculdades, se é verdade que existem,devem ser ligadas a alguma substância corpórea ou extensa, e não a umasubstância inteligente, posto que, no conceito claro e distinto dessas facul-dades, há de fato alguma sorte de extensão que se acha contida, mas demodo nenhum qualquer inteligência. Demais, encontra-se em mim certafaculdade passiva de sentir, isto é, de receber e conhecer as idéias das coi-

sas sensíveis; mas ela me seria inútil, e dela não me poderia servir absoluta-mente, se não houvesse em mim, ou em outrem, uma faculdade ativa, ca-

 paz de formar e de produzir essas idéias. Ora, essa faculdade ativa não podeexistir em mim enquanto sou apenas uma coisa que pensa, visto que ela não

 pressupõe meu pensamento, e, também, que essas idéias me são freqüente-mente representadas sem que eu em nada contribua para tanto e mesmo,amiúde, mau grado meu; é preciso, pois, necessariamente, que ela exista

em alguma substância diferente de mim, na qual toda a realidade que háobjetivamente nas idéias por ela produzidas esteja contida formal ou emi-nentemente (como notei antes). E essa substância é ou um corpo, isto é,uma natureza corpórea, na qual está contida formal e efetivamente tudo oque existe objetivamente e por representação nas idéias; ou então é o pró-

 prio Deus, ou alguma outra criatura mais nobre do que o corpo, na qual isso

mesmo esteja contido eminentemente.Ora, não sendo Deus de modo algum enganador, é muito patente

que ele não me envia essas idéias imediatamente por si mesmo, nem tam-

 bém por intermédio de alguma criatura, na qual a realidade das idéias não

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esteja contida formalmente, mas apenas eminentemente. Pois, não me ten-do dado nenhuma faculdade para conhecer que isso seja assim, mas, aocontrário, uma fortíssima inclinação para crer que elas me são enviadas

 pelas coisas corporais ou partem destas, não vejo como se poderia descul-

 pá-lo de embaimento se, com efeito, essas idéias partissem de outras causas

A natureza me ensina, também, por esses sentimentos de dor, fome,

sede, etc., que não somente estou alojado em meu corpo, como um piloto

em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamen-te e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único

todo. Pois, se assim não fosse, quando meu corpo é ferido não sentiria por 

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que não coisas corpóreas, ou fossem por elas produzidas. E, portanto, é preciso confessar que há coisas corpóreas que existem.

A REPRESENTAÇÃO SENSÍVELNÃO É TOTALMENTE OBJETIVA

Talvez elas [as idéias] não sejam, todavia, inteiramente como nós as

 percebemos pelos sentidos, pois essa percepção dos sentidos é muito obs-

cura e confusa em muitas coisas; mas, ao menos, cumpre confessar quetodas as coisas que, dentre elas, concebo clara e distintamente, isto é, todas

as coisas, falando em geral, compreendidas no objeto da geometria especu-

lativa aí se encontram verdadeiramente. Mas, no que se refere a outras coi-

sas, as quais ou são apenas particulares, por exemplo, que o Sol seja deuma tal grandeza e de uma tal figura, etc., ou são concebidas menos clara-

mente e menos distintamente, como a luz, o som, a dor e outras semelhan-

tes, é certo que, embora sejam elas muito duvidosas e incertas, todavia, dosimples fato de que Deus não é enganador e que, por conseguinte, não per-

mitiu que pudesse haver alguma falsidade nas minhas opiniões, que não me

tivesse dado também alguma faculdade capaz de corrigi-la, creio poder con-

cluir seguramente que tenho em mim os meios de conhecê-las com certeza.

A união substancial

Meditações metafísicas

(Sexta meditação)

[...] Nada há que esta natureza me ensine mais expressamente, nemmais sensivelmente do que o fato de que tenho um corpo que está maldis-

 posto quando sinto dor, que tem necessidade de comer ou de beber, quando

nutro os sentimentos de fome ou de sede, etc. E, portanto, não devo, demodo algum, duvidar que haja nisso alguma verdade.

14 2

isso dor alguma, eu que não sou senão uma coisa pensante, e apenas perce-

 beria esse ferimento pelo entendimento, como o piloto percebe pela vista

se algo se rompe em seu navio; e quando meu corpo tem necessidade de

 beber ou de comer, simplesmente perceberia isso mesmo, sem disso ser 

advertido por sentimentos confusos de fome e de sede. Pois, com efeito,todos esses sentimentos de fome, de sede, de dor, etc., nada são excetomaneiras confusas de pensar que provêm e dependem da união e como que

da mistura entre o espírito e o corpo.

Além disso, a natureza me ensina que muitos outros corpos existem

em torno do meu, entre os quais devo procurar uns e fugir de outros.[...]Mas, a fim de que nada haja nisso que eu não conceba distintamente,

devo definir com precisão o que propriamente entendo quando digo que a

natureza me ensina algo. Pois tomo aqui a natureza numa significação mui-

to mais limitada do que quando a denomino conjunto ou complexão de

todas as coisas que Deus me deu; visto que esse conjunto ou complexãocompreende muitas coisas que pertencem apenas ao espírito, das quais não

 pretendo falar aqui, ao falar da natureza: como, por exemplo, a noção que

tenho dessa verdade, de que aquilo que foi uma vez feito já não pode de

modo algum deixar de ter sido feito, e uma infinidade de outras semelhan-

tes, que conheço pela luz natural, sem a ajuda do corpo, e que compreende

também muitas outras que pertencem apenas ao corpo e que aqui não mais

estão incluídas sob o nome de natureza: como a qualidade que ele tem de

ser pesado, e várias outras semelhantes, das quais não falo tampouco, mas

somente das coisas que Deus me deu, como sendo composto de espírito ede corpo. Ora, essa natureza me ensina realmente a fugir das coisas que

causam em mim o sentimento da dor e a dirigir-me para aquelas que me

comunicam algum sentimento de prazer; mas não vejo que, além disso, ela

me ensine que dessas diversas percepções dos sentidos devêssemos jamais

concluir algo a respeito das coisas que existem fora de nós, sem que o espí-rito as tenha examinado cuidadosa e maduramente. Pois é, ao que me pare-

14 3

ce, somente ao espírito, e não ao composto de espírito e corpo, que compe-

te conhecer a verdade dessas coisas.

Moral provisória

modas para a prática, e verossimilmente as melhores, pois todo excessocostuma ser mau, como também a fim de me desviar menos do verdadeiro

caminho, caso eu falhasse, do que, tendo escolhido um dos extremos, fosse

o outro o que deveria ter seguido. E, particularmente, colocava entre osexcessos todas as promessas pelas quais se cerceia em algo a própria liber-

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Discurso do método

(Terceira parte)

[...] Como não basta, antes de começar a reconstruir a casa onde

se mora, derrubá-la, ou prover-se de materiais e arquitetos, ou adestrar-sea si mesmo na arquitetura, nem, além disso, ter traçado cuidadosamente o

seu projeto; mas cumpre também ter-se provido de outra qualquer onde a

gente possa alojar-se comodamente durante o tempo em que nela se tra- balha; assim, a fim de não permanecer irresoluto em minhas ações, en-quanto a razão me obrigasse a sê-lo, em meus juízos, e de não deixar de

viver desde então o mais felizmente possível, formei para mim mesmouma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas

que eu quero vos participar.A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo

constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruí-

do desde a infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opi-niões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem co-

mumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais

teria de viver. Pois, começando desde então a não contar para nada com as

minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter todas a exame, es-

tava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos. E, embo-

ra haja talvez, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como entrenós, parecia-me que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais

teria de viver; e que, para saber quais eram verdadeiramente as suas opi-

niões, devia tomar nota mais daquilo que praticavam do que daquilo que

diziam; não só porque, na corrupção de nossos costumes, há poucas pes-

soas que queiram dizer tudo o que acreditam, mas também porque muitos oignoram, por sua vez; pois, sendo a ação do pensamento, pela qual se crêuma coisa, diferente daquela pela qual se conhece que se crê nela, amiúde

uma se apresenta sem a outra. E, entre várias opiniões igualmente aceites,

escolhia apenas as mais moderadas: tanto porque são sempre as mais cô-

14 4

dade. Não que desaprovasse as leis que, para remediar a inconstância dos

espíritos fracos, permitem, quando se alimenta algum bom propósito, ou

mesmo, para a segurança do comércio, algum desígnio que seja apenas in-diferente, que se façam votos ou contratos que obriguem a perseverar nele;

mas porque não via no mundo nada que permanecesse sempre no mesmo

estado, e porque, no meu caso particular, como prometia a mim mesmoaperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e de modo algum tomá-los pio-

res, pensaria cometer grande falta contra o bom senso, se, pelo fato de ter 

aprovado então alguma coisa, me sentisse obrigado a tomá-la como boaainda depois, quando deixasse talvez de sê-lo, ou quando eu cessasse de

considerá-la como tatMinha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais reso-

luto possível em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do

que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me

tivesse decidido a tanto. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extra-

viados nalguma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o

mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões,

ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha: pois, por esse meio, se não vão exatamente aonde desejam, pelo menoschegarão no fim a alguma parte, onde verossimilmente estarão melhor que

no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às

vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está

em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir 

as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais proba-

 bilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algu-

mas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que serelacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, por-

quanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal. E isso me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsosque costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes

14 5

que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que

depois julgam más.Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim

 próprio do que à fortuna, e de antes modificar os meus desejos do que aordem do mundo; e, em geral, a de acostumar-me a crer que nada há que

t j i t i t d t t d

Bibliografia

Obras de Descartes traduzidas para o português

Discurso do método e As paixões da alma, tradução de Jacob Guins-

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esteja inteiramente em nosso poder, exceto os nossos pensamentos, de sor-

te que, depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que

nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos sair bem é, em relação a

nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia suficiente para impe-

dir-me, no futuro, de desejar algo que eu não pudesse adquirir, e, assim,

 para me tomar contente. Pois, inclinando-se a nossa vontade naturalmente

a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de algu-

ma forma como possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que

se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder, não la-

mentaremos mais a falta daqueles que parecem dever-se ao nosso nasci-

mento, quando deles formos privados sem culpa nossa, do que lamentamos

não possuir os reinos da China ou do México; e que fazendo, como se diz,

da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos, estando doentes,ou estar livres, estando na prisão, do que desejamos ter agora corpos deuma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar 

como as aves.

MINI Moral: o bom uso das paixões

Carta a Chanut 

[...]  O verdadeiro uso de nossa razão para a conduta da vida consis-

te apenas em examinar e considerar sem paixão o valor de todas as perfei-

ções, tanto do corpo como do espírito, que podem ser adquiridas por nossa

conduta, a fim de que, sendo de ordinário obrigados a nos privar de algu-

mas, escolhamos sempre as melhores. E, como as do corpo são as menores,

 pode-se dizer em geral que, sem elas, há meio de se tornar felizes. Todavia,não sou, de modo algum, de opinião que devamos desprezá-las inteiramen-

te, ou mesmo que devamos isentar-nos de ter paixões; basta que as assujei-

temos à razão e, uma vez assim domesticadas, algumas são tanto mais úteis

quanto mais pendem para o excesso.

14 6

p , çburgh e Bento Prado Jr., prefácio e notas de Gérard Lebrun, in-

trodução de Gilles-Gaston Granger, vida e obra por José Améri-co Pessanha. Coleção Os Pensadores. 4 4 ed., vol. 1. São Paulo,

Nova Cultural, 1987.

Discurso do método, comentários de D. Huismann e A. Vergez. Brasí-lia, Universidade de Brasília/Ática, 1989.Discurso do método, introdução e notas de Etienne Gilson (edição abre-

viada). Lisboa, Edições 70, 1985.Meditações metafísicas; Objeções e respostas; e Cartas, tradução de

Jacob Guinsburgh e Bento Prado Jr. Coleção Os Pensadores.4 4 ed., vol. 2. São Paulo, Nova Cultural, 1987.

Princípios de filosofia; Primeira parte, tradução de Alberto Ferreira. Lis-

boa, Guimarães Editores, 1971.Regras para a direção do espírito. Lisboa, Edições 70, 1985.Regras para a direção do espírito, tradução de Antonio Reis. Lisboa,

Editorial Estampa, 1971.

Obras de Descartes em tradução espanhola

El mondo e Tratado de la luz. Barcelona, Antropos, 1989.Tratado del hombre. Madri, Nacional, 1980.

Principais edições francesas das obras de Descartes

 ADAM, Charles e MILHAUD, Gaston. Correspondance. 7 volumes. Pa-

ris, Leopold Cerf, 1936.

 ADAM, Charles e TANNERY, Paul. Editions des Grands Écrivains de la

France. 13 volumes. Paris, Leopold Cerf, 1897/1913. ALQUIÉ, Ferdinand. Oeuvres Philosophiques. 3 volumes. Paris, Gar-

nier, 1967.BRIDOUX, Emile. Oeuvres et lettres. Paris, Gallimard/Pléiade,

1952.

14 7

Estudos e comentários em português

BEYSSADE, M. Descartes. Lisboa, Edições 70, 1979.COTTINGHAM, J. A filosofia de Descartes. Lisboa, Edições 70, 1989.KUJAWSKI, G. Descartes existencial. São Paulo, Brasiliense/Edusp,

1969.

 ® Sobre o autor 

Franklin Leopoldo e Silva nasceu a 31 de dezembro de 1947.Em 1971 bacharelou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Le-tras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) onde

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TEIXEIRA, L. Ensaio sobre a Moral de Descartes. São Paulo, Brasilien-

se, 1990.

Estudos e comentários em espanhol

CLARKE, D. La filosofia de la ciencia de Descartes. Madri, Alianza Uni-versidad, 1986.

HAMELIN, O. El s ystems de Descartes. Buenos Aires, Losada, 1949.

RENOUVIER, C. Descartes. Buenos Aires, Espasa Calpe, 1950.

Estudos e comentários clássicos em francês

 ALQUIÉ, F. La découverte métaphysique de l'homme chez Descartes.

Paris, PUF, 1950.

GILSON, E. Discours dela méthode; Texte et commentaire. Paris, Urin,1925.

GUÉROULT, M. Descartes selon l'ordre des raisons. 2 volumes. Paris, Aubier, 1953.

LAPORTE, J. Le rationalisme de Descartes. Paris, PUF, 1950.

MILHAUD, G. Descartes savant. Paris, Alcan, 1921.

1 4 8

tras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), onde

leciona História da Filosofia desde 1972. Pela mesma universidade,

fez mestrado em 1975, doutorou-se em 1981 e tornou-se livre-docenteem 1991.

Publicou Primeira filosofia — lições introdutórias (1984) em cola-

boração com Marilena Chaui e outros, além de diversos artigos em re-vistas especializadas.

14 9

Questões para reflexão

1. Por que, a partir do método, a filosofia de Descartes leva necessa-riamente a conhecer a unidade do saber?

12. Por que a união substancial é uma questão teoricamente insolúvel?

13. Comente pelo menos dois aspectos da doutrina cartesiana aosquais podem ser atribuídas as dificuldades dessa filosofia parapassar da representação da essência à constatação da existênciade coisas materiais.

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2. Comente os dois princípios que inspiram o método de conheci-

mento para Descartes: ordem e medida.

3. Mostre como esses dois princípios estão presentes nos quatro prin-

cípios metódicos.

4. Qual a diferença entre dúvida natural e dúvida metafísica?

5. Em que medida se pode dizer que a doutrina cartesiana da absolu-

ta separação entre substância extensa e substância pensante é

solidária da crítica que Descartes faz da noção aristotélico-tomistade forma substancial?

6. Por que, no contexto da filosofia cartesiana, a constatação da cer-teza do eu penso aparece como, ao mesmo tempo, resultado e

superação da dúvida metódica?

7. Explique a prioridade do conhecimento intelectual.

8.   A prova de existência de Deus se baseia no grau infinito da reali-

dade objetiva de sua idéia. Fale sobre isso.

9. Qual a relação entre o Eu pensante e a idéia de Deus na constitui-

ção do fundamento do saber?

10 . Explique a relação entre:a) a geometria e a possibilidade do mundo material;b) a imaginação e a  probabilidade do mundo material.

11. Por que não pode haver ciência do mundo material no que diz res-

peito às percepções sensíveis?

15 0

de coisas materiais.

14. Que razões, no sistema de Descartes, impedem que a responsabi-lidade pelos erros que cometemos possa ser atribuída a Deus?

15. Explique o mecanismo do erro e sua relação com a liberdade hu-mana.

16. Comente as máximas da moral provisória, de forma a mostrar como elas se baseiam na verossimilhança, na  possibilidade e no

bom senso.

17. Como se relacionam, em Descartes, sabedoria, técnica e huma-nismo?

18. Por que a pretensão universal de um racionalismo sistemático

como o de Descartes não é incoerente com o reconhecimento deque existem coisas que não podemos conhecer?

1 51