stockinger gottfried teoria sociologica comunicacao

Upload: paulo-anchieta-florentino-da-cunha

Post on 03-Jun-2018

234 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    1/218

    Para uma Teoria Sociolgica daComunicao

    Gottfried Stockinger

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    2/218

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    3/218

    ndice

    1 Do equilbrio comunicao 91.1 A compreenso da realidade como sistema . . . . . . . . 101.2 Do equilbrio ao desequilbrio . . . . . . . . . . . . . . 151.3 A relao sistema / ambiente . . . . . . . . . . . . . . . 231.4 Parsons e Luhmann: a interao contingente . . . . . . 311.5 Autopoiese e fechamento operacional . . . . . . . . . . 361.6 Sistemas sociais e ambientes psquicos . . . . . . . . . . 50

    1.7 Habermas e Luhmann: sistema e mundo de vida . . . . 601.8 Concluses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64

    2 Comunicao: da observao compreenso 672.1 Da comunicao mecnica comunicao sociolgica . 672.2 Order from noise: a observao como ato

    criador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 802.3 Sistemas de sentido autocriativos . . . . . . . . . . . . . 892.4 Comunicao como sntese de informao,

    mensagem e compreenso . . . . . . . . . . . . . . . . 962.5 A comunicao como interpretao . . . . . . . . . . . . 105

    2.6 A formao de estruturas e padres de comunicao . . . 1102.7 A construo de media e formas de comunicao . . . . 1162.8 Cibercomunicao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

    3 Mtodo sistmico: anlise, pesquisa, interveno 1413.1 Construo da realidade e observao emprica . . . . . 1413.2 A construo social do tempo . . . . . . . . . . . . . . . 1513.3 O tratamento de sistemas no limiar tradio/

    moderno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

    3

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    4/218

    4 Gottfried Stockinger

    3.4 Interveno sistmica em consultoria e terapia . . . . . 1683.5 Acaso e a criatividade nojogo da vida . . . . . . . . . . 181

    4 Referncias bibliogrficas 209

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    5/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 5

    Cada evento, e tambm cada ao, aparece com ummomento mnimo de surpresa. por isso que novidade constitutiva para a emerso de uma ao. Sem momentosde surpresa no haveria formao de estruturas, porquenada ocorreria que houvesse de ser interligado. (NiklasLuhmann, 1927-1997)

    Prefcio: A Sociedade da Comunicao

    A sociedade da comunicacao est a tornar-se uma realidade. Oseu surgimento ocorre no meio de uma poca de mudanas sociais dealta velocidade, a nvel mundial, presentes em todos os cantos do globo.Sistemas e redes sociais de comunicao ligadas a personalidades, or-ganizaes e comunidades ativas e interativas operam em novas estru-turas, que moldam transformaes nas atividades humanas nos mundospessoal, pblico e do trabalho. Esses sistemas esto desde j ligados,inseparavelmente, a um desenvolvimento tecnolgico de ambientes deinformao e comunicao at bem pouco tempo inimaginvel. Via m-dia e multimdia eles se acoplam a novas formas de convvio social que

    requerem ainda a sua aprendizagem consciente.Na tentativa de denominar cientificamente o advento dessa poca,

    o termo sociedade da informao tem ganho certa aceitao.1 En-quanto outras denominaes como sociedade ps-industrial ou ps--moderna, usadas indistintamente,2 indicaram apenas uma despedidado passado, o termo sociedade da informao tinha a vantagem de apon-tar, no perodo recente dofin de siecle XX,para o futuro. O conceito de-nomina uma sociedade, na qual a informao aparece como uma energiaefetiva, ou, do ponto de vista econmico, como um fator de produo,que se iguala na sua importncia aos fatores capital e trabalho, ouat as supera, dominando a formao social.3

    Desde ento, ou seja, desde o incio do sculo atual, houve um cres-cimento inusitadamente vertiginoso das redes de comunicao eletr-nica - enquanto as redes sociais ligadas a elas ainda se assustam, s

    1 O conceito tem conotao econmica, uma vez que informao tida como fatorde produo. Ver a respeito Trembley, 1995.

    2 Ver Bell, 19733 No sentido do materialismo histrico: relaes de produo baseadas na troca

    (compra e venda) de informao (dados) como base para a produo de bens materiaise de servios.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    6/218

    6 Gottfried Stockinger

    vezes, com sua presena. Mesmo assim, o seu uso cada vez mais di-fundido, parecido com o que ocorreu com a rdio, TV e telefone e comefeitos mais rpidos e profundos do que os da revoluo industrial.

    A transio da sociedade da informao para a sociedade da co-municao, em curso, encontra uma formao social, na qual os atoreshumanos esto largamente saturados e (sobre)carregados de dados e in-formao que carece de depurao. Desde a globalizao da Internet,

    informao deixou de ser um bem raro e passou a ser um bem abun-dante. Quase gratuito.4

    J no se trata apenas de discernir, acumular e comercializar dadose informaes, mas sobretudo de process-los de forma cada vez maisdiferenciada, cada vez mais excntrica. A informao a ser obtida dedados "brutos"depende, para fazer efeito, de processos de comunicaocriativos. De outro modo os dados ficam mortos, inatualizados, e a in-formao emergente se torna intil. O seu significado deve ser criado,inventado, em atos comunicativos.5 Sem comunicao, a informaoefetiva, aquela que realmente "faz a diferena"fica encoberta, indistin-guvel, apenas armazenada em memria psquica e arquivos mediticos.

    Ela apenas informao potencial, e no chega a ser significativa, elano se torna real. A realidade social no tem outra maneira de se expres-sar a no ser em forma de comunicao. Vivemos numa sociedade queno s oferece e consome informao, mas que sobretudo a processa dolado da recepo, muitas vezes no mesmo instante que a recebe.6

    Os ambientes de informao disponveis para os sistemas sociais,a nvel global, permitem tambm um novo nvel de (auto)observaocientfica da sociedade. Esta se pode apoiar em observadores informa-dos, que refletem suas informaes no apenas individualmente, masse utilizam, paralelamente, de sistemas de informao relacionados aambientes de comunicao virtuais, em tempo real. Assim, ao ser pro-

    4 Levy (1996, p. 41) ainda mais radical: "A sociedade de informao uma men-tira. Deu-se a entender que, aps haver se centrado na agricultura, depois na indstria(...), a economia seria dirigida agora pelo tratamento da informao. Mas, como desco-brem, prpria custa, inmeros empregados e executivos, nada se automatiza to beme to rpido quanto o tratamento ou a transmisso da informao".

    5 "No espao do saber, cada descoberta uma criao". (Levy, 1996, p.175)6 O lado da recepo focalizado por Stuart Hall e a corrente de "estudos cultu-

    rais"na Inglaterra, a partir dos anos 50, reconhecida nos anos 70 como uma anlisecrtica dos meios de comunicao. A abordagem de Hall era bastante inovadora, con-trariando as correntes ento predominantes.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    7/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 7

    cessada, codificada e decodificada, a informao recriada, reinventada,num processo social de comunicao, apoiado por ambientes de mdiatcnica e de aprendizado humano.7 O termo "sociedade da comunica-o"denomina, portanto, um sistema social global, onde a informao tratada emmedia, formas e formatos de comunicao, que a reprodu-zem numa escala que vai "desde o cristal at a fumaa".8 Mais do queum "fator de produo", comunicao opera a base dos macro e micros-

    sistemas sociais. por isso que novos sistemas e ambientes de comunicao desa-fiam o esprito contemporneo que afeta especialmente responsveis detodos os tipos pais, educadores, cientistas, gerentes, empresrios epolticos - e oferecem a qualquer um inmeras possibilidades de parti-cipao social ativa. A comunicao est permeando a vida cotidiana.A sua compreenso bsica para no apenas reconhecer ou avaliar asmudanas depois de ocorridas, mas para se dedicar conscientemente construo da sociedade de famlias, escolas, empresas, instituiespolticas e de participar dela.

    Se apresentamos, neste livro, uma teoria de sistemas e ambientes

    comunicativos, inspirada, em primeiro lugar, na obra do socilogo e fi-lsofo alemo Niklas Luhmann (1927-1997), porque ela fornece essacompreenso da comunicao como construtora da sociedade, que in-centivou uma mudana de paradigma nas cincias sociais e da comuni-cao.9

    Quando Luhmann define seu programa10 de construo de uma "su-perteoria sociolgica"para a era da comunicao, capaz de dar sustentoa um novo paradigma,11 ele intenciona a combinao de trs teorias, queat ento se desenvolveram paralelamente, ainda que com pontes de li-gao e convergncias em vrios momentos de sua construo. Trata-se

    7 na comunicao que se descobre o fator humano: "Como ltima fronteira, des-

    cobrimos o humano, o no automatizvel: a abertura de mundos sensveis, a inveno,a relao, a recriao continuam sendo coletivas"(Levy, 1996, p.43).

    8 Ou seja, entre ordem e caos (ver Atlan, 1979)9 Para uma biografia de Niklas Luhmann e um enquadramento de sua obra recomen-

    damos a apresentao de Joo Pissarra em Luhmann, 1992.10 Ver Luhmann, 1975a11 "Quando uma superteoria alcana uma alta centralizao de diferenas diretrizes,

    uma mudana de paradigma se torna possvel."(Luhmann, 1984, p.19)

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    8/218

    8 Gottfried Stockinger

    da teoria de sistemas, da teoria da evoluo e da teoria da informao ecomunicao.

    Quanto teoria de sistemas (que engloba, concomitantemente umateoria de ambientes), ele imaginava uma teoria geral da sociedade quetrabalha a complexidade da arquitetura social. Esta se especifica porinteraes reflexivas, construdas por sistemas sociais, baseadas em ex-pectativas. A abordagem da realidade social por uma teoria que compre-

    ende os fenmenos como sistemas em seus ambientes tem a vantagemde conectar o com uma teoria geral de sistemas e sua terminologia, cujossignificados e analogias aparecem em vrios nveis:12

    sistemas em geral como mtodo de raciocnio abstrato;

    mquinas, organismos, sistemas psicolgicos;

    sistemas sociais: interaes, organizaes, sociedades.

    A distino de nveis e degraus possibilita comparaes frutferasentre diversas reas de conhecimento onde a teoria sistmica apli-cada com sucesso. Resultados podem, assim, ser transferidos metafo-

    ricamente de uma rea para outra. Isso o caso da comparao entreprocessos sociais e biolgicos, por exemplo, que j vem de longa data.Lembremos que, enquanto na sociologia se descobriu primeiro a fun-o social da diviso do trabalho (Durkheim), na biologia se utilizou amesma "metfora"para a diviso de funes vitais em corpos biolgicos.

    Por outro lado, o termo "autopoiese", que aparece mais recente-mente no estudo de sistemas biolgicos, metaforicamente aplicadoa sistemas sociais. Ele provm da biologia da cognio, de HumbertoMaturana, que sustenta que a realidade percebida pelos seres segundoa estrutura e configurao bio-psico-social de seu organismo num dadomomento. Essa configurao muda constantemente de acordo com a

    interao do organismo com o seu meio.Quanto teoria da evoluo, esta devia explicar a dinmica de siste-

    mas (e ambientes).13 A teoria biolgica da evoluo era, ento (e con-tinua sendo, como o mapeamento do genoma humano e de outros seres

    12 Seguimos aqui a classificao de Luhmann, 1984, p. 1613 Como a teoria sistmica de Luhmann trabalha com a distino sistema/ambiente,

    ambiente j est co-referenciado quando se fala de sistema. E vice-versa: sempre hambientes em referncia a sistemas. Quando falamos portanto de teoria de sistemassubentendemos uma teoria de sistemas e ambientes.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    9/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 9

    vivos mostra), a mais desenvolvida, e no h como descartar seus resul-tados para pelo menos tentar adapt-los metaforicamente. No entanto,ela leva apenas a um certo degrau de compreenso de processos sociais,j que suas explicaes fazem, ela prprias, parte da evoluo social ecomunicativa.14 Uma das analogias proveitosas entre sistemas sociaise sistemas biolgicos se apoia na construo do conceito "informaogentica", que revela pontos de referncia interessantes para a mudana

    de sistemas de comportamento conduzidos por informao, de maneirageral. Todas as espcies de sistemas que se reproduzem em ambientesvariveis por esforo prprio, organizam informao em seqncias desmbolos, que esto sujeitas interpretao, cujos produtos exercem umefeito retroativo no sistema. Este "efeito da informao"cria diferenase, em conseqncia, variedade selecionada, que est na base do desen-volvimento evolucionrio.15

    E,last not least, a teoria da informao e da comunicao, que apre-cia o mundo simblico e o carter reflexivo da comunicao humana oterceiro pilar do programa terico de Luhmann. Desde a criao do mo-delo de transmisso de dados (transmissor-canal-receptor), por Shannon

    e Weaver, at s questes que envolvem a cibercomunicao, a teoria dainformao tem estabelecido um marco na compreenso do comporta-mento de sistemas sociais. Em suma, tratava-se, portanto, de conectar ateoria sociolgica com a uma teoria geral de sistemas que exibem pro-cessos de mudana pelo fato de se encontrarem permanentemente forado equilbrio. No casos de sistemas sociais, tais processos so constru-das por comunicaes.

    Adaptando estas e uma srie de outras abordagens provindas do am-biente do seu sistema de comunicao cientfica, consegue-se superaras caratersticas meramente funcionalistas e por vezes positivistas doincio tradicional da teoria sistmica, transformando-a numa viso din-

    mica capaz de captar a transformao social contempornea.

    Salvador, Bahia, em Outubro de 2001, Gottfried Stockinger

    14 Ver Leydesdorff, 200115 Luhmann (1990, p. 554) v"a tarefa de uma teoria da evoluo... na explicao de

    mudanas estruturais pela diferenciao entre variabilidade, seleco e estabilizao...Comeando com variabilidade significa um arbtrio livre de quem est interessado noNovo. Os termos devem ser pensados de maneira circular.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    10/218

    10 Gottfried Stockinger

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    11/218

    Captulo 1

    Do equilbrio comunicao

    Comunicao um fenmeno que surge quando informao, enquantonovidade, precisa ser interpretada. Quando no h nada de novo, ela noocorre, porque nada h a ser comunicado.

    Por muito tempo se viu na comunicao uma troca de informaesentre pessoas que se movem na mesma cultura e usam o mesmos signos

    e idiomas, com significados determinados. Hoje, comunicao se apre-senta mais parecida com uma Torre de Babel do que com uma linha detransmisso.

    Olhamos a comunicao como um fenmeno emergente em cadainstante, que nasce de um desequilbrio entre Alter e Ego, entre eu evoc. Se fossemos idnticos e soubssemos e experimentssemos omesmo, nenhum interesse nos levaria a comunicar-se. Voc no ia lereste livro, e eu nem o teria escrito. O mesmo vale para sistemas sociaiscomo estados, organizaes e empresas. Eles se comunicam porque tmnecessidades sociais de faz-lo. Tanto pessoas como organizaes tmas suas incertezas, quer porque lhes falta informao, quer que tenham

    demais e no sabem como interpret-la. Expostos, assim, a ambientesdesequilibrados e um futuro incerto em cada momento, tentam superartal insegurana via comunicao.

    a tais sistemas e ambientes e sua construo cientfica que nosdedicaremos em seguida.

    11

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    12/218

    12 Gottfried Stockinger

    1.1 A compreenso da realidade como sistema

    O que que se quer dizer quando se denomina algo de "sistema"? Essaquesto envolve logo outra: qual a relao entre a realidade e a imagemque dela temos, e desta com as palavras e conceitos atribuidos. O que que uma denominao representa ou interpreta: esta pergunta acom-panha toda e qualquer explanao cientfica, quer abertamente, quer de

    forma latente. Tradicionalmente,

    1

    essa questo foi, via de regra, colo-cada como uma questo ontolgica2, quer dizer que ela envolveu umadisputa sobre aquilo que "existe"(que denominado de "real"), e aquiloque "no existe"(que denominado de no real ou o de "irreal"). Ao dis-tinguir assim, e para poder operar com esta distino, se separou objetosreais observveis externamente, e objetos imaginados, irreais, mas comcapacidade de representar o real. Ao definir realidade como compostapor objetos, ocorre a separao do sujeito observador do objeto obser-vado. Ela a marca registrada do mtodo decartiano: "Penso, ergo sou".Vejo os objetos e me distingo deles. Enquanto esta separao subsistiucomo padro dominante e paradigmtico das construes cientficas3,

    todas as solues da questo da relao imagem/realidade consistiam,ento, em assemelhar o quanto possvel a imagem da realidade obje-tal que ela representa. Para alcanar este objetivo, observar o objetocomo realidade externa significava perceb-lo com o mais alto grau deresoluo possvel e projet-lo com um mximo de coordenadas acess-veis. Ou seja: tratava-se da acumulao de dados, cuja informao es-tava suposta no depender do observador, mas da prpria maneira comoa realidade objetiva, externa, se apresentava. Quando se denominavaalgo, pressupunha-se que esta denominao j estava inerente ao objeto.Como se ele dizesse, por si prprio: "Eu sou um sistema. Ou: eu souvermelho ou eu sou redondo". Mas nada sistema ou vermelho ou re-

    dondo a no ser aquilo que comunicamos que merea tal denominao.Tente descrever, por exemplo, uma cor qualquer, digamos vermelho, evai ver que no vai conseguir (sem usar as rosas ou a cor da sua camisa, claro).

    1 Usamos o termo "tradio"no sentido de Luhmann como herana do pensamentohumanista ocidental, baseado no paradigma de Newton e Descartes

    2 Ontologia = teoria do ser, de sua existncia em aparncia e essncia3 A filosofia, desde o sculo XIX, tm percebido esta separao. Karl Marx, baseado

    em Hegel, o resumiu no conceito "alienao".

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    13/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 13

    Para objetivar o mundo, todos os argumentos e discursos, cientfi-cos ou no, precisam enquadr-lo num sistema de observao "de fora".Para tal, na sua "disputa de mercado", os discursos concorrentes pre-cisavam legitimar-se como observadores "externos"privilegiados, por-tadores de "verdades", de "dogmas eternos". Muitas vezes procurandopara tal a proteo de instituies legitimadoras como as igrejas e osestados e outras de funo parecida. E, mesmo no a procurando, se re-

    fugiaram em autoridades ancoradas no supra-social. Foi assim que cadaum evocou e ainda evoca, se for o caso, os seus "orixs".4

    Este tipo de discurso, que costuma ser chamado de linear-cartesiano,formou a base para todas as teorias que pressupem a existncia de umarealidade externa, absoluta, percebvel por todos da mesma forma, pelomenos em "ltima instncia".5 Quanto mais "sagrado"um comunicado,tanto mais "realidade"representou. Sabemos hoje que o papa to fa-lvel quanto voc, e o discurso humano nada tm de objetivo (mesmoquando chamado de "divino"). A realidade uma construo de mundosde vida prprios, diferentes e singulares, com sua percepo do outro edo ambiente igualmente prprio.

    O paradigma da realidade objetiva comeou a desmoronar por apre-sentar srias incongruncias quando aplicado a fenmenos complexos,da vida. Seu discurso paradigmtico tem sido questionado de muitasformas, inclusive pelo pensamento sistmico e complexo, que procuraentender a vida como processo autopoitico, como ainda veremos.

    A questo da relao entre imagem e realidade dificultada por ou-tra distino, aquela entre emoo e razo. Trata-se do mesmo captulona histria filosfica. Se, por exemplo, emocionalmente achamos que osol gira em torno da terra, nossa razo diz: claro que sim: basta olharcomo ele se levanta e pe. No entanto, como mostra a astronomia, osol no gira, mas a terra que gira em torno do seu prprio eixo, dando

    aquela impresso errada. Do ponto de vista de um pensamento linear,de causalidade simples e imediata, a nica explicao certa que a terra ponto fixo em torno do qual o sol gira. Uma abordagem mais ampla,do sistema solar como um todo, mostra que tudo bem diferente. O quegira a terra: em torno do seu prprio eixo. Enquanto na verso antiga,

    4 Orixs so os santos afro-bahianos, mas gozam de validade mundial5 Cartesiano: pensamento baseado na obra do filsofo francs Ren Descartes

    (1637)

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    14/218

    14 Gottfried Stockinger

    a "causa"da existncia de dia e noite foi o movimento alheio (do sol),na verso atual, ela atribuda a umeigen-movimento da prpria terra.Tudo isso questionou a existncia de uma realidade objetiva de cuja ima-gem os sujeitos seriam portadores, j a partir dos sculos XV, quando oparadigma da terra central comeou a ser derrubado, sobretudo depoisda inveno do telescpio.

    Mas, queiramos ou no, a realidade no aparece de outra forma a

    no ser em imagens e smbolos com significados socialmente atribudos.Ela tem que ser vista como uma construo virtual, apenas tomada comoreal, afirmada e reafirmada, acordada e reconstruda, decepcionada e re-configurada, em processos de comunicao. A procura pela essncia doreal, que se pressupe estar detrs de sua aparncia, est tomando outrosrumos. Hoje se sabe que o paradigma que constri "realidade"separandosujeitos e objetos apenas uma das possveis alternativas paradigmtica,escolhida por comunicaes cientficas numa certa poca histrica. Noentanto, paradigmas esto sujeitos a mudanas e no passam de constru-es sociais mutantes, como Thomas Kuhn mostra no seu clssico livrosobre a estrutura de revolues cientficas, cujo original ingls data do

    ano 1962, para orientar-nos um pouco no tempo. Ele descobriu que odiscurso cientfico no passa de um discurso, ou seja a realidade que eleexpressa no passa de uma construo comunicativa, provisria, acor-dada entre os produtores e adeptos do discurso.6 A dvida de que umconceito, qualquer que seja, possa representar uma realidade externa,no apenas se fortaleceu, mas passou a se confirmar. O mesmo ocorreucom o conceito "sistema": no paradigma tradicional era tratado comoum objeto, enquanto no novo paradigma passou a ser considerado umfenmeno constitudo de processos comunicativos, neles ancorando suaqualidade de ser "real". O real passou a ser "negocivel".

    Para "negociar"assim os seus argumentos e tomar posio frente a

    questo da relao imagem/realidade, os cientistas, sobretudo aquelesque se ocupam com questes da teoria do conhecimento, costumam co-mear suas obras com um prlogo epistemolgico. Quer dizer que, an-tes de expressarem algo sobre o mundo, falam sobre o que pode ou nopode ser conhecido pela teoria que vo apresentar. Em relao a sis-

    6 Na verdade, Karl Mannheim j deu as pistas na sua clssica obra "Ideologia eUtopia", onde ele atribui o progresso cientfico s comunicaes de uma elite chamadade "inteligncia de livre flutuao"(frei schwebende Intelligenz)que seria capaz de sedar conta do condicionamento social de suas idias e teorias

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    15/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 15

    temas, sua pergunta seria: ser que realmente existem sistemas?; e, sefor o caso, qual o seu estatuto ontolgico?; ou ser que existem ape-nas analiticamente, enquanto mtodo de observar a realidade? Uma vezrespondidas, de alguma forma, essas perguntas, os cientistas costumaminiciar suas observaes. O problema : como que se sabe o que sepode saber e observar, antes que se comece a f-lo?

    Numa tentativa inovadora de contornar esse problema epistemol-

    gico, antes tido como crucial, Luhmann inverte a questo e abre seuclssico "Soziale Systeme", anunciando que "as consideraes seguin-tes partem do pressuposto que h sistemas".7 Ele incita a comear coma observao do mundo. Ele percebe, que se houver sistemas a observar,estes observam por sua vez sistemas e os distinguem de ambientes.

    Num segundo passo, um ciclo de auto-reconhecimento das formassistmicas como "real"entra em funo. Luhmann resume: se h sis-temas no ambiente que observam mediante distines, ento ele, comoobservador, provavelmente tambm um sistema, tambm utiliza dis-tines e pode ver apenas aquilo que ele pode ver.

    Isso significa, num terceiro passo, que aquilo que se pode experi-

    enciar atravs da observao, depende do uso de suas prprias distin-es, quer dizer que depende de sua prpria faculdade de discernimentoenquanto sistema. Est criado um crculo epistemolgico, de conheci-mento. A vantagem consiste na explicitao deste crculo, enquanto ocientista observador "comum"imagina - erroneamente - estar numa po-sio privilegiada, "fora do mundo".

    Ao apontar para a separao entre observador e realidade, o racio-cnio de Luhmann torna o problema visvel e eleva-o ao nvel do comu-nicvel, simplesmente como mais um assunto a tratar, se for o caso. Asconsideraes de Luhmann "no comeam, portanto, com uma dvidaepistemolgica. Nem se retiram posio de que a teoria sistmica te-

    ria uma relevncia apenas analtica. Alm disso evitam a interpretaoestreita de que a teoria sistmica representa um mero mtodo de anliseda realidade."Mesmo assim, Luhmann no afirma tratar-se, no caso dateoria sistmica, de um instrumento capaz de "copiar"a realidade "verda-deira". "Claro que no se deve confundir afirmaes com seus prpriosobjetos; h de se ter conscincia de que afirmaes so apenas afirma-es e que afirmaes cientficas so apenas afirmaes cientficas. Mas

    7 Luhmann, 1984, p. 11

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    16/218

    16 Gottfried Stockinger

    elas se referem, pelo menos no caso da teoria de sistemas, ao mundoreal. O termo sistema denomina, portanto, algo que realmente um sis-tema e o termo se expe assim responsabilidade de comprovar suasafirmaes na realidade".8

    Nesta altura da explanao, Luhmann nada diz ainda sobre a rela-o entre os conceitos de realidade e de sistema (enquanto "imagem"darealidade). Afirma apenas que a teoria de sistemas se refere a si pr-

    pria como um dos seus objetos de conhecimento, e deixa por isso serobjeto no sentido tradicional do termo.9 E exatamente neste ponto queela estabelece uma primeira diferena, fundamental em relao teo-ria do conhecimento tradicional-clssico. Porque esta, ao trabalhar comobjetos externos, separados, alheios, tentou evitar essa autoreferncia,considerando-a como mera tautologia, cheia de furos para construesarbitrrias.

    Para ultrapassar a tautologia no basta apenas dizer que "h sistemassociais". "Nossa tese de que h sistemas sociais pode ainda ser preci-sada melhor: h sistemas autoreferenciais. Isso significa, por enquanto,num sentido mais geral: h sistemas com a capacidade de produzir re-

    laes consigo prprio e de distinguir estas relaes em contraposios relaes com o seu ambiente".10 O que um sistema, ontologica-mente, de pouca relevncia. Porque para Luhmann um sistema no"", nem "est", pois a expresso denomina uma "capacidade", a de"produzir relaes". Esta capacidade, atribuda a processos tanto natu-rais como sociais, aparece como uma fonte criadora, produtora de mu-danas. "Isso significa: qualquer contato social compreendido comosistema, sendo que a sociedade considerada como totalidade de todosos contatos possveis."11 Estes contatos so reais, observveis, por mais"irreais"ou "virtuais"que possam parecer.

    A teoria de sistemas sociais pode, assim, ser compreendida como

    parte de uma teoria sistmica com caratersticas universais ao mesmotempo que contribui com a descoberta de singularidades que s o socialsabe produzir: comunicaes.

    8 Toda a srie de citaes de Luhmann, 1984, p. 309 Porque os objetos tradicionais - sendo crias externas de um observador - no ti-

    nham nenhuma autoreferncia. A suas qualidades eram impostos de fora.10 Luhmann, 1984, p. 3111 Luhmann, 1984, p. 33

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    17/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 17

    1.2 Do equilbrio ao desequilbrio

    primeira vista, a reconfigurao do termo sistema como operador demudanas pode parecer estranho e surpreendente. Pela sua trajetria nosdiscursos cientficos que emprestaram o termo sistema do senso comume do seu uso na vida cotidiana, o seu significado apontou primeiro para aexistncia de unidades e fenmenos compostos por partes, que seguem

    a certas regras, a princpios e axiomas estabelecidos, ou a determinadosprocedimentos metdicos. O termo sistema apontou, alm disso, parauma certa ordem, para um determinado estilo ou para um caminho aser trilhado, ou para uma lgica a ser seguida, destacada por regras enormas. Diz-se, na fala comum, que quem age sistematicamente templanos, se orienta em regularidades e padres e tenta averiguar modosde funcionamento. Quando se fala em poltica, sistema costuma deno-minar um determinado regime e/ou um certo aparelho estatal que zelapela manuteno de uma ordem social mais ou menos rgida. Na econo-mia, usa-se, por exemplo, o conceito de sistema para designar o sistemafeudal ou sistema capitalista. Ambos se distinguem por um modo de

    produo, que carateriza uma certa ordem, na qual predominam deter-minados fatores econmicos.Em todos estes casos, a conotao do termo sistema esttica e li-

    near e est voltada para as questes da manuteno do equilbrio e daadaptao a um ambiente preestabelecido. Na sociologia, tal viso cor-respondia a interesses e anseios de explicar as condies de manutenode uma certa estrutura poltica e social. O que interessava era a ordemdo sistema, e no a sua mudana. Por isso a teoria de sistemas tem sidochamada, nos seus primeiros estgios de desenvolvimento, que ocorramno mundo "estvel"de ps-guerra, de positivista e mecanicista.

    Mas essa denominao valeu para todas as teorias que se expres-

    saram no paradigma tradicional predominante at aquela poca, e noapenas para a viso sistmica. Pode-se at afirmar que toda sociologiaat ento praticada sujeitou o conceito de sociedade a uma idealizao,a uma procura por ordem, equilbrio e harmonia. Mesmo as vertentesmarxistas mais radicalizadas estavam crentes numa revoluo social quepudesse trazer uma ordem social justa, de paz e cooperao, negando as-sim a prpria dialtica entre ordem e mudana, muitas vezes por purasrazes ideolgicas.

    As razes sociolgicas de praticar sociologia com o objetivo de ex-

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    18/218

    18 Gottfried Stockinger

    plicar a ordem social, a coeso, a integrao, o conflito institucional daluta de classes e etc. so profundas e encontram seu apoio na constru-o mecanicista predominante das cincias naturais, j que estas foramas primeiras cincias a formularem conceitos comprovveis. O meca-nicismo explica os fenmenos da natureza atravs de causas que sonecessrias e suficientes para produzir efeitos. Quanto ao carter evolu-tivo do mundo, ele v o novo completamente determinado pelo velho.

    Num mundo mecnico no pode haver nada de novo que no tenha jexistido antes12, pelo menos na sua forma de ovo ou semente. A evo-luo entendida como a desenvoltura de algo que j existe antes doseu desenrolar. Quanto vertente sistmica do mecanicismo, o sistemaaparece como completamente determinado pelas partes que o compem.Ele no vai alm da soma de suas partes. Nada emerge. Os mecanismoss produzem redundncia, ou seja: estabilidade e equilbrio.

    Mas, a realidade "cotidiana"mostra aos sistemas que eles so expos-tos a ambientes onde energia e informao so distribudas de formadesigual, com fluxos no lineares e interdependentes. Revela-se, emltima instncia, que o desequilbrio uma condio fundamental para

    qualquer estabilidade. Quem j viu, sabe: se o palhao, com suas enor-mes pernas de pau no balanasse permanentemente seu corpo, se eleficasse "estvel", ele no se manteria em p.

    medida em que as observaes cientficas se multiplicaram e re-finaram, se revelou, em todas as reas cientficas, que o determinismomecanicista de causa e efeito vale apenas para sistemas em equilbrio ouperto do equilbrio. Tais estados de equilbrio so muito raros em sis-temas de ordem superior, como o caso de sistemas bio-psico-sociais.Mas mesmo na fsica representam, na verdade, excees e idealizaes,vlidas apenas para um mundo idealizado. Nas "cincias exatas"desco-briu-se que se trabalhava com meras aproximaes.

    A descoberta do "real"como algo em desequilbrio (diferente do"ideal", que imaginado como perfeito) j provm da antigidade grega(Epicrio, Demcrito, Aristteles, Plato):Pantha Rei- Tudo flui. Tudomuda sempre, tudo est em movimento, tudo est em desequilbrio.Nada ou ser igual ao que era antes (ou, para caricaturar: ao que nemantes era). Ningum entra duas vezes no mesmo rio. Em qualquer erade mudanas profundas este teorema lembrado. Trata-se de uma viso

    12 Stanley Kubrick o mostra no seu filmeLaranja Mecnica

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    19/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 19

    de primeira ordem, que constata a mudana permanente como um fatoda natureza e da vida.

    Uma segunda onda de pensamento da mudana, que no se contentaem somente constat-la mas tenta explicar sua direo, emerge com adialtica. Ela podia ser expressa na afirmao que "tudo muda sempre,movimentando-se entre dois extremos contrrios". Este teorema, cujosmbolo podia ser a espiral13, foi aprofundado sobretudo na filosofia

    alem (Kant, Hegel, Marx). Esta onda traz consigo os fundamentos dascincias sociais modernas, a mecnica de Newton, a termodinmica deClausius assim como a teoria da evoluo de Darwin.

    Uma terceira onda, j inaugurando a era atual de um novo para-digma, introduz o estudo do caos e acrescenta a distino ordem/caos."Tudo muda sempre, entre dois extremos, de forma no-linear e, de fato,imprevisvel"podia ser seu lema, que reflete a teoria quntica, a teoria docaos e dos fractais assim como a teoria sistmica no linear. Esta ondade pensamento valoriza os graus de liberdade mais elevados que siste-mas vitais e sociais alcanam ao longo da evoluo bio-social. Ela valo-riza a flexibilidade, espontaneidade e a criatividade, vitais para sistemas

    fora do equilbrio e expostos ao acaso, ou seja a eventos imprevisveis,"caticos"14.Para superar a viso mecanicista, sem invalid-la no que se refere a

    sistemas mecnicos (mquinas), a teoria sistmica assim como a prpriaviso do mundo social no qual estava imersa, passaram, portanto, pormudanas radicais, na contemporaneidade atual. Quanto noo cien-tfica de sistema, essa passou a incorporar fenmenos de no-equilbrio,de instabilidade, de (im)probabilidade15, de caos, de no-linearidade,em suma: de diferenciao em vez de unidade, e de mudana em lugarde ordem. Tal transformao prtica e terica - ao ser observada e perce-bida - est rompendo com os limites tradicionais do termo sistema. Ela

    ocorreu, num primeiro passo, concomitantemente com mudanas nascondies sociais e nos fundamentos de conhecimento na transio dapoca moderna, industrial, para a ento sociedade da informao. Num

    13 Enquanto o rio simboliza um fluxo contnuo, a espiral acrescenta a imagem de ummovimento circular que ao mesmo tempo aponta numa determinada direo.

    14 O caos enquanto objeto da matemtica, um caos "determinado", ou seja se pro-duz, com certeza, aps um certo nmero (grande) de movimentos repetidos de um sis-tema, que apresentam desvios casusticos.

    15 Luhmann fala, por exemplo, da improbabilidade da comunicao

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    20/218

    20 Gottfried Stockinger

    segundo passo ela derruba a modernidade enquanto "cultura comum"ea substitui pela multiculturalidade operada pela sociedade da comuni-cao. Projetada para o futuro e pela fico cientfica, hoje ela j estsendo vivida. Quanto teoria de sistemas, essa passa a se ampliar parauma teoria de redes de sistemas (tambm chamados de hipersistemas ousupersistemas), acrescentando mais um nvel de observao a ser refe-renciado na construo terica.

    Para absorver estas mudanas paradigmticas e preservar seu statusde uma teoria geral, a teoria sistmica, na sua evoluo contemporneaabsorveu inmeros impulsos multidisciplinares que concorreram parasua formao. Vejamos as contribuies de maior destaque:

    Teoria dialtica da (r)evoluo atravs de contradies e parado-xos na biologia (Darwin) e na economia poltica (Marx), no s-culo XIX. Ela se aplica na teoria sistmica ao processo de dife-renciao e, consequentemente, relao sistema/ambiente.

    Teoria do inconsciente individual e coletivo (Freud, Jung, 1900).Ela revela o sistema conscincia e sua co-evoluo com o sistemasocial.

    Fsica no linear e teoria quntica (Bohr, Schrdinger, 1920). Mos-tra a temporalidade dos elementos, sua aparncia dualista (comopartculas e como ondas) assim como sua essncia transformadora(como energia).

    Teoria da relatividade (Einstein, 1925). Derruba o absolutismo nopensamento cientfico, revelando a relatividade no s dos movi-mentos fsicos.

    Teoria dos sistemas cibernticos autoreguladores (Wiener, finaldos anos 40). Contribui com a idia de sistemas funcionarem emcircuitos autoregulados.

    Criao do modelo de transmisso de informao formal (trans-missor-canal-receptor) no incio dos anos 50 (Shannon & Wea-ver). Estabelece um marco histrico na compreenso do conceitode informao.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    21/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 21

    Descoberta da estrutura gentica enquanto cdigo de informao,no final dos anos 50 (Watson & Crick). Introduz o conceito de in-formao gentica na biologia, denominando seqncias de sm-bolos na dupla hlice do ADN.

    Fundamentao da teoria sistmica como uma teoria geral, a par-tir de abordagens matemtica e cibernticas (Bertalanffy, final dos

    anos 60). Introduz a distino epistemolgica entre sistema e am-biente.

    Elaborao de uma teoria da ciberntica de segunda ordem (VonFoerster, anos 70); explica a relao dialtica entre observador eobservado e acena com a possibilidade de explicar os mecanismosde autocriao de sistemas.

    O aproveitamento da teoria modular da lgica das formas (Spen-cer Brown; anos 70); sua incitao "draw a distinction"se cons-titui em elemento explicador da observao/distino como atocriador.

    Teoria da termodinmica no linear e da autoorganizao de siste-mas fsicos abertos e dissipativos (Prigogine, anos 70). Introduz oconceito de autoorganizao nos processos qumicos, confirman-do-o enquanto qualidade da matria.

    Incorporao do paradigma da autopoiese de seres vivos nas teo-rias construtivistas da cognio (Maturana e Varela, anos 80). Setornou uma pea fundamental para a compreenso da autonomiaoperacional de sistemas.

    Descoberta de processos sinergticos e hipercclicos na evoluoqumica /mo- lecular (Haken, Eigen, meados da dcada de 80).Refora a viso do desenvolvimento de sistemas em ciclos coope-rativos.

    Vasto desenvolvimento dos fundamentos das redes neuronais eeletrnicas na dcada de noventa do sculo XX. Anuncia a opera-cionalizao da teoria sistmica no mundo tecnolgico.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    22/218

    22 Gottfried Stockinger

    A teoria de sistemas sociais co-evoluiu com estas descobertas apro-veitando seus resultados e interagindo com eles, explicitamente a par-tir da segunda metade do sculo XX. Desde ento, ela se transformoude uma teoria de sistemas em equilbrio numa teoria de sistemas no-lineares e complexos, expostos a desequilbrios ambientais e autopro-duzidos.

    Foi sobretudo a aplicao do conceito de sistema a fenmenos ps-

    quicos e sociais que passou a mudar e a ampliar profundamente o seusignificado. Trata-se de sistemas instveis, no-lineares e imprevisveis,e no s com os mtodos tradicionais. Estes sistemas no apenas es-to expostos a um ambiente em mudana acelerada, mas reproduzemtal mudana na sua autoconstituio, como ainda veremos em detalhe.Instabilidade e incerteza so condies estruturais de tais sistemas auto-constituintes.

    O conceito de sistema aplicado em vrios nveis de fenmenos,desde os mecnicos at os sociais, revelando seus aspectos estticos deexpressar ordem e dinmicos de expressar progresso, em cada caso. Odegrau mais trivial16 - e mais esttico - da formao de sistemas se re-

    fere a explicaes de movimentos mecnicos. Mquinas, por exemplo,seguem regras mecnicas triviais. Elas processam informao na formarestrita de "comandos", com zero graus de liberdade. Mesmo neste nvelj podem ser estabelecidas analogias com sistemas sociais. Basta pensarno sistema militar e sua "mquina de guerra".

    Ser Von Foerster a tratar, em profundidade, da distino entre siste-mas triviais e no triviais, isto entre sistemas determinados "de fora"esistemas "autoorganizados". O raciocnio parte da matemtica, onde umsistema trivial transforma uminputX em outputY atravs de uma rela-o ou funo invarivel (f). A funo f determinada analiticamente,quer dizer que um observador "simplesmente tem que associar a cada X

    um Y correspondente".17

    Um sistema no trivial difere de um sistema trivial no sentido deque um estmulo X nem sempre ativa a resposta Y. O sistema exibe,no mnimo, 1 estado interno Z, cujo valor co-determina a relao entreinputeoutput(X,Y).

    Sistemas no triviais, mais complexos e bem menos previsveis, se

    16 Um sistema trivial quando os resultados de suas operaes so determinveis17 Von Foerster, 1984, p. 9-10

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    23/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 23

    referem a um outro, segundo nvel de organizao. Encontramos aqui,por exemplo, sistemas biolgicos, que seguem regras orgnicas e auto-referenciadas. Eles processam informao em forma de "cdigos". Ocdigo orgnico mais conhecido o cdigo gentico, contido no ADNdas clulas biolgicas. Este tipo de formao sistmica tambm encon-tra, como j vimos, suas analogias em processos sociais.18

    No entanto, uma teoria de sistemas sociais no pode ser derivada di-

    retamente de uma teoria geral de sistemas, que contempla tambm sis-temas fsicos e biolgicos. Uma das principais diferenas de sistemassociais em relao a outros nveis sistmicos que sistemas sociais nopodem ser objetivados como, por exemplo, corpos fsicos ou organismosbiolgicos. O "social"implica, que as comunicaes, que o constrem,esto distribudos probabilisticamente, e h de se esperar, assim, quecontenham incertezas. Em outras palavras: o comportamento de um sis-tema social, assim como suas fronteiras, no so predeterminados, e suaclassificao permanece sempre provisria, sujeita a revises permanen-tes e/ou peridicas. Seus graus de liberdade so, em princpio, infinitos.H de se esperar que suas fronteiras sero observadas de maneira dife-

    rente de posies diferentes. Como sistemas psquicos no temos acessodireto fronteira do sistema social como uma referncia externa. Massabemos que ela faz parte do sistema observado.19

    Outra diferena entre o social e outros nveis de sistemas reais queas funes de (sub)sistemas sociais no so dadas, mas sim construdase reconstrudas na interao humana, ou seja enquanto cdigos vlidospara a respectiva comunicao. J no nvel biolgico se realiza este nvelevolutivo: aqui observamos clulas, cuja funo no tecido biolgico no predeterminada. Todas as clulas contm toda a informao gentica,mas apenas parte ativada em cada circunstncia. Clulas cerebrais eclulas do fgado, por exemplo, so idnticas na sua construo gen-

    tica. Apenas suas funes so diferentes. Antes das clulas se funcio-18 Podemos acrescentar aqui ainda Levy (1996, p. 135f), que fala de "identidades

    qunticas"que se encontram em micro- e nanoestruturas: "O gene da biologia molecular,o octeto da informtica, o tomo das nanotcnicas no so invenes triviais. Essesgros no so fragmentos de coisas, meros resduos de anlise, mas ...as formas dosmateriais, dos organismos, e das mensagens".

    19 No filme "The Truman Show", de 1998, Truman teve mais sorte. Ele chegou auma fronteira do sistema social e teve que reconhecer, agora com certeza, que haviasido produzido por comunicadores invisveis.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    24/218

    24 Gottfried Stockinger

    nalizarem, passam por um estgio de clulas-raizes (stemcells), que nocaso do ser humano dura cerca de 10 dias aps a fertilizao do vulo.Neste perodo fica ainda indefinido qual o leque de funes a seremexercidas pela clula. A diferena entre clulas biolgicas e "clulassociais"(interaes) consiste no diferente grau de reprogramabilidade:a bio-clula, no ser adulto, pode ser "clonada", mas dificilmente servenerada, ela prpria; e a interao comunicativa auto-regeneradora,

    mesmo a nvel dos seus elementos. Isso leva a um grau de liberdadeadicional. Este grau de liberdade poder regenerar-se vontade, atribui comunicao, qualquer uma, a qualidade de "imortalidade"(enquantohouver sociedades).

    Para sistemas psquicos, refletir e compreender o cdigo da comu-nicao como uma construo uma tarefa semelhante composiode um "quebra-cabeas". As mensagens emitidas e recebidas parecem"fatos"evidentes, e fica difcil desconfiar da "realidade"que contm. Poroutro lado, a mesma desconfiana se volta para uma realidade em formadogmtica, absoluta e imutvel, no construda, mas inevitavelmenteimposta. Uma cincia social que tomasse o cdigo de suas comunica-

    es como dogmas e verdades eternas, coincidiria com as formas reli-giosas de pensamento. Como tanto, seria ou suprflua ou representariaapenas mais uma seita religiosa ou esotrica, fechada nos seus prprioscdigos pseudo-cientolgicos.

    No "ultimo"nvel da escala de classificao sistmica encontramos,portanto, sistemas sociolgicos, acoplados estruturalmente a sistemaspsicolgicos que se orientam em "regras"comunicativas autocriadas. E-les processam informao em forma de "sentido". No entanto, nestenvel, a palavra regra j no se aplica de maneira rgida, j que em sis-temas de sentido as excees muitas vezes tornam-se preponderantes eas regras esto sujeitas a se tornarem excees. A autocriao no tm,

    em princpio, limites; melhor dito: eles conhecem apenas os limites queeles mesmos se pem. No matars!, por exemplo.A mero ttulo de especulao filosfica, podera-se perguntar se em

    mquinas e organismos no haveria tambm um equivalente funcionalpara sentido. A referida classificao de sistemas e dos seus nveis me-cnico, orgnico e psico-social se tornaria, ento, obsoleta. Ela teria queser substituda por uma classificao circular, onde todos os fenmenosse encontram no mesmo nvel, sem distino hierrquica. Tratar-se-ia

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    25/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 25

    no entanto de uma classificao que contraria o antropocentrismo domi-nante nas cincias e encontra, portanto, resistncia no pensamento e nacomunicao de seres humanos, o que lhe d poucas possibilidades deser aprovado no "parlamento"da comunicao humana.

    1.3 A relao sistema / ambiente

    A passagem de uma viso esttica para uma viso dialtica e evolucio-nria, que observa a emerso e construo da realidade, ocorre na teoriade sistemas quando o teorema da unidade do "todo e as partes" substi-tuda por uma diferenciao entre "sistema e ambiente", sendo que nesteambiente se encontram tambm outros sistemas que co-evoluem.

    Assim, no curso de sua auto-observao cientfica e na interaoentre as vrias disciplinas que utilizam o paradigma sistmico, a teoriade sistemas foi transformando e superando a viso pouco dinmica dosistema como um "tipo ideal"com suas partes em equilbrio. Na foca-lizao tradicional do conceito sistema, a diferena entre o todo e aspartes (sistema / elementos), foi tomada como uma relao estrutural-

    funcional linear. Ela foi substituda pela diferena entre sistema e ambi-ente, tomada como uma relao dialtica (funcional / disfuncional) e nolinear. Com esta mudana (introduzida por Ludwig von Bertalanffy) ateoria dos organismos, a termodinmica e a teoria da evoluo, que usa aviso de sistemas abertos a ambientes, podiam ser mutuamente relacio-nadas. Construiu-se o fundamento de uma teoria que se aplica a todosos sistemas abertos, expostos a irritaes permanentes por um ambiente,o qual tambm, como ainda veremos, autoproduzido.

    "Como ponto de partida de qualquer anlise terica sistmica... hde servir a diferena de sistema e ambiente. Sistemas se orientam no seuambiente no apenas de forma casual ou adaptativa, mas de forma estru-

    tural, e no podem existir sem ambiente. Eles se constituem e se mantmatravs da produo e manuteno de uma diferena com o ambiente, eeles usam suas fronteiras para a regulao dessa diferena. Sem dife-rena em relao ao ambiente nem haveria autoreferncia, j que a dife-rena um pressuposto para operaes autoreferenciais. Neste sentido amanuteno da fronteira (boundary maintenance) significa manutenodo sistema".20

    20 Luhmann, 1984, p. 35

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    26/218

    26 Gottfried Stockinger

    Como conseqncia, continua Luhmann (1984, p. 37) "a diferenaentre sistema e ambiente fora o paradigma da teoria de sistemas a subs-tituir a diferena entre o todo e as partes por uma teoria da diferenciaodo prprio sistema. A diferenciao do sistema nada mais do que a re-petio da formao de sistemas dentro do sistema... O sistema inteiroganha, assim, a funo de ambiente interno para os sistemas parciais, ede forma especfica para cada sistema parcial."Isso quer dizer que o as-

    pecto "estrutural"da unidade das partes num todo continua a aparecer, natica do teorema sistema/ambiente na diferenciao do sistema em sub-sistemas, eles mesmo elementos sistmicos ativos que respondem, por siprprios, relao dialtica entre sistema e ambiente. Esta rediferencia-o torna os sistemas complexos, imprevisveis, probabilsiticos, porquea relao entre as "partes"passa a ser uma relao sistema/ambiente. Ouseja, ela passa a ser vista como uma relao mediatizada, j no baseadaem "estrutura", mas em funes multifacetadas e cambiveis. A relaocausal entre o comportamento das partes e o comportamento do sistemacomo um todo posta em causa, e com ela o conceito de causalidadecomo tal. "A readaptao da teoria para a diferena entre sistema e am-

    biente tem consequncias profundas para a compreenso de causalidade.A linha divisria entre sistema e ambiente no pode ser compreendidacomo um isolamento e um resumo das causas mais importantes no sis-tema, j que ela corta contextos causais; a questo : sob que pontos devista ela faz isso? Sempre todos os efeitos resultam de uma cooperaoentre sistema e ambiente".21 Atribuir causas e efeitos depende, portanto,do ponto de vista e do interesse de conhecimento que se tem.

    Para detalhar as qualidades da relao sistema/ambiente, Luhmannparte do conceito produo, no sentido de reproduo, autoproduo,autopoiese, autocriao. A relao sistema-ambiente ativa: ela con-trola algumas das causas de sua existncia, mas de longe no todas. A

    diferena "algumas / no todas"permite a seleo (quais?) e a avalia-o do grau de controle do sistema (quantas?). Alis, na fronteira dosistema, l onde a diferena com o ambiente ativada, que ocorrem asprincipais atividades, e l que suas "causas"so mais facilmente ob-servveis, por que permanentemente esto sujeitos comprovao decontinuarem a "funcionar". Por isso que a diferena entre sistema e am-biente essencial para possibilitar qualquer tipo de evoluo. Nenhum

    21 Luhmann, 1984, p. 40

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    27/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 27

    sistema pode evoluir de dentro de si prprio. Se o ambiente no vari-asse de maneira diferente do que o sistema, a evoluo encontraria umfim rpido num estado de adaptao tima (optimal fit). No caso dosistema social so principalmente os indivduos - que fazem parte doseu ambiente que excitam-no ou irritam-no constantemente com suascomunicaes diferenciadas e levam-no a flutuaes, criando assim si-tuaes de instabilidade ambiental.

    A diferena entre sistema e ambiente deve ser distinguida de outra,igualmente constitutiva: a diferena entre elemento e relao. "Em am-bos os casos aunidadeda diferena deve ser pensada como sendocons-titutiva. No h sistemas sem ambientes nem ambientes sem sistemas,e no h elementos sem conexes relacionais ou relaes sem elemen-tos. Nos dois casos a diferena forma uma unidade (por isso falamos:"a"diferena), mas ela resulta e opera apenas como diferena."22 A in-formao pode ser processada apenas enquanto diferena e entrar assimna comunicao. A diferena interna de sistema e ambiente aponta paraa formao de subsistemas, que por sua vez se decompem em unida-des diferenciadas de elemento/relao. Num caso se trata dos quartos

    de uma casa, noutro caso trata-se de pedras, tbuas, pregos etc. A pri-meira forma de decomposio tratada por uma teoria da diferenciaodo sistema. A outra desemboca numa teoria da complexidade do sis-tema. Embora seja possvel contar o nmero de elementos e calcular aquantidade possvel de relaes entre eles, esta quantificao no carac-teriza a qualidade do sistema, que deriva da complexidade das relaesentre elementos. Os elementos ganham sua qualidade apenas quandoso usados de forma relacional.

    Em sistemas complexos o seu uso pode acontecer apenas de formaseletiva, quer dizer desativando outras relaes igualmente imaginveis.Note-se que o que quarto e o que tijolo definido por um sistema

    maior, pelo sistema casa. Elemento aquilo que funciona como unidadeindissolvel para o sistema, ainda que seja um composto complexo doponto de vista microscpico.

    V-se no exemplo da casa que a unidade dos elementos no cons-truda "de baixo para cima", mas deve ser vista como uma construo"de cima para baixo". Se o tijolo um elemento construtor de casa,

    22 "Qualidade s possvel mediante seleo; e seleo requer complexi-dade."(Luhmann, 1984, p. 41)

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    28/218

    28 Gottfried Stockinger

    sua qualidade de organizao em paredes e divisrias deriva do sistemacasa. Ou se a ao um elemento do sistema social, porque este sis-tema social (e no um estado de conscincia), atribui o comportamentoa pessoas. Por isso que "elementos so elementos apenas para aque-les sistemas, que os usam enquanto unidades, e os so apenas atravsdesses sistemas."23 Esta compatibilidade entre sistema e seus elementospermite a autopoiese do sistema, como ainda veremos.

    J o relacionamento de relativamente poucos elementos em sistemas"pequenos"leva a impossibilidade de conect-los todos de uma s vez,ou seja leva ao fenmeno da complexidade.24

    Complexidade um conceito terico que aponta para os "fatos nor-mais"da vida cotidiana. O conceito se refere sua multiplicidade, aoentrelaamento e contnua interao da infinidade de fenmenos queconstrumos e, portanto, percebemos como "mundo natural e social".Explicar essa variedade multidimensional requer mais do que argumen-tos simplistas, regras rgidas, frmulas simplificadoras ou esquemas fe-chados de idias. No que as frmulas simples (E=mc2)sejam inteis,mas elas j so uma reduo do complexo. Sistemas complexos configu-

    ram e formatam mundos, cujas mudanas permanentes so caraterizadaspor sua aleatoriedade e por sua incerteza.Para reduzir a complexidade do nosso mundo, todos ns somos, em

    grau maior ou menor, condicionados pela unidimensionalidade de umpensamento linear, causal. Sua lgica simples, tanto quanto a cons-truo de causalidade: se B vem, sempre ou com certa frequncia, de-pois de A, B considerado o efeito e A considerado a causa. A e Besto em relao de causalidade simples. Na vida cotidiana experimen-tamos, no entanto, que entre causas e efeitos muitas vezes no existeuma contigidade calculvel. Quando isso o caso, a busca da causa-lidade dificulta e impede frequentemente, a compreenso de fenmenos

    complexos, como os de natureza biolgica e psicossocial.Os discursos cientficos aprimoraram inmeros formatos do pen-samento linear, e suas descries, mesmo de fenmenos psico-sociais,apresentam o mundo como uma mquina gigantesca, da qual o indiv-

    23 Luhmann (1984, p. 42)24 Luhmann (1984, p. 47) define complexidade a partir de um limiar alm do qual

    no mais possvel de colocar todos os elementos do sistema em relao um com ooutro.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    29/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 29

    duo seria uma rodinha. o tipo de discurso que exclui quaisquer outrospor se achar lgico e natural, como que inspirado por "fora superior".Tais discursos serviram de base para as ideologias positivistas em gerale do autoritarismo em particular, que chegaram a ver fenmenos comodiscriminao, elitismo, dominao e excluso social, e at holocaustose genocdios, como lgicos, naturais e inevitveis.

    A teoria da informao leva a novos insightssobre sistemas com-

    plexos. Ela v complexidade "uma medida para a indefinio ou ca-rncia de informao. Complexidade, vista assim, a informao quefalta ao sistema para compreender e descrever completamente o seu am-biente (complexidade do ambiente) e a si prprio (complexidade dosistema)."25 Sistemas complexos convivem com esta indefinio. Aimagem que um sistema complexo produz de si prprio e em cima daqual reage, sempre incompleta. Ela chamada "uma imagem bor-rada"(fuzzy picture).

    Estando a se destacar permanentemente do ambiente (que chama de"seu"), o sistema trabalha a sua diferenciao interna, usando-a para suareflexo. Esta se estabelece, do ponto de vista ciberntico em circuitos

    reguladores. A sociedade repete dentro de si a diferena entre sistema eambiente, formando sistemas parciais internos: economia, cincia, pol-tica, religio, educao, direito etc. Ela compreende estes subsistemas,e outros como por exemplo a nvel de organizaes e instituies, comoseu ambiente interno. Dispor de um ambiente autoproduzido, ou sejadecompor-se em subsistemas diferentes e especficos, tem a grande van-tagem de o "todo"poder existir em todas as partes de forma mltipla.Tanto a complexidade como a seletividade do sistema inteiro aumentamassim enormemente, fazendo o mecanismo reflexivo da diferenciaodo sistema continuar a operar a nvel dos subsistemas sociais.

    Assim, a diferenciao interna do sistema explicada como a repeti-

    o da diferena sistema/ambiente dentro do sistema. Considerando sis-temas socais, vemos com facilidade que o sistema todo utilizado comoambiente para a formao de subsistemas prprios, que por sua vez apa-recem como ambientes do sistema todo. Assim o sistema mercado servede ambiente para empresas, tal qual os subsistemas estado e proprie-dade privada servem de ambiente para o sistema famlia. Tratando-sede ambientes internos, eles so mais "protegidos"e menos exposto a in-

    25 Luhmann, 1984, p. 50

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    30/218

    30 Gottfried Stockinger

    certezas. por isso que o sistema consegue alcanar probabilidadesmais elevadas de reproduo. Ele fortalece os seus "filtros"para com umambiente "externo"no diretamente controlvel nos momentos precisos.Na diferenciao interna de um sistema emergem, portanto, subsistemasque no se colocam apenas em relao com o ambiente geral do sistema,mas tambm com outros subsistemas e com o prprio sistema.

    Tambm em sistemas sociais ocorre que com a diferenciao interna

    do sistema cresce sua complexidade interna. Se ele pode operar com v-rios subsistemas ao mesmo tempo, ele conseguir melhor comunicar-see gerenciar, assim, melhor a complexidade do seu ambiente. A comu-nicao como a ambiente se torna tanto mais vital para uma empresa,por exemplo, de quanto mais informao ela dispuser. A diferenciaointerna da empresa a tornar capaz de processar ambientes simblicosdiferentes: cada subsistema gera um cdigo especfico que permite aacelerao da comunicao, j que h reduo seletiva de complexidadepor vrios "filtros", no caso da empresa chamadas de cultura empresarial(com suas subculturas e mundos diferenciados). Quando uma empresaamadurecer a este ponto, ela j no consistir simplesmente de um n-

    mero certo de funcionrios e das relaes entre eles. Ela consistir deum nmero mais ou menos grande de diferenas entre sistemas e ambi-entes. Estas diferenas so operacionalmente usveis, como ainda ve-remos. Para tal, os sistemas funcionais se fecham operativamente parao ambiente, atravs de codificaes especficas que os permitam de de-legar o tratamento do "mundo externo"ao ambiente, tornando-se maiseficaz. um processo que pode ser observado na terceirizao de ser-vios por grandes empresas, por exemplo. Ao se utilizarem de cdigosque se referem ao "mundo externo", eles reduzem sua complexidade eso "livres"para suas tarefas "internas", definidas agora de forma maisrestrita do que antes da terceirizao.

    A sociedade mundial criou no decorrer do seu desenvolvimento di-ferentes formas de diferenciao. De forma surpreendentemente tradi-cional, Luhmann distingue sociedade arcaica, sociedade de cultura an-tiga e sociedade moderna.

    A sociedade arcaica usa a forma de diferenciao segmentria. Elase diferencia em subsistemas iguais, por exemplo em tribos, aldeias, fa-mlias etc. A sociedade antiga usa a forma de diferenciao estratifica-tria, quer dizer que ela se diferencia em camadas ou classes desiguais,

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    31/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 31

    alocados num esquema "em cima/em baixo". J a sociedade modernamuda para a diferenciao funcional. Ela se diferencia em sistemas fun-cionais no iguais que se distinguem por suas relaes sociais funcio-nais, como por exemplo economia, direito, poltica, cincia, religio,educao etc.

    Tambm em organizaes o mecanismo de diferenciao est pre-sente. Empresas e outras formas de organizaes de trabalho, por exem-

    plo, no criam apenas diferenas de nveis, mas tambm diferentes con-textos funcionais, como por exemplo em forma de departamentos querealizam tarefas especficas para a organizao geral e cooperam nomesmo nvel hierrquico. Devido a esta diferenciao interna, quer deforma horizontal quer de forma vertical, sistemas de organizao po-dem reduzir complexidade social de forma mais segura, baseados emexpectativas definidas, pelo menos at a prxima reorganizao.26

    Sistemas complexos como os da sociedade (ps-)moderna no uti-lizam, via de regra, apenas uma forma de diferenciao. A sociedademoderna usa, ao lado da diferenciao funcional, as formas mais anti-gas de diferenciao.

    A economia moderna, por exemplo, se baseia na diferenciao fun-cional, enquanto que seus subsistemas empresariais seguem o princ-pio da diferenciao segmentria, que por sua vez se diferencia interna-mente de forma estratificatria e funcional.

    Em todas as formas de diferenciao social, a relao entre indiv-duo e sociedade definida, em ltima instncia, plos termos "inclusoe excluso":

    em sociedades segmentrias, a incluso ocorre pela atribuio doindivduo a determinados segmentos (famlias, tribos, cls)

    em sociedades estratificadas o indivduo pertence a uma determi-nada casta, camada ou classe social.

    Na sociedade de diferenciao funcional as pessoas se tornam"socialmente sem lugar", no pertencem a nenhum segmento, ne-nhuma camada e nenhum sistema funcional "per se". Elas so

    26 Nos tempos atuais, as fases de definio de expectativas seguras costuma ser cadavez mais curta, sendo que a reorganizao, antes exceo, muitos vezes se torna quasepermanente.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    32/218

    32 Gottfried Stockinger

    includas/excludas na base de sua participao na comunicaode determinados sistemas funcionais.27

    bvio que um tal sistema social deve-se pautar no postulado po-ltico da incluso geral, ou seja que cada um devia estar com o podersuficiente de, em princpio, participar de todos os sistemas funcionaisde sua escolha e/ou conseguir as aptides de assim f-lo.

    Na sociedade estruturada em classes, foi a aristocracia (mais tardealiada burguesia) que tentou, enquanto sistema parcial, representar asociedade como um todo. Na sociedade moderna, funcionalmente dife-renciada, nenhuma parte pode pleitear a representao do todo. Mesmoque cada subsistema (quer econmico, cultural, poltico ou de outra n-dole ) ache o seu contexto funcional o mais importante, esta exignciano pode ser realizada em relao sociedade como um todo. As ca-pacidades enormes de cada sistema parcial se tornaram dependentes dascapacidades de outros subsistemas.

    Os subsistemas funcionalmente diferenciados da sociedade modernaseguem determinadas diferenas diretrizes, construdas em forma de

    cdigos binrios (til/intil, por exemplo, no caso do sistema econ-mico). Diferenas diretrizes formam a identidade do sistema. Econo-mia economia porque suas operaes se baseiam, por exemplo na di-ferena pagar/no pagar. Poltica poltica, baseado por exemplo nadiferena governo/oposio. Direito direito ao tratar-se do esquemajustia/injustia. E o sistema cincia avalia sua comunicao em termosde verdadeiro/falso.

    Em tempos pr-modernos, sociedades se diferenciaram em contra-posio a outras sociedades, sobretudo segundo princpios nacionais eterritoriais. A sociedade moderna se torna sociedade mundial, comouma totalidade terrestre de todas as possveis comunicaes. Para alm

    das fronteiras externas da sociedade mundial encontra-se o mundo dehorizontes de sentido social aberto.27 Isso se aplica sobremaneira comunicao no ciberespao: "O espao do novo no-

    madismo no o territrio geogrfico, nem o das instituies ou o dos Estados, mas umespao invisvel de conhecimentos, saberes, potncias de pensamento em que brotam ese transformam qualidades do ser, maneiras de constituir sociedade"(Levy, 1996, p.15)

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    33/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 33

    1.4 Parsons e Luhmann: a interao contingente

    Alguns dos fundadores da sociologia moderna enquanto uma disciplinaautnoma (por exemplo Durkheim, Weber, Parsons) desenvolveram umacompreenso qualitativa profunda dos processos de diferenciao e ins-titucionalizao que moldam e orientam as interaes sociais. Para talcompreenso, o conceito da diviso social do trabalho, elaborado por

    Durkheim, foi decisivo.

    28

    O seu desenvolvimento levou ao conceito dediferenciao funcional da sociedade. O conceito da diviso social dotrabalho permite analisar a decomposio de tarefas em componentesque podem ser executados simultaneamente, de forma "organizada", ouseja de forma parecida a rgos de um corpo biolgico. Alm disso,implica na integrao subseqente dos resultados, ou seja na reintegra-o ou "montagem"do produto, em cadeia. Um sistema social funcio-nalmente diferenciado dispensa uma coordenao central, j que os v-rios processos mantm interaes um com o outro e se desenvolvem deacordo com seus prprios programas. Sua "coordenao"horizontal selimita constituio de compatibilidades. Talcott Parsons29 chamou os

    sistema sociais funcionalmente diferenciados, usando a terminologia deMax Weber, de sistemas de ao social. A inovao crucial de Parsons,tanto em relao a Durkheim quanto em relao a Weber, consistiu eminverter o ponto de vista pelo qual a ao social weberiana estava inte-grada em uma estrutura social dada pela diviso social durkheimiana;Parsons (1952) passou a constituir o social no a partir da estrutura, masa partir da ao. Invertendo, assim, as posies conceituais, ele con-cebeu a estrutura social "integrada"em cada unidade (elemento) social,em cada ao social. Esta integrao operada em processos de soci-alizao do indivduo. Parsons enfatizou que se tratava de um circuitoregulador entre estrutura e ao, e chamou este modelo de "sociologi-

    camente ciberntico". Suas origens esto na idia de que o indivduo,como um membro da sociedade e por ser membro, no est inteiramentelivre para tomar suas prprias decises. A estruturas interiorizadas na

    28 Ver Durkheim, 1930.29 Talcott Parsons (1902 - 1979), socilogo norte-americano. Tentou, pela primeira

    vez, integrar todas as cincias sociais numa cincia nica da ao humana. Ele inicioua sua carreira como bilogo e mais tarde comeou a se interessar por economia e so-ciologia. Ele se dedicou ao funcionalismo sob a influncia do antroplogo BronislawMalinowski.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    34/218

    34 Gottfried Stockinger

    ao social o compelem a aceitar a orientao comum da sociedade emnome da qual o indivduo age e qual se auto-adapta.

    Esta interpretao, que pressupunha a busca de equilbrio como uma"necessidade"dos sistema social, conduziu Parsons a desenvolver uminstrumento conceitual complexo que sabe explicar, contundentemente,a estabilidade social em todas as suas facetas, mas que carece de expli-caes da mudana social. quase que um funcionalismo "autoritrio",

    mesmo que seu autor no tenha tido essa inteno.Tal como o socilogo alemo Max Weber, cuja obra ele traduziu,Parsons queria classificar tipos lgicos de relaes sociais que podiamser aplicados a todos os tamanhos de grupos sociais. Estes tipos lgi-cos ele denominou como "sistemas". No caso do sistema social trata-sede sistemas de ao. A partir da, ele constri uma teoria geral da ao,cuja primeira tentativa data de 1937 no seu livro "The Structure of SocialAction", seguido de "Essays in Sociological Theory, Pure and Applied",em 1942. Em "The Social System", editado em 1951, Parsons argumen-tou que o processo fundamental que carateriza tanto sociedades quantoorganismos biolgicos, a "homeostase"30. As partes podiam ser com-

    preendidas apenas em relao a um todo em comparao com um "es-tado ideal"de equilbrio.Enfim, sem chegar muito longe nas explicaes macro-sociolgicos,

    Parsons aplicou sua teoria geral dos sistemas socais a processos de inte-rao social, a nvel micro-sociolgico, por assim dizer.31

    O modelo ficou esttico, desde que o influxo de informao no sis-tema pelo ambiente no pode mais ser especificado. Se a estrutura forintegrada sempre na ao, no h nenhum ambiente em relao ao qualas reaes ficariam com posies definidas, que dizer que ficam sem onecessriofeedback. Isso faz com que os circuitos reguladores do sis-tema no funcionariam.

    Consciente desta carncia de sua teoria, Parsons props que os doistipos de interaes sistmicas - entre subsistemas da sociedade por umlado e entre objetos culturais/ sociais e o sistema "personalidade- po-deriam ser compreendidos em termos das mesmas relaes cibernticas

    30 O que significa o processo de manuteno de um estado estvel ou em equilbrio.31 Parsons usou o conceito parecido de "interpenetrao"como um conceito mais

    geral para as zonas da interao entre os sistemas e os subsistemas, e tambm em re-ferncia s maneiras em que o sistema "personalidade"internaliza objetos culturais esociais. Interaes so, ento, casos especficos de interpenetrao.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    35/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 35

    reguladoras, e seriam aplicveis a todos os sistemas estveis de intera-o social. Ele formulou32: "O fenmeno de que normas culturais sointernalizadas em personalidades e institucionalizadas em coletividades uma caso de interpenetrao de subsistemas de ao, neste caso entresistema social, sistema cultural e sistema de personalidade. Uma culturanormativa institucionalizada parte essencial de todo sistema estvel deinterao social. Consequentemente, o sistema social e a cultura devem

    ser integrados em maneiras especficas de sua interpenetrao."Luhmann apreciou a teoria de Parsons como sendo a tentativa a maissistemtica de compreender a relao entre o indivduo e a sociedadecomo uma que interna ao sistema.33 Ele aceitou os conceitos sist-micos de Parsons, sobretudo aqueles que apontam para a diferenciao(funcional) em sistemas de comunicao. Mas, ele distinguiu mais cla-ramente do que Parsons entre "sociedade"e "atribuies de atores huma-nos", ou seja, entre sistemas sociais e psquicos, e sua relao recproca.Parsons, seguindo Max Weber, viu a sociedade como entidade psico-social e define o papel do ator como a unidade conceptual do sistemasocial.34

    Quanto s pessoas, elas aparecem em sistemas sociais como "cola-gens de expectativas"expressas e impressas numa estrutura de comuni-cao. Papis sociais tambm so colagens, no entanto num nvel maisgeneralizado, ou seja, sua estrutura de comunicao atribuda a atoressubstituveis. Papis definem, assim, expectativas independentementedas pessoas que os desempenham. Papis representam recortes do com-portamento humano que podem ser atribudos a pessoas substituveis.As expectativas so estabilizadas em escalas de valores, sendo que osvalores sociais marcam o nvel mais alto da fixao de expectativas.Eles orientam aquilo que desejvel ou indesejvel numa determinadasituao social, independente de papis ou de pessoas determinadas.

    O problema que um papel social no deixa de ser um atributo deum ator, por mais que fosse concebido de forma impessoal e transfervel.Apenas sua ancoragem num sistema superior, numscript(para ficar nalinguagem do teatro) pode conferir sentido social s aes esperadas.

    procura destescript - desta dimenso social da ao - Parsons

    32 Parsons, 1968, p. 47333 Luhmann, 1977, p. 6534 Ver Parsons e Shils, 1951, p. 190

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    36/218

    36 Gottfried Stockinger

    compreende a relao aparente entre um ator Ego e outro ator Altercomo "histrica". Para ele, a interao entre Ego e Alter provm daconstruo de "reas consensuais"preestabelecidas, que Ego e Alter se-riam capazes de evocar e atualizar (leia-se: de lembrar35) para orientarsuas aes. Tais reas se expressariam, por exemplo, por uma (sub-)cultura comum, ou, como o coloca Parsons, por um "sistema simblicocompartilhado"(shared symbolic system). O sistema simblico ajudaria

    a superar a incerteza comunicativa entre Ego e Alter e a permitir assima troca de informaes.Essa incerteza, segundo a concepo de Parsons, parte integrante

    da constituio de sistemas sociais. Ela se torna observvel na formade uma situao de dupla contingncia"entre Ego e Alter. Ela surge,como Parsons descobriu, porque no poderia haver ao se Alter fizerdepender seu comportamento de Ego e se Ego quiser orienta-lo em Al-ter.36 A interao, no momento de surgir, se refere necessariamente auma incerteza dupla existente em ambos os lados, Ego e Alter, pres-tes a se comunicar. Para que possa haver comunicao, esta situaode contingncia dupla tem de ser ultrapassada de algum modo. Isso

    ocorreria, segundo Parsons, pelo uso de um "sistema simblico compar-tilhado"pelos participantes, ou seja pelo aprendizado anterior de umacultura comum.

    Visto de perto nota-se que, embora j tentando separar o psquico dosocial, esta concepo ainda continua a explicar o processo comunica-tivo como sendo gerado por sistemas psquicos imersos num ambientesocial e cultural preestabelecido. Na verdade, ela se limita a questo decomo educar os indivduos para se adaptarem a uma ordem social dada.Ela no consegue explicar a gnese do sistema comunicativo, relegando-a apenas existncia de processos de socializao anteriores, ou sejaa uma cultura "impregnada"nos indivduos, reproduzida pela tradio.

    Esta concepo se revelou pouco capaz de explicar a base da comunica-o sociolgica em pocas crticas de mudana scio-cultural, como aque vivemos hoje em dia.

    Na tentativa de superar esta carncia, a teoria sistmica de Luhmannavana com um modelo de comunicao que reaproveita o teorema da

    35 V-se aqui com clareza que Parsons ancora o sistema social na memria e naconscincia individuais, psicologizando-a, indevidamente.

    36 Ver Parsons & Shils, 1951, p. 198

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    37/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 37

    dupla contingncia de maneira criativa, desistindo da concepo auxiliarde reas de compreenso comuns e preexistentes. No seu lugar Luh-mann coloca uma viso de comunicao como operao autopoitica,onde na situao de dupla contingncia brotam qualidades e diferen-as emergentes, que levam formao de sistemas sociais. Trata-se noapenas da autopoiese do emissor e/ou do receptor, mas ao mesmo tempoda autopoiese do prprio sistema social emergente.

    Luhmann mostra ento, criticando Parsons construtivamente, que asoluo do problema da dupla contingncia no pode estar numsharedsymbolic systempreexistente, como Parsons o postulou, porque ele te-ria que ser pressuposto como imutvel ead aeternum.37 E, se Ego jsoubessem de antemo como Alter reagir ou o que responder, ele noexibiria nenhum comportamento informativo, a no ser um "j sei"re-dundante. Comunicao no podia ser atribudo a ningum. s quandoEgo e Alter se "surpreendem"que a comunicao pode iniciar.

    O sistema social no surge, ento, de uma concordncia de opinioou de ao, nem de uma coordenao de interesses intenes, nem deconhecimentos comungados entre os atores.38 Pelo contrrio, a prpria

    emerso contnua desses valores e dessas normas comuns deve ser expli-cado. Eles prprios so uma construo social, produzidos em processosde comunicao. Luhmann props, em conseqncia, que a constitui-o de sentido (meaning) fosse vista como sendo operacionalizada emsistemas de comunicao e no em sistemas de ao.

    Para que o processo de comunicao possa guiar-se a si prprio, eledeve ser decomposto em aes, deve ser reduzido a estas. Sistemassociais no so, portanto, compostos por aes...Pelo contrrio, eles sodecompostos em aes e ganham com esta reduo a base para conectarcom futuras ocorrncias comunicativas.39

    Distinguindo-se metodologicamente de Parsons, ele props conside-

    rar "sociedade"e "pessoa"como sistemas diferentes de referncia. Em-bora o sistema social e a personalidade estejam ambos construdos por

    37 Ver Luhmann, 1984, p. 14938 Levy observa a inexistncia de uma cultura ou de um saber comum sob outro

    aspecto ainda: "O saber da comunidade pensante no mais um saber comum, poisdoravante impossvel que um s ser humano, ou mesmo um grupo, domine todos osconhecimentos, todas as competncias; um saber coletivo por essncia, impossvel dereunir em uma s carne."(1996, p. 181)

    39 Luhmann, 1984, p. 193

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    38/218

    38 Gottfried Stockinger

    (inter)aes, a sua dinmica e seu ciclo de vida so diferentes. Cadaindivduo funciona no seu prprio ciclo psicolgico, como um proces-sador local, e os sistemas sociais lhe servem de ambiente ou rede decomunicao.

    1.5 Autopoiese e fechamento operacional

    Uma construo terica genuna, que acentua o carter prprio e a di-nmica vital de sistemas, se baseia nos conceitos de autoreferncia eautoorganizao. Os termos, j largamente aceites por volta de 1960 sereferiram, na sua origem, ao problema da mudana de estruturas commeios prprios, observada em sistemas biolgicas e sociais. Autoorga-nizao um conceito matematicamente especificvel, com razes natermodinmica fsica do no-equilbrio40, e na neurofisiologia cogni-tiva.41 Sua adoo, naquela altura, impulsionou refletiu uma mudanade paradigma, cujos discursos expressam concepes tais como "cin-cias da complexidade", teoria de "sistemas no lineares, abertos e di-nmicos", "ciberntica de segunda ordem", incorporados numa "teoria

    geral da autoorganizao".42Autoorganizao tida como a emerso de ordem, de organizao

    ou de sentido/significado num sistema energeticamente ou informaci-onalmente aberto. A idia bsica provm da observao de circuitosreguladores cibernticos: autoorganizao ocorre quando um estado deno-equilbrio, que resultado da abertura energtica/comunicativa dosistema, e os processos de compensao deste desequilbrio esto aco-plados. Em outras palavras: autoorganizao o resultado de uma rea-limentao (feedback) circular entre efeitos e causas, que provoca dese-quilbrio e uma reao compensatria a este desequilbrio. Esta reaocompensatria interna. No se trata de uma reao linear ao ambi-

    ente, mas de uma reao do sistema a seus prprios atos. Esta "com-pensao"corresponde, portanto, a uma seleo interna do sistema natentativa de reproduzir um estado especfico. H uma relao entre aoperao seletiva e os processos de compensao. Em certas condiesdadas, a cada forma de desequilbrio corresponde uma forma especfica

    40 por exemplo Prigogine e Stengers, 1979/198441 por exemplo Maturana, 197842 Ver a respeito Laszlo, 1996

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    39/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 39

    de compensao. Dentro desta "estabilidade dinmica"o desequilbrio esua compensao se determinam. Esta "estabilidade" observada comoordem, organizao ou sentido (significado,meaning).

    A conexo circular das causas com seus efeitos conhecido como"fechamento operacional ", uma forma especfica de autonomia. Umsistema autnomo quando processa a sua dinmica dentro do prpriosistema.

    Devido sua complexidade, as aes de sistemas autoorganizadosno so determinadas e previsveis. Esta complexidade deriva do fatodo prprio sistema intervir constantemente na cadeia de causa e efeito.Ele muda de posio e funo, dependendo dofeedbackrecebido; comisso muda tambm enquanto sistema de referncia, o que atribui a cadaum dos seus efeitos um novo significado para os sistemas observado-res. Um sistema autoorganizado opera com graus de liberdade que lheoferecem mais do que uma s alternativa de agir; e, detalhe importante,essas alternativas so uma criao do prprio sistema autoorganizado,tornando as bifurcaes possveis praticamente ilimitadas.

    Autoorganizao , portanto, uma qualidade de sistemas em esta-

    dos de desequilbrio, qualidade essa que se mostra como faculdade deconstruir ordem provindo de flutuaes.43 Em sistemas autoorganizadosincerteza e indeterminao permeiam, portanto, as relaes causais. Londe sistemas autoorganizados esto envolvidos, no h uma s ordempara sempre. Porque so os prprios sistemas que selecionam N (e maisuma) maneiras de reagir. E mesmo controlados e expostos "represso",sistemas inteligentes encontram um "jeito"de se mover e agir.

    No entanto, para poder agir numa situao complexa, um ciclo re-flexivo de seleo das alternativas h de iniciar. O problema que oseu resultado probabilstico, imprevisvel. O efeito, o comportamentoescolhido, emergente, constitui algo novo, promovido pela autoorga-

    nizao do sistema. Assim, "causa non aequat effectum"e "actio non estreactio", contradizendo os princpios do universo mecnico.44

    Para tais equaes, a cincia mecanicista carece de mtodos, j quesistemas mecnicos variam seu comportamento numa cadeia de ao-

    43 Este fenmeno j ocorre a nvel fsico quntico: sistemas dissipativos (ver Prigo-gine, 1980)

    44 Como mostra, mais uma vez, o saudoso diretor Stanley Kubrick no filme LaranjaMecnica

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    40/218

    40 Gottfried Stockinger

    reao calculvel, equilibrada. Mas sistemas reflexivos, autoreferenci-ais o variam em aes-reaes desequilibradas, em cada instante. Odesequilbrio operado pelo prprio sistema, porque ele se refere, naconstituio de seus elementos, a suas prprias operaes elementares,em constante mudana. Mesmo que estas operaes elementares cons-tituam rotinas e redundncias, sua reproduo ocorrer por "cpias"emcadeia que nunca sero 100% fieis. Assim a emerso de novidade ga-

    rantida. Para produzir as "cpias", sistemas autoreferenciais reservamuma parte dos seus cdigos "genticos"para a sua autodescrio. Paraatualiz-la, em cada instante, o sistema usa sua capacidade de percebera diferena de sistema e ambiente internamente, onde ela aparece emforma de cdigos copiveis e orienta a produo de informao sobre oseu mundo.

    Se dando conta que processos de regulao social ocorrem de ma-neira parecida, uma srie de autores45 comea a aplicar o conceito deautoorganizao, metaforicamente, na teoria da informao enquantoparte de uma teoria geral de sistemas.

    O socilogo Peter Hejl, numa abordagem alternativa de Luhmann,

    chega a definir vrias dimenses de autoorganizao.46

    Seu ponto departida uma crtica de tentativas prvias de definir sistemas sociais nosmoldes do estruturalismo e funcionalismo sociolgicos tradicionais. Eleexplora a idia de sociedade como "... o processo em que os indiv-duos interagem um com o outro e com seu ambiente natural (real) soba primazia da autopreservao."47 Ou seja, o que desde Durkheim tinhasido considerado uma entidade estrutural estvel ou em evoluo (isto, sociedade como um objeto unitrio do qual os indivduos so merosmembros), devia ser analisado como um efeito emergente da interativi-dade mtua dos indivduos. Ele prope definies mais firmes para trsformas de autoconstituio e define especificaes estritas para o seu

    uso:

    Sistemas autoorganizados so aqueles "... que, devido a deter-minadas circunstncias iniciais limitantes emergem espontanea-mente como estados especficos ou como seqncias de estados."

    45 Destacamos, por exemplo, Krohn/Kppers, 199046 Ver Hejl, 198047 Hejl, 1981, p. 176

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/12/2019 Stockinger Gottfried Teoria Sociologica Comunicacao

    41/218

    Para uma Teoria Sociolgica da Comunicao 41

    Sistemas autosustentados so definidos como uma srie "... de sis-temas em que sistemas autoorganizados produzem um ao outrode maneira operacionalmente fechada."

    Sistemas autoreferenciais "... organizam os estados de seus com-ponentes de maneira operacionalmente fechada."48

    Hejl conclui, no entanto, que nenhum destes conceitos poderia serconsiderado necessrio ou suficiente para caraterizar sistemas sociais.Os sistemas sociais no seriam autosustentados, porque no geram di-retamente os componentes que as realizam. Seriam sistemas psquicose sistemas de ao, acoplados estruturalmente, que de fato gerariam oscomponentes novos. A aplicabilidade da automanuteno ainda maiscomplicada pelo fato que estes componentes podem acoplar com siste-mas sociais mltiplos, e tm a habilidade de retirar-se inteiramente daparticipao social, a qualquer altura49. Estes dois ltimos fatores di-ficultam, segundo o autor, a definio de sistemas sociais na base deautoreferncia. Como no se trata de um dogma, a classificao crticade Hejl ajudou na busca das razes da autonomia de sistemas quandooperam sua autoconstituio.

    Nesta busca de um conceito de autoorganizao, que abrangeriatodas as formas de autoconstituio de sistemas, Luhmann, querendoaplic-lo teoria sociolgica, descobriu que o teorema da autoorganiza-o j foi aplicado na bioqumica de processos cognitivos, por HumbertoMaturana e Francisco Varela. Eles rebuscaram o termo a partir do grego:Poiesis, o que significa "produo". Autopoiese quer dizer, portanto,autoproduo. A palavra surgiu pela primeira vez na literatura interna-cional em 1974, num artigo publicado por Varela, Maturana e Uribe,para definir os seres vivos como sistemas que reproduzem a si mesmos.

    Esses sistemas so autopoiticos por definio, porque recompem con-tinuamente os seus componentes desgastados. Um sistema autopoitico, portanto, ao mesmo tempo produtor e produto. Reencontramos aqui aconcepo do princpio regulador ciberntico, acima mencionado, comobase da teoria da autoorganizao.

    48 Hejl, 1981, pp. 62 -6349 Esta habilidade