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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória JurisprudencialMINISTRO CASTRO NUNES

SAMANTHA RIBEIRO MEYER-PFLUGBrasília2007

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente

Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente

Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989)

Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)

Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)

Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003)

Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)

Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)

Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)

Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (9-3-2006)

Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)

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Diretoria-GeralSérgio José Américo Pedreira

Secretaria de DocumentaçãoAltair Maria Damiani Costa

Coordenadoria de Divulgação de JurisprudênciaNayse Hillesheim

Seção de Preparo de PublicaçõesLeide Maria Soares Corrêa Cesar

Seção de Padronização e RevisãoRochelle Quito

Seção de Distribuição de EdiçõesLeila Corrêa Rodrigues

Diagramação: Cláudia Marques de Oliveira

Capa: Jorge Luis Villar Peres

Edição: Supremo Tribunal Federal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Meyer-Pflug, Samantha RibeiroMemória jurisprudencial: Ministro Castro Nunes /

Samantha Ribeiro Meyer-Pflug. – Brasília: Supremo TribunalFederal, 2007. – (Série memória jurisprudencial)

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil.Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Nunes, Castro –Jurisprudência. I. Título. II. Série.

CDD-341.4191081

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Ministro Castro Nunes

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APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido peloperíodo militar.

Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significouuma renovada época.

Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das prestaçõesde natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da sociedadecivil.

É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.

É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valoresexpressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontesde defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.

O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia seralcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção daunidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.

A história do SUPREMO se confunde com a própria história de construçãodo sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consolidaçãoda função do próprio Poder Judiciário.

Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunalde Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaramsimplesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.

Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacionalem que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesaintransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.

Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tambémdelicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo daindependência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.

Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões docaminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãosbrasileiros em um regime constitucional democrático.

Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende aenxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, umplenário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.

O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaramo munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e àdefesa das instituições democráticas.

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Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.

Entender suas decisões e sua jurisprudência.

Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinadojulgamento.

Interpretar a história de fortalecimento da instituição.

Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em queacreditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica quetiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.

Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra,colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.

Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de formadecisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votose manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entreos juristas.

A injustiça dessa realidade não vem sem preço.

O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar umavisão burocrática do Tribunal.

Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homenagemaos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regimedemocrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.

Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, umainaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própriaformação do pensamento político brasileiro.

Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso dodireito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com maisprofundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal deontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados doTribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições nocampo da interpretação constitucional.

As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988)consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.

Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institucionaisdo país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e pelascircunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.

Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender adinâmica própria dessas transformações.

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Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.

Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram tambémessa realidade no âmbito do SUPREMO.

A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada notempo e localizada no espaço.

Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos políticosque tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto nocampo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.

A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressãoempregada por FERDINAND LASSALE.

O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e éconstantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento dointérprete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.

É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.

O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiaisda Constituição, sempre teve caráter fundamental.

Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política,não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou otrabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativoaos dispositivos da Constituição.

Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas econsolidava jurisprudências.

Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campoda política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonteprimária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, emprimeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.

Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativoou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suasfronteiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa queseus membros traziam de suas experiências profissionais.

Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saberquem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautashermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte.

Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política ejurídica do SUPREMO.

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A idéia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada porMinistros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNESLEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.

A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhorcompreensão de nossa história institucional.

Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional noBrasil.

Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-políticobrasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídasalhures.

E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deveser um Tribunal da carreira da magistratura.

Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006

Ministro Nelson A. Jobim

Presidente do Supremo Tribunal Federal

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SUMÁRIO

ABREVIATURAS...................................................................................19

DADOS BIOGRÁFICOS......................................................................21

NOTA DO AUTOR.................................................................................23

1. REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA.................................................27

Acolhimento pelo Procurador-Geral da República das argüiçõesencaminhadas ao Tribunal................................................................31

Suspensão de ato inconstitucional....................................................32

Inconstitucionalidade em tese..........................................................33

Ato argüido de inconstitucional........................................................35

Caráter excepcional e rol taxativo...................................................35

Possibilidade de o vício ser sanado por outro meio judicial.................38

Presidencialismo............................................................................38

Estrutura do Poder Executivo.................................................38

Presidencialismo e parlamentarismo........................................41

Eleição indireta de vice-governador de estado..........................45

O governo presidencial e o rol dos princípios sensíveis..............46

Impeachment.......................................................................49

Autonomia municipal......................................................................52

Intervenção municipal....................................................................53

Disposições eleitorais de estado-membro.........................................53

2. INCONSTITUCIONALIDADE E RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL...........................................................................55

Declaração de inconstitucionalidade pelo Poder Executivo.................55

Possibilidade de revogação de lei pela Constituição...........................56

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Recepção de lei anterior pela nova Constituição................................61

Cláusula de reconstitucionalização prevista na Constituição de1937..............................................................................................62

3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO........................................................69

Delimitação...................................................................................69

Cabimento em face de ato do Governo Provisório.............................70

Necessidade de esgotamento da via recursal para o cabimento dorecurso extraordinário...................................................................70

Recurso extraordinário e recurso de revista......................................71

Inadmissibilidade em face de decisão da Justiça do Trabalho.............75

Cabimento em face das decisões do Conselho Nacional doTrabalho......................................................................................75

Controvérsia sobre a constitucionalidade de leis federais...................77

Não-cabimento em face das decisões proferidas pela Justiçada União.......................................................................................77

Admissão de começo de prova.......................................................78

4. SEPARAÇÃO DE PODERES E IMUNIDADES PARLAMENTARES..........................................................................79

Separação de Poderes e delegações legislativas................................83

Separação entre Estado e Igreja.....................................................85

Imunidade de vereador...................................................................85

5. ATOS DO GOVERNO PROVISÓRIO.................................................91

Cabimento de Exame judicial..........................................................91

Imunidade....................................................................................91

Exoneração de funcionários............................................................93

Demissão de funcionário federal por ato de autoridade que não oChefe do Governo Provisório..........................................................95

Controle judicial.............................................................................96

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Possibilidade de revisão pelo próprio Poder Executivo......................99

Descumprimento de decisão judicial por interventor.........................100

Responsabilidade da União por atos de interventor..........................102

Cobrança compulsória de impostos................................................106

Atos legislativos...........................................................................108

Possibilidade de edição de decretos com efeito retroativo.................109

6. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO E MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS.......................................................................111

Cabimento de indenização por prejuízos sofridos por particularem virtude de movimento Evolucionário.........................................111

Responsabilidade do Estado decorrente de movimentorevolucionário...........................................................................114

Cabimento de indenização por danos causados por interventornomeado.....................................................................................115

Cabimento de indenização por atos de prepostos da União................116

Impossibilidade de participante de movimento revolucionárioexercer cargo de parlamentar........................................................116

7. ANISTIA...........................................................................................119

Crimes contra a segurança do Estado............................................119

Efeitos da concessão....................................................................119

8. COMPETÊNCIA...............................................................................123

Competência do Supremo Tribunal Federal.....................................123

Competência originária do Supremo Tribunal Federal no pleito deestado contra terceiros com interesse da União...........................125

Conflito de jurisdição não suscitado pelos estados...........................127

Competência do Supremo Tribunal Federal para conhecer decausas em que seja parte autarquia................................................128

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9. IRRETROATIVIDADE DE LEI.........................................................131

Direito adquirido.........................................................................131

Decisão judicial...........................................................................134

Retroatividade de lei....................................................................136

10. MANDADO DE SEGURANÇA.......................................................139

Violação de direito líquido e certo decorrente deinconstitucionalidade...................................................................139

Cabimento contra atos judiciais.....................................................140

Cabimento em face de decisão do Tribunal de Apelação.................147

Cabimento em face de ato de presidente de tribunal.......................148

Cabimento contra ato administrativo.............................................149

Cabimento em face de ato do Executivo........................................150

Cabimento em face de ato de interventor......................................152

Recurso de ofício........................................................................153

Recurso cabível em face de decisões finais sobre mandado desegurança..................................................................................153

Embargos...................................................................................154

Inadmissibilidade de recurso em face de decisão embargável..........156

Prazo.........................................................................................157

Direito líquido e certo...................................................................157

11. HABEAS CORPUS...........................................................................159

Concessão durante guerra...........................................................159

Garantia do exercício da liberdade de crença no estado deguerra........................................................................................161

Crime de desacato praticado por militar.........................................162

Crime de uso de uniforme por militar da reserva.............................163

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Concessão em face da falta de configuração legal..........................164

Falta de justa causa para instauração do processo..........................166

Cabimento em face de decisão de segunda instância desprovidade fundamentação.......................................................................167

Não-cabimento para afastar retardamento de instruçãoprobatória...................................................................................169

Concessão para exilado político....................................................170

Concessão no crime político.........................................................171

Cabimento para garantir livramento condicional nos crimespolíticos......................................................................................172

Competência para julgar crime político..........................................173

Cabimento em favor de preso estrangeiro mantido incomunicávelpara ser expulso..........................................................................174

Habeas corpus e recurso ordinário..............................................176

Concessão de regime especial......................................................176

Solicitação, pela defesa, de audiência com o ofendido.....................179

Falta de defesa prévia..................................................................180

Cabimento com base em interpretação de lei.................................181

Legitimidade para ingressar..........................................................181

Possibilidade de revisão de decisão do júri pelo tribunal...................182

Princípio da isonomia...................................................................183

12. RECURSO E COISA JULGADA......................................................185

Tempestividade..........................................................................185

Coisa julgada............................................................................185

Intangibilidade da coisa julgada nos regimes autoritários.................185

Recurso de revista.....................................................................188

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13. AÇÃO RESCISÓRIA.......................................................................191

Reiteração................................................................................191

Possibilidade de admissão em face dos julgados do SupremoTribunal Federal proferidos em recurso extraordinário....................191

14. JUSTIÇA DO TRABALHO.............................................................197

Autonomia da Justiça do Trabalho................................................197

Cabimento de recurso em face de decisão da Justiça doTrabalho....................................................................................198

Juntas como órgãos representativos da Justiça do Trabalho...........198

Aplicação dos Códigos comuns à Justiça do Trabalho eproteção dos trabalhadores rurais................................................201

15. DIREITO ADMINISTRATIVO........................................................207

Apreciação de ato administrativo pelo Poder Judiciário.................207

Irredutibilidade de vencimentos dos magistrados e controlejudicial de atos administrativos.....................................................210

Possibilidade de o estado-membro conceder tratamento maisfavorável a funcionários públicos estaduais e municipais................213

Aplicabilidade automática das garantias da função públicano âmbito estadual.....................................................................215

Garantias dos promotores públicos..............................................216

Exoneração dos serventuários da Justiça......................................217

Responsabilidade da União sobre os atos dos funcionários.............217

Tombamento.............................................................................219

16. AUTARQUIAS................................................................................223

Natureza jurídica das autarquias..................................................223

Tributação dos bens de autarquia.................................................226

Caracterização de funcionário de autarquia..................................230

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17. DIREITO CIVIL..............................................................................233

Possibilidade de cobrança de dívida de jogo..................................233

Concubinato entre empregador e empregada................................237

Prova de filiação legítima............................................................239

Reconhecimento judicial de filhos ilegítimos..................................241

Divórcio por incompatibilidade de gênios......................................244

Sucessões e direito adquirido.......................................................245

Bens com cláusula de inalienabilidade..........................................246

Cabimento de indenização ao marido em virtude do falecimentoda esposa e ressarcimento por dano moral....................................248

Inclusão de honorários advocatícios na liquidação de sentença.......251

Inclusão de honorários advocatícios em pagamento deindenização por expropriação......................................................255

18. USUCAPIÃO..................................................................................257

Impossibilidade de usucapião de terras ou bens públicos................257

Impenhorabilidade de bens ou rendas públicas...............................257

Ações de reivindicação ou reintegração de posse..........................258

19. TRIBUTOS......................................................................................261

Cobrança de taxa rodoviária por município...................................261

Coisa julgada em matéria fiscal....................................................263

Isenção de imposto de imóvel de concessionária de serviçopúblico......................................................................................265

Isenção de imposto a professores, escritores e jornalistas..............267

Bitributação de imposto municipal................................................268

Tributação de renda pelo próprio estado........................................270

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20. JUSTIÇA ELEITORAL....................................................................273

Cancelamento do registro do Partido Comunista...........................273

Possibilidade de magistrado em disponibilidade integrar aJustiça Eleitoral.........................................................................279

APÊNDICE...........................................................................................287

ÍNDICE NUMÉRICO............................................................................445

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ABREVIATURAS

ACi Apelação Cível

AR Ação Rescisória

CJ Conflito de Jurisdição

HC Habeas Corpus

MS Mandado de Segurança

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

RE Recurso Extraordinário

RHC Recurso em Habeas Corpus

Rp Representação

STF Supremo Tribunal Federal

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DADOS BIOGRÁFICOS

JOSÉ DE CASTRO NUNES, filho do Dr. João Francisco Leite Nunes ede D. Tereza da Conceição Castro Nunes, nasceu em 15 de outubro de 1882, nacidade de Campos, Estado do Rio de Janeiro.

Iniciou seus estudos na cidade natal, prosseguindo-os no Colégio SantaRosa (Niterói); no Instituto Politécnico, em Salto (Uruguai), onde seu pai exerciao cargo de Cônsul do Brasil; na Escola Pública do Engenho Velho (RJ) e noExternato Pedro II (1897-1901), de onde saiu para matricular-se na Faculdadede Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, onde se bacharelou, em 1906.Quando estudante, lecionou Matemática Elementar e Física no Liceu LiterárioPortuguês.

Exerceu os cargos de Fiscal de Ensino (1909-1911), Procurador dos Feitosda Prefeitura de Niterói (1915-1931), Membro do Conselho Administrativo daCaixa Econômica Federal e seu Presidente (1930) e Membro do ConselhoPenitenciário do Rio de Janeiro (1928-1931).

Ingressando na Magistratura, foi Juiz Federal Substituto, na Seção doEstado do Rio de Janeiro (1931-1934); Juiz Federal da 2ª Vara da Seção doantigo Distrito Federal (1934-1937) e Juiz dos Feitos da Fazenda Pública, tambémdo antigo Distrito Federal (1937-1938).

Nomeado Ministro do Tribunal de Contas da União, exerceu o cargo de1938 a 1940.

Por decreto de 10 de dezembro de 1940, do Presidente Getúlio Vargas, foinomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga decorrente da aposen-tadoria do Ministro João Martins de Carvalho Mourão, tendo tomado posse em18 do referido mês e ano. Em 1º de novembro de 1945, foi nomeado, por decretodo Ministro José Linhares, então exercendo a Presidência da República, para ocargo de Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal, assumindo-o em 3 domesmo mês e ano.

Ao despedir-se da Corte, na sessão de 16 de setembro de 1949, foi saudadopelo Ministro Laudo de Camargo, Presidente, e pelo Ministro Annibal Freire, emnome do Tribunal; pelo Procurador-Geral da República, Dr. Luiz Gallotti, e peloJuiz Dr. Elmano Cruz. Falou pelos advogados o Dr. Plínio Pinheiro Guimarães,após o que agradeceu o homenageado. Aposentou-se em 22 de setembro de1949.

Era membro da Academia Fluminense de Letras e do Instituto do Brasil.

Publicou vários livros de ciência jurídica, destacando-se: A jornadarevisionista (Prêmio Carlos de Carvalho-1924); Do mandado de segurança e de

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outros meios de defesa contra atos do Poder Público; Teoria e prática doPoder Judiciário; Da Justiça do Trabalho no mecanismo jurisdicional doregime; Juristas e homens de letras; Rui Barbosa e seu espírito judiciarista;O espírito público fora dos partidos; O Poder Executivo na evoluçãopolítica do Brasil; Bitributação e competência judiciária; Da FazendaPública em juízo; Soluções de direito aplicado; Alguns homens do meu tempo(literatura); As Constituições Estaduais do Brasil; Unidade do processo;Aspectos do federalismo contemporâneo; Patente de invenção; Os projetosnão sancionados e o art. 40 da Constituição; A proibição de entrada denegros no Brasil; Da conceituação jurídica da Lei Orgânica do DistritoFederal; O poder de polícia e a localização das indústrias; e, ainda, Dosbens públicos de uso comum e da proteção possessória.

Também exerceu o jornalismo, como cronista judiciário do Correio daManhã (1906-1910) e como redator de A Noite, na época de Irineu Marinho(1912-1915), e da Gazeta Judiciária, a partir de 1953.

Faleceu em 5 de setembro de 1959, na cidade do Rio de Janeiro, sendohomenageado em sessão de 9 seguinte, quando usaram da palavra o MinistroOrozimbo Nonato, Presidente, e, em seguida, o Ministro Luiz Gallotti, o Dr. AlceuBarbedo, Procurador-Geral da República em exercício, e o Dr. Leopoldo Braga,em nome dos advogados.

O Supremo Tribunal Federal comemorou o centenário de nascimento emsessão de 20 de dezembro de 1982, falando em nome da Corte o Ministro DécioMiranda, pela Procuradoria-Geral da República o Prof. Inocêncio Mártires Coelhoe pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil o Dr. José PauloSepúlveda Pertence.

Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo TribunalFederal — Dados Biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também podeser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet.

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NOTA DO AUTOR

Foi com imensa alegria e honra que recebi o convite para participar dasérie Memória Jurisprudencial, levada a efeito pelos Ministros Nelson Jobim eGilmar Mendes, concluída na Presidência da Ministra Ellen Gracie e cujafinalidade precípua é divulgar a produção jurisprudencial dos Ministros doSupremo Tribunal Federal.

A mim coube a gratificante, honrosa e desafiadora tarefa de analisar eestudar a produção jurisprudencial do Ministro José de Castro Nunes, cujosartigos científicos e obras são de consulta obrigatória por todos aqueles quedesejam aprofundar os conhecimentos no vasto campo do Direito Constitucional,precipuamente no tocante ao controle de constitucionalidade, aos princípiosconstitucionais, ao pacto federativo, ao mandado de segurança, aos direitos egarantias fundamentais, entre outros.

José de Castro Nunes desempenhou a função de Ministro do SupremoTribunal Federal por nove anos1, tendo abrilhantado a Corte durante esse períodocom votos sempre inovadores e garantidores da força normativa da Constitui-ção. Em 1945, foi nomeado Vice-Presidente do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro trouxe para a Suprema Corte toda a experiência adquiridacomo juiz federal, como Ministro do Tribunal de Contas da União e como jorna-lista. Sua formação profissional mostra-se presente nos votos sempre atentos atodos os efeitos e implicações da decisão a ser tomada, tanto no aspecto jurídico,como no social e no econômico. Verifica-se também, em suas manifestações,permanente preocupação com a necessidade de levar a cabo uma profunda in-vestigação acerca de cada tema e instituto do direito comparado, bem como oenfrentamento constante de novos desafios. O Ministro foi grande defensor dovoto obrigatório e do sufrágio feminino, além de ter delineado os contornos doinstituto do mandado de segurança.

Em face da intensa produção científica e das posições inovadoras doMinistro Castro Nunes manifestadas em seus votos, tornou-se difícil a escolhados acórdãos que integrariam esta obra, principalmente tendo em vista que opróprio Ministro publicou duas obras que versavam sobre as matérias objetos deacórdãos da Corte Suprema2. Esse fato já demonstra sua preocupação em divul-gar as decisões do Supremo Tribunal Federal, pois, em sua visão, a jurisprudênciada Corte Constitucional constitui-se na fonte mais categorizada do Direito apli-

1 José de Castro Nunes foi procurador do município de Niterói, jornalista, juiz federal, juizdos feitos da Fazenda (1931-1938), Ministro do Tribunal de Contas da União (1938-1940)e Ministro do Supremo Tribunal Federal de dezembro de 1940 a setembro de 1949.2 O Ministro Castro Nunes publicou as obras: Teoria e prática do Poder Judiciário eSoluções de direito aplicado.

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cado, devendo, portanto, ser analisada, criticada e estudada, tanto no que dizrespeito às decisões que foram adotadas, como na fundamentação dos votosvencidos.

Para o desenvolvimento do trabalho, a Secretaria de Documentação doSupremo Tribunal Federal forneceu todos os acórdãos, em papel impresso, numtotal de 1.750 decisões, nas quais o Ministro Castro Nunes proferiu voto, oucomo relator, ou como Ministro, para apreciação. Dos acórdãos analisados,foram separados cem, nos quais a posição sustentada pelo Ministro se mostrourelevante para o deslinde da questão ou nos quais ele figurou como voto vencido.Estes são de extrema importância principalmente no tocante ao estudo dafundamentação levada a cabo pelo Ministro para justificar sua posição.

Na seleção dos acórdãos, procurei dar maior ênfase às decisões que ver-savam sobre matéria constitucional, pois o Ministro Castro Nunes era um emi-nente constitucionalista, tendo recebido do Ministro Orozimbo Nonato a alcunhade “O Constitucionalista”. Analisei detidamente os votos proferidos nas repre-sentações interventivas propostas na época e cujas posições por ele sustentadasforam decisivas para o desenvolvimento do controle de constitucionalidadebrasileiro e para a preservação dos princípios constitucionais, sendo referência,até os dias de hoje, nas decisões e nos votos dos Ministros do Supremo TribunalFederal sobre a matéria.

Dediquei também especial atenção aos votos proferidos em mandado desegurança, tendo em vista que o Ministro foi um dos responsáveis pela definiçãoe pela fixação dos limites e das hipóteses de cabimento do referido instituto, alémde autor de obra clássica sobre o tema “mandado de segurança”.3

Igualmente, conferi destaque aos votos apresentados nas matériasrelativas à justiça eleitoral, à coisa julgada, à anistia, à competência do SupremoTribunal Federal, ao recurso extraordinário, à ação rescisória, à irretroatividadedas leis, ao direito civil, ao direito administrativo, à responsabilidade da União, àsautarquias, ao direito tributário, ao direito do trabalho4, entre outros.

Tratei, em capítulo específico, do controle judicial dos atos do governoprovisório e da concessão de habeas corpus. Nesse sentido, cumpre salientarque, a despeito de o Ministro ter aderido ao autoritarismo do Estado Novo, como

3 O Ministro Annibal Freire, em discurso proferido na sessão de aposentadoria doMinistro Castro Nunes, assim se manifestou: “Em dois pontos capitais da nossa elabora-ção jurídica, sobretudo, a obra de Castro Nunes há de perdurar — na conceituação ealcance do mandado de segurança e na fixação das diretrizes do Poder Judiciário.”4 Em discurso proferido por ocasião da homenagem ao centenário do nascimento doMinistro José de Castro Nunes, o Ministro Xavier de Albuquerque esclareceu: “Entre asúltimas, afirma a liberdade mais ampla do juiz togado quando funciona como magistradodo trabalho, mediante a aplicação do processo técnico do standard jurídico, conceituadopor Marcel Stati.”

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magistrado sempre pautou sua conduta na mais estrita aplicação dos dispositivosconstitucionais, preservando a coisa julgada, o direito adquirido e a concessão dohabeas corpus durante o estado de guerra. Nesse aspecto, ressaltou o MinistroSepúlveda Pertence: “O homem filiou-se explicitamente à doutrina autoritária doEstado Novo. Mas o juiz, este não se dobrou às arbitrariedades da ditadura.”5

A obra é composta de cem acórdãos, analisados individualmente, agrupadospor temas e, quando possível, com identificação das tendências e evoluçõesjurisprudenciais.

Também foram selecionados alguns dos acórdãos mais significativos paraconstar do apêndice, sem, contudo, procurar-se esgotar o assunto, o que seria detodo impossível em face da grandiosidade da colaboração do Ministro CastroNunes à jurisprudência da Suprema Corte.

Tem-se, pois, que a obra consiste numa resenha jurisprudencial do MinistroCastro Nunes e procura ressaltar sua valiosa colaboração para a história doSupremo Tribunal Federal e do desenvolvimento do direito pátrio. Não se buscoutratar aqui da biografia ou das obras doutrinárias do Ministro Castro Nunes,embora no comentário de algumas decisões fosse inevitável fazer referênciaexpressa às obras por ele publicadas acerca do tema objeto da decisão.

É, no entanto, possível, por meio do estudo de seus votos, vislumbrar umpouco do homem, do jornalista, do doutrinador e do juiz que foi o Ministro CastroNunes, cuja grandiosidade e sabedoria não se encerram em uma única obra, mastranscendem seus textos, para adentrar a própria história do Supremo TribunalFederal e as discussões permanentes dos temas de Direito Público.

O Ministro Castro Nunes foi defensor árduo do debate e das discussõessobre os temas objetos de apreciação do Supremo Tribunal Federal, mas semprena busca incessante da realização do direito e da justiça, como ele mesmoafirmou no discurso que proferiu no dia da concessão de sua aposentadoria:

Não raro dissentimos, não raro divergi, sustentando, às vezes, talvez comdemasiada insistência, os meus pontos de vista; mas sempre no plano elevadoem que devem ser postas as divergências entre homens dominados pelapreocupação comum de servir ao Direito e à Justiça.

Ao fim, gostaria de agradecer especialmente: à Ministra Ellen Gracie,Presidente do Supremo Tribunal Federal, e aos Ministros Nelson Jobim e GilmarMendes, pelo convite para elaborar esta obra e pela confiança; à Dra. AltairMaria Damiani Costa e a toda a sua equipe, pela gentileza e atenção dispensadasao longo deste trabalho e por seus conhecimentos precisos, que foram decisivos

5 Discurso proferido pelo Ministro José Carlos Sepúlveda Pertence, como representanteda Ordem dos Advogados do Brasil, por ocasião da homenagem ao centenário do nasci-mento do Ministro José de Castro Nunes.

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para a conclusão da obra; à minha amiga Dra. Maria Elizabeth GuimarãesTeixeira Rocha, pelo auxílio na seleção do material; e aos acadêmicos e amigosqueridos Alceu Cicco e Tércia Lisboa, pela dedicação e auxílio com várias trans-crições.

Samantha Meyer-Pflug

Brasília, outubro de 2006

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Ministro Castro Nunes

1. REPRESENTAÇÃO INTERVENTIVA

A representação interventiva surgiu no ordenamento jurídico brasileirocom a Constituição de 1934. O único legitimado para propô-la era o Procurador-Geral da República, consoante o disposto no art. 12, § 2º, do Texto Constitucional:

Ocorrendo o primeiro caso do n. V, a intervenção só se efetuará depois quea Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomarconhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade.

As hipóteses constantes do n. V do art. 12 remetiam à execução de leisfederais e aos princípios constitucionais especificados nas letras a até h do art.7º, n. I, e, quais sejam: a) forma republicana representativa, b) independência ecoordenação de poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada aosmesmos prazos dos cargos federais correspondentes, proibida a reeleição degovernadores e prefeitos para o período imediato; d) autonomia dos municípios;e) garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais; f) prestação decontas da Administração; g) possibilidade de reforma constitucional e competênciado Poder Legislativo para decretá-la; h) representação das profissões.

Esses eram os denominados “princípios sensíveis”, cuja violação por partedos Estados-Membros ensejaria a propositura de representação interventiva noSupremo Tribunal Federal pelo Procurador-Geral da República.

É interessante registrar que a função do Supremo Tribunal Federal, naqueleperíodo, era verificar a constitucionalidade — consoante o disposto no art. 12, § 2º,da Constituição — da lei que decretou a intervenção federal, e não do atonormativo estadual que deu origem a essa intervenção. A Constituição de 1934também continha dispositivo expresso que “vedava ao Poder Judiciário conhecerdas questões exclusivamente políticas” (art. 68).

A Constituição de 1937, por sua vez, representou retrocesso no sistema decontrole de constitucionalidade na medida em que dispôs, no seu art. 96, parágrafoúnico, que:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo doPresidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção oudefesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da Repúblicasubmetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por doisterços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão doTribunal.

Interessante ressaltar que, uma vez confirmada pelo Parlamento aconstitucionalidade, a lei tornava-se imune à apreciação do Poder Judiciário. AConstituição de 1937 manteve também a vedação ao Poder Judiciário paraconhecer das questões exclusivamente políticas (art. 94).

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Memória Jurisprudencial

A Constituição de 1946 tratou da representação interventiva em seusartigos 7º, VII, e 8º, parágrafo único, in verbis:

Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para:

(...)

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios:

a) forma republicana representativa;

b) independência e harmonia dos Poderes;

c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à dasfunções federais correspondentes;

d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o períodoimediato;

e) autonomia municipal;

f) prestação de contas da Administração;

g) garantias do Poder Judiciário.

Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos n. VI e VIIdo artigo anterior.

Parágrafo único. No caso do n. VII, o ato argüido de inconstitucionalidadeserá submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do SupremoTribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção.

Ficou estabelecido também, consoante o disposto no art. 13 do TextoConstitucional de 1946, que:

Nos casos do art. 7º, n. VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafoúnico, o Congresso Nacional se limitará a suspender a execução do ato argüidode inconstitucionalidade, se essa medida bastar para o restabelecimento da nor-malidade no Estado.

Note-se que a Constituição de 1946 trouxe mudança na representaçãointerventiva, que versava aqui sobre o ato impugnado, e não sobre a lei quedecretava a intervenção, como ocorria na Constituição de 1934.

O perfil da representação interventiva descrito na Constituição de 1946permanece, com alguns abrandamentos, ainda na Constituição Federal de 1988,precisamente no art. 34, VII, que trata dos princípios sensíveis.

O Ministro Castro Nunes participou do julgamento de representaçõesinterventivas relevantes, propostas com base na Constituição de 1946. Dentreelas, destacam-se as de n. 93, 94, 96 e 97.

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Ministro Castro Nunes

A primeira representação interventiva proposta foi a de n. 931, peloProcurador-Geral da República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, em 7 dejulho de 1947, com fundamento no art. 8º, parágrafo único, da Constituição de1946, em virtude da existência de grave conflito de poderes originados pelaaprovação da Constituição do Estado do Ceará. Alegava-se violação da letra bdo n. VII do art. 7º do Texto Constitucional. O Procurador-Geral da Repúblicaencaminhou a Representação com parecer sobre a inconstitucionalidade.

A Representação Interventiva versava basicamente sobre a inconstituciona-lidade de três dispositivos da Constituição do Estado do Ceará. O primeirodeles dizia respeito à eleição do Vice-Governador pela Assembléia (art. 1º doADCT; art. 27, § 2º, e art. 79, § 2º); o segundo determinava que a nomeaçãodos secretários do Governo deveria ser submetida à aprovação da AssembléiaLegislativa (art. 17, XXII); o terceiro estabelecia a aprovação da nomeação deprefeitos pela Assembléia Legislativa (art. 28, §§ 1º e 2º).

O relator da Representação Interventiva foi o Ministro Annibal Freire, e oPresidente era o Ministro José Linhares. O acórdão foi proferido em 16 de julhode 1947 e julgou procedente em parte a reclamação, para declarar constitucionalo art. 1º das Disposições Transitórias, contra os votos dos Ministros Ribeiro daCosta e Lafayette de Andrada, e inconstitucionais o art. 17, XXII, da Constituiçãodo Ceará, unanimemente, e o art. 59 das Disposições Transitórias, tendo osMinistros Hahnemann Guimarães, Goulart de Oliveira, Orozimbo Nonato e CastroNunes votado com restrição.

Note-se que, em virtude da ausência de regras processuais disciplinando arepresentação interventiva, coube ao Supremo Tribunal Federal desenvolver osmecanismos procedimentais, que posteriormente constaram da legislaçãoprocessual. O Supremo Tribunal Federal enfrentou inicialmente questões queversavam sobre a própria forma da argüição, seus aspectos processuais e limitesconstitucionais, tanto como sobre a função do Procurador-Geral da República.

A Representação Interventiva n. 942 foi proposta pelo Procurador-Geralda República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, com fundamento no art. 8º,parágrafo único, da Constituição de 1946, por representação do Governador doEstado do Rio Grande do Sul, em face dos arts. 78, 81, 82, 89 e outros daConstituição estadual, que versavam sobre o secretariado, no que se referia a suadependência perante a Assembléia estadual, no tocante à escolha e aodesempenho dos secretários do governo, o que comprometia a forma republicana

1 Data da decisão: 16 de julho de 1947. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro José Linhares.2 Data da decisão: 17 de julho de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

e o princípio da independência e harmonia entre os Poderes. Em síntese, tratava-sede dispositivos que consagravam o regime parlamentarista na Constituiçãoestadual.

Julgada em 17 de julho de 1947, a Representação n. 94 teve como relatoro Ministro Castro Nunes e foi julgada procedente, declarando o SupremoTribunal Federal, sob a Presidência do Ministro José Linhares, por unanimidade,inconstitucionais os arts. 76, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87 e 89 da Constituiçãodo Rio Grande do Sul e também os artigos das suas disposições transitórias quefaziam referência àqueles supracitados.

O Ministro Castro Nunes suscitou, em seu voto, questões relevantes paraa criação e o desenvolvimento do controle de constitucionalidade abstrato emnosso País e para a delimitação da ação interventiva.

A Representação Interventiva n. 963 foi proposta pelo Procurador-Geralda República, Dr. Themistocles Brandão Cavalcanti, tendo em vista representaçãodo Governador do Estado de São Paulo argüindo a inconstitucionalidade de dispo-sitivos da Constituição do Estado que violavam o princípio da independência dosPoderes, de outros que colidiam com a própria Constituição Federal e, ainda, dedispositivos com excessos que desvirtuavam a prática do regime. O relator daRepresentação n. 96 foi o Ministro Goulart de Oliveira.

O acórdão foi proferido em 3 de outubro de 1947, e ficou decidido, pormaioria de votos, que o Tribunal conhecera de todas as argüições submetidas aseu exame pela Representação, mesmo daquelas sobre cuja inconstitucionalidadenão havia opinado o Dr. Procurador-Geral, pronunciando, porém, apenas as quepudessem ser enquadradas em algum dos princípios enumerados no art. 7º, n.VII, da Constituição Federal. Isso posto, por unanimidade de votos, o SupremoTribunal Federal declarou inconstitucionais os arts. 21, letra i; 43, letra d; 44 e 45da Constituição do Estado de São Paulo e, por maioria de votos, os arts. 6º; 16, §2º; 21, letra m, 1ª parte; 37, letra d; 65, letras a, b, c e d; 66; 77, § 1º; 85; 87 e 146da mesma Constituição e os arts. 3º, n. I (quanto a prefeitos); 28 e 30, letra f, doAto das Disposições Constitucionais Transitórias.

A Representação Interventiva n. 974 foi proposta pelo Procurador-Geralda República, submetendo ao Supremo Tribunal Federal a representação em queo Governador do Estado do Piauí argüia a inconstitucionalidade de numerososdispositivos da Constituição estadual. A representação teve como relator oMinistro Edgard Costa.

3 Data da decisão: 3 de outubro de 1947. Relator, Ministro Goulart de Oliveira; Presidente,Ministro José Linhares.4 Data da decisão: 12 de novembro de 1947. Relator, Ministro Edgard Costa; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

ACOLHIMENTO PELO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICADAS ARGÜIÇÕES ENCAMINHADAS AO TRIBUNAL

Na Representação Interventiva n. 94, questionou-se a necessidade deformulação de requerimento ao Procurador-Geral da República. Prevaleceu oentendimento no sentido de reconhecer a necessidade de se formular requerimentodevidamente fundamentado ao Ministério Público Federal para que encaminhasserepresentação interventiva, acompanhada de parecer, ao Supremo Tribunal Federal.

O requerimento com a argüição de inconstitucionalidade não poderia serarquivado pelo Procurador-Geral da República e deveria ser submetido àapreciação do Supremo Tribunal Federal, uma vez que o Ministério PúblicoFederal era o único legitimado para propô-la. Admitia-se, igualmente, que aargüição de inconstitucionalidade fosse acompanhada de parecer do Procurador-Geral da República em sentido contrário.

O Supremo Tribunal Federal seguiu a mesma orientação na Representaçãon. 95, na qual o Procurador-Geral da República elaborara parecer pela constitu-cionalidade do dispositivo argüido de inconstitucional.

Na Representação Interventiva n. 96, levantou-se a questão sobre o conhe-cimento de toda a matéria suscitada, tendo em vista o fato de o Procurador-Geralda República, em seu parecer, manifestar-se sobre a constitucionalidade de algunsdispositivos argüidos de inconstitucionais. O Ministro Castro Nunes, em seu voto,deixa claro que:

Toda a matéria submetida pelo nobre Dr. Procurador-Geral da República,qualquer que seja a opinião de S. Exa., sempre, sem dúvida, valiosa, mesmo queseja desfavorável, não implica o afastamento da questão, uma vez que ela consteda representação da Procuradoria-Geral.

Esclarece que, se o Procurador-Geral da República acolhe a representaçãoque lhe tenha sido encaminhada e a submete ao Supremo Tribunal Federal, todaa matéria submetida deve ser apreciada pelo Tribunal, inclusive a que pareça ple-namente constitucional para o Ministério Público Federal. Todavia, em relação àampla liberdade do Procurador-Geral da República no que diz respeito à emissãode parecer, declara:

Coisa diversa é o seu parecer, a opinião emitida sobre os diversosaspectos da questão, o acolhimento ou a repulsa deste ou daquele ponto. Nem oTribunal está preso a esse parecer, por valioso e esclarecido que seja, e o são osdo eminente titular do cargo — nem circunscrito na sua função aos pontos quetenham incidido na sua censura. Fora assim e seria o nobre procurador-geral, enão o Tribunal, o juiz da procedência das argüições, que estariam encerradas,desde que pela sua improcedência se manifestasse o órgão do MinistérioPúblico.

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Vale dizer que foi esse o entendimento do Supremo Tribunal Federalacerca do tema, justamente no sentido de conhecer toda a matéria argüida narepresentação interventiva, independentemente do parecer proferido pelaProcuradoria-Geral da República.

SUSPENSÃO DE ATO INCONSTITUCIONAL

Na Representação Interventiva n. 94, o Ministro Castro Nunes, relator,analisou pedido formulado pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul eencaminhado pelo Procurador-Geral da República para que fosse suspensa aConstituição estadual, provisoriamente, até o pronunciamento do SupremoTribunal Federal sobre a controvérsia. No entanto, o Ministro Castro Nunes foienfático ao estabelecer que não era possível aplicar o procedimento do mandadode segurança, por analogia, à representação interventiva, para efeito dedeferimento de pedido de suspensão provisória, pois tratava-se de açõesconstitucionais distintas:

A atribuição ora conferida ao Supremo Tribunal é sui generis, não tem porobjeto ato governamental ou administrativo, senão ato constituinte ou legislativo;não está regulada em lei, que, aliás, não poderia dispor para estabelecer umatramitação que entorpecesse a solução, de seu natural expedita, da crise ins-titucional prefigurada.

O Ministro salienta que o poder de suspender o ato argüido de inconstitucio-nal não compete ao Supremo Tribunal Federal, por força da própria Constituição,que é expressa ao estabelecer, no art. 13, que incumbe ao Congresso suspendera execução de ato argüido de inconstitucional, se essa medida bastar para orestabelecimento da normalidade no estado:

A suspensão aí prefigurada articuladamente com a decisão judicial nãoserá do ato, se parcial a inconstitucionalidade declarada, mas somente dodispositivo ou dispositivos atingidos. Consiste a intervenção, nas hipóteses don. VII, na suspensão, importa dizer na decretação pelo Congresso da não-vigência do ato legislativo. São duas atribuições distintas, de índole diversa, masarticuladas: a decisão do Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a doCongresso, no plano político, mas a título de sanção daquela.

Outro ponto levantado pelo Ministro Castro Nunes, na Representação n.94, dizia respeito ao fato de o Governador do Estado do Rio Grande do Sul, ao terprovocado a iniciativa do Procurador-Geral da República, haver solicitado adeclaração de inconstitucionalidade em bloco do Texto Constitucional estadual.Ressalta o Ministro Castro Nunes que a Constituição Federal não proíbe adeclaração de inconstitucionalidade parcial, prática sistematicamente exercidapela Corte Suprema no controle difuso de constitucionalidade em sede de recurso

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Ministro Castro Nunes

extraordinário. Esclarece, quanto à suspensão do ato, que ela deve ser feita nostermos do art. 13 do Texto Constitucional:

A Constituição não distingue, mas não exclui evidentemente que a decla-ração da inconstitucionalidade possa atingir o ato apenas em parte, a exemplo doque se pratica nos julgamentos em espécie, consoante jurisprudência assentada,à luz dos ensinamentos da doutrina e dos subsídios do direito americano. Namesma medida, se terá de entender a suspensão pelo Congresso do ato declaradoinconstitucional, nos termos do art. 13.

Para o Ministro Castro Nunes, a atuação do Supremo Tribunal Federal, aojulgar representação interventiva, não é a de órgão consultivo, pois tal papelcontraria a própria essência do Poder Judiciário. É enfático ao esclarecer que oSupremo Tribunal Federal: “não se limita a opinar, decide, sua decisão é umaresto, um acórdão; põe fim à controvérsia como árbitro final no contencioso dainconstitucionalidade.”

Em seu voto, deixa claro que, em sede de representação interventiva, nãoatua o Supremo Tribunal Federal como órgão meramente consultivo. Pelocontrário, o Tribunal profere decisão, consubstanciada em acórdão que põe fim àcontrovérsia sobre a constitucionalidade do ato impugnado. Atua, assim, comoguardião da Constituição em conflito em face de ato estadual. Conclui que:

É nessa função de árbitro supremo que ele intervém, se provocado, noconflito aberto entre a Constituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deli-berante do poder estadual. Daí resulta, que, declarada a inconstitucionalidade, aintervenção sancionadora é uma decorrência do julgado.

Sustenta o fato de que, proferido o acórdão que resolve o conflito acercada inconstitucionalidade do ato estadual impugnado, com base na Constituição,cabe ao legislador estadual, por sua vez, cumprir a decisão do Supremo TribunalFederal. Esclarece que:

Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pelaprimeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, aopatriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, senecessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua funçãocoordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visandodelimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado. Nadeclaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso por inaplicaçãodela, e executa, ele mesmo, o seu aresto.

INCONSTITUCIONALIDADE EM TESE

O Ministro Castro Nunes entende que a decisão em representaçãointerventiva é uma inovação jurídica, que se consubstancia na apreciação pelo

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Memória Jurisprudencial

Supremo Tribunal Federal da inconstitucionalidade “em tese”. Portanto, verifica-seaqui o surgimento do papel do Supremo Tribunal Federal como órgão de defesada Constituição na apreciação da inconstitucionalidade em tese, ou seja, docontrole abstrato de constitucionalidade, desvinculado do caso concreto, pois seaprecia a adequação do texto da lei ao texto da Constituição. São estas aspalavras do Ministro no voto proferido na Representação Interventiva n. 94, deque foi relator:

Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste ainovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então nãopermitida pela Constituição. Em tais casos a inconstitucionalidade declarada nãose resolve na inaplicação da lei ao caso ou no julgamento do direito questionadopor abstração do texto legal comprometido; resolve-se por uma fórmula legislativaou quase legislativa que vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, deuma dada lei.

O Ministro traça a distinção entre o controle abstrato e o julgamento emespécie (controle concreto), em que, segundo entende, o Supremo TribunalFederal não suspende a lei, que subsiste, ou seja, permanece em vigor, sendo,portanto, aplicada até que o Senado venha a suspendê-la, conforme dispõe o art.64 da Constituição de 1946, in verbis: “Art. 64. Incumbe ao Senado Federalsuspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declaradosinconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

O Ministro Castro Nunes foi o primeiro a ressaltar que a declaração emtese da inconstitucionalidade da lei implica sua ab-rogação ou derrogação e que,portanto, o efeito dessa decisão será erga omnes, e não inter partes, comoocorre nos julgamentos em espécie:

Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou naderrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferantecensurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la,segundo as diretivas do prejulgado; é uma inconstitucionalidade declarada ergaomnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas em concreto;foi cassada para todos os efeitos.

Adverte, ainda, que, segundo alguns consideram:

os julgamentos em tese não podem constituir a res judicata, porque a funçãoexercida pelo Judiciário é antes política do que jurisdicional, função da mesmanatureza da exercida pelas assembléias e a que falta o requisito de um direitosubjetivo em reação, inerente ao exercício da jurisdição.

Entende o Ministro que não se trata de função de natureza diversa, namedida em que o Supremo Tribunal Federal decide por aplicação dos mesmos

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Ministro Castro Nunes

critérios de julgamento, cujo conteúdo não deixa de ser interpretação daConstituição consubstanciada em um aresto. A diferença reside tão-somente namaior extensão da decisão.

ATO ARGÜIDO DE INCONSTITUCIONAL

No voto proferido na Representação n. 94, o Ministro Castro Nunes fixa osentido do que vem a ser ato argüido de inconstitucional, que, segundo seu entendi-mento, só diz respeito aos atos legislativos, atos da Assembléia Legislativa em suafunção legiferante ou constituinte, restando excluídos os atos governamentais:

Será, no entendimento natural do dispositivo constitucional, o ato institu-cional do Estado e as leis orgânicas que o completam. O legislador constituinteusou da palavra ato na sua acepção mais ampla e compreensiva, para abranger noplano legislativo as normas de qualquer hierarquia que comprometam algum dosprincípios enumerados.

Nesse particular, acrescenta que a Constituição não deixa de ser atoconstituinte da Nação ou do Estado, ou seja, a manifestação da vontade do povopor meio de seus representantes. Portanto, restam excluídos da representaçãointerventiva os atos governamentais. Nessa linha de raciocínio, demonstra oMinistro ser plenamente cabível a representação interventiva em face de atoslegislativos e, no plano constitucional, por conseguinte, do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias:

No direito privado, o ato jurídico se traduz no contrato; no direito público,pode ser também o contrato, mas é precipuamente a manifestação da vontade doEstado como poder público na forma legalmente estabelecida. Se se trata dePoder Legislativo, está consagrada até na linguagem corrente a locução atoslegislativos e, no plano constitucional, ato adicional, ato das disposiçõesconstitucionais transitórias...

CARÁTER EXCEPCIONAL E ROL TAXATIVO

No voto proferido na Representação n. 94, adverte o Ministro CastroNunes que o intérprete deve, necessariamente, tratando-se de representaçãointerventiva, ter em mente o “caráter excepcional dessa medida”, que se encontrapressuposta no regime da autonomia constituinte, legislativa e administrativados estados-membros. Nesse particular, deve o intérprete preservar essa autono-mia, sob pena de ser elidida pelos Poderes da União:

Daí decorre que a interpretação não será jamais extensiva, em qualquerdos dois planos em que se situam os casos de intervenção, quer no planopropriamente político, quer no plano jurídico do n. VII, que se define pelosprincípios aí enumerados. A intervenção, no primeiro caso, isto é, nos casos

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Memória Jurisprudencial

enumerados de I a VI, escapa à apreciação judicial, como matéria de índolepuramente política, e supõe a perturbação de ordem jurídica por fatos e não soba forma de leis.

A diferença, segundo entende, reside precipuamente no fato de que osincisos I a VI tratam de situações concretas, portanto de fatos. Já o inciso VIItrata de princípios; logo, a violação ocorre por meio de atos legislativos. Estabeleceo Ministro:

O n. VII contém um elenco de princípios, e o que aí se pressupõe é a ordemjurídica comprometida, não por fatos, mas por atos legislativos destoantesdaquelas normas fundamentais. Esses princípios são somente os enumeradospara o efeito da intervenção, que é a sanção prevista para efetivá-los. Não serãooutros, que os há na Constituição, mas cuja observância está posta sob a égidedos tribunais, em sua função normal.

Esclarece que todas as hipóteses enumeradas no art. 7º são passíveis deintervenção, mas apenas as enumeradas no n. VII estão sob a guarda do Supre-mo Tribunal Federal, pois são verdadeiras declarações de princípios, “comportan-do o que possa comportar cada um desses princípios como dados doutrinários, quesão, conhecidos na exposição do direito público.”

É por essa razão que o exame do conteúdo e da extensão desses princípiosficou reservado ao Supremo Tribunal Federal, portanto ao controle do PoderJudiciário. A partir daí, conclui o Ministro:

Quero dizer, com estas palavras, que a enumeração é limitativa comoenumeração. Dessa forma, fica respondido o argumento que o eminente Sr. JoãoMangabeira suscitou da tribuna. A enumeração é taxativa, é limitada, é restritiva enão pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada um dessesprincípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo edelimitado na sua extensão. Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas nosentido de limitada aos princípios enumerados; não o exame de cada um, que nãoestá nem poderá estar limitado, comportando necessariamente a exploração doconteúdo e a fixação das características pelas quais se defina cada qual deles, nissoconsistindo a delimitação do que possa ser consentido ou proibido aos estados.

Ele deixa claro, portanto, que a restrição da interpretação reside tão-somente nos princípios enumerados no n. VII, mas não quanto ao exame de cadaum, pois definir a extensão e a profundidade dessa análise é tarefa exclusiva doPoder Judiciário; no caso, do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro Castro Nunes mantém e reforça esse ponto de vista no votoproferido na Representação Interventiva n. 96, para deixar claro que a represen-tação interventiva só pode versar sobre os princípios enumerados no art. 7º, n.VII, da Constituição Federal de 1946:

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Basta considerar que a sanção adstrita ao veredictum do Tribunal é aintervenção, para mostrar o seu caráter excepcional. O Tribunal pode conhecer dequaisquer das argüições, mas pela via comum. Mediante os remédios judiciaisadequados, poderão essas argüições vir aos tribunais competentes e chegar atéao Supremo Tribunal Federal. Mas, para exercer a atribuição do art. 8º, parágrafoúnico, que lhe dá o poder de declaração da inconstitucionalidade, em tese, e,como conseqüência, a intervenção federal, ele está adstrito e obrigado a verificar,em cada argüição, a sua filiação, o seu entroncamento em alguns dos princípiosenumerados na Constituição. Do contrário, estaríamos ampliando uma atribuiçãoque é do seu natural, excepcionalíssima, e de certa forma diminuindo e ameaçandoa autonomia dos estados. Isso não podemos fazer, data venia.

O rol do n. VII do art. 7º do Texto Constitucional é taxativo e, como tal, nãoadmite o acréscimo de nenhum princípio que não os elencados expressamente.Adverte o Ministro Castro Nunes:

Fora daí, por mais evidente que seja a inconstitucionalidade do dispositivoestadual, não lhe compete corrigir a violação no exercício da atribuição excepcionalque lhe foi conferida, e sim em espécie, mediante os meios ou recursos de quedispuser o interessado.

Reconhece, ainda, que existem outros princípios, outras regras, outras limi-tações que podem ser violadas, e isso não deve ficar impune. Todavia, entendeque essas situações fogem “ao julgamento por disposição geral e à intervençãoque virtualmente o acompanha, como sanção excepcional só compreensívelnaqueles casos restritos”.

No entanto, ressalta que cada um dos princípios constitucionais elencadosno n. VII do art. 7º é um dado doutrinário e, como tal, comporta exploração econceituação. Desse modo, deve o intérprete estudar a noção de cada um dessesprincípios, segundo a doutrina e a jurisprudência, para então verificar se odispositivo atacado na representação interventiva está incluído ou não nessesprincípios constitucionais:

Se se concluir que não é possível, não se deve conhecer da argüição. Nãotemos que nos pronunciar sobre ela. Temos que aguardar que o caso venha, porprovocação do interessado, para ser examinado em espécie. Pondera, ainda, quenão se pode pronunciar sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidadeantes de se apreciar se a questão está ou não contida no art. 7º do TextoConstitucional e adverte que essa questão não pode ser examinada comoquestão preliminar: Este é o meu ponto de vista, tanto que, no caso do RioGrande, não destaquei a questão constitucional; não pode o Tribunal,preliminarmente, examinar esta questão. Eu não fiz assim e entendo que,realmente, não é possível, porque a preliminar exige, para ser destacada eexaminada, o exame do fundo da argüição. Seria perturbador do julgamentofazermos, agora, essa apreciação.

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POSSIBILIDADE DE O VÍCIO SER SANADO POR OUTRO MEIOJUDICIAL

Admite o Ministro Castro Nunes a propositura da representação interven-tiva, ainda que haja outro meio capaz de sanar a violação de determinado direitosubjetivo decorrente de dispositivo eivado de inconstitucionalidade. Para isso, exigeapenas que reste demonstrado que a violação se relaciona com os princípios enu-merados no n. VII do art. 7º do Texto Constitucional. O ingresso da representaçãointerventiva se torna possível na exata medida em que seus efeitos diferem dasdemais ações. Nesse sentido, esclarece:

Muitas vezes a violação argüida poderá ser remediada em espécie,configurando um direito subjetivo em termos de ingressar em juízo, circunstânciaque por si só não bastará para que o Tribunal se abstenha de declarar ainconstitucionalidade em tese. Se se demonstra que a violação poderia sercorrigida pelos meios processuais comuns, mas se, igualmente, se demonstra queela se relaciona com qualquer das cláusulas enumeradas no art. 7º, n. VII, nem porisso estará trancado o julgamento por disposição geral. Pode ocorrer que se tratede argüição para a qual esteja previsto na própria Constituição o recurso paradada justiça.

PRESIDENCIALISMO

Estrutura do Poder Executivo

O Ministro Castro Nunes, em seu voto na Representação Interventiva n.93, enfrenta questão relativa à estrutura do Poder Executivo no âmbito dosestados-membros, tendo como parâmetro a estrutura desse Poder no âmbitofederal. Esclarece que a estrutura do Poder Executivo é definida pelo Presidenteda República e seus Ministros, que são escolhidos — e destituídos por ele — comoseus auxiliares imediatos:

O Poder Executivo não se reduz ao presidente da República. O Ministérioou os ministros, individualmente considerados, como auxiliares imediatos dopresidente da República, constituem uma peça constitucional desse Poder, daqual cogita a Constituição Federal e da qual não poderia o presidente da Repúblicadeclinar, porque cada um dos ministros completa a ação do presidente da República,legaliza essa ação e nisso consiste a referenda.

Tendo em vista o princípio da simetria, a organização estadual estrutura-se,segundo o Ministro Castro Nunes, como a esfera federal. Desse modo, cabe aosgovernadores escolher seus secretários livremente, sem nenhuma restriçãoimposta pelo Legislativo ou qualquer outro Poder. Os secretários de estadodevem corresponder aos ministros de Estado na órbita federal, devendo sernomeados e demissíveis livremente pelo governador.

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Ministro Castro Nunes

Tal organização deve ocorrer de maneira autônoma, do contrário restariaviolado o princípio da separação de Poderes. O Ministro Castro Nunes manifesta,em seu voto, a preocupação em preservar a harmonia e a independência entre osPoderes como elemento intrínseco ao Estado Democrático de Direito:

Essas relações de independência entre os três Poderes do Estado, tomadaa expressão no seu sentido teórico, doutrinário ou genérico, são governadas porum sistema chamado de “freios e contrapesos” e que consiste, exatamente, emmanter a independência e ao mesmo tempo a harmonia e o equilíbrio dos poderes.No caso, o que se estabelece é um freio, e um freio, sem contrapeso, porque ogovernador do estado lança a nomeação ou faz a nomeação, mas esta poderá sercassada pela Assembléia. Cria-se, assim, um verdadeiro impasse, e esse impassese define por uma limitação do governador para organizar o seu governo, para secercar dos auxiliares imediatos, que lhe completam a ação.

O Ministro traça, ainda, paralelo entre o modelo brasileiro e o americano,para ressaltar as distinções entre eles, visto que, no modelo americano, ossecretários do governo são nomeados pelo Presidente da República, masdependem da aprovação do Senado. Nesse particular, pondera:

Não existe nisso nenhum traço de parlamentarismo, e sim coisa diversa, aexageração do princípio eletivo como limitação posta ao poder titulado no gover-nador. A origem ou razão de ser do Senado é conhecida. É uma representaçãoquase corporativa dos estados. O regímen vinha do consentimento das ex-colônias,era um produto de transação política. O Senado é o sinal ou a expressão políticada Federação. O partido chamado dos estados reivindicava para o Senado funçõesexecutivas complementares, e contrapesos à possível ação do presidente emdetrimento das prerrogativas estaduais.

Assinala que, no modelo brasileiro, a realidade é distinta, pois a ConstituiçãoFederal faculta ao Presidente da República cercar-se de auxiliares de sua livreescolha, de modo que tal prerrogativa deve ser estendida aos estados-membros:

Não seria possível admitir que o governador, que é o órgão do PoderExecutivo do estado, que encarna o Poder Executivo no estado, tivesse cerceadaa sua escolha, por qualquer forma, mediante um freio não cogitado no sistemafederal e, por isso, eu estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Relator, emhaver por inconstitucional a limitação estabelecida no caso da nomeação dossecretários de estado.

O Ministro Castro Nunes entende também ser violação do princípio dosPoderes harmônicos e independentes a intervenção do Legislativo, no âmbito dosestados-membros, na escolha, pelo governador, do chefe de polícia:

O chefe de polícia é o auxiliar de mais imediata confiança do governador,livre de escolher os secretários do seu governo conforme lhe aprouver, segundo

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o entendimento que já firmamos nos casos do Ceará e do Rio Grande, e, pormelhor razão, o chefe de polícia. É disposição que contravém à independência doExecutivo e, portanto, inconstitucional, ainda que possivelmente inócua ou decaráter meramente diretivo no interesse de colocar a função acima das competi-ções partidárias.5

Todavia, pondera que, no tocante à escolha dos prefeitos com o auxílio daassembléia legislativa, deve-se obedecer à ressalva estabelecida pela Constituição:

quanto aos prefeitos das estações hidrominerais, das bases militares e da capitaldo estado, porque, com relação a esses, a Constituição Federal, ela mesma, declaraque compete ao governador nomeá-los; e, se a Constituição confere ao governadoro poder de nomear os prefeitos da capital, das estações hidrominerais e das basesmilitares, não é possível que o legislador estadual, mesmo constituinte, limiteesse poder conferido, que é de presumir irrestrito.

Fundamenta-se o Ministro no art. 28, § 1º, do Texto Constitucional, queestabelece, in verbis:

Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territóriosos Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde houver estânciashidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União.

O Ministro faz distinção no que se refere aos:

prefeitos que o governador terá de nomear para as prefeituras eletivas, aquelasque tenham de ser exercidas por prefeitos eleitos e não nomeados, serão, portanto,outros que não os mencionados. Relativamente a esses, o governador não tem opoder conferido na Constituição Federal; ele poderá, segundo determina aConstituição cearense, nas disposições transitórias, ter o seu poder limitadopela assembléia estadual. Aí a dificuldade que encontro é de articular, consti-tucionalmente, a proibição. Não encontro na Constituição, data venia do Sr.Ministro Relator, base para declarar que está limitada a autonomia estadual.

Nesse caso, segundo o Ministro Castro Nunes, o governador não tem opoder conferido na Constituição Federal, de modo que poderá ter seu poderlimitado pela assembléia estadual, como faz a Constituição do Ceará:

eu não encontro disposição constitucional que proíba o provimento interino pornomeação, porque o constituinte estadual terá provido a uma situação nãoregulada na Constituição Federal, ainda porque, na Constituição Federal, opresidente da República não nomeia prefeitos, senão o da capital da República, epara isto se estabeleceu, após a promulgação da Constituição —, a aprovação doSenado, o que seria um argumento a mais, para admitir o símile adotado.

5 Voto proferido na Representação Interventiva n. 97. Data da decisão: 12 de novembrode 1947. Relator, Ministro Edgard Costa; Presidente, Ministro José Linhares.

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Contudo, considera plenamente constitucional as nomeações, pelo gover-nador, dos diretores das autarquias e das sociedades de economia mista ficaremsujeitas ao placet da assembléia legislativa:

Argumenta-se que não admitimos a colaboração da Assembléia na escolhados secretários de governo, que declaramos livre de tal restrição, e assim decidimosno caso do Ceará. Mas não existe paridade. A nomeação de tais auxiliares dochefe do Executivo situa-se, nos termos da Constituição, no plano da confiançado presidente da República, devendo refletir-se na órbita estadual com a mesmacaracterística. Muito diverso é o caso dos serviços autônomos que a lei institui (etais são as autarquias e as sociedades de economia mista) para que se desenvolvamà margem da administração direta dos serviços do Estado. Não vejo por quecensurar, por inconstitucional, a reserva de uma colaboração do Legislativo naescolha dos dirigentes de tais serviços.

Adverte ainda que a administração indireta está subordinada, quanto aosatos da administração financeira, aos tribunais de contas.

Presidencialismo e parlamentarismo

Na Representação Interventiva n. 94, o Ministro Castro Nunes tambémanalisa, em seu voto, a estrutura do Poder Executivo no âmbito dos estados-membros, bem como verifica a existência de alguns traços do regime parlamen-tarista em constituição estadual.

A Constituição do Rio Grande do Sul estabelecia que o Poder Executivo eraexercido pelo Governador e pelo Secretariado. Para o Ministro Castro Nunes, oenunciado por si só não revela o bastante para ser considerado inconstitucional, namedida em que se considera que o Executivo federal é composto pelo Presidente epelos Ministros de Estado, seus auxiliares imediatos, que, por força da Constituição,têm funções complementares das do Presidente da República:

A instituição ministerial existe, pois, por determinação constitucional, comassento nos arts. 78, 90 e 91, e já existia ao tempo da Constituição de 91, quandodo assunto me ocupei em artigo sob o título “Dos ministros de Estado no regimepresidencial” (Arquivo Judiciário, vol. 12, Supl.), consoante a lição, já entãopreponderante, que os ministros, ainda que livremente escolhidos e dispensadospelo presidente, integram o Poder Executivo na sua definição constitucional.Recordei então que a possibilidade, nem sempre admitida, do que entre nós sechamava despacho coletivo, prática adotada por alguns presidentes, não bastariapara abastardar o governo presidencial, como se afigurava a certos espíritosextremados. O despacho coletivo, sobretudo nos primeiros tempos da República,era suspeitado de parlamentarismo e repelido pelos republicanos da propagandacomo uma corruptela do regime ou prática larvada de parlamentarismo. Era umexagero, porquanto o Ministério não seria só por isso um ser coletivo, um órgãocolegiado, senão somente uma reunião dos seus componentes em torno do

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presidente no interesse da unidade de vistas ou da coordenação dos diversosdepartamentos confiados a cada um dos ministros.

Por fim, acaba por concluir que “o art. 65 do estatuto sul-rio-grandensenão merece, pois, censura no definir o Poder Executivo pelo governador, e peloSecretariado.” Todavia, adverte que a inconstitucionalidade não reside nessacomposição, mas no conceito e nas características do secretariado,

definido adiante não como o conjunto dos auxiliares do governador, mas embloco, com o caráter de órgão coletivo, no qual se integram as Secretarias comocomponentes de um todo, órgão colegiado dotado de poderes próprios de direçãopolítica e administrativa e responsável politicamente perante a Assembléia, decuja confiança estará na dependência.

Segundo o Ministro, encontram-se traços do parlamentarismo na Consti-tuição do Rio Grande do Sul em razão das prerrogativas e das características dosecretariado. Tanto é assim que esclarece:

O governo de Gabinete, no regime parlamentarista, caracteriza-se por trêsrequisitos muito conhecidos: a escolha dos ministros dentre os representantesfiliados ao partido em maioria nas Câmaras; a integração deles num blocohomogêneo e solidário, que é o Gabinete; e a responsabilidade política doGabinete, em face do Parlamento, responsabilidade posta no plano da confiança,com o poder reservado à maioria de derrubar o Ministério. É praticamente ogoverno das Assembléias, governo parlamentar que as Câmaras não exercem porsi mesmas, é certo, mas por delegados de sua confiança. Esse poder é temperadocom o que se reserva ao soberano, ou chefe de Estado de apelar das Câmaras parao eleitorado, e nisso consiste a dissolução do Parlamento.

Essas são as características essenciais do regime parlamentarista que oMinistro Castro Nunes identifica na Constituição rio-grandense, a qual exige queo chefe do secretariado saia da Assembléia Legislativa, assemelhando-se assimao Primeiro Ministro, que escolhe seus companheiros no regime parlamentarista:

Nem se expressa a exigência de ser formado o Secretariado com elementosque, não saindo dela, dependam de sua aprovação. É bem de ver, entretanto queessa condição está implícita, uma vez que a Assembléia poderá derrubar qualquerdeles ou todo o Secretariado sob a forma de uma moção de desconfiança.

Daí resulta que a manutenção do gabinete depende exclusivamente docritério político da confiança da Assembléia (art. 82 e seguintes da Constituiçãodo Rio Grande do Sul). O art. 81 exige, ainda, que o secretariado apresente oplano de governo perante a Assembléia, que pode aprová-lo ou não e, por conse-qüência, negar as leis necessárias à execução desse plano e, assim, subjugar oGoverno, que, segundo o Ministro Castro Nunes,

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é, no final das contas, o Secretariado, e não o governador. O governador tem notexto ora examinado a posição em que ficam os chefes do Estado no governoparlamentar, titulares que são antes do poder moderador que do Executivo,exercido como é este pelo ministério em função do Parlamento.

Ressalva, ainda, que nem essa função deixou de ser tratada pelo Texto rio-grandense, que atribuiu ao Governador o poder de dissolução da Assembléia,quando insolúvel o conflito entre ela e o secretariado não resignatário.

Reconhece, já naquela ocasião, que existem no sistema jurídico algunsabrandamentos ao sistema presidencialista puro, mas que isso não implica neces-sariamente a transformação do sistema presidencialista em parlamentarista:

Não desconheço que existem, neste particular, regimes médios, fórmulasde combinação do parlamentarismo e do presidencialismo, atenuações outemperamentos que serão variantes de um e de outro sistema. Mesmo entre nós,de uns anos para cá, a partir da Constituição de 34, o presidencialismo rígido daprimeira Constituição republicana transigiu com o comparecimento dos ministrosàs sessões das Câmaras para darem informações e esclarecimentos, quandoconvocados para esse fim. É uma fórmula de colaboração que não chega adeformar o governo presidencial, porque a sorte dos ministros não dependerá dacensura dos seus atos pela Câmara que os convocou. Chega-se mesmo a admitir,na ausência de obstáculo constitucional, que os ministros escolhidos pelopresidente tenham a sua investidura confirmada por um dos ramos do Congresso,o Senado. Tal é o caso dos Estados Unidos, onde foi possível ao legisladorestabelecer essa condição, reduzida, aliás, na prática, a uma formalidade de merarotina. Ainda que se possa dizer que vai nisso um cerceamento ou limitação à livreescolha do presidente, esgota-se com a aprovação da escolha a colaboração doSenado. O secretário não é responsável politicamente perante o Congresso ou aCasa que lhe homologou a nomeação.

O Ministro Castro Nunes esclarece, portanto, que o que caracteriza ogoverno parlamentarista não é a nomeação dos ministros ad referendum, nem ocomparecimento, ainda que obrigatório, dos auxiliares do Presidente quandoconvocados por uma das Câmaras. Essas características por si sós não bastampara se ter por abolido o governo presidencial. Ressalta também que a sujeiçãoda escolha dos secretariados ao placet das assembléias não caracteriza ogoverno parlamentarista — que prescinde dessa consulta prévia, na exatamedida em que os ministros são tirados do próprio parlamento — e, ainda, que,não sendo parlamentares, cabe às assembléias destituí-los:

No regime parlamentar, seria desnecessária e de certo modo incongruenteessa prévia consulta à Assembléia, porque os membros do Gabinete são tirados daprópria Assembléia, do seio da maioria, ainda que nomeados pelo chefe do Estado.O Parlamento não precisa ser ouvido, não dependem de sua aprovação formal asescolhas, porque os escolhidos são elementos da maioria e essa maioria fica com opoder de cassar a nomeação a todo tempo e destituir, a todo momento, o Gabinete.

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Entende o Ministro Castro Nunes que a incompatibilidade dessa restriçãoestá mais relacionada ao princípio da independência dos Poderes — cujos limitesvêm expressamente descritos na Constituição da República — do que ao sistemaparlamentarista:

Se o Poder Executivo da União está estruturado na base de um presidentecom ministros de sua livre escolha e conservação, fazer intervir na escolha dossecretários do governador a Assembléia, com o poder de vetar as nomeações,seria colocar o governador, no exercício daquela atribuição, na dependência daAssembléia, em contrário àquele princípio fundamental do regímen. O que carac-teriza o governo parlamentar, o traço dominante é a responsabilidade ministerialno plano da confiança política das Câmaras e separada da do presidente, emprincípio irresponsável.

Esses abrandamentos ou essas variantes do sistema presidencialista, quenão chegam ao ponto de desfigurá-lo, só são possíveis quando dizem respeito àConstituição Federal:

Cada nação é livre de adotar o arranjo constitucional que lhe convier, semse ater aos paradigmas teóricos ou doutrinários. Pode combinar como entender oparlamentarismo com o presidencialismo, mediante fórmulas novas em que seacusará mais acentuadamente este ou aquele. Não é esse, porém, o caso de umestado-membro, cujo poder constituinte está limitado. Se o governo instituído nopaís é o presidencial, ainda que atenuado por alguma ou algumas fórmulas detransação com o parlamentarismo, serão essas atenuações, essas acomodaçõesdos dois princípios que estarão ao alcance do poder institucional subordinado.

A partir daí, no entendimento do Ministro, o problema deixa de ser político —opção política do constituinte originário — para ser jurídico, na medida em queprecisa ser analisado em face da Constituição Federal, do poder constituinte dosestados-membros e também da limitação dos Poderes, imposta pela ConstituiçãoFederal.

O traço fundamental do regime presidencialista instituído pela ConstituiçãoFederal reside, segundo o Ministro Castro Nunes, na figura do impeachment.Isso confere estabilidade ao governo federal, que não depende, quanto à duração,da confiança do Legislativo. Há independência entre eles:

Em face da atual Constituição, o presidente da República só é responsávelpor impeachment e os ministros de Estado co-responsáveis com ele nos crimesconexos, sendo que por atos próprios da função respondem os ministros deEstado perante o Supremo Tribunal. É nestes termos que estatui sobre a res-ponsabilidade do chefe do Poder Executivo e dos seus auxiliares imediatos aConstituição, o que exclui necessariamente a responsabilidade no jogo parlamentar,que abstrai da imputação de crime de responsabilidade, situando-se no terreno damera confiança política. É pela exclusão dessa forma de responsabilidade, chamada

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política, para contra distingui-la da outra, que supõe incriminação, processo ejulgamento, é por esse traço que se distingue do governo parlamentar, oscilanteà feição das maiorias congressuais, o governo presidencial, estável, por prazoprefixado e não dependente, quanto à sua duração, da confiança do Legislativo.

Acrescenta, ainda, que, no governo presidencial, o Presidente da Repúblicaacumula as funções de chefe da Nação e de chefe de Governo; por conseguinte,os atos de seus ministros são de sua responsabilidade. Já no regime parlamenta-rista, o chefe de governo é o primeiro-ministro,

o Governo é o Ministério, são os ministros, em cada departamento, os chefes daAdministração. Foi isso que se estabeleceu na Constituição do Rio Grande doSul: o governador é apenas o chefe nominal do Governo; o Poder Executivo realestá com o Secretariado articulado com a Assembléia no plano da confiança. Éuma deformação indissimulável do governo presidencial, a negação deste, ogoverno parlamentar com todos os seus característicos, inclusive a dissoluçãoda Assembléia, que contradiz a prefixação por prazo certo do mandato legislativoe que constitui uma garantia existencial do Legislativo, em face do Executivo, emcujas mãos estaria, por outro lado, na observação de Estrada, dissolver ajurisdição perante a qual responde ele nos crimes de função.

Eleição indireta de vice-governador de estado

Na Representação Interventiva n. 93, o Ministro Castro Nunes enfrenta,em seu voto, questão relativa à possibilidade de a Constituição do Estado doCeará conter dispositivo que autorize a eleição indireta do vice-governador.Adverte que a Constituição de 1946 elenca os princípios a que devem estarsubordinados os estados-membros na elaboração de suas constituições, quaissejam, a forma republicana representativa e a democracia representativa. Estase define pelo sufrágio direto, todavia o Ministro entende que também comportao sufrágio indireto. Relembra, em seu voto, Ruy Barbosa, que sustentava em1891 a possibilidade da adoção da eleição indireta nos estados, e observa:

Mas hoje, na Constituição, é forçoso combinar o inciso da enumeraçãocom o art. 134, para daí concluir que a forma representativa pressuposta contémcomo elemento integrante — porque expresso no art. 134 — o sufrágio direto.

O art. 134 da Constituição de 1946 estabelecia: “O sufrágio é universal edireto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporcional dosPartidos Políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer.”

Pondera o Ministro Castro Nunes que, como disposição permanente, oartigo da Constituição do Ceará seria inconstitucional, no entanto é possível, porquese trata de dispositivo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Nessesentido, remete ao disposto no art. 1º do Ato das Disposições Constitucionais

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Memória Jurisprudencial

Transitórias da Constituição de 1946, que permitia que o vice-presidente daRepública fosse eleito de modo indireto. Estabelecia o aludido dispositivo: “AAssembléia Constituinte elegerá, no dia que se seguir ao da promulgação deste Ato,o Vice-Presidente da República para o primeiro período constitucional.”

Ressalta o Ministro Castro Nunes: “Todos sabemos o alcance das disposi-ções transitórias, que consistem em adotar normas de transição, dispensar aobrigatoriedade de uma regra ou estabelecer exceções.”

Aplicando, assim, o princípio da simetria, o Ministro entende que, se oconstituinte nacional estabeleceu, nas disposições transitórias, a eleição indiretapara vice-presidente da República, a Constituição estadual também pode, emsuas normas transitórias, estabelecer a eleição indireta para vice-governador:

não seria possível argüir esse artigo de inconstitucional em termos de serpronunciada pelos Tribunais a inconstitucionalidade de uma disposição estadualque repete a Constituição Federal, em situação prefigurada perfeitamenteidêntica.

O governo presidencial e o rol dos princípios sensíveis

O Ministro Castro Nunes, no voto proferido na Representação Interventivan. 94, trata da possibilidade da propositura de representação interventiva em facede violação do regime presidencialista. No entanto, reconhece que o governopresidencial não se encontra previsto no rol dos princípios sensíveis elencados naConstituição do Brasil, que são exatamente aqueles que possibilitam a propositurada ação. Todavia, esclarece que tal possibilidade se encontra implicitamenteassegurada no princípio que garante a separação dos Poderes, este sim expres-samente previsto no n. VI:

Na verdade, o princípio da separação dos Poderes, cuja independênciaestá pressuposta na Constituição, não comporta o regímen parlamentar ou qualquerde suas assemelhações. Se o comportasse, seria por igual admissível no jogo dosPoderes da União. Se a vida de relação do Executivo e do Legislativo da Uniãonão pode ser posta em termos diversos dos estruturados na Constituição, nãoestando ao alcance do Congresso modificá-los por uma lei para estabelecer algumafórmula de mais íntima penetração, é desde logo inconcebível que possam fazê-loos estados, mesmo em função constituinte, a que se dirige, precipuamente, a mençãodaquele princípio na enumeração do n. VII.

Alerta para o fato de que, no governo parlamentarista, há separaçãoformal de Poderes, e os que defendem a subsistência do princípio da separação ofazem sob a alegação de que o Poder Executivo é levado a efeito pelo Gabinete,que é órgão intermediário, formado por membros oriundos do Parlamento, masnão exercido por este. Adverte:

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Ministro Castro Nunes

Ninguém ignora que, no governo de Gabinete, o Parlamento é o eixo dosistema, cujo primado incontestável leva ao desequilíbrio da balança dosPoderes. Por isso é que comprometido fica, no regime parlamentar, o princípio daequivalência dos Poderes, substituído praticamente. (...) O desequilíbrio dabalança dos Poderes é inerente, está pressuposto no mecanismo parlamentar. Sepor ele o que se objetiva é reduzir o chefe de Estado à função meramentedecorativa que se lhe assina no jogo dos dois Poderes para evitar a hipertrofiaacusada na prática do governo presidencial, hipertrofia de que não estará, aliás,isenta a fórmula preconizada, o deslocamento desse primado, constitucional epolítico, está indicando, por si mesmo, a incompatibilidade de tal regímen com aequivalência e harmonia dos Poderes constitucionais. Mas, ainda quando seentenda que os Poderes Executivo e Legislativo estão separados, titulados esteno Parlamento e aquele no Gabinete, não seria possível admitir esse Executivocolegiado em face da Constituição, tão certo é que esta o tem por unipessoal naórbita federal (o presidente da República) e na estadual (o governador). E, o queé mais: o Poder Executivo de que cogita a Constituição, a atual como asanteriores, não comporta a distinção entre a função executiva nominal ou formal,a cargo do chefe de Estado, e a função executiva real ou efetiva, confiada aoGabinete.

Ressalta que, em nosso regime presidencialista, ambas as funções sãoconcentradas no mesmo órgão — o Poder Executivo —, que exerce a chefia doEstado e a chefia do Governo. Dessa forma, a Constituição da República, aoestabelecer que os Poderes são entre si harmônicos e independentes, pressupõeo Poder Executivo exercendo ambas as funções, e não dividido entre o Presidentee o Ministério, como órgão coletivo, ou entre o Governador e o Secretariado:

O presidente da República, chefe do Estado, nas organizações parlamen-taristas não tem poder executivo real ou efetivo e, por isso mesmo, é mais deprerrogativa do que executiva a sua função. E é nesse pressuposto que fala emPoderes separados e independentes, não sendo possível haver como tal umgovernador cujos secretários, que são peças complementares do Poder Executivoestadual, como os ministros nos quadros federal, lhe poderão ser tirados a cadamomento pela Assembléia.

O Ministro Castro Nunes salienta, com propriedade, que, nos sistemas queadmitem a separação de Poderes, é necessário que se conheça o mecanismo defreios e contrapesos (checks and balances):

Entra no mecanismo dos Poderes, como elemento de sua conceituação, oque, na teoria do direito público federal, se conhece por freios e contrapesos(checks and balances). Nas relações do Poder Executivo e Legislativo são, entreoutros, o veto e sua rejeição pelas Câmaras, o processo de responsabilidade(impeachment), a convocação, hoje admitida, de ministros, individualmente, porqualquer das Casas do Congresso, etc. Não cogita a Constituição, nem poderiacogitar sem deformar o governo presidencial, do voto de confiança e da válvulacorrespondente, que seria a dissolução do Congresso.

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Memória Jurisprudencial

Tendo em vista o fato de que os princípios da independência e da harmoniados Poderes se estendem, por cláusula expressa, à Constituição estadual, oMinistro formula a seguinte indagação:

Podem os estados adotar esse princípio mediante freios e contrapesosoutros, além dos estabelecidos para o seu funcionamento no sistema federal?Não vejo como admitir a afirmativa, sobretudo quando a inovação muda inteira-mente a fisionomia do regímen. Será, do ponto de vista dos doutrinadores doparlamentarismo, uma válvula de segurança, a terapêutica mais eficaz contra ahipertrofia do Executivo. Mas não estará nesse elogio mesmo a contradição cons-titucional? Não estará nessa reviravolta, nesse deslocamento de um primado quese disputa, a incompatibilidade da fórmula com a equivalência constitucionaldos Poderes? Argumenta-se que a dissolução da Assembléia, reservada aogovernador sob representação do Secretariado, arma o Executivo do poder deapelar da maioria legislativa para o povo, nisso consistindo a indispensável válvulade segurança, que restabelece o equilíbrio dos Poderes.

Castro Nunes reconhece, em seu voto, que a situação realmente é assim.Todavia, adverte que a dissolução da Assembléia não é possível, por contrariaroutro princípio de observância obrigatória no quadro das instituições estaduais,qual seja, o da “temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas àdas funções federais correspondentes (art. 7º, VII, c)”. Explicita que:

Limitada aos mesmos prazos das funções federais correspondentes equivale alimitada à duração das funções federais correspondentes. Vale dizer que a duraçãodo mandato legislativo estadual não poderá ser por prazo maior do que o estabe-lecido para o mandato legislativo federal. Poderá ser menor; mas prefixado, nãoindefinido, por prazo certo. De outro modo não teria razão de ser a prescriçãoconstitucional, cujo sentido óbvio é a correspondência na órbita estadual dafunção eletiva não vitalícia, senão temporária, mas por tempo certo. A dissoluçãoda Assembléia seria a negação desse imperativo constitucional. Dissolver aAssembléia seria cassar, interromper, revogar o mandato legislativo antes detempo prefixado.

Nesse particular, adverte, o contrapeso, que se tem por compensatório,está em conflito com a Constituição Federal:

se a derrubada do Secretariado por via da moção de desconfiança não se compadececom o princípio dos Poderes separados, harmônicos e independentes, a réplicado governador, mediante a dissolução, seria inconciliável com o mandatolegislativo a prazo certo.

Conclui que o Texto Constitucional de 1946 não menciona o governopresidencial, mas apenas o princípio dos Poderes separados e independentes,cujo padrão é o governo presidencial, e não o governo parlamentarista. Assim,dispositivo da Constituição estadual que viole o governo presidencialista incidiráem vício de inconstitucionalidade.

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Ministro Castro Nunes

Impeachment

Nas Representações Interventivas n. 96 e 97, o Ministro Castro Nunesenfrentou a possibilidade de impeachment no âmbito estadual e também suaadmissão fora do regime bicameral. O Ministro argumentou não ser possível,nesse caso, aplicar as regras do direito penal e processual, uma vez que se tratade instituição eminentemente política, tendo em vista sua natureza e seus fins.

Adverte o Ministro que um dos requisitos exigidos pela Constituição aos esta-dos-membros é a observância, em sua organização, da forma republicana e doprincípio dos Poderes separados e independentes. Nesse particular, o impeachmentestá diretamente relacionado à forma republicana e ao mecanismo desses Poderes.Castro Nunes ressalta, em seu voto na Representação Interventiva n. 96, que o quecaracteriza o governo republicano é a eletividade, a temporariedade das funçõeseletivas e a responsabilidade dos agentes públicos. Essa responsabilidade dá-seperante os órgãos do Poder Judiciário e por aplicação da legislação penal. Noentanto, pondera que os crimes cometidos pelos chefes de governo fogem a essaincriminação, por estarem enumerados no art. 89 da Constituição de 1946. Sãoinfrações que só o Presidente da República e, nos estados, os Governadores podemcometer. Argumenta:

O impeachment não visa à punição; visa ao afastamento, à destituição docargo por imputação de algum daqueles fatos; se esses fatos encontraremcorrespondência na incriminação comum, o chefe do Executivo é entregue àJustiça, que o processará e julgará por aplicação do Código Penal. Nisso consiste oindictement. Não seria possível o jogo dos poderes sem o chamado sistema dosfreios e contrapesos, que o governa. O impeachment é sabidamente um dessesexpedientes destinados a manter o equilíbrio dos dois Poderes. O mecanismo dospoderes políticos do estado estaria comprometido ou deformado se o Legislativonão dispusesse dessa prerrogativa, de que poderá usar facciosamente, como, aliás,também o federal —, e o impeachment degenera facilmente em arma política —, maspressuposta como um consectário da autonomia política dos estados.

Esclarece ainda que:

O impeachment é uma prerrogativa do Poder Legislativo, uma válvula desegurança de que dispõe o Poder mais representativo da vontade popular parafazer cessar a ação nefasta de um chefe de Estado traidor, desonesto oudespótico. É uma revolução branca nos quadros constitucionais. Sabemos que,na prática, pode ser um instrumento de hostilidade facciosa; mas, na teoria dainstituição, é esse o sentido alto da medida drástica e excepcional.

A negação do impeachment aos estados representa mutilação da auto-nomia política desses entes federativos e redução do seu Poder Legislativo. OMinistro Castro Nunes também analisou a constitucionalidade do julgamento

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por impeachment nos estados-membros, onde o Poder Legislativo é unicameral.Questionara-se o fato de que, nesses casos, o mesmo órgão julgador é incumbidoda acusação e do julgamento, o que, no âmbito federal, é realizado por órgãosdistintos, Câmara dos Deputados e Senado:

Parte-se, entretanto, de um equívoco: a Câmara dos Deputados nãofunciona como órgão acusador pelo fato de lhe competir julgar da procedência daacusação; funciona como juiz preparador ou processante, cujas atribuições vãoaté à pronúncia, e nisso consiste o julgamento da procedência da acusação, apósas provas e a defesa. Órgão acusador será o denunciante ou serão os deputadosque propuserem a instauração do processo de responsabilidade. Nem o fato deestarem no mesmo corpo deliberante todas as fases da instrução e julgamentocontradiz sequer os princípios de direito comum, porque então não seria possívelo processo e o julgamento originários nos tribunais judiciários.

Argumenta Castro Nunes que, para ser inadmissível o impeachmentfundamentado no argumento de que as duas fases devem estar separadas emórgãos distintos, necessário seria sustentar a obrigatoriedade do sistema bicameralnos estados-membros. Todavia, a Constituição da República, nas disposiçõestransitórias, deixa claro que o Poder Legislativo, na esfera estadual, é composto porum único órgão:

Mas, admitido o impeachment, não podem os estados afastar-se do para-digma federal. (...) no mecanismo dos poderes do estado os freios e contrapesosnão podem ser outros nem diversos dos estabelecidos para os poderes da União.

O Ministro assevera, ainda, no voto proferido na Representação Interventivan. 97, que a Constituição de 1946, em várias disposições transitórias, deixa claroque os estados não estão obrigados a instituir o bicameralismo:

A atual Constituição, em várias disposições transitórias, deixa entreverclaramente que os estados não estão obrigados a instituir duas Câmaras. Daíresulta que, ou poderão adotar o processo político de responsabilidade dogovernador acumulando a Assembléia a dupla função processante e julgadora,ou poderão instituir um juízo de sentença de caráter misto.

Argumenta também que, se os estados não estão obrigados ao sistemabicameral, é necessário admitir duas soluções:

ou a própria Assembléia será o júri de sentença, depois de julgar procedente aacusação (solução que não será inconsti-tucional ad instar do que se pratica nosjulgamentos originários, em que o recebimento da denúncia, a instrução, apronúncia e o julgamento final pertencem ao mesmo colégio processante ejudicante); ou o será uma Corte especial, composta de magistrados superiores edeputados, depois de julgada procedente a acusação pela Assembléia — solução

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Ministro Castro Nunes

que também não me parece inconstitucional, e já era praticada entre nós em váriosEstados sob as instituições de 91 (Constituições Estaduais, 1921, p. 126),conforme tive ocasião de examinar.

O Ministro entende que o essencial é a adoção do processo político deresponsabilidade, qual seja, o impeachment, no mecanismo dos Poderes dosestados-membros. Na Representação Interventiva n. 97, Castro Nunes analisaa constitucionalidade de dispositivo da Constituição do Piauí que instituía um juízo,nos processos de impeachment, formado por um corpo de quatro deputados eleitose dois desembargadores, depois de julgada procedente a acusação pela Assem-bléia, não exigindo o quorum de dois terços, como ocorre no âmbito federal, para acondenação. Votou o Ministro Castro Nunes pela inconstitucionalidade do dispo-sitivo, por violação de diversas normas constitucionais:

É um colégio judicante escolhido a dedo pelo partido em maioria interessadoem arredar o governador. Há que guardar a forma capaz de assegurar as garantiasde relativa isenção que possa comportar o julgamento por impeachment: emprimeiro lugar, o sorteio dos elementos que devam compor o Tribunal Especial.Era esse o critério adotado pelo Texto Federal de 34. A investidura por eleição émarcadamente partidária; o sorteio possibilita a entrada de elementos de outrospartidos, neutralizando a ação da maioria. A condenação condicionada ao voto dedois terços da composição do colégio julgador (e assim dispõe o Estatuto Fede-ral) é uma garantia que também não pode ser dispensada. Outra garantia implícitano regime é a preexistência do órgão julgador na sua composição. Tribunal cons-tituído para o caso concreto é tribunal de exceção, no sentido ominoso dessalocução. O tribunal preexiste à imputação. Deve ser constituído por sorteio, noinício de cada legislatura ou da sessão legislativa. Compô-lo, e por eleição, depoisde julgada procedente a acusação, é contravir a esses postulados básicos doregime. Tenho por inconstitucional o art. 67 e seu § 1°.

Na Representação Interventiva n. 96, analisou-se dispositivo em que aConstituição do Estado de São Paulo estabelecia que o recebimento da denúnciapela Assembléia importava o afastamento do governador, cujo processo eralevado a efeito por comissão especial de deputados, cabendo ao plenário ojulgamento final. Nesse caso, o afastamento do governador dar-se-ia com orecebimento da denúncia pela Assembléia, a despeito da comprovação da culpa.Esse afastamento ocorreria com base somente na vontade da maioria, sem quetivesse havido apuração e direito de defesa. O Ministro Castro Nunes ponderaque o afastamento se dá com fundamento tão-somente na confiança política:

Ainda que saibamos que, na prática, o impeachment é um julgamentopolítico, à feição da vontade da maioria hostil, é necessário, entretanto, guardar aforma, as garantias, ainda que relativas, que ele representa, o princípio daimputação específica com o consectário das provas e da defesa, sem o que não seconcebe a instituição. O recebimento da denúncia não pode ter esse efeito. É uma

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Memória Jurisprudencial

deliberação preliminar que equivale à licença para processar. A Assembléia, seassente, não prejulga da acusação. Vai apurar os fatos por intermédio da comissãoespecial, de que cogita o dispositivo, cuja conclusão terá de ser submetida aoplenário para que este se manifeste sobre a procedência da acusação. Só entãoestará suspenso de suas funções o governador, seguindo-se então o julgamento.O impeachment, como instituição correlata do mecanismo dos poderes políticos,é um só em nosso regímen. Não podem os estados adotá-lo em moldes diversos.É o que existir, nos termos da preceituação federal, que é o Decreto legislativo n.27, de 7 de janeiro de 1892, com o que estiver prescrito na Constituição e o quepuder caber no âmbito regimental das Câmaras Legislativas.

O Ministro deixa claro que os crimes do governador são os mesmos emque pode incorrer o Presidente da República, pois são crimes peculiares à funçãode chefe de governo.

AUTONOMIA MUNICIPAL

Na Representação Interventiva n. 97, o Ministro Castro Nunes analisoudispositivo em que a Constituição do Estado do Piauí (art. 120, n. 3) limitava o poderde nomear, demitir e aposentar os funcionários da prefeitura, atos que o Prefeitopraticava, ad referendum da Câmara de Vereadores:

O princípio não vai até à orbita municipal; é inerente ao poder constituinteou de auto-organização, de que carecem os municípios, supõe a autonomia política,define-se por uma trilogia que a autonomia municipal não comporta. O municípionão tem Poder Judiciário; nem pro-priamente Poder Legislativo, senão, paralegis-lativo ou de índole regulamentar. Jamais se pretendeu, sob as instituições de 91,que o princípio da separação e da independência dos Poderes se estendesse aosmunicípios. É um dos aspectos de que tratei, em 1920, no meu livro Do EstadoFederado e sua organização municipal.

O Ministro adverte que não é possível comparar o ente municipal com oestado-membro, cujas leis dependem de sua organização e administração. EntendeCastro Nunes que os municípios são entidades menores, dotadas de autonomia noque lhes tocam os interesses peculiares, no quadro da administração estatal. Nesseparticular, entende que:

A colaboração obrigatória da Câmara representativa na prática de atosque, em princípio, são do prefeito, pode desconvir aos interesses da administração,possivelmente peada por injunções partidárias; mas nada tem que ver com oprincípio dos poderes independentes nem contravém ao resguardo da autonomiamunicipal, a que melhor serve, pelo menos teoricamente.

Assim, vota o Ministro Castro Nunes no sentido de não conhecer daargüição de inconstitucionalidade, por não dizer respeito aos Poderes separados eharmônicos, uma vez que tal princípio não tem aplicação no âmbito municipal.

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Ministro Castro Nunes

INTERVENÇÃO MUNICIPAL

Na Representação Interventiva n. 97, questionaram-se os arts. 13 e 14 daConstituição do Estado do Piauí, que exigiam a aprovação da AssembléiaLegislativa na escolha dos interventores para os municípios.

O Ministro Castro Nunes proferiu voto no sentido de admitir tal exigência,por entender que a disposição que versava sobre a intervenção federal só diziarespeito ao Presidente da República, não atingindo, portanto, o governador deestado-membro. Ademais, a colaboração da Assembléia na escolha do interventorpreservava a autonomia municipal assegurada na Constituição:

A disposição federal que se pretende correspondente diz respeito àintervenção nos Estados e só aproveita ao presidente da República. Nada impedeque, até no melhor resguardo da autonomia municipal, a Assembléia colaborecom o governador na escolha do interventor.

Em seu voto, Castro Nunes também julgou inconstitucional dispositivo daConstituição do Piauí que estabelecia serem inalteráveis pelo Poder Judiciário osatos dos ex-interventores sobre direitos individuais, por violação do princípio daseparação dos Poderes:

É evidente que o reconhecimento de um direito pode envolver a negaçãode outro. Não poderá o titular deste pleitear o reexame judicial do ato? Não poderáa assembléia, por suas leis, modificar os efeitos desses atos, por não configuraremdireitos adquiridos? Se afirmativa a resposta (e, de outro modo, seria inócuo odispositivo), estará comprometida a autonomia legislativa e a judiciária, convindocensurar a disposição transitória por esse possível alcance.

DISPOSIÇÕES ELEITORAIS DE ESTADO-MEMBRO

O Ministro Castro Nunes, no voto proferido na Representação Interventivan. 96, analisou disposição da Constituição do Estado de São Paulo que exigiaprazo de residência no Estado para a elegibilidade do Governador e dos Deputados,sob o fundamento de que o candidato ao cargo de governador não poderia ser umbrasileiro estranho aos problemas do Estado. A questão versava basicamentesobre a possibilidade de o estado-membro suplementar os pontos não reguladospela Constituição Federal:

Em nada deformaria o regímen representativo se aos estados se deixassedispor suplementarmente sobre os pontos não regulados pelo texto federal. AConstituição encerra num círculo de ferro toda a matéria eleitoral, que declara dacompetência privativa da União, compreendendo-se nessa matéria a organizaçãodo sufrágio, ativo e passivo, desde o alistamento até as inelegibilidades, que nãopoderão ser outras senão as cogitadas.

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Esclarece ainda o Ministro que cabe representação interventiva emmatéria eleitoral, uma vez que o direito eleitoral é a organização jurídica dademocracia representativa.

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Ministro Castro Nunes

2. INCONSTITUCIONALIDADE E RECEPÇÃO CONSTITUCIONAL

DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE PELO PODEREXECUTIVO

No Agravo de Petição n. 9.800/SP6, o Ministro Castro Nunes enfrentouquestão relativa à possibilidade de funcionário deixar de cumprir lei porconsiderá-la inconstitucional. Tratava-se de empresa que deixara de arrecadar ataxa de viação, encargo que, por lei, lhe era imposto em decorrência de serproprietária de embarcações (art. 14, parágrafo único, do Decreto n. 23.900, de21 de fevereiro de 1934). Em razão do não-recolhimento do imposto, foi-lheimputado o pagamento de multa.

O Ministro Castro Nunes analisou, em seu voto, se os particulares queexecutam determinado serviço público são funcionários públicos:

O Estado pode servir-se dos particulares, sem com isso os transformar emfuncionários, para a execução de um serviço público. É a lição de todos osexpositores de Direito Administrativo. Tal é o caso, por exemplo, do jurado.

Seguindo essa linha de raciocínio, funcionam esses particulares comomeros agentes do Estado. Assim, são executores da lei, mas não lhes cabequalquer tipo de apreciação acerca da legalidade ou da inconstitucionalidade dalei. Acrescenta, ainda, que esse juízo só pode ser exercido pelo Poder Executivoquando do exercício do veto ou da sanção:

Servindo-se dos transportadores para a arrecadação da taxa de viação, aUnião cometeu-lhes a função de coletores, que lhes cumpria desempenhar comoagentes do Estado, executores da lei, sem o direito de descumpri-la sob qualquerpretexto, muito menos o de ser a lei inconstitucional, argüição que se esgota noâmbito do Poder Executivo com a sanção e, na falta desta, com a expedição do atolegislativo. Seria, a meu ver, um precedente anarquizador admitir que o funcionárioou o agente do Estado, na execução de um encargo público, pudesse entrar naapreciação da constitucionalidade da lei do serviço, comprometendo os interessesconfiados à sua guarda. Essa apreciação compete ao Poder Judiciário e não aosórgãos administrativos, aos quais incumbe executá-la.

O Ministro deixa claro que, se o particular, na condição de agente do PoderPúblico, tiver dúvidas quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade dedeterminado imposto ou de determinada lei, cabe a ele ingressar com ação noJudiciário, para que se decida acerca da constitucionalidade ou não do atonormativo. Assevera, ainda, que só após a decisão judicial está o particulardesobrigado do pagamento do imposto.

6 Data da decisão: 26 de maio de 1941. Relator e Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Para o Ministro Castro Nunes, não cabe ao Supremo Tribunal Federalanalisar a constitucionalidade ou não do imposto, pois, no caso sub examine, nãose tratava da cobrança do imposto, mas sim da multa. Acabou sendo votovencido no julgamento.

Na análise dos embargos interpostos contra a decisão do SupremoTribunal Federal, o Ministro Laudo de Camargo esclareceu que o imposto erainconstitucional e que o Ministro da Fazenda declarara que não deveria sercobrado. No entanto, o Ministro Castro Nunes pondera:

O Sr. Ministro da Fazenda teria declarado que era inconstitucional oimposto cinco anos depois que a cobrança devia ter sido feita. Seria muitodiferente a situação, se o Ministro da Fazenda houvesse autorizado o funcionárioa não arrecadar o imposto, por inconstitucional.

A posição mantida pelo Ministro Castro Nunes é firme, no sentido de nãoadmitir a suspensão da cobrança por parte de funcionário público ou de qualqueroutro agente do Poder Executivo:

Parece-me que todos os eminentes colegas estão de acordo em reconhecerque a autoridade fiscal, seja qual fora sua hierarquia, seja o ministro da Fazenda,não pode dispensar a arrecadação de um imposto, sob a alegação de que éinconstitucional, por ato seu, de seu arbítrio.

De acordo com Castro Nunes, decidir sobre a constitucionalidade ou a in-constitucionalidade de lei é incumbência do Poder Judiciário, o único que temlegitimidade para declarar a inconstitucionalidade de ato normativo:

A admitir o funcionário fiscal com direito a entrar nessa indagação, ele seteria insurgido, já não mais contra a lei, mas contra todos os princípios dahierarquia administrativa, porque o presidente da República, na teoria do DireitoConstitucional, quando sanciona a lei, a declara constitucional.

POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DE LEI PELA CONSTITUIÇÃO

Nos Embargos no Agravo de Petição n. 9.800/SP7, o Ministro CastroNunes travou intenso debate com o Ministro Orozimbo Nonato e com o MinistroGoulart de Oliveira acerca da revogação de lei pela Constituição ou, segundo oMinistro Castro Nunes, sobre “ a questão de saber se, na verificação da compa-tibilidade de leis anteriores à Constituição, existe um problema constitucional”.Asseverou que “a questão é da maior importância doutrinária e prática”.

7 Data da decisão: 22 de maio de 1942. Relator, Ministro Laudo de Camargo; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro Goulart de Oliveira afirma: “trata-se de dispositivo que nãoexiste, que foi revogado pela Constituição, o que é coisa muito diferente.”Todavia, o Ministro Castro Nunes entende que “a Constituição não revoga leialguma”. Para ele, o que pode ocorrer é a incompatibilidade entre a Constituiçãoe a lei anterior, com base na interpretação do art. 183 da Constituição de 1937,que repete o disposto nas Constituições de 1891 e 1934: “Art. 183. Continuam emvigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, nãocontrariarem as disposições desta Constituição.”

A interpretação que o Ministro faz do referido dispositivo é no sentido deque:

A expressão “enquanto não revogadas” parece indicar que essas leiscontinuam em vigor até que sejam revogadas, por outras leis, evidentemente. Porconseguinte, tais leis, enquanto não forem revogadas por leis posteriores,continuam em vigor, salvo se incompatíveis com a Constituição, explícita ouimplicitamente.

Para ele, se a lei é anterior à Constituição, o problema é “verificar se ela é,explícita ou implicitamente, incompatível com a Constituição”. É nisso queconsiste a declaração de inconstitucionalidade: “A questão é, portanto, a mesma,quer se trate de lei anterior ou posterior à Constituição.”

Essa posição defendida pelo Ministro Castro Nunes foi questionada peloMinistro Bento de Faria, que o julgava equivocado: “Com base na própriaConstituição o que se pressupõe é a revogação das leis.”

Já o Ministro Orozimbo Nonato sustentou que o dispositivo constitucionalcitado “apenas enunciou o princípio doutrinário da continuidade das leis. Elascontinuam em vigor até que sejam revogadas ou se tornem incompatíveis comleis posteriores.”

O Ministro Castro Nunes asseverou que os argumentos do MinistroOrozimbo Nonato não alteravam os termos de sua argumentação:

o problema da compatibilidade ou não da lei ordinária, em face da Constituição, ésempre um problema de constitucionalidade da norma inferior. Os princípios queV. Exa. está invocando, com base no Código Civil, supõem leis da mesmahierarquia: uma lei só se revoga por outra, naturalmente da mesma hierarquia. OCódigo Civil supõe normas da mesma hierarquia, leis ordinárias.

Segundo ele, resta claro que não trata o Código Civil — como não poderiatratar — do conflito, que se dá entre normas de hierarquia diversa: a Constituiçãoe as leis ordinárias. A posição assumida pelo Ministro é clara: qualquer que seja alei, anterior ou posterior, terá de ser confrontada com a Constituição.

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Memória Jurisprudencial

A jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal é no sentido de queas leis anteriores à Constituição, quando incompatíveis, ficam por ela revogadas. Nãohá declaração de inconstitucionalidade, que só pode ocorrer quando a lei é posteriorao Texto Constitucional. Todavia, o Ministro Castro Nunes tem posição diversa:

Não tenho podido aderir a esse modo de ver do qual divirjo, data venia, eassim já me pronunciei na Turma. A meu ver, as leis infringentes ou incompatíveissão inconstitucionais e assim devem ser declaradas, quer sejam posteriores, quersejam anteriores à Constituição. O problema é o mesmo.

O Ministro acredita que a Constituição não revoga as leis, pois elas sópodem ser revogadas por leis de mesma hierarquia. Assim, não revogadas,subsistem, continuam em vigor, salvo se contrariarem explícita ou implicitamentea Constituição, o que equivale a dizer: contanto que não sejam inconstitucionais.

Para o Ministro Castro Nunes, essa indagação deve ser feita pelo PoderJudiciário, pois só ele tem competência para declarar a inconstitucionalidade dasleis. Nesse particular, conclui que — ao se admitir que o funcionário fiscal comdireito a entrar nessa indagação se teria insurgido, não mais contra lei, mas simcontra os princípios que regem a hierarquia administrativa, uma vez que, naTeoria do Direito Constitucional, o Presidente da República, quando sanciona alei, acaba por declará-la constitucional — não pode o Supremo Tribunal Federaladmitir que funcionário — no caso, coletor das rendas federais — diga ocontrário, é dizer, deixe de arrecadar o imposto por entendê-lo inconstitucional.

No mesmo sentido, há o Recurso Extraordinário n. 4.854/SP8, no qual seanalisou lei anterior ao Texto Constitucional e com ele incompatível. CastroNunes, em seu voto, defende a posição de que a Constituição não revoga leis, demodo que leis anteriores ou posteriores, se incompatíveis com a Constituição,devem ser consideradas inconstitucionais. Ele coloca o caso sub examine nosseguintes termos: a questão reside em saber se os decretos estaduais postos emconfronto com as Constituições que lhes sobrevieram (1934 e 1937) devem sertratados como inconstitucionais, segundo entendeu o Tribunal estadual, ou comomeramente revogados ou não, uma vez que são anteriores às duas Constituições.

O Ministro já se havia manifestado em outro julgado como voto vencido,pois não via razão para tratar diferentemente a lei argüida de incompatível com aConstituição, em virtude apenas de sua anterioridade. Adverte que o entendimentodo Supremo Tribunal Federal sempre foi tratar como lei revogada a norma anteriorà Constituição e com esta incompatível. O Ministro Castro Nunes enfatiza que oargumento que dá subsídio a esse entendimento do Supremo Tribunal Federalreside no seguinte fato:

8 Data da decisão: 6 de setembro de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

É que somente as leis posteriores a uma dada Constituição gozam da pre-sunção de constitucionalidade, porque de supor-se, na teoria da elaboraçãolegislativa, todo cuidado no exame daquele aspecto, exame ainda presumidamenterenovado na chancela da sanção. Daí decorre, por via de conseqüência, que asnormas anteriores são, ao revés, presumidamente inconstitucionais, porque ela-boradas em consonância com um regime anterior ou uma ordem de coisas que seextinguiu.

O Ministro Castro Nunes reconhece que esse era o argumento mais fortepara sustentar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, apesar de não con-siderá-lo decisivo, visto que não excluía ou suprimia os problemas constitucionais.Tal argumento não conferia a presunção de constitucionalidade a leis anteriores ànova Constituição. No entanto, salienta que os atos do Poder Executivo, quandoatacados em juízo, não desfrutam do princípio da presunção de constitucionalidadee nem por isso deixam de ser declarados inconstitucionais, consoante o dispostono art. 96 da Constituição. Argumenta:

Ouso dizer que, em boa técnica, uma Constituição não revoga leis. Cons-tituição e leis, pelo menos no sistema das chamadas Constituições rígidas, sãopreceituações de nível ou hierarquia diferente. O problema da inconstitucionali-dade é um problema de hierarquia das normas, a ser resolvida pela prevalência dalei de graduação superior, que é a Constituição. A teoria da ab-rogação das leissupõe normas da mesma autoridade e hierarquia. Quando se diz, com assento noCódigo Civil, que a lei posterior revoga, ainda que tacitamente, a lei anterior,supõem-se, no cotejo, leis do mesmo nível. Mas se o confronto situa-se em faceda Constituição, o intérprete está diante de um desnível, que é precisamente oque caracteriza a declaração de inconstitucionalidade, problema de direito público,de técnica peculiar, desconhecido ou inadmitido em muitos países, como o eraentre nós até a Constituição de 91.

A Constituição de 1937 estabelece, em seu art. 183, que: “Continuam emvigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ou implicitamente, nãocontrariem as disposições desta Constituição.” O Ministro assevera que aexpressão “enquanto não revogadas” refere-se apenas às leis que explícita ouimplicitamente não forem contrárias a ela. Supõe a revogação de uma lei poroutra lei. Adverte que:

A revogabilidade está admitida, no plano de competência dos órgãosconstitucionalmente aptos para legiferar é o que mostra que não ficaramrevogadas pela Constituição posterior, ainda que se demonstre que contrariam,explicita ou implicitamente, disposições constitucionais, mérito da impossibilida-de argüida.

Anota, ainda, que se deu mais atenção ao tema da ab-rogação das leisanteriores em face de a Constituição de 1934 ter trazido em seu texto normasde direito civil, comercial, é dizer, ter adentrado em matéria de direito privado, o

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Memória Jurisprudencial

que gerou conflito com a legislação infraconstitucional anterior. A colisão dessasnormas de direito privado no âmbito da Constituição com as leis ordinárias eraflagrante. Sustenta o Ministro Castro Nunes que a “flagrância” da incompatibi-lidade da norma anteriormente de base legal com a norma constitucional, a quese promovera aquela, não seria suficiente para excluir o questionamento acercade sua constitucionalidade.

Pondera igualmente que, nem sempre argüida a incompatibilidade, existe aevidência de uma ab-rogação expressa, necessitando de esforço do intérpretepara solucionar o problema. Argumenta:

Considere-se, ainda, além de outros motivos que, com base na Constituiçãomesma, poderiam ser arrolados, para excluir a desigualdade de tratamento, quenos casos de Recurso Extraordinário (letras b e c) em que se focaliza o problemada validade constitucional das leis da União e dos Estados, aquela desigualdadeseria uma atitude de arbítrio do intérprete, sem base nos textos e nas razõesconhecidas que informam o apelo extraordinário, que, em ambas as hipótesessupõe a validade constitucional controvertida, e não o problema de direitointertemporal (hipótese diversa e particularizada no texto constitucional) a que sereduz a questão de vigência das leis no tempo.

Para o Ministro, a questão ganha relevo no momento atual em face dodisposto no art. 96, parágrafo único, que permite a reconstitucionalização, peloParlamento, da lei declarada inconstitucional pelo Judiciário, seja essa lei anteriorou posterior à nova Constituição.

Em primeiro lugar, tendo-se em consideração o disposto no art. 96,parágrafo único, da Constituição, quando permite ao Parlamento validar a leideclarada inconstitucional, atribuição que se há de entender restrita aos termosdo seu enunciado, e que estaria limitada pelo entendimento adotado de que asleis anteriores, que a Constituição manda que continuem em vigor até serem ab-rogadas, e que podem ser, tanto quanto aos posteriores, “necessárias ao bem-estar do povo, e à promoção e defesa do interesse nacional de alta monta”, não seincluem entre as declaradas inconstitucionais, senão apenas revogadas, com aconseqüência de não estar ao alcance do Parlamento revalidá-las, resultando daí,para as leis anteriores e para as decisões judiciais a elas referentes umaintangibilidade de que não gozam hoje as posteriores à Constituição e asdecisões judiciais que lhes tenham pronunciado a inconstitucionalidade.

Essa controvérsia tem desdobramentos no julgamento do Supremo TribunalFederal no seguinte sentido: se não for problema constitucional, pode ser decididona Primeira Turma, mas, se a indagação é de índole constitucional, o processodeve ser remetido ao Pleno. O voto do Ministro Castro Nunes é pela remessa dosautos ao Tribunal Pleno. A questão foi a Plenário, que decidiu pela constituciona-lidade do imposto exigido no caso em tela.

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Ministro Castro Nunes

RECEPÇÃO DE LEI ANTERIOR PELA NOVA CONSTITUIÇÃO

O Recurso Extraordinário n. 5.741/RJ9 teve origem em ação de anulaçãode casamento do autor, celebrado em 1923. A referida ação fundamentava-se noart. 219, n. 3, do Código Civil10 e no art. 1º do Decreto n. 13/37.

Não houve contestação, e o juiz declarou a ação procedente. Na apelação,alegava-se que a ação era nula, por ser nula a citação.

A primeira câmara do tribunal de apelação não conheceu da apelação exofficio, entendendo que, em face do Código de Processo Civil, não subsiste aapelação ex officio nas ações de anulação de casamento, visto que derrogado poraquele Código o Decreto n. 23.301/33. O Procurador-Geral interpôs o recursoextraordinário, pois entendia que o acórdão deixara de aplicar o referido decreto.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes esclarece que o disposto no referidoDecreto foi mantido pela Constituição de 1934 e, posteriormente, não foireproduzido pela Carta de 1937, sendo que o Código de Processo Civil nadadispôs a respeito, citando, somente, em seu art. 824, § 2º, o recurso nas ações dedesquite por mútuo consentimento.

O Ministro entende que o Código de Processo Civil não impede que subsistao recurso de ofício estabelecido em leis especiais. Prossegue em seu raciocínio,explicitando que o referido Decreto não foi revogado; pelo contrário, as leisposteriores dispuseram no mesmo sentido, a começar pela própria Constituição de1934 e, após, pelo Decreto n. 4.857/39, editado na vigência da Constituição de1937. Esclarece o Ministro:

Nem mesmo há necessidade de argumentar com a possibilidade desubsistir como lei ordinária o disposto no art. 144, § 1º, da Constituição de 1934,consoante o entendimento que tem ganhado voga entre nós no sentido deatribuir vigor a certas cláusulas que, não podendo viger mais como normasconstitucionais, vigem como regras legais. É uma doutrina que só pode ser aceitacom grandes reservas, não obstante o apoio que encontra em precedentes dajurisprudência francesa.

9 Data da decisão: 8 de outubro de 1942. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.10 O art. 219 do Código Civil de 1916 estabelecia: “Considera-se erro essencial sobre apessoa do outro cônjuge: I - que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra eboa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vidaem comum ao cônjuge enganado; II - a ignorância de crime inafiançável, anterior aocasamento e definitivamente julgado por sentença condenatória; III - a ignorância anteriorao casamento, de defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível, porcontágio ou herança, capaz de pôr em risco a saúde de outro cônjuge ou de sua descen-dência; IV - o defloramento da mulher, ignorado pelo marido.”

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Memória Jurisprudencial

No entanto, no caso, não era necessário apoiar-se na Constituição, sendosuficiente considerar que ela mantivera ou reproduzira a regra legal anterior, aqual, não tendo sido revogada, nunca deixou de existir, constituindo-se assim emnorma especial, que, em face da omissão da Constituição de 1937, subsistia noordenamento jurídico. Esclarece, ainda, que a decisão recorrida, ao não admitir orecurso de ofício, desconheceu a existência dessa norma, por tê-la comorevogada pelo Código de Processo.

É certo que lei recente dispôs sobre o assunto, estabelecendo o recursonecessário das sentenças anulatórias de casamento, lei posterior à decisão recor-rida. Mas há que entender como interpretativo o novo texto, de vez que as disposi-ções anteriores sobre o recurso ex officio nas causas de anulação de casamento enas causas da Fazenda, sobre as quais também legislou nas modificações recentesdo Código de Processo, estavam sendo aplicadas, havidas como subsistentes poreste Supremo Tribunal e por outros tribunais do País.

O Ministro Castro Nunes conhece do recurso e lhe dá provimento paraque a corte local julgue o recurso ex officio, e foi esse o entendimento doSupremo Tribunal Federal, em decisão unânime.

CLÁUSULA DE RECONSTITUCIONALIZAÇÃO PREVISTA NACONSTITUIÇÃO DE 1937

A Constituição de 1937 continha dispositivo expresso — o art. 96,parágrafo único — que permitia ao Parlamento, por provocação do Presidente daRepública, confirmar lei declarada inconstitucional pelo Supremo TribunalFederal, deixando sem efeito a decisão judicial já proferida. Estabelecia oreferido dispositivo constitucional, in verbis:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei, que, a juízodo Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoçãoou defesa do interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da Repúblicasubmetê-la novamente ao exame do Parlamento; se este a confirmar por doisterços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão doTribunal.

Tratava-se de dispositivo constitucional controverso, com nítido caráterautoritário, pois submetia as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal,o guardião da Constituição, ao crivo do Poder Legislativo, desde que provocadopelo Presidente da República. Na Constituição de 1937, verificava-se, em deter-minados casos, primazia do Poder Executivo em detrimento dos demais Poderes.Cumpre registrar que, logo após a edição da Constituição de 1937, o MinistroCastro Nunes publicou artigo intitulado “O Poder Executivo na evolução políticado Brasil”. Nele, deixa consignado que:

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Ministro Castro Nunes

O estudo das instituições republicanas representativas em nosso país,através das vicissitudes do seu funcionamento, as crises repetidas de que estápontilhada a história política nos dois regimes, no Império como na República,leva à conclusão de que jamais puderam elas ser praticadas e que, à revelia dateoria das Constituições, cresceu, desmesuradamente, o Poder Executivo,dominando todo o sistema. Que fatores terão determinado esse crescimento, quenão poderia ser, como não foi, em ambos os regimes, o produto da ambição doshomens à testa da Nação pelo princípio dinástico ou por via eleitoral — eis oobjeto deste artigo, mero ensaio aliás em torno de uma tese que estaria a pedirmaior desenvolvimento e cujo interesse sobe de ponto nas circunstâncias atuais,porque revela as raízes históricas do primado do Executivo, característica donovo regime instituído em dez de novembro.11

Nos Embargos no Agravo de Petição n. 10.138/MA12, o Ministro CastroNunes proferiu voto, como relator, no sentido de que uma das conseqüências doreferido dispositivo constitucional, ou seja, a conseqüência da confirmação da leiinconstitucional envolveria necessariamente a retroação da lei confirmatória.

Essa convalidação da lei declarada inconstitucional era veiculada à expe-dição de decreto-lei. No caso do Agravo de Petição n. 10.138/MA, esclarece orelator:

De modo que o Decreto-Lei expedido, como Parlamento, pelo Presidenteda República, não se limitando a validar a lei declarada inconstitucional, masacrescentando, nos termos do assento constitucional, que ficam sem efeito asdecisões judiciais que negaram aplicação à lei, é, ao meu ver, clara e forçosamenteretroativo, e retroativo na forma mais grave e mais repelida na exposição doutrináriada matéria, pois que retroage para desconhecer a autoridade da coisa julgada.

O Ministro realça que a faculdade consistente na invalidação das sentençasjudiciais declaratórias da inconstitucionalidade

é um poder excepcional na teoria mesma da Constituição vigente, que, definindocomo crime de responsabilidade do Presidente da República atentar contra aexecução das decisões judiciais, assenta na regra, explícita quanto ao Presidentee implícita quanto ao Parlamento a autoridade da coisa julgada se impõe inapela-velmente aos outros Poderes.

Nesse particular, a posição assumida por ele é a de que a “mera confirma-ção, pelo Parlamento, da lei declarada inconstitucional equivaleria a uma emendada Constituição, deixando de pé as decisões anteriormente proferidas”. Desse

11 “O Poder Executivo na evolução política do Brasil”, in Revista Forense de abril de1938.12 Data da decisão: 30 de dezembro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

modo, restaria resolvido apenas o conflito entre a lei e a Constituição, validandoaquela em face desta última. Isso importaria uma modificação indireta do TextoConstitucional, pois soluciona-se a controvérsia existente de modo que prevaleçaa lei e reste excluído o entrave constitucional.

Pondera, ainda, que a Constituição não se limitou apenas a isso; ela foialém, para atingir também as decisões já proferidas pelo Poder Judiciário queversassem sobre aquele conflito. Argumenta:

Entendeu-se necessário reagir contra o passado, desfazendo o que sefizera, cassando as decisões proferidas na solução do conflito aberto entre a lei ea Constituição. Eis as razões pelas quais não posso deixar de considerarretroativa a lei que, confirmando a declarada inconstitucional, cassa as decisõesjudiciais já proferidas.

No referido caso, não havia decisão judicial a configurar coisa julgada,havia apenas despacho de arquivamento fundado na jurisprudência.

Salienta, ainda, o Ministro Castro Nunes que a regra do art. 96, parágrafoúnico, conferia faculdade ao Presidente da República e ao Parlamento dereconhecer ou não a inconstitucionalidade de lei já objeto de decisão do SupremoTribunal Federal que a tivesse declarado inconstitucional. Ressalta que, quantoao Poder Judiciário, a análise da lei é jurídica e, quanto ao Parlamento, éessencialmente política. Elucida, no voto proferido como relator na ApelaçãoCível n. 8.606/DF13:

quanto ao Poder Legislativo e ao Judiciário, relativamente à declaração deinconstitucionalidade que, de fato, as duas atribuições se situam em planodiferente, porque a atribuição jurisdicional é exercida pelo Judiciário quandodeclara uma lei inconstitucional; a provocação feita ao Parlamento está no planopolítico e o Parlamento pode até reconhecer o acerto da decisão judiciária.

É atribuição do Parlamento, portanto, validar a lei se entender que, doponto de vista político, é necessária, a despeito de, sob o prisma jurídico, sermanifestamente inconstitucional. Acrescenta:

De fato, os dois pólos são diversos, os objetivos diferentes. Os tribunaiscumprem seu dever declarando a lei inconstitucional incompatível com o textobásico, porque impossível aplicar os dois textos, o constitucional e o legal.Todavia, se o Governo e, com ele, o Parlamento, na teoria da Constituição,entenderem que essa lei, apesar de inconstitucional, é necessária ao bem públicopoderão, um provocando, outro deliberando, entender que a lei é válida e deveprevalecer.

13 Data da decisão: 1º de agosto de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

No Recurso Extraordinário n. 11.86314, o Ministro Castro Nunes afirmaque a cláusula que reservava ao poder constituído a possibilidade de cassar asdecisões judiciais até do Supremo Tribunal Federal era uma enormidade queestava na Constituição de 1937, mas que só deveria vigorar em casos restritos,por exemplo, quando se declarasse a inconstitucionalidade de lei ou de ato doPoder Público. Esclarece que “só nestes casos, poderia o Parlamento e, na faltado Parlamento, o Presidente da República cassar tais decisões. Era umaexorbitância, uma demasia, mas estava na Constituição”.

No caso da Apelação Cível n. 8.606/DF, pretendia o autor que as decisõesjudiciais anteriores proferidas no sentido da inconstitucionalidade fossemmantidas, a despeito da validação da lei pelo Parlamento. No entanto, o MinistroCastro Nunes salienta que o constituinte deixou claro no art. 96 que ficam semefeitos as decisões judiciais proferidas. Tratava-se de controvérsia muito antiga,consistente em saber se os funcionários locais são tributáveis pela União, a títulode imposto de renda.

O fundamento legal para tanto era a legislação de 1931, em que já sedeclaravam sujeitos ao imposto de renda os funcionários estaduais e municipais.Mas, como salientou o Ministro,

o Supremo Tribunal entendeu sempre que essa tributabilidade era incompatívelcom a Constituição, com a cláusula da imunidade recíproca da União, dos estadose dos municípios; entendendo o Supremo Tribunal, de acordo com o ensinamentoda jurisprudência americana, não tributáveis os serviços locais, em nome da auto-nomia das entidades federais. Assim, sempre se entendeu inconstitucional essatributação.

No caso, o Governo fez uso da prerrogativa constitucional para validar alei e considerar tributáveis os vencimentos dos funcionários estaduais e munici-pais e deixar sem efeito as decisões judiciais em contrário. A controvérsia dareferida ação versava, ainda, sobre o fato de o Decreto-Lei n. 1.554 não contercláusula expressa sobre a sua retroatividade. Todavia, o Ministro Castro Nunesentende que, como o Decreto-Lei repete o Texto Constitucional, “isso equivale aum texto explícito de retroação e só por esse fundamento, embora reconheça arelevância da questão jurídica, eu o tenho aplicado, retroativamente”.

O Ministro Laudo de Camargo adverte que as decisões do SupremoTribunal Federal eram em sentido contrário, qual seja, de não aplicá-lo.Todavia, argumenta o Ministro Castro Nunes que foi justamente por essa razãoque a questão foi a Plenário, pois as duas Turmas tinham entendimento diverso.

14 Data da decisão: 14 de abril de 1948. Relator, Ministro Hahnemann Guimarães;Presidente, Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

A posição dele é bastante clara no sentido de que a cláusula, “ficando sem efeitoas sentenças judiciais”, não pode ser desconhecida, porque é cláusula que não éincompatível com a Constituição, pois repete o próprio texto constitucional. Nãose pode discutir, pois, a constitucionalidade dela”.

O Ministro Orozimbo Nonato abre divergência para ponderar que isso sópode ocorrer para o caso concreto e não para todos, e sustenta que

O Executivo não pode fazer isso; só quanto a um caso. (...) Uma decisãoespecífica. É contra toda técnica que o Executivo possa fulminar sentenças.Todavia, se, agora, o pode fazer, não pode fazê-lo, de modo algum, em globo.

Nesse ponto, questiona o Ministro Castro Nunes que, se houvesse mais deuma sentença, estaria paralisada a ação do Parlamento. Em outras palavras, aatuação do Parlamento estaria restrita, portanto, à anulação de uma únicadecisão, segundo o entendimento exarado pelo Ministro, que elucida: “Nada háde contrário ao interesse público, na demanda, nem na sentença. O que a própriaConstituição figura como contrário ao interesse público é a lei.”

O Ministro Orozimbo Nonato pondera:

Não é isso. O Parlamento poderá infirmar uma decisão do Supremo Tribunal,em nome do supremo interesse público. Esse interesse não pode, porém, justificarque se fulmine de um traço inúmeras sentenças do Supremo Tribunal.

A posição do Ministro Castro Nunes é clara: se o Presidente da Repúblicaprovocar a ação do Parlamento e este declarar a lei necessária ao bem público,ficam sem efeito as decisões judiciais. Mesmo se houver mais de uma decisãojudicial, a situação não mudará. O Ministro esclarece que:

conferida a atribuição no singular — ficando sem efeito a decisão judicial — éevidente que o legislador se referiria à hipótese mais normal, de uma sentençajudicial que declarasse inconstitucional uma lei; e, então, o presidente da Repú-blica dirigir-se-ia ao Parlamento e pediria que se confirmasse a lei e se declarasseinexistente a sentença. Mas parece-me claro que, como está, o texto constitucionalnão se restringe, apenas a uma, mas abrange as decisões judiciais sobre a mesmalei, tida pelo Supremo Tribunal ou por vários tribunais da República como incons-titucional. A situação, aliás, não muda, substancialmente. Será um motivo de maispara que seja usada a atribuição constitucional e provocada uma nova manifesta-ção do Parlamento, exatamente porque há diversas decisões incidindo sobre omesmo texto legal.

Todavia, é imperioso salientar que o Ministro Castro Nunes, desde os pri-meiros votos proferidos como Ministro do Supremo Tribunal Federal, sempredeixou claro que a retroatividade da lei teria de ser expressa, portanto inexiste

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Ministro Castro Nunes

retroatividade tácita. Nesse particular, exige que o legislador diga inequivoca-mente se quer que a lei se aplique aos casos pretéritos, e acentua:

me tenho manifestado nesse sentido sempre e creio que o Tribunal está comigorelativamente que a cláusula retroativa, ainda que expressa, não pode alcançar adecisão judicial. Sempre sustentei este ponto de vista: a retroatividade da lei sóalcança os casos pendentes; pode alcançar o ato jurídico perfeito e acabado e odireito adquirido; não pode alcançar a coisa julgada.

Para o Ministro, admitir que o Decreto-Lei de 1939 alcançasse sentençasjudiciais só era possível por estar expresso no texto da Constituição:

É constitucional e lá se permite ao legislador cassar decisões judiciais pararestabelecer lei declarada inconstitucional. Assim, é a própria Constituição, elamesma, quando assenta as bases da independência do Poder Judiciário, quepermite em certos casos, nos casos de declaração de inconstitucionalidade, queo Parlamento — no momento atual, é o presidente da República, fazendo as vezesdele — se manifeste quanto à Constituição, e a lei, para preferir a lei, emborainconstitucional.

Ele entende que o legislador, fazendo uso da prerrogativa constante do art.96 da Constituição de 1937 e mantendo lei declarada inconstitucional pelo PoderJudiciário, acaba por considerar inexistentes os julgados proferidos. É claro que olegislador se reporta às decisões passadas, atinge o passado e revoga os direitosadquiridos por sentença judicial, bem como os casos pendentes e as pretensõesque ainda não foram ajuizadas.

No referido caso, prevaleceu a tese defendida pelo Ministro Castro Nunes,que negou provimento à Apelação Cível, restando vencidos os Ministros VicentePiragibe, Goulart de Oliveira, Orozimbo Nonato e Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

3. RECURSO EXTRAORDINÁRIO

DELIMITAÇÃO

O Ministro Castro Nunes entende que o recurso extraordinário é suigeneris, visto que se fundamenta em razões que superam o âmbito processual.Afirma que:

é remédio constitucional para fins de política jurídica e não, propriamente, paracorrigir desacertos judiciários, ainda que por ele se possa amparar o direitosubjetivo prejudicado, e é isso que lhe imprime o caráter de recurso ao alcancedas partes. Desse ponto de vista, todos os outros são ordinários, ainda que,vistos por outro ângulo visual, possam ser ditos também extraordinários, nosentido de não facultados senão mediante pressupostos legais ou de fato.15

No Recurso Extraordinário n. 9.661/RS16, o Ministro Castro Nunes fazclara distinção entre o recurso extraordinário e o recurso de cassação. Tratava-se, no caso, de questão relativa a direito hipotecário, precisamente contrato deexploração de imóvel hipotecado, e inadimplência por oposição do credor hipote-cário. Decidiu-se ser cabível o recurso extraordinário em face de decisão dotribunal local que estabeleceu que a oposição do credor hipotecário é operantepara resolver o contrato de exploração de imóvel hipotecado.

O Ministro, em seu voto, analisa a possibilidade de cabimento do recursoextraordinário para efeito de cassar o acórdão recorrido, a fim de voltar o tribunallocal a se pronunciar novamente sobre a questão. Preleciona que:

A cassação é um dos objetivos do recurso extraordinário, entre nós. Aocontrário do recurso de cassação em outros países, pode levar, e leva, na maioriados casos, ao conhecimento do mérito, ao contrário do que se dá na cassação, emque o Tribunal se limita a verificar da infringência da lei e a mandar que o Tribunalrecorrido, ou outro Tribunal por ele designado, julgue a espécie. Pelo recursoextraordinário, pode-se chegar, como na América do Norte se chega, a uma dasquatro modalidades: confirmação do acórdão, sua reforma, modificação dojulgado ou sua anulação ou cassação.”

Esclarece, ainda, que o recurso extraordinário tem quatro finalidades, umadelas é a cassação:

Esta só acontece mesmo freqüentemente, talvez só raramente aconteça,porque, geralmente, damos provimento ao recurso, para reforma, ou para

15 NUNES, José de Castro. Da Fazenda Pública em juízo. Livraria Freitas Bastos, 1950.p. 97.16 Data da decisão: 23 de julho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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modificar; ou, então, confirmarmos o julgado. Mas é uma das possibilidades dorecurso extraordinário cassar o acórdão; anulá-lo, retirá-lo dos autos, para mandarque o Tribunal se pronuncie novamente sobre a questão.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes deu provimento ao recurso paracassar o acórdão e mandar que o tribunal de apelação se pronunciasse sobrematérias argüidas, e essa foi a decisão, unânime, do Supremo Tribunal Federal.

CABIMENTO EM FACE DE ATO DO GOVERNO PROVISÓRIO

No Recurso Extraordinário n. 3.566/BA17, o Ministro Castro Nunes fixa oentendimento de que, quando estivesse em pauta ato do Governo Provisório oudo interventor federal, ou para interpretá-lo, ou para aplicá-lo, ou, ainda, paradeterminar a sua extensão, enfim, a apreciação do ato, em princípio, caberia orecurso extraordinário, uma vez que o ato do Governo Provisório fora objeto dedecisão judicial.

NECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DA VIA RECURSAL PARAO CABIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO

No Recurso Extraordinário n. 3.587/DF18, o Ministro Castro Nunes reiterao entendimento, exarado em diversos julgados, sobre a necessidade de esgotar avia recursal como pré-requisito para a admissão do recurso extraordinário, queexige, para a sua propositura, a existência de decisão definitiva. A única exceçãoa essa posição ocorreria no caso de interposição simultânea de recursoextraordinário e de recurso de revista. Enfatiza:

São aqueles em que o recorrente usa dos dois recursos simultaneamente,do de revista e do extraordinário, não sendo possível conhecer deste porquependente aquele. Mas o princípio de base constitucional é o mesmo, isto é, anecessidade de usar a parte, que se diz prejudicada pelo julgado local, de todosos recursos que a lei lhe faculta antes de interpor o recurso extraordinário.

Vale dizer que a finalidade do recurso de revista não era outra senãocoordenar as decisões discrepantes em determinado tribunal, de modo a fixarentendimento definitivo sobre ato normativo.

No mesmo sentido, há o voto proferido no Recurso Extraordinário n.5.129/MG19, em que o Ministro Castro Nunes ressalta:

17 Data da decisão: 7 de janeiro de 1942. Relator, Ministro José Linhares; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.18 Data da decisão: 23 de outubro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.19 Data da decisão: 22 de janeiro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

O recurso extraordinário supõe esgotados, nas instâncias locais, todos osrecursos facultados na lei. O de revista é um deles, podendo levar à reforma dojulgado. Admitir o recurso extraordinário, pendente o de revista, é contrariaraquele princípio subentendido no uso do recurso extraordinário.

No Recurso Extraordinário n. 3.806/AL20, o Ministro expõe posição já mani-festada em diversos julgados:

O recurso extraordinário supõe esgotados os recursos nas instânciaslocais. Se a parte interpôs o recurso de revista, terá de aguardar que a Corte localse pronuncie, para usar do extraordinário.

No Recurso Extraordinário n. 5.342/BA21, o Ministro Castro Nunes firma,mais uma vez, entendimento sobre a necessidade de que se esgote a via recursalpara a interposição do recurso extraordinário:

consoante o princípio constitucional de que a parte deve esgotar os recursosadmitidos em lei, não pode ser interposto, desde que a parte adversa prove queera possível usar de um desses recursos. Neste caso, quando nos autos dademanda consta inequivocamente que a parte contrária conhecia decisãoapontada sem sentido oposto à decisão recorrida, seria uma razão para que setivesse como admissível o recurso de revista, pelo menos quanto ao preenchi-mento desse pressuposto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO E RECURSO DE REVISTA

No Recurso Extraordinário n. 5.155/DF22, enfrentou-se situação de não-interposição de recurso de revista cabível na hipótese, uma vez que existiamacórdãos do próprio Tribunal do Distrito Federal em sentido contrário, e essasdecisões eram de conhecimento do recorrente. Exige-se a interposição derecurso de revista para a interposição de recurso extraordinário. O MinistroCastro Nunes, relator, esclarece que, na Primeira Turma do Supremo TribunalFederal, decidia-se que a natureza e a destinação constitucional do recursoextraordinário pressupunham a existência de decisão tornada definitiva nasinstâncias locais, bem como a exaustão dos recursos facultados em lei.

Vale destacar que a primeira vez em que o Ministro Castro Nunes viu-sefrente a frente com essa questão foi na apreciação do Recurso Extraordinário n.3.511. No Recurso Extraordinário n. 5.155/DF, o Ministro elucida que:

20 Data da decisão: 16 de junho de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.21 Data da decisão: 23 de dezembro de 1942. Relator, Ministro Laudo de Camargo;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.22 Data da decisão: 2 de julho de 1942. Relator e Presidente, Ministro Castro Nunes.

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Memória Jurisprudencial

O recurso de revista é um desses recursos, isto é, um recurso facultado àspartes nas Justiças locais. Se, ao tempo da Lei 319, era um recurso extravagante,porque não preceituado nos códigos locais, já hoje é, sem contestação, um dosrecursos compreendidos pelo Código nacional do Processo, de par com aapelação, o agravo, os embargos, etc. Entretanto, dada a sua natureza especial,que supõe a existência de acórdãos discrepantes do mesmo tribunal, requisitoformal para a interposição, é necessário distinguir em espécie se o recorrente játinha, ao ser proferido o acórdão recorrido, conhecimento daquela discrepância.

Castro Nunes ressalta que, no caso, o recorrente transcreveu acórdãosdiscrepantes, mais de um acórdão demonstrando disparidade de julgados. Assim,preliminarmente, não admite o recurso extraordinário. No entanto, ponderatambém que se trata de matéria de fato, ou melhor, de matéria de interpretaçãode testamento. O Ministro vinha-se manifestando reiteradamente no sentido denão ser admissível o recurso extraordinário para corrigir erro de interpretação.Ressalta que isso se torna evidente, pois, no referido processo, não se trata deinterpretação de texto legal, mas de ato privado, qual seja, o testamento, que, emoutras hipóteses, seria uma espécie de contrato. Ressalva, no entanto, que “ajurisprudência tem uniformemente admitido, razão pela qual, aderindo a esseentendimento, não dou pela segunda preliminar.”

O Ministro Castro Nunes admite o recurso pela letra d. O Ministro AnnibalFreire trava intenso debate com o Ministro Castro Nunes, pois entende que “ocritério estabelecido, de atribuir à parte o julgamento da jurisprudência, é precárioporque esta não pode desconhecer a lei, mas ninguém pode exigir que todos quantolidam no foro conheçam a jurisprudência”. Esclarece que não concorda que sedeve cometer à parte um critério prévio de conhecer se existe ou não a divergênciade jurisprudência. Todavia, é esse o entendimento do Ministro Castro Nunes.

Pondera, entretanto, o Ministro Annibal Freire:

Sinto divergir, mas não posso compreender que atribuamos à parte umcritério que os próprios tribunais não têm fixado. V. Exa. conhece, perfeitamente,repito, os casos em que, interposto o recurso de revista, este é denegado, peloargumento de não existir divergência, e, entretanto, nós, do Tribunal Superior,reconhecemos ela ser manifesta.

Retruca o Ministro Castro Nunes: “Isso não impede o recurso extraordinárioque possa vir depois.” Elucida que não pode o Supremo Tribunal Federal verificarquando a jurisprudência mudou ou quando está fixada. No entanto, Annibal Freireinsiste que esse sim é o critério do Supremo Tribunal Federal, qual seja, verificarse há ou não há divergência: “é a nós que esse dever está cometido”. O MinistroCastro Nunes alega que “não há orientação segura, não pode haver; fica-se numterreno movediço.” A essa afirmação, replica o Ministro Annibal Freire:

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Ministro Castro Nunes

V. Exa. reconhece que os próprios tribunais se movem num terreno move-diço. Argumenta que não se pode obrigar a parte a ter um critério fixo e definido,um conhecimento perfeito da jurisprudência, e que o recurso extraordinário édestinado justamente para uniformização da jurisprudência.

Castro Nunes responde: “Por isso, supõem decisões divergentes nas justiçaslocais, para que o tribunal superior possa exercer a sua função de coordenador. Épreciso que todos os recursos estejam esgotados nas justiças locais.”

No mérito, faz distinção bem clara entre o fideicomisso e o usufruto, jámanifesta por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 3.470/SP e doRecurso Extraordinário n. 4.791, em que foi revisor:

No fideicomisso, as liberalidades são sucessivas. O primeiro beneficiado(fiduciário ou gravado) recolhe a deixa para, por sua morte, ou a certo tempo, ousob certa condição, transmiti-la ou passá-la a outrem, que é o fideicomissário(Código Civil, art. 1.733). Daí o dizer-se com Teixeira de Freitas, entre nós, queessa passagem dos bens de uma para outra pessoa indica o fideicomisso, porque,na verdade, é um sinal exterior da obrigação de transmitir que é inerente aofiduciário ou gravado. No usufruto, as liberalidades são simultâneas. O segundoe último beneficiado recebe desde logo o bem como proprietário, com exclusãosomente do uso e gozo, que pertencerá temporariamente a outra pessoa, que é ousufrutuário. O nu proprietário tem de estar desde logo nomeado, de vez queusufruto é o direito de usar e fruir coisa de outrem — usufructus est jus alienisrebus utendi fruendi.

Foi essa a posição adotada pelo Ministro Castro Nunes acerca do tema.

Já no Recurso Extraordinário n. 10.123/DF23, analisou-se a possibilidadede interposição de recurso extraordinário quando possível a interposição derecurso de revista. Em seu voto, Castro Nunes argumenta:

Sem dúvida deve a parte esgotar os recursos que lhe faculte a lei nasinstâncias recorridas. É esse o princípio fundamental na teoria do recursoextraordinário. O recurso de revista é um deles, por ele poderia o vencido obter areforma da decisão e só então se tornaria esta definitiva e, portanto, recorrível.

Sustenta o Ministro que o recurso de revista fundamenta-se no pressupostoda existência de julgados divergentes do mesmo tribunal, que o vencido podedesconhecer sem a conseqüente preclusão do recurso extraordinário. Adverteque tal entendimento é fruto de construção jurisprudencial que levou em conta,

23 Data da decisão: 23 de junho de 1947. Relator, Ministro Ribeiro da Costa; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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precipuamente, a necessidade de se conferir temperamento — em razão doprincípio do conhecimento presumido da lei inextensível, sem arbítrio — aosarestos judiciários.

Ao analisar o caso sub examine, pondera que a parte apontou julgadodiscrepante do mesmo tribunal, todavia isso ocorreu após a interposição dorecurso extraordinário, quando não mais era possível o emprego do recurso derevista. Cumpre registrar que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federalfixou o entendimento, com voto do Ministro Castro Nunes, de que, na discussãodo feito, nas instâncias locais, se a parte aponta julgado do tribunal perante o qualse está discutindo a questão, demonstra que tem conhecimento de julgadosdivergentes do próprio tribunal. Note-se que a decisão só se torna definitiva apósa interposição do recurso de revista.

Castro Nunes entende que, se a parte demonstrou, na discussão do feito,que conhece julgado favorável à decisão que pleiteia, encontra-se obrigada afazer uso do recurso de revista. Frise-se que não é essa a hipótese do caso emanálise, pois a prefeitura demonstrou conhecer de decisão em sentido contrárioao acórdão recorrido, mas apenas depois de interposto o recurso extraordinário,ou seja, em momento processual que não mais possibilitava a interposição dorecurso de revista.

Nesse sentido, o Ministro Castro Nunes compartilha do juízo exarado peloMinistro Orozimbo Nonato no feito, qual seja:

que, se é indispensável que a parte esgote, nas instâncias locais, todos osrecursos facultados em lei, para que possa usar o recurso extraordinário, énecessário adotar um temperamento, porque ninguém é obrigado a conhecerjurisprudência. Se a ignorância da lei se presume, presume-se antes o conheci-mento dela, não há lei alguma que estabeleça ser presumido o conhecimentodos arestos dos Tribunais.

O Ministro Orozimbo Nonato defende a posição de que é necessário quehaja conhecimento demonstrado, manifestado no curso do processo, na discussãoda causa nas instâncias locais, ainda a tempo de ser usado o recurso de revista.Pondera, no entanto, o Ministro Castro Nunes:

Mas, se o recorrente só demonstrou esse conhecimento — que não épresumido, e deve ser real — quando já não era tempo de usar o recurso derevista, segue-se daí que não se lhe deve trancar, por isso mesmo, o recursoextraordinário.

O voto do Ministro Castro Nunes é pelo conhecimento e pelo provimentodo recurso da Prefeitura do Distrito Federal.

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Ministro Castro Nunes

INADMISSIBILIDADE EM FACE DE DECISÃO DA JUSTIÇA DOTRABALHO

No Agravo de Instrumento n. 12.393/DF24, reitera o Ministro CastroNunes o entendimento de que não é admissível o recurso extraordinário quandointerposto em face de decisões da Justiça do Trabalho, mas, a despeito de seressa sua posição, o voto proferido no referido agravo segue a posição dominanteno Supremo Tribunal Federal:

Ressalvado o meu voto contrário à admissibilidade do recurso extraordi-nário quando interposto de decisões proferidas pela Justiça do Trabalho, con-firmo o despacho denegatório por seus fundamentos, negando assim provimentoao agravo.

CABIMENTO EM FACE DAS DECISÕES DO CONSELHO NACIONALDO TRABALHO

No Recurso Extraordinário n. 8.125/DF25, analisou-se a possibilidade decabimento de recurso extraordinário em face de decisão do Conselho Nacionaldo Trabalho.

O Ministro Castro Nunes, que figurou como relator do processo, inicia seuvoto esclarecendo que o recurso extraordinário não foi criado para controlar aaplicação da Constituição e das leis federais pelas Justiças da União, e mencionaa posição adotada pelo Ministro Pedro Lessa, que entendia ser o referido recursointerposto de uma Justiça para outra, das locais para a Justiça Federal, represen-tada pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, sustenta o Ministro CastroNunes que o pensamento que norteou a criação do recurso extraordinário foi anecessidade de preservar a autoridade, a preeminência ou a aplicação das leisfederais por órgãos judiciários estranhos à União, ou seja, “causas decididaspelas Justiças locais”.

De acordo com o pensamento de Castro Nunes, as causas decididas pelasJustiças da União — a militar e a especial (Tribunal de Segurança Nacional eJustiça do Trabalho) — escapam ao controle, mediante recurso extraordinário,pelo Supremo Tribunal Federal. O raciocínio do Ministro se fundamenta no pres-suposto de que o mesmo risco que se tentou evitar com a proibição, no tocante àaplicação das leis federais, não existe quando se trata de decisão proferida porjurisdição da União.

24 Data da decisão: 12 de julho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.25 Data da decisão: 6 de julho de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ressalva, ainda, que a Justiça do Distrito Federal, organizada e mantidapela União, é uma exceção à regra constante na própria Constituição, como o é ocaso das Justiças dos Territórios. Sobre essa exceção, justifica que:

essas Justiças se equiparam às estaduais, administrando, como estas, a jurisdiçãocomum, que é de índole local, de vez que a Constituição, partilhando a jurisdição,não reservou para a União senão as jurisdições especiais, que menciona, emmatéria penal ou civil, em razão da matéria ou das pessoas. O Distrito Federal ebem assim os Territórios são circunscrições anômalas do arranjo federativo. Aadministração da jurisdição ordinária ou comum, assunto de índole local, foi re-servada à União, que tomou a si esse encargo, como outros, igualmente locais, deque é exemplo a polícia, por igual reservados à União.

O recurso extraordinário interposto em face das decisões proferidas pelaJustiça comum a cargo da União justifica-se por meio do emprego da equiparação,visto que, do contrário, estar-se-ia conferindo tratamento desigual aos litigantesda jurisdição comum se, no Distrito Federal e nos Territórios, não fosse permitidoo uso do recurso.

Adverte o Ministro Castro Nunes que isso não ocorre em se tratando dasjurisdições federais específicas, das jurisdições especiais cometidas à União —exatamente o que ocorre com a Justiça do Trabalho, que é uma delas. Nessesentido, declara:

O que mais impressiona no exame da matéria é a possibilidade de ficaremsem corretivo as decisões que possam proferir as Justiças especiais da União emmatéria constitucional, por interpretação da Carta Política ou por abandono dealguma lei federal, como, ainda recentemente, salientei, ao examinar algunsaspectos referentes ao recurso extraordinário no Instituto dos Advogados.

Argumenta, ainda, que o reparo que poderia ser feito acabaria por levar aalteração da Constituição com vistas a admitir a criação de um recurso, que arigor não seria o extraordinário, a ser empregado nas hipóteses em que qualquerdas Justiças da União decidisse sobre matéria constitucional. Sustenta:

Aliás, no voto oral, que proferi no julgamento, em Tribunal Pleno, do casoque abriu caminho à remessa deste como de outros que estão chegando aoSupremo Tribunal, remetidos pelo Conselho Nacional do Trabalho, como, amanhã,se vier a vingar o entendimento que prevaleceu, e do qual, data venia, discordei econtinuo a discordar, visão, por igual, os recursos que se interpuseram dasdecisões finais do Supremo Tribunal Militar e do Tribunal de Segurança, procureimostrar que, pelo recurso extraordinário, o Supremo Tribunal não pode serprovocado a resolver toda e qualquer controvérsia constitucional, senão asprefiguradas no texto com a feição unilateral que explica a razão de ser da instituiçãode tal recurso.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro Castro Nunes, tendo em vista o fato de existir decisão doTribunal Pleno, embora com vários votos vencidos, propõe a remessa ao Plenopara mais amplo exame da matéria.

CONTROVÉRSIA SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DE LEISFEDERAIS

O Recurso Extraordinário n. 8.215/DF26 tratava de caso de empregadocom mais de dez anos de serviço, demitido do emprego na vigência do Decreto n.24.273, de 22 de maio de 1934, que pleiteava a estabilidade no cargo com base naLei n. 62, de 5 de junho de 1935, que assegurava ao empregado estabilizado odireito de readmissão com as mesmas vantagens do cargo. O referido decretoestabelecia, tão-somente, a indenização correspondente ao salário de seis meses,visto que fazia remissão expressa ao art.13, § 1º, do Decreto de 1931.

O Ministro Castro Nunes manifesta-se pelo não-cabimento do recursoextraordinário para englobar controvérsia acerca da constitucionalidade denormas federais, com exceção dos casos de solução negativa:

E como o recurso extraordinário não apanha a controvérsia sobre a cons-titucionalidade das normas federais senão na hipótese de solução negativa, istoé, no caso em que se tenha deixado de aplicar a lei por incompatível com a Cons-tituição, inadmissível se me afigura o enquadramento do recurso em tais termos.

NÃO-CABIMENTO EM FACE DAS DECISÕES PROFERIDAS PELAJUSTIÇA DA UNIÃO

O Ministro Castro Nunes proferiu votos conhecidos no sentido de nãoadmitir recurso extraordinário em face das decisões proferidas pela Justiça daUnião, sob a égide da Constituição de 1937.

Meu voto é conhecido no sentido de que, em face do atual texto constitu-cional, não cabe recurso extraordinário das decisões proferidas pelas Justiças daUnião, seja qual for o inciso ou o fundamento invocado. Mas a maioria, commelhores luzes, tem-no admitido.27

Esse entendimento foi manifestado em diversos julgados.

26 Data da decisão: 2 de julho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, MinistroLaudo de Camargo.27 Voto proferido no Agravo de Instrumento n. 11.838/DF. Data da decisão: 23 de outubrode 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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ADMISSÃO DE COMEÇO DE PROVA

Nos Embargos no Recurso Extraordinário n. 7.724/PE28, que tratavam danatureza do pagamento em ato unilateral, estranho à letra do art. 141 do Código —que se refere a contratos —, cuidou-se da necessidade de verificar o carátermercantil e não civil entre comerciantes e das sociedades comerciais.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes enfrenta a questão da possibilidadede admitir, em sede de recurso extraordinário, o começo de prova por escrito e oque se deva entender por “começo de prova por escrito”. Reconhece-se que oSupremo Tribunal Federal não entra em matéria de apreciação de provas; noentanto, em alguns casos, é possível esse exame, uma vez que, consoante o votodo Ministro Orozimbo Nonato, não ocorre o exame direto do que está em causa,mas sim a apreciação indireta. Escreve o Ministro Castro Nunes:

Em exposição doutrinária sobre a matéria, tive ocasião de salientar que,também na França, o recurso de cassação, na hipótese de violação de lei em que,por igual, o Tribunal de Cassação não entra na apreciação das provas, admiteque, quando está em causa a conceituação de um instituto jurídico, é possível oexame da violação da lei por meio do exame desse instituto, que é o que se chama,lá, de “definição jurídica ou legal dos fatos”.

Salienta que um dos temas que suscita mais contradição na doutrina fran-cesa é o da definição do “começo de prova por escrito”. O Ministro lembrou que,na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, existem, além de outros poucoscasos, duas hipóteses interessantíssimas. A primeira foi a da conceituação doconcubinato, em que, por exame de provas, definiu-se o que se deve entender porconcubinato more uxorio ou lato sensu. A segunda diz respeito à distinção entreusufruto e fideicomisso — duas figuras jurídicas admitidas no Código Civil, masque, em relação à verba testamentária, o Supremo Tribunal, ao apreciar o recursoextraordinário, diz se tratar de uma ou de outra.

Nesse sentido, o Ministro Castro Nunes conhece e admite o recurso extra-ordinário e, quanto ao mérito, manifesta-se:

exposição feita pelo Ministro Philadelpho Azevedo me impressionou vivamente.Estou de acordo com S. Exa. em que o “começo de prova por escrito”, reunindo otríplice elemento que o caracteriza, não deve obedecer a um critério de apreciaçãoextremamente rigoroso, que torne impossível a sua admissão.

O voto proferido pelo Ministro Castro Nunes é no sentido de receber osembargos, entendimento adotado, por maioria, pelo Supremo Tribunal Federal.

28 Data da decisão: 16 de maio de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

4. SEPARAÇÃO DE PODERES E IMUNIDADES PARLAMENTARES

Na Apelação Cível n. 7.601/DF29, enfrentou-se questão relativa à ação deperdas e danos movida pela Sociedade Anônima Revista do Supremo Tribunalem razão da edição da Lei n. 4.981/25, que anulou os contratos firmados entre areferida Sociedade e a Presidência do Supremo Tribunal Federal, referentes àpublicação da jurisprudência do Tribunal, e que determinou a incorporação àImprensa Nacional dos bens de propriedade da União constantes na Relaçãoprotocolada sob o n. 3.719.

O Ministro Castro Nunes, relator do referido processo, em seu voto, excluide imediato a existência da coisa julgada, visto que o Supremo Tribunal Federaljulgou duas ações possessórias em face de ato do Congresso, e é plenamentepossível decidir sobre a posse sem decidir sobre direito. Argumenta:

E, no caso, o que o Supremo Tribunal fez foi negar a reintegração pedida,embora, nos fundamentos dos votos proferidos, se tenham feito referências, quesão razões de decidir, acerca da legalidade do contrato e da legitimidade darescisão por ato do Congresso.

A despeito de salientar a importância e o relevo dessas questões suscitadas,salienta que se trata de razões de decidir que podem muito bem ser aproveitadaspara o presente julgamento, mas não têm o efeito de levar à preclusão da compe-tência do Supremo Tribunal Federal.

São questões, portanto, a latere; são razões de decidir que não configurama res iudicata, em termos de precludir uma segunda decisão ou um pronuncia-mento que, só agora, poderá ser proferido no plano reparatório em que está postoo caso.

No caso em exame, na ação de perdas e danos, a análise recai sobre aconstitucionalidade do contrato e a legitimidade de sua rescisão por ato doCongresso. Trata-se de questão puramente de direito, diversa da outra, que eraquestão de fato.

O voto do Ministro Castro Nunes é bastante extenso e inicia-se por análiseacurada do princípio da separação dos Poderes e do exercício das funções decada Poder. Entende que os tribunais, quando organizam suas secretarias, quandonomeiam ou licenciam seus funcionários, estão agindo como entidades adminis-trativas e utilizando os meios adequados para tanto. Acrescenta que:

29 Data da decisão: 5 de julho de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, MinistroLaudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Tais atribuições administrativas são acessórias ou complementares; não seconfundem com a atribuição específica do Poder Judiciário, do mesmo modo que,contratando a execução de obras em uma Casa do Parlamento, ou fiscalizando-as,não estão as Câmaras exercendo uma função legislativa.

Para o Ministro, no poder de organizar a secretaria, está compreendido ode instituir órgãos necessários ao desempenho das funções do tribunal. Nessesentido, mostra-se perfeitamente possível, por igual razão, a criação de serviçoespecial de publicidade, qual seja, revista que tenha por finalidade a publicação dajurisprudência do Tribunal.

No entanto, argumenta que se impõe um limite ao exercício dessasprerrogativas: a necessidade de o Congresso Nacional consentir na despesadecorrente. Por exemplo, quando da criação de novos empregos ou de contratocelebrado, é necessária a autorização do Congresso, pois a criação de encargospara o Tesouro é atribuição privativa do Poder Legislativo.

Seguindo essa linha de raciocínio, sustenta que, no caso do contrato com aempresa para a divulgação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, serealiza serviço novo, de modo que as dotações correspondentes dependem deautorização do Congresso, que ocorreu, no caso em tela, na forma de aprovação:

Foi sob essa forma, isto é, aprovando o contrato firmado pelo Presidentedo Supremo Tribunal, que o Congresso assentiu na despesa, por sinal majorando,inexplicavelmente, os favores concedidos, os encargos do Tesouro.

A partir desse ponto, o Ministro passa a questionar a licitude de o SupremoTribunal Federal firmar contrato com revista que visa oficializar a publicação deseus expedientes — sua jurisprudência —, de forma isolada, pelo seu Presidente,sem a audiência ou a ratificação dos demais membros do Tribunal. Na ocasião daassinatura do respectivo contrato, o Presidente do Supremo Tribunal Federal erao Ministro Hermínio do Espírito Santo.

O Ministro Castro Nunes relata que o art. 58 do Texto Constitucional de1891 conferia essa atribuição ao Tribunal, in verbis: “Art. 58. Os Tribunais federaiselegerão de seu seio os seus Presidentes e organizarão as respectivas secretarias.”Acentua: “A este competiria autorizar o seu egrégio presidente de então a contratarpublicação da jurisprudência na revista para esse fim oficializado.”

No entanto, verificou-se que isso não ocorreu, nem mesmo posteriormente,e que existia moção assinada por todos os Ministros do Supremo Tribunal Federal,em 1925, o que deixou claro que a corporação não tinha sido ouvida acerca doassunto.

O Ministro atenta, ainda, para o fato de que as manifestações foramproduzidas no julgamento do interdito recuperatório tentado pela revista contra a

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Ministro Castro Nunes

execução da Lei n. 4.981, quando restou excluída, por parte dos demais Ministrosdo Supremo Tribunal Federal, qualquer solidariedade com o ato do Presidente.Daí, conclui:

Os contratos padeciam assim de um vício de origem. Não eram doTribunal, senão do seu venerando presidente. (...) O presidente, como órgão doTribunal, tem os poderes que lhe confere o Regimento e, fora daí, os que oTribunal, por deliberação especial, como seria mister, lhe conferir. De modo que oCongresso ao consentir nas despesas resultantes do contrato, aprovou não umcontrato do Supremo Tribunal, ainda que, por erro, o tenha dito; mas um contratodo seu presidente, sem competência constitucional para tanto.

Sobre as atribuições do Presidente do Tribunal, Castro Nunes escreveuem sua obra Da Fazenda Pública em juízo:

O presidente de qualquer Tribunal preside-o no seu funcionamento,representa-o nas solenidades oficiais e junto aos outros poderes da Nação ou doEstado e o administra superintendendo os seus serviços internos. É, a um tempo,órgão de direção e representação e de superintendência administrativa.30

Partindo do pressuposto de que o ato não era do Tribunal, mas de seuPresidente, a aprovação do Congresso representou a aprovação de ato contrárioà Constituição e, como tal, inoperante, ou seja, nos termos da Lei Civil, seria atoanulável por incapacidade do agente. Todavia, no entender do Ministro, ocorreunulidade maior, pois a Lei n. 2.294/15, vigente à época, determinava que seriamnulos de pleno direito os contratos celebrados com os Poderes Públicos dos quaisnão constasse, expressamente, a verba ou o crédito correspondente à respectivadespesa. Assim, nem mesmo o Supremo Tribunal Federal como corporaçãopoderia prescindir de tal autorização.

Poder-se-ia argumentar que o Congresso Nacional, aprovando o contrato,acabou por sanar a nulidade, dispensando a formalidade que impôs por meio denorma geral. No entanto, acrescenta o Ministro Castro Nunes que ato queaprova contrato, ainda que sob a forma de decreto-legislativo, é substancialmenteato administrativo, tem apenas aparência de lei. Trata-se de lei formal.

Na ação, o autor alega que a rescisão do contrato por meio de edição de leipelo Congresso Nacional não é legítima, pois não teria competência para tanto. Arescisão, segundo o autor, deveria ter ocorrido pelo ajuizamento de ação naJustiça Federal. Nesse sentido, poderia o Supremo Tribunal Federal estatuirsobre a controvérsia, para declarar a nulidade ou restaurar o contrato e tirar dalias conseqüências reparatórias pretendidas. Argumenta o Ministro Castro Nunes:

30 NUNES, José de Castro. Da Fazenda Pública em juízo. Livraria Freitas Bastos, 1950.p. 56.

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Memória Jurisprudencial

É certo que não poderia, como não podia, rescindir contrato, impossibili-dade que abrange aquela. Mas essa argüição se devolve, com a outra, ao conhe-cimento do Judiciário, dependendo a sua solução da existência, ou não, de direitoadquirido. E já vimos que o contrato era nulo de pleno direito, não era, portanto,um ato jurídico perfeito, limite que, nos termos da lei civil, seria, só assim, umóbice à ação do Congresso.

Prossegue em seu voto dizendo que, se o contrato era nulo e como tal nãotinha o condão de produzir efeitos válidos, o Congresso, entretanto, rescindindo-o,admitiu tais efeitos como verdadeiros. A Lei n. 4.981/25 incorporou à ImprensaNacional os bens de propriedade da União constantes da Relação de n. 3.719 eque se encontravam em poder da Sociedade Anônima Revista do Supremo Tribu-nal Federal. Exigia o diploma legal também a verificação, por funcionários dosseus ministérios, da existência de possível desvio dos bens adquiridos. Aprovou,ainda, os atos do Poder Executivo relativos aos pagamentos feitos à Revista doSupremo Tribunal Federal, e exigiu a abertura de inquérito, pelo Governo, paraapurar o emprego dessas importâncias, que deveriam ser restituídas em espécieou em material.

Observa o Ministro que a referida Lei não suprimiu todos os efeitosjurídicos produzidos pelo contrato, eis que declarou aprovados os pagamentosfeitos à Revista do Supremo Tribunal Federal no período de sua execução. Elaincorporou à Imprensa Nacional de imediato o maquinário e o material járelacionado e pertencente à União.

No art. 2º da supracitada Lei restou estipulado que o Tesouro assumiria aresponsabilidade do passivo da Revista do Supremo Tribunal Federal, provenienteda aquisição de material e de execução de obras no edifício do Arsenal de Guerra,e que os pagamentos realizados pelo Tesouro Nacional deveriam correr por contados haveres sociais não relacionados no Decreto, pois os relacionados eram depropriedade da União Federal.

Entende o Ministro Castro Nunes que deveriam ter sido arrolados todos osbens, os da União e os da Revista, como medida acautelatória dos interesses doerário, até a apuração das dívidas e das fraudes admitidas e imputadas àadministração da empresa. Adverte que desses bens teriam de ser retirados osda União, que fossem usados para saldar o passivo da Revista, e os que deveriamretornar para o Tesouro em virtude de terem sido criminosamente desviados.Registre-se que nada foi apurado nessas sindicâncias.

Após a Revolução de 1930, a Comissão de Correição Administrativaopinou pela entrega do material encontrado a mais à Revista do SupremoTribunal Federal, pois a lei declarara não serem bens da União, logo poderiam serdevolvidos à Apelante. Sustentou o Ministro:

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Ministro Castro Nunes

É sabido que o ato nulo de pleno direito não pode produzir efeitos válidos.Mas os efeitos no caso não são do ato nulo, senão do ato do Congresso que,rescindindo o contrato, admitiu que ele pudesse produzir, quanto aos outrosbens, encontrados a maior, efeitos que teriam de depender de sindicâncias jamaisrealizadas com resultados negativos.

Castro Nunes argumenta que os juros de mora não são devidos e que, emrazão de se tratar de ato do Congresso, não pode ser considerado ilícito, querpara efeitos dos juros moratórios, quer para os honorários do advogado. Em seuvoto, dá provimento em parte à Apelante, para indenizá-la tão-somente notocante ao valor dos bens, dos utensílios e dos materiais excedentes da Relaçãon. 3.719.

O Supremo Tribunal Federal, no acórdão proferido, seguiu a orientaçãoconstante do voto do Ministro Castro Nunes. Restou vencido o Ministro BarrosBarreto, que entendia haver violação à coisa julgada.

SEPARAÇÃO DE PODERES E DELEGAÇÕES LEGISLATIVAS

No Habeas Corpus n. 30.355/DF31, analisou-se questão relativa à possibi-lidade de delegações legislativas no ordenamento jurídico pátrio. O caso versavasobre a incompatibilidade do Decreto-Lei n. 9.215, de 4 de abril de 1946 — queestabeleceu o controle de preços das utilidades e criou Comissão cuja tarefa eraexecutar esse controle —, com a Constituição superveniente, que, no seu art. 36,§ 2º, proibia as delegações legislativas, in verbis: “é vedado a qualquer dos Poderesdelegar atribuições.” Alega o impetrante que o tabelamento de preços deve constarda lei, o que envolve delegação possível, sob a Constituição de 1937, não, porém,sob a Constituição de 1946, em face daquela proibição expressa.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes relembra que a delegação legisla-tiva — que sempre se teve por implícita, como decorrência lógica da adoção doprincípio da separação de Poderes — é tema constante de discussões que datamdo Império. O que fez a Carta de 1937, em seu entender, foi tornar explícita aproibição implícita que já constava do art. 79 da primeira Carta Republicana32.Enfatiza que:

A proibição existe, pois, em razão da separação dos Poderes do Estado eda discriminação constitucional das atribuições cometidas a cada um deles.Também nos Estado Unidos não existe proibição expressa na Constituição.Mas todos os expositores têm-na por subentendida no sistema, tão certo é que

31 Data da decisão: 21 de julho de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.32 A Constituição de 1891 estabelecia, em seu art. 79: “O cidadão investido em funçõesde qualquer dos três poderes federais não poderá exercer as de outro”.

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a proclamação do princípio contrário levaria à negação mesma dos Poderesseparados. Diz o impetrante que houve, em nossa última Constituinte, o embatedas duas doutrinas: a adotada no Estatuto de 37, onde se restringia às disposiçõesde base a função do Parlamento, reservando-se ao Executivo amplíssima esferaregulamentar, e o princípio clássico que reserva ao Congresso todo o poderlegislativo, não deixando ao Executivo senão o poder regulamentar adstrito à“fiel execução” das leis. E daí conclui que a atual Constituição, com assentonesse dissídio manifestado na sua elaboração, condena a delegação das atri-buições legislativas, consentida na anterior Carta Política.

Para Castro Nunes, não é possível afirmar que partilha o Presidente daRepública do Poder Legislativo e que a Constituição de 1937 autoriza a delegaçãodos poderes do Parlamento ao Chefe do Executivo. Não se trata de delegação depoderes, que configura situação em que um Poder consente em despojar-se deexercer sua função constitucionalmente delimitada para que outro Poder a exerça.Argumenta que tal situação só poderia ocorrer, na vigência da Constituição de1937, se existisse o Parlamento e se este autorizasse o Presidente a elaborar a leipor inteiro ou a estabelecer sobre suas disposições de base. Sustenta:

Compreendo, em todo ocaso, o argumento: o Decreto-Lei de 4 de abril de1946 não seria inconstitucional, ainda que separados estivessem em órgãosdistintos o poder de legislar e o de regulamentar e executar a lei, porque a funçãoreservada ao Executivo poderia comportar as providências complementares deque ficou incumbida a Comissão de Preços.

O Ministro Castro Nunes ressalta que não poderia o impetrante interpretardispositivos constitucionais com a rigidez da exegese das normas de direitocomum, especialmente os regulamentos, e assevera:

É sabido que a interpretação constitucional dispõe de possibilidades muitomais amplas do que as consentidas ao intérprete em face das normas ordinárias.E nisso consiste o segredo da longevidade das instituições americanas, velhasde século e meio, e atualizadas pela jurisprudência construtiva da Corte Supremana revelação de norma insuspeitadas à leitura dos textos e que formam a Consti-tuição não escrita, à margem do instrumento constitucional.

Para ele, se a Constituição, de maneira implícita ou explícita, estabeleceque o Poder Legislativo não pode delegar suas atribuições, traça proibição quedeve ser interpretada como princípio, de modo a não excluir certas medidas aserem adotadas pelo órgão executor em relação a fatos ou a apurações denatureza técnica, dos quais dependerá a incidência ou a aplicação da lei. Analisa,também, o tema sob o prisma do direito comparado e afirma que essa situaçãovinha sendo enfrentada nos Estados Unidos, onde se verificava proliferação deComissões ou Conselhos Administrados, que as leis previam para a suaexecução.

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Ministro Castro Nunes

Adverte o Ministro Castro Nunes que não se trata dessa hipótese, pois, nocaso em estudo, o Presidente da República, fazendo as vezes do PoderLegislativo, expediu o Decreto n. 9.215/46, que criou as Comissões de Preços edefiniu as infrações, dentre elas a de cobrar preços além dos tabelados. Segundoo Ministro, se nem a lei caberia tabelar os preços, muito menos caberia a decretodo Poder Executivo.

SEPARAÇÃO ENTRE ESTADO E IGREJA

No Recurso Extraordinário n. 5.342/BA33, o Supremo Tribunal Federalanalisou a legitimidade de ato de autoridade eclesiástica que, agindo dentro dasua alçada e em consonância com os estatutos de determinada ordem religiosa,destituiu de suas funções o Regente dessa associação, sob a sua dependência.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes confirma o entendimento já mani-festado quando era ainda juiz federal e que, posteriormente, veio a ser confirmadopela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.

Aí sustentei, baseado em acórdão do Supremo Tribunal, de que foraRelator Pedro Lessa, que a disciplina das associações religiosas é conseqüênciada separação da Igreja e do Estado. Desde que estes são separados, e o Estadoassegura à Igreja plena autonomia, na sua organização, na prática do culto, nocredo religioso, a conclusão a tirar daí é que a sujeição aos bispos das irmandadese de todas as pessoas ou entidades diocesanas decorre, exatamente, dessaautonomia, pressuposta, sem a qual não estaria assegurada a liberdade religiosacom os seus meio próprios.

Nesse sentido, reconhece a autonomia desses atos e, em seu voto, rejeita osembargos, entendimento prevalecente no acórdão do Supremo Tribunal Federal.

IMUNIDADE DE VEREADOR

No Recurso em Habeas Corpus n. 30.256/PR34, tratou-se da possibilidadede os vereadores gozarem de imunidade, do mesmo modo que ocorria com osparlamentares no âmbito federal e no estadual. Tratava-se de habeas corpusimpetrado em favor de vereador eleito, em face de denúncia oferecida pelo pro-motor público do Município de Araucária, que o considerava incurso na penaprevista no art. 331 do Código Penal35, sem a prévia licença da Câmara Municipal,

33 Data da decisão: 23 de dezembro de 1942. Relator, Ministro Laudo de Camargo;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.34 Data da decisão: 20 de abril de 1948. Relator, Ministro Hahnemann Guimarães;Presidente, Ministro José Linhares.35 Dispõe o art. 331 do Código Penal: “Desacatar funcionário público no exercício dafunção ou em razão dela.”

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exigida pelos arts. 11 e 128 da Constituição do Estado. Pediu-se a ordem com afinalidade de ver declarada a nulidade do processo contra o paciente desde a de-núncia, devido a ausência de prévia licença da Câmara dos Vereadores. O Tribunalde Justiça negou a ordem, e, em face desse acórdão, o paciente interpôs recurso.

O Ministro Castro Nunes discorda do voto do relator por entender não serpossível conferir imunidade aos membros das câmaras municipais e reconheceque a solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento daApelação Cível de 28 de abril de 1915 declarava que os vereadores e prefeitosmunicipais não gozavam de imunidade. No caso em tela, a dificuldade residia nofato de a Constituição do Estado do Paraná conter dispositivo expressoestendendo aos vereadores a imunidade conferida aos deputados estaduais.

O Ministro ressalta, em seu voto, o tratamento conferido aos municípiospelas Constituições brasileiras, registrando que o município só passou a figurar noplano das relações entre a União e as entidades inferiores do regime a partir doTexto Constitucional de 1934, que o colocou no mesmo plano dos estados,assegurando-lhe garantias orgânicas e financeiras de autonomia. Esclarece que:

Tais disposições terão obedecido ao pensamento de estimular a vidalocal nessas circunscrições periféricas e remediar a penúria financeira em quealguns estados deixavam as municipalidades, praticamente sem meios para odesenvolvimento de suas atribuições, ficando assim comprometida a autonomiapressuposta na Carta Federal. Daí resultou, entretanto, certa deformação doregímen federativo, que supõe a vida de relação circunscrita às províncias e àUnião. É entre esta e aquelas que se estabelece o arranjo federativo.

Entende o Ministro que todas essas circunstâncias dificultam a soluçãodo caso, pois, no campo constitucional, os parâmetros não são mais os mesmosque vigoravam quando da análise do outro julgado. Soma-se a isso o fato de aprópria Constituição do Estado do Paraná, dentro de sua competência constitu-inte, conferir imunidade aos vereadores, de modo que, para afastar a sua inci-dência ao caso presente, afirma Castro Nunes, será necessário confrontá-lacom a Constituição.

Diz, ainda, que não se contesta, e nunca se contestou, o fato de os deputa-dos estaduais usufruírem de imunidade, como ocorre com os deputados federais,mas adverte que a Constituição Federal não o fez no tocante aos deputadosestaduais de forma expressa, limitando-se apenas a conferir esse privilégio aosdeputados federais e aos senadores. Preleciona:

Compreende-se, entretanto, a extensão das imunidades aos deputadosestaduais, tendo em atenção os princípios em que se assenta a estruturaçãofederativa e alguns textos da lei básica que levam a essa inferência necessária.

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Ministro Castro Nunes

Passa depois a discorrer sobre o Estado federal, fazendo análise detida doEstado federal alemão. Vale dizer que o Ministro Castro Nunes possui obrapublicada em 1920 sob o título Do Estado Federado e sua organizaçãomunicipal36, em que faz análise acurada das teorias sobre a estruturação doEstado federal. Entre eles, destaca-se o Estado alemão, que, segundo o Ministro,se caracteriza pela participação dos estados-membros na formação da vontadesoberana da Nação, senão na substância, pelo menos no exercício dessasoberania.

A distinção, no entanto, é nebulosa e sutil. Os autores modernos não seapegam muito a esse traço teórico que, para Castro Nunes, só encontra corres-pondência nos fatos quando se tem em vista uma federação histórica, tal comonos Estados Unidos, na antiga Alemanha e na Argentina.

O Ministro realça a diferença entre a descentralização operada federati-vamente e a descentralização existente no Estado unitário. Ganha relevo aqui arepartição de competência constante da Constituição Brasileira, que concede aosestados o que ele denomina de “competência residuária suficientemente expressivade uma anterioridade pressuposta ao menos politicamente”.

No tocante à competência legislativa das matérias que cabem aos estados,fixou-se que são aquelas sobre as quais a União não legisla, do mesmo modoocorre no tocante à jurisdição. O Ministro frisa que, a despeito de o Poder Judiciárioser, em princípio, nacional, na sua maior parte pertence aos estados, que o exer-cem por órgãos próprios. Destaca, ainda, a existência do poder constituinte dosestados-membros, que é nota de sua autonomia política, mesmo que dotado decertas limitações expressas. Note-se que os estados exercem os três Poderes, deforma autônoma e harmônica: Legislativo, Executivo e Judiciário. No tocante àsassembléias legislativas, enfatiza que:

A Constituição alude às assembléias legislativas quando dispõe sobre asua composição, etc. Essas assembléias são, à evidência, o Poder Legislativo doEstado, Poder que, para se mover com independência em face dos outros dois,precisa gozar das garantias de inviolabilidade e irresponsabilidade penal dosseus membros componentes. Eis por que se estendem e sempre se estenderamaos congressistas dos estados as imunidades asseguradas pela Constituição aosfederais.

Castro Nunes entende que a imunidade de que gozam os deputados esta-duais encontra assento na própria Constituição Federal, mas o mesmo não ocorrecom os municípios. Não admite como argumento válido para a extensão dessa

36 NUNES, José de Castro. Do Estado Federado e sua organização municipal. Câmarados Deputados, Biblioteca do Pensamento Político Republicano, vol. 15, 1982.

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imunidade o simples fato de os vereadores legislarem em causas municipais.Para ele, é imprescindível a permissão constitucional:

Existe assim base na própria Constituição para essa extensão por forçade compreensão. Não bastaria a simples alegação de analogia sob argumentoespecioso de que as Câmaras Municipais também legislam, nos assuntos daórbita do município. Legislam, é certo, mas nem por isso exercem PoderLegislativo, no sentido constitucional.

Consoante o disposto no Texto Constitucional, para o Ministro CastroNunes, o Poder Legislativo compete ao parlamento, sendo que os estadostambém o exercem, uma vez que a Lei Maior prevê a tripartição de poderestambém no âmbito estadual. É aí que se faz presente a necessidade de distinçãoentre leis formais e materiais:

Materialmente, todas as deliberações tomadas por disposição geral e quetenham força coativa são leis, entram assim na qualificação de leis materiais até oregulamento e seus desenvolvimentos secundários, as portarias e as instruções.Entram na mesma qualificação as convenções coletivas do trabalho e outraspreceituações consentidas a certas associações investidas de funções de poderpúblico. É desse ponto de vista que se pode dizer que os municípios legislam, oque apenas significa que exercem funções legislativas ou paralegislativas.

Segundo a doutrina, no conceito orgânico ou formal, lei é somente a queemana dos parlamentares, que são os titulares do Poder Legislativo. E é sob essecritério que se há de medir o poder legiferante na órbita federal e, por conseguinte,na estadual. Nesse particular, às leis municipais se atribuiu a designação de reso-luções. Salienta que:

Sempre se reservou para as chamadas leis municipais uma designaçãoapropriada, resoluções ou posturas, denominações tradicionais que vieram domunicípio colonial, foram mantidas no Império e chegaram consagradas pelo usoaté à República.

O Ministro Castro Nunes analisa profundamente o termo usado paradesignar os municípios, anteriormente denominados “vereações”, e prelecionaque daí decorreu a palavra vereador, que vem de verear: “governar, reger a terra,pondo nela vereamento, e boa polícia, bom regímen”.

Admite, expressamente, que toda função deliberante exercida por dis-posição geral e dotada de caráter público ou coativo, por analogia, pode serdenominada função de caráter legislativo e, por conseguinte, lei. Todavia, nãoadmite que se possa equiparar, por analogia, a deliberação municipal à funçãolegislativa estadual e federal.

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Ministro Castro Nunes

Mas não creio possa bastar a analogia da função deliberante municipal coma função legislativa federal e estadual para que se admita a extensão das imunida-des parlamentares aos legisladores municipais. Jamais se pretendeu tanto.

Na visão do Ministro Castro Nunes, as imunidades nada mais são do queum privilégio que não pode ser estendido aos vereadores, sem que haja previsãoConstitucional para tanto. Assevera:

As imunidades parlamentares consistem na inviolabilidade da pessoa e naresponsabilidade. Manifestam, em relação a certas pessoas, a ação policial doEstado e a ação repressiva da Justiça. Limitam o Poder Executivo que não podeprender (salvo flagrância); obstam a aplicação das leis penais paralisando a açãodo Judiciário que não poderá processar e julgar, salvo se nisso consentir aassembléia a que pertença o indiciado.

Nessa mesma linha de pensamento, declara que se trata de prerrogativa quese traduz em desigualdade de tratamento em favor de certos cidadãos e que já foialvo de severas críticas da doutrina. Nesse sentido, os estados-membros, por forçada Constituição estadual, estão obrigados a seguir a forma republicana, cujos traçoscaracterísticos são: a responsabilidade e a independência de Poderes, cujalimitação deve ser precedida de autorização constitucional. Enfatiza que:

Se o governador não pode mandar prender um vereador comprometido naprática de um crime, limitado está o Executivo na ação policial; se o juiz não podereceber a denúncia, limitado está o Poder Judiciário, posto na dependência doassentimento da Câmara municipal para o processamento do indiciado. O jogodos poderes é governado por freios e contrapesos, um dos quais será aimunidade assegurada aos legisladores.

Vale dizer que o Supremo Tribunal Federal já fixou o entendimento de quenão se encontra ao alcance dos estados adotar, no funcionamento dos Poderes,limitações que não se encontrem previstas na Constituição, tais como o veto doPoder Executivo, a declaração de inconstitucionalidade das leis pelo PoderJudiciário, o impeachment e a imunidade parlamentar.

O Ministro afirma que o Estado do Paraná, ao estender a imunidade aosvereadores, acabou por criar para o Executivo e para o Judiciário limitação nãoprevista na Constituição. Na verdade, criou dependência para o Executivo e parao Legislativo em relação às câmaras municipais.

A extensão da imunidade esgota-se, como já vimos, na órbita estadual.Não alcança a órbita municipal. Não se estendem aos vereadores as imunidadesinerentes ao exercício do Poder Legislativo, que é titulado, em cada estado, na suaAssembléia Legislativa. Daí decorre que somente esta, e não quaisquer outrasassembléias deliberantes, tem o poder de coartar a ação dos outros dois Poderes.Traduzindo o que está na Constituição, o que se pode dizer é que o Poder

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Executivo e o Poder Judiciário estão limitados na sua ação pelas imunidades deque gozam os membros do Legislativo estadual. Não podem estar limitados pelasCâmaras municipais; nem pode estar na vontade do estado, mesmo em funçãoconstituinte, estabelecer tal limitação.

Entende o Ministro Castro Nunes que a inovação do Estado do Paranáprejudicou o equilíbrio entre os Poderes, visto que limitou a ação do Executivo edo Judiciário. As imunidades conferidas aos vereadores resultaram em manietaro Estado na sua ação policial e penal. O Ministro, com muita propriedade, traçaesse jogo dos Poderes no âmbito estadual, ao mencionar que se encontrammutuamente limitados pelo sistema de freios e contrapesos, pois o PoderExecutivo reage aos excessos do Poder Legislativo pelo veto, este, contra osdesmandos do Executivo, pelo impeachment, e o particular, contra o Legislativo,pela declaração judicial da inconstitucionalidade das leis. Assevera que aConstituição do Estado do Paraná:

Criou para o Judiciário e o Executivo uma limitação que vai além do jogo dostrês Poderes, que nada tem a ver com a independência da Assembléia Legislativa doestado. Com efeito, não é esta que se preserva com a outorga de imunidades aosvereadores e sim às Câmaras municipais, que não são poder legislativo, e muitomenos poder legislativo do estado. Vale dizer que os Poderes Executivo e Judiciárioficam freados pelas Câmaras municipais e não somente pela Assembléia Legislativado estado, como será curial. A admitir-se tal exorbitância, teríamos o estado limitadopela autonomia municipal do mecanismo, no funcionamento, na independência dosseus poderes fundamentais. Além do privilégio da irresponsabilidade e da invio-labilidade conferido a cidadãos que não são membros do Poder Legislativo doestado, únicos que podem gozar da prerrogativa excepcional.

Por fim, conclui que estender a outros cidadãos essa imunidade seria de-masiado. Verifica-se, ao longo de seu voto, constante preocupação em preservaros limites impostos pela Constituição, bem como o equilíbrio da separação dosPoderes, por meio do sistema de freios e contrapesos. Ele nega provimento aorecurso de habeas corpus e é esse o entendimento predominante na decisãoproferida pelo Supremo Tribunal Federal.

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Ministro Castro Nunes

5. ATOS DO GOVERNO PROVISÓRIO

CABIMENTO DE EXAME JUDICIAL

O Ministro Castro Nunes, no voto proferido no Agravo de Instrumento n.8.045/PR37, firmou entendimento no sentido de diferenciar, do ponto de vista daproibição do exame judicial, os atos do Governo Provisório que não envolvem aresponsabilidade dos erários públicos:

Sempre entendi que, nos atos do Governo Provisório, aprovados, todos,pela Constituinte, haveria que distinguir do ponto de vista da proibição do examejudicial os que não envolvessem responsabilidade dos erários públicos. Foi emfavor dos tesouros públicos que se prescreveu aquela proibição, com o caráter deum verdadeiro bill de indenidade. Não em favor dos patrimônios particulares. Se,portanto, o responsável civilmente pelo ato lesivo de um direito individual nãoera a União, nem um Estado, nem um Município, senão uma empresa particular,seria levar muito longe, além dos seus limites razoáveis, aquela imunidade, cujamedida deve ser dada pela razão conhecida em que se inspirou.

Admite, portanto, o exame judicial dos atos que não envolvem a responsa-bilidade dos erários públicos. O Ministro Castro Nunes proferiu voto no mesmosentido nos Embargos no Recurso Extraordinário n. 3.101/SP38.

IMUNIDADE

O Ministro Castro Nunes defendia a imunidade dos atos do GovernoProvisório depois do advento da Carta de 193739. Aliás, proferira decisão judicialnesse sentido, logo após a Carta de 1937, quando era juiz de primeira instância, naação movida contra a Fazenda Nacional pela Standard Oil, na qual decidiu pelacarência da ação, em 20 de dezembro de 1937. Vale dizer que essa decisão foiposteriormente confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, no Agravo de Petiçãon. 8.568/DF40:

37 Data da decisão: 31 de janeiro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.38 Data da decisão: 9 de junho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.39 No mesmo sentido, voto proferido na Apelação Cível n. 8.443/DF. Data da decisão: 18de outubro de 1945. Relator e Presidente, Ministro Laudo de Camargo: “Considero, pois,aliás, de acordo com as diretivas que tenho assentado em outros votos sobre a extensãoda imunidade dos atos daquele período.”40 Data da decisão: 16 de maio de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

A aprovação dos atos do Governo Provisório teve o caráter de umaverdadeira anistia em favor dos erários públicos federais e locais, e isso mesmoficou bem salientado no discurso do Deputado Medeiros Neto, que liderava amaioria, ao combater a emenda Raul Fernandes (Diário da Assembléia Nacionalde 5 de junho de 1934). Visou-se, com aquela aprovação, tornar legal o que fosseporventura ilegal na administração do Governo Provisório, encerrando-se embenefício do Tesouro o passivo desse período. Foi esse o sentido constitucionalda aprovação, scilicet validação dos atos do Governo Provisório, tidos, emconseqüência, como legais para o Judiciário, do que decorre como mero corolárioa vedação de exame judicial.

O Ministro esclarece, em seu voto, que a aprovação pela AssembléiaConstituinte dos atos do Governo Provisório não teria razão de ser se não fosseacompanhada da cláusula que veda a revisão judicial na reparação dos direitosindividuais violados. Questiona, ainda, de que adiantaria aprovar aqueles atossem a devida cláusula proibitiva, para afirmar que seria uma providênciaplatônica, pois os atos revolucionários, na grande maioria, constituem-se empráticas contra a lei. Assim, aprová-los e permitir que os interessados pudessemingressar no Poder Judiciário de nada adiantaria. O Ministro Castro Nunes chegaa afirmar que a vedação à revisão judicial constitui-se na sanção da eficácia daaprovação. Sustenta:

Dando a esses atos o ingresso nos tribunais não vejo em que distingui-losdos praticados no período constitucional subseqüente e dos praticados noperíodo constitucional subseqüente e dos praticados no atual regime, uns eoutros, estes como aqueles, sujeitos à revisão judiciária, valendo, portanto, pelomérito de sua legalidade. E nesse caso a aprovação pela Constituinte, fatoexcepcional, que obedeceu notoriamente à necessidade de anistiar a Nação dasindenizações que teria de suportar, pressuposta a desconformidade com o direitovigente de muitos daqueles atos, nada exprimiria, porque é evidente que aapreciação judicial teria de situar-se necessariamente no exame da legalidade detais atos.

Essa posição foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, em diversosjulgados, como no mencionado Agravo de Petição n. 8.568/DF, de relatoria doMinistro Castro Nunes, e nos Embargos no Recurso Extraordinário n. 3.130/SC41,no qual explicita o Ministro, no voto proferido: “A principal razão é tratar-se de atosde interventor praticado em 1930 e 1931, insuscetíveis de apreciação judiciária.”Portanto a posição adotada foi no sentido de não admitir a apreciação judiciária dosatos do Governo Provisório.

41 Data da decisão: 13 de dezembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

EXONERAÇÃO DE FUNCIONÁRIOS

O Recurso Extraordinário n. 8.761/SC42 tratava de questão relativa àexoneração de funcionário estadual e do disposto no art. 18 das DisposiçõesTransitórias da Constituição de 1934, in verbis:

Art. 18. Ficam aprovados os atos do Governo Provisório, dos interventoresfederais nos Estados e mais delegados do mesmo Governo, e excluída qualquerapreciação judiciária dos mesmos atos e dos seus efeitos.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes ponderou que a interpretação dareferida cláusula constitucional suscitava diversos conflitos e que o SupremoTribunal Federal, a princípio hesitante, como não poderia deixar de ser, fixarajurisprudência no sentido

de que aquele artigo abrangeria todos os atos do governo provisório, não só ospolíticos, como os atos de governo em geral, os atos administrativos do Presiden-te da República, dos Ministros de Estado e de outras autoridades superiores, noâmbito federal, estadual e municipal.

No caso em tela, o relator do acórdão, Ministro Ribeiro da Costa, declarouque o pensamento contido no art. 18 das Disposições Transitórias era justamenteo de não reacender paixões políticas. Todavia, a posição assumida pelo MinistroCastro Nunes foi diversa. Para ele:

Como ficou muito bem esclarecido em toda a discussão travada em tornodele, o pensamento que serviu de base a esse artigo foi o de evitar demandas contrao Tesouro Nacional, Estadual e Municipal, o que importaria numa verdadeirasangria das finanças nacionais, estaduais e municipais. Foi um pensamento deordem econômica ou financeira, e não política. Não se procurou evitar discussõesjudiciais sobre os atos do Governo Provisório a fim de impedir que se reacendessempaixões, que não existiriam pelo menos nos casos administrativos. O que seprocurou foi dar ao Tesouro o que se chamou — e creio que fui o primeiro a usar aexpressão como juiz de primeira instância — um bill de indenidade. Esse foi opensamento a que obedeceu aquele dispositivo, e não outro.

Nessa linha de raciocínio, defendeu o Ministro Castro Nunes que a revisãodos atos políticos ou governamentais e dos atos administrativos geraria responsabi-lidade de ordem pecuniária para os Tesouros Públicos e que as cifras seriamdemasiadamente altas, o que poderia resultar em desequilíbrio financeiro. Erajustamente isso que se buscara evitar com a regra do art. 18 das DisposiçõesTransitórias da Constituição de 1934. Nesse sentido, ressaltou o Castro Nunes:

42 Data da decisão: 7 de junho de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

“foi uma imposição das circunstâncias, uma espécie de anistia concedida à Naçãoem benefício do erário.”

Verifica-se, ao longo do voto proferido pelo Ministro, constante preocupaçãocom as conseqüências da adoção dessa interpretação para o erário. Castro Nunesreconhece expressamente que o Governo Provisório praticava atos ilegais, pois eraum governo revolucionário. Na época, o País encontrava-se em situação a que oMinistro se refere como situação de “férias da legalidade”:

A ilegalidade dos atos praticados teria de estar confessada, exatamenteporque o Governo Provisório era um governo revolucionário. Na ocasião estava emmoda a expressão “férias de legalidade”. A frase não era nossa, vinha-nos doestrangeiro, para indicar que o Governo Provisório cometia a ilegalidade, agia e teriade agir discricionariamente, sem peias ou embaraços legais à sua ação. Tudo issoestava pressuposto. E por isso mesmo é que não pode haver a revisão judicialdaqueles atos, porque o Judiciário, na quase totalidade dos atos que examinasse,teria de manifestar-se no sentido de que haviam sido praticados ilegalmente.

O Ministro relator defendia a posição de que somente os atos administra-tivos do Governo Provisório estavam protegidos pela regra do art. 18 das Dispo-sições Transitórias. Todavia, segundo o Ministro Castro Nunes, isso significariaque os atos do Governo Provisório teriam maior prerrogativa em relação aosoutros atos administrativos praticados pela Administração Pública. No entanto,não é essa a interpretação que extrai o Ministro do disposto no referido art. 18das Disposições Transitórias. É enfático ao estabelecer que:

Ficam aprovados os atos do Governo Provisório, dos interventoresfederais nos Estados e mais delegados do mesmo Governo, excluída qualquerapreciação judiciária dos mesmos atos e dos seus efeitos.

Nesse sentido, esses atos não poderiam ser modificados, revistos ou cas-sados pelos órgãos do Poder Judiciário. Se esse não fosse o intuito do referidoartigo, explica o Ministro Castro Nunes, a redação teria de ser a seguinte: “Ficamaprovados os atos do Governo Provisório.” Esclarece que o Supremo TribunalFederal fezera distinções razoáveis em diversos julgados, delimitando essas ques-tões. O próprio Ministro Castro Nunes proferira inúmeros votos no sentido de queos atos que a Fazenda Pública ou o Poder Público trouxessem a juízo fossemquais fossem as hipóteses, não usufruíam da aludida imunidade.

A justificativa para tanto reside no fato de que a União, o estado ou omunicípio trouxeram a juízo ato próprio. Vale dizer que essa foi a posição adotadapelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Tanto é assim que, quando do julga-mento de um interventor do Norte que, com a finalidade de arrecadar impostos,acabou por praticar crime de concussão, o Plenário do Supremo Tribunal Federal

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Ministro Castro Nunes

declarou que esse ato não estava imune à apreciação do Poder Judiciário, porquese tratava de ato criminoso. Elucida o Ministro Castro Nunes:

Não basta que o ato seja ilegal, porque os atos ilegais do Governo Provisórioforam declarados imunes. Mas os atos criminosos do agente do Poder Público,seja ele qual for, não podiam estar imunes. Como já disse, o Tribunal tinha de fazere fez distinções razoáveis. Assim, por igual, na cobrança executiva de impostos,pois que aforada a cobrança, teria de ser examinada a sua procedência.

No caso em exame, o Ministro Castro Nunes votou pelo não-conhecimentodo recurso extraordinário e esse foi o entendimento adotado pelo Supremo TribunalFederal.

DEMISSÃO DE FUNCIONÁRIO FEDERAL POR ATO DE AUTORIDADEQUE NÃO O CHEFE DO GOVERNO PROVISÓRIO

Na Apelação Cível n. 7.617/DF43, verificou-se a validade de ato dedemissão de funcionário federal emanado de autoridade que não o Chefe doGoverno Provisório durante a Revolução de 1930.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes enfatiza que o principal argumentodo autor reside no fato de que sua readmissão foi autorizada pelo Presidente daRepública. O ato que se seguiu foi a nomeação para o mesmo lugar, ourenomeação, que equivale a readmissão, com o sentido que o autor pretendeconferir de reintegração. Alerta, no entanto, que, a despeito da existência deoutros argumentos, esses são insuscetíveis de apreciação pelo Poder Judiciário,por dizerem respeito a atos do Governo Provisório, o que significa dizer que aexoneração do autor da demanda não pode ser reexaminada.

Castro Nunes defende que o Governo poderia exonerá-lo mesmo semproposta da Junta de Sanções, e, se esta propôs exoneração, a injustiça dessaproposta, demonstrada à vista da decisão judicial que a impronunciou, não tem ocondão de levar a efeito qualquer alteração na situação jurídica do autor, cujosdireitos de funcionário podiam ser desconhecidos pelo governo revolucionário,nos termos da Lei Orgânica, sem que existisse qualquer motivo ou justificativa.

O Ministro atenta para o fato de que a inexistência do crime funcionalproclamada pela Justiça comum teria servido para a solução de equidade que foiadotada pelo Presidente da República, ao autorizar a readmissão do autor quandohouvesse vaga. Todavia, para o Ministro, isso não configura reintegração, que impli-caria a negação do poder do Governo Provisório de demitir discricionariamente, oque jamais foi, nem poderia ser, contestado. Sustenta o Ministro Castro Nunes que:

43 Data da decisão: 29 de dezembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Octavio Kelly.

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Memória Jurisprudencial

De fato, o decreto orgânico dispunha que tais atos seriam da alçada doChefe do Governo. Mas a aprovação de todos os atos do Governo Provisório,mesmo praticados em contrário ao texto da Lei Orgânica, torna impossível, depoisda Constituição de 34 o reexame desses atos. Por isso mesmo, no caso do CorreioPaulistano (Recurso Extraordinário de São Paulo), detendo-me nesse aspecto,salientei que a aprovação pela Constituinte, com a rejeição da emenda RaulFernandes, dobrou a imunidade de que já gozavam esses atos em face doJudiciário. Hoje não seria possível cotejar o ato com a Lei Orgânica para anular oato do Governo Provisório.

No entanto, o argumento principal em que se fundamenta a pretensão doautor é o que decorre do sentido de reintegração que ele pretende conferir àreadmissão. Nesse aspecto assevera o Ministro Castro Nunes:

Mas readmitir não é reintegrar. Reintegrar no sentido do direito administra-tivo é restituir o cargo ao seu titular, desconhecendo a solução de continuidadedecorrente da destituição. Por isso mesmo supõe o ressarcimento das vantagensnão percebidas e a vantagem do tempo de serviço, como se em exercício estivesse.

O Ministro ressalta que o Presidente da República, autorizando a read-missão e nomeando o autor para a mesma função de que fora exonerado, nãopoderia reintegrar este funcionário destituído pelo Governo Provisório, já que,no parágrafo único do art. 18 das Disposições Transitórias da Constituição, avolta dos funcionários demitidos, ainda que com parecer favorável da Comis-são Revisora, teria de ser feita com exclusão dos proventos atrasados. Dispõeo referido parágrafo único do art. 18 das Disposições Transitórias:

O Presidente da República organizará, oportunamente, uma ou váriasComissões presididas por magistrados federais vitalícios que, apreciando deplano as reclamações dos interessados, emitirão parecer sobre a conveniência doaproveitamento destes nos cargos ou funções públicas que exerciam e de quetenham sido afastados pelo Governo Provisório, os seus Delegados ou em outroscorrespondentes, logo que possível, excluído sempre o pagamento de vencimen-tos atrasados ou de quaisquer indenizações.

O ato do Governo de readmitir o autor no seu antigo cargo não teve, nempoderia ter, o sentido de reintegração. Nesse sentido o Ministro nega provimentoà apelação.

CONTROLE JUDICIAL

Em 18 de dezembro de 1935, o Decreto Legislativo n. 6 aprovou trêsemendas constitucionais cujo conteúdo era o seguinte:

a) Emenda n. 1: “A Câmara dos Deputados, com a colaboração do SenadoFederal, poderá autorizar o Presidente da República a declarar a comoção intestina

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Ministro Castro Nunes

grave, com finalidades subversivas das instituições políticas e sociais, equiparadaao estado de guerra em qualquer parte do território nacional, observando-se odisposto no art. 175, n. 1, §§ 7, 12, e 13, e devendo o decreto da declaração daequiparação indicar as garantias constitucionais que não ficarão suspensas;”

b) Emenda n. 2: “Perderá a patente e posto por decreto do Poder Executivo,sem prejuízo de outras penalidades e ressalvados os efeitos da decisão judicial queno caso couber, o oficial da ativa, da reserva ou reformado que praticar ato ouparticipar de movimento subversivo das instituições políticas e sociais;”

c) Emenda n. 3: “O funcionário civil ou inativo que praticar ato ouparticipar de movimento subversivo das instituições políticas e sociais serádemitido por decreto do Poder Executivo, sem prejuízo de outras penalidades eressalvados os efeitos da decisão judicial que no caso couber.”

O Ministro Castro Nunes afirmou, em voto proferido na Apelação Cível n.7.609/DF44, em que figurou como relator, que o critério do Poder Executivo naadoção dessas medidas de exceção teria de ser, tendo em vista a sua próprianatureza, discricionária. Esclarece que:

Quis-se deste modo armar o Governo de poderes excepcionais, permitindo-lhe afastar da função pública, civil ou militar, os brasileiros comprometidos naagitação subversiva que culminara no levante comunista de 27 de novembro.

Todavia, argumenta o Ministro que o constituinte deixou ressalvado aosdemitidos o direito de ulteriormente procurarem o Poder Judiciário, consoante oexpressamente disposto na Emenda n. 3, acima transcrita. Sobre essa ressalva,elucida o Ministro Castro Nunes:

A ressalva não pode ter outro sentido senão esse, isto é a ressalva dodireito de propor ação para anular o ato de demissão, anulação que, como é claro,terá de depender, em espécie, da apreciação dos fatos e do direito. De outro modonão teria razão de ser a ressalva, que supõe efeitos da decisão a ser proferida nocível, de vez que os efeitos da decisão no juízo penal já ressalvados ficaram inverbis “sem prejuízo de outras penalidades”.

Nessa linha de raciocínio, o funcionário demitido, consoante o disposto naEmenda Constitucional n.3, poderia ser entregue à Justiça penal. Se esse funcio-nário fosse absolvido, restaria excluída a imputação, e o funcionário, portanto,poderia valer-se da reparação civil. Todavia, uma vez ocorrendo a condenação,comprometida estaria a propositura de ação reparatória.

44 Data da decisão: 1º de dezembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

De outra parte, assevera que, se o funcionário demitido não for submetidoà Justiça penal, portanto inexistente a condenação ou a absolvição, resta aberta apossibilidade de ingressar em juízo com ação anulatória.

A Constituição de 1937, por sua vez, não repetiu os dizeres das emendasconstitucionais de 1935, mas adotou critérios diversos, na medida em que exigiu aprecedência da decisão condenatória da Justiça especial para a perda do cargo, dapatente ou do posto (art. 172, § 2º)45. O Ministro Castro Nunes analisa a situação:

Cotejadas com este dispositivo as Emendas de 1935, vê-se que estas comoaquele admitem a intervenção judicial. Por aquelas emendas a intervenção é pos-terior à demissão, seja para julgar o funcionário acusado, seja para o reintegrar nocargo de que houver sido destituído; ao passo que, em face do texto atual, a açãoda Justiça Penal precede e condiciona a perda do cargo, abrindo margem, no casode absolvição, à via reparatória.

Desse modo, defendeu o Ministro a necessidade de o Supremo TribunalFederal analisar o caso da ação que reivindicava a reintegração ao cargo defuncionário público destituído por decreto do Poder Executivo, sob dois aspectos:o primeiro consistia em examinar se a situação de fato condizia com o teor daemenda constitucional; o segundo aspecto a ser analisado residia em saber se ofuncionário tinha direito ao cargo que reivindicava. Sustenta:

No exame de tais hipóteses, existem duas indagações que precisam serdestacadas. Em primeiro lugar cumpre examinar se a situação de fato que sedesenha nos autos e ajusta-se ao teor da emenda constitucional em termos queautorizem concluir pela nenhuma participação direta ou indireta, material ou inte-lectual, do funcionário demitido na preparação ou na deflagração do movimentosubversivo. Em segundo lugar se o funcionário tem direito ao cargo que reivindica,isto é, se teria esse direito mesmo em circunstâncias normais ou se, ao contráriodisso, poderia ser demitido independentemente da Emenda n. 3. É bem de ver queo direito a reintegração terá de depender dessas duas condições: exclusão dequalquer participação criminosa, nos termos expostos, e garantias de estabilida-de em cujo gozo se encontrasse o funcionário.

No caso em tela, o Ministro Castro Nunes aplica essas indagações ao casoconcreto para decidir pelo provimento da apelação do autor. Seu voto é acolhidopelos demais Ministros do Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, dãoprovimento à apelação.

45 Dispõe o art. 172, § 2º, da Constituição de 1937: “O oficial da ativa, da reserva oureformado, ou o funcionário público, que haja participado de crime contra a segurança doEstado ou a estrutura das instituições, ou influído em sua preparação intelectual oumaterial, perderá a sua patente, posto ou cargo, se condenado a qualquer pena peladecisão da Justiça a que se refere este artigo.”

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Ministro Castro Nunes

POSSIBILIDADE DE REVISÃO PELO PRÓPRIO PODER EXECUTIVO

No Recurso Extraordinário n. 3.396/SC46, analisou-se ato do GovernoProvisório: o Decreto estadual n. 34, de 5 de junho de 1934, que rescindiu, deacordo com o parecer do Conselho Consultivo do Estado e em consonância comordens emanadas do Chefe do Governo Provisório, o contrato de luz e força deFlorianópolis, firmado até então com a Companhia Tração, Luz e Força. Aberta alicitação, em 1935, com o intuito de estabelecer novo contrato, em virtude dessarescisão pelo Decreto n. 34, a parte interessada — a antiga companhia — interpôsrecurso, que foi provido, para o já então Presidente da República, visto que oMinistro da Justiça, por ordem do Presidente, mandara que sobrestivesse a licita-ção e, conseqüentemente, não mais se fizesse o contrato, a fim de ser revisto oantigo. Todavia, o interventor não atendeu a ordem do Presidente da República.O autor defendia que o ato do Governo Provisório, incorporado no Decreto esta-dual n. 34 e aprovado pelas Disposições Transitórias da Constituição de 1934,não mais poderia ser modificado, alterado ou reconsiderado, não só pelo Inter-ventor do Estado, como também não o poderia ser pelo Presidente da República,porque o ato, uma vez aprovado, estava imune de qualquer apreciação.

O Ministro Castro Nunes deixa claro que a exclusão a que se refere o art.18 das Disposições Transitórias se refere tão-somente à apreciação judicial, nãodificultando qualquer análise do Executivo. O referido dispositivo constitucionaldispõe que:

Art. 18. Ficam aprovados os atos do Governo Provisório, dos interventoresfederais nos Estados e mais delegados do mesmo Governo, e excluída qualquerapreciação judiciária dos mesmos atos e dos seus efeitos.

Na visão do Ministro, o que restou proibido foi que a Justiça apreciasse osatos emanados do Governo Provisório; vedara-se a intervenção do PoderJudiciário na apreciação desses atos, uma vez que obrigado a julgar de acordocom as leis. Assim o Judiciário teria de invalidar a maioria daqueles atos, vistoque praticados em regime discricionário, afastados das determinações legais.Sustenta o Ministro:

Nestas condições, o que se proibiu foi a apreciação do Poder Judiciário.Não se proibiu, entretanto, que o próprio Poder Executivo, o próprio Governo, oPresidente da República ou, nos Estados, os Interventores, que houvessempraticado os atos, reconsiderassem esses atos ou pudessem modificá-los. Istonão está expressamente proibido no art. 18 e nem mesmo, acrescento eu,implicitamente, pois que, até me parece que ficou claramente excluído.

46 Data da decisão: 8 de maio de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Faz referência ao parágrafo único do mesmo art. 18, que estabelece:

Art. 18. (...) Parágrafo único. O Presidente da República organizará,oportunamente, uma ou várias comissões presididas por magistrados federaisvitalícios que, apreçando de plano, as reclamações dos interessados, emitirãoparecer sobre a conveniência do aproveitamento destes nos cargos ou funçõespúblicas que exerciam e de que tenham sido afastados pelo Governo Provisório,ou seus Delegados, ou em outros correspondentes, logo que possível, excluindosempre o pagamento de vencimentos atrasados ou de quaisquer indenizações.

A proibição constitucional de revisão restringe-se unicamente ao Judiciário,e não ao Presidente da República, que pode alterá-los. Castro Nunes afirma,ainda, que é natural que seja assim, pois, do contrário, se restasse vedado aoExecutivo modificá-los, esses atos seriam ab aeterno e nunca mais poderiam sermodificados. O Ministro declara:

O ato mais elevado na hierarquia, digamos um decreto-lei do GovernoProvisório, aprovado, evidentemente, pelo art. 18, não poderia nunca mais serrevogado, seria uma lei eterna. É evidente que o próprio Poder Constitucional quesobreveio poderia modificar esse ato, como, aliás, modificou vários deles.

Castro Nunes esclareceu que não cabia recurso extraordinário em qualquerdos incisos invocados, pois a Justiça local não sentenciara sobre o Decreto estadualn. 34, em virtude do qual se rescindira o contrato de arrendamento com a antigaempresa. Ele não conheceu do recurso extraordinário, e foi esse o entendimentoprevalecente no acórdão do Supremo Tribunal Federal.

DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL POR INTERVENTOR

O Supremo Tribunal Federal se viu às voltas com vários casos em que assentenças federais eram descumpridas ou fraudadas em sua execução. Nessassituações, os interessados apelaram para o Supremo Tribunal Federal solicitandoa intervenção da União nos estados-membros. No entanto, a situação era maisdelicada, pois, após a Constituição de 1937, as assembléias legislativas tinhamsido dissolvidas e os governadores destituídos.

O provimento dos cargos de governador se deu mediante intervenção,que, como asseverou o Ministro Castro Nunes no voto proferido no Pedido deIntervenção n. 7/RJ47, “não é regulada, propriamente, na Constituição, nas suasdisposições permanentes, mas solução de caráter revolucionário.”

47 Data da decisão: 22 de novembro de 1944. Relator, Ministro Waldemar Falcão; Presi-dente, Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro fixa com maestria o conceito de intervenção, sua finalidade eseus limites, para deixar claro que não podem os interventores editar decretos-leis, suprindo função da Assembléia Legislativa destituída. Sustenta que:

Os interventores atuais são verdadeiros Governadores, cujo símile vamosencontrar, após a proclamação da República, nos Governadores nomeados peloGoverno Provisório. Ou, ainda, após a Revolução de 30. São governadores comatribuições muito mais amplas do que as consentidas pela Constituição aosinterventores. Todos os expositores da matéria esclarecem que o interventor,embora exercendo o Governo do Estado, deve abster-se de certas iniciativas; devecingir-se a cumprir o orçamento, a arrecadar os impostos, a nomear e a demitirfuncionários, mas não deve tomar iniciativas novas e muito menos expedirdecretos-leis — e esta é a distinção fundamental que se verifica no momento, pois,agora os interventores são, também, legisladores, suprindo, igualmente, a falta deassembléias políticas. Assim, a intervenção, agora, é muito ampla — extensiva eintensivamente. É o governo do Estado sem as limitações próprias de uma situaçãotransitória — de curta duração, e tal é a prefigurada pela Constituição no jogonormal das instituições federativas.

Todavia, no que se refere ao pedido de intervenção nessas situações,Castro Nunes entende não ser possível ao Supremo Tribunal Federal atender aopedido porque o estado-membro já está sob a intervenção da União:

Não vejo como deferir a medida solicitada que envolveria o absurdo deuma intervenção contra intervenção de pretender-se que o Presidente daRepública interviesse em um Estado onde ele já está intervindo, onde o governolocal está sendo exercido por um preposto de sua escolha e confiança.

O Ministro Castro Nunes não adere à solução apresentada pelo MinistroOrozimbo Nonato, que seria levar à ciência do Presidente da República os fatostrazidos ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal. Todavia, sugeriu, ainda,que se fizesse a comunicação por intermédio do que ele classifica de “órgão deligação entre o Supremo Tribunal e o Poder Executivo”, o Procurador-Geral daRepública.

A não-adesão à sugestão proposta pelo eminente Ministro Orozimbo Nonatose deve ao fato de que, para o Ministro Castro Nunes, os estados não estão sobintervenção constitucional, mas sob outra espécie de intervenção. Esclarece nesseponto que:

obedece a princípios especiais, estão subordinados, diretamente, ao GovernoFederal, em todas as suas iniciativas, em todos os seus atos. Ora, há decreto lei,de abril de 1939, dispondo, minuciosamente, sobre a ação administrativa nosEstados e Municípios e estabelecendo, em muitos casos, recurso dos atos doInterventor para o Presidente da República; e um dos casos previstos de recursoé aquele em que se alega que o Interventor atentou contra a Constituição ou asleis federais.

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Memória Jurisprudencial

Segundo ele, “atentar contra sentença federal é atentar contra lei federal,tão certo é que é uma sentença, como aliás já observava Pedro Lessa, não éoutra coisa senão a concretização de uma norma de direito.”

O caminho a ser trilhado para reparação do direito violado, na interpretaçãolevada a efeito pelo Ministro Castro Nunes, já se encontra delineado na lei, qualseja, o recurso para o Presidente da República, sem prejuízo dos meios judiciaisde que pode valer-se a parte.

Enfrenta ainda, em seu voto, questão relevante acerca das execuções desentença. No caso em tela, as execuções de sentença no Estado do Rio de Janeiroeram feitas de maneira a violar a lei. Verificava-se a celebração de acordos paraa execução da sentença. Entretanto, o Texto Constitucional, adverte o MinistroCastro Nunes, impõe, nessa seara, critérios rigorosos e impessoais de observân-cia dos julgados, não admitindo soluções variáveis e circunstanciais. Buscou-seevitar o favoritismo. Acentua que:

consignada a dotação orçamentária para a execução das sentenças é por ela quese deve proceder guardada a ordem de entrada das precatórias e não pelo critérioadotado de preferência para os que entram em acordo com a fazenda para receberem pagamento terras.

O Ministro é enfático ao declarar: “Execução de sentença não comportaacordo. Acordo é transação e transigir acerca de uma sentença transitada emjulgado é fato indicativo de que a parte foi coagida a aceitar o que foi possívelpara remover a procrastinação.” Exige, no que se refere à execução dassentenças, o mais fiel cumprimento aos preceitos constitucionais, não admitindo,ainda que por força da interpretação, qualquer acordo nessa seara.

O Ministro Orozimbo Nonato trava interessante discussão com o MinistroCastro Nunes ao levantar a hipótese da dação em pagamento, mas Castro Nunesesclarece que a execução se faz pela conta: “aquilo que é contado em favor dodemandista vitorioso deve lhe ser pago.” Portanto, não admite essa hipótese.

Vale dizer que o pedido, por unanimidade, foi julgado improcedente peloSupremo Tribunal Federal.

RESPONSABILIDADE DA UNIÃO POR ATOS DE INTERVENTOR

Na Apelação Cível n. 7.258/AM48, analisou-se questão relativa à respon-sabilidade da União por atos praticados por interventor. O caso versava sobre ademissão de funcionário estadual durante o regime de intervenção federal.

48 Data da decisão: 23 de novembro de 1942. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Buscou-se responsabilizar a União, após a reintegração desse funcionário, pelopagamento dos respectivos vencimentos, cessada a intervenção.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes analisa, com propriedade, trêsaspectos essenciais da questão: 1) se o ato do interventor de demitir o funcionárioobriga o estado e a União; 2) se o ato do interventor, praticado em contrário aoDecreto de sua nomeação e com excesso de poder, altera a questão daresponsabilidade; 3) se o funcionário tinha vitaliciedade e, portanto, só poderia serdemitido em virtude de sentença judicial.

No que se refere ao fato de o ato do interventor obrigar o estado e a União,o Ministro proferiu vários votos no sentido de reconhecer que o interventor,quando nomeado para assumir o Governo, obriga o estado e a União pelos atospraticados nessa função. Esclarece que:

Estando em exercício nesta Corte Suprema em maio de 1935, salientei quenem sempre a intervenção tem essa finalidade limitando-se algumas vezes ao cum-primento de uma lei, ordem ou sentença federal, caso em que o Governo da União selimita a comissionar em regra o comandante da região militar. Mas se a função quese lhe comete é a de prover a acefalia do Poder Executivo, ele faz as vezes doGovernador, vai administrar o Estado, arrecadando e aplicando as suas rendas,movendo o seu pessoal administrativo, provendo os cargos vagos, exercendo, emsuma, as atribuições próprias de Governo, com as limitações estabelecidas nas leisdo próprio Estado e no Decreto de sua investidura.

Para o Ministro Castro Nunes, o que imprime caráter local ou federal àautoridade não é a investidura, mas a função que lhe cabe. Portanto, se a funçãoexercida é de caráter local, a autoridade não deixa de ser local, mesmo tendo emvista a circunstância de ter sido nomeada pelo Presidente da República. Elucidaque federal é a função mesma, como serviço reservado à União nessa circunscri-ção. Ensina que “o interventor é nomeado pelo Presidente da República, como seudelegado, não, porém, para desempenhar uma função federal, mas para exercerfunções de governo local.”

Menciona ainda, em seu voto, a República Argentina, onde, durante apolítica intervencionista, houve época em que a Suprema Corte argentina adotoua posição de que o interventor, ainda quando assumisse o Governo da província,não seria considerado representante desta, mas sim do Governo federal: “Era ointerventor — autoridade federal obrigando por seus atos, como governador, aNação, e não a província — paciente da intervenção.”

Note-se que é traço característico dos votos de Castro Nunes a aplicaçãodo direito comparado, não só europeu mas também americano, para buscar res-postas e soluções aplicáveis ao caso brasileiro, bem como a análise histórica dosinstitutos, no intuito de limitar com precisão seu conteúdo e sua finalidade. Ele

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Memória Jurisprudencial

entende que a intervenção encontra-se na esfera “peculiar” do Estado, expressãoque constava nas antigas Constituições, mas que não se encontra na atual, apesarde o princípio ser o mesmo, e assevera:

A União pode estar, e o está por seus órgãos, em cada Estado, sem intervir,porque fora dos negócios do peculiar interesse do Estado. Se intervém, assumindo,por um delegado do Presidente da República, o Governo do Estado, absorve, emgrau maior ou menor, a esfera local, do que decorre que a função não é federal,senão local.

Ressalta, que, além disso, vários acórdãos do Supremo Tribunal Federalestabelecem que os interventores, quando administram o estado, são conside-rados verdadeiras autoridades locais. Todavia, adverte que há mais acórdãosem outro sentido, qual seja, o de que o interventor não age propriamente comorepresentante do chefe da Nação, mas como chefe de órgão estadual. Cita,com o intuito de corroborar a sua tese, a Apelação Cível de 5 de junho de 1935,em que foi relator o Ministro Cunha Mello, que manifestou expressamente essaposição.

Passa, a seguir, a examinar o segundo aspecto da questão, consistente emdelimitar a extensão dos poderes do interventor nomeado, no caso, para o Estadodo Amazonas, em 1924, pelo Decreto 16.264, que estabelece, em seu art. 4º:

O interventor substituirá, em tudo, o governo normal do estado, podendoafastar, se não lhe merecerem confiança, qualquer funcionários do Estado dosrespectivos cargos, sem prejuízo de vencimentos, quando vitalícios e substituí-los por outros em comissão, assim como exonerar e substituir os que sejamdemissíveis ad nutum.

Na opinião do Ministro Castro Nunes, as limitações que sofrem os atos dointerventor são de duas ordens, quais sejam, as que constam do próprio decretoou das instruções baixadas pelo Governo e restringem a ação do interventor e asque são ditadas pela prudência política do próprio agente, que, na sua visão, é umsubstituto transitório do Governador.

Nesse sentido, deve o interventor, segundo ele, abster-se de tomar deter-minadas iniciativas e não se utilizar das atribuições que não sejam indispensáveise circunscritas ao âmbito de uma substituição provisória. Logo, deve evitar exa-geros, para não sacrificar a autonomia estadual. Elucida o Ministro que são osdenominados “atos de conservação”, no dizer de Aurelino Leal. Preleciona que:

Se o Presidente não limita a ação do Interventor, ele terá todas as atribuiçõesque a Constituição do Estado conferir ao Governador. Se limita, ele terá, assumindoas funções de governador, as mesmas atribuições, com as restrições estabelecidas.Essas duas modalidades estão hoje expressas no art. 9 da Constituição. Se o Inter-ventor vai além dessas limitações podem os prejudicados recorrer aos tribunais

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Ministro Castro Nunes

para o compelirem a cingir-se aos poderes que lhe forem conferidos, usando dosremédios preventivos ou coletivos que couberem. Mas nem por isso se deslocarápara a União a responsabilidade civil decorrente de ato ilegal, como veremos adiante.

O Ministro ressalva, contudo, que o papel do interventor naquele momentoera um pouco diferente do descrito no art. 9º do Texto Constitucional49, pois, combase no parágrafo único do art. 176 das Disposições Transitórias50, acumula, sobo controle do Governo federal, as funções de Poder Executivo e de Legislativo.Argumenta que:

São interventores anômalos, de que não cogita a Constituição senãotransitoriamente, porque o Interventor de que cogita a Constituição no art. 9 é umdelegado do Presidente da República preposto, em extensão maior ou menor, àsfunções do Poder Executivo.

No caso em tela, o interventor nomeado para prover interrupção na vidaconstitucional do estado, na vigência da Constituição de 1891, e sujeito alimitações estabelecidas no Decreto que o nomeou, foi além de suas limitações.Houve excesso de poder, pois o interventor demitiu funcionários vitalícios.

O Ministro anota que, se o interventor extrapolou seus poderes, acabou poragir não mais na qualidade de mandatário, mas sim como gestor de negócio. Noentanto, houve adesão do Presidente da República e aprovação pelo Parlamentodos atos de intervenção. Isso representou ratificação do excesso de mandato, o quesignifica dizer que, na prática, é como se não houvesse a restrição invocada. Arestrição existente não se aplicava apenas ao interventor, mas também ao governadorconstitucional.

Sendo assim, na interpretação do Ministro Castro Nunes, o interventor, aodemitir funcionário vitalício, ultrapassou os poderes que usufruía e foi além doslimites impostos pelo Governo federal e do que poderia fazer um governadorconstitucional. Vale dizer que seus atos deviam ser pautados em conformidadecom a Constituição e as leis do estado. Conclui, então:

O exame do seu direito situa-se, pois, na preceituação estadual. A demissãoseria legal e, portanto, imune a censura judicial se se tratasse de um funcionário

49 O caput do art. 9º da Constituição de 1937 dispõe: “O governo federal intervirá nosEstados, mediante a nomeação pelo Presidente, da República de um interventor, queassumirá no Estado as funções que, pela sua Constituição, competirem ao Poder Executivo,ou as que, de acordo com suas conveniências e necessidades de cada caso, lhe forematribuídas pelo Presidente, da República.”50 Dispõe o parágrafo único do art. 176 da Constituição de 1937: “O Presidente daRepública decretará a intervenção nos Estados cujos Governadores não tiverem o seumandato confirmado. A intervenção durará até a posse dos Governadores eleitos, queterminarão o primeiro período de governo, fixado nas Constituições estaduais.”

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Memória Jurisprudencial

demissível. Poderia decretá-lo o interventor, no quadro de seus poderes, comopoderia fazê-lo o Governador. A ilegalidade argüida não está pois em provir o atodo interventor; mas da condição de vitalício invocado pelo Autor, condição quenão pode ser desconhecida, sem prévio pronunciamento judicial, pelo PoderExecutivo. Trata-se, portanto, de um ato de interventor, praticado em contrário àsleis do Estado e lesivo de um direito.

Para Castro Nunes, nesse caso, quem responde é o estado e não a União,pois a investidura é federal, mas as funções são estaduais. A União está isenta dequalquer responsabilidade. Ele rejeitou os embargos, e essa orientação foiseguida, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal.

COBRANÇA COMPULSÓRIA DE IMPOSTOS

Na Ação Rescisória n. 78/PR51, tratou-se de questão relativa à aprecia-ção de ato do Governo Provisório consistente na cobrança de imposto. Em seuvoto, o Ministro Castro Nunes defende a posição de que a análise judicial desseato não está eliminada, precipuamente, em virtude da peculiaridade da hipótesede cobrança coativa de imposto por funcionários estatais, por ordem dointerventor.

Tratando-se de imposto, o princípio geral, jamais contestado, na vigênciaou depois da aprovação da Constituição de 1934, é que nunca se trancou a defesado contribuinte. Quer isso dizer que o Estado — falo de um modo geral, naacepção genérica — indo a juízo cobrar um imposto, torna acessível à apreciaçãojudicial o ato do Governo Provisório, federal ou local.

Vale dizer que, no presente caso, o próprio Estado do Paraná prescindiu doaforamento da demanda, do pedido em juízo, e coagiu o contribuinte a pagar. Ora,foi negado ao contribuinte o modo regular de defesa, constitucionalmenteassegurado. Acrescenta, ainda:

A possibilidade de se discutir nas cobranças fiscais o ato do GovernoProvisório era um argumento, de que muitas vezes se usou, para dizer que existematos da administração, naquele período, que jamais se negou pudessem serajuizados; daí a distinção entre atos legislativos e atos administrativos, fiscais,financeiros, etc. Mas a razão, que já tive ocasião de salientar, está em que, nessescasos, é a União quem vai a juízo para pleitear um pagamento; e, se põe o caso emjuízo, sujeita-se às conseqüências dessa sua atitude, à defesa daquele que elachamou a juízo, defesa que envolve a apreciação dos seus atos.

Entende que a União, ao propor a ação rescisória, não se fundamentouapenas no art. 18 mas também no art. 964 do Código Civil, que dispõe que aquele

51 Data da decisão: 9 de setembro de 1942. Relator, Ministro Barros Barreto; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

que recebeu o que não lhe era devido ficará obrigado a restituir. Todavia, a Uniãoalega que não se encontra obrigada a restituir, uma vez que não recebeu. Argu-menta o Ministro no entanto, que entende se tratar de restituição de indébito, umavez que houve pagamento manu militari, coativamente exigido. Nesse particular,alega: “Ainda que devido o imposto, a parte foi coagida a pagá-lo e tem direito devir pedir a restituição do quantum e, nessa restituição, o Estado que defenda oseu direito.” Salienta que, para o Ministro Orozimbo Nonato, o interventor é umdelegado da União, portanto, autoridade federal. Assim, quem responde por seusatos é a Fazenda Nacional. Contudo, o Ministro Castro Nunes nunca aderiu aessa tese, deixando assente o seu entendimento, desde o tempo em que era juizfederal, no sentido de que:

o interventor, quando assume o governo do Estado, faz as vezes de governadore vai administrar e executar orçamentos, cobrar impostos, arrecadar receitas, fazerdespesas, de acordo com a legislação e a preceituação em vigor. No Estado,mover os funcionários que ficam sujeitos a sua direção e disciplina, enfim, é ogovernador; por seus atos, não responde a União, que se limitou a investi-lo,responde o Estado.

Em face desse argumento, intervém o Ministro Orozimbo Nonato paraesclarecer que:

No caso dos autos, o interventor agiu à mão armada, não fez uma cobrançacomum, a favor do Estado, serviu-se de sua autoridade oficial, do exercício de suafunção, para fazer uma cobrança de imposto que a lei não autorizava. Não se tratade ato administrativo, mas de um ato de força ou de poder, só praticado pordelegação da União.

Castro Nunes sutenta que o interventor realmente praticou ato violento,ilegal, e o fez na qualidade de interventor, pois, de outro modo, não poderia fazê-lo.Entende que se trata de ato independente da natureza e da qualificação deinterventor ou de seus delegados, e explica:

Dizia eu, Sr. Presidente, que, de acordo com a doutrina a que me tenhosempre mantido fiel, o interventor, assumindo o governo do Estado, age peloEstado; portanto, compete à Fazenda do Estado a responsabilidade. É a ela quecompete restituir o que recebeu por violência ou extorsão. A União não pode serobrigada a restituir aquilo que não recebeu, aquilo que foi recebido pelo Estado,coativamente, por um ato de força do seu governo.

O Ministro Castro Nunes julgou procedente a Ação Rescisória somentepara declarar o autor carecedor de ação contra a União, mas ressalvado o direitode agir contra o estado. No entanto, o Supremo Tribunal Federal julgou improce-dente a ação por maioria de votos.

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ATOS LEGISLATIVOS

O Recurso Extraordinário n. 8.125/DF52 tratava do caso de empregadocom mais de dez anos de serviço, demitido do emprego na vigência do Decreto n.24.273, de 22 de maio de 1934, e que pleiteava a estabilidade no cargo com basena Lei n. 62, de 5 de junho de 1935, que assegurava ao empregado estabilizado odireito de readmissão com as mesmas vantagens do cargo. Vale dizer que oreferido decreto estabelecia tão-somente a indenização correspondente aosalário de seis meses, pois que fazia remissão expressa ao art. 13, §1º, doDecreto de 1931.

O Ministro Castro Nunes, em seu voto como relator, reconhece ser injustonão reintegrar empregado com vinte e dois anos de serviço no estabelecimento.Todavia, o responsável por tal ato foi o legislador, ao fazer remissão a lei anteriorque versava sobre sindicalização, de forma que a incorporou ao seu texto, masessa lei não previa a reintegração de empregado com mais de dez anos deserviço. Esclarece que:

Os atos legislativos do Governo Provisório, ainda que sob a denominaçãode Decretos, eram leis, que sobrevindo a Constituição e, com esta, o Parlamento,só pelo Poder competente para legislar poderiam ser modificadas ou revogadas.Entra o Decreto orgânico do instituto dos comerciários de 22 de maio de 1934, eseu Regulamento expedido em Dezembro do mesmo ano sobreveio a Constitui-ção, de 16 de julho e com esta o Parlamento, em que se desdobrou a AssembléiaConstituinte. Cessaram desde então os poderes legislativos do Presidente daRepública, cujos Decretos de caráter legislativo expedidos ao tempo dos poderesdiscricionários, já não poderiam ser modificados por ele próprio, ainda que deexecução subordinada a um regulamento que sobreveio quando já separadosos poderes.

Entende o Ministro que a função regulamentar do Executivo já estavaentão obrigada a respeitar a lei, restringindo-se à “fiel execução desta”, comoconstava de dispositivo expresso do Texto Constitucional de 1934. Esclarece,nesse sentido, que:

A disposição que deu entrada no art. 90 do Decreto Regulamentar n. 183assegurou, ainda que tacitamente, a estabilidade dos empregados do comérciocom mais de 10 anos de serviço no mesmo estabelecimento, de vez que lhesproibiu a despedida sem justa causa devidamente comprovada; e com aestabilidade o consectário natural da reintegração.

Para Castro Nunes, o funcionário despedido antes da Lei n. 62 que invocaa proteção de legislação anterior referente aos trabalhadores de sua classe não

52 Data da decisão: 2 de julho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

pode usufruir da aplicação de regulamento que extrapolou a lei, indo além dela,mesmo nos casos em que seja reconhecida a insuficiência da reparação ou atémesmo a injustiça dispensada pela lei, pois deixa empregado que se dedicou vinteanos a empresa sem direito a reintegração no cargo.

O Ministro Castro Nunes conhece do recurso e lhe dá provimento, e oSupremo Tribunal Federal decide, por unanimidade, no mesmo sentido.

POSSIBILIDADE DE EDIÇÃO DE DECRETOS COM EFEITORETROATIVO

No Agravo de Petição n. 6.727/SP53, em que figurou como relator oMinistro Castro Nunes, abordou-se a possibilidade de o Governo Provisório de1930 expedir decretos com efeito retroativo. Em 1931 era facultado pagarimposto sobre a renda com dedução de 25%, de acordo com o Decreto n. 19.550,de 31 de janeiro de 1930. No caso em análise, o contribuinte efetuou o pagamentoem 30 de abril de 1931. O Governo Provisório resolveu suspender o benefício,editando o Decreto n. 19.936 (art. 8º). Com base nesse decreto, o Fisco exigiu adiferença e executou o contribuinte.

A questão que se coloca no referido processo não diz respeito ao fato de ocontribuinte ser executado em razão de inexatidões ou omissões em suadeclaração de renda, mas sim em virtude da cobrança da dedução de 25% e desua revogação pelo Decreto 19.936. Na verdade, “o que se alega é se esse decretopode retroagir, porque estava nos poderes do Governo Provisório expedir leisretroativas.”

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes diverge do Ministro Costa Manso,visto que admite a possibilidade de o Governo Provisório legislar retroativamentepara revogar favor concedido, de modo a permitir a revisão dos pagamentos jáefetuados.

Todavia, faz a ressalva de que isso não ocorreu no presente caso, pois oart. 8º do Decreto n. 19.936/31 dispõe apenas que “O imposto regular e globalsobre a renda será cobrado sem o abatimento de 25%.” Trata-se tão-somente darevogação do Decreto anterior. Esclarece que:

Desaparecido o obstáculo constitucional a retroação da lei não deixoude existir o princípio legal do respeito às situações jurídicas já definitivamenteconstituídas expressas no Código Civil. A situação em 1931, como agora, emface da atual Constituição, é idêntica a de todos os países, como a França, emque a irretroatividade da lei, (salvo em matéria penal) não é um princípio cons-

53 Data da decisão: 9 de novembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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titucional, senão um princípio legal, obrigatório para o juiz, ainda que o não sejapara o legislador. Daí resulta, diz Roubier, que não há irretroatividade senão emvirtude de uma cláusula legislativa expressa. Não existe retroatividade tácita,acrescenta ele; se o legislador não inseriu uma cláusula formal, o intérprete nãoestá autorizado a tirá-la por interpretação, baseado na intenção presumida dolegislador. (Paulo Roubier. Les conflits des lois dans le temps. vol. 1, p. 376).

A posição do Ministro Castro Nunes é enfática no sentido de que oDecreto só teria efeitos retroativos se o dissesse expressamente: “não o fazendo,seus efeitos são apenas imediatos, isto é, alcançam somente os que ainda nãohouvessem pago imposto.”

Ele também ressalta em seu voto que essa situação representa tratamentodesigual entre os contribuintes, na medida em que, no mesmo exercício, unsteriam pagado imposto com dedução e outros pagaram sem o mesmo favor legal,e explica:

De fato assim é. Mas o mesmo ocorre toda vez que se decreta uma anistiafiscal para recolhimento de impostos sem multa em dada época do ano. Os quepagaram antes ou pagam depois pagaram com multa, multa de que se livraram osque se aproveitaram em tempo de benefício da lei. E jamais se pretendeu que,assim dispondo, a lei ferisse o princípio da igualdade de todos em face doimposto.

O Ministro Castro Nunes vota pela rejeição dos embargos.

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6. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO E MOVIMENTOS REVOLU-CIONÁRIOS

CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO POR PREJUÍZOS SOFRIDOS PORPARTICULAR EM VIRTUDE DE MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

O Supremo Tribunal Federal enfrentou diversas ações versando sobrepedidos de indenizações decorrentes de prejuízos sofridos em conseqüência demovimentos revolucionários. Na Apelação Cível n. 7.962/SP54, que tratava deatos cometidos durante a Revolução em São Paulo, o Ministro Castro Nunesinicia seu voto fazendo alusão a hipóteses juridicamente análogas, quais sejam, aRevolução Comunista do Nordeste e a Revolução de 1939, momentos nos quaiso Governo se viu forçado a repelir movimentos insurrecionais.

O entendimento do Ministro, manifestado em diversos julgados, é no sentidode que, em princípio, não há possibilidade de responsabilizar o Poder Públicoquando está a braços com insurreições que ele é obrigado, constitucionalmente, arepelir. Adverte que, no Brasil, impera o princípio da responsabilidade fundada naculpa, e eslcarece:

A responsabilidade do Estado terá de encontrar, por conseguinte, funda-mento na culpa de seus agentes, não sendo possível admitir — até mesmo porquelhe retiraria o regresso contra os responsáveis — a responsabilidade sem culpasenão por expressa determinação da lei. De outro modo, estaria deslocado o funda-mento da responsabilidade para a teoria do risco, a teoria da solidariedade, do riscoadministrativo, princípios diferentes que ainda não foram acolhidos em nosso direi-to positivo, embora consagrem avanços acentuados na doutrina; não hesito mes-mo em dizer-se creio que, dizendo-o, me retirei, porque já o terei dito em outrasocasiões — que as minhas simpatias individuais são pela reparação. Estou comReppert, quando diz que o princípio da reparação é um princípio moral e postuladoda honestidade. Ninguém pode causar prejuízo a outrem sem reparar.

A posição pessoal do Ministro Castro Nunes defende a reparação, noentanto elucida que, para isso, necessário seria modificar as normas legais, demodo a enquadrar as indenizações em parâmetros que não causassem a ruínados responsáveis pelo seu pagamento. Ressalta que, quando a União se vê àsvoltas com insurreições, deve reprimi-las de imediato, pelo único meio colocado àsua disposição: o uso das armas. Ao assim proceder, está cumprindo um deverconstitucional.

Seus dirigentes, seus agentes estão exercendo não um direito, mascumprindo um dever que lhes incumbe por força da Constituição e que lhes

54 Data da decisão: 18 de novembro de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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incumbiria à revelia da Constituição, pela necessidade da defesa do próprio PoderConstituído. Na atuação das autoridades, quer das que dirigem, quer das queexecutam, torna-se muito difícil discriminar a atuação que elas tenham tido — seterão excedido as necessidades da repressão, se terão ido além dos objetivosmilitares.

No caso em tela, não consegue o Ministro distinguir, na invasão da cidadede São Paulo por forças rebeldes, onde a União e o Estado tentaram reprimir ainsurreição, se a autoridade agiu bem ou se houve excesso na necessidade derepressão militar. Não vislumbra como confirmar a decisão de primeira instânciaque, segundo ele, abriu precedente perigoso, pois onerou os tesouros públicos,que não teriam condições de suportar a reparação dos prejuízos. Alerta para ofato de que:

O prejuízo pode não estar em causa, pode não haver discussão sobre ele,ele estará pressuposto, mas é um prejuízo não ressarcível, porque é impossível seencontrar, da parte daqueles que o causaram, culpa, ao menos leve, fundamentoque pudesse autorizar a indenização.

Castro Nunes proferiu voto no sentido de dar provimento ao recurso exofficio e à apelação da União e negar a dos autores, mas foi voto vencido, pois oTribunal entendeu que, quando há saques, depredações e outros atos devandalismo estranhos aos objetivos de repressão do Poder Público e praticadospor força militar, a responsabilidade é da União.

Nessa mesma linha, a Apelação Cível n. 7.326/SP55 tratava do pedido deindenização decorrente de ocupação militar por forças federais na cidade deItararé, em virtude das depredações de bens de particulares com a participaçãode soldados dessas forças, que não foram impedidos de praticar o ato danoso.Argumenta o Ministro Castro Nunes: “entendo que os atos que causaramprejuízo são conseqüências de operações militares e, portanto, não podiam darlugar, na repressão do movimento, a nenhuma indenização.” Mais uma vez firmaposição no sentido de entender incabível a indenização em face de movimentosrevolucionários.

Na Apelação Cível n. 7.272/DF56, também se enfrentou questão relativa aindenizações decorrentes de movimentos revolucionários. O Ministro CastroNunes enfatiza que o Estado deve repelir tais movimentos por meio do uso dearmas e com intensidade proporcional à agressão. Desse modo, a ação dasautoridades não poderia ser medida mediante critérios estritos. Logo, entende serimpossível o Poder Judiciário apreciar os extremos dessa atuação, esclarece:

55 Data da decisão: 12 de abril de 1943. Relator e Presidente, Ministro Laudo de Camargo.56 Data da decisão: 20 de junho de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

Assim, aceito, de modo geral, que, toda vez que o Governo, pelas suastropas, pelos meios de que dispõe, está agindo, em defesa da ordem pública, issonão pode comprometer a responsabilidade civil do Estado, na sua acepção maisampla. Mas ao lado do princípio geral, pelo qual defino a linha do meu entendi-mento, existe um outro princípio; toda vez que a autoridade, embora já lutandopara se defender da agressão, ainda está no poder e ainda dispõe de meios paraacudir a quem o solicite, com a possibilidade de evitar danos, aí é preciso exami-nar, em espécie, se terá ocorrido culpa, negligência, desleixo, descaso.

Menciona, ainda, em seu voto, o caso da “vanguarda”, em que acompa-nhara o voto do Ministro Annibal Freire, por entender que lá ficara provado que,na manhã de 24 de outubro de 1930, a polícia dera garantias a outros jornais, demodo a evitar as tropelias da multidão. No caso em tela, admite que outros jornaise estabelecimentos pediram auxílio à polícia e conseguiram garantias que evitaramas agressões.

Todavia, no presente caso, as garantias não foram dadas, pois, no dia 24 deoutubro, não mais havia chefe de polícia, uma vez que o Governo fora deposto,havia apenas a polícia organizada como aparelhamento administrado, com dele-gados e comissários. Argumenta que: “Ora, não creio, data venia, que possa oJudiciário ficar nesse critério pessoal de observação do movimento que, então, seprocessava na Cidade; temos de ficar com o critério que nos fornece a lei.”

Reconhece o Ministro Castro Nunes que, na data, existia polícia e adminis-tração pública, o que demonstra a existência de culpa da administração policial.Vota pela rejeição dos embargos, e o Supremo Tribunal Federal segue o seuentendimento.

Na Apelação Cível n. 7.209/RN57, o Supremo Tribunal Federal enfrentou aquestão da responsabilidade do ente estatal pelas conseqüências de movimentorevolucionário vitorioso, no caso a Revolução de 1930. Em seu voto, o MinistroCastro Nunes esclarece;

(...) na conformidade de minha orientação em casos idênticos, atendendo a que aRevolução de 1930, pela sua repercussão na vida política do país, não foi umepisódio, uma mera perturbação da ordem, mas um movimento a que aderiu aNação, e consolidou-se, inaugurando uma nova era na vida republicana, atravésdos dois regimes constitucionais que lhe seguiram. No quadro dos princípios queainda dominam o nosso direito positivo não é possível conceber a responsabi-lidade do Estado (tomada esta palavra na sua acepção genérica) sem o pressupostoda culpa.

57 Data da decisão: 12 de abril de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro reconhece que as tendências doutrinárias seguem outro funda-mento, com vistas a dilatar a responsabilidade estatal, prescindindo da culpa paraestabelecer a responsabilidade do Estado. No entanto, é categórico na posição deque fora da culpa não pode existir responsabilidade, e não pode o Poder Judiciáriodecretá-la sem que haja lei que o autorize a tanto. Entende que, nesses casos, areparação será a título de distribuição do dano sofrido por uma pessoa por toda acoletividade, e argumenta:

A revolução é, de seu natural, um fato contrário a direito. É um crimepolítico ao Estado, isto é, aos poderes constituídos cumpre reprimi-lo. Se da açãorevolucionária, do movimento armado resulta dano alguém, esse dano a não éreparável pelo Estado, a menos que se prove que ele, isto é as autoridadesconstituídas se mantiveram inertes, ou concorreram para o dano, por ação ouomissão.

Sustenta, ainda, que, se o poder constituído usou de todos os meios possíveispara conter o movimento, e não obteve êxito, o movimento armado era invencível,e foi isso que ocorreu na Revolução de 1930. É necessário aceitar o fato, do mesmomodo que o caso fortuito no cumprimento de obrigações. Conclui que:

Nem está obrigada a União a indenizar o dano causado pelas forçasrevolucionárias nem o que decorreu da repressão de movimento armado. Noprimeiro caso eram tropas que visavam a deposição do governo e a instalação deuma nova ordem de coisas ao país, agindo, portanto, em contrário às leis; nosegundo, a autoridade constituída pugnando pela observância dessas leis.

Assevera o Ministro que seria impossível falar de responsabilidade daUnião, pois, para ele, se há responsabilidade, é da Nação, que aceitou omovimento armado, todavia, sem culpa das autoridades com vistas a legitimarmedidas que visassem à reparação de danos em casos individuais.

RESPONSABILIDADE DO ESTADO DECORRENTE DE MOVI-MENTO REVOLUCIONÁRIO

A posição defendida pelo Ministro Castro Nunes em seus votos é no sentidode não ser possível a responsabilização do Estado em decorrência dos danoscausados à propriedade particular em época de revolução. Tal postura se devia aofato de Castro Nunes entender que as autoridades constituídas na ocasião fizeramtodo o possível para evitar os danos. Ele já havia manifestado esse entendimentoquando exerceu o cargo de juiz de primeira instância:

Os casos em que tive intervenção, como juiz, pronunciando-me por essaforma, terão sido, principalmente, aqueles em que o Poder constituído estava emluta aberta com os insurretos, procurando dominá-los, e, então, no decurso dessaluta, o dano causado à propriedade particular pelos revolucionários, combatidospelo Poder dirigente do país, não poderia envolver a responsabilidade da União.

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Ministro Castro Nunes

Todavia, no julgamento da Apelação Cível n. 8.720/DF58, admitiu a respon-sabilidade do Estado, pois, no caso sub examine, a autora (o jornal A Vanguarda)solicitou garantias à polícia, que, por sua vez, prometeu auxiliá-la. Verificou-se, noentanto, que essa garantia foi assegurada a outros jornais. Nesse sentido, concluio Ministro Castro Nunes que:

Assim, isso prova, pelo argumento decisivo, dos fatos, que a Polícia tinhameios para obstar a prática dos atentados, porque pôde evitá-los, nos outroscasos. Acresce a circunstância de que o Poder constituído apenas se transformou,passou, de um governo constituído, de direito, para um governo de fato, instituídopela Revolução, vitoriosa, sem solução de continuidade. Por conseguinte, à horaem que se deu o atentado, existia um governo; a Junta Militar; existiam autoridadessubordinadas.

O Ministro nega provimento ao apelo da União, e o Supremo TribunalFederal adota o mesmo entendimento no acórdão proferido.

CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS CAUSADOS PORINTERVENTOR NOMEADO

Nos Embargos na Apelação Cível n. 7.077/CE59, analisou-se a possibili-dade de pagamento de indenização decorrente de danos causados por culpados interventores e outros representantes no estado. O Ministro Castro Nunesesclarece que:

Não estava nem poderia estar nas atribuições do Presidente fomentar umarevolução para depor o governo de um estado. Portanto, os atos do governo nãoforam atos funcionais, e a regra é que somente esses acarretam a responsabilida-de do Estado.

O Ministro alerta que a aplicação absoluta desse princípio leva à negaçãodo pagamento da indenização, no entanto, entende que o estado não pode serresponsabilizado por tais atos, que, no caso, foram reconhecidos como obra departido político dominante, com a aquiescência do Governo Federal, que secolocou a seu serviço. Esclarece que:

Este caso, aliás, não é senão um episódio dos mais expressivos do que eraa política brasileira, da maneira por que se fazia política, servindo-se os partidosdo poder constituído para satisfazer os seus interesses e ambições.

O voto proferido pelo Ministro Castro Nunes é pela rejeição dos Embargos,e o Supremo Tribunal Federal segue o seu entendimento.

58 Data da decisão: 11 de janeiro de 1945. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.59 Data da decisão: 3 de setembro de 1941. Relator, Ministro Bento de Faria; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO POR ATOS DE PREPOSTOS DAUNIÃO

Na Apelação Cível n. 7.997/RN60, discutiu-se a possibilidade de pagamentode indenização em face de provas concludentes da responsabilidade da Uniãopor ato de preposto por ela nomeado. Tratava-se, no caso, de proprietário deterreno de marinha local que fora vítima de arrombamento, pelo serviço de malária,de paredões de barro que protegiam sua lavoura da invasão das águas salgadas,o que resultou na invasão da maré e na destruição de tudo que existia no terreno,sem que tenha ocorrido qualquer aviso ou consentimento do autor. Alega-se quese tratava de medida necessária aos interesses superiores da saúde pública nocombate ao mosquito da malária.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes esclarece que a questão versavasobre o direito de ser indenizado em decorrência do uso, pelas autoridadespúblicas, de suas atribuições legais. Reconhece que o serviço de malária poderiaadotar a medida em questão — abrir caminho sobre capinzal para as águas damaré com vistas a extinguir o foco do mosquito —, mas devia tê-lo feito comcautelas. Pondera que:

As medidas sanitárias, como, em geral, as oriundas do poder de polícia,pressupõem a necessidade pública e estão, quando autorizadas em lei, emprincípio justificadas. E são de sua natural detrimentos os da propriedadeatingida, mas o interesse público que as reclama não exclui a reparação, tais sejamas circunstâncias apreciáveis em espécie.

Explica o Ministro que, ainda que autorizadas por lei as referidas medidas,o Estado não se livra da reparação, que no caso não é oriunda do ilícito, mas do“acidente administrativo”, ou seja, da culpa dos agentes na execução. Entendeque a indenização cabe não só por causa do ato ilegal mas também pelo usoirregular das atribuições legais pelas autoridades públicas.

IMPOSSIBILIDADE DE PARTICIPANTE DE MOVIMENTOREVOLUCIONÁRIO EXERCER CARGO DE PARLAMENTAR

No Recurso Extraordinário n. 5.967/PE61, discutiu-se caso relativo àpossibilidade de recebimento de subsídio por parlamentar que, como suplente dedeputado estadual, diplomado pela Justiça Eleitoral, foi impossibilitado de assumira cadeira por encontrar-se preso por participar de movimento revolucionário

60 Data da decisão: 11 de setembro de 1944. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.61 Data da decisão: 22 de dezembro de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

(movimento comunista no Estado de Pernambuco). O Ministro Castro Nunes foirelator do processo e expôs a questão nos seguintes termos:

O essencial no caso é a resolução da Assembléia declarando o direito doreclamante. Este fora convocado e obstado pelas autoridades de acudir aconvocação. Quando, muitos meses depois, pôde comparecer, a Assembléiateve-o como deputado presente às sessões a que não pudera comparecer ereconheceu-lhe o direito ao subsídio correspondente.

Segundo o Ministro, se não existisse essa resolução da assembléia, odiplomando, ainda que no gozo das imunidades, não teria direito ao pró-laboresenão a partir da posse. Acrescenta que, a despeito desse fato, caberia, no caso,a análise de outros fatores, tais como a ilegalidade na detenção do diplomado sema devida licença da assembléia e o advento da sentença judicial absolutória.

Todavia, argumenta que a existência da resolução dispensa a análise dessesfatores, uma vez que se reconhece o direito do Deputado ao subsídio e à repre-sentação correspondente ao período em que esteve impedido de comparecer àssessões. Reconhece, portanto, implicitamente a existência de força maior, bemcomo a ilegitimidade do impedimento no exercício do mandato e esclarece:

É uma prerrogativa das Assembléias fixar o subsídio dos seus componentes.Isso está expresso na Constituição atual como nas anteriores. No exercício dessaatribuição não intervém o Executivo pela forma da colaboração consentida naelaboração das leis e que é a sanção. É uma atribuição incompatível e que por issomesmo tem o caráter de prerrogativa, inerente à soberania da Assembléia. O poderde fixar o subsídio envolve o poder de o atribuir por apreciação do fato da presençaàs sessões. É uma verificação que compete à Mesa e, com maior autoridade, aocorpo deliberante. Se, provocado a manifestar-se o plenário resolve dar comopresente a dada sessão ou sessões em determinado período um deputado impedidomaterialmente de comparecer, não vejo como se possa admitir o desconhecimentodessa deliberação pelo Executivo e até mesmo a revisão do ato pelo judiciário.

Castro Nunes chegou até mesmo a afirmar que não seria impossível, naépoca — tendo em vista as disposições constitucionais vigentes, que cogitavamda suspensão da imunidade parlamentar no estado de sítio ou no de guerra —,suspender de maneira legítima o exercício do mandado legislativo com aconseqüente perda do subsídio.

No entanto, ponderou que, no caso em tela, a fixação do subsídio, bemcomo a decisão sobre atribuição por apreciação da presença do Deputado, éprerrogativa da Assembléia. Vota pelo provimento ao recurso, e o Supremo Tri-bunal Federal decide nesse mesmo sentido, por unanimidade de votos.

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Ministro Castro Nunes

7. ANISTIA

CRIMES CONTRA A SEGURANÇA DO ESTADO

No Habeas Corpus n. 29.034/SP62, tratou-se da concessão de anistia emface de crime continuado, durante a Segunda Guerra Mundial. O primeiro pontoenfrentado pelo Ministro Castro Nunes, em seu voto, foi a data da prática docrime, que, de acordo com ele, ocorreu em dezembro de 1941, segundo constavado relatório e da exposição do relator.

Sendo assim, o crime imputado ao paciente não se encontrava abrangidopela anistia, que continha regra expressa excluindo os crimes definidos noDecreto-Lei n. 4.766, de 1942 (crimes contra a segurança do Estado). Vale dizerque o referido Decreto, em seu art. 67, tinha regra excepcional de retroação dalei penal, ou seja, admitia que a retroação pudesse alcançar os crimes cometidosaté a ruptura das relações do Brasil com as potências do Eixo, em janeiro de1942. Esclarece que:

É o mais que se pode conceder, porque seria mesmo discutível se essaretroação, para efeito de anistia, iria até janeiro de 1942, isto é, até a ruptura dasrelações diplomáticas, de vez que o Decreto de anistia parece restringir, porquediz: “(...) nem os praticados em tempo de guerra contra a segurança do Estado edefinidos em Decreto-Lei n. 4.766, de 1º de outubro de 1942”, donde decorre,prima facie, que são os crimes definidos no Decreto-Lei n. 4.766, praticadoscontra a segurança do Estado e cometidos já na vigência do Estado de Guerra,que data de agosto de 1942. Mas, penso que seria talvez possível levar aretroação expressa, como está, à ruptura das relações, que pode não levar sempreà guerra com o país com o qual se rompem as relações diplomáticas se bem que,no caso do Brasil, a ruptura das relações se seguiu a declaração de guerra.

O Ministro prossegue afirmando que o fato pelo qual é acusado o pacienteé anterior, ainda que se trate de dias e não de semanas, a essa ruptura e é,portanto, muito anterior ao estado de guerra. Por essa razão, concede o habeascorpus, decisão acolhida pelo Tribunal por maioria de votos.

EFEITOS DA CONCESSÃO

Na Apelação Cível n. 8.781/DF63, tratou-se dos efeitos da concessão deanistia. No caso, o Governo Provisório havia concedido anistia aos comprometidosnos movimentos revolucionários ocorridos no País a partir de 1922. Tratava-se deanistia ampla, uma vez que estabelecia o silêncio perpétuo, como se nunca tivessem

62 Data da decisão: 23 de maio de 1945. Relator, Ministro Bento de Faria; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.63 Data da decisão: 12 de junho de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

existido os processos e as sentenças relativos a esses mesmos fatos. Acrescentou-se a essa anistia que, excluídos os vencimentos correspondentes ao tempo emque estiveram afastados das fileiras, esse tempo lhes seria contado para os de-mais efeitos legais.

O Decreto n. 19.395, de 8 de novembro de 1930, concedeu anistia aoscivis e aos militares que se encontravam envolvidos em crime político. Em funçãodesse Decreto, os antigos alunos da Escola Militar, dela excluídos em 1922, porterem participado do movimento civil de julho do mesmo ano, puderam regressarao Exército.

Concluiu-se que o período em que os anistiados ficaram afastados dasfileiras seria contado para todos os efeitos legais, como se em exercícioestivessem, com exceção da possibilidade de contar como tempo de serviço paraperceber vencimentos.

Editou-se o Decreto n. 19.551 em 31 de dezembro de 1930, que dispôssobre os ex-alunos da Escola Militar e estabeleceu que os que apresentassemtítulos científicos de médicos, farmacêuticos, veterinários ou cirurgiões-dentistaspoderiam optar pela inclusão em qualquer desses quadros do corpo de saúde, nospostos que lhe competissem no quadro das suas armas, sujeitos, porém, a estágioprévio nas escolas de aplicação do serviço de saúde e de medicina veterinária. ODecreto n. 19.551 também dispunha que os ex-alunos abrangidos pela Lei deAnistia que exercessem qualquer função pública civil e não quisessem seaproveitar dos seus benefícios contariam para todos os efeitos, nas funções civisque exercessem, o período de tempo entre a exclusão do Exército e a data danomeação para essa função.

Para Castro Nunes, ficou claro que ambos os decretos estabeleciam acontagem da antiguidade dos ex-alunos a partir do desligamento ou da subleva-ção que o motivou. Acrescenta que, de outro modo, seria impossível admitir acontinuidade que se teve como não interrompida.

O pedido do autor funda-se também no Decreto n. 28.461, de 3 de junhode 1932, que, em obediência ao pensamento declarado de respeitar os direitos deterceiros — os oficiais preexistentes nos quadros militares ao tempo da inclusãodos anistiados diplomados —, gerou para estes um quadro separado, qual seja, oQuadro A, para o qual eles foram transferidos. Contou-se-lhes a antiguidade parapromoções a partir do término do estágio nas escolas de aplicação do serviço desaúde e de medicina veterinária.

Esclarece o Ministro Castro Nunes que o supracitado Decreto restringiuos direitos já assegurados na Lei de Anistia, pois a contagem de tempo dos anis-tiados já estava admitida sem outra restrição que a referente aos vencimentos,pelo disposto no Decreto de 8 de novembro. O Decreto de dezembro desenvol-

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Ministro Castro Nunes

veu a idéia de reparação ou compensação em benefício dos anistiados. Em seuvoto, o Ministro traça as linhas conceituais do instituto da anistia:

A anistia, uma vez concedida é irrenunciável e irrevogável. Nem pode oanistiado renunciar aos benefícios dela decorrentes, porque preponderante ointeresse público do apaziguamento que ela tem em vista realizar, nem pode oParlamento ou Governo Revolucionário que a decretou voltar atrás para e revogá-la ou restringi-la, porque ela é por definição perpétua, suprime a infração e apaga-lhe os efeitos, esquece os fatos, lex oblivionis que seria inútil e contraditória coma sua inspiração mesmo se fosse possível ao Poder que a concedeu dar dito pornão dito, consoante às circunstâncias supervenientes.

Acrescenta, ainda, que esse pensamento de purificação não se sujeita anenhuma medida, não possui limites que visem a impedir a restauração dosdireitos dos anistiados, se o poder competente para decretá-la entender que essarestauração deve ser tão completa que sacrifique até mesmo direitos deterceiros. Esclarece: “Esses terceiros são em regra as vítimas da infração, àsquais, no silêncio da lei da anistia, fica reservado promover contra o criminoso areparação devida com base no Direito Civil.” Ressalta que não é disso que tratao presente caso, visto que os terceiros não sofreram danos provenientes dainfração, mas sim de interpretação da anistia, que acaba por colocá-los emsituação inferior à dos anistiados. Assevera;

Ora, se essa interpretação, da qual se afastou o Decreto de 1932, é averdadeira, porque assentada na letra do Decreto da anistia e nos motivos de suainspiração, o que é possível dizer é que a lei da anistia desconheceu o direitoadquirido daqueles oficiais do corpo de Saúde, e que estava irrecusavelmente aoalcance do legislador.

O Ministro Castro Nunes declara que o Presidente da República, em con-sonância com o parecer do Supremo Tribunal Militar e das Consultorias-Gerais daRepública, restaurou os efeitos da Lei de Anistia em face da reclamação dosanistiados mudados de colocação em virtude do Decreto de 1932; afastou, portanto,esse decreto.

Ao longo do julgamento, o Ministro Castro Nunes trava interessantedebate com o Ministro Annibal Freire, que entendia ser impossível o Decreto deanistia ferir direitos definitivamente assegurados de terceiros. O Ministro CastroNunes argumenta que isso é admissível e o Decreto poderia até desconhecer assituações, desde que o fizesse expressamente. O Ministro Annibal Freireargumenta, em contrário, que tal situação contraria as regras jurídicas e adoutrina, mas o Ministro Castro Nunes discorda.

Afirma o Ministro Annibal Freire: “Pode estabelecer limites e comportarrestrições em relação aos beneficiários da medida, mas não ferir direitosadquiridos de terceiros.”

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Castro Nunes alega: “Mas pode estar no fim, no apaziguamento,a restituição integral de todos os direitos.”

O Ministro Annibal Freire rebate dizendo que isso é impossível se ferirdireitos de terceiros que estavam assegurados por leis anteriores, sendo ilegítimo aolegislador feri-los, mas, para o Ministro Castro Nunes, presumem-se não violadosos direitos de terceiros. Esclarece: “O princípio é verdadeiro: a anistia presume-senão afetar direitos de terceiros, salvo se o legislador disser expressamente.”Argumenta Annibal Freire:

A anistia pode restringir direitos assegurados aos beneficiários; elapode ser limitada, mas a anistia ferindo situações jurídicas regulares, definitiva-mente constituídas não me parece legítimo. Por isso mesmo, tem sido adotada asolução intermediária de criação de quadros paralelos, nos diversos setores daAdministração, medida justamente tomada para salvaguardar esses direitosdos beneficiados coma anistia e direito encontrado como definitivo ao sobreviresse decreto apaziguador.

Replica o Ministro Castro Nunes: “Os precedentes decorriam da própriaanistia, porque houve anistias restritivas, ainda assim com quadros paralelos, masesta não foi restritiva.”

Ele profere voto fixando que agiu corretamente o Presidente. Julga, por-tanto, improcedente a ação e dá provimento ao recurso de ofício e às apelações.O Supremo Tribunal Federal nega provimento ao recurso e às apelações.

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Ministro Castro Nunes

8. COMPETÊNCIA

COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Castro Nunes, em seus votos, sempre ressaltou a função e a competênciado Supremo Tribunal Federal, que, em sua interpretação e tendo em vista suafinalidade constitucional, é mais do que um tribunal comum:

É uma “quase legislatura” de suplementação do Direito escrito. Suasdecisões superam os textos legais, que ele completa como órgão “político” na“construção” do direito. A jurisprudência de um tribunal dessa estatura consti-tucional — árbitro supremo e inapelável na revelação do Direito — é a fontemais categorizada do nosso Direito aplicado, e deve ser estudada, analisada,criticada, aplaudida, seja nas conclusões adotadas, seja na fundamentação dosjulgados e dos votos vencidos.64

No Agravo de Instrumento n. 12.466/DF65, enfrentou-se questão relativaao local adequado para causas contra a União quando o autor é pessoa de direitoprivado com domicílio múltiplo.

O Ministro Castro Nunes ressalta que a jurisprudência do SupremoTribunal Federal, consoante o disposto no Decreto n. 3.084/19, é no sentido deque, em se tratando de causas que tenham por objeto atos praticados nos estadosou que nestes tivessem de produzir efeitos, não precisam ser propostas noDistrito Federal e sim no juízo seccional respectivo. O Código Civil ampliou essacompetência para os fatos.

Esclarece o Ministro que o juiz federal tinha competência para, em cadaestado, conhecer das demandas decorrentes das autoridades federais nelesediadas. Isso implicava o fato de que o particular que estivesse litigando com aUnião tinha o direito de propor a demanda no foro de seu domicílio, qual seja, ojuízo federal no estado em que tivesse domicílio. Todavia, entende que não foiessa a razão do conteúdo do Decreto n. 3.084/19 e do Código Civil:

A razão era de ordem objetiva, atendia à natureza da demanda, à origem dalesão, visando confinar a discussão do ato administrativo e a prova dos fatosimputados às autoridades da União no Estado onde houvesse sido expedido oupraticado, com os meios de prova mais à mão e mais fáceis esclarecimentos aobter da autoridade federal sediada no Estado, vantagem para o particular-autor

64 NUNES, José de Castro. Soluções de direito aplicado. Livraria Freitas Bastos, 1953.p. VI.65 Data da decisão: 27 de junho de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

e também para a união-ré na demanda, O objetivo era ajuizar a relação jurídica noforo federal sem sair do Estado onde houvesse ocorrido a lesão do direito. Não setinha em vista assegurar ao Autor o foro do seu domicílio estadual, isto é, nãoseria indispensável que o Autor fosse domiciliado ou residisse no Estado em cujasecção judicial tivesse de aforar a ação.

Relembra que a Carta de 1937, em seu art. 107, estabeleceu que, comexceção das causas de competência originária do Supremo Tribunal Federal, todasas demais seriam de competência da Justiça dos estados e do Distrito Federal oudos Territórios. Portanto, segundo o Ministro, houve declaração virtual da extinçãoda Justiça federal de primeira instância, determinou-se que as causas da União nãoseriam proponíveis em qualquer comarca do interior, mas apenas no foro da capitalde cada estado. Estabelecia o art. 108 da Constituição de 1937:

Art. 108. As causas propostas pela União ou contra ela serão aforadas emum dos juízes da Capital do Estado em que for domiciliado o réu ou o autor.Parágrafo único. As causas propostas perante outros juízes, desde que a Uniãonelas intervenha como assistente ou opoente passarão a ser da competência de umdos juízes da Capital, perante ele continuando o seu processo.

O Ministro Castro Nunes entende que a descentralização do foro competentepara as causas da União é definida pelo domicílio das partes, ou seja, rationepersonarum. Não tem mais importância o fato de o ato lesivo ou o fato jurígenoter sido expedido ou ocorrido em outro estado. Sustenta que:

Basta, portanto, ser domiciliado em qualquer ponto do território de umdado Estado (domicílio legal, regido pelo direito comum, e subsistente paraquaisquer outras relações jurídicas) para que o particular possa acionar a Uniãonesse mesmo Estado, sem necessidade de vir ao Distrito Federal, onde têm sedeos poderes constitucionais da República.

De acordo com o Ministro, a definição fornecida pelo Texto Constitucionalde conferir competência a cada Justiça estadual para as causas propostas contraa União tem por requisito único o fato de o autor ser domiciliado no estadoperante cuja Justiça chamou a União, daí se depreende que “à mesma regraconstitucional ficou sujeita a União quando autora, nos termos literais do preceitoconstitucional.”

Todavia, o domicílio constitucional da União é no Distrito Federal, mas nãohá negar que se encontra em todo o território nacional, por suas autoridades.Castro Nunes defende aqui a aplicação subsidiária do § 1º do art. 35 do CódigoCivil, para definir que as causas originadas da ação administrativa das autorida-des federais em cada estado são proponíveis perante a Justiça de primeira instân-cia e a competência é da comarca da capital do estado. Esclarece que:

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Ministro Castro Nunes

A competência privilegiada do foro da capital do Estado manteve o que jáexistia ao tempo dos juizados federais, que eram sediados na capital de cadaEstado, centralizando-se nele as causas em que fosse parte a União. O parágrafoúnico do art. 108 obedece ao mesmo pensamento quando manda convergirempara o juízo da capital as causas entre terceiros aforados nas comarcas do interior,desde que neles intervenha a União como assistente ou opoente.

O Supremo Tribunal Federal negou provimento por unanimidade ao agravo.

COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERALNO PLEITO DE ESTADO CONTRA TERCEIROS COM INTERESSEDA UNIÃO

Na Ação Cível Originária n. 58/SP66, tratou-se da competência origináriado Supremo Tribunal Federal nos pleitos de estado contra terceiros — desdeque ocorresse a superveniência de interesse da União —, bem como do desa-parecimento dessa competência em face do fim da controvérsia que legitimoua intervenção da União na causa.

O Ministro Castro Nunes proferiu voto como relator do referido acórdão,que tratava de ações discriminatórias do Estado de São Paulo, levadas a efeitocom base na legislação estadual referente à definição de perímetros diferentesdo Município de Presidente Venceslau. Foram citadas pessoas determinadas einteressados incertos que intervieram na demanda no juízo da comarca, queformavam propostas até o momento em que a União alegou tratar-se de terrasmarginais de rios navegáveis, o que legitimava seu interesse, com base no TextoConstitucional e no Código de Águas, que lhe reservavam a servidão dosterrenos marginais dos rios navegáveis que banhavam mais de um estado. Nocaso em tela, tratava-se do rio Paraná e do rio Paranapanema.

O Ministro, em seu voto, esclarece que se tratava de desaforamento dasdemandas em que figurasse como parte estado, desde que verificada a interven-ção da União para que se configurasse a competência originária do SupremoTribunal Federal.

Uma vez fixada a competência originária, Castro Nunes atentou para o fatode que isso resultaria na necessidade de o Supremo Tribunal Federal processar ejulgar, no caso, causas demarcatórias e divisórias e outras quaisquer, realizandodiligências probatórias onde se fizessem necessárias, algumas presididas pelopróprio relator do feito, que figuraria como juiz preparador das causas decompetência originária. Esclarece, ainda, que a competência acabou por serdefinida pelas Turmas, ao confirmarem os despachos do juiz da Fazenda Públicaque se tinha declarado incompetente.

66 Data da decisão: 24 de novembro de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

Contudo, o Ministro entende que não está impedido de reexaminar aquestão em Plenário, e assevera:

A meu ver, e não obstante reconhecer que a inclusão na competênciaoriginária da causa entre um estado e particulares pela superveniência de interesseda União e da posição que esta assume na lide (ou na hipótese inversa um Esta-do) como assistente ou opoente, acarrete conseqüências de ordem prática dignade meditação, não vejo como chegar a conclusão contrária da adotada, querdiretamente no julgamento dos agravos, de que foram relatores perante as turmasos Ministros Annibal Freire e Waldemar Falcão, aliás por votação unânime, querindiretamente pelo Tribunal Pleno, no agravo do despacho do relator, Ministro JoséLinhares, também por unanimidade.

O Ministro Castro Nunes observa que o objetivo do dispositivo constitu-cional, que já constava das Constituições anteriores, não era apenas o de retirarda competência local, mas sim das instâncias federais inferiores, os julgamentosdas controvérsias entre os estados e a União ou entre os estados, em virtudejustamente do alcance político das controvérsias que tenham, nas questões delimites, o “caso-padrão”.

Todavia, salienta que não é necessário que a ação tenha sido primeiramenteintentada pelo estado em face da União ou pela União em face do estado. Entendeser suficiente que, em um mesmo pleito entre terceiros, um desses entes ingressecontra o outro em bases suficientes para configurar controvérsia que, então,deverá ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, formula aseguinte indagação:

Mas será possível que este prossiga no processamento, aproveitando osatos ordenatórios e probatórios da instância inferior? Ou terá de mandar que seinstaure novo juízo, citada a União inicialmente na pessoa do Procurador-Geral daRepública e processado o feito perante o Ministro Relator designado nos termosdo Regimento?

Ele responde a essa questão referindo-se ao fato de que, na competênciaoriginária, com exceção da ação rescisória, a competência não se limita apenas aojulgamento, mas também é competência para processar, consoante o expressa-mente estabelecido no Texto Constitucional. Argumenta não ser aplicável ao caso oprincípio da economia processual, constante do Código de Processo Civil, que é leiinfraconstitucional, em virtude da necessidade de observância da Constituição.Sustenta que:

Sendo assim, impossível se me afigura continuar no processamento, dandopor válido o que se fez na comarca de Santo Anastácio e no: juízo dos Feitos daFazenda, de que resulta que o julgamento a proferir seria o pronunciamento danulidade de todo o procedimento.

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Ministro Castro Nunes

Ao prosseguir na análise do caso, Castro Nunes ressalta que, conformeconsta dos autos, a controvérsia cessou, desapareceu. Portanto, conclui-se que acompetência originária segue o mesmo desiderato, porquanto confessado opedido da União nos termos da sua própria impugnação. Tanto é que seusrepresentantes apenas continuam em juízo pela razão teórica do mandamentoconstitucional. Conclui que:

A competência originária, mesmo estendida as causas em que a Uniãoapenas intervenha, não pode ir ao extremo de subsistir quando se verifique emconcreto que essa intervenção perdeu a sua razão de ser, não havendo mais,praticamente sobre o ponto litigioso, nenhuma controvérsia.

Para o Ministro Castro Nunes, o caso concreto configura exceção a seradmitida, de modo que julga incompetente o Supremo Tribunal Federal paraprocessar e julgar a ação, ordenando que os autos voltem ao juízo em que seiniciou a causa. No entanto, ressalva expressamente o direito de a União intervirno pleito, se ocorrer impugnação de seu direito pelo estado, somadas todas asconseqüências que daí resultarem. O Supremo Tribunal Federal se declarouincompetente na ação por unanimidade.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO NÃO SUSCITADO PELOS ESTADOS

No Conflito de Jurisdição n. 1.384/AL67, analisou-se questão que versavasobre conflito suscitado por inventariante a propósito de precatória remetida àJustiça de Pernambuco pela Justiça do Estado de Alagoas. O Supremo TribunalFederal declarou competente para a realização do inventário o juízo da Comarcade Madre de Deus, em Pernambuco, mas o Procurador da Fazenda de Alagoasrequereu e obteve do juízo de ação que fosse o inventariante intimado a pagar oimposto de transmissão causa mortis ao Estado de Alagoas.

O juiz de Recife não atendeu a representação do colega da Comarca deMadre de Deus e negou cumprimento à precatória. Uma vez iniciado o inventário,recebeu o inventariante ofício do Procurador da Fazenda de Alagoas cobrando opagamento do imposto. Requereu ao juiz do inventário que fosse atendida areclamação, mas este a indeferiu. O Estado de Alagoas persistiu no seu propósito esuscitou o presente conflito de jurisdição.

O Ministro Castro Nunes ressaltou, em seu voto, entendimento já manifes-tado em outros casos no Supremo Tribunal Federal — em que, no entanto, restoucomo voto vencido —, no qual define o conflito misto — que o Regimento Internodo Supremo Tribunal Federal define como conflito de atribuições — como o

67 Data da decisão: 18 de novembro de 1942. Relator, Ministro Laudo de Camargo;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

conflito entre autoridade judiciária e administrativa, sendo uma federal e outraestadual, ou entre autoridades estaduais, desde que se trate de estados diferentes.

No entanto, revisou a posição inicialmente assumida, para admitir o conflitode jurisdição nos casos de conflito entre Executivos de estados diferentes, desdeque sem a intervenção da Justiça, entre autoridades administrativas de entesestatais diversos ou entre autoridade estadual e autoridade federal. Ressalva,contudo, que a última hipótese é difícil de acontecer, no entanto a admite em tese,doutrinariamente.

O voto do Ministro, no caso em estudo, é no sentido de conhecer doconflito. Na discussão travada com o Ministro Orozimbo Nonato, entende que acompetência é do Estado de Pernambuco, mas reconhece a possibilidade de oEstado de Alagoas vir a suscitar novo conflito.

Pergunta o Ministro Castro Nunes ao Ministro Orozimbo Nonato: “AdmitiriaV. Exa. conflito puramente administrativo, o conflito entre os Executivos de doisestados? Então, V. Exa. estaria de acordo comigo, nos meus votos anteriores.Dou-me parabéns por isso.”

Argumenta o Ministro Orozimbo Nonato: “Admitiria em tese. O que nãoadmito é o conflito entre a autoridade administrativa e a judiciária. Tratando-se deduas autoridades administrativas, estou convencido, em face da Constituição, daprocedência do voto de V. Exa. Mas creio que tal conflito não foi suscitado.”

Por fim, esclarece Castro Nunes que, no conflito entre autoridades admi-nistrativas, está-se diante do que ele denomina de “conflito de atribuições” e nãode jurisdição, visto que, em regra, as autoridades administrativas não exercemjurisdição.

O Supremo Tribunal Federal proferiu acórdão não conhecendo do conflito.

COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA CONHECERDE CAUSAS EM QUE SEJA PARTE AUTARQUIA

No Agravo de Petição n. 10.835/SP68, analisou-se a competência doSupremo Tribunal Federal para conhecer de causas de interesse exclusivo daEstrada de Ferro Central do Brasil, depois de ter sido erigida à categoria deautarquia, desfrutando, conseqüentemente, de plena autonomia patrimonial.

O Ministro Castro Nunes afirma, em seu voto, que não basta estar emcausa a administração pública, para que seja competente o Supremo Tribunal

68 Data da decisão: 7 de janeiro de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

Federal. Acrescenta que a administração federal, assim como a estadual ou amunicipal, faz-se direta ou indiretamente. Para ele, a administração direta é aadministração centralizadora, ou seja, a administração propriamente estatal,enquanto a indireta faz-se sob duas formas principais: a) na forma paraestatal,que são as autarquias, entes instituídos por lei, dotados de personalidade jurídicaprópria; ou b) por meio de pessoas privadas, que são entes que recebem aexecução dos serviços públicos e ficam sub-rogados nessa execução comoconcessionários.

Assevera Castro Nunes que, em qualquer dessas duas modalidades, a ad-ministração pública está em causa, pois tanto a autarquia como as empresasconcessionárias são executoras de serviço público. O que ocorre nessas circuns-tâncias é que o Estado descentraliza, desconcentra certas atividades, que serãoobjeto de execução por intermédio de terceiros. No entanto, enfatiza que:

Está sempre em germe o interesse público em qualquer desses casos; é,sempre, a administração pública, que se exercita, que se realiza, que se faz, poresta ou por aquela forma. Mas bastará isso para que se autorize a competência doSupremo Tribunal Federal? Bastará o reconhecimento do interesse inquestionável,implícito, irrecusável, da União, em todos esses casos, na execução de todosesses serviços, que ela delega, bastará isso para que se autoriza a competênciadeste Tribunal? Não.

Reconhece o Ministro Castro Nunes que, na Constituição de 1891, nãohavia cláusula expressa a respeito, mas, com o advento da Constituição de 1934,houve maior entendimento para a averiguação desse interesse funcional,estabelecendo que seria competente o Supremo Tribunal, nos casos em que aUnião fosse autora, ré, assistente ou oponente, sendo necessário, portanto, que aUnião tivesse posição processual no feito, intervindo sob qualquer das formas,seja como assistente, seja como oponente. Note-se que a Constituição de 1937,em seu art. 108, repetiu esse dispositivo constitucional. Bastaria, portanto, que aUnião interviesse como auxiliar de uma das partes ou para se opor ao direito dequalquer delas. Se a União não interviesse no feito, não tomasse posiçãoprocessual, não teria o Supremo Tribunal competência para apreciar a questão.

No entanto, atenta para o aspecto político que envolve essa questão. Valedizer que a análise do aspecto político é constante nos votos do Ministro CastroNunes. Ele argumenta que, uma vez admitida a competência do SupremoTribunal Federal para apreciar as causas em que a Estrada de Ferro Central, oIpasse e outras grandes autarquias fizessem parte, em virtude dos mesmosfundamentos surgiria a competência do Supremo Tribunal para apreciar ascausas em que fossem partes as pequenas autarquias, como as Caixas de pensãoe de aposentadoria.

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Ora, teria a Corte Suprema de arcar com o julgamento dos agravos eapelações de todos esses entes autárquicos. O Ministro realça, ainda, o fato deque a descentralização da administração dessa forma se encontrava em moda daépoca, o que contribuiria enormemente para o aumento do número de processosno Supremo Tribunal Federal. Tendo em vista esses aspectos, leva a cabointerpretação restritiva da competência da Corte Suprema:

Nestas condições, embora reconhecendo que é irrecusável o interesse daUnião; que este existe, em geral, em todas as autarquias e, por isto, é razão paraque, em todas, se alegue esse interesse, pois elas não estão fora da tutela normalda União, havendo, portanto, motivo para que os procuradores regionaisrequeiram assistência em todas as causas ou, pelo menos, em algumas delas, maisrelevantes não posso deixar de aderir ao voto do Sr. Ministro Relator, com o qualestou de acordo para não conhecer da apelação.

O Ministro Castro Nunes vota pelo não-conhecimento da Apelação, e éesse o entendimento prevalecente na decisão proferida pelo Supremo TribunalFederal.

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Ministro Castro Nunes

9. IRRETROATIVIDADE DE LEI

DIREITO ADQUIRIDO

Na Ação Rescisória n. 112/DF69, o Ministro Castro Nunes enfrentou otema da retroatividade das leis, ao analisar o art. 1.572 do Código Civil, quedeclarava transmitido aos herdeiros legítimos e testamentários o domínio daposse da herança, desde que aberta a sucessão. No entanto, o Decreto-Lei n.1.907 suprimiu o direito dos sobrinhos do de cujus, visto que estabeleceu, em seuart. 6º, que suas disposições se aplicariam “aos processos em curso”.

A questão que se apresentava era a de saber se se aplicava ou não oDecreto aos processos em curso, ou seja, se equivaleria a cláusula retroativaexpressa, cuja finalidade era desconhecer os direitos adquiridos decorrentes dassucessões já abertas. Nesse particular salienta o Ministro Castro Nunes:

Processos em curso não seriam as arrecadações que, consoante o CódigoCivil, não poderiam existir havendo herdeiros sucessíveis que, na linha colateral,não seriam somente os irmãos, o que importa em dizer que tais heranças seriaminventariadas. Daí resulta que foi precisamente aos inventários que quis referir-seo Decreto-Lei, vale dizer, às sucessões abertas e em curso de inventário, ou, pormelhor razão, antes de começado o inventário.

Portanto, o sentido atribuído pelo Ministro à expressão “processos emcurso” não é outro senão o de “inventário em curso”, ou seja, ainda não encerrado.Nesse sentido, entende que o propósito da lei foi desconhecer o direito adquiridoà herança por aqueles que, diante da nova legislação, perderam a condição deherdeiros. Continua: “Não aplicando às sucessões abertas, o Decreto-Lei 1.907não seria retroativo.” Assim não violaria nenhum direito adquirido, mas apenasexpectativas de direito. Argumenta ainda:

Estava ao alcance do legislador dar à nova preceituação efeito retroope-rante. Podia fazê-lo, ou não, e não hesito em dizer que não o deveria ter feito. Aconveniência pública de dar um fundo às leis de proteção à família não justificaa injustiça que se traduziu no trancamento de inventários em andamento, com aespoliação daqueles que já tinham adquirido o direito à herança à sombra da leientão vigente. Mas não será isso uma conseqüência da liberdade que se deixouao legislador para atropelar as situações jurídicas já definitivamente constituídas?Não acontecerá isso em tantos outros casos em que a perfeição jurídica dodireito atingido mostra a injustiça da solução legislativa, traduzida num verdadeiroconfisco?

69 Data da decisão: 8 de julho de 1845. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

A posição pessoal de Castro Nunes é clara: repugna ofensas a direitosadquiridos e assenta que o interesse público, em nome da segurança e daestabilidade das relações jurídicas, aponta no sentido de protegê-los, não dedesconhecê-los. Cumpre dizer que ele propôs, na Comissão do Itamaraty, amanutenção da cláusula restritiva da ação do parlamento, tendo como limite odireito adquirido, na sua tríplice feição constante do Código Civil de 1916.

Todavia, o Ministro restou vencido. Alerta que o princípio da irretroatividadeassegurado constitucionalmente caiu em declínio no século XIX, deixando grandeespaço de atuação para o Parlamento, por meio de suas ações, realizar o bempúblico, ainda que para tanto tivesse que violar direitos constituídos com funda-mento em lei anterior. Propõe a necessidade de se encontrar equilíbrio — ponde-ração de valores — nessas decisões:

Já hoje seria preciso rever a condenação do velho princípio, para encontraralguma solução média, que atenda, por um lado, à conveniência de extirpar insti-tuições que devam ser removidas e, por outro, aos fins da tutela jurisdicional quese amplia com o crescente desenvolvimento da revelação jurisprudencial do direito,no ponto de dizer Duguit, insuspeito de exagerar as garantias individuais, que oprincípio da irretroatividade é uma regra superior da ordem jurídica. Em nossoatual direito público, está consentido ao legislador arredar os direitos adquiridos.Tais direitos são também os já proclamados pelos tribunais, mediante decisõestransitadas em julgado. Por isso mesmo, na França, há exemplos conhecidos deleis que alcançaram sucessões liquidadas a partilhados. Isso, porém, não seriapossível entre nós.

A não-aplicação dessa solução ao sistema jurídico brasileiro se deve,segundo o Ministro, não à noção de direito adquirido, mas sim ao fato de aquestão estar plasmada no nível constitucional, por meio da construção degarantias da função judicial e da independência do Poder Judiciário. Tal óbiceconstitucional resultaria intransponível para o legislador ordinário.

No caso em análise, a ofensa ao direito adquirido à herança ainda nãoadjudicada não implica, em hipótese alguma, o cancelamento do julgamento.Nesse sentido, elucida que há diferença entre retroatividade restitutiva eretroatividade ordinária:

Roubier estabelece a distinção entre retroatividade restitutiva, que seriaessa, e retroatividade ordinária, que, a meu ver, é a hipótese de uma herança queesteja sendo inventariada, mas que ainda não foi liquidada e partilhada. Érestitutiva a retroação que manda devolver o que se recebeu ou repetir o que sepagou, efeitos já realizados de um direito que se esgotou, pelo assentimento outransação das partes seria restitutiva a retroação que reabrisse uma demanda jáencerrada, um julgamento terminativo da controvérsia — quoe judicata, transacta,finitave sunt, rata nomeant, já o diziam os romanos. Ambas as modalidades sãocondenadas, ainda que em outros países se admita que mesmo a segunda estejaao alcance da lei.

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Ministro Castro Nunes

Contudo, no caso presente, entende que não houve violação ao direitoadquirido, portanto a ação é improcedente. Na decisão proferida pelo SupremoTribunal Federal nessa ação, restou vencido o Ministro Castro Nunes.

Na Ação Rescisória n. 7670, discutia-se a possibilidade de — após acondenação em execução fiscal, diante do surgimento de decreto extinguindo aobrigação de cobrança — a parte, na execução, alegar o fato e o juiz atendê-la.

O Ministro Castro Nunes manifestou-se no sentido de que o decreto-leinão configura renúncia apresentada pela União, pois, ao expedir decreto, ela agecomo Poder Legislativo e não como parte na lide processual. Vale dizer que, nalide, o Ministério Público, autorizado pelo Ministério da Fazenda e pelo Presidenteda República, poderia desistir da ação, mas não o fez, pelo contrário, insistiu noprosseguimento.

O Ministro Orozimbo Nonato, por sua vez, manifestou entendimentodivergente, alegando que, a despeito de o Ministério Público ser o órgão comcapacidade para representar a vontade da União, sobre ele “se ergue umavontade superior, que é a da lei, a interpretação cabe ao juiz.”

Pondera o Ministro Castro Nunes que, justamente por se tratar de lei, comvalidade geral, aplica-se a todos que se encontram em idêntica situação. Todavia,no tocante a um desses contribuintes, há a coisa julgada. Argumenta que: “não épossível mais rescindir esse julgado, por efeito de lei posterior; ainda porque seriaum precedente que não devemos admitir, isto é, que a coisa julgada seja acessívela qualquer meio estranho ao próprio Tribunal.”

O Ministro Orozimbo Nonato abre exceção à regra exposta pelo MinistroCastro Nunes: em se tratando de lei, é permitida essa violação. Nesse particular,enfatiza o Ministro Castro Nunes que “a lei não pode invalidar ou infringir, dequalquer modo, uma relação jurídica decidida pelo Supremo Tribunal.”

Argumenta, ainda, que, quando o Estado quer desistir de seus direitos, emface de julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, deve fazê-lopelos instrumentos adequados ou, ainda, pelo ingresso de ação rescisória, masnão por meio da edição de lei. Sustenta que: “De fato, se o Poder Público, por leiposterior, reconheceu inequivocamente a isenção, deu à lei vigente ao tempo dasentença uma interpretação autêntica que faz corpo com a lei anterior.”

O Ministro Castro Nunes julga procedente a ação rescisória, e foi essa aposição adotada pelo Supremo Tribunal Federal no caso.

70 Data da decisão: 24 de julho de 1942. Relator, Ministro Laudo de Camargo; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

DECISÃO JUDICIAL

Na Apelação Cível n. 8.190/DF71, analisou-se questão relativa à asseme-lhação dos vencimentos dos funcionários da secretaria do Supremo Tribunal Fe-deral aos da secretaria da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, segundodisposição legal (Lei n. 5.622/28) e por acordo transitado em julgado (ApelaçãoCível n. 7.086), sem prejuízo das vantagens estabelecidas pelo Decreto 3.800, de6 de novembro de 1941, pagando-lhes a diferença de vencimentos decorrente daassemelhação decretada em face da Lei n. 284/36, que reorganizava os quadrosdo funcionalismo, mas que, em seu art. 5º, acabou com as assemelhações.

O Ministro Castro Nunes delimita a controvérsia para deixar claro que aquestão versa sobre as conseqüências de assemelhação levada a cabo peloSupremo Tribunal Federal, restando sem importância a indagação consistente emsaber se a lei que fundamentou tal julgado favorecia ou autorizava essaassemelhação:

Desde que o Supremo Tribunal se pronunciou e assentou que a asseme-lhação existia, com base na lei — temos caso julgados que não podemos voltar adiscutir. Com base no caso julgado, considero que a assemelhação decretada épara todo o sempre. Uma vez decretada a assemelhação, o próprio fundamentodela está indicando que ela não pode encontrar limite em lei alguma.

Se o Supremo Tribunal Federal reconhecesse legítima a assemelhação,qualquer alteração sofrida — qualquer majoração deferida aos funcionários doParlamento — teria de se aplicar aos funcionários do Supremo TribunalFederal. Isso estava implícito na equiparação decretada: a repetição dosacréscimos estender-se-ia aos funcionários do Supremo Tribunal Federal.Todavia pondera que:

De outro modo, data venia, estaria frustrada a execução do próprioacórdão. Estaria nas mãos do legislador não cumpri-lo. Ora, se o direito adquirido,na vigência da atual Constituição, não prevalece para o legislador, que podedesconhecê-lo, há, entretanto, uma hipótese de direito adquirido que lhe éinacessível. É o direito adquirido oriundo de sentença. A coisa julgada tem porconteúdo direito adquirido, direito adquirido formal. E este é inacessível aolegislador, que não pode desconhecer seus efeitos. Isso está na Constituição, emvários pontos: naquele em que se declara que é crime de responsabilidade dopresidente da República atentar contra a execução da sentença; em outro, em quese admite até intervenção nos estados para compelir os governos locais a cumprirsentenças federais.

71 Data da decisão: 7 de dezembro de 1942. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.

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Ministro Castro Nunes

Defende ainda que se vislumbra, no caso, hipótese em que direitoadquirido proveniente de sentença — em que não se apresenta mais possível aolegislador alterá-lo — diminui, reduz, obsta, frustra o efeito da decisão judicial.Sintetiza o Ministro que:

No caso, como o Supremo Tribunal reconheceu que havia base legal paraa assemelhação, essa assemelhação, como disse, há de persistir, acompanhando asalterações feitas nos vencimentos dos funcionários das duas Casas legislativas.De outro modo, não haveria assemelhação, estaria frustrado, estaria burlado oacórdão do Supremo Tribunal; estaria ao alcance dos Poderes Legislativo e Exe-cutivo desconhecê-lo, desconhecendo os efeitos da decisão deste Tribunal.

Ele reconhece, no caso, a existência de direito adquirido proveniente desentença, o qual não mais pode ser alterado.

No Recurso Extraordinário n. 7.821/DF72, examinou-se a aplicabilidade,aos casos julgados, de decreto-lei que, suspendendo a cobrança de determinadataxa fiscal, impedia a restituição das quantias já pagas.

O Ministro Castro Nunes lembra que, quando do julgamento do primeirorecurso extraordinário, interposto do acórdão proferido sobre a procedência daação, havia-se manifestado no sentido da aplicabilidade do decreto interpretativo,surgido na pendência do recurso extraordinário, que se constituía em oportuni-dade que se apresentava à sua aplicação, frise-se, retroativamente autorizadapor cláusula expressa aos casos ainda pendentes de julgamento. Sustenta que:

Entendi assim, e não pela primeira vez, porque já em caso anterior memanifestara, que, apesar da inexistência material — digamos assim — desta lei, aotempo em que foi proferido o julgado recorrido, a lei interpretativa deve seraplicada, porque, sobretudo como no caso, há disposição expressa. E assimentendi porque se deve considerar que a lei interpretativa tem a mesma data da leiinterpretada. De modo que, juridicamente, seria possível aplicá-la no julgamentode recurso extraordinário, ainda que anteriormente interposto.

Ressalta que, ao tempo da interposição do aludido recurso ou quando pro-ferido o julgado estadual, se não existisse a lei interpretativa, não poderia estar elaem causa. No entanto, ponderou que julgar o recurso extraordinário com desco-nhecimento dessa lei seria o mesmo que recusar aplicação da lei interpretativa,ou seja, de certa forma seria negar ao legislador o poder de promulgá-la. Isso,segundo ele, acabaria por gerar problema que se consubstanciou com o tranca-mento da execução tida por impraticável. O Ministro a define como verdadeiroconflito entre lei e coisa julgada. Elucida que:

72 Data da decisão: 9 de maio de 1945. Relator, Ministro Laudo de Camargo; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

Reconheço com Laurent que a faculdade consentida ao legislador parainterpretar leis com aplicação aos casos pendentes em Juízo subverte, de certomodo, o princípio da separação dos Poderes, porque importa em admitir que oLegislativo prejulgue, substituindo-se ao Judiciário.

Adverte Castro Nunes que a doutrina citada é demasiadamente ortodoxa naproteção do princípio da separação de Poderes, o que impede que seja adotada. Aposição do Ministro é no sentido de que o poder de interpretar legislativamente éainda o poder de legislar, com a extensão no tempo que só no caso concretoencontra limites. Observa, ainda, que isso não ocorre sempre, pois, tendo em vistao exame do direito comparado, verificam-se países em que a onipotência doLegislativo supera a soberania do Judiciário. No seu entendimento, a lei não seaplica, não por já existir execução, mas por se identificar a existência de casojulgado. Frisa que o legislador não pode atacar, ou seja, alterar em qualquer aspectoa coisa julgada, e pondera:

O mais que nós — Poder Judiciário — podemos permitir ao legislador éque interprete a lei, a ser aplicada de então por diante com a interpretaçãoprefixada, mesmo sobre os casos pendentes. Mas, proferida a decisão, finalizadaa ação da justiça, na espécie; transitada em julgado a sentença, ela é inacessívela qualquer lei posterior.

O Ministro rejeita os embargos e deixa claro que, uma vez proferida adecisão, finalizada a ação na Justiça, transitada em julgado a sentença, ela éinacessível à incidência de qualquer lei posterior.

RETROATIVIDADE DE LEI

No Habeas Corpus n. 29.804/SP73, tratava-se do caso de paciente quefora condenado pelo júri por homicídio culposo e apelou ao tribunal superior comfulcro no art. 606 do Código de Processo Penal, que reformou a decisão e ocondenou por homicídio doloso em 1946, portanto, data anterior à atual Constitui-ção, que, na competência do Tribunal do Júri, não menciona a aplicação daqueledispositivo processual. Note-se que, ao tempo da decisão judicial, ainda se encon-trava em vigor esse dispositivo.

A controvérsia refere-se basicamente a saber se as decisões anterior-mente proferidas pelos Tribunais de Apelação, quando podiam exercer a revisão,foram cassadas em face da nova Constituição. Não há negar que o novo TextoConstitucional não confere competência aos Tribunais de Justiça para levar aefeito a revisão das sentenças do júri. No entanto, decisões que ocorreram

73 Data da decisão: 18 de junho de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

antes do advento da Constituição de 1946 não podem ser por ela alcançadas,pois estavam abarcadas pela Constituição e pela lei vigente à época, de modoque as decisões que se realizaram eram legítimas. Elucida o Ministro CastroNunes que:

A lei, mesmo retroagindo, respeita os fatos consumados e não poderia,mesmo a disposição constitucional, salvo se expressamente o dissesse, desconhecera autoridade da res judicata, que é também cânon constitucional. O problema daretroação da lei penal supõe nos termos do inciso constitucional um conflito de leisno tempo, uma questão de direito intertemporal, leis sucessivas de cuja aplicaçãoem concreto se terá de decidir em benefício do réu. A regra para a solução desseconflito pressuposto entre normas inferiores é a cláusula constitucional.

O Ministro reconhece que pode ocorrer o caso de outro dispositivo consti-tucional dispor em termos que contradigam a aplicação da lei anterior, que poderáser colocada à margem para abrir espaço à aplicação da norma constitucionalque será a lex mitior. Argumenta:

Mas nem por isso, nem por que seja a norma invocada, como maisfavorável à sorte do réu, de base constitucional ou porque se insira na própriaConstituição, nem assim terá virtude maior do que a lei ordinária para o efeito dereabrir os casos encerrados.

Conclui que a nova Constituição alterou, como de resto a maioria dasConstituições, as regras de competência do Poder Judiciário, o que acabou porrefletir nas garantias da defesa. No entanto, se a res judicata ficasse ao gozodessas alterações, restaria comprometida a segurança das relações jurídicas emface da necessidade constante de reajustamento do passado às novas exigências.O limite para a aplicação da lei será o caso julgado. O Ministro Castro Nunes, emseu voto, indefere o pedido.

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Ministro Castro Nunes

10. MANDADO DE SEGURANÇA

VIOLAÇÃO DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO DECORRENTE DEINCONSTITUCIONALIDADE

O Ministro Castro Nunes, no Mandado de Segurança n. 767/DF74, enfrentoupreliminar relativa ao cabimento de mandado de segurança por violação a direitolíquido e certo decorrente de inconstitucionalidade. Para tanto, esclarece que aquestão já foi suscitada sob a égide da Constituição de 1934 e entende que ailegalidade de que trata a Constituição de 1946 deve ser compreendida de maneiraampla:

de modo a não frustrar o objetivo, a finalidade do mandado de segurança;ilegalidade genérica, no seu mais amplo sentido, abrange também o conflito doato ou da lei com a norma constitucional, ainda porque a Constituição é tambémuma lei — a lei magna, a lei tronco, a lei — metro do País. De modo que, dequalquer maneira, ainda mesmo posto no plano constitucional, não está excluídoo mandado de segurança. Se o ato tem por suporte a lei, é um ato executório da lei,é necessário, então, para ajuizar da legalidade ou legitimidade do ato, transpor doplano legal para o constitucional.

Argumentava-se que a linguagem empregada pela Constituição de 1946era diferente da utilizada na Constituição anterior e que essa diferença eraproposital, para evitar o exame da constitucionalidade em sede de mandado desegurança. Essa era a posição defendida pelo Ministro Hahnemann Guimarães.

O Ministro Castro Nunes divergia dessa tese, pois entendia que aConstituição de 1946, em seu art. 141, § 24, repetia disposição antiga no que serefere ao instituto do habeas corpus: “Para proteger direito líquido e certo nãoamparado por habeas corpus, conceder-se-á mandado de segurança, seja qualfor a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.”

A Constituição de 1946 estabeleceu a subsidiariedade do mandado desegurança. Logo restava demonstrada a obediência pelo Texto Constitucional de1946 às relações intimamente existentes entre o habeas corpus e o mandado desegurança — diante da impossibilidade de se admitir o habeas corpus, cabe omandado de segurança:

De modo que, a meu ver, a diferença não foi procurada; resultou damaneira defeituosa de se definir, por exclusão, um remédio em relação ao outro;não foi procurada, nem desejada, e não poderia ser, sob pena de se criar umaexceção injustificável para o mandado de segurança, que visa os atos do poderpúblico.

74 Data da decisão: 9 de julho de 1947. Relator, Ministro Hahnemann Guimarães;Presidente, Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

A posição de Castro Nunes sempre foi bastante clara no sentido de defendera argüição de inconstitucionalidade em qualquer ação, em qualquer processo docontrole difuso. Ressaltava, ainda, que, em sede de mandado de segurança, aquestão da inconstitucionalidade ganhava relevância justamente em vista dafinalidade do writ, que é corrigir os atos ilegais da autoridade do poder público:

Em qualquer processo, seja de que natureza for, é possível levantar aquestão constitucional; em qualquer ação, qualquer processo, sem exceção, atépor via de reclamação poderia ser discutida a inconstitucionalidade e só não opoderia ser em mandado de segurança. Por quê? Justamente no mandado desegurança, que visa corrigir os atos ilegais da autoridade, do poder público, éjustamente nesse processo que a questão constitucional tem mais cabida e seriaexceção incompreensível admitir-se que cabe em todo o quadro das ações aalegação de inconstitucionalidade de lei ou ato, caberá mesmo no habeas corpuse só no mandado de segurança não seria possível essa alegação!

O Ministro esclarece que a expressão “ilegalidade ou abuso de poder”,que também é empregada no caso de mandado de segurança, sempre comportoua questão de inconstitucionalidade das leis. Admite que, sob a égide da Constituiçãode 1891, houve dúvidas sobre essa possibilidade que se refletiram na jurisprudênciado Supremo Tribunal Federal, que acabou por não admitir a argüição deinconstitucionalidade ou por não decidir da inconstitucionalidade da lei, mas esseentendimento já foi modificado, tornando-se pacífica, com o Ministro PedroLessa, a jurisprudência no sentido de ser possível em sede de habeas corpusjulgar inconstitucionalidade de lei.

Dessa forma, entende o Ministro Castro Nunes que a Constituição de1946, definindo o mandado de segurança por exclusão do habeas corpus,empregando a expressão “ilegalidade ou abuso de poder”, comporta o exame daconstitucionalidade do ato, sem qualquer tipo de limitação: “Não vejo por que setratar diferentemente do mandado de segurança, quando ele se baseia naConstituição, na mesma cláusula, na mesma locução ‘ato do Poder Público’.”

Prevaleceu, no Supremo Tribunal Federal, a inteligência do MinistroCastro Nunes no sentido de rejeitar a preliminar e admitir o cabimento demandado de segurança para declarar a inconstitucionalidade de lei.

CABIMENTO CONTRA ATOS JUDICIAIS

No Recurso Extraordinário n. 12.108/MG75, em que foi relator para oacórdão o Ministro Castro Nunes, enfrentou-se a questão do cabimento demandado de segurança contra atos judiciais. Tratava-se, no caso, de mandado de

75 Data da decisão: 19 de julho de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

segurança impetrado por diretores do Banco Hipotecário e Agrícola do Estado deMinas Gerais S.A., contra decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que,em ação de força espoliativa, concedeu reintegração liminar nos mesmos cargosaos antigos diretores dessa sociedade anônima, privando-os do exercício de suasfunções.

O Tribunal de Justiça concedeu mandado de segurança reconhecendo ailegalidade da reintegração liminar concedida. Em face dessa decisão, interpôs oBanco recurso extraordinário com fundamento nas letras, a, b, c e d do preceitoconstitucional.

O Ministro Castro Nunes conhece do recurso, mas nega-lhe provimento.Analisa, em seu voto, a questão de o ato impugnado ser ato judicial-administrativo,para que assim possa examinar o cabimento ou não do mandado de segurança.Nesse aspecto, entende que se trata de ato judicial, e esclarece:

Há, em tudo isso, um jogo de palavras. Quando nós, no Supremo Tribunal,dizemos que não cabe mandado de segurança contra ato administrativo, estásubentendido — é o ato administrativo, em sentido de ato executivo, atonormalmente do Poder Executivo, ainda que praticado pela autoridade judiciária.Não se confundem esses atos com os atos da jurisdição chamada administrativa.A autoridade judiciária pratica duas ordens de atos, ambos jurisdicionais: os atosda jurisdição administrativa, também chamada graciosa ou voluntária, e os atosda jurisdição contenciosa.

Exemplifica essa distinção ao mencionar que o juiz, em liminar, ao concederreintegração de posse, está praticando ato judicial, embora seja também ato admi-nistrativo, se analisado sob aspecto diverso, pois é ato de jurisdição administrativa,voluntária ou graciosa. O juiz pode revogar esse ato livremente, porque não se tratade sentença final.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite o mandado desegurança contra atos administrativos, entretanto, no caso em tela, não se tratade ato administrativo, mas sim de ato judicial:

é ato judicial, ato de jurisdição praticado em processo entre partes; não é o atoadministrativo a que nos referimos, da mesma natureza dos do Poder Executivo —nomear, demitir, aposentar funcionários, por exemplo. Este é que é o ato adminis-trativo que dá lugar ao mandado de segurança.

Adverte o Ministro Castro Nunes que, sendo ato judicial, o SupremoTribunal Federal não tem admitido o cabimento do mandado de segurança, mas aposição do Ministro Castro Nunes e do Ministro Annibal Freire é no sentido deadmitir o mandado de segurança, contanto que dele não caiba recurso ordináriocom efeito suspensivo.

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Memória Jurisprudencial

Seguindo essa linha de raciocínio, o Ministro Castro Nunes divergiu dorelator, Ministro Laudo de Camargo, por analisar que, no caso da reintegração deposse, não caberia mais recurso ordinário algum e, ainda que coubesse, seriadestituído de efeito suspensivo. Não admitia que a parte sofresse os efeitos dadecisão até o deslinde do processo. Argumentou que:

Se o caso não comporta outro remédio — recurso ordinário com efeitosuspensivo —, intervém o mandado de segurança, justamente para esse caso.Este é o meu entendimento e o do Sr. Ministro Annibal Freire: não cabendorecurso ordinário, com efeito suspensivo, pode a parte intervir com o mandado desegurança, que age, então, como verdadeiro recurso, traz o caso à instânciasuperior, que reafirma a solução adotada ou declara o direito violado.

O Supremo Tribunal Federal conheceu ambos os recursos e negou-lhesprovimento.

No julgamento do Recurso Extraordinário n. 7.821/SP76, o Ministro CastroNunes enfatiza que se trata de situação típica de cabimento de mandado de segu-rança em face de decisão judicial. No caso em tela, o Ministro declara que, noexame do Recurso na Turma, dele conhecia e lhe dava provimento para julgarimprocedente a restituição das importâncias cobradas a título de taxa de fiscali-zação sanitária animal, criada pela Lei estadual n. 2.845, de 16 de dezembro de1935, que, pelo Recurso Extraordinário, estava ainda sendo pleiteada, ou seja, oRecurso continuava em litígio.

O Decreto-Lei 4.230/42 estabelecia que “a suspensão parcial, no Estadode São Paulo, da cobrança da taxa sanitária animal, por força do Decreto-Lei n.1610, de 19 de setembro de 1939, não dá direito à restituição do indébito”.Tratava-se de decreto interpretativo em que se baseou a pretensão do autor. Oreferido decreto sobreveio ao julgado na ação. Vale dizer que o julgado é do anoanterior (1941), mas estava pendente de recurso extraordinário, que, segundo aopinião do Ministro Castro Nunes, comportaria o exame de sua aplicação.

Todavia, ele foi vencido, pois a Turma não conheceu do Recurso e, porconseguinte, absteve-se de apreciar a aplicação retroativa da lei superveniente, quenecessariamente será observada na execução. Ressalta que:

O sentido jurídico do não-conhecimento, arredado como ficou, o exame daaplicação do Decreto-Lei 4.230, é o prevalecimento do caso julgado estadual. Nãoconhecendo do recurso, o Supremo Tribunal, se o não confirmou, também não oreformou. Em todo o caso, não houve a decisão local como infringente de direito

76 Data da decisão: 15 de junho de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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federal, uma vez que não reputou em causa o Decreto interpretativo que expressa-mente excluía o direito reclamado ainda que pendente a ação. E fora do julgadoproferido na ação, convém repetir, que a Fazenda interpusera aquele recurso.

O Ministro entende que o julgado da Turma passou à margem da contro-vérsia. Questiona em seu voto:

Poderá, entretanto, o juiz negar o prosseguimento da execução, negar aexecução ao julgado, havê-lo como inexistente ou cassado, e nisso praticamentese resolve o indeferimento do precatório, com base naquele Decreto-Lei? Nãosou incoerente respondendo negativamente. Pelo meu voto, eu dava ganho decausa à Fazenda, porque não havia então julgado, pois, que, pendente ojulgamento do recurso extraordinário, será possível, segundo me parece, aplicar alei interpretativa. Os doutos colegas entenderam, porém, de modo contrário.

Ressalta, mais uma vez, que a Turma deixou de manifestar-se sobre acontrovérsia. Assim, o julgado proferido na ação, que ampara o direito do autor, éanterior ao Decreto interpretativo, de modo que sobre ele não pode incidir oDecreto, na sua disposição de aplicabilidade às ações pendentes, quer na Justiçalocal, quer no Supremo Tribunal Federal.

Argumenta que, quando do advento do Decreto, não mais existia açãopendente, mas apenas execução em curso, à qual se deu aplicação, ao arrepio daletra do Decreto e dos princípios que norteiam o sistema constitucional que,segundo o Ministro, é baseado na autoridade das decisões judiciais transitadasem julgado em face dos demais Poderes, que não podem desconhecê-las ourevogá-las, nem sequer por ato legislativo, “porque, então, estaria suprimindo oPoder Judiciário, cujas decisões se impõem ao acatamento e cumprimento peloPoder Público, como está expresso em textos constitucionais.”

Enfatiza que o próprio decreto consagrou a intangibilidade do caso julgadoquando se referiu apenas a sua aplicação às ações pendentes, ou seja, estãoexcluídas as ações com decisão transitada em julgado. Assevera o MinistroCastro Nunes:

É um caso típico de mandado de segurança, a ser admitido contra atojudicial, aquele que se destina a assegurar o respeito à coisa julgada; e assim já mepronunciei no meu livro sobre esse remédio. O julgado deve ser cumprido, pormais relevante que seja a argüição da sua ilegalidade a ser apreciada em açãorescisória.

O Ministro concede o mandado de segurança, e o Supremo TribunalFederal decide pela concessão da segurança, fixando o entendimento de que nãose aplica às execuções em curso de decisões transitadas em julgado leiinterpretativa expressamente destinada às ações pendentes.

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Memória Jurisprudencial

Ainda sobre o cabimento de mandado de segurança em face de atojudicial, há o julgamento do Mandado de Segurança n. 695/GO77, em que oMinistro Castro Nunes foi relator. Tratava-se de caso de herança no qual o irmãodo morto reclamou a condição de herdeiro no inventário. O juiz indeferiu opedido, e o Tribunal de apelação deu provimento ao recurso, considerou nãojacente a herança e converteu a arrecadação em inventário. Nesse particular, oMinistro ressalta que o Tribunal usurpou competência do Supremo TribunalFederal, pois só a este cabe decidir em sede de recurso sobre as causas em queseja parte a União.

O Ministro alega que não cabe aqui o exame do aspecto material daquestão: se a herança era jacente ou não, se há herdeiros, mas sim a análise dafalta de competência do Tribunal de Apelação para julgar o agravo, pois decidiucausa em que a União figurava como parte. Assim sendo, tratava-se de julgadoinoperante e nulo. A questão que se apresentou, no caso, consistia em saber secaberia o mandado de segurança. Esclareceu o Ministro Castro Nunes que ajurisprudência da Corte não admitia o mandamus em face de atos judiciais:

Tenho divergido desse entendimento, pois já admitia o mandado de segu-rança como meio idôneo para atacar atos ou decisões judiciais, desde que nãohouvesse recurso ou este não tivesse efeito suspensivo. Assim o entendi em faceda Lei 191, pelas razões e com as limitações que expus demoradamente (Do mandadode segurança. 1937, pp. 87-88) Mas recentemente, já em face da preceituação doatual Código de Processo Civil, mantive o mesmo entendimento. Admito, pois, omandado de segurança, atendendo a que não existe outro meio processual expeditoque dê remédio à situação criada pelo julgado do Tribunal de Goiás, porque orecurso extraordinário já interposto, não tendo efeito suspensivo, não dará soluçãoa tempo de evitar que prossiga e chegue a termo o inventário, com a conversão dosbens em dinheiro e a entrega a terceiros, herdeiros ou credores. Não me parecepossível admitir o pedido como mera reclamação.

Explica o Ministro que, quando a reclamação é endereçada ao SupremoTribunal Federal em face de ilegalidade cometida por juiz ou membro de Tribunal,se trata de representação para fins criminais e não de reclamação, e tal hipóteseresta excluída no caso em tela. Em seu voto, admite a avocatória com base noart. 790 da Lei n. 221. Todavia, ressalva que essa é praticamente carta precatóriaque se resolve, na prática, em conflito de jurisdição. Do que se depreende quesupõe feito ainda não julgado “que se remove de uma justiça para outra ou de umjuízo, para outro in limine litis”.

O Ministro Castro Nunes salienta que a propositura da avocatória peloMinistério Público no Supremo Tribunal Federal seria o meio idôneo para a inter-

77 Data da decisão: 28 de abril de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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posição do agravo ao tribunal de apelação, para que o Supremo Tribunal Federalavocasse o recurso. Contudo, este não mais se mostra possível em face da decisãoproferida por tribunal incompetente, “decisão que não pode ser cassada por meiode avocatória, meio, como o conflito, preventivo da incompetência.” Diante doexposto admite e concede o Mandado de Segurança. Ao longo do julgamento,trava interessante discussão com o Ministro Goulart de Oliveira, que entende seradmissível a reclamação.

O Ministro Castro Nunes declara: “Por meio da reclamação não possoanular a decisão do Tribunal de Apelação de Goiás.”

Questiona o Ministro Goulart de Oliveira: “Exatamente. A meu ver, essadecisão do tribunal goiano só poderia ser invalidada num procedimento rescisório.”

Argumenta o Ministro Castro Nunes: “Mas, admitindo o mandado desegurança, poder-se-ia anular. Eu admito o mandado de segurança contramandado judicial.”

Preleciona o Ministro Goulart de Oliveira: “Não há mandado de segurançacontra decisão de tribunal superior local.”

O Ministro Castro Nunes enfatiza:

Essa é a opinião de V. Exa. e, de acordo com a maioria, muito respeitável.Mas a minha opinião sempre foi no sentido de admitir o mandado de segurançacontra mandado judicial em casos excepcionais, com restrições, não há dúvida;mas o caso dos autos é um desses casos excepcionais.

O Ministro Castro Nunes também trava intenso debate com o MinistroOrozimbo Nonato, para esclarecer que só admite o mandado de segurança emcircunstâncias especiais, quais sejam, em face da inexistência de recurso ou se orecurso não tiver efeito específico, argumentando que é essa a doutrina do Tribunalpaulista. O Ministro Orozimbo Nonato explica: “Grande é a autoridade de V. Exa.,mas seu autorizado voto não encontra, no caso, apoio no sistema legal.”

Esclarece o Ministro Castro Nunes:

Mesmo em face da preceituação legal, entendo que cabe o mandado desegurança. Procurei demonstrar isso, há pouco tempo, em voto que proferi.Reconheço, porém, que o assunto é controvertido. Estou quase isolado.

O Ministro Orozimbo Nonato argumenta:

Trata-se de remédio específico, de linhas definidas e inampliáveis. Achoperigoso que, sob o império da necessidade e das circunstâncias do momento, sequebre a pureza do princípio, dando abertura ao arbítrio do juiz em caso em quepode e deve ser ele evitado e que traria, ao cabo de contas, a desnaturação doinstituto. Como, porém, todos concordam em que é preciso dar ao caso solução

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Memória Jurisprudencial

rápida, data venia do nobre Sr. Ministro Relator, julgo mais lógico apelar para oremédio da reclamação, que, pelo menos, é recurso admitido pelos usos do foro enão se aperta nos limites do mandado de segurança.

Segue-se o debate:

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Por meio de reclamação, que não évia processual!

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Se V. Exa. tem escrúpulo em lançar mãodesse remédio, data venia, ofende mais profundamente a lógica acolhendo omandado de segurança, inadmissível no caso.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Admito o mandado de segurança,por exclusão.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Por exclusão também, é que admito areclamação, no caso.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Examinei a ação rescisória, arogatória e a reclamação. Por exclusão, admiti o mandado de segurança.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Também o mandado de segurança não éadmissível. Por exclusão, repito, é que se torna admissível a reclamação.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): O mandado de segurança é quebramenor da lógica do que a reclamação; o mandado de segurança é previsto em lei;a reclamação é meio administrativo que não pode levar à reforma da sentença.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: A reclamação é examinada pelo Tribunal,sem quebra do princípio que define a natureza do mandado de segurança.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Então, continuará a ser reconhecidoo direito dos herdeiros.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Rigorosamente, somente a rescisóriaseria possível. Como temos de flexibilizar esse rigor em face das circunstâncias docaso, parece-me que admitir a reclamação seria o sacrifício mínimo da lógica.Prefiro a reclamação administrativa ao mandado de segurança, que não é própriopara o caso.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Há o recurso extraordinário, queestá pendente. Admiti o mandado de segurança porque o recurso extraordinárioserá julgado daqui a meses e, quem sabe, daqui a mais tempo; além do mais, nãotem efeito suspensivo. A situação apontada pela Procuradoria-Geral é que estãodilapidando os bens, que são da União.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: O recurso extraordinário não tem amesma eficácia que a reclamação.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Nenhum dos dois tem efeito, no caso.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro Annibal Freire intervém na discussão para afirmar:

Sr. Presidente, na história da jurisprudência brasileira, é preciso reivindicarpara o douto tribunal paulista atitude, a meu ver, relevante: a modificação daconceituação do mandado de segurança. Esse douto tribunal assentou, definiti-vamente, em vários de seus arestos, que essa medida teria de ser concedida, emcircunstâncias excepcionais, quando não houvesse nenhum recurso capaz dedirimir o caso.

Registre-se que os Tribunais de Minas Gerais e do Rio Grande do Norteseguiram a orientação firmada pelo Tribunal de São Paulo. O Supremo TribunalFederal conheceu do Mandado de Segurança por maioria de votos.

CABIMENTO EM FACE DE DECISÃO DO TRIBUNAL DE APELAÇÃO

No Mandado de Segurança n. 705/ES78, de relatoria do Ministro CastroNunes, enfrentou-se preliminar concernente à possibilidade de admitir mandado desegurança originariamente impetrado por particular em face de decisão do tribunalde apelação ao Supremo Tribunal Federal. O relator pondera que a competênciaoriginária do Supremo Tribunal Federal em sede de mandado de segurança estáexpressa no Regimento Interno e refere-se aos atos do próprio Tribunal, de seuPresidente ou de sua Secretaria, logo não há competência da Corte Suprema paraapreciá-lo. Deveria o interessado ter-se dirigido ao tribunal de apelação, e ao Su-premo Tribunal Federal, sob a forma de representação, apenas na hipótese dehaver desrespeito a julgado deste Tribunal.

A posição do Ministro é no sentido de só admitir mandado de segurança aoSupremo Tribunal Federal, por articulação com tribunal anterior, do Procurador-Geral da República. No caso, o Procurador sequer endossou a alegação dorequerente no que se refere à desobediência da decisão do Supremo TribunalFederal, apenas se manifestou no sentido do não-cabimento da medida contra atojudicial. Elucida:

Assim, essa preliminar, a meu ver, prefere a qualquer outra: não temoscompetência para conhecer de mandado de segurança requerido por esseparticular, quando a nossa competência, expressa no Regimento, é só paraconhecer de tal medida, como disse, contra ato do próprio Tribunal, de seupresidente ou de sua Secretaria. Ademais, como também frisei, a medida não foipleiteada pelo eminente Dr. Procurador-Geral.

78 Data da decisão: 12 de janeiro de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Castro Nunes só admitia o mandado de segurança, a despeito da inexistên-cia de regra expressa no Regimento do Supremo Tribunal Federal, se requeridopelo Procurador-Geral da República, porque entendia como derivação da compe-tência da Corte Suprema quando se tratava de causas da Fazenda.

Ele não conheceu da medida, e foi esse o entendimento firmado nadecisão do Supremo Tribunal Federal.

CABIMENTO EM FACE DE ATO DE PRESIDENTE DE TRIBUNAL

No Mandado de Segurança n. 699/DF79, discutiu-se a possibilidade de atofuncional de autoridade ser apreciado por mandado de segurança. O MinistroCastro Nunes esclareceu que, esse tipo de ato não poderia ser apreciado emmandado de segurança. Quanto à outra preliminar a ser examinada, que diziarespeito à competência do Supremo Tribunal Federal para o caso, esclareceu:

Existe, na sistemática do nosso direito, da nossa preceituação legal, acercado mandado de segurança, um princípio que não foi alterado, que não foi revogado,que domina toda esta matéria: é de que o mandado de segurança, por via de regra,tratando-se de ato do Tribunal ou de seu representante — o presidente —, érequerido ao próprio Tribunal. Assim está estatuído em relação aos Tribunais deApelação e, por analogia, como, aliás, frisou o Sr. Ministro Relator, em se tratandode Tribunal especial. Se o ato é do presidente — e, aliás, o eminente Sr. MinistroOrozimbo Nonato mostrou isso muito bem —, e se o ato de que se queixam ospacientes é de coação do presidente do Tribunal de Segurança, é ao próprioTribunal de Segurança, e não a nós, que cabe conhecer do mandado de segurança.

O Ministro Orozimbo Nonato questiona se há disposição de lei a respeito ese o Ministro Castro Nunes entende ser possível competência por analogia.

O Ministro Castro Nunes indaga: “E onde está expressa a competência doSupremo Tribunal?”

O Ministro Orozimbo Nonato responde: “Está no próprio sistema constitu-cional.”

O Ministro Castro Nunes argumenta: “Não encontro expressa essacompetência. Ela só é expressa em relação a coações partidas de seu presidenteou da Secretaria.”

Esclarece o Ministro Castro Nunes que a matéria referente à competênciado mandado de segurança está omissa na Constituição, mas está regulada pela leiordinária, pelo princípio geral e pelos regimentos dos tribunais. Enfatiza que:

79 Data da decisão: 11 de agosto de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Nós temos de obedecer a estes princípios gerais, que, como disse,dominam toda a sistemática: tratando-se de ato do Tribunal ou de seu presidente,é ao próprio Tribunal que cabe conhecer do mandado; se se trata de ato do juiz, aopróprio juiz cabe esse conhecimento. Já tivemos, aliás, caso de juiz de MinasGerais que ordenou penhora de bens do estado, e foi decidida a hipóteseconsoante minha argumentação de agora.

O Ministro Castro Nunes vota pela competência do Tribunal de Segurança,uma vez que se trata de ato do seu presidente. Ele questiona qual o assento legalpara que se reconheça a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar omandado de segurança, pois entende, com base no sistema constitucional, que acompetência é do Tribunal de Segurança, e indaga:

E quando o ato é do Presidente do Tribunal de Apelação? Pode o SupremoTribunal conhecer? Pode conceder o mandado de segurança? Estou aplicando oprincípio legal por extensão. Apenas não encontro na atual Constituiçãoqualquer coisa que se refira à competência do Supremo Tribunal para julgarmandados de segurança. Seja qual for a autoridade.

O Ministro Orozimbo Nonato observa que, segundo tem apregoado oMinistro Castro Nunes, a lei deve ser interpretada teleologicamente, como ocorrena América do Norte, de modo que, fazendo uso dessa interpretação, o resultadoé diverso.

O Ministro Castro Nunes responde: “Não posso, no caso, fazer essainterpretação, porque não encontro assento constitucional para isso: não hádisposição constitucional sobre a matéria.”

O Ministro Castro Nunes vota pela denegação do mandado de segurança,e é esse o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal.

CABIMENTO CONTRA ATO ADMINISTRATIVO

No Recurso Extraordinário n. 7.530/AL80, enfrentou-se questão relativaao cabimento de mandado de segurança contra ato administrativo violador dedireito líquido e certo.

O Ministro Castro Nunes esclarece que, no caso, se concedeu ao mandadode segurança a função de interdito recuperatório, visto que se assegurou aoimpetrante o direito de cercar seu terreno, ou seja, restabeleceram-se cercas queo prefeito havia mandado derrubar.

80 Data da decisão: 5 de abril de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo Camargo.

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Memória Jurisprudencial

É uma aplicação que não contravém a índole de remédio, que, estando emcausa ato omissivo ou comissivo da autoridade pública, é um sucedâneo dosinterditos, segundo tenho entendido. Nem o contra-indica a natureza do direitoque se quer resguardar da violência iminente ou consumada, podendo ser odireito de propriedade, de todos o mais líquido e certo, contanto que limitada acontrovérsia entre o proprietário e o Poder Público ao exercício somente dodireito, e não a este mesmo, que deverá estar fora de qualquer contestação.

Afirma que, no caso em tela, o ato é de execução realizada pelo prefeito,mas está vinculado a medida administrativa, qual seja, a criação consideradailegal de colônia agrícola, pois pendente de aprovação do departamentoadministrativo. Logo, para o Ministro, “a ilegalidade do procedimento executóriodecorre da ilegalidade da deliberação administrativa.” Aliás, elucida que o finalda decisão declara a responsabilidade da prefeitura pelos danos causados:invasão das terras e destruição das lavouras pelo gado dos vizinhos. Conclui:

Essa condenação, ainda que sob a forma incurial de responsabilização,não comporta o mandado de segurança, cuja concessão pode gerar a açãoreparatória oriunda do julgado, não, porém, a condenação, nos termos do ato.Mas a Prefeitura não pôs a questão nestes termos, não aponta julgados em que setenha declarado que a ação reparatória é petitória conseqüente, alheia ao remédiocuja função é, como o habeas corpus na tutela da liberdade, apenas fazer cessara violência ou assegurar a prestação recusada in natura.

O Ministro Castro Nunes não conhece do recurso, e é nesse sentido oacórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na questão.

CABIMENTO EM FACE DE ATO DO EXECUTIVO

No Mandado de Segurança n. 760/SP81, tratava-se de writ contra despa-cho do dia 1º de maio de 1946, do Presidente da República, que aprovou informa-ções do Ministro da Fazenda e determinou que a Câmara de Reajustamento Eco-nômico processasse o pedido dos irmãos Andrade, do qual a Câmara decidirairrecorrivelmente não conhecer. O requerimento, de 19 de setembro, foi subme-tido ao despacho do Presidente deste Tribunal em 23 seguinte.

Negada por decisão irrecorrível a admissão de pedido de conhecimento daCâmara de Reajustamento, os irmãos Andrade intentaram ação executiva paracobrança do saldo credor de empréstimo feito em 1926. No entanto o despachopresidencial sobreveio quando já estava contestada a ação e marcado o dia paraa audiência de instrução e julgamento. Alegaram os irmãos a ilegalidade dodespacho por violar o princípio da equidade.

81 Data da decisão: 29 de janeiro de 1947. Relator, Ministro Ribeiro da Costa; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

Sobre o conceito de Câmara de Reajustamento, escreveu o MinistroCastro Nunes, em sua obra Da Fazenda Pública em juízo, que:

A Câmara de Reajustamento é um órgão de difícil classificação em nossodireito. Não é propriamente um tribunal administrativo no sentido de jurisdiçãopreposta à solução de contestações entre os particulares e o Estado. As relaçõesjurídicas cometidas ao conhecimento da Câmara de Reajustamento são de ordempatrimonial ou privada.82

O Ministro Castro Nunes manifestou-se pela competência do SupremoTribunal Federal, uma vez que se tratava de writ em face de quem deliberou, nocaso o Presidente da República, a despeito de os executantes serem autoridadessubordinadas. Esclarece:

Mas o mandado de segurança é admitido contra quem delibera e mandaexecutar o ato impugnado, donde se conclui que é uma competência que sedesdobra, pelo menos, em dois planos: no plano que delibera e manda executar enaquele que executa.

No caso em tela, quem deliberou foi o Presidente da República, pois foi elequem expediu o despacho, cabendo à Câmara de Reajustamento apenas cumprira determinação.

Sobre o mérito da questão, o Ministro considerou inadmissível nova via dedireito, quando já existia uma instaurada. No caso sub examine, tinha-se a viaexecutiva, instaurada em razão do não-conhecimento, pela Câmara de Reajusta-mento, do pedido de reajuste, ato jurídico praticado dentro de suas atribuiçõeslegais. Foi em defesa desse exercício que se impetrou o mandado de segurança.

Quando essa via já estava instaurada, sobreveio a suspensão da instância,por razão de novo pedido de reajustamento determinado pelo ato do Presidente.Para o Ministro Castro Nunes, o ato do Presidente é a fonte de toda a controvérsia,portanto deve-se considerá-lo sob o âmbito da legalidade ou da ilegalidade, paraconcluir que o mais é via de conseqüência. Em seu entender, o reajuste em sinada mais é do que operação interna de competência da Câmara, que se encontradentro de sua esfera de autonomia.

Cumpre frisar que o Ministro, desde a época em que era juiz federal, jásustentava a autonomia relativa da Câmara de Reajustamento.83 Essa autonomiaé relativa porque, quando a Câmara extrapolar de suas atribuições, deve a Justiça

82 NUNES, José de Castro. Da Fazenda Pública em juízo. Livraria Freitas Bastos, 1950.p. 76.83 No mesmo sentido, Mandado de Segurança n. 742/DF. Data da decisão: 12 de junho de1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

intervir e declarar a ilegalidade de seus atos. No caso em tela, isso não ocorreu,pois o ato estava em sua esfera de atribuições, e a Câmara de Reajustamentodeclarou que a dívida não era ajustável. Argumenta Castro Nunes:

Os interessados foram até o Sr. Presidente da República e obtiveram odespacho, mandando que ela conhecesse do pedido. Esse despacho é que éilegal porque a preceituação legal que regula as atribuições da Câmara deReajustamento declara que essas decisões são irrecorríveis para a justiça comume, por melhor razão, para a Administração.

Assevera, ainda, que, a despeito de o Presidente da República ter poderesamplos, ditatoriais, tem de agir na conformidade das diferentes categorias dosseus atos, ou seja, pode expedir decretos-leis, instruções, regulamentos, mas, aoexpedir ato que prevê reclamação ou que recebe recurso administrativo, devenecessariamente agir em conformidade com a lei, a partir da Constituição.Elucida que:

No período que se extinguiu em 18 de setembro, com a promulgação danova Constituição, havia um regime constitucional orgânico. O presidente daRepública não era propriamente um ditador, era um presidente que se movia noslimites de uma Carta Política hierarquicamente superior aos seus atos comogoverno, embora não estivesse esse regime completado com a instalação dasCâmaras, mas, expedindo decretos-leis, etc., prestava obediência ele mesmo aesses decretos-leis, do mesmo modo que prestava obediência à Constituição, atéque, por um ato especial ou emenda constitucional, a reformasse.

O Ministro Castro Nunes diverge do relator e conhece e defere o mandado desegurança, e a decisão do Supremo Tribunal Federal segue essa mesma orientação.

CABIMENTO EM FACE DE ATO DE INTERVENTOR

O Ministro Castro Nunes tem posição clara no sentido de não admitir omandado de segurança em face de ato de interventor. No Recurso Extraordinárion. 3.778/PB84, analisou-se o cabimento do writ em face de ato de tribunal queindicara candidato mais moderno em detrimento de candidato mais antigo para avaga de desembargador. Esse ato do tribunal foi homologado pelo interventor queo nomeou. Esclarece o Ministro que “a concessão do presente importaria emanular não somente o ato preliminar da indicação pelo Tribunal, mas o ato danomeação pelo Governo do Estado.” Tendo em vista essa circunstância, entendeser incabível o mandado de segurança na hipótese.

84 Data da decisão: 13 de novembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo Camargo.

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Ministro Castro Nunes

RECURSO DE OFÍCIO

No Mandado de Segurança n. 742/DF85, o Ministro Castro Nunes deixaclaro o não-cabimento de recurso de ofício contra decisão concessiva demandado de segurança. O caso versava sobre mandado de segurança impetradoem face de decisão da Câmara de Reajustamento.

Entende o Ministro não se tratar de writ impetrado em face de decisãojudicial, visto que a Câmara de Reajustamento não integra o Poder Judiciário,mas sim de ato de natureza administrativa. Justifica que, no caso, o que é deíndole judicial é o fundamento do pedido, a res judicata. O Ministro, desdequando era juiz federal, manifestou-se no sentido de que não há direito mais certoe incontestável do que o já proclamado por decisão judicial transitada em julgado.

Outro ponto analisado no referido processo, e que foi suscitado peloProcurador-Geral, diz respeito ao fato de a Câmara de Reajustamento não tersido parte na causa, logo não estaria sujeita aos efeitos da coisa julgada. OMinistro Castro Nunes repele esse argumento, por entender não ser necessárioque a pessoa pública a que pertence o órgão administrativo tenha sido parte noprocesso. Para ele, basta, tão-somente, que essa relação jurídica tenha por objetoato, omissivo ou comissivo, da Administração, recusado ou praticado, que podevir a ser reclamado ou impugnado pela via do mandado de segurança comfundamento no julgado. Esclarece que:

Entre terceiros, credor ou devedor, se dirimiu judicialmente que a dívidanão estava sujeita a reajustamento, operação a cargo de um órgão administrativoe porque assim se resolveu prosseguiu a execução judicial, o que importouinequivocamente na proclamação da incompetência do órgão para processar oreajuste da dívida em questão. Se o órgão administrativo insiste em fazê-lo,depois de ciente das decisões judiciais, obra em contrário a essas decisões, paracujo resguardo é idôneo o mandado de segurança como meio adequado a tornarefetiva a abstenção.

O Ministro nega provimento ao recurso, e o Supremo Tribunal Federaldecide no mesmo sentido.

RECURSO CABÍVEL EM FACE DE DECISÕES FINAIS SOBREMANDADO DE SEGURANÇA

No Recurso em Mandado de Segurança n. 666/DF86, analisou o SupremoTribunal Federal qual seria o recurso cabível para a Suprema Corte em face das

85 Data da decisão: 12 de junho de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Jóse Linhares.86 Data da decisão: 14 de maio de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

decisões finais sobre mandado de segurança: o previsto no art. 142 do RegimentoInterno87 ou a apelação.

O Ministro Castro Nunes, relator do Recurso, nas explicações de seu voto,expressa que desconhece as razões que determinaram a inclusão do art. 142 noRegimento do Supremo Tribunal Federal, no entanto presume que tais razõesresidiriam no fato de restar extinto o instituto do mandado de segurança se seaplicasse a ele o recurso de apelação. Acrescenta:

Na verdade, esse recurso contradiz o espírito, a celeridade que estáimplícita no remédio, não seria possível, pois, subordinar o mandado ao recursode apelação. Que fez, pois, o Supremo Tribunal Federal? Considerou a decisãoproferida em mandado de segurança como terminativa, como encerrando oprocesso, e admitiu que, nesse caso, se processasse o recurso sob a forma deagravo, aproveitando, naturalmente, o disposto na Lei n. 191, a qual, revogadaembora, foi chamada como elemento subsidiário para a fixação dessa regraregimental.

A posição do Ministro é clara quando prevê o acerto do dispositivo regi-mental quando prevê o recurso sob a forma de agravo para o caso de denegaçãoou concessão de mandado de segurança.

Ele reconhece e nega provimento ao recurso, e é essa a orientaçãoadotada pelo Supremo Tribunal Federal na decisão.

EMBARGOS

Nos Embargos no Mandado de Segurança n. 743/DF88, de relatoria doMinistro Castro Nunes, enfrentou-se questão relativa à possibilidade de embargosem decisão proferida em sede de mandado de segurança. O Ministro OrozimboNonato, relator do Mandado de Segurança, examinou a competência origináriado Supremo Tribunal Federal para mandado de segurança contra autoridadesque não se encontravam previstas no texto legal e rejeitou o mandamus, por tersido impetrado em face de decisão judicial, admitindo-o como “reclamação”.Em face desse acórdão, foram opostos embargos.

No julgamento dos Embargos, o Ministro Castro Nunes deixa claro quecabem embargos em mandado de segurança originário ou transitado nas duasinstâncias, ou seja, em face de decisão superior nele proferida. No caso, entende

87 Dispõe o art. 142 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: “Os recursosdas decisões dos juízes dos feitos da Fazenda Pública em mandado de segurança serãodistribuídos pelo Presidente, a um relator, que os processará e julgará da mesma forma porque se procede nos agravos.”88 Data da decisão: 18 de junho de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

o Ministro que se tratava de mandado de segurança originário e, levando-se emconta o disposto no art. 783, § 2º, do Código de Processo Civil, mostra-se possívelembargar as decisões proferidas nas causas de competência originária do SupremoTribunal Federal, entre elas o mandado de segurança, sem qualquer restrição asua competência.

Todavia, o Decreto-Lei 8.750/46 deu nova redação ao art. 833:

Além dos casos em que os permitem os arts. 783, § 2º, e 839, admitir-se-ãoembargos de nulidade e infringentes do julgado quando não for unânime adecisão proferida em grau de apelação, em ação rescisória e em mandado desegurança. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matériaobjeto da divergência.

A dúvida que ensejou o referido dispositivo se referia à aplicação dosembargos aos mandados de segurança originários. Esclarece o Ministro CastroNunes:

Se o for, circunscrito estará o julgamento ao provimento parcial ou total emque houve votos divergentes. Em caso contrário, os embargos não estarãosujeitos a essa licitação, procedendo-se por aplicação da regra geral relativa àembargalidade das decisões das causas originárias.

O Ministro defendia a posição de que o referido Decreto-Lei só seaplicava às decisões proferidas em grau de recurso. No entanto, atentou para ofato de que se mencionou também a ação rescisória, que é causa de instânciaúnica, e então surge outra dúvida. Pondera que:

O mandado de segurança comporta o julgamento em duplo grau e eminstância única. Mencionando-o a lei, dizendo que as decisões nele proferidasserão embargáveis quando não unânimes, e restrito o reexame ao ponto dodissídio, supõe julgamento em segundo grau, não se aplicando aos originários,que comportarão, a meu ver, os embargos que cogita o art. 783, § 2º.

Outra preliminar suscitada na análise da questão dizia respeito à possibili-dade de opor embargos contra decisão proferida em reclamação como se fossedecisão proferida em sede de mandado de segurança. No entanto considera oMinistro Castro Nunes que a reclamação, no caso, foi admitida pela maioria doTribunal, por entender que era incabível o mandado de segurança contra atosjudiciais. Para ele, de qualquer forma, seja como reclamação ou como mandado desegurança, se o Tribunal proferiu julgamento em instância única, a decisão éembargável, como ocorre nas causas de sua competência originária. O Ministroconhece e rejeita os embargos, e é essa a orientação unânime no acórdão doSupremo Tribunal Federal.

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Memória Jurisprudencial

INADMISSIBILIDADE DE RECURSO EM FACE DE DECISÃOEMBARGÁVEL

No Recurso em Mandado de Segurança n. 89589, fixou o Supremo Tribu-nal Federal o entendimento da inadmissibilidade de recurso, por ser embargável adecisão da instância inferior. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes esclareceque a questão apresentada é nova, pois só poderia surgir no âmbito da Constituiçãode 1937, uma vez que, durante a vigência da Constituição anterior, apenas dasdecisões denegatórias de habeas corpus era possível o recurso para o SupremoTribunal Federal.

Já na Constituição de 1937, estendeu-se o mesmo tratamento aos julgadosproferidos em sede de mandado de segurança. Todavia, o texto constitucional exigeque essas decisões sejam em “última instância”, ou seja, definitivas. Esclarece que:

O sentido da locução confere com o adotado para o conhecimento dorecurso extraordinário, cuja abertura está subordinada à condição de haver orecorrente esgotado todos os meios legais ao seu alcance para a pretendidareforma da decisão.

Assevera, ainda:

É certo que em nenhum deles se estatuiu sobre a hipótese de se tratar derecurso ordinário, mas creio que, idêntica a letra dos dois dispositivos constitucio-nais concernentes ao apelo extraordinário e ao ordinário, são idênticas as razõesem que se funda tal entendimento.

Argumenta o Ministro Castro Nunes que a finalidade dessa exigência édecantar o caso perante as instâncias recorridas e, em face do esgotamento dosmeios, valer-se do Supremo Tribunal Federal. Ressalva que o problema nãopoderia ocorrer ao tempo em que a instância de superposição titulada noSupremo Tribunal Federal só possuía competência para exercê-la em matéria dehabeas corpus, “porque não embargáveis as decisões denegatórias do writ daliberdade.” Vale dizer que, na maioria dos casos analisados pelo SupremoTribunal Federal, a decisão é do Tribunal Superior, decisão única, porque nãopassíveis de embargos julgados sobre habeas corpus. O Ministro Castro Nunesformula a seguinte indagação:

Deu-se, porém, ao interessado o recurso de embargos no mandado desegurança. Poderá a parte, com direito a esse recurso, deixar de utilizá-lo, vindodiretamente ao Supremo Tribunal? Não estará obrigada a provocar do Tribunal deJustiça a sua última palavra sobre a questão?

89 Data da decisão: 28 de maio de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro entende que deve o interessado provocar o Tribunal de Justiçae, por essa razão, não conhece do recurso. O Supremo Tribunal Federal, porunanimidade, decide no mesmo sentido.

PRAZO

No Recurso em Mandado de Segurança n. 715/DF90, discutiu-se em quedata inicia-se o prazo de 120 dias para a impetração de mandado de segurança,na hipótese de haver pedido de reconsideração do ato impugnado.

O Ministro Castro Nunes, como relator do referido processo, defende queo prazo é de perempção e, como tal, insuscetível de ser interrompido. Essaposição adotada pelo Ministro, que já se encontrava exarada em sua obra sobre omandado de segurança, é a de que se começa a contar o prazo a partir da últimadecisão administrativa proferida, quer em recurso meramente hierárquico, querem recurso contencioso. Explica que:

O pedido de reconsideração não deixa de ser um recurso, o chamadorecurso para a autoridade melhor informada, sempre de acesso possível aointeressado, salvo quando reiterado, porque a isso se opõe texto legal. Diz asentença que o recurso próprio, expresso em lei, teria de ser interposto para oPresidente da República, ao que objeta o impetrante em suas razões, citandotextos legais, para mostrar que tal recurso não é facultado à parte, senão aosmembros do Conselho de Imigração e Colonização. Seja como for, o certo é que,embora não expresso em lei, o Conselho o tem admitido, e isso mesmo se vê dasinformações oficiais constantes dos autos, razão bastante para que dele usasse,baseada nesses precedentes, a interessada. E se usou improficuamente, sendomantida a anterior decisão, é desse segundo indeferimento que deve ser contadoo prazo de 120 dias, ainda não esgotado quando deu entrada em juízo a inicial.

Em seu voto, o Ministro dá provimento ao recurso, e essa foi a orientaçãoseguida pelo Supremo Tribunal Federal.

DIREITO LÍQUIDO E CERTO

No Mandado de Segurança n. 876/DF91, tratava-se de writ impetrado porpais de alunos que, em 1943, fizeram o curso prévio da Escola Naval e, em 1944,foram admitidos no primeiro ano do curso superior da Escola. No entanto, emvirtude da guerra que o Brasil travava contra a Alemanha, surgiu a necessidadede acelerar a formação de novos oficiais, e logo intensificou-se o curso, o que sub-meteu os alunos a grande esforço.

90 Data da decisão: 10 de maio de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.91 Data da decisão: 9 de junho de 1948. Relator, Ministro Laudo de Camargo; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

Os alunos obtiveram aprovação em todas as matérias do terceiro e últimoano do curso. Completaram o sistema de provas, a inspeção de saúde, as provasparciais e o julgamento de aptidão para o oficialato. No entanto, nesse últimorequisito, foram declarados inaptos pela comissão julgadora.

Os pais dos alunos recorreram administrativamente, sem obter êxito, entãoimpetraram mandado de segurança, alegando que o art. 101 do Regimento Internoda Escola Naval estabelecia os requisitos para o julgamento da aptidão para ooficialato (observações pessoais, informações dos relatórios de viagem e registrodas faltas cometidas durante o ano), todavia o Regimento omitia os meios ade-quados para fixar com precisão e segurança essa aptidão.

O Ministro Castro Nunes argumenta que os impetrantes não indicaram, nomandado de segurança, texto legal, regulamentar ou normativo em que pudessemfundamentar seu direito como líquido, certo e incontestável. Anota que esse textolegal teria de mencionar expressamente que, findo o curso da Escola Naval, restariaassegurada aos alunos a nomeação de guarda da Marinha ou o ingresso nooficialato. Todavia, isso não ocorreu, o texto legal citado no writ mencionava que,findo o curso, ficaria o ingresso dependente da apreciação de comissão designadapara tal desiderato. Essa comissão usufruía de poder para apreciar e fazer observa-ções pessoais sobre cada candidato, bem como para analisar as faltas disciplinaresaplicáveis. Note-se que se tratava de requisitos subjetivos, como “observaçõespessoais”, que poderiam ser interpretados como a vocação do candidato.

O Ministro entende ser injusta a situação criada para esses ex-alunos, mas nãovislumbra a possibilidade de declarar direito líquido e certo, pois o dispositivo legalsubordina a admissão, o ingresso, à apreciação de órgão ou comissão julgadora:

Toda vez que um direito fica na dependência de circunstâncias variáveisde caso para caso, como ocorre nesta hipótese, não é possível amparar o direitopor mandado de segurança. Reconheco, ou pelo menos inclino-me a supor, que omecanismo atual, como está delineado na regulamentação da Armada, possa con-duzir a soluções arbitrárias. Mas não me é dado retificar ou corrigir a lei. Em açãoe não em mandado de segurança seria possível discutir tudo isso com maiorlargueza de vistas. Para o mandado de segurança, é necessário que haja sempreum texto legal. Por outro lado, não me parece que neste ponto seja incompatívelcom o mandado de segurança por se tratar de punição disciplinar. A meu ver, oórgão estabelecido não é disciplinar, é de seleção, apurador de vocações, é umórgão incumbido de estabelecer um verdadeiro teste individual em cada um doscasos. Não se trata, portanto, de punição disciplinar, com a exclusão conseqüentedo mandado de segurança. O fundamento pelo qual o indefiro é não haver textolegal que assegure, independente de outras apreciações, o direito ao ingresso nooficialato da Marinha.

O Ministro Castro Nunes indefere o Mandado de Segurança, mas oSupremo Tribunal Federal concede em parte o writ.

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Ministro Castro Nunes

11. HABEAS CORPUS

CONCESSÃO DURANTE GUERRA

O Ministro Castro Nunes, em diversos julgados, defendeu o cabimento dehabeas corpus durante o estado de guerra. É imperioso registrar que o Ministrose dedicou com profundidade ao tema, chegando a escrever artigo intitulado “Ohabeas corpus no estado de guerra”, publicado nos Arquivos do Ministério daJustiça, vol. III. No caso do Recurso em Habeas Corpus n. 28.840/DF92, tratava-sede writ impetrado por paciente com vistas a requerer transferência de prisão,pois, uma vez que se encontrava preso por motivo de estado de emergência, suadetenção havia de se verificar em local especial, que não o destinado aos réus decrimes comuns.

O Ministro vota pela concessão da medida sustentando que compete aoPoder Judiciário a garantia dos direitos individuais. Salienta, ainda, que, no caso, otribunal local não conheceu do habeas corpus alegando o seu não-cabimento emestado de guerra. Quanto a esse ponto, o Ministro é enfático ao ressaltar queessa não é a posição predominante no Supremo Tribunal Federal, que tem conhe-cido do habeas corpus nessas hipóteses: mais uma razão para o cabimento damedida. Argumenta que:

Estamos julgando caso em que o Tribunal local declara que não conhecede habeas corpus, em estado de guerra; mas o Supremo Tribunal tem conhecidode habeas corpus nestas condições, contra dois votos, apenas.

Todavia, o Ministro José Linhares entende que:

Não é a mesma hipótese. Tem conhecido de habeas corpus, em que não hácensura legal de ter sido o ato praticado em virtude do estado de guerra. Assim,voto de acordo com o Sr. Ministro Relator porque não há nenhuma injuridicidadeno acórdão que não conheceu do habeas corpus impetrado com este fundamento.

O Ministro Castro Nunes entende ser cabível o habeas corpus no caso deguerra. No entanto, o Supremo Tribunal Federal negou provimento ao recurso,com votos vencidos dos Ministros Castro Nunes, Orozimbo Nonato e Laudo deCamargo.

No Recurso em Habeas Corpus n. 28.313/BA93, analisou-se se os tribunaispoderiam não conhecer do habeas corpus no estado de sítio e no estado de

92 Data da decisão: 8 de novembro de 1944. Relator e Presidente, Ministro Bento de Faria.93 Data da decisão: 26 de outubro de 1942. Relator, Ministro Orozimbo Nonato; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

guerra. Vale dizer que, na época da impetração do referido writ, o Brasil encon-trava-se em guerra com as potências do Eixo. Note-se que o entendimento exa-rado pelo Tribunal de Segurança era no sentido de não conhecer do habeascorpus para reexaminar as detenções ocorridas por motivo de segurança pública,no estado de sítio ou no estado de guerra.

O Ministro Castro Nunes manifesta-se no sentido de que o estado deguerra, suspendendo o habeas corpus, não impede, todavia, o seu conhecimento.Fundamenta sua posição no Direito Comparado, e cita os Estados Unidos e aInglaterra, onde o estado de sítio é caracterizado essencialmente pela suspensãoda medida. Inexiste nesses países o estado de sítio fictício, existe apenas o estadode guerra, no qual o habeas corpus é suspenso. Esclarece que neles vigoradistinção que seria aplicável ao caso presente: o que se suspende não é o habeascorpus, mas o privilégio do instituto. Nesses países, pode-se suspender o privilégio,sem suspender o writ. Então surge a pergunta: em que consiste o privilégio, comocoisa distinta do writ? O Ministro responde:

Consiste em que o habeas corpus, medida drástica por natureza, destinadaa assegurar a liberdade individual, e de conhecimento obrigatório, sempre que seapresente uma ilegalidade, ainda que aparente, para o conceder ou negar. O juiztem de conhecer para apreciar a coação. Outrossim, é de concessão obrigatória,sempre que se verificar coação ilegal; e nisso consiste o privilégio, que é a irrecusa-bilidade. É esse o sentido do advérbio “sempre” empregado em todas as nossasConstituições Republicanas: dar-se-á habeas corpus sempre que se verificar aviolência. “Sempre” revela o privilégio. Quer dizer, o privilégio é a irrecusabilidadeda proteção jurisdicional, em face da coação ilegal. O writ é o processo, o apelo,o remédio.

Registra ainda que, na América do Norte, os tribunais nunca deixaram deconhecer o habeas corpus, com exceção da zona de operações de guerra.Reside aí, segundo a interpretação conferida pelo Ministro, a única restrição quese pode impor ao conhecimento do writ, pois, nessa situação, o que vigora é a leimarcial, a autoridade do comando militar. Argumenta que:

Fora daí, porém, e nos casos em que o paciente não esteja incriminado pornenhum fato que afete ou atinja a segurança nacional, ou relacionado com oestado de guerra, não há razão para que não se dê o habeas corpus. Ainda mesmonos casos diretamente ligados ao estado de guerra, o Tribunal, provocado amanifestar-se, não pode sair-se pelo não-conhecimento.

O Ministro Castro Nunes votou pelo conhecimento do habeas corpus noestado de guerra, de emergência ou de sítio, e o Supremo Tribunal Federal, pormaioria de votos, decidiu no mesmo sentido. Note-se que o Ministro não se ren-deu às arbitrariedades do Estado ou das situações de exceção, pois era defensordos direitos e das garantias fundamentais assegurados no Texto Constitucional.

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Ministro Castro Nunes

GARANTIA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE CRENÇA NOESTADO DE GUERRA

No Habeas Corpus n. 28.629/DF94, o Supremo Tribunal Federal verificou apossibilidade do exercício da liberdade religiosa e de crença em face da necessidadede repressão de abusos prejudicais à segurança nacional em estado de guerra.

Tratava-se, no caso, de integrante da Igreja Adventista do Sétimo Dia, quefoi condenado pelo Tribunal de Segurança Nacional a três anos de prisão pelocrime de “instigar desobediência coletiva ao cumprimento da lei”, segundo oDecreto n. 431, de 18 de maio de 1938.

O Ministro Castro Nunes diverge do voto do Ministro relator, por considerarque, a despeito do exame da procedência ou da improcedência da acusação e deele entender ser possivelmente improcedente a acusação em face das provasproduzidas, a acusação não se cifra, nos termos da classificação do delito a quecorresponde a denúncia, no processo comum, a uma simples pregação de doutrinareligiosa ou filosófica. Entende que a acusação se concretiza em um fato, qualseja, na relação de causalidade existente entre o processo e a condenação dosoldado, que se insubordinou ao cumprimento da ordem de serviço, em virtude dapregação levada a efeito pelo pastor, que é o paciente do habeas corpus. Háapenas aparência de procedência, pois, sem provas básicas dessa pregação, porfatos, não se mostra possível condenar o paciente. Não há elementos suficientespara que não se conceda o remédio constitucional, uma vez que, se o Tribunal nãoo concedesse, haveria a necessidade de apreciação de fato, que é impossívelnessa medida.

Passa, então, a enfrentar outro aspecto da questão, qual seja, a tese abstratada possibilidade constitucional de pregação de qualquer doutrina filosófica oureligiosa. Defende o Ministro Castro Nunes a posição de que o estado de guerrapressupõe, necessariamente, a limitação de todas as liberdades. Alega que:

O estado de guerra supõe uma atitude coletiva para a guerra; a mobilizaçãode todas as forças físicas, intelectuais e morais, a serviço da causa comum; arenúncia de qualquer idéia abstrata ou filosófica que possa comprometer o êxitodas operações. Assim, pregar o pacifismo, no estado de guerra, num momentocomo este, é pregar o desarmamento, é pregar o derrotismo. Qualquer atitude derepressão das autoridades constituídas tem de ser admitida pelo menos, emprincípio, porque estaria de acordo com esta suprema lex, que seria a salvaçãopública.

Por essa razão, o Ministro vota pelo indeferimento do habeas corpus. OSupremo Tribunal Federal, por maioria de votos, denega a ordem.

94 Data da decisão: 26 de janeiro de 1944. Relator, Ministro Laudo de Camargo; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

CRIME DE DESACATO PRATICADO POR MILITAR

No Recurso em Habeas Corpus n. 29.187/DF95, tratou-se da extensão doforo militar aos civis, com vistas a ver declarada a inconstitucionalidade do art.226 do novo Código Penal Militar, que inclui o desacato entre os crimes contra aadministração militar, sob o fundamento de que tal crime não se enquadra nalocução “contra as instituições militares”.

O Ministro Castro Nunes declara que a questão já foi objeto de apreciaçãodo Supremo Tribunal Federal, sob a égide da Constituição de 1934, na qual ficavaa cargo do legislador submeter ao foro militar os civis que atentassem contra asegurança do País e suas instituições militares. Isso ocorreu por ocasião dacriação do Tribunal de Segurança como instância militar para os crimes políticose contra a ordem social. O Supremo Tribunal Federal seguiu a posição doMinistro Costa Manso e julgou improcedente a argüição.

A Constituição de 1934, que trouxe a mesma cláusula do Decreto-Lei n.510, de 22 de junho de 1938, submeteu à competência militar o julgamento decrimes cometidos por civis. Suscitou-se a vigência desse decreto em face dodispositivo constante do Código de Justiça Militar, que, posteriormente, não oreproduziu, restringindo-se apenas ao disposto no Texto Constitucional. Esclarece oMinistro Castro Nunes que:

Não prevaleceu, entretanto, a argüição, entendendo o Tribunal, não obs-tante respeitáveis votos vencidos, que o Código não revogara aquele Decreto eque, entre os crimes contra as instituições militares, poderia estar o de que entãose tratava, furto de material existente nos almoxarifados militares, porque cometido“contra a propriedade militar e a ordem econômica do Exército e da Marinha.

Segundo ele, no caso presente, a questão é mais fácil, visto que o CódigoPenal Militar incluiu o desacato entre os crimes contra a administração militar. Odesacato, no caso em exame, consistiu na falta da continência militar porinadvertência ou indisciplina do soldado de polícia. Assevera o Ministro:

Impossível negar que o desacerto em tais circunstâncias, nas circunstân-cias prefiguradas na lei, possa ser conceituado pelo legislador como crime contraas instituições militares, a cuja preservação se procurou prover, com a extensãodo foro militar aos civis, não somente no terreno econômico ou material, masainda, e precipuamente, no resguardo de outros interesses superiores, de ordemmoral, ligados ao respeito devido à função e a sua exteriorização, que é a farda.

O Ministro Castro Nunes nega provimento ao recurso, e o Supremo TribunalFederal o acompanha por unanimidade.

95 Data da decisão: 17 de outubro de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

CRIME DE USO DE UNIFORME POR MILITAR DA RESERVA

No Recurso em Habeas Corpus n. 28.025/DF96, analisou-se a legalidadede prisão de oficial reformado, por usar uniforme da ativa. O Ministro CastroNunes foi relator e iniciou seu voto analisando o art. 96 do Código Militar, queestabelecia ser o uso dos uniformes do Exército e da Armada privativo dosmilitares em serviço ativo.

Já em seu art. 98, o referido Código estabelecia que os militares reformadospoderiam usar os respectivos uniformes por ocasião de cerimônias militares oucívicas. Estabelecia ainda, em seu art. 102, que o uso indevido do uniforme eracrime, ficando o transgressor sujeito às penas correspondentes.

No caso em tela, o paciente usou o uniforme da ativa para andar na rua ealegou que tal infração configuraria mera transgressão disciplinar, mas nãocrime, pois a vedação ao uso do uniforme aplicava-se somente aos civis, comfulcro no art. 160, letra c, da Constituição, que dispõe: “os títulos, postos euniformes das forças armadas são privativos dos militares de carreira, ematividade, da reserva ou reformados”. Todavia, o Ministro Castro Nunes ponderaque “o uso indevido do título, posto ou uniforme pode ocorrer também no seio dasincorporações militares, sobrestando a hierarquia, que lhes é inerente. De modoque não seria possível deixar de sancionar as violações.”

O Ministro entende que o fato imputado ao paciente é crime e que asrestrições previstas na lei, referentes ao uso do uniforme, com fundamento nadistinção entre policiais da ativa e reformados, não ofendem em nada o TextoConstitucional. Por isso, nega, provimento ao recurso, e o Supremo TribunalFederal profere decisão no mesmo sentido.

Sobre essa mesma questão há os votos proferidos pelo Ministro CastroNunes nos Recursos em Habeas Corpus n. 28.631 e 30.309/SP97. Neste último,ressaltou:

Sr. Presidente, desejo esclarecer que o habeas corpus não visa apenas darcumprimento a um dispositivo do Estatuto dos Militares. O paciente está tambémincurso em disposição do Código Penal militar e, assim, está na iminência deprocesso penal. Em vista do caráter penal e não apenas disciplinar da infração,caráter penal que decorre da definição pelo Código Penal militar do delitoconsistente em usar uniforme a que não tenha direito, foi que admiti o habeascorpus. Fosse apenas punição disciplinar, que não tivesse correlação cominfração penal, também não admitiria o habeas corpus.

96 Data da decisão: 10 de dezembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.97 Data da decisão: 19 de maio de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente, Minis-tro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

Firma, mais uma vez, o Ministro Castro Nunes o entendimento de que acriminalização do uso de uniforme entre militares da ativa e da reserva não ofendea Constituição.

CONCESSÃO EM FACE DA FALTA DE CONFIGURAÇÃO LEGAL

No Habeas Corpus n. 28.460/DF98, discutiu-se a concessão de habeascorpus em face da ilegalidade de condenação, visto que o fato imputado aopaciente não se enquadrava nos dispositivos penais em que foi capitulado o delito.

O Ministro Castro Nunes, relator do processo, esclarece que a questão prin-cipal é saber em que consiste o fato discriminado no art. 3º do Decreto-Lei n. 869:

Art. 3º Violar contrato de venda a prestações, fraudando sorteios oudeixando de entregar a coisa vendida, sem devolução das prestações pagas, oudescontar destas, nas vendas com reserva de domínio, quando o contrato forrescindido por culpa do comprador, quantia maior do que a correspondente àdepreciação do objeto.

O Ministro entende que a questão não é simples, visto que deve serapreciada à luz da garantia constitucional do art. 122, n. 13, da Constituição de193799, que dispõe que as penas estabelecidas na lei não se aplicam a fatosanteriores, ou seja, o fato incriminado por lei posterior não pode ser por elaalcançado. Nesse particular, o advento de decreto-lei violar contrato de compra evenda, em qualquer modalidade, não constituía crime, aplicando-se a questão àsregras do direito civil ou comercial.

Ora, o fato incriminado nada mais é do que a violação do contrato devenda a prestação mediante as seguintes formas ou modalidades: a) fraudar ovendedor sorteios; b) deixar de entregar a coisa vendida sem devolução dasprestações pagas; c) descontar dessas prestações, nas vendas com reserva dedomínio, rescindidas por culpa do comprador, quantia maior do que a correspon-dente à depreciação do objeto. Sustenta o Ministro Castro Nunes que:

Serão esses os momentos da violação, em cada uma dessas modalidades,sem que, entretanto, se possa abstrair do fato anterior, que foi o contrato devenda a prestações, porque então se teria cindido o delito ao seu enunciado legal,no conjunto da sua definição, na integração dos seus elementos componentes,para autorizar a aplicação retroativa vedada pelo preceito constitucional.

98 Data da decisão: 14 de julho de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.99 Dispõe o art. 122, n. 13, da Constituição de 1937: “não haverá penas corpóreas perpé-tuas. As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anterio-res. Além dos casos previstos na legislação militar para o tempo de guerra, a lei poderáprescrever a pena de morte para os seguintes crimes:”

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Ministro Castro Nunes

Entende, ainda, ser possível a distinção, na doutrina, do crime, que ésempre fato comissivo ou omissivo, da incriminação, que é o preceito legal. Nãohá negar que seja distinção puramente formal. Define o crime em estudo comoviolação do contrato de venda a prestações, visto que, sem esse contrato, nãopode existir a violação pressuposta. Atenta para o fato de que:

Entre a violação, em qualquer das modalidades figuradas em lei, e ocontrato preexistente, existe tal relação de consolidade que sem ela a violação nãoseria imputável ao promitente da escritura. O crime, no caso, depende de umevento, resultado ou efeito que é a violação do contrato; e esse evento, dispõe oart. 11 do atual Código Penal, “somente é imputável a quem lhe deu causa”.

Nesse sentido, é irrelevante se o contrato é a causa mediata ou remota.Indaga o Ministro:

Ora, se o crime, na sua expressão legal, supõe um antecedente ou pressu-posto, que é o contrato, como dissociar o evento para situar nele, e somente nele,a incriminação? Não estará ela no conjunto dos fatos, no contrato e nas violaçõesprefiguradas na lei? E não bastará isso para que, no interesse da tutela da liberdade,não deva retroagir a lei?

O Ministro esclarece que o Decreto-Lei n. 869/38 refere-se apenas àsvendas realizadas com reserva de domínio, não trata das duas outras modalidadesde violação dos contratos de venda a prestação, logo vale como interpretaçãoautêntica a ser estendida às duas outras formas de violação. Acentua que olegislador — ao estabelecer que os contratos com cláusula de reserva de domínio,quando celebrados antes do Decreto-Lei n. 869/38, não são por ele alcançados —definiu que continuam regulados pela legislação comum. Dessa forma, estatuiu-sede modo expresso que obstáculo à retroação é o contrato de venda a prestações —o contrato em si mesmo —, e não as suas violações, que ocorrem em momentoposterior.

Não será demais observar que o Decreto-Lei 869 não contém cláusularetroativa, que, aliás, seria inconstitucional, mesmo adotada a interpretaçãorestritiva por mim sustentada em voto aqui proferido e em explanação sobre amatéria (Rev. Forense, vol. 91, pp. 5 e segs.), por isso que em se tratando deincriminação de fatos ou de majoração de penas a retroação está proibidaformalmente, não podendo o intérprete nem o legislador desconhecê-la oudispensá-la.

Entende o Ministro que a lei nova apanha as violações do contrato verifi-cadas na sua vigência, não se aplica à venda anteriormente pactuada e realizada.Nesse particular, acentua a necessidade de verificar se, entre a denúncia e arecusa, decorreram mais de dois anos, ou um ano, em conformidade com a legis-lação penal anterior. Todavia os autos não fornecem elementos precisos.

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Memória Jurisprudencial

Castro Nunes não concede a prescrição, mas concede a ordem. Em dis-cussão com o Ministro Goulart de Oliveira, reconhece que o fato não se enquadrano dispositivo penal em que foi dado como incurso o paciente, todavia não semostrava possível rever a classificação, por não ser o habeas corpus meiopróprio para isso. O Supremo Tribunal Federal defere a ordem por unanimidade.

FALTA DE JUSTA CAUSA PARA INSTAURAÇÃO DO PROCESSO

No Habeas Corpus n. 28.291/PB100, o paciente era autor de livro sobreas “Bases do separatismo”, publicado em 1935, em São Paulo. A edição foiapreendida pela polícia e o caso foi remetido, pelo juiz federal que julgouprocedente a apreensão, em sede de recurso, à Corte Suprema, que reformou odespacho e julgou ilegal a apreensão.

O Supremo Tribunal Federal, na ocasião, confrontou a obra apreendidacom as figuras delituosas constantes da Lei n. 38 e não encontrou base para aincriminação do fato, considerando que a opinião do paciente era “errônea eantipatriótica, por ser hostil à grandeza da pátria”.

O autor, em 1940, residia na Paraíba e lá se encontrava quando, porsolicitação do Presidente do Tribunal de Segurança Nacional, a polícia daqueleEstado abriu inquérito contra o paciente e efetuou buscas nas livrarias paraapreender a sua obra. No entanto, não foi encontrado nenhum exemplar da obrana Paraíba. O inquérito resultou negativo, mas o autor foi processado perante oTribunal de Segurança e condenado, em setembro de 1941, à pena de três anosde prisão celular.

Em face dessa condenação, impetrou habeas corpus. O que estava emdiscussão, em um primeiro momento, era decisão do Supremo Tribunal Federalque versava sobre o mesmo fato. Nesse particular invocou-se a coisa julgadacom a finalidade de trancar o novo processo, como fundamento na “justa causa”.O Ministro Castro Nunes acentua que, a rigor, a coisa julgada não existe:

É certo que a apreensão foi julgada ilegal por apreciação das idéias do autor,idéias que, não obstante repelidas, não configuravam, segundo se entende, crimeprevisto na lei de segurança. Mas a decisão do Tribunal não foi, nem podia ser, deabsolvição, pois que teria de limitar-se, como se limitou, à ilegalidade da apreensão.

Nesse sentido, não se trata de coisa julgada, mas de ausência de justa causapara a instauração de novo processo. A questão que se coloca a partir daí é a desaber se a falta de justa causa pode servir de fundamento a pedido de habeascorpus, mesmo em se tratando de réu condenado. Salienta o Ministro que:

100 Data da decisão: 26 de outubro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

É sabido que o habeas corpus, em se tratando de réu pronunciado oucondenado, é de âmbito mais restrito do que nas outras hipóteses. O habeascorpus não é meio de cassar sentenças condenatórias. O recurso próprio é arevisão, esgotados os meios ordinários. Por isso mesmo só em casos restritospode ser concedido, de acordo com ensinamentos conhecidos.

O Ministro entende que, no caso dos autos, não se pode afirmar que nãotenha havido justa causa para o processo e a condenação. Prossegue:

Se é possível entender que o livro do paciente, as idéias por ele expostasque se denunciam no próprio título, o separatismo que ele prega, a cizânia queprocura estabelecer entre o Escrito e a Noção não configuram uma infração daLei 38 — entendimento a que, data venia, eu não aderiria —, torna-se difícilafirmar que não haja justa causa para o procedimento penal, tão flagrante é aatitude de impatriotismo e de lesa-pátria assumida pelo autor.

Assevera, ainda, em discussão com o Ministro Orozimbo Nonato:

Fiz um relatório excepcionalmente minucioso e devo, ainda, acrescentarque, em outras circunstâncias, em outro caso, talvez aceitasse a alegação da“justa causa”. No caso dos autos, porém, em que se corporifica, no livro que estájunto aos autos, um crime monstruoso contra a Nação, não há como aceitar talalegação, que é a única, na hipótese.

Argumenta o Ministro Orozimbo Nonato: “Com a mesma veemência comque V. Exa. exprime o seu patriotismo, eu proclamo minha obediência à lei, que é,também, uma forma de patriotismo. Concedo a ordem.”

O Ministro Castro Nunes mantém sua posição e indefere a ordem, comovoto vencido, pois o Supremo Tribunal Federal a defere.

CABIMENTO EM FACE DE DECISÃO DE SEGUNDA INSTÂNCIADESPROVIDA DE FUNDAMENTAÇÃO

O Supremo Tribunal Federal analisou o cabimento do Habeas Corpus n.28.495/DF101, em face de decisão do Tribunal de Segurança desprovida defundamentação. Visava-se, com a impetração do referido remédio constitucional,restaurar a sentença de primeira instância que absolvera os pacientes sob ofundamento de que não constituíam crime definido em lei os fatos a elesimputados, ao tempo em que se teriam passado.

Os pacientes foram acusados de envolvimento em serviço de espiona-gem — iniciado antes da ruptura das relações diplomáticas entre o Brasil e as

101 Data da decisão: 18 de agosto de 1943. Relator, Ministro Waldemar Falcão; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

potências do Eixo, mas que se prolongou pelo menos até 1942 —, por enviarinformações, ao Estado Maior da Marinha alemã, sobre a saída, o destino, oarmamento, a nacionalidade e a carga de navios.

No caso, destaca-se o fato de haver a instância superior, ao reformar adecisão de primeira instância, omitido os fundamentos ou os motivos quedeterminaram tal reforma.

O Ministro Castro Nunes ressalta a importância do princípio da obrigatorie-dade da fundamentação das sentenças, ao qual declara simpatia. Afirma que éuma das garantias mais eficazes, visto que a fundamentação, ao mesmo tempoem que limita o arbítrio do juiz, confere confiança aos jurisdicionados e favorecea crítica da sentença da primeira para a segunda instância.

Ressalta, no entanto, o fato de tal princípio não estar expresso em nossapreceituação legal, nem mesmo na legislação processual, ao contrário do queocorre em algumas Constituições. Em face dessa circunstância, declara:

De modo que eu, não obstante essa simpatia confessada, doutrinariamentefalando, não posso aderir ao voto manifestado pelo Sr. Ministro PhiladelphoAzevedo e pelos colegas que o acompanharam, porque o que está expresso emnossa lei processual penal, como princípio geral, é que constitui nulidade doprocesso a falta da sentença.

O Ministro cita o art. 564, que estatui como fator de nulidade da sentençaa falta de fórmula ou termo processual, cuja enumeração se procede a seguir e sevê na sentença. É dizer, não se fala em fundamentação da sentença, o quesignifica, segundo o Ministro Castro Nunes, que, em face do nosso direitoexpresso, a falta de fundamentação, na sentença ou no acórdão de segundainstância, não constitui nulidade do processo. Em face dessa circunstância, nãoreconhece a nulidade da sentença, pelo fato de inexistir disposição legal expressadispondo sobre a matéria.

O Ministro Orozimbo Nonato intervém para dizer que, se a sentençasuperior confirma ou não a inferior, adotando os seus fundamentos, existefundamentação. Pondera o Ministro Castro Nunes:

V. Exa. poderá presumir, razoavelmente, que, nada dizendo a decisão desuperior instância, é que aceitou a fundamentação da primeira instância. Setivesse dito “confirmo, por seus fundamentos”, como acontece todos os dias,estaria sanada a possível nulidade? (...) Penso que, da mesma forma, não há, aí,nulidade. Está sanada.

Na análise do caso sub examine, o Ministro atenta para o fato de se tratarde decisão do Tribunal de Segurança, que, como órgão da Justiça especial, por suanatureza, reflete as características e a destinação dessa mesma Justiça. Esclarece:

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Ministro Castro Nunes

Foi instituído, na Constituição, com uma autonomia muito ampla, obede-cendo aos fins da sua própria instituição, a qual foi conferida retirando-se aosjuízes federais que eram juízes regulares, o conhecimento de certos crimes paraatribuí-lo a uma Justiça Especial; esta constitui por si mesma, uma exceção deseveridade nos quadros judiciários, uma restrição à defesa nos moldes comuns,que são mais amplos, uma autonomia decisória desconhecida da processualís-tica das instâncias penais, porque se lhe conferiu de par com a abreviação dasformas processuais e redução das provas até mesmo o poder de julgar por livreconvicção.

Assim, a posição da Justiça ordinária e, em particular, do Supremo TribunalFederal, em face dessa Justiça, é, nas suas palavras, de grande discrição no quese refere aos motivos de sua apreciação. Sustenta que ela foi instituída comoJustiça de defesa do ente estatal, com os meios considerados adequados paraessa preservação, em que o interesse precípuo pode não ser o da liberdadeindividual, como ocorre nas Justiças regulares. Sustenta:

Não vejo, portanto, como pronunciar a nulidade, pelo só fato de haver ainstância superior, ao reformar a decisão de primeira instância, omitido osfundamentos ou motivos que tenham determinado essa reforma; sobretudoquando a razão que se invoca para pedir o habeas corpus, é a aplicação retroativade lei penal, inatendível no estado de guerra.

O Ministro vota pela denegação da ordem impetrada, e é essa a orientaçãoprevalecente na decisão do Supremo Tribunal Federal.

NÃO-CABIMENTO PARA AFASTAR RETARDAMENTO DE INSTRUÇÃOPROBATÓRIA

No Recurso Extraordinário n. 29.741/RJ102, questionou-se a possibilidadede impetração de habeas corpus com a finalidade de afastar motivo de retarda-mento na instrução probatória, atendível ex vi legis, no caso em que outro motivorelevante é também suscitado.

O Ministro Castro Nunes faz menção ao art. 403 do Código de ProcessoPenal, que admite o retardamento desde que resultante de doenças do réu ou deseu defensor ou por motivo de força maior. Ressalta que não é qualquerimpedimento que justifica a demora, mas apenas obstáculo sério. Do contrário, osprazos legais restariam como letra morta. Assevera que:

O chamamento a juízo de outros denunciados tornaria inútil a inquiriçãoou forçaria a reinquirição das testemunhas de acusação, dos arrolados inicial-

102 Data da decisão: 23 de abril de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

mente e de outros referidos. Seria por si só um motivo atendível. Aliás, existemjulgados deste Supremo Tribunal e de outras Cortes judiciárias dando comojustificada a demora por motivo de arrolamento de outras testemunhas ou dedificuldade em ouvi-las conforme se vê dos comentários de Espínola Filho, 2.ed., vol. 4, n. 783. (...) O serviço eleitoral prefere a qualquer outro, preferência que,observa o impetrante, poderia refletir-se nas vésperas e ao tempo das eleiçõesestaduais para retardar a instrução, que, todavia, mesmo depois, ainda continuouentravada.

O Ministro Castro Nunes reconhece que não é impossível nesse caso, bemcomo em outros, que a morosidade no andamento do processo de réus presos nãoseja provocada apenas pelo serviço eleitoral, mas por diversos outros fatores. Noentanto, entende não ser cabível o habeas corpus para resolver a questão. OSupremo Tribunal Federal, por unanimidade, indefere o recurso.

CONCESSÃO PARA EXILADO POLÍTICO

No Habeas Corpus n. 29.002/DF103, enfrentou-se questão relativa à possi-bilidade de citação, por edital fixado na porta do Tribunal de Segurança Nacional,de pacientes soltos ou foragidos, no caso exilados políticos em decorrência domovimento conspiratório arquitetado em São Paulo.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes concede a ordem, por entender quefoi nulo o processo por falta de citação pessoal e somente por esse fundamento.Entende que, no caso, não se trata nem de réu solto ou foragido, nem de réupreso, tratando-se de situação sui generis. Esclarece que réu foragido “é aqueleque procura escapar ou consegue escapar, sair do distrito da culpa, procurandoesquivar-se, evadir-se ao processo, sem ciência ou iludindo a vigilância das auto-ridades.” Já o réu solto, no seu entendimento, é aquele que se pode locomoverlivremente no distrito da culpa. No caso em tela, estava-se diante de réus convi-dados a sair do País, os quais se encontravam soltos, mas não em solo brasileiro,portanto não se incluíam na definição de “réu solto”. Prossegue o Ministro CastroNunes a analisar esse aspecto sob o prisma do direito comparado, precipuamentedo direito argentino. Argumenta que:

O réu comprometido num a crise política é convidado pela autoridade aretirar-se do país a fim de não ser preso. (...) De modo que, aqui como lá, não setrata propriamente de uma imposição, mas de uma injunção, de uma soluçãooptativa. Dá-se ao comprometido na crise política, ao cidadão indiciado oususpeito à autoridade, a opção entre a prisão e a saída do país.

103 Data da decisão: 11 de abril de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Ressalta o Ministro que se trata de medida de cunho eminentementepolítico. Todavia não se confunde com a expulsão, que seria inconstitucional portratar-se de brasileiro nato. A saída do País é opção que o Governo oferece aoenvolvido no crime, mas que não concede a todos, advertindo que se trata desolução mais amena, pelo menos nos casos dos que tenham posses que lhespermitam viver em outro país.

Essa observação feita pelo Ministro Castro Nunes é bastante pertinente,visto que o exílio beneficia apenas aqueles que possuem condição econômica quelhes permita viver em outro país, no entanto não era essa a realidade da maioriados acusados. O Ministro concede o habeas corpus, e o Supremo TribunalFederal, por unanimidade, segue o seu entendimento.

CONCESSÃO NO CRIME POLÍTICO

O Recurso em Habeas Corpus n. 27.757/DF104 visava à liberação de ex-tenente do batalhão de caçadores condenado pela Justiça especial a seis anos eseis meses de reclusão, que, tendo cumprido dois terços da condenação, combom comportamento, pleiteava o livramento condicional, que lhe foi negado pelojuiz da execução.

O Ministro Castro Nunes, em seu voto, lembra que, na vigência doDecreto-Lei n. 431/38, não era permitida a concessão de livramento condicionalaos que praticaram crime político, pois o dispositivo, mesmo posterior à sentença,era aplicável a este caso, visto que o preceito constitucional que proibia aaplicação de lei penal aos fatos anteriores estava subordinado, como todas asgarantias constitucionais, ao disposto no art. 123 da Constituição de 1937, que écritério hermenêutico, segundo ele, na medida dessa garantia, porque fixa umaregra para o intérprete. Dispõe o referido dispositivo constitucional:

Art. 123. A especificação das garantias e direitos acima enumerados nãoexclui outras garantias e direitos resultantes da forma de governo e dos princípiosconsignados na Constituição. O uso desses direitos e terá por limite o bempúblico, as necessidades da defesa, do bem estar, da paz e da ordem coletiva, bemcomo as exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituídoe organizado nesta Constituição.

Argumenta o Ministro que a regra constante do art. 122 — que trata dorol de direitos e garantias individuais — tem de ser interpretada em face daslimitações a que faz alusão o art. 123, pois, se é certo que a supressão dolivramento condicional agrava a pena na legislação anterior, também é igual-mente certo que o referido preceito constitucional não impede sua aplicação

104 Data da decisão: 16 de abril de 1941. Relator, Ministro Octavio Kelly; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

retroativa. Nas palavras do Ministro Castro Nunes, o crime de extremismo édaqueles que afetam a segurança das instituições, hipótese em que poderá a leinova retroagir. Sustenta que:

Se, porém, o tribunal entender de outro modo, isto é, entender que se deveconhecer do pedido, voto, como disse, pela diligência, porque não estou deacordo com a tese de que o criminoso político não pode regenerar-se. A meu verpode; mas não basta o bom comportamento na prisão. Será necessário que ele dêmostras públicas de que abandonou idéias extremistas, em termos que levem aacreditar na sinceridade de suas declarações.

O Ministro nega seguimento ao recurso, mas o Supremo Tribunal Federal,por maioria, dá provimento para conceder a ordem.

CABIMENTO PARA GARANTIR LIVRAMENTO CONDICIONAL NOSCRIMES POLÍTICOS

No Recurso em Habeas Corpus n. 28.095/DF105, tratava-se e de writimpetrado com o objetivo de garantir o livramento condicional a condenadospolíticos antes do Decreto-Lei n. 431. O Ministro Castro Nunes destaca aposição de não admitir o livramento condicional, proibido pelo Decreto-Lei n.431. Todavia, ressalva que é necessário observar dispositivo do Código Penal quenão constava da preceituação antiga.

Em votos anteriores, o Ministro Castro Nunes exigia a demonstraçãopública pelo réu, no caso de crime político, de repúdio das idéias incriminadas nalei. Tal exigência encontrava respaldo no Código Penal, que, ao dispor sobre olivramento condicional, impunha como condição a ausência ou a cessação dapericulosidade. Esclareceu o Ministro que:

O preceito legal que proíbe o livramento condicional ao criminoso políticopartiu do princípio da periculosidade do agente pelas suas idéias. Não é possíveladmitir nenhuma prova em contrário. Quero dizer que os criminosos políticos sãoperigosos ex vi lege, não podendo merecer livramento condicional, porque suapericulosidade está estabelecida na lei, por uma presunção legal.

No entanto, ponderou o Ministro que, se o Supremo Tribunal Federal, emconformidade com a posição dominante, admitisse o livramento condicional, elenão se insurgiria contra a decisão da maioria. Todavia, fazia-se necessária, comfundamento na lei, a demonstração da cessação de periculosidade, que, no casoanalisado, se deu com o fato de o paciente ter escrito carta em que declaravaabjurar suas idéias políticas. Tratava-se, na opinião do Ministro, de retratação

105 Data da decisão: 29 de janeiro de 1942. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

formal. Ele não admitia o livramento, mas, se esta fosse a vontade da maioria,concederia o habeas corpus nesses termos.

O Supremo Tribunal Federal concedeu o habeas corpus por maioria devotos.

No Recurso em Habeas Corpus n. 27.761/DF106, enfrentou-se novamentequestão acerca da impossibilidade de conceder livramento condicional aoscriminosos políticos, em virtude da impossibilidade de regeneração. Em seu voto,o Ministro Castro Nunes demonstra que, em tese, no campo doutrinário, aregeneração seria possível, diferindo dos demais crimes apenas pela natureza dodelito, pois, nos crimes comuns, é suficiente o bom comportamento. Todavia,como o crime político se dá no campo ideológico, da pregação, da doutrina, énecessário que o criminoso demonstre com provas inequívocas que abandonouas idéias e as doutrinas na lei incriminadas.

O Ministro reconhece que é difícil exigir e admitir que um homem, depoisde uma vida de contato direto com os acontecimentos do País, abandone suasidéias e assuma outra atitude, a ponto de fazer profissão de fé em que renegasuas atitudes anteriores. Argumenta:

Mas a doutrina extremista que a lei incrimina é o comunismo, que, comotodos nós sabemos, é, pela sua natureza, uma doutrina de combate, é a açãodireta, a propaganda pelo fato; é da índole dessa doutrina a afirmação de que oseu instrumento não é a persuasão, senão a propaganda concreta, o crime, adestruição, a guerra civil, a luta de classes: aí está a diferença fundamental a nãoser perdida de vista. Para se ter como regenerados tais criminosos, é necessárioprovar, por um conjunto de circunstâncias que façam fé, que o sentenciado querepudiou aquelas idéias, que não voltará mais a propagá-las.

O Ministro nega o habeas corpus por entendê-lo não cabível e entendenão existirem elementos no processo que demonstrem a regeneração. OSupremo Tribunal Federal concede a ordem.

No mesmo sentido há o Recurso em Habeas Corpus n. 28.182/DF107.

COMPETÊNCIA PARA JULGAR CRIME POLÍTICO

No Recurso em Habeas Corpus n. 30.439/RS108, tratou-se da competênciapara julgar recurso de crime político. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes

106 Data da decisão: 23 de abril de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.107 Data da decisão: 9 de junho de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.108 Data da decisão: 18 de agosto de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

observa que o dispositivo constitucional estabelece que compete ao SupremoTribunal Federal o julgamento em recurso ordinário de crimes políticos, de modoque se insere igualmente em sua competência o conhecimento dos recursos emhabeas corpus relacionados com a mesma incriminação.

Os acusados de crime político são julgados em primeiro grau pelo juiz dedireito competente articulado com o Supremo Tribunal Federal como instânciasuperior. Esclarece que:

O constituinte adotou uniformemente a regra de não sujeitar ao reexame decada qual daqueles tribunais superiores a decisão do habeas corpus quandoconcessiva. Não se apercebeu do inconveniente de ficarem sem esse reexame asdecisões concessivas, ao menos em se tratando de crimes federais. Mas, nadatendo estabelecido quanto ao Supremo no conhecer e julgar dos crimes políticosdeixa-nos aberta a porta para não agravarmos a insegurança em que fica ointeresse público na repressão de certos crimes. E a criminalidade política,dizendo com a segurança das instituições e a paz social, comporta, a meu ver, aexceção, a ser admitida, no silêncio do texto, do recurso da decisão concessiva.

O Ministro Castro Nunes votou no sentido de admitir a competência doSupremo Tribunal Federal, mas denegou a ordem — decisão que o Tribunalacompanhou unanimemente — por outros fundamentos.

CABIMENTO EM FAVOR DE PRESO ESTRANGEIRO MANTIDOINCOMUNICÁVEL PARA SER EXPULSO

O Habeas Corpus n. 30.244/RS109 foi requerido em favor de lituanoscomunistas, articulados internacionalmente, que se encontravam presos porordem do Ministro da Justiça, para serem expulsos do território nacional.Alegava-se que a prisão era inconstitucional em face do art. 141 da Constituiçãode 1946 — que estabelecia o rol de direitos e garantias individuais — e agravadapela incomunicabilidade imposta aos pacientes, tolhidos em seu direito de defesa.

O Ministro Castro Nunes afirma que o ponto merecedor de análise ser dizrespeito à incomunicabilidade, pois, quanto aos demais aspectos, sabe-se que édireito de todo Estado soberano expulsar estrangeiros prejudiciais à ordempública ou à paz social. Nesse particular, explica que:

É sabido, aliás, que os poderes do Governo para expulsar são, em princípio,discricionários. O governo é o juiz da nocividade do estrangeiro, não se imiscuindonessa apreciação o Judiciário senão em casos especialíssimos. Já assim se entendiana antiga jurisprudência deste Supremo Tribunal, ainda que com a discrepânciade votos e de alguns arestos, distanciados, data venia, daquela diretriz maiscoordenada com a natureza e fins do instituto da expulsão.

109 Data da decisão: 28 de abril de 1948. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

No que concerne à questão da incomunicabilidade, questiona o Ministro sepoderia o Governo manter incomunicável o estrangeiro preso para ser expulso.Anota que o Decreto-Lei n. 479/38 referia-se à detenção enquanto não seconsumasse a expulsão, ou seja, enquanto não fosse decretada. Nesse particularpodia a prisão ser ordenada pelo Ministro da Justiça “ou poderá manter adetenção do expulsando ou mandar que continue preso”. Sustenta:

Nestas palavras finais do art. 5º daquela lei é que está autorizada a prisãopreventiva, na fase policial, por inferência de uma detenção mantida ou mandadacontinuar, o que supõe necessariamente uma prisão preexistente ao decreto daexpulsão.

Resta omissa, no entanto, qualquer menção à incomunicabilidade. O MinistroCastro Nunes argumenta que:

A incomunicabilidade é uma agravação considerável da prisão, porque su-prime as possibilidades da defesa. É admitida na detenção política, por efeito e emvirtude do estado de sítio, que envolve a suspensão das garantias constitucionais.

Entende o Ministro que a prisão do estrangeiro residente para ser expulso,depois de verificados os fatos criminosos que lhe imputam, comporta defesa doexpulsando, que pode recorrer ao Judiciário, consoante o disposto no art. 8º, § 2º, doDecreto-Lei n. 479. Segundo seu entendimento, é permitido ao Governo mandarprender o estrangeiro incidente nas práticas constantes da lei de expulsão emantê-lo sob custódia até o fim do inquérito policial ou, se já decretada a expulsão,até que seja efetivada. No entanto, adverte: “Mas não pode trancar-lhe o direito deconhecer as increpações, contraditá-las, contestar os fatos argüidos, o que só serápossível se lhe derem o direito de constituir advogado e com ele se comunicar”.

Ressalta, ainda que, por mais amplo que seja o instituto da expulsão e pormais acertada que seja a finalidade de proteção do bem público que fundamenta oemprego da medida, ela só deve ser aplicada nos casos constantes expressamentena lei. Se a expulsão se der por fundamento diverso dos enumerados pela lei, seráilegítima. A expulsão está condicionada à apreciação da suficiência dos motivos e àjustificação da conveniência da medida, consoante as lições do Ministro Bento deFaria. Anota o Ministro Castro Nunes:

É desse ponto de vista que se pode dizer que os poderes de que dispõe oGoverno para expulsar, mesmo no regime constitucional, são discricionários.Não, porém, na observância da forma legal prescrita. E a incomunicabilidadeexcede, a meu ver, esses limites e contravém à possibilidade prevista na lei mesmado recurso ao Judiciário.

O Ministro Castro Nunes profere voto no sentido de conceder a ordempara o fim restrito de cessar a incomunicabilidade dos pacientes.

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Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS E RECURSO ORDINÁRIO

No Recurso em Habeas Corpus n. 28.845/MT110, o Ministro CastroNunes manifestou entendimento de que não é impróprio o uso de habeas corpuspela simples razão de dispor o paciente da possibilidade de interposição derecurso ordinário. Entende ser cabível o habeas corpus, dependendo daevidência da ilegalidade, ou seja, a questão deve ser apreciada diante do casoconcreto. Sustenta que:

em princípio, o habeas corpus, na pendência, ou na possibilidade de recursoordinário, nem por isso deixará de haver nesses casos um fundamento para nãoconceder, a fim de não frustrar o recurso ordinário. Este será o meio próprio a serutilizado. O habeas corpus é meio excepcional a ser admitido em princípio, porquenão seria possível conservar um réu condenado em primeira instância por um juizmanifestamente incompetente até o julgamento da apelação.

O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, deu provimento aorecurso.

CONCESSÃO DE REGIME ESPECIAL

O Recurso em Habeas Corpus n. 28.318/DF111 tinha por finalidade obtertransferência para prisão especial ilegitimamente recusada. No caso em tela, otribunal de apelação indeferiu o writ por entender que não cabia interposição dehabeas corpus para restituir liberdade de locomoção que continuará suspensapor efeito da condenação, tratando-se apenas de correição parcial, com vistas agarantir ao paciente o direito à reclamada prisão especial.

O Ministro Castro Nunes argumenta que sempre se entendeu cabível a viado habeas corpus para transferir o réu de uma prisão para outra ou até mesmopara pôr fim à incomunicabilidade na prisão em que se encontrava. Nesse caso ohabeas corpus não restitui a liberdade ao paciente, mas remedia a ilegalidadeadjeta ou acessória que acaba por agravar a prisão. Esclarece que:

É uma extensão perfeitamente compatível com a natureza e fins do habeascorpus, este se limita a assegurar a liberdade de locomoção, mas tal liberdadetanto pode estar comprometida in totum, e nesse caso a concessão terá por fimrestaurá-la, soltando o preso, como o pode estar em parte, e tal é o caso, em quese não reclama a soltura, mas o cumprimento da pena em prisão especial. Emúltima análise, o habeas corpus visa é à liberdade de locomoção, seja pararestituí-la, seja para não lhe agravar as restrições fora dos limites da lei, o mais émérito da questão.

110 Data da decisão: 8 de novembro de 1944. Relator, Ministro Goulart de Oliveira;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.111 Data da decisão: 11 de novembro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Admite, portanto, o habeas corpus e passa a analisar outro aspecto docaso, pois entende que o militar, oficial ou inferior, quando excluído por força dacondenação, mesmo em se tratando de condenação proferida pela JustiçaMilitar, cumpre pena em prisão civil. Surge, então, questionamento referenteaos casos em que a condenação não acarreta a perda da patente e do posto,devendo o condenado, depois de cumprida a pena, voltar às fileiras. Esclareceo Ministro:

Diga-se, entre parênteses, que, até a condenação definitiva, o acusadotem direito à prisão especial, responde ele perante a Justiça militar ou perante ajustiça comum. Não chega a ser mesmo um privilégio dos militares, uma vez que oatual Código de Processo Penal, repetindo, aliás, preceitos preexistentes, queapenas terá ampliado, inclui na enumeração dos acusados com direito àquelaprerrogativa os ministros de Estado, os governadores e interventores, osmagistrados, os diplomados por escolas superiores etc. e até os cidadãosinscritos no Livro do Mérito e ex-jurados.

No entanto, pondera que não é aí que reside a controvérsia, uma vez que oréu esteve em prisão especial durante o processo. A controvérsia reside no fatode ele querer usufruir dessa prerrogativa após a condenação. O Código deJustiça Militar contém dispositivo expresso — o art. 345 — que assegura ocumprimento da pena em estabelecimentos militares; já o Código de ProcessoPenal, no art. 295, refere-se ao período anterior à condenação. Existe, pois,prerrogativa do acusado e não do condenado. Entende o Ministro que, se, pelacondenação, o oficial não foi excluído das fileiras e a elas poderá voltar com suapatente e seu posto, constata-se que houve a manutenção da sua condição demilitar durante o cumprimento da pena.

Ora, o Código de Justiça Militar mantém o direito de cumprir a pena emestabelecimento militar, sendo admitida a remoção apenas no caso de perda deposto e de patente. Defende o Ministro Castro Nunes que a mesma razão deveser aplicada nos casos de condenação pronunciada pela Justiça civil, pois ocondenado deve ser tratado como militar durante o cumprimento da pena.

Todavia, o caso dos autos apresentava outra particularidade, que era o fatode não se tratar de militar da ativa, mas da reserva do Exército:

É um militar que só terá função quando convocado. As vantagens eprerrogativas de que gozam os oficiais da ativa não se estendem aos da reservasenão quando chamados ao exercício da função militar.

Atenta também para o fato de que o Texto Constitucional não distingueentre os militares da ativa e os da reserva, de modo que não perde a patente e oposto o oficial — da ativa, da reserva ou reformado — que for condenado a penanão superior a dois anos. Note-se, todavia, que de uns e de outros são privativos

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os títulos, postos e uniformes militares, consoante o disposto no art. 160, parágrafoúnico e letra c112, da Constituição de 1937. Todavia, não há aqui o alcance que sepretende, pois a privatividade dos títulos, postos e uniformes tem como finalidadetão-somente a abolição dos postos ou graduações honorários. Além disso, aConstituição determina apenas que a condenação pode, na hipótese prevista, nãolevar à perda de posto e patente. Conclui o Ministro que:

Nada se diz, porém, sobre o cumprimento da pena em prisão especial. Ématéria que ficou ao alcance do intérprete e do legislador. É prerrogativa quepode ser reconhecida aos oficiais da ativa, sem o ser necessariamente aos dareserva e aos reformados. E, como a razão de ser de tal privilégio é a funçãomilitar que, interrompida pelo cumprimento da pena, voltará a ser exercida pelooficial, não há por que ampliá-lo aos oficiais da reserva não convocados e,portanto, sem função militar.

O Ministro Castro Nunes trava interessante discussão com o MinistroAnnibal Freire, que questiona se a reserva do Exército não é parte integrantedele. Castro Nunes responde que sim, mas só depois de o oficial da reserva tersido convocado, pois, a partir da convocação, passa a usufruir dos direitos dosoficiais da ativa.

Afirma o Ministro Annibal Freire que “o cumprimento da pena emfortaleza é direito inerente à patente; traduz respeito à dignidade do militar.”

O Ministro Castro Nunes argumenta em contrário:

(...) Quero tornar bem claro o meu pensamento: entendo que é preciso queo réu tenha função militar para gozar do privilégio, que a lei dá ao militar, de nãocumprir na penitenciária civil, e, sim, em fortaleza, a pena imposta pela justiçacomum.

Para ele, o cumprimento da pena em fortaleza é privilégio que decorre dafunção militar, de modo que aquele que não tem função militar está impedido deusufruir de tal prerrogativa.

O Ministro Annibal Freire questiona que, depois de cumprida a pena, o réuvolta a ser oficial da reserva. O Ministro Castro Nunes concorda com tal

112 Dispõe o art. 160, letra c e parágrafo único: “A lei organizará o estatuto dos militaresde terra e mar, obedecendo, entre outros, aos seguintes preceitos desde já em vigor: c)títulos, postos e uniformes das forças armadas são privativos dos militares de carreira, ematividade, da reserva ou reformados. Parágrafo único. O oficial das forças armadas, salvoo disposto no art. 172, § 2º, só perderá o seu posto e patente por condenação passada emjulgado, a pena restritiva de liberdade por tempo superior a dois anos ou quando, portribunal militar competente, for, nos casos definidos em lei, declarado indigno dooficialato ou com ele incompatível.”

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Ministro Castro Nunes

afirmação, mas adverte que o privilégio decorre do exercício da função, e isso elenão tem, a menos que seja convocado.

O Ministro Castro Nunes nega provimento ao recurso, mas o SupremoTribunal Federal, por maioria de votos, dá-lhe provimento.

SOLICITAÇÃO, PELA DEFESA, DE AUDIÊNCIA COM O OFENDIDO

No Recurso em Habeas Corpus n. 29.461/MG113, tratou-se da possibilidadede o juiz da instrução atender ao requerimento da defesa para realizar audiênciado ofendido a fim de que preste informações.

O Ministro Castro Nunes inicia seu voto pela análise do art. 201 do Códigode Processo Penal, que dispõe: “Sempre que possível, o ofendido será qualificadoe perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser oseu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações”.Note-se que a lei foi sensível ao fato de o ofendido poder prestar informaçõesimportantes para o deslinde do caso.

No entanto, de acordo com o Ministro, a inquirição do ofendido não é meiode prova propriamente dito. Trata-se, na verdade, de auxílio prestado à Justiça.No entanto, há que se reconhecer que a defesa pode ter legítimo interesse emsuscitar o comparecimento pessoal do ofendido para ser perguntado pelo juiz.Não parece merecer acolhida a tese fundamentada no acordo de que a narraçãodo ofendido acerca das provas consta da peça acusatória. Ensina que:

A meu ver, entretanto, a faculdade deixada sem endereço a esta ou àquelaparte na ação penal para trazer a juízo o ofendido como informante há de ternecessariamente um sentido, sob pena de ser havida como superfetação, nãopresumível na interpretação da lei. Toda a sistemática da nova preceituação penalreside na inspiração da verdade, na apuração dos fatos por todos os meiosidôneos a esse objetivo, abolida a hierarquia das provas e deixada ao juiz maiorliberdade no exame delas para formar a sua convicção. No rumo dessa mesmaorientação, está o princípio da identidade física do juiz processante, com oobjetivo conhecido de se refletir no julgamento o conhecimento pessoal dojulgador no tocante ao desenvolvimento da prova, que terá sido feita, como estános institutos da lei, sob os seus olhos vigilantes e pesquisadores, de modo acolher uma impressão direta que terá de influir no julgamento.

O Ministro Castro Nunes esclarece que, nesse sentido, a presença pessoaldo ofendido vai ao encontro dessa linha de pensamento. Não há negar que asevidências e os fatos constam da inicial, elaborada por advogado, por escrito,diferentemente da oitiva do ofendido, oportunidade da qual o juiz poderá extrairsuas próprias impressões. Ele terá elementos mais contundentes para elucidar a

113 Data da decisão: 4 de setembro de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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verdade, logo terá condições mais adequadas para apreciar o conjunto de fatos ea própria imputação alegada.

Entretanto, o Ministro formula a seguinte indagação: Podem os ofendidosser arrolados como testemunhas pela defesa? Entende que a questão essencial éde forma ou de momento processual, pois a maneira mais regular será o ofendidoser ouvido no curso da instrução e não ser arrolado como testemunha, porque éincompromissável. Argumenta que:

Mas não vejo por que não permitir que o réu, no rol de suas testemunhasou das testemunhas que arrolar para prova de suas alegações, inclua os ofendidoscomo informantes, a serem admitidos como tais, e não como testemunhas. O quehá a cancelar no arrolamento é somente a qualificação como testemunhas que osofendidos não podem ser, nem por parte da acusação, nem da defesa.

A lei permite que a acusação e a defesa chamem a juízo o ofendido, semespecificar em que momento ou de que forma isso ocorrerá, de modo que não seencontra excluída a possibilidade de arrolamento do ofendido como informantena lista de testemunhas.

O Ministro Castro Nunes concede o recurso para que o juiz da instruçãoatenda como requerimento da defesa a audiência dos ofendidos. O SupremoTribunal Federal decide no mesmo sentido.

FALTA DE DEFESA PRÉVIA

No Recurso em Habeas Corpus n. 29.057/DF114, tratava-se de caso emque o autor ingressou com habeas corpus tendo em vista a falta de apresenta-ção de defesa prévia por seu advogado.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes salienta que, se o advogado nãoapresentou defesa prévia, a omissão é do advogado, e isso não caracteriza apreterição de garantia legal de defesa. Não há nulidade, pois o prazo para defesafoi concedido ao advogado. Reconhece, no entanto, o Ministro ser possível que adefesa não tenha sido cabal, nem tão diligente quanto queria o réu, que, no caso,alega ausência de defesa. Todavia, tal fato não caracteriza ilegalidade, que sóexistiria se não tivesse sido concedido ao réu o direito de defesa. Sustenta que“as omissões ou insuficiências da defesa não podem ser corrigidas por habeascorpus, nem este se autoriza senão nos casos em que tenha havido umapreterição de garantia legal assegurada à defesa.”

O Ministro Castro Nunes nega provimento ao recurso, e o SupremoTribunal Federal decide, por unanimidade, no mesmo sentido.

114 Data da decisão: 13 de junho de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

CABIMENTO COM BASE EM INTEPRETAÇÃO DE LEI

No Habeas Corpus n. 28.248/BA115, enfrentou-se a possibilidade de con-cessão de habeas corpus com fundamento em errônea interpretação da lei pelomagistrado. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes manifesta-se no sentido de que:

O habeas corpus se concede quando existe ilegalidade: ilegalidade pelaincompetência, ilegalidade pela não-incriminação do fato, inobservância de normasprocessuais; mas ilegalidade tirada da interpretação da lei. Pelo entendimentoque lhe tenha dado o juiz ou o Tribunal não me parece possa ser razão para seconceder a medida.

Argumenta o Ministro que, mesmo em se tratando de interpretação restritapara o fim de isentar certa ordem de relações jurídicas da incriminação legal, épreciso ter em mente que não houve criação de novas hipóteses, visto que, nocaso em tela, a lei incrimina essas relações. Nesse particular enfatiza:

A mera interpretação não pode dar motivo a habeas corpus. (...) Tenhosempre entendido que não devemos converter o habeas corpus em revisãocriminal. Desde que a lei incrimina um fato, distinguir nela esta ou aquela relaçãojurídica é interpretá-la. Não estamos aqui para, em habeas corpus, corrigir a boaou a má interpretação da lei, mas, sim, para corrigir as ilegalidades manifestas. Sea lei incrimina certos fatos, todos eles estão incriminados.

A posição do Ministro Castro Nunes é clara no sentido de não admitir ocabimento de habeas corpus em face de interpretação de lei, visto que nãoconstitui meio hábil para sanar ou corrigir boa ou má interpretação. A finalidadedo habeas corpus é corrigir e sanar as ilegalidades manifestas.

LEGITIMIDADE PARA INGRESSAR

No Recurso em Habeas Corpus n. 28.934/DF116, questionou-se a legitimi-dade para ingressar com habeas corpus, no sentido de verificar se era prerroga-tiva privativa de advogado ou não.

O Ministro Castro Nunes esclarece que o direito de ingressar com ha-beas corpus para si ou para outrem não se encontra abarcado pelas normasreferentes ao exercício da profissão de advogado, bem como não comporta aslimitações decorrentes da incompatibilidade no exercício das funções públicas.Argumenta que:

115 Data da decisão: 12 de agosto de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.116 Data da decisão: 19 de janeiro de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

O habeas corpus é um actio popularis ao alcance de qualquer pessoa,independente de diploma ou habilitação profissional, podendo requerê-lo opróprio paciente ou concedê-lo ex officio o juiz ou tribunal a cujo conhecimentochegue uma coação suscetível de ser reparada por esse meio. O essencial é acoação e a notícia levada ao tribunal por quem quer que seja, mera comunicaçãosem forma nem figura de juízo da pressão que esteja alguém sofrendo em sualiberdade de ir e vir.

O Ministro lembra que o Decreto n. 848, de 1890, permitia que até oestrangeiro requeresse habeas corpus para si ou para outrem e que talpermissão se encontrava em conformidade com o espírito da Constituição de1891, posteriormente editada. O Código de Processo Penal, em seu art. 654,referia-se à impetração por qualquer pessoa, de modo que até o órgão oficialde acusação estava autorizado a requerê-lo. É a predominância da proteção àliberdade de locomoção.

O Ministro Castro Nunes dá provimento ao recurso, e o Supremo TribunalFederal decide no mesmo sentido.

POSSIBILIDADE DE REVISÃO DE DECISÃO DO JÚRI PELO TRIBUNAL

No Habeas Corpus n. 29.840/RN117, verificou-se se a interposição deapelação a instância superior não contraria a soberania dos veredictos do júri. Emseu voto, o Ministro Castro Nunes sustenta, com propriedade, que o duplo graude jurisdição não se encontra suprimido. Assevera que o Texto Constitucionalnão o proíbe, desde que a jurisdição de segundo grau tenha caráter meramenteformal, de saneamento do processo, caso em que anula ou cassa a decisão porvício ou defeito de forma, de modo que, em se tratando de júri, o tribunal,anulando a decisão por vício de forma, terá que mandar o réu a novo julgamento.Esclarece que:

Embora concorde com V. Exa. que existe um duplo grau de jurisdição e queos tribunais togados possam, em segunda instância, conhecer da decisão do júri,restrinjo essa competência, como o Sr. Ministro Orozimbo Nonato, ao caso denulidade, de preterição de formalidade essencial, que possa ser pronunciada pelainstância togada.

O Ministro concede a ordem por entender ser plenamente possível arevisão das decisões do júri pelo tribunal, desde que limitadas ao carátermeramente formal da questão. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, pormaioria de votos, nega a ordem.

117 Data da decisão: 20 de agosto de 1947. Relator, Ministro Hahnemann Guimarães;Presidente, Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

PRINCÍPIO DA ISONOMIA

O Recurso em Habeas Corpus n. 27.732/DF118, tratava do caso de cincoréus, em que três foram condenados à pena mínima e logo postos em liberdade,pela verificação de prescrição de um ano, e os outros dois ingressaram comhabeas corpus no Supremo Tribunal Federal, o qual foi concedido para serreduzida a pena ao grau mínimo, de modo que os cinco réus foram condenados àpena de seis meses. Todavia, aplicou-se a prescrição apenas em relação àquelestrês réus, em detrimento dos outros dois.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes declara que se deve respeitar, nocaso, o princípio da equidade, pois se trata de réus condenados no mesmoprocesso, pelo mesmo fato, incursos no mesmo artigo de lei e condenados pelamesma sentença a uma mesma pena. Argumenta que:

A eqüidade, como sabe o Tribunal, consiste, exatamente, na adequação danorma legal ao caso concreto. É a necessidade de ajustar a norma ao casoconcreto. É necessidade de ajustar a norma às circunstâncias sempre variáveis eimprevistas da vida que justifica o critério da equidade, que, no caso, equivale auma retificação para igualar a situação dos réus. Com efeito, o que se feriu foi oprincípio da igualdade de todos em face da lei, princípio que, transportado para odomínio processual, expressa-se pela igualdade dos réus no mesmo processo,pela igualdade dos réus quanto às mesmas garantias, pela igualdade dos réuscondenados no mesmo processo e incursos no mesmo artigo de lei, no tocante aodireito ao habeas corpus, que é a garantia máxima da liberdade.

O Ministro vota pela concessão do recurso de habeas corpus, sob afundamentação de que a não-concessão da prescrição para os demais réusconfigurou afronta ao princípio da isonomia, constitucionalmente assegurado.

118 Data da decisão: 29 de janeiro de 1941. Relator, Ministro Octavio Kelly; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

12. RECURSO E COISA JULGADA

TEMPESTIVIDADE

A posição do Ministro Castro Nunes em relação à interposição de recurso,manifestada em diversos julgados, é a de que, quando não excluída a tempestivi-dade, deve o recuso ser admitido. No voto proferido no Recurso Extraordinário n.3.566/BA119, ele esclarece:

Tenho sempre entendido que, toda vez que não esteja excluída a tempestivi-dade do recurso, ele deve ser admitido, sem necessidade de prova. É de se presumir,nessa hipótese, que o recurso esteja dentro do prazo. Assim, dessa forma maisliberal, tem também entendido a Primeira Turma, creio que unanimemente.

A posição do Ministro é no sentido de admitir o recurso, sem necessidadede prova, toda vez que não esteja excluída a tempestividade.

COISA JULGADA

Nos Embargos ao Recurso Extraordinário n. 5.052/RJ120, que tratava dadissolução de sociedade comercial, o Ministro Castro Nunes manifesta-se sobrea coisa julgada em processo gracioso, para deixar claro:

Admito, de acordo com a noção dos praxistas, que possa haver coisajulgada em processo gracioso, porque o juiz gracioso passa a contenciosointervindo adversário. É velho o preceito que costuma se dizer em latim. É semprepossível admitir que, na jurisdição graciosa, possa haver contradição entre aspartes e, portanto, coisa julgada.

Esclarece o Ministro que a unidade do juízo é essencial, fundamental ebásica e está implícita no princípio da coisa julgada.

INTANGIBILIDADE DA COISA JULGADA NOS REGIMESAUTORITÁRIOS

O Ministro Castro Nunes foi um grande defensor dos direitos e das garantiasfundamentais assegurados no Texto Constitucional e lutou pela manutenção dessesprincípios inclusive nos regimes autoritários. Essa sua posição se faz presente emdiversos dos seus votos, como, por exemplo, quando defende o conhecimento de

119 Data da decisão: 7 de janeiro de 1942. Relator, Ministro José Linhares; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.120 Data da decisão: 21 de dezembro de 1942. Relator, Ministro Barros Barreto; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

habeas corpus nos casos de guerra e a proteção da coisa julgada em face dedecretos-leis do regime autoritário de 1937, com efeito retroativo.

É o que se verifica em seu voto no julgamento do Recurso Extraordinárion. 11.863/DF121, no qual se questionou a constitucionalidade dos Decretos-Leisn. 9.857, de 16 de agosto de 1946, e n. 5.429, de 1943, que retiraram do conceitode “empregados” os prepostos em funções de chefia nas sociedades mútuas deseguros de vida, atingindo, por disposição expressa contida nos referidosdecretos, os casos já decididos pela Justiça do Trabalho. Tratava-se, portanto, daaplicação de Decretos-Leis sobre a coisa julgada.

O Ministro Castro Nunes considerou inconstitucionais os referidos Decre-tos-Leis por dois motivos. A primeira inconstitucionalidade residia na violação aoprincípio da isonomia, visto que o Decreto-Lei n. 9.857 conferia às sociedadesmútuas de seguro de vida tratamento especial injustificável, que, pelo contrário,demonstrava favoritismo. A segunda inconstitucionalidade configurava-se na vio-lação à coisa julgada. Esclareceu:

É um equívoco dizer-se que na vigência da Constituição de 1937, a coisajulgada não tinha validade, não podia, nem devia encontrar nos tribunais a suanecessária defesa. A Constituição de 1937 definia os três Poderes e qualificava oJudiciário como Poder do Estado, mantendo, assim, essa qualificação, cujaexpressão não seria possível, se a coisa julgada pudesse ser atacada. O SupremoTribunal Federal, nesse período de oito anos, sempre sustentou, entre outrosprincípios, este, do qual jamais declinou e jamais deixou enfraquecer: é o de que,embora silenciando a Carta de 37 sobre a garantia da irretroatividade das leis,sobre a garantia dos direitos adquiridos, embora silenciosa nesse ponto, nem porisso estava o juiz habilitado a desconhecer os direitos adquiridos.

Cumpre registrar que o primeiro voto no sentido de reconhecer a garantiado direito adquirido em face da omissão da Constituição de 1937 foi do MinistroCastro Nunes, em 1941, e o Supremo Tribunal Federal o acompanhou, repetindoesse entendimento em diversos julgados. O Ministro fundamentou seu voto nodireito comparado e na doutrina estrangeira — francesa e italiana —, precipua-mente no sistema francês, no qual a Constituição é omissa sobre o princípio dairretroatividade das leis; no entanto, o entendimento prevalecente é o de que a leisempre obriga o juiz, embora não obrigue o legislador. Em outras palavras, a leipode ser retroativa, desde que o faça expressamente, inexistindo, portanto, retro-atividade tácita. O Ministro Castro Nunes suscita outra possibilidade: poderia acoisa julgada erigir-se como obstáculo à retroação da lei, uma vez que não estava

121 Data da decisão: 14 de abril de 1948. Relator, Ministro Hahnemann Guimarães;Presidente, Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

presente na Constituição, mas apenas na Lei de Introdução ao Código Civil entãovigente. Sustenta:

Mas estava na Lei de Introdução ao Código Civil então vigente, e, aindaque não estivesse na Lei de Introdução ao Código Civil, ter-se-ia que manter orespeito do Poder Legislativo, ou do Executivo com o poder de legislar, à coisajulgada, sob pena de ficar comprometido, menos acabado, ou destruído oprincípio da separação dos Poderes. Seria, então, um Poder absoluto.

No entanto, pondera que a atual Lei de Introdução ao Código Civil éomissa quanto à coisa julgada, referindo-se apenas ao ato jurídico perfeito e aodireito adquirido. Para solucionar essa questão, reporta-se a julgamento anteriorno qual o Ministro Orozimbo Nonato acentua que

a lei não menciona a coisa julgada, porque a sorte da coisa julgada não dependedo Código Civil, nem das leis ordinárias, depende da Constituição. Numa Consti-tuição, seja qual for, de fundo liberal como a presente, ou de fundo autoritário,como a anterior, onde o mecanismo assente na tríade dos Poderes, onde se pressu-ponha estarem ao lado do Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, é indis-pensável que haja o respeito à coisa julgada, que o Executivo e o Legislativo nãopossam desconhecer a res judicata. O Supremo Tribunal Federal proclamousempre este princípio.

O Ministro Castro Nunes vota pela inconstitucionalidade dos Decretos-Leis por entender que configuram afronta à coisa julgada, no caso sentença daJustiça do Trabalho transitada em julgado. Assenta, ainda, que, qualquer que sejao regime, mesmo o da Constituição de 1937 — que contempla o princípio daseparação dos Poderes —, o Poder Judiciário restaria praticamente anulado se acoisa julgada, fora das hipóteses prefiguradas naquela Constituição, estivesse aoarbítrio do Presidente da República, mesmo como legislador. E assevera:

O Supremo Tribunal jamais placitou tais incursões, jamais admitiu que olegislador pudesse desconhecer a autoridade dos julgados. Jamais tolerou que olegislador pudesse cassar uma decisão do Judiciário. Há votos e declaraçõesnesse sentido. Estaria comprometida a dignidade do Poder Judiciário se fossepossível admitir tal doutrina, tal tolerância, que anularia a soberania judiciária, aseparação mesma dos Poderes. Isso não estava no Estatuto de 37. O que nestehavia era uma exceção única, a da declaração da inconstitucionalidade das leis,contra a qual não podíamos reagir. Era uma demasia, mas estava na Constituição.Mas fora dessa hipótese nenhuma outra. E assim sempre se proclamou em defesada soberania deste Tribunal e do Judiciário.

Para o Ministro Castro Nunes, a manutenção da proteção à coisa julgadaestá diretamente relacionada com a manutenção do próprio princípio da separaçãodos Poderes, de modo que atentar contra a coisa julgada é atentar contra a sobe-rania e a independência do Poder Judiciário.

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Memória Jurisprudencial

RECURSO DE REVISTA

No Recurso Extraordinário n. 5.195/MG122, o Ministro Castro Nunes reafirmao entendimento de que não pode o Supremo Tribunal Federal corrigir julgamentoproferido pelo Tribunal de Apelação em sede de recurso de revista, que tem porfinalidade coordenar julgados divergentes sobre uma tese de direito, para fixarinterpretação uniforme da lei. Assevera que o recurso não pode corrigir o julga-mento proferido pelo Tribunal de Apelação, pois sua finalidade é verificar a exis-tência da alegada divergência de julgados que versam sobre a mesma tese legal.

O Ministro Annibal Freire suscita discussão ao afirmar que o SupremoTribunal Federal não está a corrigir os julgamentos, mas a declarar que, norecurso de revista, se julgou que não há divergência, razão por que dela não seconheceu, quando de fato ela realmente existe. No entanto, o Ministro CastroNunes rebate:

Isso não será corrigir o julgamento? Corresponde a dizer que o julgamentonão foi certo, porque existe a divergência. Estamos, pois, corrigindo o Tribunal deApelação; dizendo o contrário do que ele disse. O Tribunal de Apelação disseque não havia divergência e que, por isso, era incabível a revista; julgou-aimprocedente. Nós vamos dizer que a revista é cabível, que existe a divergência.

O Ministro Annibal Freire assevera que o recurso de revista “é o instru-mento adequado a unificar a jurisprudência do próprio Tribunal. Ora, no caso,essa jurisprudência, evidentemente, é desconforme e o Tribunal entende que éconforme. Assim, há ou não violação da lei que conceituou esse recurso.”

Entende o Ministro Castro Nunes que isso equivale a julgar o próprio recurso,atribuição que se encontra na esfera de competência do Tribunal de Apelação,pois a ele incumbe dizer se existe ou não divergência. O Ministro Annibal Freireargumenta que, se a lei federal for violada, o caso é de recurso extraordinário.Pondera o Ministro Castro Nunes que, toda vez que a Corte Suprema tiver dedizer sobre julgamento — em apelação, em embargos ou em agravo — contrárioà lei, terá que admitir o recurso extraordinário. Já o Ministro Annibal entende que,“desde que haja violação da lei, cabe recurso extraordinário”.

O Ministro Castro Nunes questiona se o Supremo Tribunal Federal poderiaobrigar o Tribunal de Apelação a admitir recurso de revista, se não o houvesseadmitido por motivos de ordem formal, mas imediatamente declara que isso éimpossível: “Não podemos fazê-lo, porém, quando se trata do julgamento do

122 Data da decisão: 20 de abril de 1942. Relator, Ministro Octavio Kelly; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

recurso de revista, seja na preliminar, seja no mérito”. Entende que, se o Tribunallocal não encontrou divergência, não pode o Supremo Tribunal Federal dizer queela existe e que o recurso deve ser recebido, “porque estaríamos julgando da suaprocedência; em última análise, estaríamos julgando o recurso de revista, o quenão nos compete fazer.”

Pondera o Ministro Castro Nunes em contraponto ao relato do MinistroOctavio Kelly, que se manifestou no sentido de que o Recurso Extraordináriojustifica-se diante da alegação de não ter o Tribunal de Apelação aplicado a lei,que é clara no sentido de obrigar o recebimento do recurso de revista em caso dedivergência:

Se V. Exa. diz, e a Turma o acompanha, que existe a alegada divergência,que os julgados apontados são discrepantes, vale isto dizer que o recurso derevista deve ser provido. Está prejulgado. Que restará ao Tribunal de apelaçãosenão decidir o recurso de revista, que já estará provido nos termos do acórdãodeste Tribunal?

O Ministro Castro Nunes argumenta que o Supremo Tribunal Federal, eminúmeros casos, tem decidido no sentido de mandar admitir o recurso de revistaquando o tribunal local, não o admitira, fundado em lei estadual contra lei federal.Em casos semelhantes, sustenta que o Supremo Tribunal Federal tem votado nessesentido. Nos processos em que atuou como relator, sustentava que o julgamento derevista, a apreciação de alegada divergência e o reconhecimento de que os julgadossão discrepantes são de competência do Tribunal de Apelação, pois se trata defunção inerente a este Tribunal. Conclui o Ministro:

Nós podemos mandar admitir em certos casos, mas não prejulgar o recursode revista. O Supremo Tribunal não tem que corrigir a apreciação do direito, nem,muito menos, a apreciação de provas. Se o Tribunal de Apelação, à vista dosjulgados oferecidos, diz que eles não são destoantes, limita-se a uma apreciaçãojurídica diante das provas apresentadas.

O Ministro Octavio Kelly discorda da opinião de que o tribunal local nãopode, diante do julgado do Supremo Tribunal Federal de que há divergência e que,portanto, é caso de recurso de revista, manifestar-se no sentido de que acontrovérsia não existe. Sustenta que:

Ele terá de examinar a questão e optar por uma das soluções que a CorteSuperior entender divergentes. O Tribunal local poderá achar que divergêncianão existe; mas, se o Tribunal Superior pensar de modo contrário, ele terá dedecidir por uma ou por outra hipótese, e, desse modo, que cumprirá o texto legal,que lhe dá competência para conhecer da revista em caso de divergência de suasTurmas.

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Memória Jurisprudencial

Entende o Ministro Castro Nunes que a função de apreciar e julgar asteses jurídicas concordantes, à vista da documentação apresentada, é funçãoinerente à autonomia do Tribunal de Apelação. Argumenta, ainda, que, no casoinverso, ou seja, na hipótese de o Tribunal de Apelação julgar ser caso de revista,por existirem decisões discrepantes, a parte vencida deveria recorrer aoSupremo Tribunal Federal. O Ministro Octavio Kelly entende que, nessahipótese, não caberia recurso extraordinário.

O Ministro Castro Nunes argumenta, em contrário, que o recurso extraor-dinário seria cabível pela mesma razão que o admite no caso em tela o MinistroOctavio Kelly. E pondera:

O Tribunal local teria admitido a revista, que a lei federal só admite no casode serem divergentes os julgados, não obstante inexistir tal divergência, exameque se teria de deslocar para o Supremo Tribunal. É a mesma hipótese, apenasinvertida. Já temos decidido reiteradas vezes que o recurso extraordinário nãocorrige a mera interpretação da lei, não bastando que se demonstre que a Justiçalocal não aplicou a lei com a melhor interpretação para que se admita tal recurso.Ora, no caso, nem de interpretação de lei se trata, senão de interpretação dejulgados do próprio Tribunal que os proferiu, sem dúvida o mais senão o únicocompetente para fazê-lo.

O Ministro Castro Nunes vota pelo não-conhecimento, mas o SupremoTribunal Federal decide pelo conhecimento do Recurso.

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Ministro Castro Nunes

13. AÇÃO RESCISÓRIA

REITERAÇÃO

O Código de Processo Civil só admite a reiteração da rescisória nashipóteses das letras a e b, n. I e n. II, do art. 798, deixando excluída a letra c, quetrata da hipótese da argüição de ofensa a literal disposição de lei.

No entanto, o Ministro Castro Nunes entende ser possível a renovação daação rescisória com fundamento na letra c, desde que não tenha havidojulgamento de mérito. Ele defendeu essa posição no julgamento da AçãoRescisória n. 123/AL123, em que foi relator:

Ora, o Código não permite a renovação da rescisória a não ser em determina-dos casos, nenhum deles ocorrendo na espécie. Assim, em princípio, na espécienão era de se admitir a rescisória, porque a lei não a admite. Entendo, porém, quedeve a rescisória ser admitida para que se possa apreciar o mérito da relaçãojurídica, no seu aspecto substancial e não mais no seu aspecto formal. É verdadeque nem sempre a matéria é de direito adjetivo, processual; muitas vezes é matériade direito substantivo, o direito à ação, entendendo com a relação jurídica em si.

Adverte, ainda, que “julgar improcedente” é julgar a ação rescisória. Noentanto, faz uma distinção: “julgar improcedente, por um vício formal de causa”não significa o mesmo que “julgar a relação jurídica controvertida”, que no casoseria a prescrição.

Note-se que, no julgamento da Ação Rescisória n. 100/DF124, o MinistroCastro Nunes defende, mais uma vez, a posição de não admitir a restriçãodefendida pelo Ministro Philadelpho Azevedo, que fixa a análise do SupremoTribunal Federal apenas ao juízo rescindente e à cassação do acórdão. Para oMinistro Castro Nunes, o Plenário tanto pode decidir quanto ao rescindente comoquanto ao rescisório.

POSSIBILIDADE DE ADMISSÃO EM FACE DOS JULGADOS DOSUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PROFERIDOS EM RECURSOEXTRAORDINÁRIO

Na Ação Rescisória n. 81/SP125, o Supremo Tribunal Federal analisou ocabimento da ação rescisória quando proposta em face dos julgados proferidosem sede de recurso extraordinário.

123 Data da decisão: 24 de julho de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.124 Data da decisão: 14 de junho de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.125 Data da decisão: 2 de setembro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes demonstrou que nem sempre oSupremo Tribunal admitiu a ação rescisória de seus julgados proferidos em recursoextraordinário, embora existissem vários votos vencidos. Os argumentos quefundamentavam tal entendimento, eram os seguintes: a) o antigo recurso de revista,que se interpunha para o Supremo Tribunal de Justiça e que se equiparava aoextraordinário, não comportava a via rescisória (Regulamento n. 737); b) o Decretolegislativo n. 4.381/1921 não admitia, em seu art. 8º, embargos de execução aacórdão proferido pelo Supremo Tribunal, ou seja, implicitamente excluía apossibilidade da ação rescisória, uma vez que era equivalente àquela defesa naexecução.

Sustenta o Ministro Castro Nunes a importância de reexaminar a questãonos termos em que se colocava naquele tempo. Ele rebate o primeiro argumentocom fundamento no fato de o Código de Processo Civil não ter reproduzido oantigo preceito constante do Regulamento n. 737. O referido Código elenca, nosarts. 798 e seguintes, as hipóteses em que se autoriza o uso da ação rescisória,sem contemplar expressamente tal restrição. Contesta também a paridade entreo recurso de revista do império e o recurso extraordinário, uma vez que esteúltimo, com fundamento na Constituição, é definido pela controvérsia sobre avalidade e a aplicação da lei federal.

Já a ação rescisória, segundo Castro Nunes, tem como um de seusfundamentos a violação de direito expresso. Atenta para o fato de que essa erauma das hipóteses que legitimavam o recurso de revista, de modo que restavadesnecessária a ação rescisória. Sustenta ainda:

Com efeito, a decisão que o Supremo Tribunal de Justiça proferia em graude revista, não era de reforma, senão de mera cassação ou anulação do julgadorevisto, designando a Relação que houvesse de julgar novamente o feito.

O recurso de revista constituía-se, portanto, em recurso de cassação.Esclarece o Ministro:

Pelo recurso extraordinário, se dele conhece, o Supremo Tribunal julga ofeito, ainda que aceitando os fatos na sua apresentação, isto é, nos mesmostermos em que tenha sido posta a questão no julgado recorrido. Reforma,confirma ou anula a decisão.

A outra razão invocada, na antiga jurisprudência, para não admitir arescisória decorria da inadmissibilidade de embargos na execução a acórdão doSupremo Tribunal. Adverte, nesse aspecto, que o Decreto-Lei n. 6, de 16 denovembro de 1937, em seu art. 7º, admitiu tais embargos expressamente e osremeteu à competência da Corte Suprema. Daí se depreendia que o disposto naLei de 1921 encontrava-se revogado.

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Ministro Castro Nunes

Defende o Ministro Castro Nunes a necessidade de se admitir a açãorescisória de julgados do Supremo Tribunal Federal quando proferidos em recursoextraordinário, alertando que nesse sentido se encontra a jurisprudência maisrecente da Corte. Questiona se tal hipótese deve ocorrer em todo e qualquercaso, ou seja, se deve caber ação rescisória quando o acórdão não tiver conhecidodo recurso. Pergunta, ainda, qual seria a lei violada nesse caso. e explica:

Sabemos que só por hipótese se poderá conceber violação de direitoexpresso em tais julgamentos, isto é, no destaque da questão federal, operação dearte ou técnica jurídica que se realiza mediante um confronto entre o julgadorecorrido e os pressupostos constitucionais do inciso em que se pretendaenquadrar o recurso. O exame situa-se, de seu natural, num terreno de apreciaçãoque nunca poderá desfechar, pela alegação de possível erro, em ofensa a direitoexpresso, que, no caso, teria de ser o texto constitucional mesmo.

O Ministro complementa seu raciocínio ao declarar que a equaçãorescisória pode ocorrer em hipótese rara, mas possível, em que o argüentepudesse alegar — em se tratando da hipótese da alínea a, por exemplo — que aTurma, não obstante haver reconhecido que a decisão local fora proferida contraa alínea, deixaria de conhecer do recurso.

No entanto, reconhece que tal hipótese dificilmente ocorreria, situando-semais no plano teórico. Todavia, tal possibilidade demonstra claramente que a cir-cunstância de o acórdão ter sido proferido no sentido de não conhecer do recursoextraordinário não é suficiente para excluir a possibilidade do cabimento da açãorescisória como instrumento capaz para corrigir possível erro que recaíra na aná-lise do mérito da controvérsia.

Note-se que se entendeu, em algumas situações, que, não cabendo arescisória para corrigir o não-conhecimento do recurso, caberia à competênciados Tribunais de Apelação rever o julgado local, sem ofensa à decisão doSupremo Tribunal que, não conhecendo do recurso extraordinário, se colocou àmargem do mérito da questão.

Todavia, ao concluir seu voto, o Ministro Castro Nunes sustenta que, com onovo instituto, cujas origens, segundo o Ministro Arthur Ribeiro, se equiparam à viarescisória, é necessário admitir a ação rescisória do acórdão que não conheça dorecurso extraordinário na competência do Supremo Tribunal Federal, pois só elapoderá reexaminar a argüida violação para alcançar a mesma ou outra conclusão.Portanto, admite a via rescisória na competência do Supremo Tribunal Federal.

Na Ação Rescisória n. 90/DF126, o Ministro Castro Nunes reafirma o en-tendimento proferido na Ação Rescisória n. 81, para reconhecer a competência

126 Data da decisão: 29 de setembro de 1943. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

do Supremo Tribunal Federal para conhecer da ação rescisória, ainda que a Turmanão tenha tomado conhecimento do recurso extraordinário, e também para anularos julgados da Corte Suprema em sede de recurso extraordinário. Afirma que:

Desde que o Supremo Tribunal intervém, na causa, proferindo julgamento,ainda que negativo, é o bastante para que não se possa aforar a demandarescisória na Justiça local, perante o Tribunal de Apelação. Basta que o SupremoTribunal tenha tido intervenção no feito.

O Ministro Castro Nunes ressalta que houve época em que muito sediscutiu, no Supremo Tribunal Federal, sobre a possibilidade de admissão da açãorescisória em face dos julgados da Corte Suprema e, ainda, que houve tempo emque se decidiu pelo não-cabimento da ação rescisória, registre-se, contra o votodo Ministro Pedro Lessa. Entedia-se, nessa época,

que seria de certo modo absurdo pretender argüir decisão do Supremo Tribunal —a questão já ultrapassaria do âmbito do recurso extraordinário — de proferidacontra direito expresso; que pudesse o demandista trazer à barra do Tribunal essaquestão, de que este Tribunal houvera decidido violando, expressamente, a lei.Mas, ainda aí, se redargüia que, sendo o erro inerente à condição humana, mesmoos juízes supremos da República não podiam pretender-se isentos dessapossibilidade;

Salienta Castro Nunes que se defendia, em contrário, a solução negativado cabimento da rescisória, que não cabia somente no caso de violação expressade lei mas também em outras hipóteses, como no caso de ter atuado no feito juizsuspeito ou impedido, ou quando o julgamento se fundamentava em prova falsa,ou, ainda, quando colidente com a coisa julgada. Anota que, nos casos menciona-dos, restava desaparecida a razão alegada de que a Corte Suprema não poderiaproferir decisão contra disposição expressa da lei, visto que, nessas ou em outrassituações, o enquadramento legal da rescisória já seria outro. Enfatiza o MinistroCastro Nunes:

De modo que haveria que admitir a rescisória na competência do SupremoTribunal em todos os casos autorizados na lei, menos naquele, que teria deconstituir uma exceção injustificável ou que se pretendia justificar com umargumento que apenas refletia um exagerado sentimento de função.

O Ministro vota no sentido de inserir no rol das decisões que podem serobjeto de ação rescisória os julgados proferidos em recurso extraordinário,ainda que não conhecido, pois a jurisprudência do Supremo Tribunal Federalfirmou-se nesse sentido. Na seqüência de seu voto, argumenta que, uma vezadmitida a ação rescisória, cumpre analisar sua extensão no caso sub examine,e sustenta:

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Ministro Castro Nunes

Parece-me, entretanto, que a junção dos dois juízos na via rescisória,permitindo rescindir ou cassar o julgado contraventor da lei e proferir desde logooutro que o substitua (judicium rescindens, judicium rescisorium), permite que oTribunal Pleno se substitua à Turma, sem necessidade de voltar a esta o caso paradecidir, do mérito, isto é, do provimento ou não-provimento do recurso.

Prossegue em seu raciocínio, para declarar que a ação em que está emcausa julgado da Turma que não conhece do recurso extraordinário equivalepraticamente a embargos opostos ao acórdão que não admitiu tal recurso, demodo que consegue o recorrente levar ao Tribunal Pleno o recurso nãoconhecido pela forma indireta, e acrescenta:

Ora, se o regimento admitisse embargos no caso do não-conhecimento, nãoseria curial que o Tribunal Pleno se limitasse à preliminar, mandando voltar o caso àTurma para prover ou não o recurso. Decidiria desde logo preliminar e mérito.

O Ministro Castro Nunes vota pela procedência da ação rescisória.

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Ministro Castro Nunes

14. JUSTIÇA DO TRABALHO

AUTONOMIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

No Recurso Extraordinário n. 7.540/DF127, analisou-se a possibilidade de ajurisprudência do Supremo Tribunal Federal alargar o entendimento da Lei n. 39e admitir a ampla defesa na execução de sentenças das antigas Juntas de Conci-liação, assegurando a apreciação judicial nos casos de caráter administrativo,resolvidos pela Câmara de Previdência do Conselho Nacional do Trabalho. Emseu voto, o Ministro Castro Nunes deixa claro que sempre defendeu a autonomiada Justiça do Trabalho:

Sempre sustentei a autonomia da Justiça do Trabalho, que pressupõe umarelação de emprego e, por isso, a causa é aforada na Justiça do Trabalho — Juntasde Conciliação e Julgamento, como primeira instância, e Tribunal trabalhista,como instância de recurso —, não podendo a Justiça comum rever o julgadotrabalhista.

Castro Nunes sempre se manifestou no sentido de reconhecer a autonomiada Justiça do Trabalho, inclusive por meio de vasta produção escrita sobre o tema,traçando com brilhantismo e inovação as funções dessa Justiça e as dificuldades desua implementação. O Ministro Xavier de Albuquerque assim se manifesta emdiscurso de homenagem ao centenário de nascimento do Ministro Castro Nunes:

De resto, os escritos de Castro Nunes surgem a tempo e a hora. Logo apóshaver a Constituição de 1934 criado a Justiça do Trabalho, dando seqüência edesenvolvimento às iniciativas do Governo Provisório, que, pelos Decretos n.21.396 e 22.132, de 1932, criara as Juntas de Conciliação e Julgamento — Justiçado Trabalho timidamente colocada fora do Poder Judiciário e dependente destepara a execução de suas sentenças —, Castro Nunes traz a instituição ao foco desua análise, no que chama “um ligeiro ensaio”. No entanto “Da Justiça doTrabalho no mecanismo jurisdicional do regime”, publicado no fascículo dejunho de 1937 da Revista Forense, não é o que pretende fazer Castro Nunes, masum levantamento bem extenso das dúvidas ou clarezas da nova instituição. Entreas últimas, afirma a liberdade mais ampla do juiz togado quando funciona comomagistrado do trabalho, mediante a aplicação do processo técnico do Standardjurídico, conceituado por Marcel Stati. Entre aquelas, as dificuldades daexecução das decisões trabalhistas na Justiça federal, segundo o previsto noDecreto n. 24.742, de 14 de julho de 1934, verdadeira execução de sentença poração executiva, em vez de execução normal da decisão originária. Era assimCastro Nunes: seduziam-no as dificuldades novas, o vigor do debate e o esforçodo esclarecimento.128

127 Data da decisão: 11 de novembro de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.128 “Homenagem ao Centenário de Nascimento do Ministro Castro Nunes”, discurso doMinistro Xavier de Albuquerque, in Revista Forense, vol. 284, ano 79, 1983, p. 514.

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Memória Jurisprudencial

CABIMENTO DE RECURSO EM FACE DE DECISÃO DA JUSTIÇADO TRABALHO

No Agravo de Instrumento n. 10.021/SP129, enfrentou-se a possibilidadede anulação de decisão da Justiça do Trabalho. No caso, tratava-se de decisão daJunta de Conciliação e Julgamento.

O Ministro Castro Nunes sustentou, como juiz federal e, no campodoutrinário, em artigo publicado sob o título “Da Justiça do Trabalho nomecanismo jurisdicional do Regime”130, que a Justiça do Trabalho era como umamagistratura. Nesse particular, entendia que as decisões proferidas por essasJuntas, como órgãos dessa magistratura, eram insuscetíveis de revisão ou dereforma pela Justiça comum, quer na execução delas, quer por via da ação.

Não julgo necessário repetir aqui os fundamentos desse modo de ver.Depois disso outras opiniões de maior tomo vieram a estimar a Justiça do Traba-lho como Justiça autônoma, ainda que sui generis, o que não basta para que selhe não reconheça o caráter judiciário, uma vez que o art. 90 da Constituição,enumerando os órgãos desse Poder, não esgota a enumeração, não impede queentre eles se incluam outros, também não mencionados, e tais são o Tribunal deSegurança Nacional, órgão da Justiça Especial, e os da Justiça do Trabalho.

Conclui o Ministro Castro Nunes pela impossibilidade de anulação pelaJustiça comum das decisões proferidas pela Justiça do Trabalho ou das juntasque a representavam. O Ministro nega provimento ao agravo, e o SupremoTribunal Federal decide, por unanimidade, no mesmo sentido.

JUNTAS COMO ÓRGÃOS REPRESENTATIVOS DA JUSTIÇA DOTRABALHO

O Ministro Castro Nunes manifestou-se, ainda como juiz de primeirainstância e, posteriormente, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, emdiversos julgados no sentido de que as juntas trabalhistas, mesmo as instituídaspela Legislação de 1932 (Decretos n. 21.396 e 22.132), já eram órgãos represen-tativos da magistratura do trabalho, tendo sido criadas e instituídas justamentecom esse caráter. Ressalta que a Justiça do Trabalho foi criada no Brasil comomagistratura. No Recurso Extraordinário n. 4.412/BA131, manifesta-se nessesentido, acrescentando:

129 Data da decisão: 17 de novembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Octavio Kelly.130 Jornal do Comércio, 13 de dezembro de 1936. Arq. Jud., vol. 41, Supl.131 Data da decisão: 12 de janeiro de 1942. Relator, Ministro José Linhares; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Coerente com esse entendimento, o que me parece lógico é que os órgãosda Justiça Especial são autônomos na apreciação do mérito da questão. Saber seo empregado tem o tempo de serviço necessário para a estabilidade; contar essetempo de serviço; saber se a empresa A é sucessora da empresa B — tudo issopode envolver apreciação de relações jurídicas de direito privado, mas é dacompetência das Juntas.

No mesmo sentido o Ministro Castro Nunes profere voto na ApelaçãoCível n. 7.282/BA132, na qual sustenta posição diversa da adotada por muitos quedefendiam que as juntas do trabalho eram meras dependências administrativas,permitindo aos juízes comuns, na execução, alterar ou modificar as suas deci-sões. No referido voto, ele traça a evolução histórica e delineia os princípios queregem a Justiça do Trabalho. Esclarece:

Ora, a jurisdição trabalhista que se criava, com órgãos, embora ainda nãoperfeitamente conformados, ainda em estado embrionário, refletia, necessaria-mente, o particularismo da legislação social, obedecendo à inspiração dessalegislação com, um reflexo da questão social, num dos seus aspectos, destinando-seexatamente a dar solução aos problemas entre o capital e o trabalho, de modo acanalizá-los para as soluções jurisdicionais, evitando as soluções de fato. Foiesse o objetivo que presidiu à criação, em toda a parte, da Justiça do Trabalho. Elasurgiu como uma jurisdição especial, refletindo os imperativos, os motivos, asaspirações da legislação social no seu particularismo; por isso mesmo, ela surgiue conserva esse caráter, aqui como em toda a parte, porque é da índole da própriainstituição, como uma justiça de compensação, uma justiça de retificações dasdesigualdades sociais. E daí as soluções no interesse da proteção do trabalho eas resistências que tem encontrado e há de encontrar no espírito jurídico clássico,exatamente porque ela quebra, de certo modo, o equilíbrio do direito na soluçãodas demandas, inspirando-se em princípios que tornam flexível a regra legal paraatender às imposições de eqüidade.

Asseverou o Ministro que, mesmo antes dos Decretos n. 21.396 e 22.132,de 1932, que criaram corpo doutrinário sobre a matéria, já existiam acórdãosreconhendo as Juntas de Conciliação e Julgamento como órgãos da Justiça doTrabalho. Mencionou, em seu voto, o acórdão no qual foi relator o Ministro CostaManso, que afirmou, mesmo antes da legislação de 1932, órgãos embrionários daJustiça do Trabalho.

O Ministro defendeu que as juntas constituíam-se em órgãos da Justiça dotrabalho porque foram criadas com esse propósito pelos Decretos n. 21.396 e22.132, de 1932, e a Constituição de 1934 já se deparara com as características aque teria de obedecer a organização da Justiça do Trabalho, estabelecendo queesses órgãos teriam índole profissional e paritária.

132 Data da decisão: 6 de agosto de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Para o Ministro Castro Nunes, a Constituição de 1934 teve comoinspiração a legislação de 1932, da qual adotou traços característicos, de modoque as juntas, que já preexistiam, puderam-se identificar como órgãos constantesdo novo Texto Constitucional. Mesmo com o advento da Constituição de 1937 eda Lei de 1939, a situação permaneceu praticamente inalterada, dispondo-seapenas sobre a situação decorrente da supressão da Justiça Federal e tambémsobre a execução das sentenças proferidas pelas juntas. Assevera ainda:

Donde a conclusão de que até mesmo o ministro do Trabalho, no exercícioda avocatória, agindo como instância superior em relação às Juntas, intervençãoque poderia ser suspeitada de inconstitucional na vigência da anterior Constitui-ção, teve legitimada essa atribuição.

Nesse sentido, o Ministro não admite anulação ou a revisão do julgadotrabalhista, como se fosse ato administrativo, pela Justiça ordinária, pois, aoassim proceder, estar-se-ia recusando o caráter de decisão emanada da Justiçado Trabalho — que e conclusiva em suas determinações —, ainda que especialou de exceção.

Entende o Ministro Castro Nunes, que a Justiça do Trabalho é magistraturae não justiça administrativa. Trata-se de jurisdição que se esgota nas suas dife-rentes instâncias. Desse modo, é inadmissível que a Justiça ordinária possa decidira respeito das decisões proferidas pelas instâncias da Justiça do Trabalho.133

No Recurso Extraordinário n. 3.451/PE134, discutiu-se a execução das de-cisões proferidas pelas juntas trabalhistas para consignar que a decisão do Minis-tro do Trabalho é também decisão trabalhista, com as restrições decorrentes dotocante à defesa na execução.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes declara que, no caso, se trata dedecisões divergentes sobre a extensão da autonomia judicante das juntas traba-lhistas em face das Justiças togadas quando lhes executam as decisões. Fazreferência à existência de acórdãos do Supremo Tribunal Federal que sufragam atese de que, por meio de embargos à execução, é possível apreciar o mérito dasentença trabalhista.

Ressalta que o caráter corporativo partidário da Justiça do Trabalhoconstitui-se em reconhecimento conferido pelo Supremo Tribunal Federal àsjuntas trabalhistas como órgãos de jurisdição trabalhista, desde sua criação pelo

133 Nesse sentido, há o voto do Ministro Castro Nunes proferido na Apelação Cível n.7.330/SP. Data da decisão: 28 de abril de 1941. Relator; Ministro Octavio Kelly, PresidenteMinistro Laudo de Camargo.134 Data da decisão: 5 de junho de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

Decreto n. 22.132/32 e seu posterior reconhecimento pela Constituição de 1934.Alerta que o referido Decreto foi reconhecido pela Lei Orgânica da JustiçaEspecial na sua organização embrionária. Sustenta o Ministro:

Daí decorre que é preciso aceitar esse Decreto com a regra do art. 18 e aexceção do art. 29, isto é, as Juntas como instância única nos julgamentos queproferirem, salvo nos casos em que o ministro do Trabalho avoque o processo, etal é a exceção do art. 29. Não tem, pois, razão o recorrente quando pretende quea decisão da junta é executória, não, porém, a do ministro quando avoca o processoe reforma a decisão da Junta, pois que, em face daquele Decreto, esta como aquelafuncionam como instâncias trabalhistas. O exame do mérito do julgado na execuçãoé que tem suscitado maiores dúvidas. Devo dizer que, quando juiz federal, proferigrande número de decisões sustentando não competir ao juiz da execução reformara decisão exeqüenda, isto é, julgado trabalhista, o fato de ter a lei mandado executara sentença por ação executiva não mudava os termos da questão.

Castro Nunes menciona artigo de sua autoria, em que comenta o art. 18 dareferida Lei, que dispõe que os julgamentos só poderão ser discutidos nos embar-gos à sua execução. Entende que o caráter executório da ação, que a Lei confereao julgado, decorre de dois aspectos: primeiro, do caráter terminativo da decisãoque lhe serve de base, e segundo, do texto mesmo da lei em que se autoriza omeio executivo. De acordo com o Ministro, a ação executiva é instrumento daexecução, é meio para executar, não é — nem pode ser — instrumento parapedir o que, pela decisão exeqüenda, já foi resolvido. Conclui que “Execução poração executiva é de fato uma anomalia; mas anomalia que o Decreto 34 admitiu.A crítica se endereça ao legislador.”

O Ministro Castro Nunes nega provimento ao recurso, e o SupremoTribunal Federal profere acórdão nesse mesmo sentido.

APLICAÇÃO DOS CÓDIGOS COMUNS À JUSTIÇA DO TRABALHOE PROTEÇÃO DOS TRABALHADORES RURAIS

No Conflito de Jurisdição n. 1.378/PA135, enfrentaram-se diversas questõesrelevantes para o direito do trabalho. Discutiu-se a possibilidade de aplicação dosCódigos comuns quando em falta lei trabalhista para a proteção ao trabalhador ea competência da Justiça Trabalhista no caso de trabalhador rural.

O Ministro Castro Nunes foi relator do referido conflito e descreveu a lidenos seguintes termos: tratava-se de cobrança de salários convencionados entreempregador (dono da fazenda) e empregado (capataz da fazenda). Entre os doishavia parceria de gado, e o empregado reclamava salários não recebidos, que oempregador declarava dever apenas em parte e em quantia bem menor. Para o

135 Data da decisão: 12 de agosto de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

Ministro, a hipótese podia ser resumida em reclamação sobre salários convencio-nados e não pagos, ou seja, dissídio resultante de contrato de trabalho entre em-pregador e empregado. Tratava-se de locação de serviços regida pelo art. 1.216do Código Civil.

Em seu voto, cita como exemplo o art. 1.221 do Código Civil, que, porforça do Decreto-Lei n. 4.037, foi incluído na competência da Justiça do Trabalhoe, com fundamento nas decisões do Supremo Tribunal Federal, considerou-seque continha normas sociais, e, como tais, aplicáveis pela Justiça do Trabalho,visto que versavam sobre aviso prévio.

Questiona o Ministro: “Serão essas as únicas normas sociais existentesnaqueles Códigos, ou, de um modo mais geral, na legislação comum, pelo argu-mento a contrario sensu? Ou a lei, especificando-as, não exclui a possibilidadede outras?” Manifesta-se no seguinte sentido:

A meu ver, tal possibilidade não ficou excluída, a critério do intérprete etendo em vista cada relação jurídica a ser examinada em espécie. Creio mesmo quea lei, dispondo acerca daqueles dois preceitos legais, admitiu em princípio que asnormas de proteção do trabalho possam estar fora das leis específicas dadisciplinação do trabalho e da assistência ao trabalhador. É esse, a o meu ver, osentido da extensão admitida por este Supremo Tribunal.

O Ministro Castro Nunes, quando ainda era juiz federal, analisou o alcanceda expressão constitucional “regidos pela legislação social” e manifestou enten-dimento de que a Justiça do Trabalho não poderia aplicar o direito comum. Asrazões em que fundamentou seu entendimento dizem respeito à definição dasquestões regidas pela legislação social, que, segundo ele, seriam somente aquelasque podem ser resolvidas com a aplicação de lei trabalhista, ou seja, lei específicade proteção aos trabalhadores, pois só essas podem ser definidas como leis sociais.Entende que a Constituição as utilizou com sentido peculiar, diferenciando-as dasregras do direito civil. Assevera:

A existência mesma, nas casas legislativas, de uma comissão permanentede legislação social, agora como ainda antes da revolução de 30, revela a autonomiadessa legislação, que requer especialização técnica e cujo particularismo é tãoacentuado que se criou nas universidades, alhures e aqui mesmo, uma cadeira dedireito industrial e legislação do trabalho, disciplina inconfundível com outrosramos do direito, dos quais se destacou.

Para o Ministro, as questões regidas pela legislação social são as que seencontram no âmbito das relações econômicas entre o empregador e o empregado,compreendidas na noção de contrato de trabalho. Adverte, todavia, que é plena-mente possível conferir à expressão constitucional sentido restrito. No entanto,entende que, naquela época, essa talvez não fosse a melhor solução:

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Ministro Castro Nunes

Inclino-me hoje ao entendimento de que o caráter social da norma seidentifica em espécie. Rendo-me assim à opinião favorável à aplicabilidade pelostribunais do trabalho das normas que com aquele caráter existam na legislaçãocomum, a começar pela própria Constituição, em que se inserem vários preceitosde base tendentes à proteção do trabalhador, entendimento adotado peloSupremo Tribunal e aceito pelos expositores que entre nós têm versado a matéria,e a que serve indiretamente a lei que classificou como normas sociais preceitosdos códigos comuns, preceitos que, como disse, não serão os únicos, emboratenham sido eles os que vieram ao exame judicial da controvérsia, provocandoaquela solução legislativa.

Sustenta que essa posição vai ao encontro do desiderato constitucional daJustiça do Trabalho na sua função de proteger o trabalhador. Ressalta quedecorre da necessidade de não entorpecer essa proteção com base tão-somentena justificativa de que a norma não se encontra em lei especial.

Uma vez admitida a aplicabilidade do direito comum, é necessário atentarpara o fato de que a jurisdição do trabalho encontra-se restrita à análise dasquestões que envolvam relações de emprego, competência definida em razão damatéria e não das pessoas. Para o Ministro Castro Nunes, essa condição seencontra presente no caso em tela, visto que o capataz é empregado, ou seja,preposto do fazendeiro, portanto, há um contrato de trabalho. Esclarece que:

A principal, embora não seja a única, característica do contrato de trabalho,é a dependência em que econômica e hierarquicamente fica o trabalhador em rela-ção àquele que dá emprego à sua atividade. Adverte, ainda que não é necessária acoexistência de ambas, ou seja, basta a dependência econômica ou a subordinaçãohierárquica ou técnica para restar configurado o contrato de trabalho.

Ao longo de seu voto, faz detida análise da posição adotada por diversosdoutrinadores brasileiros e estrangeiros, precipuamente os doutrinadores france-ses, acerca do tema, entre eles os autores Capitat et Cuche, Guy Charriére,Oliveira Viana, Paul Colin e Ripert. Manifesta-se no sentido de que a definiçãode contrato de trabalho pela dependência social do trabalhador bem como portodas as normas compensatórias dessa situação obedecem a um propósito, qualseja, a tutela do trabalhador, quer se encontre na legislação especial, quer seencontre nos Códigos comuns. Daí se depreende que as normas são consideradassociais em virtude de seu conteúdo e não pela lei em que se inserem.

É certo que o contrato de trabalho tem hoje uma feição mais regulamentardo que propriamente contratual, é antes instituição do que contrato. É uma trans-formação da locação de serviços, regida por outros princípios que não são oupodem não ser os do Código Civil. Todos os expositores fazem essa observação.(...) Mas, se, por efeito dessa transformação, tal contrato tem na preceituaçãolegal a maior parte das suas cláusulas e separa-se, por isso mesmo e pelas inspi-rações a que obedece, do direito contratual comum, o que se pode dizer é que as

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Memória Jurisprudencial

normas relativas à locação de serviços que puderem ser identificadas como normasde proteção do trabalhador entram no quadro das cláusulas preceituais e legaisque dominam a conceituação do contrato de trabalho.

Prosseguindo em seu voto, o Ministro passa a enfrentar questão relativaao direito de o trabalhador rural ter acesso à jurisdição do trabalho, uma vez quea legislação trabalhista brasileira só se aplicava aos que trabalhavam na indústriaou no comércio, extensível ao trabalhador agrário apenas nas hipóteses deaplicação da lei sobre salário mínimo. Convém salientar que as questões relativasaos acidentes de trabalho se encontravam na competência da justiça ordinária.Assevera o Ministro:

Vale dizer que de um modo geral os trabalhadores rurais não estão aindaamparados, senão restritamente, pela legislação trabalhista, salvo nos casos emque se trate de lavoura industrializada ou comercializada, porque já então seráesse o fim precípuo da exploração rural, do que decorre que os que nela trabalhamsão empregados da indústria ou do comércio. Essa distinção foi feita entre nós,com apoio na melhor doutrina, pelo eminente Sr. Francisco Campos em memorávelparecer.

Sustenta que, no caso, aplica-se a competência da Justiça do Trabalho,cuja exclusão só se justificaria em razão da inaplicabilidade do direito comum poressa Justiça. A aplicabilidade, segundo essa linha de raciocínio, só seria possívelse houvesse lei trabalhista extensível, por disposição expressa, aos trabalhadoresrurais ou se não houvesse legislação limitada apenas aos empregados da indústriae do comércio. Preleciona:

Mas, admitido que a norma social possa estar em qualquer lei, como ocorreno caso, em que essa lei é o Código Civil, já não é possível dizer que a proteção dotrabalhador rural escapa à Justiça do Trabalho, pois que para isso seria necessáriopartir da premissa de que essa justiça não aplica os códigos comuns.

Argumenta, ainda, que há doutrinadores, como Waldemar Ferreira, queadmitem essa extensão, pois as normas sociais existentes na Constituição e emoutros dispositivos legais são universais. Reconhece, todavia, que a própria Justiçado Trabalho recusa-se a examinar reclamações de trabalhadores rurais, e existematé mesmo decisões de Juntas do Conselho Nacional do Trabalho nesse exatosentido. No entanto, o Ministério do Trabalho, por meio do Ministro MarcondesFilho, adotou posição divergente, no sentido de admitir que as juntas do trabalhoexaminem as controvérsias decorrentes das relações de emprego do trabalhadorrural. Conclui o Ministro Castro Nunes:

Em tais condições, não vejo por que excluir da competência daquelajustiça a aplicação de uma norma de proteção do trabalho, pelo só fato de se tratar

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Ministro Castro Nunes

de trabalhador rural. Acresce que já hoje são juízes do trabalho no interior ospróprios juízes de direito, que assim acumulam o exercício da jurisdição comum eda especial, o que facilita a solução exposta, mais consentânea, pela abreviaçãodas formas processuais, com a proteção do trabalhador.

O Ministro Castro Nunes julga procedente o conflito e reconhece comocompetente o Conselho Regional do Trabalho, e o Supremo Tribunal Federal, pormaioria de votos, segue o mesmo entendimento.

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Ministro Castro Nunes

15. DIREITO ADMINISTRATIVO

APRECIAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO

A Apelação Cível n. 8.311/DF136, em que figurou como relator o MinistroCastro Nunes, versava sobre ação proposta por funcionário exonerado da CaixaEconômica que pedia reintegração ao cargo, sob a alegação de ocorrência decerceamento de defesa no processo administrativo, o que levaria à declaração denulidade. O processo foi ao Tribunal Pleno, e a competência do Supremo TribunalFederal foi confirmada, pois já se havia reconhecido em outros julgados a suacompetência para conhecer de causas de autarquias federais, inclusive da CaixaEconômica.

O Ministro Castro Nunes enfrenta questão relativa ao cabimento ou nãode apreciação de ato administrativo pelo Poder Judiciário. Sua posição é bastanteclara no sentido de que

o Judiciário possa rever o ato administrativo, no seu conteúdo, no seu mereci-mento, contanto que o não o faça por apreciação da mera conveniência ou opor-tunidade da medida. É a nossa regra legal, ainda vigente no tocante ao contenci-oso da legalidade dos atos administrativos.

O Ministro fundamenta sua opinião na Lei n. 221/1894, que outorgou aoPoder Judiciário poderes bastante amplos na apreciação dos atos administrativos,ao dispor:

consideram-se ilegais os atos ou decisões administrativas em razão da não-aplicação ou indevida aplicação do direito vigente” e “a autoridade judiciáriafundar-se-á em razões jurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atosadministrativos sob o ponto de vista de sua conveniência ou oportunidade.

A referida Lei mostrava-se bastante avançada para a época, pois acabavapor permitir que, em não se tratando de ato discricionário da AdministraçãoPública, restava permitido o exame da medida para analisar os fatos, reexaminá-lose até, como afirma o Ministro Castro Nunes, “excluídos ou restituídos à sua exataapresentação, autorizar a anulação do ato por ausência da sua base legal oucausa jurídica inexistente”. Assevera ainda:

Daí resulta que a apreciação de mérito interdita ao Judiciário é a que serelacione com a conveniência ou a oportunidade da medida, não o merecimento

136 Data da decisão: 4 de maio de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

por outros aspectos que possam configurar uma aplicação falsa, viciosa ouerrônea da lei ou do regulamento, hipóteses que se enquadram, de um modo geral,na ilegalidade por “indevida aplicação do direito vigente”.

O Ministro Castro Nunes, com propriedade, pondera que não só os aspectosformais do ato administrativo podem ser objeto de apreciação do Poder Judiciário.A limitação existente reside, tão-somente, na análise dos atos discricionários.Portanto, os atos de punição disciplinar ou de destituição de funcionário, em queé necessária a realização de inquérito administrativo, como no caso em tela, nãoconstituem atos discricionários.137 Argumenta que:

o conteúdo ou o merecimento do ato só escapa ao exame do Judiciário em setratando de medidas de caráter discricionário, que só poderão ser anuladas seincompetente for a autoridade ou preterida houver sido alguma formalidadeprescrita na lei, limites não discricionários, no dizer de Freund, do exercício depoderes discricionários.

O Ministro Castro Nunes, com a prudência de sempre, observa que, naafirmação dos fatos, deve o Poder Judiciário pautar-se e conduzir-se com muitacircunspeção, precipuamente em se tratando de punição disciplinar. Na medida dopossível, o Judiciário deve respeitar o critério adotado pela Administração Públicana solução dos conflitos. Na análise do caso sub examine, reconhece que o Esta-tuto dos Servidores e o Regulamento das Caixas Econômicas prevêem a apuraçãoda falta, para assegurar, depois, a defesa do acusado. E esse preceito não foi res-peitado no caso em tela, como alegou o acusado. Acentua Castro Nunes:

É sabido dos familiarizados com o Direito Administrativo que a forma éneste de observância mais rigorosa do que no Direito Processual comum. Dá-semesmo o contrário do que ocorre no Direito Comum; a forma é, em regra, dasubstância do ato — “Toutes les formalités sont presumées substantielles,aucune ne doit pouvoir être omise impunémet” (APPLETON, ContentieuxAdministrative, p. 601).

Partindo dessa idéia, verifica-se que a preterição da forma estabelecida naLei, ainda que não tenha causado prejuízo efetivo para a defesa, conduziu, comonão poderia deixar de ser, à invalidade do ato. No entanto, constata-se que aanulação do ato por fundamentos meramente formais acabou por suprimirnecessariamente o ato — a demissão do funcionário —, o que representaria asua manutenção no cargo.

137 Note-se que a Lei n. 221, em seu art. 13, § 9º, a e b, estabelecia ainda: “A medidaadministrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionário somente seráhavida por ilegal em razão da incompetência da autoridade respectiva ou de excesso depoder.”

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Ministro Castro Nunes

Dessa forma, manifesta-se o Ministro Castro Nunes pelo provimento, emparte, do recurso de ofício e pela apelação para anular o ato, mas sem prejuízo deposterior reinstalação do procedimento administrativo, com a garantia da defesado acusado, nos termos estabelecidos na lei e no regulamento, e, conseqüente-mente, de nova deliberação do Conselho Administrativo. Filia-se o Ministro àcorrente francesa e às decisões proferidas pelo Conselho de Estado Francês, queadmite que, “havendo defeito formal, é possível anular-se o ato apenas paraaquele efeito, para ser sanado o defeito, à semelhança do que se pratica emprocessos civis e penais.”

O Supremo Tribunal Federal deu provimento, em parte, ao recurso, paraanular o ato administrativo.

No mesmo sentido, o Agravo de Petição n. 12.210/DF138 versava sobreação movida por ex-membro do Exército que, devido a sua demissão, pedia areintegração ao cargo. Em primeira instância, obteve decisão favorável, voltandoao serviço do Exército. No entanto o Governo entendeu que não era convenientesua permanência na ativa, sob a alegação de que o longo período de afastamentodo cargo provavelmente prejudicaria a promoção de colegas do mesmo quadro.

O Ministro Castro Nunes, em seu voto, lembra que, em conformidade como disposto no art. 177 das Disposições Transitórias e Finais da Constituição de1937139, não se pode pretender a revisão do ato do Governo, do ponto de vista daconveniência ou da oportunidade da medida adotada, ainda que injusta, ecomplementa, citando posição já anteriormente manifestada em sua obra OPoder Judiciário:

Mas, na interpretação daquele preceito constitucional, havia outra questão,a de saber se os vencimentos seriam integrais ou proporcionais ao tempo deserviço, aspecto focalizado no caso dos juízes atingidos e que encontraria espaçono tocante aos militares com base nos direitos decorrentes da patente e assegu-rados constitucionalmente em toda a sua plenitude. Esse aspecto é do âmbito dostribunais, e assim me manifestei, ainda que admitindo a proporcionalidade, enten-dimento não sufragado pela maioria deste Supremo Tribunal, que, em se tratandode magistrados, lhes atribuía a remuneração integral. Sobreveio, porém, a inter-pretação oficial por via da nova emenda constitucional e alcançando os atospendentes, do que resulta que, já hoje, a proporcionalidade está admitida portexto aditado à Constituição.

138 Data da decisão: 28 de maio de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.139 Estabelecia o art. 177 da Constituição de 1937: “Dentro do prazo de sessenta dias, acontar da data desta Constituição poderão ser aposentados ou reformados de acordo coma legislação em vigor os funcionários civis e militares cujo afastamento se impuser a juízoexclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência do regime.”

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Castro Nunes reconhece que o pedido do autor comportariaexame no tocante a esse aspecto, no entanto é pleiteada a diferença entre osvencimentos correspondentes aos quinze anos de serviço na ativa e os vencimentosa que teria direito se na ativa estivesse ainda.

Todavia, ressalva que o pedido teria de ser julgado improcedente, combase na Lei Constitucional interpretativa que sobreveio aos julgados do SupremoTribunal. Seguindo essa linha de raciocínio, o Ministro manifesta-se no sentido deser inútil prover, em parte, o agravo para esse efeito e nega-lhe provimento.

IRREDUTIBILIDADE DE VENCIMENTOS DOS MAGISTRADOS ECONTROLE JUDICIAL DE ATOS ADMINISTRATIVOS

No Recurso Extraordinário n. 4.939/MT140, analisou-se o alcance dodisposto no art. 177 das Disposições Transitórias e Finais da Constituição de1937141 no tocante à aposentadoria de magistrados com vencimentos calculadospelo tempo de serviço.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes registra que o aludido dispositivoconstitucional contém três partes, sendo apenas duas aplicáveis ao Judiciário.Coube ao Supremo Tribunal Federal analisar, nesse caso, se os magistrados foramalcançados pelo referido artigo ou não, embora, na opinião do Ministro CastroNunes, pareça fora de dúvida que os magistrados foram por ele abrangidos.Mostrou-se necessário verificar o alcance da expressão “de acordo com a legis-lação em vigor”, para definir quais os vencimentos da inatividade, bem comodistinguir entre “juiz” e “funcionário”. Argumenta que:

Vedado ao conhecimento judicial é somente o conteúdo do ato, suasrazões determinantes. É esse o elemento discricionário no uso da medidaexcepcional, e isso decorre das palavras “cujo afastamento se impuser, a juízoexclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência doregime”, apreciação vedada aos tribunais, porque concernente à conveniênciaou oportunidade da medida.

Para o Ministro, a cláusula “de acordo com a legislação em vigor” supõe alegislação federal e a estadual, dependendo do caso, referentes às aposentadorias ereformas, bem como a própria Constituição. O princípio constitucional trazido alume é o da irredutibilidade dos vencimentos judiciais.

140 Data da decisão: 21 de outubro de 1942. Relator, Ministro José Linhares; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.141 Estabelecia o art. 177 da Constituição de 1937: “Dentro do prazo de sessenta dias,a contar da data desta Constituição poderão ser aposentados ou reformados de acordocom a legislação em vigor os funcionários civis e militares cujo afastamento se impusera juízo exclusivo do Governo, no interesse do serviço público ou por conveniência doregime.”

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Ministro Castro Nunes

Em consonância com as manifestações proferidas no Tribunal de Contas ecom os votos proferidos na Turma da Corte Suprema, o Ministro Castro Nunesnão adere a esse argumento da irredutibilidade de vencimentos:

Não vejo como possível argumentar com a garantia da irredutibilidade emse tratando de vencimentos da inatividade. Aquela garantia visa assegurar afixidez dos vencimentos tabelados. Uma vez fixados, não poderão ser reduzidos.Esgota-se nessa fase. É uma restrição posta ao legislador em favor da indepen-dência da função judicial. Supõe a função, o juiz na ativa. Nada tem que ver comos vencimentos da inatividade.

Nessa linha de raciocínio, sustenta que a integralidade supõe os vencimentosjá fixados ou tabelados, disciplinando-se por outros princípios. O juiz ou funcionárioque se aposenta tem direito — de acordo com as regras pertinentes à aposenta-doria — aos vencimentos integrais ou proporcionais. Nesse particular, a Consti-tuição fixa as hipóteses nas quais os vencimentos serão integrais: a) juiz commais de trinta anos de serviço; b) aposentadoria resultante de acidente de trabalhoou incapacidade do funcionário. Em todas as demais hipóteses, ficará a cargo dolegislador ordinário conferir ou não essa integralidade aos vencimentos. Do quese depreende que, se ele não o fizer, deve prevalecer a proporcionalidade.

Sustenta o Ministro Castro Nunes que, se da irredutibilidade dos venci-mentos pudesse decorrer a integralidade, não seria possível conferir vencimentosmenores ou proporcionais ao magistrado aposentado, mesmo quando a aposenta-doria ocorresse a pedido do juiz. Afirma:

A irredutibilidade que sempre existiu no direito constitucional republicanojamais impediu que, passando à inatividade, tivesse o juiz vencimentos menoresque os da atividade. Por outro lado, o funcionário que os não tem irredutíveispode sair, e não raro sai, com os seus vencimentos por inteiro. De modo quevencimentos irredutíveis e vencimentos integrais são coisas diversas. Irredutíveiso são porque, uma vez fixados, não poderão ser reduzidos. Integrais equivalem atotais, por inteiro.

O Ministro explica que os vencimentos da função pública, uma vez discipli-nados por lei, deverão ser pagos por inteiro, em virtude da existência das tabelas,e não pela razão de serem irredutíveis. Contudo, se se tratar de vencimentos dejuiz, a regra permanece a mesma, somada ao fato de que, no caso de vencimentosjudiciais, não é permitido ao legislador alterá-los para menos. É aqui que reside oprincípio da irredutibilidade, que se constitui em verdadeiro limite ao legislador,quando da fixação dos vencimentos da magistratura.

Há, na interpretação do Ministro, distinção entre o afastamento compulsórioe o facultativo. A aposentadoria voluntária é a que ocorre com fundamento navontade livre do titular do cargo, e só é possível quando o juiz possui mais de trinta

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Memória Jurisprudencial

anos de serviço. O Texto Constitucional a denomina aposentadoria facultativa,que é concedida a título de prêmio, dispensada a condição de invalidez. Em todosos outros casos, salienta o Ministro Castro Nunes, a aposentadoria é compulsória,aos sessenta e oito anos de idade ou em virtude de invalidez comprovada. Nesseparticular, não se verifica qualquer facultatividade ou voluntariedade na aposen-tadoria por invalidez comprovada. Excetuando-se essas duas hipóteses, em que ojuiz ou o funcionário tem direito à aposentadoria integral, os demais casos ficam acargo da lei ordinária, que pode conceder ou não a integralidade. Esclarece oMinistro Castro Nunes:

Não é, pois, facultativa ou voluntária a aposentadoria por invalidezcomprovada; não resulta de uma atitude espontânea do juiz ou do funcionário,mas de uma injunção das circunstâncias que a lei procura remediar amparando oservidor do Estado colhido pela doença que o incapacite para a função.

Pondera, no entanto, que, no caso da aposentadoria por interesse doserviço ou por conveniência do regime, há hipótese de afastamento compulsórioque não se encontra referida no art. 91, a, da Constituição, por ser medidatransitória e de exceção. Complementa que:

Está, porém, subentendida, porque expressa na Constituição em outropasso e o estaria ainda que não houvesse, no teor do próprio art. 91, a ressalva dasrestrições expressas na Constituição, uma das quais é a que se contém no art. 177.Já se tem dito que, em certos casos, naqueles em que seja exíguo o tempo de serviçodo juiz, a aposentação pelo art. 177 equivale a uma verdadeira demissão.

O Ministro ressalta que há quem considere, nos casos em que seja exíguo otempo de serviço do juiz, a aposentadoria com fundamento no art. 177 verdadeirademissão. Em relação aos vencimentos, o art. 177 não impede que o juiz se aposen-te com vencimentos integrais, mas é preciso ter completado o tempo para tanto.Sustenta que a única diferença consiste no fato de a aposentadoria ocorrer, em umcaso, por motivo de força maior — a enfermidade a acometer o juiz antes decompletar o tempo necessário ao recebimento dos vencimentos integralmente —,enquanto, no outro, ocorre pelo arbítrio do Governo. A razão determinante do afas-tamento diferencia as situações.

O Ministro Castro Nunes enfatiza que nosso sistema legal admite que ojuiz se aposente por invalidez sem os vencimentos integrais, no entanto nãoadmite que o mesmo aconteça quando a aposentadoria ocorre por determinaçãodiscricionária do Governo. Deve-se combater aqui o arbítrio da aposentadoriadiscricionária por ato governamental em benefício das garantias da magistratura.Todavia, registra que não encontra maneira de obstaculizar o exercício dessepoder dos governos, que agora ocorre por tempo indeterminado e que é umaameaça à independência dos juízes:

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Ministro Castro Nunes

Mas, se o poder está expresso na Constituição e se o texto se aplicatambém aos magistrados, não é o vencimento da inatividade que compromete epõe em risco a independência do Judiciário. É o afastamento mesmo do juiz àdiscrição do Governo. O vencimento proporcional é uma conseqüência desseafastamento, de acordo com as leis preexistentes e de cuja constitucionalidadejamais se suspeitou. Compreendo, ainda, que, sem aderir a esse entendimento, sepudesse argumentar com os textos permanentes da Constituição para nãoestender aos magistrados o art. 177, porque contraditório com os princípios emque se inspira o regime no resguardo da independência da magistratura.

Ressalta o Ministro que seria essa a finalidade dominante no entendimentodo Texto Constitucional que se poderia alcançar, com o emprego da exegese porconstruction, utilizada nas práticas americanas. Ele verifica que a dificuldade docaso decorre da transitoriedade da disposição, que, como tal, é uma dispensa quese autoriza, na aplicação da norma permanente, uma exceção admitida, ainda quepor tempo indeterminado. Então conclui:

Ora o escopo visado em nome das garantias da independência da magis-tratura teria de ser o preceito transitório que, aplicado aos juízes, importa empermitir-lhes o afastamento pela vontade discricionária dos Governos. Dir-se-áque a transitoriedade da disposição desapareceu com a Lei Const. n. 2, que reafir-mou a faculdade por tempo indeterminado. Creio que nem por isso deixou de sertransitória.

Tendo em vista o fato de se tratar de cláusulas que correspondem à fasede transição e, portanto, encontram-se sujeitas à duração dessa fase, o MinistroCastro Nunes vota pelo recebimento dos embargos, e é esse o entendimentosufragado no acórdão.

POSSIBILIDADE DE O ESTADO-MEMBRO CONCEDER TRATAMENTOMAIS FAVORÁVEL A FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS ESTADUAIS EMUNICIPAIS

No Recurso Extraordinário n. 5.084/ES142, tratou-se de questão relativa àpossibilidade de estado-membro conceder estatuto mais favorável aos funcionáriosestaduais e municipais do que o assegurado aos funcionários federais. O casodizia respeito a funcionário que não contava com dez anos de serviço e foi demitido,sem a instauração de inquérito administrativo, em 1937.

O acórdão recorrido entendeu que a Constituição de 1937 não amparavasenão os funcionários com mais de dez anos de serviço, quando admitidos semconcurso público. Foi omissa no tocante à cláusula existente no Texto Constitu-cional anterior que exigia a “justa causa” para demissão, independente da com-

142 Data da decisão: 14 de dezembro de 1944. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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provação de dez anos de serviço. No entanto, a Lei n. 30/35, do Estado do Espí-rito Santo, manteve essa exigência, ou seja, condicionou a demissão à apuraçãoda falta imputada ao funcionário.

Enfim, tratava-se, no caso, da análise da constitucionalidade de leis dosestados-membros e municípios que ampliavam as garantias asseguradas àfunção pública pela Constituição Federal.

O Ministro Castro Nunes já havia manifestado entendimento em questãoidêntica, no sentido de que “as garantias da função pública são normas comuns àUnião, aos estados e aos municípios, constituindo regras fixas que não podem sermodificadas pelo legislador.”

Entende, pois, que lei federal não poderia dispor de maneira contrária, ou seja,estatuir contrariamente ao disposto no Texto Constitucional. Alega que o Decreto-Lein. 1.202/39, em seu art. 48, estabelece que os funcionários públicos dos estados e dosmunicípios usufruem das mesmas garantias e estão sujeitos aos mesmos deveres eobrigações estipulados na Constituição. No entanto, pondera que:

Não existe paridade entre as garantias individuais, que são, de seu naturale, aliás, por cláusula expressa da Constituição, distensíveis, comportandointerpretação extensiva no interesse da melhor tutela dos direitos do indivíduo, eas garantias da função pública, que são limitações postas ao poder que, emprincípio, se reconhece ao Estado na escolha, conservação e dispensa dos seusagentes. É velho cânon de direito constitucional que o indivíduo pode tudo o quea lei não proíbe e que o funcionário pode somente o que a lei lhe permite. Oindivíduo tem direitos ainda que não expressos; o funcionário não os tem senãoquando conferidos por lei.

Na visão do Ministro Castro Nunes, o funcionário não está para o Estadocomo o indivíduo em face do funcionário, ou seja, dos agentes do Poder Público.São situações distintas. O Ministro é enfático ao estabelecer que não há essacorrelação, de modo que o funcionário, via de regra, é demissível, e apenas emhipóteses restritas essa regra sofre limitações, tendo em vista o interesse dopróprio serviço. Já no caso do indivíduo, a regra que vigora é outra, qual seja, oindivíduo é livre na sua ação, e só por exceção a lei pode limitá-la. Elucida que:

No quadro desses princípios, não vejo como possível admitir que osórgãos locais se afastem das normas constitucionais para adotar critériosdiferentes que importariam em estabelecer para os funcionários estaduais emunicipais um estatuto mais favorável do que o assegurado aos federais. Opensamento da Constituição foi unificar a função pública, dando-lhe garantias debases uniformes em toda a Nação.

Cabem às leis locais apenas os espaços em branco ou aqueles que possamser supridos, preenchidos, restando vedada a modificação do que se encontra

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Ministro Castro Nunes

expresso na Constituição, de aplicação imediata na órbita local, “como regrasescritas do direito administrativo dos estados e municípios”.

Observa-se que, em seu voto, a preocupação precípua do Ministro foipreservar as linhas mestras e o modelo delineado pela Constituição Federal noque diz respeito às garantias conferidas aos funcionários públicos, de modo quecaberia tão-somente às leis regulamentá-las, mas não ir ao ponto de ampliar,como ocorreu no caso em tela, as garantias dos funcionários estaduais emunicipais em detrimento dos federais. O regime de garantias instituído pelaConstituição aos funcionários públicos é um só e aplicável aos três entesfederativos.

Nesses termos, o Ministro Castro Nunes negou provimento ao recurso efoi essa a posição adotada pelos demais Ministros do Supremo Tribunal Federalno caso.

APLICABILIDADE AUTOMÁTICA DAS GARANTIAS DA FUNÇÃOPÚBLICA NO ÂMBITO ESTADUAL

No Recurso Extraordinário n. 6.760/SP143, em que figurou como relator oMinistro Castro Nunes, discutiu-se se as garantias da função pública estabelecidasno Texto Constitucional se aplicavam automaticamente aos funcionários estaduais,bem como se os estados estavam obrigados apenas a cumpri-las ou podiamdesenvolvê-las como matéria inserida no âmbito do seu direito administrativo.

Elucida, em seu voto, o Relator que as garantias constitucionais do funcio-nalismo público constituem verdadeira proteção contra o arbítrio dos governan-tes. Nesse sentido, essa proteção deve ser entendida como garantia mínima, nãoficando, portanto, o estado impedido de aumentá-la no interesse da organizaçãodos seus serviços e da estabilidade dos seus servidores. Tal questão traduz-se,segundo o Ministro Castro Nunes, na interpretação de dispositivo constitucionalpara lhe medir a extensão em face da autonomia administrativa dos estados-membros. Esclarece que:

A preceituação sobre função pública, dado o seu caráter geral e compreen-sivo do funcionário, quer da União, quer dos estados e municípios, vale comodireito objetivo de base constitucional que supera a preceituação secundária,seja federal, seja local, não estando, pois, ao alcance do legislador modificá-la oudispensá-la para adotar normas diferentes. Tanto basta para que desde logo secompreenda que nela se esgota a disposição sobre o assunto, valendo o que estáescrito na Constituição Federal como direito interno de cada estado ou município.

Nesse sentido, o Ministro conhece do recurso extraordinário e lhe dáprovimento.

143 Data da decisão: 20 de setembro de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

GARANTIAS DOS PROMOTORES PÚBLICOS

Nos Embargos ao Recurso Extraordinário n. 6.762/MG144, tratou-se dequestão relativa aos promotores públicos, no sentido de verificar se teriam direitoà estabilidade no cargo com mais de dez anos de serviço, como ocorria com osdemais funcionários públicos. No caso, existiam duas leis do Estado de MinasGerais que sobrevieram à Lei 1.079, de 1929, para estabelecer que a estabilidadedos promotores públicos dependia da recondução, que necessitava de parecerfavorável do Procurador-Geral.

No caso em análise, o promotor já contava com mais de dez anos deserviço e, sem que lhe fosse imputada nenhuma falta, foi demitido. Todavia,com base no próprio Texto Constitucional de 1934, o funcionário que possuíssemais de dez anos de serviço, mesmo nomeado sem concurso, não poderia serdestituído do cargo sem a instauração do devido processo administrativo emque se verificasse ocorrência de falta grave. Esclarece o Ministro CastroNunes que:

O promotor não deixa de ser um funcionário, com as garantias que lheoutorgue a lei especial, garantias que não poderão ser menores do que as de quegozam os funcionários em geral. Se, embora nomeado para servir por mais de dezanos, ainda que não reconduzido ou reconduzido ilegalmente, aproveita-lhe acláusula geral que ampara contra o arbítrio das demissões o titular não vitalício dafunção pública.

Para o Ministro, não se faz necessário sequer argumentar acerca dodisposto no art. 95, § 3º, da Constituição de 1934145 ou no seu art. 7º, inc. I, letrae146, que prevê, nos órgãos do Ministério Público local, garantias de estabilidadena função. Para ele, é suficiente a circunstância de que o promotor serviu pormais de dezesseis anos e, portanto, teria direito à estabilidade, se não comopromotor, pelo menos como funcionário público. Não há negar que o promotorseja também funcionário público.

O Ministro Castro Nunes rejeita os embargos, e o Supremo TribunalFederal, por unanimidade, decide do mesmo modo.

144 Data da decisão: 24 de maio de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.145 Dispõe o § 3º do art. 95 da Constituição de 1934: “Os membros do Ministério PúblicoFederal que sirvam nos juízos comuns, serão nomeados mediante concurso e só perderãoos cargos, nos termos da lei, por sentença judiciária, ou processo administrativo, no quallhes era assegurada ampla defesa.”146 Dispõe o art. 7º, n. I, letra e, da Constituição de 1934: “Compete privativamente aosEstados: I) decretar a Constituição e as leis por que se devam reger, respeitados osseguintes princípios: e) garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais;”

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Ministro Castro Nunes

EXONERAÇÃO DOS SERVENTUÁRIOS DA JUSTIÇA

No Recurso Extraordinário n. 8.500/ES147, examinou-se a responsabilidadeda exoneração irregular de escrevente juramentado que, como funcionário públicocom exercício havia mais de dez anos, gozava da estabilidade local.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes esclarece que não se trata deresponsabilidade por ato judicial, advertindo que o nosso direito só a admite narestrita hipótese da revisão criminal, quando se conclui pela absolvição dosentenciado.

Entende que, no caso em tela, a atribuição exercida pelo juiz, pelo corre-gedor, é de índole administrativa, são atribuições administrativas dos tribunais.Esclarece que “serventuários forenses” é denominação tradicional atribuída adeterminados funcionários que trabalham junto aos juízes e aos tribunais. Emseu voto, faz detida análise histórica do conceito de serventuário da Justiça,lembrando que há séculos os ofícios de justiça eram hereditários e adquiridos,comprados, ou seja, eram bens privados.

Todavia, o direito moderno aboliu essa concepção e transformou a noçãode serventuário, que é considerado funcionário como outro qualquer, sendoirrelevante o fato de receber dinheiro do tesouro, como ocorre com os escrivães,que recebem das partes emolumentos taxados em lei. Conclui o Ministro CastroNunes:

Penso que se deve ter o escrevente como serventuário desde que foiprovido por ato público e não submetido apenas ao alvedrio, à simples escolhado escrivão, porque, então, seria um simples secretário particular deste e nãoauxiliar do cartório. Desde que o recorrente foi provido por nomeação e foidestituído por ato de autoridade administrativa da justiça, esse ato envolve eacarreta a responsabilidade do Estado.

O Ministro dá provimento ao recurso, e o Supremo Tribunal Federalprofere acórdão no mesmo sentido.

RESPONSABILIDADE DA UNIÃO SOBRE OS ATOS DOS FUNCIO-NÁRIOS

Na Apelação Cível n. 7.762/DF148, enfrentou-se questão relativa à respon-sabilidade da União sobre os atos de funcionários públicos, no caso em análise,oficiais de justiça. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes asseverou que o fato de

147 Data da decisão: 6 de outubro de 1947. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.148 Data da decisão: 14 de janeiro de 1943. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

os funcionários públicos não serem remunerados pelos cofres públicos não édecisivo, pois existem funcionários gratuitos que comprometem, por meio de seusatos, a responsabilidade do Estado. Esclarece que “o texto constitucional serve aesse entendimento, porque o que se lê, fora da letra, é que a questão de remune-ração não é decisiva para a definição de funcionário público.”

Ele considera o serventuário da Justiça funcionário público para todos osefeitos e, assim, não pode deixar de examinar a questão relativa ao Judiciário.Cita, em seu voto, o entendimento exarado pelo Procurador-Geral da Repúblicade que, da mesma forma que o Estado não pode ter responsabilidade pelos atosdos juízes, também não pode tê-la pelos atos dos auxiliares da Justiça. Asseverao Ministro:

Porque a autonomia é tão inerente à função judicial que não seria possívelencontrar o ilícito no pronunciamento judicial; porque a função do juiz é, exata-mente, decidir, julgar, dar o direito a A e negar o direito reclamado por B. Assim aação de responsabilidade poria em cheque a coisa julgada, que tem por si apresunção de acerto, poria em cheque de tal forma que a ação de responsabilidade,posta em juízo, seria a rescisória, da sentença, quando julgasse procedente opedido de indenização. Deve-se interpretar, portanto, a função do juiz como incapazde gerar a responsabilidade do Estado que o nomeou, em face da doutrina, que sealicerça nestas considerações em face de nosso Direito Positivo, que, apenas,reconhece um caso em que a sentença judicial pode determinar a responsabilidadedo Estado; quando do réu é absolvido, em revisão criminal, disposição que vemdo antigo Código Penal e está mantida, hoje, no Código de Processo. Fora dessecaso, em nosso Direito, o Estado não responde pelos atos do juiz.

Todavia, entende que daí não se extrai que o Estado não responda pelosatos dos auxiliares de Justiça. Não se pode dizer, no caso, que o depositário éauxiliar do juiz, prolongamento da função do juiz, quando nomeia perito para fixarvalor à causa. Ressalta que é a única atribuição talvez que se concede ao juizhoje. Esclarece, ainda, que os serventuários são nomeados pelo Presidente daRepública no âmbito federal e, no estadual, pelos governadores ou interventores.Preleciona:

Creio que estou mostrando que o depositário judicial e, em geral, osserventuários da justiça, quando nomeados, como o são todos, pelo Poder Público,são prepostos, são agentes do Poder Público, ainda que, no setor judicial, não selhes estendendo a irresponsabilidade do juiz pelos atos de sua função.

Outro ponto enfrentado pelo Ministro diz respeito ao argumento suscitadopelo Procurador-Geral da República, consistente no fato de que a União nãopode ser responsabilizada por atos criminosos de seus agentes. O MinistroCastro Nunes entende que a tese, nesses termos, é aceitável até certo ponto.Todavia, necessário se faz distinguir os casos em que o ato criminoso é o próprioato da função:

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Ministro Castro Nunes

Na função, pode o funcionário praticar crime. O que se pode admitir, namelhor doutrina, é que por atos criminosos, alheios à sua função, não responde oEstado. Assim, por exemplo, o funcionário que, no exercício de sua função,pratica um homicídio, mas não o funcionário que, no exercício de ato da suafunção, comete crime, como, no caso, se verifica, praticou o crime no desempenhoda função, em razão da função; fora ela, não cometeria o crime, não teria odepositário dinheiro alheio em suas mãos. Foi a função que lhe propiciou aoportunidade de cometer o delito, não praticou o crime como ato alheio à função,embora no exercício dela, caso em que seria possível admitir que o crimepraticado, ainda que no exercício da função, não comprometeria o Estado.

No caso, a responsabilidade da União está comprometida. O MinistroCastro Nunes nega provimento à apelação, e o Supremo Tribunal Federal decideno mesmo sentido.

TOMBAMENTO

Na Apelação Cível n. 7.377/DF149, examinou o Supremo Tribunal Federala constitucionalidade das limitações ao direito de propriedade constitucionalmenteassegurado em face da conservação do patrimônio histórico e artístico. Tratava-sede ação sumária especial com a finalidade de anular ato atentatório ao direito depropriedade do autor, assegurado no art. 122, n. 14, da Constituição de 1937150,qual seja, o tombamento sobre o prédio da Praça Quinze de Novembro, n. 34. OPatrimônio Histórico e Artístico Nacional resolveu tornar efetivo o tombamentodo prédio, nos termos do Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937.

O cerne da questão constitucional suscitada na referida ação residia emsaber se, tombado como monumento de valor histórico determinado edifício, nostermos do Decreto-Lei n. 25/37, está a União obrigada a desapropriá-lo ou sepode subsistir o tombamento, com as restrições que dele decorrem para o direitode propriedade, sem necessidade de desapropriação.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes reconhece o direito de propriedadeassegurado no art. 122, n. 14, da Constituição, mas, de outra parte, menciona queassegurou o Texto Constitucional, igualmente, em seu art. 134151, a proteção dos

149 Data da decisão: 17 de junho de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.150 Dispõe o art. 122, n. 14, da Constituição de 1937: “o direito de propriedade, salvo adesapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seuconteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício.”151 Dispõe o art. 134 da Constituição de 1934: “Os monumentos históricos, artísticos enaturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza,gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Osatentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônionacional.”

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Memória Jurisprudencial

bens ou locais de valor histórico ou artístico. Para dar execução a esse dispositivoconstitucional, foi expedido o Decreto-Lei n. 25/37, que discorre sobre os bensque constituem o patrimônio histórico e artístico, bem como disciplina o procedi-mento do tombamento. A finalidade do tombamento, segundo o Ministro, é con-servar a coisa, reputada de valor histórico ou artístico, com suas característicasoriginais. Salienta:

Mas essa preservação não acarreta necessariamente a perda da proprie-dade, o proprietário não é substituído pelo Estado; apenas se lhe retira uma dasfaculdades elementares do domínio, o direito de transformar e desnaturar acoisa, como se exprime Lafayett (Cousas, § 25), direito de transformação, assimo qualifica o Código Civil Português, o qual vai até a destruição mesma, identifi-cando, em certos casos, observa Cunha Gonçalves, com o proscrito jus abutendi.

Ressalte-se que a coisa não sai do domínio do particular, não ocorredesapropriação para fins de tombamento. O Ministro não nega que a doutrinaclássica exposta por Sabbatini

define a desapropriação pela cessão de transferência da coisa, pela extinção dodireito titular do proprietário que é substituído pelo estado. Esse entendimentorestrito encontrou opositores que ampliam o instituto a determinadas restriçõesque afetem o direito de propriedade, ainda que sem o suprimirem ou extinguirem.

Alguns doutrinadores admitem, ressalva o Ministro Castro Nunes, umconceito de desapropriação lato sensu, como, por exemplo, Meucci. Para oMinistro, essa possibilidade, admissível por parte da doutrina, se endereça aolegislador, pois a noção corrente é a de que a expropriação preserva o sentido aela conferido pela Declaração dos Direitos do Homem, qual seja, constitui-se emgarantia contra o confisco da propriedade, “inviolável e sagrada”. Ressalta,ainda, que o Código Civil filiou-se a essa posição ao definir, em seu art. 590, aexpropriação como um dos casos de perda da propriedade do imóvel. De outraparte, o tombamento, na visão do Ministro Castro Nunes, surge

Para proteger, isto é, acautelar, defender ou preservar os valores artísticosou históricos existentes no País ou Estado não pretende nem precisa transferirpara o seu domínio tais valores. Quer deixá-los em poder dos respectivos donos,com a obrigação, a estes imposta, de os conservar, o que envolve, sem dúvida,uma limitação à faculdade que normalmente tem o proprietário de destruir,desnaturar ou transformar a coisa.

O Ministro realça que, se a preservação desses monumentos representanovidade para a realidade brasileira, não o é para os demais países, como, porexemplo, a Itália, onde a legislação que protege o patrimônio histórico e artísticoremonta ao período renascentista. Ele analisa profundamente a legislação

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Ministro Castro Nunes

estrangeira sobre o assunto, bem como recorre aos doutrinadores para destacara finalidade de se preservar esse patrimônio. Enfatiza que o Estado procurarespeitar, na medida do possível, o direito dos proprietários, mas também evita oabandono ou o capricho deles em relação à obra. Preleciona:

O que se depreende dessa distinção é que existe nas obras de arte, comonos edifícios de valor histórico, alguma coisa que supera o interesse do dono. Éa necessidade ou conveniência da conservação desses valores, que pode nãoconvir ao proprietário, interessado possivelmente em destruí-los ou transformá-los,se isso lhe trouxer vantagem, colidindo já então com o interesse social ounacional ligado àquela conservação. É a função social da propriedade, a estainerente, como diz Hauriou, coisa diversa da propriedade — função social, deCurvitch e de outros extremistas do Direito, que absorve o elemento individual dodireito, mantido em nossa Constituição, ainda que com aquela destinação. Tal é osentido do acréscimo que deu entrada na atual Constituição em termos ainda maisamplos que os da fórmula que já se inserira no texto de 34: “o seu conteúdo e osseus limites serão definidos nas leis que lhe regularem o exercício...” O âmbito dolegislador é, portanto, muito vasto.

Não há negar que se encontram, nas tendências contemporâneas, refletidasnas legislações dos países, restrições extensas ao direito de propriedade. OMinistro Castro Nunes cita inúmeros exemplos, como as servidões legais, aexploração de subsolos, o direito de vizinhança, a proibição de plantios, a derrubadade florestas. Nesses casos, verifica-se, em maior ou menor escala, desvalorizaçãodo direito de propriedade, que sofre inúmeras restrições. Acentua que “a obrigaçãode conservar, que daí resulta para o proprietário, se traduz no dever de colaborar narealização do interesse público. A desapropriação seria impraticável”.

O patrimônio histórico, consoante o disposto na legislação pertinente, é oconjunto de bens móveis e imóveis existentes no País, que, tendo em vista suasignificação histórica ou artística, devem ser preservados. Se esses bens foremdesapropriados, resta impossível a sua preservação. A desapropriação só serianecessária nos casos em que não fosse possível a conservação da coisa sem asua retirada das mãos do proprietário. O § 1º do art. 19 da Lei 25 estabelece queapenas nos casos em que o proprietário não dispuser de meios para executarobras de conservação, com vistas a evitar a ruína do edifício, pode o Estadodesapropriá-lo. Não há nenhuma obrigação de desapropriar o imóvel, há apenasconveniência para o Estado. O ônus de preservação é do particular, que nãoperde a titularidade do imóvel, podendo vendê-lo, hipotecá-lo ou alugá-lo. Logo,trata-se de limitação ao direito de propriedade.

O voto do Ministro Castro Nunes é pela constitucionalidade do Decreto-Lei n. 25. Nos votos que se seguiram ao dele, houve intensa discussão acercado assunto, chegando o Ministro Laudo de Camargo a questionar se, nesse

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Memória Jurisprudencial

caso, o direito de propriedade fica tão precário quanto parece: “que importa aoproprietário que compra a casa o direito de propriedade, se ele lhe vem tão des-naturado?”

A essa pergunta responde o Ministro Castro Nunes que a propriedade,nesse caso, fica desvalorizada, mas não extinta.

O Ministro Orozimbo Nonato defende a posição de que o Estado podedesapropriar e deve fazê-lo, sempre que puder, para evitar prejuízos aos particu-lares, todavia pondera que

essa consideração não é ponderosa a concluir que o decreto-lei de que se tratepadeça da coima da inconstitucionalidade. Aqueles prejuízos constituem, então,uma contingência da vida política, do consórcio civil.

O Ministro Castro Nunes concorda com o argumento apresentado peloMinistro Orozimbo Nonato, pois entende que, no direito constitucional brasileiro,não é possível declarar como inconstitucional lei dessa natureza. A Constituiçãoconferiu ao legislador a prerrogativa de definir as limitações ao direito depropriedade. Vale dizer que os atos atentatórios aos edifícios tombados serãoequiparados aos atentados cometidos contra o patrimônio histórico, ou seja, comose cometidos fossem contra o patrimônio nacional. A decisão do SupremoTribunal Federal foi pela constitucionalidade do Decreto, e os autos voltaram àTurma para o julgamento.

Quando da análise do processo na Turma, reconhece o Ministro CastroNunes o direito do autor de contraditar o caráter de monumento históricoatribuído ao edifício da Praça XV por ato administrativo.

Essa possibilidade decorre da sujeição dos atos administrativos dequalquer natureza, e seja qual for a hierarquia da autoridade de que emanem,inclusive o presidente da República, ao controle judicial, ao exame dos tribunais,quando provocados estes em forma regular. De modo que é inoperante odispositivo em que se diz que das decisões do Serviço do Patrimônio Históriconão haverá recurso, se se quiser entender que essa vedação alcança o Judiciário.

Acentua o Ministro que a tendência dos tribunais é aceitar como verdadeirasas soluções exaradas nas instâncias administrativas, precipuamente quando ver-sem sobre fatos que envolvam apreciação técnica especializada. Faz análiseacurada do direito americano nesta seara, que aplica a teoria da conclusividade,ainda que relativa às decisões administrativas em matéria de fato.

Tendo em vista essa tendência das cortes constitucionais, não vê oMinistro Castro Nunes razão para anular o tombamento do edifício da Praça XV.Em seu voto, nega provimento ao recurso, e o Supremo Tribunal Federal, porunanimidade, decide da mesma maneira.

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Ministro Castro Nunes

16. AUTARQUIAS

NATUREZA JURÍDICA DAS AUTARQUIAS

Há inúmeros julgados no Supremo Tribunal Federal sobre a competênciae sobre a própria natureza das autarquias. Entre eles, destaca-se a ApelaçãoCível n. 8.311/DF152, que versava sobre a competência do Supremo TribunalFederal para conhecer de apelações em que fossem parte as Caixas EconômicasFederais, consideradas autarquias federais. Tratava-se, no caso, de funcionáriodemitido do serviço da Caixa, que pleiteava a reintegração, pois entendia que,apesar de se tratar de punição disciplinar — fato de ordem interna da adminis-tração da Caixa —, comportava o reexame judicial.

O Ministro Castro Nunes já possuía entendimento no sentido de admitirque o Supremo Tribunal Federal é segunda instância nas causas em que fossemparte as Caixas Econômicas Federais, com fundamento no fato de ser o Tesouroo fiador dos depósitos feitos em tais estabelecimentos. No entanto, ponderou, emseu voto, no caso sub examine:

Pareceu-me que o argumento era de molde a justificar a exceção, e exceçãoúnica, de vez que outras autarquias, que pretenderam o acesso ao SupremoTribunal Federal, não o conseguiram, sendo remetidos os recursos aos tribunaisde apelação competentes.

O Ministro relembra que, quando a Estrada de Ferro Central do Brasil foierigida em autarquia federal, o Ministro Philadelpho Azevedo suscitou, naPrimeira Turma do Tribunal, a questão da competência do Supremo TribunalFederal, manifestando-se no sentido de não caber mais à Corte Supremaconhecer dos recursos nas causas das entidades organizadas como pessoajurídica autônoma e distinta da União. Alegou, ainda, que em idêntica situação seencontraria a Caixa Econômica. O Ministro Castro Nunes aderiu à tese doMinistro Philadelpho Azevedo sob o seguinte argumento:

A administração autárquica, embora administração pública, é administra-ção separada, administração realizada pelo Estado, mas por via indireta, e por issomesmo chamada paraestatal, não se confundindo assim com a pessoa matriz aentidade autárquica, que tem personalidade jurídica e meios próprios para a reali-zação de seus fins, do que resulta que pelos atos que pratique responde elamesma, e não a pessoa pública que a institui, nisso consistindo uma das vanta-gens da descentralização que, por essa forma, se opera.

152 Data da decisão: 12 de janeiro de 1941. Relator, ad hoc, Ministro Waldemar Falcão;Presidente, Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

Entende, assim que, mesmo considerando-se as vinculações existentes emgrau maior ou menor, a tutela exercida em extensão variável pelo ente estatalsobre essas autarquias não basta por si só para considerar a União atingida peladecisão. Isso demonstra o interesse público que elas refletem como órgãos insti-tuídos para o desempenho de serviços que, na maioria das vezes, eram da esferaestadual.

Admite, ainda, que, sob a égide da Constituição de 1891, o critério paradelinear o interesse da União para o aforamento das demandas na Justiça Federalverificava-se em espécie, sem balizas. Com o advento da Constituição de 1934,fixou-se um critério formal. Esse critério consistia na competência da segundainstância do Supremo Tribunal Federal somente para causas contra terceiros,quando a União interviesse como assistente ou oponente, “tomando assim posi-ção processual no feito, por qualquer dessas duas formas ou outras que lhessejam equivalentes.”

Ressalta que, na Constituição de 1937, o critério é objetivo,

não dependendo mais do intérprete aferir do interesse da União, interesse quepoderá existir ou parecer que existe em dada demanda, mas que nem por issobastará para deslocá-la da instância comum, se a própria União, não intervier nopleito por qualquer daquelas formas. Importa em dizer que o interesse da União,para os efeitos da competência privilegiada, é apenas elemento informatório dasua intervenção, justificação a ser aduzida para ser admitida a assistir uma daspartes ou opor-se à pretensão ajuizada. Não, porém, para determinar o desloca-mento da coisa que pertencerá, em não se dando tal intervenção, à competênciados tribunais de apelação.

Em diversos julgados, o Ministro Castro Nunes manteve essa posição,como no caso do IPASC e da Estrada de Ferro Central do Brasil, mesmo em setratando de autarquia organizada, segundo o Ministro, com o propósito decontinuar a executar serviço que até então estivera a cargo do Ministério daFazenda. Entende que as autarquias, por definição, são executoras de serviçosdestacados do âmbito estadual.

Todavia, no caso sub examine, o Ministro sente a necessidade de coordenarsuas idéias para avaliar se a justificativa por ele utilizada no tocante às CaixasEconômicas, relativa ao afiançamento pelo Tesouro, seria suficiente para justificara exceção em relação às demais autarquias, desde que não fosse caso em que oparticular reclama o depósito, pois, nessa hipótese, a União seria litisconsorte.Formula, então, a seguinte questão de índole constitucional:

o saber se as causas das Caixas Econômicas, contra essas movidas ou por elaspropostas, são de competência do Supremo Tribunal em segunda instância, pelosó interesse presumido da União no afiançamento dos depósitos.

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Ministro Castro Nunes

Salienta que, nesses processos que envolviam Caixas Econômicas e estra-das de ferro, a União, por meio de seus representantes, vinha oficiando, por provo-cação do autor ou ainda por iniciativa do juiz do feito, que lhe fossem concedidasvistas do processo, em consonância com a jurisprudência do Supremo TribunalFederal, que reconhece ter competência para julgar as causas dessas autarquias.Adverte, porém, que isso não configura assistência, que pressupõe iniciativa deterceiro, defesa de direito que possivelmente será comprometido pelo deslinde dademanda. Para o Ministro, a “assistência é uma intervenção facultada”. No caso, oque ocorreu foi:

a intervenção provocada da União pelos seus representantes na primeira instância,intervenção de que ela declinaria possivelmente se não fora o entendimentoadotado de que o Supremo Tribunal é a segunda instância nas causas das CaixasEconômicas.

O Ministro Castro Nunes alerta para a existência de um círculo vicioso,pois, ao entender-se que, encontrando-se nos autos a União oficiando, aderindo àdefesa da Caixa, estaria configurada a competência do Supremo TribunalFederal. Todavia, essa adesão, provocada e não declinada, é fruto dos própriosjulgados do Supremo Tribunal Federal, segundo ele, efeito da devolução da causaao Supremo Tribunal Federal como segunda instância: “um Tribunal privativo daUnião, sendo de presumir o interesse desta em todas as causas que tenham nelea sua instância de apelação.”

É necessário relembrar que o caso tratava de funcionário demitido doserviço da Caixa, o qual pleiteava a reintegração por entender que, apesar dese tratar de punição disciplinar — fato de ordem interna da administração daCaixa —, havia a possibilidade de reexame judicial. Todavia, nessa hipótese,como no caso de execução de hipoteca e contrato de locação, não é possívelvislumbrar ou presumir o interesse da União, pois a ilegalidade da demissão dofuncionário ou o ressarcimento por danos decorrentes da decisão do julgamentonão afetam a União, muito menos comprometem a responsabilidade da FazendaNacional, excluída da demanda. Os efeitos da decisão judicial atingem somentea Caixa, que possui personalidade jurídica de direito público, além de patrimôniopróprio e meios próprios de receita destinados à gestão de seus serviços. OMinistro afirma que “seria possível dizer que a administração ruinosa pode levarà insolvência com a responsabilidade subsidiária do Tesouro.” Nessa linha deraciocínio, manifesta-se:

Eis as razões que me levam a declarar que a competência constitucional doSupremo Tribunal como segunda instância não abrange as causas das CaixasEconômicas, salvo se nelas intervier a União como assistente ou opoente.

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Memória Jurisprudencial

Todavia, o Ministro Waldemar Falcão, no caso, entende que:

Assim, a Caixa Econômica Federal não é só uma entidade de que sejafiador natural o Governo brasileiro. É, também, uma entidade que realiza certasatribuições, que desempenha certas atividades desse mesmo poder públicofederal por expressa delegação do Governo da República.

O Ministro Waldemar Falcão considera que é competência do SupremoTribunal Federal conhecer, em grau de recurso ordinário, das causas em queentidades autárquicas, como a Caixa Econômica, figurem como autoras ou como rés.

Note-se que os Ministros Castro Nunes e Philadelpho Azevedo restaramvencidos nesse julgado.

Para o Ministro Castro Nunes, o Supremo Tribunal Federal é incompetentepara conhecer de recurso em processo em que é parte autarquia, pois o tribunalcompetente é o de Apelação, como ficou demonstrado no Agravo de Petição n.9.914/BA153, em que figurou como relator, e decidiu-se por unanimidade, emconformidade com o seu entendimento.

Vale dizer que, no Agravo de Petição n. 12.602/DF154, em que o MinistroCastro Nunes figurou como relator, ficou consignado que, nas causas em que é réentidade autárquica, o juízo competente é o domicilio da ré. A obrigatoriedade doforo do domicílio do autor limita-se às causas propostas diretamente contra aUnião. Adverte em seu voto:

Não se trata, pois, de causa proposta contra a União, em que esta seja ré,como se afigurou o digno juiz ao proferir o despacho de fls., em que mencionou aUnião no mesmo plano processual das rés, quando, na verdade, ela só interveiono feito como assistente da autarquia chamada a juízo, assistência que, é certo, setraduz num litisconsórcio, mas que, para os efeitos da competência constitucio-nal definida no art. 108, não perde o caráter de intervenção de terceiro na demandainter alios.

No mesmo sentido há o Agravo n. 12.700, decidido no dia 13 de maio de 1946.

TRIBUTAÇÃO DOS BENS DE AUTARQUIA

O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento, no Agravo de Petiçãon. 10.908/SP155, no sentido de considerar intributáveis, por força da Constituição

153 Data da decisão: 3 de julho de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.154 Data da decisão: 20 de maio de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.155 Data da decisão: 17 de maio de 1943. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

e de lei ordinária, os bens pertencentes ao Instituto de Previdência e Assistênciados Servidores do Estado – IPASE (autarquia federal). Todavia, reconheceuserem devidas as taxas remuneratórias de serviços.

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes começa por analisar as conseqüênciasda equiparação absoluta entre as autarquias e as pessoas públicas matrizes, emcada uma das searas em que se divide a Administração Pública. É imperioso,para ele, considerar o desenvolvimento que vem surgindo da criação dessas enti-dades, que vão recebendo delegação de atribuições da União, dos estados e dosmunicípios, além de ganharem funções novas, que não estavam compreendidasno âmbito estatal.

Nesse sentido, a preocupação do Ministro reside na ampliação inevitávelda imunidade tributária recíproca prevista no art. 32, letra c, da Constituição de1937156, para essas entidades, o que representará evasão de rendas não previstaquando da criação da regra pelo poder constituinte originário. Verifica-se, namaioria dos votos proferidos pelo Ministro Castro Nunes, preocupação com aanálise das conseqüências políticas e econômicas advindas de decisões proferidaspelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, reconhece que:

Tem, sem dúvida, a melhor base teórica a exegese que equipara, para osefeitos da imunidade fiscal, as autarquias às pessoas públicas matrizes. As autar-quias são desdobramentos da administração pública — órgãos integrantes doEstado, e por isso mesmo são chamados entes paraestatais, designando o prefixogrego uma assemelhação muito mais fortemente acusada do que nos serviçosconcedidos, que realizam também uma forma de administração pública indireta,mas mediante contrato, ao passo que a administração autárquica é a personificaçãodo serviço público ex vi legis. Está ainda na lição dos expositores que a adminis-tração indireta que o Estado realiza por via desses entes que ele institui para osubstituir na execução de certos serviços entende, não propriamente com asformas de execução de serviços públicos, cuja modalidade típica é a concessão,mas com a orgânica mesma do Estado, que se descentraliza, descentralização porserviços de desconcentração administrativa.

O Ministro Castro Nunes considera que a solução seria interpretar odispositivo constitucional como abrangente não só dos entes da administraçãodireta mas também das outras pessoas de direito público criadas por eles, comodesdobramentos de suas funções. Todavia, essa inteligência do dispositivoconstitucional esbarraria em dois obstáculos. O primeiro deles consistiria na letrada lei, que só faz referência à União, aos estados e aos municípios, sem qualquermenção expressa “a outras pessoas de direito público”.

156 Dispõe o art. 32, letra c, da Constituição de 1937: “é vedado à União, aos Estados eaos Municípios: c) tributar bens, rendas e serviços uns dos outros.”

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Memória Jurisprudencial

O segundo obstáculo diz respeito ao fato de a Constituição de 1937 estabe-lecer que os serviços públicos não gozam de isenção tributária, salvo a que lhesfor outorgada no interesse comum por lei especial. De acordo com o Ministro,restou, portanto, excluída, com base no Texto Constitucional, qualquer possibili-dade de se estender às empresas concessionárias o privilégio da imunidade recí-proca conferida à União, aos estados e aos municípios. De outra parte, admiteque há diferença entre ente autárquico e serviço concedido, e adverte:

Mas, praticamente, são serviços alheios à economia da pessoa públicaque os institui, separando da administração direta o serviço público, que passa aser executado in nomine proprio por outra pessoa jurídica, pública ou privada(concessionário), com patrimônio e rendas próprias, representação ativa epassiva em juízo, comprometendo pelos atos de suas administrações os seuspróprios bens.

Para o Ministro Castro Nunes, a razão de ser dessa exclusão constitucionalreside no fato de as empresas concessionárias, bem como as autarquias, nãoserem custeadas pelo erário, e de seus atos não comprometerem a responsabili-dade estatal, mas a delas mesmas. Esses argumentos, de que se vale o MinistroCastro Nunes, demonstram que, no caso em análise, a isenção pleiteada peloIPASE não possui fundamento constitucional, é dizer, não decorre da imunidaderecíproca do art. 32 da Constituição de 1937. Ele não nega a possibilidade de olegislador infraconstitucional conceder isenção a essa entidade, na medida emque entender conveniente, e ainda estabelecer alguns limites. Admite que issoocorreu no caso em tela por intermédio do Decreto-Lei n. 2.864, de 12 dedezembro de 1940157.

O Ministro Casto Nunes desloca a questão do plano constitucional parao plano legal, em que a isenção pode ocorrer com limites, diferentemente doque acontece no plano constitucional, no qual é ilimitada, pois se trata deimunidade.

Em face do dispositivo legal, o Ministro nega a isenção, por entender ple-namente possível a cobrança de taxas, pois a Fazenda Nacional não se encontraisenta de seu pagamento. Nesse sentido, dá provimento em parte ao agravo, paradeclarar cabível somente a cobrança de taxas, entendimento proferido noacórdão do Supremo Tribunal Federal.

157 Dispõe o referido Decreto, em seu art. 4º, que o IPASE goza dos privilégios conferi-dos à Fazenda Nacional: “a) seus bens e rendas não são passíveis de penhora, aresto,seqüestro e embargo; g) nas operações imobiliárias por ele realizadas, na qualidade deadquirente ou transmitente, lhe é conferida a isenção de imposto de que goza a FazendaNacional.”

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Ministro Castro Nunes

A referida decisão foi objeto de embargos declaratórios, e o MinistroCastro Nunes, em seu voto, reafirma a posição de que autarquia é pessoajurídica de direito público distinta da União, dos estados e dos municípios, edefende a opinião de que a imunidade recíproca prevista na Constituição sóabrange os entes federativos. Em seu voto, faz análise minuciosa das Consti-tuições brasileiras, iniciando pela de 1891, sob a qual o Supremo TribunalFederal entendia que a imunidade abrangia os entes federativos reciproca-mente, e as pessoas jurídicas de direito privado como as concessionárias deserviços públicos.

A Constituição de 1934, por sua vez, levando em conta a existênciadessa jurisprudência, limitou o alcance da imunidade, reduzindo a quase nada aisenção conferida aos concessionários. A Carta de 1937 cancelou qualquerpossibilidade a respeito da isenção dos concessionários, deixando a cargo dolegislador infraconstitucional fazê-lo. O Ministro Castro Nunes entende que asautarquias, como entidades paraestatais, também estão fora dessa isenção.Para tanto, faz uso de interpretação teleológica do Texto Constitucional,mostrando que a extensão da isenção a esses entes

iria, com o tempo, absorver de maneira impressionante as rendas estaduais emunicipais, se não houvesse maneira de interpretar a Constituição, deslocando oexame da imunidade fiscal do plano constitucional para o legal, onde poderá serdosada de acordo com o relevo maior ou menor de cada entidade, de cadaautarquia.

O Ministro reconhece que a doutrina da equiparação perfeita das autar-quias às pessoas matrizes no mesmo plano de direito público é perfeitamentedefensável. Todavia adverte que “quem quiser argumentar com citações numplano puramente doutrinário, abstraindo da realidade, que deve dominar a exe-gese constitucional, estará sem dúvida de melhor partido.”

No entanto, alerta para o fato de não se poder descurar do desenvolvi-mento e do crescimento da administração indireta, que amplia a ação do Estadopor intermédio dessas pessoas, as quais, segundo ele, são entidades — criadaspelo ente estatal — que personificam serviços de qualquer natureza, advertindo,ainda, que, em muitos casos, esses serviços só são públicos por efeito do modoe dos fins da instituição:

são assim estabelecidos exatamente porque o Estado quer administrá-los indire-tamente, sem tomar a seu cargo os ônus do seu custeio e as responsabilidades desua execução, o que, a meu ver, justifica sejam separados do Estado para o efeitoda imunidade tributária da Constituição, onde apenas se mencionam as pessoasmatrizes, a União, os estados e os municípios.

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Memória Jurisprudencial

Nesse particular, entende que cabe ao Supremo Tribunal Federal levar emconsideração as conseqüências de ordem política e econômica de estender àsautarquias a isenção recíproca, para julgar que, por força do Texto Constitucional,não podem usufruir desse benefício. Esse papel deve ser exercido pelo SupremoTribunal Federal, que, segundo o Ministro, é um tribunal político:

O Supremo Tribunal Federal, tribunal político por excelência, não pode serindiferente a esse aspecto e deve traçar uma interpretação livre sem se prenderdemasiado às noções, encontrando uma fórmula de transação que permita dar àsgrandes autarquias — entre as quais o IPASE, que será, talvez a maior delas — eàs pequenas autarquias uma isenção relativa e proporcional.

A divergência do Ministro Castro Nunes reside no fato de que não é aointérprete, no caso o Supremo Tribunal Federal, que cabe a tarefa de distinguirem cada caso concreto, mas sim ao legislador, conferindo às autarquias maior oumenor isenção. Constata-se, nos votos do Ministro Castro Nunes, a preocupaçãocom os aspectos políticos e econômicos que uma ação no Supremo TribunalFederal suscita, bem como as conseqüências advindas das decisões proferidaspela Corte. Nesse sentido, ressalta a função do Supremo tribunal Federal comotribunal político.

A isenção conferida pela lei, no caso em apreço, é expressa, categórica eestá formulada em termos imperativos, de modo que não seria possível acobrança de nenhum imposto sobre os bens do Ipase. Conclui o Ministro que“essa limitação é possível no plano legal; no plano constitucional, não vejo comose possa estabelecer tal restrição, porque a imunidade constitucional não poderiaser limitada pelo legislador”.

O Ministro Castro Nunes recebe em parte os embargos declaratórios, masa maioria do Supremo Tribunal Federal os rejeita.

CARACTERIZAÇÃO DE FUNCIONÁRIO DE AUTARQUIA

No Recurso Extraordinário n. 6.838/SP158, analisou-se o Decreto n. 5.810/1933 do Instituto do Café de São Paulo, que afastou os membros da diretoria doInstituto, eleitos por tempo indeterminado, sem dispensa expressa. No entanto,instaurou-se sindicância que concluiu pela inexistência das faltas atribuídas aeles, que, conseqüentemente, ingressaram com ação ordinária requerendo ossalários a que teriam direito até o final do mandato, pois o novo governo, em vezde reparar a injustiça, nomeou nova diretoria.

158 Data da decisão: 6 de dezembro de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro Castro Nunes consolida sua opinião sobre o caráter público dasautarquias, como órgãos mediante os quais o Estado exerce suas funções, eacentua:

As autarquias, sendo órgãos de administração do próprio Estado, órgãosparaestatais, o que lhes acentua o caráter público, os funcionários dessas autar-quias são também funcionários públicos. Não desconheço a controvérsia que aesse propósito existe. Há opiniões que entendem que são funcionários públicos;outras sustentam que são funcionários ou empregados que recebem a coloração doobjetivo da autarquia. Se esse objetivo, que a autarquia tem por fim realizar, é deordem industrial, econômica, bancária, esses funcionários recebem a marca da ativi-dade exercida pela autarquia e passarão a ser industriários, comerciários, bancários.Estou com aqueles que entendem que, nem por isso, deixam eles de ser funcionáriospúblicos, no sentido de que, desempenhando, embora, serviços descentralizadosda administração do Estado, eles desempenham serviços do Estado.

Nesse particular, salienta o Ministro que os funcionários afastados doexercício do cargo por ato discricionário do poder não têm direito de voltar aesses cargos, pois estar-se-ia diante de reintegração econômica com vistas areceber os atrasados.

O Ministro Philadelpho Azevedo interveio para dizer que os funcionários, nocaso presente, não foram demitidos, mas suspensos para inquérito que nada con-cluiu contra eles. Pondera que, “se houvessem sido demitidos, aceitaria a aplicaçãodo art. 18 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1934. Há,porém, essa diferença.”

Em face dessa interferência, reconhece o Ministro Castro Nunes que setrata de suspensão, portanto ato de natureza provisória ligado à causa determinantedessa decisão. Uma vez desaparecido esse ato, o funcionário tem o direito deretornar ao cargo e receber os vencimentos. Ele votou pelo provimento em parte dorecurso, tese dominante no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

O Agravo de Petição n. 11.490/DF159 tratava dos funcionários de autarquias,sua caracterização e submissão, em princípio, às leis e aos tribunais trabalhistas.Em seu voto, o Ministro Castro Nunes distingue a existência de autarquias decaráter mais administrativo e outras de acentuado caráter econômico. Verificaque, sobretudo nas autarquias de feição mais econômica, o caráter trabalhista daatividade exercida por seus empregados e as relações existentes entre eles e aempregadora denotam que os trabalhadores dessas autarquias não são funcionáriospúblicos, pois não se confundem com os funcionários das entidades matrizes,quais sejam, União, estados e municípios. Preleciona que:

159 Data da decisão: 24 de janeiro de 1944. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Eles recebem a coloração da atividade exercida pelas autarquias. Asautarquias que têm fins econômicos são industriais ou comerciais, e seusempregados se classificam como industriários ou comerciários. Numa autarquiainstituída para explorar uma estrada de ferro — como é o caso da Estrada de FerroCentral do Brasil —, eles serão ferroviários; numa autarquia organizada paraexercer funções de Banco, serão bancários.

Este é o entendimento que tem prevalecido: devem-se estender osbenefícios da legislação aos empregados das autarquias que tenham por objeto aexploração de atividade industrial ou privada. Todavia, adverte o Ministro que hápreceitos legais em sentido diverso ou, pelo menos, que suscitam dúvidas quandoda análise do caso concreto, visto que a norma legal admite e pressupõeexceções. O Ministro Castro Nunes vota negando provimento ao agravo, e adecisão do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, negou provimento.

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Ministro Castro Nunes

17. DIREITO CIVIL

POSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE DÍVIDA DE JOGO

No Recurso Extraordinário n. 10.729/PR160, o Supremo Tribunal Federalanalisou a possibilidade de cobrança em juízo de dívidas decorrentes de apostassobre cavalos. Tratava-se, no caso, da recusa do Jockey Club em pagar prêmiode betting, sob a alegação de razões de fato relativas à coincidência das combi-nações. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes manifesta-se no sentido de que:

Dívida de jogo é, em princípio, uma dívida oriunda de obrigação ilícita ouproibida, e ilícita porque anti-social, pelos malefícios que acarreta, não só aoindivíduo, como, e principalmente, à comunhão, à sociedade, à economia pública,ao país, em suma, a formação de uma mentalidade que serve a esses finssuperiores, subtraindo às aplicações úteis as sobras ou produto do trabalho decada um, concorrendo para que o indivíduo procure obter da sorte que o seuesforço lhe devia, como meio de subsistência ou a sonhada independênciaeconômica, do que resulta que o jogo é, em si mesmo, um fator negativo dos finsdo Estado, pois que tende a gerar ociosidades, apassivando o indivíduo,distraindo-o da sua colaboração proveitosa na colméia humana e trazendo, porvia de conseqüência, outros males que, a bem da preservação dos costumes, a leileva em conta para o proibir.

Em seu entender, no Brasil, mais do que em qualquer outro país, subsistemmuitas razões para não se admitir, oficializar ou legalizar o jogo. Adverte, ainda,que a legalização do jogo é o exemplo explícito de que o Estado está faltando coma sua função educativa, pedagógica, além de retirar do ente estatal a autoridademoral de reprimir outras práticas ilícitas. Diz mais:

Tenhamos a franqueza de reconhecer que o brasileiro médio está longe depossuir, acerca do trabalho, a noção de um dever social. Causas diversas, queremontam ao trabalho servil, continuam a exercer certa influência, na aceitação dotrabalho como um sacrifício, uma escravização, uma cruz pesada que o indivíduosuporta apenas para não morrer de fome.

Salienta o Ministro Castro Nunes, em sua argumentação, que a deseduca-ção da massa é completa e que a questão se agrava quando a mídia divulgadisplicentemente o elogio da ociosidade no País, “em que quase tudo está porfazer na obra imensa a realizar e que depende do esforço sistematizado e perse-verante dos brasileiros.”

O Ministro destaca que essa tendência do trabalhador brasileiro de dimi-nuir ao mínimo o seu esforço de cooperação resultou da majoração dos salários.

160 Data da decisão: 8 de julho de 1946. Relator, e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.

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Memória Jurisprudencial

Verificou-se que o trabalhador, encontrando, em três ou quatro dias na semana, omínimo para subsistir, passou a descansar aos sábados e a não ir trabalhar nasegunda. Houve, portanto, diminuição dos dias trabalhados em razão do aumentodos salários. Assevera que:

A obra educativa a ser empreendida pelo legislador não se compadececom a legislação do jogo, em qualquer das suas modalidades, porque o jogo nãopode gerar senão a formação de uma vontade coletiva orientada para esperar dosazares da fortuna o que só do seu esforço deve cada um esperar.

O Ministro Castro Nunes ressalta que o Código Civil contém regra expressaque estabelece que as dívidas de jogo ou aposta não obrigam ao pagamento.Ademais, não há ação para compelir ao pagamento de dívida de jogo. Pelo con-trário, há disposição expressa determinando que, se a dívida houver sido paga,não poderá repeti-la o perdente. Prossegue em seu voto fazendo análise acuradada dívida de jogo desde o direito romano, verificando as doutrinas existentesacerca do tema, e conclui: “É preponderante o entendimento na doutrina de queas dívidas desprovidas de ação para exigi-las valem como obrigações naturais.Creio que o nosso Código se filia a esse entendimento”.

O Código Civil brasileiro não traz nenhuma exceção, não confere eficáciaa qualquer dívida de jogo, salvo se voluntariamente paga, para o efeito somentede trancar a ação do solvente. Todavia, note-se que existem leis específicas pos-teriores autorizando as apostas nos prados de corridas e o jogo nos cassinoshidrominerais. O Ministro assevera que a justificativa empregada pelo legisladorpara tanto é que tais práticas estão restritas a pessoas mais abastadas ou aosturistas. A partir daí, formula a seguinte indagação: “Valerão essas leis ou essasexceções como derrogações da regra do Código Civil? Ou importarão somentena tolerância policial em face de práticas em princípio proibidas?”

A resposta a essa questão, segundo o Ministro, dependerá da análise decada caso, no entanto argumenta que a tolerância do Poder Público não basta paratornar lícito o jogo. No caso em tela, pondera que a lei de contravenções proíbe osjogos de azar, mas, no que se refere às apostas sobre cavalos, só incrimina quandofeitas fora do hipódromo ou de local onde sejam autorizadas. Verifica-se que, nocaso, as apostas betting são feitas no hipódromo, na sede ou nas dependências daassociação hípica. Atenta para o fato de que as casas de apostas emitemefetivamente bilhetes, o que acaba por permitir que se façam apostas sem ir aohipódromo. Esses bilhetes dão às corridas feição de loteria. Elucida:

Equipara-se, assim, o portador de tais bilhetes ao do bilhete de loterias,definido como título ao portador para todos os efeitos, e assim o define a lei, como direito conseqüente de ser exigido judicialmente o pagamento quando recusado.E creio mesmo que existem precedentes no sentido da validade em juízo dasobrigações oriundas do jogo lotérico.

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Ministro Castro Nunes

Conclui-se que o jogo, no Brasil, é, a princípio, proibido, e não se encontraautorizada a cobrança do ganhador sobre o perdedor, nem do perdedor para repetir.Mas há que se considerar que o legislador fez algumas exceções. O MinistroCastro Nunes leva a efeito análise acurada da legislação internacional, precipua-mente da legislação da França, da Itália e de Portugal, para concluir que:

Não será demais observar que a recusa da ação ao parceiro feliz no jogoautorizado redundaria num enriquecimento ilícito para o parceiro que perdeu, istoé, o banqueiro, que recolheu as contribuições e não fez a prestação prometida. Sea causa da obrigação deixou de ser proibida, porque removida pela lei a proibiçãopara permitir a exploração do jogo por associações montadas para esse fim,injusto me parece quebrar o equilíbrio da relação jurídica, porque isso importariaem beneficiar uma das partes em detrimento da outra, e beneficiar precisamente aparte mais comprometida na censura que, do ponto de vista social, possa merecera exploração.

O Ministro nega provimento ao recurso extraordinário, e o SupremoTribunal Federal profere acórdão no mesmo sentido.

O Recurso Extraordinário n. 7.849/MG161, à semelhança do acórdão ante-rior, versava sobre empréstimo contraído com a Caixa do Cassino de Poços deCaldas para compra de fichas (art. 1.478 do Código Civil). A sentença de primei-ra instância, por se tratar de nota promissória que não foi emitida no ato de jogar,julgou procedente a ação. O Tribunal reformou a decisão em sede de recurso.O art. 1.748 do Código Civil estabelecia que os empréstimos, ainda que feitospara fins de jogo, mas em momento anterior, são válidos. São inválidos apenasaqueles contraídos no ato de apostar ou de jogar.

O Ministro Castro Nunes entende que, mesmo nos casos em que estáautorizado o funcionamento do jogo em uma determinada localidade, nem porisso desaparece a sanção civil consistente na inexigibilidade das dívidas que neletiveram origem. Afirma que o jogo, ainda que não proibido, não cria direitos.

Passa, então, a fazer acurada análise histórica da permissão dos jogos noBrasil, para verificar que, no caso, o licenciamento do cassino se deu primeira-mente com fundamento em lei federal (Lei n. 3.897/20) e depois em sucessivosDecretos-Leis, de 1938 a 1943, e trouxe como conseqüência o arredamento dacontravenção, pois, do contrário, não poderia funcionar o cassino. Argumenta:

Não se trata de mera tolerância das autoridades administrativas, o queseria inoperante para os efeitos da incriminação, ainda que deixada impune aprática da contravenção. Mas de exceções abertas legislativamente à contravençãodo jogo de azar, com o permiti-los a lei em certos lugares e mediante autorizaçãoespecial.

161 Data da decisão: 15 de dezembro de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes.

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Memória Jurisprudencial

Tal hipótese é comprovada pelo advento da Lei das ContravençõesPenais, que, em seu art. 50, estabelecia como crime o jogo, sem qualquerressalva aos jogos praticados em cassinos, nos termos do Decreto-Lei n. 241/38,de modo que passou a ser atividade ilícita. Tanto é que foi editado o Decreto-Lein. 4.866/42, que estabeleceu não ser aplicável àqueles estabelecimentos o art. 50da Lei das Contravenções Penais, portanto os jogos de azar praticados noscassinos licenciados pelo Estado não configuravam contravenção.

Para o Ministro Castro Nunes, o Código Civil, ao negar efeitos civis àsobrigações provenientes do jogo, não entra em conflito com a legislação penal,que não considera ilícitos os jogos de azar praticados nos cassinos licenciados, aocontrário, está dentro de sua área de atuação: “A lei civil está no seu âmbitopróprio, obedece a inspirações de moralidade, visa acoroçoar a prática de atosque contravêm à ética das relações da vida civil.”

O Ministro registra que os expositores do direito civil defendem que asdívidas de jogo, mesmo lícito, não geram ação. Ele entende ser difícil afirmar que,uma vez desaparecida a contravenção na prática do jogo autorizado por lei,transmuda-se em obrigação civil a dívida de jogo. Adverte:

As dívidas de jogo não são amparadas pelo Direito Civil, porque o jogo éfunesto à economia, contrário à ética das relações jurídicas, incompatível com amoral e os bons costumes. Ainda que se possa dizer que o jogo não é, em simesmo, imoral (o que não exclui a necessidade social da sua condenação pelosefeitos ruinosos que dele derivam), o que me parece positivo é que o legisladorpenal, para proibi-lo, não se inspira em outros motivos, senão nesses, mesmos.Importa dizer que tanto a lei civil como a lei penal obedecem à mesma inspiração,concorrem para o mesmo objetivo de extirpar, tanto quanto possível, o cancrosocial.

Manifesta-se o Ministro no sentido de que, se fosse possível admitir, no jogo,ilícito civil distinto de ilícito penal, não se poderia conferir ao ganhador prêmio debilhete de loteria ou de poule ou de betting, pois as loterias são jogos de azar. Omesmo raciocínio se aplica aos casos dos cassinos. O direito civil, ao negar ação aoganhador, pressupõe o jogo como proibido, todavia não é a Lei Civil que o incrimina,pois essa função cabe às leis penais. Preleciona que, se a legislação penal

abre exceções, como no caso das loterias (tido por alguns como o menosjustificado e mais ruinoso à coletividade) ou das corridas de cavalos (peloargumento de ser útil estimular a criação do puro-sangue e aperfeiçoamento daraça cavalar, necessária à remonta do Exército), ou, ainda, do licenciamento decassinos (sob a alegação especiosa de que menos noviço, porque restrito àspessoas abastadas e necessária ao turismo), declara lícita, para os efeitos penais,e para os efeitos civis, a prática em princípio proibida.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro Castro Nunes prossegue, em seu voto, para estabelecer que acausa juridicamente reprovada ou ilícita só pode ceder em face da lei e não dianteda mera tolerância das autoridades. Isso significa, seguindo essa linha de raciocí-nio, que, se o cassino funciona sob a fiscalização da autoridade pública e por meiode contrato firmado com o Estado, que recebe as contribuições incidentes sobrea exploração daquela atividade, todos esses fatores ainda se mostram insuficientes,na visão do Ministro, para dar validade às dívidas provenientes do ato de jogar.Para que o jogo seja lícito, é necessário que a lei o autorize. Só a lei pode retiraro caráter de contravenção da prática de jogos de azar. Adverte ainda que a leitem de ser federal e não local.

Anota que, no Brasil, houve períodos em que a prática dos jogos de azarera legalizada. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento, naApelação n. 6.510, julgada em 2 de setembro de 1936, que, não obstante ilícito ojogo e apenas tolerado, nem por essa razão estaria o Estado isento de respondercomo inadimplente, com base em quebra de compromisso assumido. No caso emtela, que trata de empréstimo para jogo feito no Cassino de Poços de Caldas, em1942, decide que:

Pelo exposto, tendo em vista que o empréstimo por promissórias se fez,segundo apuraram as instâncias locais, no ato de jogar (apreciação de fato quenão comporta reexame em recurso extraordinário) e que na data da emissão dostítulos não havia assento em lei federal para a prática do jogo de azar noscassinos, concluo, nestes termos, negando provimento ao recurso.

O Ministro Castro Nunes não reconhece a validade do empréstimo parajogo feito no Cassino, visto que, quando realizado, não havia lei federal autori-zando a prática de jogos de azar, de modo que a atividade funcionava apenascom base na tolerância, que, por sua vez, não é capaz de gerar efeitos civis.

CONCUBINATO ENTRE EMPREGADOR E EMPREGADA

O Recurso Extraordinário n. 4.209/MG162 versava sobre ação ordinária deinvestigação de paternidade, cumulada com a de petição de herança, a fim de sedeclarar filha legítima do finado. O juiz de primeira instância acolheu o pedido.No entanto, o tribunal local, quer em grau de apelação, quer de embargos, deixoureformada a decisão, dando azo, portanto, ao presente recurso extraordinário.

O recorrente alega que a lei de organização judiciária do estado, quandoatribui à mesma câmara prolatora do acórdão o julgamento dos embargos a eleopostos, é incompatível com o Código de Processo, que manda sortear, entre os

162 Data da decisão: 22 de janeiro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

juízes que não tenham participado do julgamento anterior, o relator dos embargos.Em relação ao exposto, o Ministro Castro Nunes enfatiza que:

O recorrido contesta o caráter local da lei judiciária do Estado, uma vez queaprovado por decreto do presidente da República. Isso, porém, não basta paratirar o caráter local que tem a organização judiciária por força da Constituição,pois que a atribuição é do âmbito estadual. O que é federal é apenas o decreto deaprovação, não a lei judiciária.

Por esse fundamento, ele conhece do recurso, mas nega-lhe provimento,pois afirma que a pretensão reclamada levaria à anulação do julgamento, queteria de decorrer da incompetência da câmara para julgar os embargos, e afirma:“Não anulo, pois, o julgamento dos embargos”.

Castro Nunes fundamenta sua decisão na razão principal que levou oacórdão a não admitir o concubinato para gerar a filiação presumida, que foi acircunstância de ser a autora empregada do finado, governanta do hotel do patrão,decorrendo daí a clandestinidade da ligação existente entre ambos. Argumenta oMinistro:

Ora, o Código Civil, fazendo presumir a filiação do concubinato existenteentre a mãe e o pretendido pai ao tempo da concepção — se ao tempo daconcepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai —, não fornecenenhum critério rígido que leve a não admitir o concubinato mesmo sem aexteriorização more uxório, permitindo ao juiz identificar como tal uma ligaçãoprolongada e regular, como a que emerge destes autos.

Registre-se que, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 5.195/MG163,o Ministro Castro Nunes reflete sobre a definição de concubinato, questiona sese configura pela simples aproximação de pessoas de sexos diferentes que mante-nham relações sexuais contínuas e regulares ou se é necessária a coabitaçãomore uxório. Considera que essa indagação não se restringe a mera questão defato, “porquanto entendo que a conceituação do concubinato, nas duas modalida-des conhecidas, constitui um pressuposto jurídico.”

Para o Ministro, o concubinato pode ser admitido entre empregador e fun-cionária, se concorrerem outras circunstâncias, entre as quais a fidelidade daconcubina, condição essencial à certeza presumida da paternidade. Sua posição,portanto, é no sentido de admitir o concubinato entre empregador e empregada.

Tal condição, porém, não foi reconhecida pelo acórdão recorrido. Tendoem vista o fato de que o Supremo Tribunal, no julgamento do recurso extraordinário,não reexamina provas, apenas aceita os fatos nos termos fixados pelo julgado

163 Data da decisão: 20 de abril de 1942. Relator, Ministro Octavio Kelly; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

recorrido, e como admitiu como provada a exceptio plurium concubentium, ou,pelo menos, não a deu como não provada, não se pode admitir o concubinato.Desta forma o Ministro Castro Nunes conclui seu voto no Recurso Extraordinário4.209/MG: “Também não houve como provadas as relações sexuais entre a mãeda autora e o seu pretenso pai, matéria de prova que também não é possívelreexaminar.”

O voto do Ministro Castro Nunes é pelo conhecimento do recurso, masquanto ao mérito nega provimento.

No julgamento dos Embargos ao Recurso Extraordinário n. 4.209/MG164,questionou-se o cabimento do recurso extraordinário. O relator entendeu não sercabível, por não ter sido questionada a controvérsia motivadora do recurso, qualseja, a questão federal. Mas o Ministro Castro Nunes considerou que cabia orecurso com fundamento nas alíneas c e d, argumentando que não foi debatida aquestão federal, porque sobreveio ao último julgamento do feito. Esclarece que:

O Tribunal sabe, e está na sua jurisprudência pacífica, durante quase meioséculo, que estes casos ocorrem. Pedro Lessa os examinou e mostrou que, emboraa regra geral seja a de se haver questionado sobre a aplicação de lei federal, pode,entretanto, ocorrer que o desfecho da causa exprima violação da lei federal.

Demonstra o Ministro que foi exatamente isso que ocorreu no caso emtela, no qual o Tribunal declarou válida a lei de organização judiciária, que erainfringente do Código de Processo (lei federal), por isso era admissível o recursoextraordinário, com base na letra c. No entanto o Ministro Waldemar Falcãoentendeu que a Constituição, da maneira como estava redigida, não permitia quese invocasse a letra c quando não existisse contestação ante o Tribunal a quo,portanto caberia o recurso com fundamento na letra a, como elastério da defesa.Argumenta o Ministro Castro Nunes: “V. Exa. está com o princípio geral; é aregra da Constituição. Entretanto, pode haver casos em que o desfechosobrevenha à ultima decisão; é a expressão do julgado.”

O voto do Ministro Castro Nunes é pela rejeição dos embargos, e foi esseo entendimento do Supremo Tribunal Federal.

PROVA DE FILIAÇÃO LEGÍTIMA

No Recurso Extraordinário n. 5.029/DF165, analisou o Supremo TribunalFederal questão referente à propositura de ação de prova de filiação legítima.

164 Data da decisão: 2 de dezembro de 1942. Relator, Ministro Waldemar Falcão; Presi-dente, Ministro Eduardo Espinola.165 Data da decisão: 11 de dezembro de 1941. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.

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Memória Jurisprudencial

Tratava-se de ação proposta com o fim de declarar legítima, ou seja, nascida docasal, filha registrada como da união da progenitora com outro homem que não omarido, do qual se achava separada de fato. O art. 350 do Código Civil de 1916estabelecia: “Art. 350. A ação de prova da filiação legítima compete ao filho,enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz”.

No entanto, o caso submetido à apreciação da Corte Suprema tinha umapeculiaridade: a filha já havia falecido, e quem ingressou com a ação foi a mãe, noentanto não se tratava de filha menor ou incapaz, como dispunha o Código Civil.

Explica o Ministro Castro Nunes que o que se alega, nos termos dodispositivo supracitado, é que tal ação só competiria à mãe, que se pretendiaherdeira da filha, se esta fosse menor ou interdita, entretanto a filha de cujasucessão se trata não falecera interdita, tampouco menor.

Sustenta, em seu voto, que o art. 350, invocado pelo recorrente, não seaplica ao caso dos autos, visto que supõe a ação de filiação legítima exercida pelopróprio filho ou por seus herdeiros, no caso em que faleça menor ou interdito, masem nome dele, exercendo direito que deixara de exercer. A hipótese figurada noart. 350 supõe em juízo o filho, por ele ou por um de seus herdeiros, reivindicandoa filiação legítima em interesse próprio. Afirma o Ministro:

No caso dos autos, não é disso que se trata. A Autora está nos autosvindicando o seu interesse próprio, o direito à herança da filha, direito que, para ela,Autora, depende da legitimidade da filiação. Daí a ação declaratória fundada, nãono art. 350, mas decorrente por interpretação razoável do disposto no art. 337, quereza: “São legítimos os filhos concebidos na constância do casamento...”

Admite o Ministro que, se, para recolher a herança da filha, a autoraprecisa provar que ela é filha legítima do casal, não é possível negar-lhe o direitode fazer essa prova, sob pena de se lhe obstar o direito de se habilitar à sucessãoda filha. Sustenta, ainda, que a regra legal é que, na constância do casamento, osfilhos são do casal e que só o marido pode contestar a legitimidade dos filhosnascidos de sua mulher:

Compreende-se que, tratando-se de filha de mulher desquitada que seuniu a outro homem, nascendo dessa união um filho, possa este contestar apaternidade presumida, presunção que terá cedido à separação judicial.

Vale dizer que é esse o entendimento predominante, embora não unânime,na Corte Suprema (Recurso Extraordinário n. 4.615/PB). O Ministro CastroNunes ressalva que, no caso dos autos, a hipótese era outra, pois não se tratavade contestação de paternidade presumida oposta pela filha, senão pelo viúvodesta interessado em recolher-lhe a herança. Também não diz respeito a filha dedesquitada, uma vez que a autora não se desquitou nem esteve separada docônjuge por alvará judicial. Afirma o Ministro:

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Ministro Castro Nunes

A prova da separação é a declaração feita no registro civil de nascimentode um terceiro de que a autora estava separada do marido desde um ano antes,além de outras circunstâncias alegadas no intuito de provar que a inventariadasempre fora havida pela própria autora como filha dela com outro homem. Não épossível aceitar qualquer meio de prova para excluir a coabitação dos cônjuges. Odesquite já decretado ou o alvará de separação de corpos certifica judicialmentea não-coabitação.

Nesse sentido, Castro Nunes nega provimento ao recurso.

RECONHECIMENTO JUDICIAL DE FILHOS ILEGÍTIMOS

No Recurso Extraordinário n. 6.263/DF166, analisou-se a possibilidade dereconhecimento dos filhos ilegítimos, frutos da conjunção de homem casado commulher também casada. O Ministro Castro Nunes, ao estudar o caso, ressaltaque a questão apresentada é de grande relevância e, como tal, oferece muitasdificuldades. Afirma que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é nosentido de permitir o reconhecimento judicial de filhos nascidos de pai ou de mãedesquitados. Todavia, ressalta que não é essa a hipótese do caso presente, poisaqui se trata de filho nascido da conjunção de homem casado com mulhertambém casada.

O Ministro Castro Nunes sempre se manifestou favorável ao reconheci-mento judicial dos filhos nascidos de pai ou de mãe desquitados, tanto em seusvotos proferidos na qualidade de Ministro da Corte Suprema, quanto como Ministrodo Tribunal de Contas. O fundamento da sua posição reside no fato de que

os filhos de pai ou mãe desquitados nasciam de uma situação equiparável à desolteiro, de pessoas livres e já libertas do dever de fidelidade recíproca, porque,cessando a coabitação, por efeito da sentença judicial de desquite — e atéchegamos, mesmo, a admitir, quer nesta Turma, quer, depois, em Tribunal Pleno,em certo caso da Paraíba, por efeito mesmo da separação judicial, cessada acoabitação, cessado estava o dever da fidelidade recíproca, e era possível, então,admitir que o homem desquitado pudesse ter uma concubina, e os filhos nascidosdessa união não seriam adulterinos, porque não podia ele cometer adultério,depois do desquite.

O Ministro Castro Nunes salienta que a lei recente foi muito além dessajurisprudência e registra que tal fato não merece acolhida, ou, nas palavras dopróprio Ministro, “o seu aplauso”, pois, no seu entendimento, nos meios jurídicose nos meios judiciais, não se pretendeu que, de homem casado, na constância doseu casamento, e de mulher casada, pudesse nascer filho reconhecível judicial-mente. No entanto, reconhece o Ministro que a lei existe e, assim sendo, permitida

166 Data da decisão: 1º de outubro de 1942. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

está a investigação da paternidade legítima, mesmo nos casos em que não existao desquite ao tempo da concepção do filho, visto que, para o dispositivo legalreferido, basta que o desquite seja posterior.

Sustenta o Ministro Castro Nunes que o art. 126 da Constituição de 19371167

não revogou o Código Civil, pois oferecia subsídio — norte interpretativo — para oCódigo. Esclarece que:

é uma cláusula diretória e não mandatória, consoante distinção encontradiça nosexpositores do Direito americano. Há certas cláusulas que não têm caráterimperativo; este artigo constitucional me parece que é uma delas; é uma direçãopara o legislador, para que ele se oriente, no rumo dessas idéias, e a própria letrado dispositivo diz: “a lei assegurará”.

Trata-se de orientação interpretativa que deve ser considerada pelolegislador na regulamentação da matéria, de modo a conferir condição maisliberal para os filhos ilegítimos. Há, no Texto Constitucional, subsídios eelementos que conferem ao legislador — intérprete oficial — a possibilidade dealargar o conceito da lei e, por conseguinte, amparar a situação dos filhosnaturais, do mesmo modo como fez em relação aos filhos dos desquitados.

Alerta o Ministro que o Decreto-Lei n. 4.737/42 foi o responsável pelarevogação do Código Civil, pois permitiu investigar a paternidade, mesmo dosfilhos nascidos na constância do casamento do pretendido pai. A inovação residiuno direito de ação em confronto com o disposto no art. 363 do Código Civil, ouseja, no direito de obter a qualidade de filho ilegítimo de homem casado ou demulher casada. Sustenta que:

É o direito à ação o que a lei confere. A lei confere o direito de acionar o pai,ainda que tenha o filho nascido na constância do seu casamento e, a meu ver,também o direito de acionar a mãe. Nesse ponto ainda divirjo do Sr. MinistroPhiladelpho de Azevedo, porque a lei não distingue a investigação a patre dainvestigação a matre. Sua Exa., tem razão em certo ponto apenas: é que, no casoda investigação da maternidade, haveria um obstáculo, que seria o princípio dopater est... Mas o pater est é uma presunção iuris tantum, que pode ceder à provaem contrário, difícil, sem dúvida, mas que seria possível admitir. Seria, porexemplo, o caso de mulher que viesse a juízo e confessasse ter tido relaçõessexuais com o indigitado pai, fora amante dele; robustecendo essa confissão coma prova de encontros, cartas, etc., é até a notoriedade do fato.

Note-se, contudo, que, no caso em tela, tratava-se de ação para obter oreconhecimento a patre de filho de homem casado. Argumenta o Ministro que o

167 Dispõe o art. 126 da Constituição de 1937: “Aos filhos naturais, facilitando-lhes oreconhecimento, a lei assegurará a igualdade com os legítimos, extensivos àqueles osdireitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais”.

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Ministro Castro Nunes

Decreto-Lei outorga ao interessado o direto de ir a juízo para buscar o reconhe-cimento, mesmo em se tratando de filho nascido de união de homem casado commulher casada. Esse dispositivo legal tem vigência em relação a todos os casospendentes, pois, segundo o Ministro Castro Nunes, tem aplicação imediata. Nessestermos, o problema é de vigência, consistente em saber qual espécie normativavigora no caso, se o art. 363 do Código Civil, que proibia a investigação quando opai era casado, ou a lei nova, aplicável aos casos pendentes e que permitia ainvestigação de paternidade mesmo na constância do casamento.

Nesse sentido, o Ministro Castro Nunes conhece do recurso extraordiná-rio e lhe dá provimento. No desenvolver do julgamento, o Ministro PhiladelphoAzevedo trava interessante discussão com o Ministro Castro Nunes, ao levantaroutro aspecto do caso em análise: o fato de o progenitor ter falecido. Sobre esseaspecto, argumenta:

Toda ação de investigação — pelo menos em 99,9% dos casos assimacontece — é proposta contra o espólio, quando o pai já morreu. O que eu dizia éque, havendo o casamento sido dissolvido pela morte, pode-se e deve-se aplicaro Decreto-Lei n. 4.737, de 24 de dezembro de 1942, pois ibi eadem ratio ini eademdispositio. A lei previu somente o caso de desquite, mas nós temos de interpretá-la como incluindo, também, os casos de morte, porque, aí, há maiores e melhoresrazões para admitir a investigação de paternidade, uma vez que cessou oconsórcio, e que o próprio vínculo do casamento desapareceu. É uma hipóteseque está subentendida por força da compreensão.

O Ministro Castro Nunes mantém o voto, sob o argumento de que tal reparo,levado a efeito pelo Ministro Barros Barreto, possibilitou a oportunidade dedesenvolver ainda mais os argumentos que sustentaram sua posição. Note-se queo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, deu provimento ao recurso.

No Recurso Extraordinário n. 3.975/SP168, analisou-se a decisão doTribunal de Justiça de São Paulo que admitiu como putativo certo casamento,para efeitos de sucessão reclamada por filha fruto dessa união irregular, uma vezque restou comprovada a boa-fé da desposada, ao contrair casamento comhomem casado. O Supremo não conheceu o recurso, mas, no mérito, a questãofoi examinada, com os efeitos sucessórios do art. 221 do Código Civil.

O Ministro Castro Nunes, revisor, ressalta que o Tribunal de Apelaçãoconsiderou que se tratava de casamento bígamo, mas contraído de boa-fé peladesposada, que não sabia do impedimento. Por essa razão, foi o casamento con-siderado putativo, do que se depreende, como conseqüência, o direito à herançareclamada pela filha nascida dessa união. Para o Ministro, a questão centralreside — a despeito do exame das provas necessário para o deslinde da solução

168 Data da decisão: 25 de novembro de 1943. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

da espécie — nos efeitos advindos do casamento putativo, com fundamento naboa-fé da desposada, admitida pelos julgados em contrário. Argumenta que:

Em voto que proferi no Tribunal de Contas sobre os efeitos do casamentoputativo em relação ao montepio, admiti, apoiado na lição de Cunha Gonçalves,que a equiparação de tal casamento a justas núpcias pode comportar restriçõesno tocante ao estado da desposada por morte do bígamo, não sendo possívelhavê-la como viúva, se viva estiver a legítima, única a ser assim considerada.

No entanto, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, nos termosdo voto do Ministro Philadelpho Azevedo, foi a de adotar a duplicidade, equipa-rando, em certos termos, o casamento putativo ao legítimo, em relação ao cônjugede boa-fé. A equiparação é absoluta no que se refere aos filhos, no que se refereà legitimidade deles. Sustenta o Ministro Castro Nunes:

No meu voto proferido no Tribunal de Contas, salientei, no rumo dadistinção que então estabeleci: “O que está nas tendências do direito da famíliaé a igualização dos filhos ilegítimos aos legítimos. Não se bifurcou, levando arumos diferentes. Acentuou-se o fundo religioso do direito da família, comonota Ripper, chegando-se em certos países, como entre nós, ao extremo daindissolubilidade, por prescrição constitucional, do vínculo matrimonial. Mas aevolução, no tocante aos filhos, separou-se dos velhos moldes da Igreja, queconsiderava bastardos os filhos nascidos fora do casamento, e seguiu rumooposto, na equiparação, que se afirma dia a dia, entre ilegítimos e legítimos, ino-centes que são, uns e outros, da culpa dos pais. ”

O Ministro profere voto no sentido de admitir a putatividade do casamento,com as conseqüências jurídicas que decorrem da equiparação admitida na Lei Civil.

DIVÓRCIO POR INCOMPATIBILIDADE DE GÊNIOS

A declaração de desquite em face da absoluta incompatibilidade de gênios —mas sem a apuração das culpas dos cônjuges, visto que não havia previsão legalpara tanto — foi objeto de inúmeras decisões, em relação ao direito de família, noSupremo Tribunal Federal.

No Recurso Extraordinário n. 7.247/PE169, o Ministro Castro Nunesressalta que, no caso concreto, não foi realizada prova, nem por parte do autor,nem do réu, dos motivos alegados para a ruptura da sociedade conjugal, para quepudesse ser decretado o desquite. Todavia, o juiz, considerando a situaçãoverificada no processo, que demonstrava a incompatibilidade absoluta de gênios,acabou por decretar o desquite por mútuo consentimento. Alerta o MinistroCastro Nunes, no entanto, que

169 Data da decisão: 5 de agosto de 1943. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

o juiz teria, por essa forma, admitido o desquite por simples incompatibilidade degênios, o que, no nosso Direito, proscreve e creio mesmo que o Direito francês,que o admitira em certa época, voltando atrás, à vista dos abusos a que conduziraa simples alegação da incompatibilidade entre os cônjuges. O que se admite é odivórcio, e aqui o desquite, por mútuo acordo.

Atenta o Ministro para o fato de que o acordo manifestado perante o juiz,visando à obtenção do desquite, encobre apenas um desentendimento, umaincompatibilidade entre os cônjuges. No entanto adverte que, sem essa apa-rência, a lei não permite a dissolução do casamento. Cria-se, desse modo, obstáculoque não existiria se qualquer dos cônjuges, contra a vontade do outro e sem aargüição de qualquer culpa, pudesse ir a juízo para obter o desquite. Nesse parti-cular, questiona:

A Justiça, deferindo-o, estaria atendendo a uma causa proibida, que seriaa incompatibilidade alegada. Como admiti-la sob o fundamento de uma incom-patibilidade emergente dos autos? Só esta consideração me parece mostrar adificuldade.

No entanto, o Ministro Castro Nunes dá provimento ao recurso, tendo emvista as específicas circunstâncias dos autos, e é essa a posição adotada peloSupremo Tribunal Federal.

SUCESSÕES E DIREITO ADQUIRIDO

Os Embargos à Apelação Cível n. 7.968170 tiveram origem em ação pro-movida por três sobrinhos de falecida que promoveram o respectivo inventário,mas que foram surpreendidos pela intervenção do Procurador da República, que,baseado no art. 1º do Decreto-Lei n.1.907, pediu a conversão do inventário emarrecadação, visto que a de cujus, solteira, não havia deixado irmãos sobreviven-tes. O juiz de primeira instância indeferiu o pedido da Procuradoria, que apelou dadecisão.

O Ministro Castro Nunes, inicialmente, comenta a observação feita peloMinistro Orozimbo Nonato, de que, por morte do de cujus, os bens passam,automaticamente, da propriedade deste para a dos herdeiros legítimos outestamentários, de modo que todas as sucessões que o Decreto-Lei n. 1.907encontrasse abertas não poderiam ser alcançadas pela nova preceituação,porque tais bens já se haviam incorporado ao patrimônio dos herdeiros legítimosou instituídos. No entanto o Ministro Castro Nunes ressalva:

Penso que não se trata, aí, de retroatividade condenada, ou de ultra-retroatividade. Embora se tenha transmitido aos herdeiros por morte do de cujus

170 Data da decisão: 6 de setembro de 1944. Relator, Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

a propriedade dos bens, esse patrimônio ficou ainda dependente do inventário,vale dizer, do preenchimento de formalidades previstas em lei, das quais é atranscrição da sentença de partilha.

Defende, ainda, que a aplicação da lei às sucessões já abertas não eraultra-retroativa, porque se tratava de direito em cujo gozo não poderiam entrar osherdeiros antes do preenchimento de formalidades ainda não realizadas. Por isso,conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal, desde que entrara em vigor oDecreto-Lei n. 1.907, permitiu-se sujeitar à aplicação desse diploma legal assucessões já abertas, ainda que isso importasse desconhecer o direito adquirido,mas ainda não consumado.

Logo, o que o legislador quis alcançar, segundo o Ministro Castro Nunes,foi a aplicação da lei às sucessões já abertas, não sendo relevante que já setivesse aberto o inventário ou que já estivesse em curso.

Deve-se enfatizar a discordância do Ministro Castro Nunes em relação aoargumento levantado pelo Ministro Orozimbo Nonato, que defendia o raciocíniode que essa irretroatividade era injusta, ultra-retroativa, porque encontrava o atojurídico perfeito e acabado.

Castro Nunes diverge desse argumento e explica que o ato jurídico nãoestá perfeito e acabado, porque se trata de sucessão e os herdeiros não se tornamproprietários dos bens, não podem dispor deles, sem preencher todas as formali-dades. Argumenta que:

se é exato que a retroação se opera, suprimindo um direito adquirido, não seexerce essa retroação em campo vedado ao legislador que respeitou os atosjurídicos perfeitos e acabados, os inventários concluídos, as partilhas homologadas,os direitos sucessórios já formalmente consumados.

O Ministro Castro Nunes vota de acordo com o revisor, Ministro JoséLinhares, que afirma não ser necessário o julgamento da partilha, pois, se osherdeiros já haviam sido privados do direito à herança em virtude do Decreto-Lein. 1907, evidentemente não poderiam partilhar bens que não mais lhes pertenciame que eram bens de herança jacente. Ademais, o inventário ainda não estavaterminado e, por isso, devia-se aplicar o Decreto.

BENS COM CLÁUSULA DE INALIENABILIDADE

No Agravo de Petição n. 10.694/RS171, o Supremo Tribunal Federaldelimitou a extensão da cláusula de inalienabilidade de bens. Tratava-se do caso

171 Data da decisão: 8 de julho de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

de contribuinte que herdara do pai bens que lhe deixou gravados com a cláusulade inalienabilidade e impenhorabilidade extensiva aos frutos e rendimentos. Noentanto, veio a falecer o herdeiro e, por conseqüência, foi aberto o inventário, emque se habilitou a sua progenitora. A penhora dos bens, no entanto, recaiu sobreum campo de criação e seu respectivo estabelecimento rural, herdado pelodevedor com a cláusula de inalienabilidade.

A primeira questão que o caso suscita é a de saber se, morrendo oherdeiro, cessa a inalienabilidade e a conseqüente impenhorabilidade, podendoser penhorados os bens por dívida. O juiz de primeira instância, ao proferir asentença, que recebeu elogios do Ministro Castro Nunes, decidiu no sentido deque subsistem as cláusulas, continuando gravados os bens após a morte doherdeiro.

Consoante o disposto no art. 1.723 do Código Civil de 1916, o fimcolimado, segundo o Ministro, foi o de assegurar não só ao herdeiro, mas aos seussucessores legítimos, ou seja, à sua família, os bens clausulados, sem o desfalqueque lhes poderia advir das dívidas contraídas pelo herdeiro gravado. Argumentaque o Código Civil declara que não subsistirá tal cláusula para as dívidas quevenham a ser contraídas pelos sucessores, sem que daí se depreenda que possamser penhorados os bens clausulados e transmitidos livres desse ônus por dívidascontraídas pelo herdeiro gravado. Sustenta o Ministro:

É bem de ver que estaria aberto caminho fácil à fraudação da lei se, mortoo herdeiro gravado, pudessem ser penhorados os bens por dívidas dele. Oscredores do perdulário e dissipador teriam apenas de esperar pela abertura dasucessão, ficando assim desatendido o escapo da lei, que foi conservar opatrimônio do herdeiro em termos de ser transmitido à esposa e filhos.

Para ele, se a dívida que deu azo à penhora era do herdeiro gravado, nãoseria possível a penhora, que subsistiria após a abertura da sucessão.

O Ministro vai além na análise do caso, de modo a enfrentar todos osaspectos relativos à cláusula de impenhorabilidade. Passa a examinar se, em setratando de impostos, mesmo os que não recaíssem sobre o imóvel, continua aimpenhorabilidade, ou seja, se subsiste a cláusula para a penhora fiscal por dívidado próprio gravado. O Ministro anota que o Código Civil de 1916 não contemplouessa hipótese no art. 1.576, apenas referiu-se às hipóteses de desapropriação ede execução para cobrança de imposto relativo ao imóvel gravado, do que sedepreende que os outros impostos, inclusive o de renda, não se encontramabarcados nessas exceções.

A extensão pretendida em favor de outros impostos encontra assento noart. 1º do Decreto 22.866, de 1933, que confere à Fazenda Pública direito depreferência entre credores. Conclui-se, pois, que os ônus reais a que se refere o

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Memória Jurisprudencial

dispositivo legal são os direitos reais na acepção de jura in re aliena, e não ograve, que é inerente à coisa, o que restringe, então, o direito do respectivoproprietário. Sustenta o Ministro Castro Nunes:

Que a inalienabilidade é um ônus, e, irrecusavelmente, gravame que recaisobre a cousa, restringindo-lhe a disposição pelo proprietário, não pode sofrerdúvida, pois que assim a qualifica o próprio art. 1.723 quando dispõe que os bensinalienáveis passarão aos herdeiros legítimos ou instituídos do gravado “desem-baraçados de qualquer ônus”, ônus que não pode deixar de ser a inalienabilidadecom que os recebera o de cujus.

O Ministro enfatiza que essas cláusulas suportam restrições ou exceçõesrazoáveis, de modo que não prevalecem em relação aos credores ex delito dobeneficiado ou no tocante a alimentos. Finaliza o voto concluindo que, se os bensclausulados suportam a desapropriação e a execução por dívidas fiscais relativasaos imóveis gravados, não haveria razão para isentar o gravado do pagamento deoutros impostos diretos, sendo essa a extensão levada a efeito pelo legislador de1933.

CABIMENTO DE INDENIZAÇÃO AO MARIDO EM VIRTUDE DOFALECIMENTO DA ESPOSA E RESSARCIMENTO POR DANOMORAL

No Recurso Extraordinário n. 7.421/DF172, analisou o Supremo Tribunalquestão acerca da possibilidade de pagamento de indenização ao marido emvirtude da morte de sua mulher e de sua enteada, vitimadas por caminhão depropriedade do recorrente. No caso em tela, a pretensão do autor baseava-se nofato de ser pobre e de não ter condições de auferir a quantia que a esposafalecida recebia para complementar a renda da família.

O cerne da questão residia na possibilidade, em face do art. 233, V, e deoutros do Código Civil, de condenar o causador do homicídio a prestar alimentosno caso de a vítima ser mulher.

Inicialmente, o Ministro Castro Nunes explica que, combinados os arts.1.537, II, 233, V, e outros do Código Civil, a solução adotada, no sentido de reco-nhecer ao marido o direito de ser alimentado pela esposa, contraria frontalmenteos preceitos legais citados. Não obstante, acredita que a morte de qualquer doscônjuges pode autorizar a indenização, desde que se prove que daí decorreu acessação de auxílio indispensável ao desenvolvimento da família, e sustenta:

172 Data da decisão: 17 de abril de 1944. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

Se o marido provar que o orçamento da família dependia da contribuiçãoprestada pela mulher e que sem esse auxílio se terá rompido o equilíbrio comsacrifício do sustento dele e dos filhos, não vejo por que negar o direito de exigirdo causador da morte da sua companheira e auxiliar nos encargos da família (...)uma recomposição, em base razoável do dano verificado.

Afirma o Ministro Castro Nunes que, apesar de o Código Civil de 1916 nãocomportar a condenação do causador do dano, a título de alimentos, no caso emapreço, é possível, entretanto, pela combinação harmônica de vários dispositivos,encontrar justificativas para a reparação. Argumenta que “a cessação do auxíliopecuniário da mulher é dano patrimonial. E está na sistemática do Código Civilque o dano patrimonial é sempre indenizável.”

De outra parte, assevera que a questão chegou ao Supremo TribunalFederal pela interposição de recurso extraordinário, que somente versa sobrequestões de direito, ou seja, deve-se limitar ao reconhecimento ou não do direitodo marido a pleitear a composição do dano que lhe tenha causado a morte damulher. Nesse caso, não terá havido, talvez, o alegado dano, porque, perdendoa mulher que o auxiliava, o autor não perdera nada materialmente. “De modoque, aceitos os fatos conforme a sua apresentação pelo julgado recorrido, meuvoto é no sentido de negar provimento ao recurso, nos termos expostos”, concluio Ministro Castro Nunes. Não reconhece, portanto, o direito à indenização aomarido em razão do falecimento da esposa por acidente.

No Recurso Extraordinário n. 3.631/ES173, enfrentou-se questão seme-lhante, com a diferença de que, aqui, se questionava a possibilidade de pagamentode indenização por dano moral.

O Supremo Tribunal Federal analisou duas questões relevantes: a primeirarelativa ao pagamento de indenização ao marido quando a vítima é esposa que nãoo alimentava; e a segunda relativa à possibilidade de indenização por dano moral.

O Ministro Castro Nunes inicia seu voto esclarecendo que o reconheci-mento do direito do marido à indenização pela morte da mulher contraria o art.1.537, § 2º, e o art. 233, V, do Código Civil, que atribuem ao marido o encargo deprover a mantença da família. Verifica que, no caso em tela, a sentença judicialnão ficou restrita ao pagamento das despesas com o funeral e o luto, mas seestendeu a outras compensações pecuniárias decorrentes da cessação do auxílioda esposa na economia doméstica.

O marido alegou que a esposa falecida exercia a função de caixa deempresa comercial, portanto contribuía com seus proventos para as despesas docasal. Todavia, tal argumento, segundo o Ministro, não subsiste em face do

173 Data da decisão: 17 de novembro de 1941. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.

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disposto no art. 233, V, do Código Civil, que é enfático ao estabelecer que cabe aomarido a subsistência da família. De outra parte, assinala que o art. 1.537, quetrata da liquidação das obrigações resultantes de atos ilícitos, estabelece que aindenização, no caso do homicídio, consiste: a) no pagamento das despesas como tratamento da vítima, seu funeral e luto da família; b) na prestação de alimentosàs pessoas a quem o defunto os devia. Trata-se de obrigação alimentar que,consoante o disposto no art. 396, decorre do parentesco, na linha reta oucolateral, e por direito de sangue — jure sanguinis —, não conferindo nenhumpreceito legal o direito do marido de ser alimentado pela mulher. Assevera oMinistro que o que ocorre é justamente o contrário: o dever do marido dealimentar a mulher, que subsiste mesmo depois de dissolvida a sociedade conjugalpelo desquite (art. 320). Desse modo, na visão do Ministro Castro Nunes, nãopoderia o julgado reconhecer ao marido o direito à indenização pela perda doauxílio da mulher, visto que a prestação alimentar é jure sanguinis e não entrecônjuges. Sustenta que:

Entretanto, o julgado me parece perfeitamente jurídico, sendo necessário,porém, mudar os termos da equação legal. A meu ver o direito do marido encontrafundamento na cláusula geral do art. 159, que consagra em termos amplos oprincípio da reparação do dano, combinado com o art. 240 do mesmo Código.

Reconhece o Ministro que o acórdão recorrido acolhe a tese social de que,nos lares de baixa renda, a mulher, mesmo quando não trabalha fora, exercefunção doméstica, visto que é ela quem cozinha, lava roupa, cuida dos filhos. Jánas famílias de maior poder aquisitivo, quem exerce tais funções são osempregados domésticos. Admite, ainda, que a vida moderna tende a acentuarcada vez mais essa colaboração entre os cônjuges. Afirma que: “Mesmo naclasse média, a supressão ou inabilitação da mulher para os misteres de dona decasa determina maiores encargos para o casal.”

Em face do exposto, entende que o dano de que trata o caso em tela não émoral, mas sim patrimonial, pois deve-se avaliar o dano decorrente da cessaçãode auxílio útil e de fácil estimação pecuniária. Vale dizer que, no processo, aquestão estava posta em termos de dano moral. Questiona, então, se seráindenizável, em face do Código Civil, o dano puramente moral.

O Ministro Castro Nunes registra que sua inclinação é pela possibilidadede indenização por dano puramente moral, solução adotada no Anteprojeto doCódigo de Obrigações, de autoria dos Ministros Orozimbo Nonato, PhiladelphoAzevedo e Hahnemann Guimarães. No entanto, assevera que, em face doCódigo Civil de 1916, a posição contrária tem predominado, a despeito de o art.76 considerar suficiente para o ingresso em juízo o interesse puramente moral, oque, por via de conseqüência, representaria a consagração da doutrina daressarcibilidade do dano moral.

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Ministro Castro Nunes

Em contrapartida, verifica o Ministro que o art. 1.537 do mesmo Códigolimitou essa possibilidade à “liquidação das obrigações resultantes de atosilícitos”, ou seja, somadas as despesas com o tratamento médico da vítima e com oluto da família, o ofensor deverá ao ofendido ou aos seus herdeiros o que lhesdeveria a vítima a título de alimentos. Ressalta que a questão não é pacífica. Acorrente favorável à ressarcibilidade do dano não patrimonial tem como defensoresos Ministros Eduardo Espinola e Pedro Lessa. O Ministro Castro Nunes sustentaque “a jurisprudência do Supremo Tribunal jamais admitiu a reparação do danomoral, não obstante vozes isoladas, entre as quais Pedro Lessa, antes do CódigoCivil, e, na vigência deste, Pedro dos Santos, em luminosos votos vencidos.”Ocorre que a orientação preponderante no Supremo Tribunal Federal tem sido nosentido de não admitir, com fundamento no Código Civil, a reparação do danomoral. Argumenta o Ministro Castro Nunes:

Essa impossibilidade não implica, porém, a condenação do ressarcimentodo dano em qualquer de suas modalidades, como aspiração doutrinária ou dedireito a constituir. Mas até lá temos que aplicar o Código Civil, que, não obstanteautorizadas opiniões em contrário, não me parece sufragar o ressarcimento dopreço da dor, a estimação pecuniária de um mero interesse de afeição, queprescinde da demonstração de um prejuízo conseqüente e é indenizável aindaquando se demonstra que do ato ilícito resultou a cessação de um encargo.

Por fim, declara que o autor alega, nos autos, que, além da perda do auxíliomaterial que lhe dava a esposa nos afazeres, ficara, na companhia dos filhos,privado de sua companhia e de sua afeição, sendo este o aspecto puramente moraldo dano. Contudo, não foram esses os termos da condenação do acórdão recorrido.Conclui seu voto para conhecer do recurso e negar-lhe provimento nos termosexpostos. É interessante verificar que, a despeito de a inclinação do Ministro ser nosentido de admitir a indenização ao marido e também o ressarcimento por danomoral, proferiu voto em consonância com o disposto no Código Civil, mas restouvencido no acórdão.

INCLUSÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA LIQUIDAÇÃODE SENTENÇA

O Ministro Castro Nunes sempre defendeu a não-inclusão de honoráriosadvocatícios na liquidação da sentença, tendo inclusive proferido longas decisõesnesse sentido, quando era juiz de primeira instância. A jurisprudência do SupremoTribunal Federal também era nesse sentido.

Todavia, o Código de Processo continha norma expressa no sentido deincluir os honorários advocatícios e estabelecia também, conforme o disposto noart. 1.047, que tal regra deveria ser aplicada aos casos pendentes. A posiçãoadotada pelo Supremo Tribunal Federal foi incluir os honorários advocatícias na

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Memória Jurisprudencial

condenação, interpretação também defendida por Castro Nunes no julgamentodo Recurso Extraordinário n. 3.458/DF174:

não procuro distinguir se se trata de preceituação de natureza substantiva ouadjetiva, como não distinguiria se de caráter processual ou, propriamente, deorganização judiciária. Entendo, pois, que aos processos pendentes, em qual-quer fase, inclusive na execução, aplica-se a disposição do Código.

O Ministro Castro Nunes travou interessante discussão acerca do temacom o Ministro Orozimbo Nonato, relator do referido recurso, que entendia que odispositivo do Código de Processo Civil que determinava a aplicação de suasnormas aos processos pendentes referia-se tão-somente às leis processuais enão às leis substantivas, como ocorria no caso em questão.

Castro Nunes não estabelecia a distinção fundada na natureza do dispo-sitivo, posição antiga firmada quando ele integrara comissão — com os DoutoresLevi Carneiro e Solidonio Leite — nomeada pelo Instituto dos Advogados, queemitiu parecer no seguinte sentido: “a ementa não faz a lei. Qualquer disposiçãoincluída numa lei, desde que esteja na competência do órgão deliberante, tem amesma força de lei.” Seguindo essa mesma linha de raciocínio, aplicava o Ministrotal princípio ao Código de Processo:

De sorte que, aplicado este princípio ao caso presente, qualquer disposiçãono Código de Processo tem a mesma força e autoridade, seja de ordem processualou não. Todas elas são preceituações do Código de Processo: aplicam-se, portanto,de acordo com a disposição transitória do art. 1.047, a todos os casos pendentes.

Note-se que, nos Embargos à Apelação Cível n. 7.881/DF175, que versavasobre a inclusão dos honorários do autor na condenação, voltou o Ministro CastroNunes à discussão iniciada no julgamento do Recurso Extraordinário n. 3.458/DF,tendo em vista a necessidade de melhor balizar seu pensamento.

Acentua o Ministro que, antes do advento do Código de Processo Civil, ajurisprudência do Supremo Tribunal Federal fixara-se no sentido de não incluir nacondenação os honorários do advogado do autor. O Ministro Castro Nunes, quandojuiz federal, proferira sentença nesse mesmo sentido, registrando que essa seriasua posição inicial, a qual, atualmente, não poderia mais ser mantida, tendo em vistaos arts. 64 e 912 do Código de Processo Civil, que tratavam de indenização porhomicídio culposo, no sentido da inclusão reclamada no caso sub examine.

174 Data da decisão: 19 de novembro de 1941. Relator, Ministro Orozimbo Nonato; Presi-dente, Ministro Eduardo Espinola.175 Data da decisão: 21 de dezembro de 1943. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

Justifica o Ministro a aplicação desses dispositivos com fundamento nadisposição transitória do art. 1.047. Vale observar que ele já se manifestara nessesentido em outros julgados, não obstante os votos em contrário, precipuamente osproferidos pelo Ministro Orozimbo Nonato, que entendia que a aplicaçãoretroativa permitida por aquele preceito só abarcava as disposições propriamenteprocessuais, excluídas as de natureza civil ou substantiva.

O Ministro Castro Nunes considera que a distinção entre preceitos dedireito substantivo e de direito adjetivo não é decisiva. Admite, no entanto, que taldistinção só tinha importância na vigência da Constituição de 1891, na qual acompetência para legislar sobre processo não era da União. Enfatiza que:

Como sabe o Tribunal, a noção de Bentham, exposta por João Mendes nasua memorável polêmica com Pedro Lessa, assentava no caráter de dependênciade certas leis em relação a outras, que seriam as principais, leis aquelas existentesem função destas, e tais são as leis de processo em relação às leis de fundo,chamadas adjetivas pelo jurisconsulto inglês, por assemelhação com os adjetivosque só existem na linguagem em função dos substantivos.

Registra o Ministro que se trata de distinção engenhosa que guarda relaçãocom a diferença entre leis de fundo e leis de forma, que, já existente na IdadeMédia, por Bartôlo, ainda serve como proveito para a doutrina do Direito. Nãonega a utilidade da distinção e do uso das denominações correntes, no entantoconsidera que não se deve dar maior importância para distinção que visa a confe-rir tratamento diferente às normas de um mesmo Código, com base no argumentode que umas são de direito substantivo e outras de direito adjetivo: são todasnormas emanadas do mesmo órgão legislativo.

O Ministro acentua que se deve presumir que o legislador, ao inserir em umamesma lei disposições de caráter diverso, tenha entendido necessária essa inclusãopara melhor sistematizar a matéria. Relembra, ainda, que o Supremo Tribunal Fe-deral entendia, no tempo das competências diferenciadas, que a União, legislandosobre determinadas matérias — tais como falência e hipoteca —, “substantivava”disposições de caráter processual que tinha por indispensáveis à eficácia do direitomaterial. Note-se que o termo “substantivava”, utilizado pelo Ministro, é de Paulode Lacerda.

De igual modo, o legislador, quando inseriu no Código Civil disposição queo alterava ou modificava, o fez por entender necessária à sistemática dapreceituação adjetiva tal modificação, ou seja, adjetivou disposição de carátersubstantivo. Nesse particular, depreende-se que, se o legislador inseriu napreceituação processual normas de direito material, o fez em virtude da necessi-dade de modificar ou adequar as normas civis preexistentes. Para chegar a esseentendimento, o Ministro Castro Nunes se vale do direito comparado e da idéiade sistema de Korkounov e argumenta, ainda:

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Memória Jurisprudencial

Não será demais observar que entre nós foi precisamente em nome dessacorrelação entre normas substantivas e normas adjetivas que se vindicou acompetência da União para umas e outras. Se os dois Códigos houvessem sidoelaborados simultaneamente, surgiriam ajustados.

Cumpre anotar que a diferença temporal entre o Código Civil e o deProcesso Civil era de quase vinte e cinco anos, o que demonstrava a necessidadede adequar um Código ao outro. Cita, ainda, que tal circunstância tambémocorrera no sistema francês, cujo intervalo de tempo entre um e outro diplomalegal era de apenas três anos.

A posição defendida pelo Ministro é a de que é perfeitamente admissívelque o legislador do processo adentre no campo do direito civil ou de outrasdisciplinas jurídicas, com vistas a alterar ou desenvolver normas preexistentes, nointuito de adequar a disposição antiga à nova legislação, de maneira a formar umsistema harmônico. Afirma: “Não me parece possível desintegrar esse todo, paratratar diferentemente algumas disposições, pela só consideração de que nemtodas são de índole rigorosamente processual.”

Para confirmar sua tese, traz a lume uma série de exemplos, como o art.83 do Código de Processo Civil, que dispõe sobre a capacidade processual daspartes, particularmente o direito dos cônjuges de obter suprimento judicial paralitigar; o art. 166, § 2º, que admite interrompida a prescrição na data do despachoque ordenar a citação; e, por fim, o art. 1.031, que não permite que o estrangeiroseja árbitro.

Analisando os aspectos que envolvem o caso em tela, preleciona oMinistro que se trata de indenização decorrente de ato ilícito, do que decorre quetem aplicação mais direta o art. 912 do Código de Processo Civil, sob o título “Daliquidação da sentença”. Não há negar que o referido Código contém disposiçõeshíbridas, de direito processual e de direito civil, porque, além de pretenderem darforma prática e realização às normas de direito privado, contidas no Código Civil,procuram interpretar e completar essas normas.

O legislador, dispondo naqueles artigos sobre a reparação conseqüente doilícito, mandou incluir, além das custas, os honorários do advogado, sem contrariar,aliás, nenhum preceito do Código Civil, omisso a respeito. O Ministro CastroNunes acreditava que o art. 1.047 dera ao Código de Processo Civil aplicaçãoimediata, mesmo sobre os processos pendentes. O art. 1.047, não se restringindoàs disposições processuais, afirmava que suas disposições, de índole civil ou ati-nentes à organização judiciária, se aplicariam desde logo aos casos pendentes,porque integravam sua preceituação: “Art. 1.047. Em vigor este Código, as suasdisposições aplicar-se-ão, desde logo, aos processos pendentes.”

Acrescenta o Ministro que, no caso sub examine, a ação foi proposta emjaneiro de 1941, quando já se encontrava em vigor o novo Código de Processo,

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Ministro Castro Nunes

portanto não se tratava de processo pendente, isto é, anterior ao Código, vistoque, já na vigência dele, a ação se iniciou, se processou e foi proferida a sentençacondenatória.

É interessante anotar que o voto do Ministro é pela inclusão dos honoráriosdo advogado da liquidante, no mesmo sentido dos votos dos Ministros Goulart deOliveira e Orozimbo Nonato, mas divergente de ambos na fundamentação. Valedizer que houve, no processo, interessante discussão com o Ministro OrozimboNonato, chegando o Ministro Castro Nunes a questioná-lo se a distinção levada aefeito por ele não seria meramente teórica. O Ministro Orozimbo Nonato responde:

Não é simplesmente teórica e tem prosápia antiga. (...) Negar a importânciade uma distinção de leis não é lhe negar a existência mesma. E, no caso, ela produzconseqüências práticas, tanto que V. Exa. concorda em que a lei processual, noaspecto da retroatividade ou da aplicação imediata, difere da substantiva.

O Ministro Orozimbo Nonato afirma que o Ministro Castro Nunes “se fazpregoeiro de uma doutrina revolucionária — a de que não existe qualquerdiferença entre lei adjetiva e substantiva”.

Castro Nunes prossegue em seu ponto de vista, esclarecendo que essadistinção não tem importância, tanto que os autores estrangeiros não se ocupamdela, apenas os doutrinadores brasileiros se debruçaram sobre a matéria, em razãoda relevância que possuía no passado, mas que agora não mais se faz presente.

O Ministro Castro Nunes encerra o voto dizendo que não supunha que aquestão em análise pudesse suscitar debate tão interessante, que deu azo,segundo ele a mais uma brilhante explanação do Ministro Orozimbo Nonato.

INCLUSÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM PAGAMENTODE INDENIZAÇÃO POR EXPROPRIAÇÃO

No Recurso Extraordinário n. 10.123/DF176, analisou-se a possibilidade deinclusão de honorários advocatícios na indenização a ser paga pelo ente estatalnos casos de expropriação.

O Ministro Castro Nunes proferiu reiterados votos, com fundamento noCódigo Civil, que, embora inspirado, segundo ele na jurisprudência de algunstribunais de apelação que mandavam abonar ao vencedor os honorários pagospor ele ao patrono, limita esse pagamento às hipóteses do ilícito, do dolo e daculpa contratuais. Isso lhe imprimiu caráter punitivo que não pode ser ampliadoàs hipóteses não mencionadas.

176 Data da decisão: 23 de junho de 1947. Relator, Ministro Ribeiro da Costa; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro argumenta que, na desapropriação, o Poder Público exercepoder que o próprio Texto Constitucional lhe confere. Nesse sentido, não épossível falar em culpa, ainda que o valor oferecido pela Administração tenhasido menor que o obtido, visto que essa culpa não seria contratual. Ressalta,ainda, que inexiste lei expressa dispondo sobre o pagamento de honorários noscasos de expropriações, e, em face dessa ausência normativa, o SupremoTribunal Federal não acrescentou esses honorários particularmente contratadospelo vencedor ao montante da condenação. Sustenta que:

Indenizar é reparar, repor, reconstituir, reintegrar, recompor o statu quoante; mas o legislador não está impedido de restringir o sentido léxico para dar àspalavras uma significação jurídica, do que há inúmeros exemplos. Se, anterior-mente ao Código, a condenação do vencido no tocante a honorários do advoga-do vencedor se limitava aos emolumentos taxados no Regimento de Custas pelosseus atos de ofício, era essa a integração permitida, não competindo ao intérpreteoficial da lei considerar insuficiente ou desconforme com a acepção de indenizarna linguagem comum para operar uma retificação que nem o Supremo Tribunal,entre nós, nem os tribunais da França e de Portugal, onde a mesma questão foisuscitada, se animaram a fazer.

Se o Código de Processo considera integrante da indenização o honorárioda parte adversa, não o faz sem distinguir certos casos, do que decorre que, nashipóteses que não se enquadrarem no texto legal, a condenação é, como outrora,por atos de ofício tabelados no Regimento.

Pondera o Ministro que existem julgados em sentido contrário, razão que oleva a conhecer do recurso no que diz respeito ao mérito, mas nega-lhe provimento.

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Ministro Castro Nunes

18. USUCAPIÃO

IMPOSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO DE TERRAS OU BENSPÚBLICOS

O Supremo Tribunal Federal, em reiteradas decisões, firmou o entendi-mento de que não é admissível o usucapião de terras de domínio público. Aopinião exarada pelo Ministro Castro Nunes, em diversos votos, também é nessesentido, como no Recurso Extraordinário n. 9.701/PR177.

No Recurso Extraordinário n. 7.441/SP178, por exemplo, o Supremo TribunalFederal analisou a questão da insuscetibilidade de usucapião dos bens públicos, nocaso das terras devolutas, e afirmou que só pode existir usucapião em relação abens que podem ser alienados179. Esclarece o Ministro Castro Nunes:

O Código Civil, no art. 67, declarando que a inalienabilidade dos benspúblicos, inclusive os dominicais, só por determinação da lei poderá ser elidida,repeliu a possibilidade de serem usucapidos tais bens, uma vez que o usucapiãoé meio de adquirir o domínio e, aliás, contra a vontade ou à revelia do titular, nãosendo possível admiti-lo quando mediante o consenso da Fazenda Pública issonão seria possível.

Para ele, de igual modo e por interpretação do art. 67 do Código Civil, osDecretos de 1931 e de 1933 expressamente estatuíram a respeito para proscrevero usucapião. Note-se que o Supremo Tribunal Federal já tinha decidido comfundamento no Código Civil pela prescrição.

IMPENHORABILIDADE DE BENS OU RENDAS PÚBLICAS

O Supremo Tribunal Federal não admite, em relação aos bens públicos,inclusive os dominiais, o princípio processual — aplicável às relações entreparticulares — da impenhorabilidade dos rendimentos dos bens inalienáveis, senão houver outros bens.

No Agravo de Instrumento n. 8.045/PR180, o Ministro Castro Nunes enfren-tou essa questão, pois se tratava de reclamação levada ao Conselho do Trabalho

177 Data da decisão: 30 de setembro de 1946. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.178 Data da decisão: 28 de maio de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.179 No mesmo sentido há o voto proferido no Recurso Extraordinário n. 7.202/SP. Data dadecisão: 28 de maio de 1945. Relator, Ministro Annibal Freire; Presidente, Ministro Laudode Camargo.180 Data da decisão: 27 de julho de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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contra empresas particulares ocupadas revolucionariamente e submetidas aocontrole do Governo Provisório, incorporadas posteriormente, em caráter definitivo,ao patrimônio nacional.

O Ministro ressaltou que, em 1936, o Supremo Tribunal Federal, com basenos Decretos n. 9.549/1886 e n. 3.084/1898, proibiu a penhora das rendas dasestâncias minerais de Poços de Caldas e Araxá, que se encontravam emexecução promovida contra o Estado de Minas Gerais. Tal processo foi trancadopelo Executivo por meio de mandado de segurança contra o despacho judicialque ordenou a execução. Esclarece o Ministro Castro Nunes que:

A razão em que assenta a impenhorabilidade das rendas do Estado está emque essas rendas, mesmo as dos bens patrimoniais, têm destinação orçamentária,aplicam-se ao custeio dos serviços públicos que seriam interrompidos ouperturbados se pudessem ser desviados, pela penhora, para outros pagamentos.O meio de conciliar o interesse publicado ligado à impenhorabilidade absoluta dosvalores do Estado foi encontrado pela Constituição ao dispor no art. 95 sobre ospagamentos devidos pela Fazenda Nacional quando condenada em juízo. Nessedispositivo constitucional está implícita a proibição de qualquer execuçãocompulsória contra a Fazenda. E o que se pretende, sob a alegação especiosa deque a penhora recairia, não sobre os bens, mas sobre as rendas, seria de qualquermodo uma execução compulsória recaindo em valores pertencentes à União.

O Ministro proferiu voto no sentido de reconhecer a impenhorabilidadedecorrente da incorporação que transformou os haveres da Rede em benspatrimoniais da União. Concluiu que, se a reclamação levada ao Conselho doTrabalho era contra a Rede, a execução que pretendia seria indiscutivelmentecontra a Fazenda Nacional, portanto era impossível a penhora. Foi essa a posiçãoadotada pelo Supremo Tribunal Federal no caso sub examine.

AÇÕES DE REIVINDICAÇÃO OU DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE

No Recurso Extraordinário n. 7.864/PI181, Supremo Tribunal Federal exami-nou se o prazo da prescrição das ações reais seria estabelecidas para as açõespessoais — trinta anos — ou se seria de dez a vinte anos, como consta do artigo177 do Código Civil. Decidiu-se que a prescrição das ações reais era de trinta anos,visto que o prazo do referido artigo aplicava-se, tão-somente, ao usucapião, à pres-crição aquisitiva, e não à liberatória ou extintiva. Examinou-se, também, a ação dereivindicação ou de reintegração na posse contra quem invocasse aquisição porusucapião e a análise da prescrição da relação jurídica, da prescrição do domínio ea prescrição da ação em face da prescrição liberatória ou extintiva.

181 Data da decisão: 31 de janeiro de 1941. Relator, Designado, Ministro Castro Nunes;Presidente, Ministro Eduardo Espinola.

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Ministro Castro Nunes

Tratava-se de disputa entre as partes pelo título de proprietário, queconfigurava o caráter real da ação, muito mais reivindicatório que possessório.Todavia, no entendimento de Castro Nunes, nem por ser real e não pessoal aação intentada, se justificaria a prescrição pronunciada.

Elucida o Ministro que a redação do art. 177 do Código Civil leva àinterpretação de que apenas as ações pessoais prescrevem em trinta anos.Todavia, no seu entendimento, com base nas lições de Carpenter, as ações reaistambém estão sujeitas ao mesmo prazo. Esclarece que os prazos de dez e vinteanos referentes ao usucapião dizem respeito à prescrição aquisitiva e não àprescrição liberatória ou extintiva e reconhece que a interpretação do dispositivosuscita dúvidas.

Ele traça, em seu voto, a diferença entre as duas prescrições e esclareceque a prescrição aquisitiva, mesmo contendo elemento extintivo consistente naperda do direito pelo usucapião, é essencialmente meio de aquisição, fonte gera-dora e não fonte de extinção de direito. É dizer, o prescribente tem, nela, o títulodo direito que alega e não a extinção do direito do adversário. Já a liberatóriaconsiste em eximir da obrigação o sujeito. Assevera que:

A ação do proprietário para reivindicar ou reintegrar-se na posse não pres-creve nesses prazos. Se movida contra possuidor que possa invocar utilmente aaquisição, tal indagação pertencerá ao exame do mérito. O usucapião pode serinvocado por ação ou por exceção. São essas as ações reais dele oriundas. Jáentão, consumada a prescrição, estará ele em juízo como proprietário ou, na posiçãode réu, repelindo a pretensão do antigo proprietário. A prescrição do direito desteé da relação jurídica, prescrição do domínio, mérito da controvérsia, e não da ação.

O Ministro Castro Nunes dá provimento ao recurso para declarar a açãonão prescrita. O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, dá provimento aorecurso.

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Ministro Castro Nunes

19. TRIBUTOS

COBRANÇA DE TAXA RODOVIÁRIA POR MUNICÍPIO

No Recurso Extraordinário n. 8.573/BA182, enfrentou-se a questão daconstitucionalidade de cobrança de taxa rodoviária, consignada no orçamentolocal, sobre o transporte de mercadorias na Rodovia Muritiba—São Félix, noEstado da Bahia.

O Ministro Castro Nunes salienta o grande interesse prático que a questãosuscita. Inicia seu voto analisando detidamente a matéria nas Constituições doBrasil, desde o Texto Constitucional de 1891 até o Texto de 1937. O art. 25 daConstituição de 1937 dispõe, in verbis:

Art. 25. O território nacional constituirá uma unidade do ponto de vistaalfandegário, econômico e comercial, não podendo no seu interior estabelecer-sequaisquer barreiras alfandegárias ou outras limitações no trafego, vedado assimaos Estados como aos Municípios cobrar, sob qualquer denominação, impostosinterestaduais, intermunicipais de viação ou de transporte, que gravem ouperturbem a livre circulação de bens ou de pessoas e dos veículos que ostransportarem.

Desse texto depreendia-se que a proibição estatuída não alcançava aUnião, mas somente os estados e os municípios. Poder-se-ia concluir que erainadmissível a cobrança de qualquer imposto ou taxa, qualquer que fosse afinalidade dessa situação. Argumenta, ainda, o Ministro que o legislador nãoabrandou o rigorismo da regra constitucional, para possibilitar, em determinadassituações — como no caso de cobrança de taxas rodoviárias pelo uso dasestradas de penetração intermunicipais ou interestaduais —, a cobrança detributo que tivesse por finalidade facilitar ou possibilitar a circulação de riqueza,excluída qualquer eiva de guerrilha tributária entre os entes federativos. Sustentaque:

O ideal seria, sem dúvida, que os veículos pudessem circular sem quais-quer entraves, fiscais ou outros, ideal que estaria, aliás, em qualquer outro setorem que se exerça a ação tributária, tantas vezes injusta e opressiva. Mas nãosendo possível atingi-lo, porque necessário dar ao Estado ou às circunscriçõesmenores os meios indispensáveis à realização dos fins de interesse geral, há deverificar se é possível admitir que as taxas destinadas à abertura de estradas esua conservação não são óbices à circulação, mas, ao invés disso, meios

182 Data da decisão: 22 de outubro de 1945. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Annibal Freire.

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Memória Jurisprudencial

financeiros adequados à possibilidade dessa mesma circulação que, de outromodo, estaria apenas formulada como aspiração, sem as condições materiais desua realização.

O Ministro faz referência à posição do Visconde de Abaeté, que contestavaa inclusão das taxas itinerárias entre os direitos de importação interprovincialproibidos por ato adicional, pois entendia que eram pagas pelo uso das estradas,para sua conservação. Afirma que “a taxa, em tais casos, é um ônus do transportecomo o frete.”

O Ministro Castro Nunes chega a dizer que esse uso retribuído poderia serobjeto de concessão, que, segundo ele, se constitui em modalidade de execuçãoadministrativa muito usada na construção e na exploração das vias rodoviárias eem fator decisivo para o desenvolvimento do transporte ferroviário. Entende quea taxa, fixada com critérios práticos variáveis, não é, a rigor, contribuição demelhoria, visto que pressupõe a existência de obra pública e sua conseqüentevalorização, como, por exemplo, uma estrada de rodagem, que representa umplus value para os terrenos beneficiados. Esclarece que:

O problema constitucional não se resolve, pois, pela sua assimilação comas contribuições de melhoria, que são coisa diversa e poderão decorrer darodovia como imposição fiscal a ser exigida dos proprietários ribeirinhosbeneficiados pela valorização sem prejuízo do ônus fiscal que a título de taxa seexija de quem quer que seja que, em extensão maior ou menor, segundo o critérioda taxação por quilometragem, se utiliza da estrada.

Argumenta o Ministro que o art. 25 da Constituição de 1937 trata do óbicefiscal exigido nas divisas entre municípios e estados, os denominados “impostos detrânsito”, as barreiras que impedem a entrada de veículos e de mercadorias trans-portadas na circunscrição convizinha. Não se incluem na vedação constitucional asestradas ou o percurso feito sem sair das divisas de um mesmo município. Esta é ahipótese do caso em tela: estrada de Muritiba e São Félix, no mesmo município.Pondera que:

A taxa rodoviária não é em tais casos um direito sobre o tráfego entremunicípios, mas um tributo, exigido do veículo, como o é a licença, com adiferença apenas, a favor da taxa, de que a licença para circular é exigida a título deimposto, e aquela contribuição a título de retribuição pelo uso da via decomunicação. Não chega a haver no caso um problema constitucional, porquenão se proíbe na Constituição que se cobrem taxas pelo uso das estradas nem queos veículos sejam tributados como condição para trafegarem, imposto que está,aliás, expressamente conferido.

O Ministro Castro Nunes dá provimento ao recurso para declarar exigívela cobrança da taxa.

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Ministro Castro Nunes

COISA JULGADA EM MATÉRIA FISCAL

No Agravo de Petição n. 11.227/DF183, em que foi relator o MinistroCastro Nunes, analisou-se se era admissível em executivo fiscal a defesafundada em “coisa julgada” para ser apreciada pela sentença final. Tratava-se,no caso, de executivo fiscal para cobrança de imposto de renda referente aoexercício de 1936. O executado alegava ser indevido o imposto por incidir sobrejuros de apólices emitidas anteriormente à Lei de 31 de dezembro de 1925,consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, e que, em executivo parao mesmo fim, fora movida cobrança relativa ao imposto do‘ exercício 1934; entãoopôs defesa, logrando vê-la acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, por concluirque já existia coisa julgada entre as mesmas partes e sobre a mesma relaçãojurídica, em termos de obstar a renovação da lide.

O juiz de primeira instância acolheu a defesa e os fundamentos por elaalegados, a Fazenda recorreu de ofício e agravou. A União alegou que a jurispru-dência do Supremo Tribunal Federal modificou-se para admitir a tributabilidadedos juros de apólice e que não há coisa julgada em executivos fiscais.

O Ministro Castro Nunes analisa a possibilidade de tributabilidade dosjuros de apólice e assenta posição, já manifestada quando ainda era juiz deprimeira instância, no sentido de admitir que os juros possam ser tributadosqualquer que seja a data da emissão dos títulos. Portanto, nesse aspecto, nãoacolhe a defesa.

Todavia entende ser procedente a coisa julgada, pois já proferira votos nosentido de admiti-la nas cobranças fiscais. Para ele, a coisa julgada existe emqualquer processo contencioso, independente de sua natureza, sumária, especialou ordinária. Não se exclui da regra o processo executivo, as únicas exceções àcoisa julgada encontram-se previstas na lei, silente quanto aos processosexecutivos, fiscais ou não. O Ministro entende que a relação jurídica entre o fiscoe o contribuinte é a mesma, para os efeitos do tratamento jurisdicional, que seopera entre o funcionário e o Estado. Argumenta que, nesse sentido, ninguémquestionaria que em tais demandas se produz o caso julgado.

O Ministro esclarece que a cobrança do imposto é renovada anualmente,todavia o que ocorre anualmente é o lançamento, não o imposto. Assim sendo,irregularidade verificada em um dado lançamento está restrita ao exercício res-pectivo, sem o condão de alcançar a sentença proferida nos exercícios posteriores,visto que, nesses, o lançamento pode não ter os mesmos vícios. Preleciona:

183 Data da decisão: 5 de junho de 1944. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Eduardo Espinola.

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Memória Jurisprudencial

Os impostos diretos não podem ser exigidos sem a prévia apuração de fatosque fornecerão os elementos necessários à fixação da dívida individual do imposto.(...) É bem de ver que essas operações prévias, destinadas à apuração em concretoda dívida do imposto em cada ano, só existem em se tratando de impostos diretos,porque os indiretos, dependendo de fatos variáveis, que podem ocorrer, ou não,não comportam em regra o lançamento, que é um cadastro baseado em elementosfixos e apuráveis periódica ou anualmente. As questões entre o contribuinte e ofisco no tocante aos impostos diretos competem ao chamado Contencioso Admi-nistrativo, entrando na órbita dos tribunais judiciários somente os indiretos. Demodo que as decisões sobre lançamentos e outras são da jurisdição administrativa,e é o que ocorre na França como na Itália.

O Ministro discorre exaustivamente sobre o sistema francês e o italiano,para demonstrar que, neles, as decisões sobre lançamentos, quando esgotadas asinstâncias de recurso, produzem a coisa julgada, com os mesmos efeitos quepossui a coisa julgada decorrente das instâncias judiciárias, uma vez que éconclusiva a jurisdição legalmente competente para analisar tais controvérsias.Argumenta que as regras que disciplinam a eficácia e a extensão da resjudiciata são as mesmas do juízo civil, ou seja, com a tríplice identidade e osrequisitos conhecidos. Assevera ser essa a posição dominante na doutrina e najurisprudência. Sustenta que “raros, muito raros, os que não admitem a resjudicata administrativa, e, conseqüentemente, nas relações fiscais decididascontenciosamente por órgãos da Administração.”

Adverte Castro Nunes que, no Brasil, as questões relativas aos impostosestão na órbita judiciária, sendo que nenhum dos tratadistas pátrios de direitojudiciário, ao enumerar as sentenças que não fazem coisa julgada, refere-se àsentença fiscal. Nesse particular, argumenta que:

Por igual, nenhum expositor estrangeiro de direito judiciário, entre os quepude compulsar, menciona entre as sentenças que não fazem coisa julgada asproferidas nas causas fiscais, e certamente haveria lograr para o exame desseaspecto, sabido como é que, na França como na Itália, as questões sobre impostosindiretos são da órbita judiciária, comportando a indagação da existência legal doimposto, o que mostra que em tais tratados haveria oportunidade para o exame dacontrovérsia que, na ordem judiciária, não existe.

O Ministro Castro Nunes pondera que, sem sair dos princípios quegovernam a coisa julgada, verifica-se que esta terá de limitar-se aos termos dacontrovérsia. Sustenta: “Se o objeto da questão é um dado lançamento que sehouve por nulo em certo exercício, claro que a renovação do lançamento noexercício seguinte não estará obstada pelo julgado.”

Entende, todavia, que, se os tribunais estatuírem sobre o imposto em simesmo, por exemplo, declarando-o indevido ou isentando o contribuinte porinterpretação da lei ou de cláusula contratual, ou se entenderem o imposto por

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Ministro Castro Nunes

ilegítimo ou inconstitucional, em qualquer uma dessas hipóteses, o pronuncia-mento judicial poderá ser rescindido pelo meio próprio. No entanto, enquantosubsistir esse pronunciamento, ele se constitui em obstáculo para cobrança,

que, admitida sob a razão especiona de que a soma exigida é diversa, importaria,praticamente, em suprimir a garantia jurisdicional do contribuinte que teria tido,ganhando a demanda a que o arrastara o Fisco, uma verdadeira vitória dePyrrho.

No caso dos autos, o mesmo contribuinte, novamente lançado para pagarimposto de renda sobre juros de apólices, já obtivera o reconhecimento judicial doseu direito de não pagar o referido imposto. Por fim, conclui o Ministro:

Não importa que haja julgados posteriores em outras espécies sufragandoentendimento diverso, aliás, com o meu voto. Nem impressiona o argumento deque o caso julgado fere a regra da igualdade tributária, por isso que, em qualquermatéria, essa desigualdade de tratamento, fiscal ou não, é uma conseqüêncianecessária da intervenção do Judiciário, que só age por provocação da parte enão decide senão em espécie.

Note-se que, no decorrer do julgamento, o Ministro Philadelpho Azevedosugere a separação das questões, preliminar e mérito, quais sejam, se sãotributáveis os juros de apólice e se pode haver res judicata em matéria fiscal.O Ministro Castro Nunes se manifesta veementemente contrário a essaseparação:

Sr. Presidente, a votação por partes, por separação dos fundamentos,criaria um precedente, uma inovação jamais admitida. Iríamos votar pordestaque de teses, que seriam estas: São tributáveis os juros de apólices? Podehaver res judicata em matéria fiscal? Nosso julgamento, porém, não é de teses.Os tribunais proclamam o direito deste ou daquele litigante, embora porfundamentos que podem ser diferentes no voto de cada vogal. Todos os diasvotamos assim. O que se apura é o voto e não os motivos de cada voto. Soucontra a divisão.

O Ministro Castro Nunes vota pela rejeição dos embargos, e a decisãoproferida pelo Supremo Tribunal Federal também rejeita os embargos.

ISENÇÃO DE IMPOSTO DE IMÓVEL DE CONCESSIONÁRIA DESERVIÇO PÚBLICO

No Recurso Extraordinário n. 3.725/SP184, analisou-se a isenção doimposto relativo ao imóvel de concessionária de serviço público. O Ministro

184 Data da decisão: 23 de outubro de 1941. Relator e Presidente, Ministro Laudo deCamargo.

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Memória Jurisprudencial

Castro Nunes foi relator do acórdão e fixou o entendimento de que a cláusula deimunidade recíproca vigente em 1930 constava da Constituição de 1891 eestabelecia: “É proibido aos Estados tributar bens e rendas federais ou serviços acargo da União e reciprocamente.”

Para o relator, a não-tributabilidade dos serviços concedidos não estavaexpressa. Todavia a jurisprudência a concede por força de interpretaçãoconstitucional extensiva, baseando-se no princípio de que o concessionário ficasub-rogado na execução do serviço público. Esclarece que: “a isenção porcláusula expressa só mais tarde apareceu, no texto de 34. Mas, no texto de 91,não se expressava. Existia por força de compreensão.”

Sendo assim, entendeu ser cabível o Recurso Extraordinário, porque, nocaso, a decisão que estendeu a isenção às empresas concessionárias podia estarjuridicamente certa, mas violara enunciado literal da lei, pois a Constituição eraomissa nesse sentido. Para o Ministro Castro Nunes, bastava que se verificassea antinomia aparente entre o texto legal e a tese do julgado, para entender-secabível o Recurso Extraordinário fundado no inciso a. Ele conheceu do recurso,mas negou provimento no mérito. O Supremo Tribunal Federal proferiu acórdãonão conhecendo do recurso.

No mesmo sentido, houve os votos proferidos pelo Ministro Castro Nunesnos Recursos Extraordinários n. 3.924/SP185 e 5.203/DF186.

No Recurso Extraordinário n. 3.548/SP187, também se enfrentou a questãoda isenção de impostos de empresas concessionárias de serviços públicos.Todavia, no caso em tela, funda-se o Recurso Extraordinário na letra a e na d,pois o recorrente enunciou julgado do Supremo Tribunal Federal em que não seadmitiu que os serviços concedidos fossem abrangidos pela isenção tributáriarecíproca.

O Ministro Castro Nunes, apesar de conhecer do Recurso, negou-lheprovimento, pois o Texto Constitucional de 1891 só tratava da isenção recíprocados entes federativos. Argumentou que “essa cláusula compreendia também osserviços explorados mediante concessão, de acordo com os ensinamentos dadoutrina e da jurisprudência deste Supremo Tribunal, não obstante algunsjulgados discrepantes.” Asseverou que, em face do art. 32, parágrafo único, daConstituição de 1937, os serviços concedidos não gozavam de isenção. Dispunhao referido dispositivo constitucional:

185 Data da decisão: 5 de outubro de 1942. Relator, Ministro Philadelpho Azevedo;Presidente, Ministro Laudo de Camargo.186 Data da decisão: 22 de dezembro de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.187 Data da decisão: 8 de maio de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

Art. 32 (...). Parágrafo único. Os serviços públicos concedidos não gozamde isenção tributária, salvo a que lhes for outorgada, no interesse comum, por leiespecial.

Ponderou o Ministro Castro Nunes, no entanto, que:

Penso, todavia, que, tratando-se de exercício anterior, não se lhe aplica opreceito novo, salvo se assim vier a determinar expressamente o legislador. Ou,por outras palavras: ao intérprete não é lícito desconhecer o direito adquirido,que continua amparado pelo Código Civil, Intr., art. 3º, enquanto não o determinao legislador, cuja ação ficou desimpedida por efeito da suspensão da garantiaconstitucional dos direitos adquiridos, nisso consistindo tal supressão.

Concluiu o Ministro que, no caso em tela, não houve nenhuma lei, navigência da Constituição, dispondo sobre o referido imposto, para declará-lodevido mesmo nos exercícios anteriores. Assim sendo, em tais exercícios, acobrança estaria sujeita às cláusulas constitucionais vigentes a esse tempo.

O Ministro Castro Nunes deu provimento ao recurso. Todavia o SupremoTribunal Federal proferiu acórdão em sentido contrário.

ISENÇÃO DE IMPOSTO A PROFESSORES, ESCRITORES EJORNALISTAS

No Agravo de Petição n. 12.814/DF188, examinou-se a exigência do pa-gamento de imposto de renda sobre os vencimentos de professor, no ano de1936, quando ainda em vigor a Constituição de 1934, que dispunha no art. 113,n. 36: “Nenhum imposto gravará diretamente a profissão de escritor, jornalistaou professor.”

Em seu voto, o Ministro Castro Nunes menciona que a Primeira Turma doSupremo Tribunal entendia que os jornalistas, os escritores e os professoresestavam isentos do imposto de renda, todavia reconhece que essas decisões nãoeram unânimes.

O Ministro Castro Nunes já proferira voto negando a isenção do pagamentode imposto de renda sobre os vencimentos de professor, escritor e jornalista.Sustentava que o dispositivo do art. 113 precisava ser entendido em harmoniacom o disposto no art. 6º, I, c, que sujeitava ao imposto de renda “os proveitos dequalquer natureza”, com a exceção única, aí prevista, referente à renda cedularde imóveis.

188 Data da decisão: 6 de junho de 1946. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo Camargo.

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Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, afirma que, combinados os dois dispositivos constitucionais,conclui-se que os impostos diretos de que estarão isentos os escritores, jornalistase professores são somente os que condizem com o exercício dessas profissõesou atividades, e não os que não recaem sobre o exercício, estorvando-o ouonerando-o, mas sobre os proventos auferidos, que, como quaisquer outros,comportam a tributação. Adverte:

De outro modo chega-se a um verdadeiro privilégio, sem justificaçãopossível, sobretudo em se tratando de vencimentos oficiais, que suportam,mesmo os da magistratura e os dos oficiais militares, aquela tributação.

O Ministro chega a esse entendimento pela análise da própria emenda queinseriu o dispositivo 113, n. 36, no Texto Constitucional, que, como cláusula deisenção, continha, na redação do projeto, a expressão “salvo o de renda”. Talexpressão demonstrava que houve o intento na aprovação da assembléiaconstituinte nesse sentido, e sua retirada significava que se excluíra o imposto derenda de tais hipóteses, uma vez que era desnecessário tal exceção figurarexpressamente no Texto Constitucional, pois, proibindo a incidência de tributaçãodiretamente sobre o exercício das referidas atividades, não restou proibida aincidência de imposto sobre os proventos auferidos. Sustenta:

O que domina a interpretação é a vontade da lei, o interesse público queela terá versado, a combinação das suas diferentes partes de modo a encontraruma solução de harmonia e que exclua exceções que repugnam ao princípio daigualdade de todos perante as leis.

Para Castro Nunes, no caso, a interpretação constitucional se movimentaem âmbito não limitado, pela vontade mais ou menos presumida por meio daelaboração parlamentar. Em seu voto, ele dá provimento a ambos os recursospara julgar procedente o executivo.

BITRIBUTAÇÃO DE IMPOSTO MUNICIPAL

No Recurso Extraordinário n. 3.946/SP189, verificou-se a possibilidade daocorrência de bitributação na hipótese em que os impostos são todos da órbitamunicipal. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes menciona que o recorrentealega a inconstitucionalidade da cobrança do imposto, visto que se trata derepetição, ou melhor, pluritributação, pois se encontram envolvidas quatromodalidades tributárias sobre o funcionamento do cinema. Ressalta que:

189 Data da decisão: 12 de novembro de 1941. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

Tem-se entendido entre nós, na lição dos expositores e da jurisprudênciadeste Supremo Tribunal, que bitributação só existe no caso em que se defrontemdois impostos, um federal e outro estadual, oriundos ambos da competênciaconcorrente. É necessário que na hipótese concorram estes três requisitos: a)pluralidade de agentes; b) identidade de tributos; c) incidência sobre o mesmocontribuinte.

A bitributação só ocorre quando se está diante de dois impostos derivadosda competência comum, sendo, por exemplo, um federal e outro estadual,portanto é necessária pluralidade de agentes. De modo que, se a repetição doimposto ocorre na esfera tributária da União, do estado ou do município, não sepode falar em bitributação. Na Constituição de 1934, a proibição de bitributaçãoestava presente nas Disposições Preliminares. Castro Nunes, referindo-se aoProfessor Alcântara Machado, justifica que tal disposição tinha por intuitosolucionar os possíveis conflitos de competência entre as autoridades federais eas locais em matéria tributária.

A Constituição de 1937 reproduziu tal entendimento no art. 24, com aalteração referente à supressão da possibilidade de recorrer à Justiça. Dispõe oreferido dispositivo constitucional:

Art. 24. Os Estados poderão criar outros impostos. É vedada, entretanto, abitributação, prevalecendo o imposto decretado pela União, quando a competênciafor concorrente. É da competência do Conselho Federal, por iniciativa própria oumediante representação do contribuinte, declarar a existência da bitributação,suspendendo a cobrança do tributo estadual.

O Ministro sustenta que:

Sem dúvida o fenômeno da bitributação ou dupla imposição, como é maisconhecido na exposição doutrinária, pode ocorrer em qualquer setor, no federalcomo no estadual ou municipal, uma vez que a repetição do mesmo imposto sobreo mesmo objeto, matéria ou fundo tributável é inerente a todo poder tributante.Não é peculiar a competência comum ou concorrente nem aos Estados de tipofederativo. Ocorre por igual nos Estados unitários.

Afirma, ainda, que a questão reside em saber se existe bitributaçãoproibida em face do nosso direito constitucional, fora da hipótese prevista no art.24. Adverte, no entanto, que não é essa a hipótese dos autos, pois não estão emjogo dois impostos — um federal e outro local —, mas sim impostos municipais.

Os impostos contra os quais reclama o recorrente são todos municipais. Oque a municipalidade de Campinas fez foi desdobrar o imposto sobre diversõespúblicas, que nos municípios pertence por cláusula constitucional, em modalida-des diversas, majorando-o em função do preço do ingresso cobrado pelo cinema. Éo chamado imposto de agravo, mera majoração dependente da majoração do preço.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro profere voto concluindo que não há bitributação, não há bis inidem, por se tratar de impostos que se encontram na área municipal, portantojulga improcedente a alegação de inconstitucionalidade. Esse foi o entendimentoprevalecente no acórdão do Supremo Tribunal Federal.

No Recurso extraordinário n. 3.666/SE190, enfrentou-se a mesma questão: apossibilidade de ocorrência da bitributação de impostos municipais. O MinistroCastro Nunes cita o Recurso Extraordinário n. 3.946/SP, em que figurou comorelator e em que se reconheceu proibida a bitributação, com assento, precisa-mente, no art. 24 da Constituição de 1937.

A bitributação supõe, segundo ele, a concorrência de imposto federal comimposto estadual, não se verificando tal hipótese quando, como naquele caso e,por igual, no caso presente, os impostos ditos repetidos são ambos da órbitamunicipal, restando excluída, portanto, a possibilidade de bitributação.

O Ministro Castro Nunes vota pela constitucionalidade e nega provi-mento ao recurso. O Supremo Tribunal Federal também nega provimento porunanimidade.

TRIBUTAÇÃO DE RENDA PELO PRÓPRIO ESTADO

Na Apelação Cível n. 7.530/RJ191, analisou-se a possibilidade de o Estadotributar a renda que ele próprio paga, no tocante ao imposto de renda sobre jurosde apólices. Em seu voto, o Ministro Castro Nunes relembra o entendimento, jámanifestado quando era juiz federal, no sentido de que a tributação sobre juros deapólices não está proibida em lei, portanto não é possível presumir sua isenção.

Adverte o Ministro que não podia, na ocasião, insurgir-se contra a jurispru-dência dominante, mas deixou ressalvado o seu entendimento. Argumenta que aquestão de maior relevância no caso reside quando a tributabilidade dos proventospagos pelo próprio Estado provém do contrato que resulta do mútuo, não podendo,assim, o fisco isentar-se do ônus da sua obrigação.

No entanto, defende o ponto de vista de que tal circunstância não podeembaraçar a ação legislativa fiscal, de modo que o ente estatal pode estarvinculado ao contribuinte por contrato e, mesmo assim, tributar a renda que elepróprio paga. Menciona como exemplo a locação de prédios: o Estado instalaserviços em prédio de aluguel, paga a quantia para o locador e, depois, faz recairo imposto cedular sobre essa renda.

190 Data da decisão: 26 de janeiro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.191 Data da decisão: 28 de setembro de 1942. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro Laudo de Camargo.

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Ministro Castro Nunes

O Ministro reconhece que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federalfirmou-se, uniformemente, no sentido de admitir a isenção. Com base nesseaspecto, o advogado afirma que existe coisa julgada no sentido da isenção,composta de acórdãos seguidos, e que os que constam dos autos ou em situaçãoidêntica, são a mesma pessoa, possuidores de apólices.

Peço vênia para discordar. A identidade jurídica não consiste nisso. Semdúvida, a cadum conditio personarum define-se pela identidade jurídica; ela,porém, não se verifica no presente caso. Ela se verifica nas relações oriundas deobrigações solidárias; nas relações entre mandante e mandatário; no caso dosucessor, que pode invocar a coisa julgada na demanda como o de cujus; no casode sucessão singular, como, por exemplo, o comprador, que pode invocar a coisajulgada em favor do vendedor. Essas é que são as condições jurídicas idênticas,embora as pessoas físicas sejam diferentes. Não, porém, no caso dos autos. Neste,há, apenas, uma situação jurídica semelhante. Não pode haver coisa julgada. Sãomeros precedentes judiciários. A identidade é apenas da relação jurídica.

A posição do Ministro é no sentido de admitir a tributabilidade dos juros dasapólices, no entanto reconhece que o Decreto-Lei n.1.168 não tem cláusularetroativa.

Por conseguinte, se eu não tivesse opinião anteriormente emitida — econvictamente emitida — no sentido da tributabilidade dos juros das apólices,não daria pela retroação do decreto, porquanto nele não existe cláusula expressanesse sentido. Conforme foi muito bem lembrado da tribuna e consta de acórdãounânime de que fui relator, é princípio pacífico na doutrina que a cláusularetroativa esteja expressa, porque não existe retroativade tácita.

O Ministro Castro Nunes dá provimento à apelação, e o Supremo TribunalFederal profere acórdão no mesmo sentido.

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Ministro Castro Nunes

20. JUSTIÇA ELEITORAL

CANCELAMENTO DO REGISTRO DO PARTIDO COMUNISTA

O voto proferido pelo Ministro Castro Nunes no Habeas Corpus n.29.763192, em relação ao cancelamento do registro do Partido Comunista, aofechamento da respectiva sede e à cassação dos mandatos de seus representantesno Congresso Nacional, foi certamente um marco de relevante repercussão noSupremo Tribunal Federal. A cassação do registro do Partido Comunista — abran-gendo o partido e a associação, considerando-os ilícitos e nocivos à coletividade —pelo Superior Tribunal Eleitoral se baseou no § 13 do art. 141 da Constituição:

Art. 141. (...) § 13. É vedada a organização, o registro ou o funcionamentode qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie oregime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dosdireitos fundamentais do homem.

O Partido Comunista impetrou o Habeas Corpus n. 29.763 em favor deLuís Carlos Prestes e de outros dirigentes do Partido, alegando, precipuamente,ter havido cerceamento em seu direito de locomoção, devido à vedação do seulivre ingresso na sede do Partido e em comitês locais, para exercer atosadministrativos, uma vez que se encontravam ocupados pela polícia, por ordemdo Ministro da Justiça. Note-se que a polícia se apoderou das chaves da sede eapropriou-se das máquinas de escrever, dos arquivos, dos livros, enfim, domaterial lá existente, mesmo antes da publicação do acórdão do Tribunal SuperiorEleitoral que cassara o registro do Partido Comunista.

Defendeu-se também que a cassação do registro partidário não extinguiaa sociedade civil — visto que o Partido Comunista se organizara como sociedadecivil devidamente registrada no cartório competente —, pois se referia, tão-somente, à atividade política do mencionado Partido, conforme se vislumbra norelatório do Ministro Castro Nunes:

[O habeas corpus foi requerido em nome do Senador Luís Carlos Prestes edos deputados Maurício Grabois e João Amazonas, sob as seguintes alegações:]1º) que estavão impedidos de entrar e sair da sede central de comitês locais domesmo Partido pela Polícia, de ordem do Sr. Ministro da Justiça; 2º) que a polícia,ainda antes de publicado o acórdão do Superior Tribunal Eleitoral que cassou oregistro do Partido, invadiu-lhe as sedes, expulsando os funcionários que lá seachavam (...); 5º) que o julgado eleitoral, ainda sujeito aos recursos previstos emlei, não se estende à associação civil, porque restrito ao partido político.

192 Data da decisão: 28 de maio de 1947. Relator, Ministro Castro Nunes; Presidente,Ministro José Linhares.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Castro Nunes, relator do processo, dividiu seu voto em doisaspectos principais: o primeiro relativo à competência da Justiça Eleitoral nascausas que digam respeito a cancelamento de partido político, e o segundorelativo ao cabimento de habeas corpus para garantir o direito do impetrante.

O relator inicia seu voto indagando: a Justiça Eleitoral tem competência paraanalisar as causas que sobrevenham ao cancelamento de registro de partido ou “im-prorrogável se deverá entender tal jurisdição para as questões derivadas ou comple-mentares que não sejam de natureza propriamente eleitoral?”. Complementa:

Posta a questão no plano das disposições processuais, tais causas,oriundas ou acessórias da principal, seriam da competência eleitoral. A questãode saber se o julgado eleitoral abrange a sociedade civil que servia de suporte aoPartido ou se, nos termos do julgado, está proibido o funcionamento de ambas asentidades, e bem assim outras controvérsias que possivelmente hajam de surgirsob a forma de demandas, ainda que alheias à matéria propriamente eleitoral, masvinculadas de certo modo à decisão, estaria resolvida no plano comum poraplicação das regras conhecidas da continentia causarum.193

O Ministro realça que a competência, por conexão, se baseia precipua-mente nas vantagens da economia processual e na conveniência de prevenirdecisões contraditórias, daí a vantagem de cumular no juízo da causa principaltodas as ações que com ela mantenham vínculos de dependência ou de conexão.Destaca-se, nesse cenário, a regra da competência para a execução, que cabeao mesmo juiz da ação.

Importante lembrar que a Justiça Eleitoral já havia reivindicado para si aexecução das suas decisões. Contudo a Constituição foi omissa no tocante a essaatribuição, entretanto, ao instituir como Justiça autônoma aquela jurisdição, nãoseria possível, segundo o Ministro Castro Nunes, admiti-la como semiplena,mutilada no que é essencial à eficácia da jurisdição. Portanto, de acordo com essalinha de raciocínio, o fato de a execução das próprias decisões ser de competênciada Justiça Eleitoral, por aplicação do princípio, não contraria, nem explícita nemimplicitamente, a Constituição, visto que a execução de seus julgados é inerente, éintrínseca às jurisdições regulares. Preleciona o Ministro Castro Nunes que:

A Justiça Eleitoral, como toda justiça especial, tem somente as atribuiçõesespecificadas, não comportando extensão ou ampliação. Sua competência selimita à matéria eleitoral, locução de seu natural restrito, a ser entendida nosentido da aplicação das leis eleitorais nos atos administrativos a seu cargo e nasolução das controvérsias surgidas dessa aplicação.

193 Se duas infrações guardam entre si alguma relação de conexão ou continência entreelas, para evitar que haja decisões desiguais — díspares —, é melhor que sejam processa-das e julgadas conjuntamente, e por um único juiz, que seria competente à luz dos critériosnormais.

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Ministro Castro Nunes

A Justiça Eleitoral, na busca de soluções para seus julgados, aplica osCódigos comuns, o processual civil e o criminal, como remédios adequados narepressão dos crimes relacionados à sua jurisdição. Todavia, assevera CastroNunes que tal possibilidade só é possível se decorrer do previsto na Lei Maior,quando lhe confere conhecer de habeas corpus, bem como de mandados desegurança, a fim de julgar, de maneira correta e por intermédio de todos osrecursos necessários, as infrações eleitorais.

Para o Ministro, quando a Justiça Eleitoral tem de decidir sobre a naciona-lidade de alguém que pretende se alistar como eleitor ou sobre a inscrição decandidato, analisa matérias que se encontram na alçada da Justiça comum, contudotrata-se de matéria eleitoral, porque incide no julgamento dos casos eleitorais desua competência. Ele pondera que as causas conexas constituem-se em novasdemandas, mesmo que provenientes ou conseqüentes do julgado.

Relevante é citar que a própria Constituição admite a continência quandoatribui à Justiça Eleitoral competência para conhecer dos crimes comunsconexos com as infrações eleitorais, mas tal raciocínio deve ser interpretadoexclusivamente como exceção. O Ministro esclarece:

Se a Constituição estabelece que essa justiça se limita à matéria eleitoral, ese ela mesma lhe atribui, em matéria penal, o conhecimento dos crimes comunsconexos com os eleitorais, o que daí se deve concluir é que traçou uma regra eabriu uma exceção, não sendo lícito ao intérprete transformar em regra a exceção.

Discorda, portanto, da idéia de dilatar o âmbito da matéria eleitoral além doexpresso na Constituição, só por aplicação do disposto no art. 138 do Código deProcesso, a fim de admitir a competência eleitoral para as causas conexas. Ofundamento para tanto seria, então, a legislação infraconstitucional e não o TextoConstitucional.

Concluindo sua indagação inicial em relação à competência do TribunalSuperior Eleitoral, afirma que, se a matéria guardar algum vínculo com tal órgão,cabe a ele, como Ministro, não conhecer do pedido, uma vez que se encontra soba competência do Tribunal Superior Eleitoral. No entanto, se se verificar que amatéria não é eleitoral, faz-se necessário conhecer do pedido, pois já foi esgotadaa jurisdição eleitoral no seu pronunciamento e não se trata de ato de meraexecução do julgado, mas sim de demanda, ainda que oriunda ou conseqüente.Por essa razão, conhece do habeas corpus.

Interessante é lembrar que Castro Nunes, além de toda colaboraçãoproporcionada ao Direito e à delimitação da competência da Justiça Eleitoral,também foi grande expoente na definição e na diferenciação do instituto dohabeas corpus e do mandado de segurança. Em seu voto, afirma que “ahipótese não é de habeas corpus, mas de mandado de segurança”.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Castro Nunes diz que as origens do mandado de segurançaestão diretamente relacionadas com o eterno esforço de adaptação realizadopela jurisprudência, sob a égide do Supremo Tribunal Federal, em torno dohabeas corpus, para não deixar sem remédio certas situações jurídicas que nãoencontravam, no quadro das diversas ações, a proteção adequada.

O mandado de segurança representa, portanto, o coroamento dessaevolução interrompida, em 1926, pela Reforma Constitucional, que, reduzindo oâmbito do habeas corpus, não lhe deu o sucedâneo que, mais tarde, iniciativasparlamentares e o brilhante debate que se lhes seguiu não lograram fazer triunfar.

A garantia do habeas corpus, no direito pátrio, possui conceito legal efunção que delimitam o seu emprego, circunscrevendo-o à proteção da liberdadepessoal, de modo que evite ou ponha termo à violência ou à coação infligida aoindivíduo ilegalmente ou por abuso de poder.

O Ministro Castro Nunes enfatiza que o incremento da vida judiciária e anecessidade de solução rápida de certas situações de anormalidade, apreciáveisde plano pelos tribunais e incabíveis no remédio de habeas corpus, passaram aexigir a criação de um instituto processual capaz de reintegrar o direito violado,qual seja, o mandado de segurança. Cumpre também dizer que Castro Nunespossui obra notória com o título Do Mandado de Segurança, em que trata darecepção do mandado de segurança pelo Poder Judiciário:

Os tribunais, sem excetuar o Supremo, receberam com grandes reservas onovo instituto. Para isso terão concorrido circunstâncias várias: em primeiro lugar,a novidade do remédio, criação nossa, surgido inopinadamente em nosso meiojurídico sem estudos preparatórios sobre a sua índole ou natureza, em termos quepermitissem situá-lo no quadro das ações com o seu caráter injuncional oumonitório até então desconhecido fora dos interditos e do habeas corpus, e nissoconsistia a maior dificuldade de o compreender e lhe demarcar o campo deaplicação; em segundo lugar, o próprio texto constitucional no seu enunciado, queconvieram em entender muito ao pé da letra, tornando quase impossível aconcessão a ser admitida somente quando claro, transparente, cristalino o direitoreclamado, pois só assim seria certo e incontestável, perdendo-se de vista quedireito ajuizado é por definição direito litigioso, que precisa ser desembaraçado docipoal das impugnações sofísticas ou desarrazoadas para ser proclamado; emterceiro, a lei do menor esforço, a tendência para fugir às questões difíceis, arredá-las, protraí-las, remetendo o pleiteante para as vias ordinárias, e o mandado desegurança se admitido em medida mais larga, ainda que sem sair do limiteintransponível das suas possibilidades como via processual, obrigaria a decidir, depronto, questões às vezes de alta indagação jurídica.194

194 NUNES, José de Castro. Do mandado de segurança e de outros meios de defesacontra atos do Poder Público. 8. ed., p. 10.

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Ministro Castro Nunes

Note-se que o Texto Constitucional de 1946 definia o mandado desegurança por exclusão dos casos em que cabia o habeas corpus. Assevera oMinistro que, “para proteger direito líquido e certo não-amparado por habeascorpus, conceder-se-á mandado de segurança”. Em sua obra Do mandado desegurança e de outros meios de defesa contra atos do Poder Público, afirmaque “a verificação em concreto dos casos em que caiba o habeas corpus,excluindo o mandado de segurança ou vice-versa, e, ainda, daqueles em quesejam adequados ambos, é muitas vezes difícil.”

A Constituição de 1946 proclamava que não caberia mandado de segurançaquando coubesse habeas corpus. A princípio, tal regra parece ser de fácil aplicação,eis que em todos os casos em que restar comprometida a liberdade de locomoção,ingressar-se-á com o habeas corpus. Na prática, entretanto, o Ministro CastroNunes afirma que o critério falha, pois, dependendo da argúcia do juiz, a distinção dashipóteses pode guiar por um perfeito conhecimento dos dois institutos.

No voto proferido no citado Habeas Corpus, o Ministro Castro Nunesafirma que o habeas corpus protege a liberdade de locomoção e esgota-se naproteção dessa liberdade e, no caso em tela, “o que se reclama não é somente odireito de entrar e sair da sede da agremiação partidária, mas de exercer atos deadministração da sociedade civil”.

A livre locomoção, segundo o Ministro Castro Nunes, sobre a qual versa ohabeas corpus, se define pelo direito de ir e vir. É liberdade elementar ouprimária que, por intermédio de tal remédio jurídico, se assegura ao indivíduo. Oobjetivo básico é a tutela da liberdade física, no sentido de ir, ficar e vir, ou daliberdade de locomoção, ou seja, uma garantia constitucional outorgada em favorde quem sofre ou está na iminência de sofrer coação, ameaça ou violência deconstrangimento em sua liberdade de locomoção. Pondera, no entanto, que:

Se, porém, ele precisa mover-se para desempenhar um emprego que lhetiraram, ou para exercer dada atividade econômica, ou para que cesse umobstáculo criado a essa atividade, visando-lo compelir a pagar certo imposto quetem por ilegal, o direito que domina o quadro relega para um segundo plano a livrelocomoção, que entrará na proteção assegurada como liberdade-condição para oexercício postulado, será um direito não do indivíduo propriamente, mas dofuncionário, do industrial, do comerciante, do contribuinte.

Quando se está diante de situação que envolve o direito ao exercício de fun-ção, profissão ou atividade lícita, não se encontra em voga a liberdade de locomoção,mas sim direito líquido e certo que necessita de amparo judicial. O meio constitucionalposto à disposição para a proteção de direito individual certo — segundo o MinistroCastro Nunes — é o mandado de segurança, que tem como finalidade alcançar umasérie de situações não contempladas pelo habeas corpus. Enumera, detidamente,em seu voto, diversas situações de cabimento do mandado de segurança:

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Memória Jurisprudencial

A liberdade individual compreende várias modalidades. É a segurança in-dividual com as garantias pressupostas constitucionalmente a bem da defesa: aliberdade de locomoção, a que servem essas garantias de índole processual eparticularmente o habeas corpus; a liberdade corpórea, que consiste na integri-dade física do indivíduo e no direito de não ser molestado no seu corpo, moda-lidade que, embora não figure no texto, deu origem àquele writ, em cuja denominaçãosubsiste e, se violada, com ou sem detenção, não encontraria na Constituiçãooutro remédio senão o habeas corpus; a inviolabilidade do domicílio, definidoeste como habitat do indivíduo e de sua família, com exclusão dos estabeleci-mentos abertos ao público, inviolabilidade que é um prolongamento da liberdadede locomoção sob a forma de estar em sua casa sem ser molestado pela intromis-são arbitrária da autoridade, fora das ressalvas expressas, configurando-se aindaaí uma hipótese que seria de habeas corpus; a liberdade de associação, que setraduz no direito assegurado aos indivíduos de porem em comum, no interesse deum fim político (e tais são os partidos), religioso, recreativo, beneficente, etc., osseus bens, atividades, trabalho, etc., objetivo que transcende do habeas corpus,que seria inidôneo para assegurar o direito de associar-se ou de ser conservadono estado de associação; a liberdade de ensino, a de imprensa, etc.; as liberdadeseconômicas, que se definem pela liberdade de trabalho, de indústria e comércio,pressupondo, no paciente da restrição impugnada, o trabalhador, o industrial, ocomerciante. São hipóteses de mandado de segurança.

O pensamento do Ministro Castro Nunes, já exarado em obra específicasobre o tema, ao delimitar com profundidade o âmbito de cabimento de cada umdos institutos, é no sentido de que o habeas corpus se dará sempre que oindivíduo sofra ou esteja ameaçado de sofrer violência ou coação na sualiberdade de ir, vir e ficar. Já o mandado de segurança supõe a certeza e a liquidezdo direito reclamado, desde que não se trate de liberdade de locomoção. Emtrecho de sua obra, ele escreve que:

O ponto de contato entre os dois institutos, em face do texto constitucional,está somente na argüição que se define em idênticos termos — coação ou violênciapor ilegalidade ou abuso de poder. E, também, em termos razoáveis por aplicação decritérios admitidos no julgamento do habeas corpus.

De acordo com tais argumentos, indefere o pedido de habeas corpussolicitado pelo Partido Comunista. O Supremo Tribunal Federal negou a ordempor unanimidade.

Cumpre acrescentar que, em face da decisão do Tribunal SuperiorEleitoral que decretou o cancelamento do registro do Partido Comunista, esteinterpôs recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (n. 12.639/DF), queteve como relator o Ministro Laudo de Camargo. O julgamento foi presidido peloMinistro Castro Nunes na sessão de 14 de abril de 1948, na qual o Tribunaldecidiu pelo não-conhecimento do recurso.

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Ministro Castro Nunes

POSSIBILIDADE DE MAGISTRADO EM DISPONIBILIDADE INTE-GRAR A JUSTIÇA ELEITORAL

No Mandado de Segurança n. 748/DF195, tratou-se da possibilidade demagistrado em disponibilidade fazer parte da Justiça Eleitoral, que só poderia serexercida por juiz que tivesse também a função judiciária. O Ministro CastroNunes foi relator do referido writ. A dúvida foi suscitada no que se refere àpossibilidade de desembargador, posto em disponibilidade em sua função própria,poder continuar no desempenho da função eleitoral. Formulou-se consulta aoSuperior Tribunal Eleitoral, que respondeu de forma negativa (Resolução n. 483,de 29 de dezembro de 1945).

Em face desse ato, foi impetrado mandado de segurança com vistas agarantir o direito do magistrado de continuar no exercício da função eleitoral. Oponto central residia no fato de que a Lei eleitoral não exigia expressamente oexercício da função de desembargador, mas tão-somente referia-se a desem-bargador.

O primeiro ponto enfrentado pelo Ministro Castro Nunes dizia respeito aocabimento de mandado de segurança em face de ato da Justiça Eleitoral, eis que oCódigo de Processo admitia o writ em face de ato de qualquer autoridade, excetoos atos praticados pelo presidente da República, pelos ministros de Estado, pelosgovernadores e pelos interventores. Somente estes, a priori, estavam fora do âm-bito do mandado de segurança. Assevera que: “deixa facultada a via processualpara atacar os atos de outras autoridades, que não sejam aquelas, restrições únicasque não podem ser ampliadas por interpretação.” Acrescenta ainda:

Também não seria possível dizer que os atos ou resoluções da Justiça Elei-toral sejam atos judiciais, porque a denominação Justiça Eleitoral, de uso corrente,não corresponde à índole da instituição, que é meramente administrativa.

O Ministro esclarece que a Lei eleitoral — Decreto-Lei n. 7.586, de 28de maio de 1945 —, que dispõe sobre o alistamento, o processamento e a datadas eleições, também criou os órgãos previstos na Emenda Constitucional n. 9,com vistas a sua execução, apuração das eleições e proclamação do resultadodos eleitos. Para ele, esses órgãos ganharam feição judicial em razão da pre-sença de magistrados em sua composição e por desempenharem os serviçoseleitorais.

Adverte, ainda, que a locução “Justiça Eleitoral” não se encontra expressanem na lei nem na Emenda Constitucional n. 9. Essa expressão nasceu do uso

195 Data da decisão: 31 de junho de 1946. Relator e Presidente, Ministro Castro Nunes.

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Memória Jurisprudencial

corrente, em virtude da composição eminentemente judiciária de seus aparelhose também pelo emprego durante a Constituição de 1934, sob a qual tinha caráterde organismo judiciário. No entanto, pondera:

O que existe atualmente é uma instituição similar na sua apresentação exte-rior e nas suas atribuições administrativas. Faltaram-lhe, porém, as atribuições judi-ciárias que tinha a anterior, e isso mesmo se vê da sua competência expressa na leipara processar e julgar as infrações eleitorais e, por igual, como, ainda há pouco, foipor ela própria acertadamente reconhecida, para assegurar a um partido políticoprovidências reclamadas contra atos de polícia, porquanto tais garantias, possivel-mente o habeas corpus e o mandado de segurança, são da alçada do judiciário.

Para o Ministro Castro Nunes, não há nenhuma objeção a se tratar de atojudicial. Vale ressaltar que sua posição é no sentido de entender cabível omandado de segurança em face de ato judicial, mas esse não era o entendimentoda maioria dos Ministros que integravam o Supremo Tribunal Federal.

No caso em análise, o Procurador-Geral da República levantou a preliminarconsistente no fato de que caberia ao próprio tribunal que praticou o ato conhecerdo mandado de segurança e examinar sua procedência. Note-se que a lei vigenteà época assegurava ao próprio tribunal coator a competência para decidir domandado de segurança em face de ato administrativo da órbita do tribunal.

No entanto, o Ministro Castro Nunes questiona — em virtude de se tratar,no caso, da Justiça Eleitoral, que tem caráter especial — o fato de se estarrealmente diante de uma “Justiça”. Posto que ela não é organismo do Judiciário,integrada nesse Poder, não pode julgar mandado de segurança e habeas corpus.Salienta, ainda, o fato de a Lei eleitoral falar em “infrações eleitorais” eestabelecer que serão de competência da Justiça comum. Não há qualquerreferência ao habeas corpus e ao mandado de segurança. Nesse sentido:

Não me parece, data venia, possamos admitir que a Justiça Eleitoral julguemandados de segurança, ela que não é organismo judiciário, que não faz parte domecanismo judiciário do País. Competência para decidir mandados de segurançaimportaria, necessariamente, em competência para, no caso de indenização,decidir da ação reparatória. Toda essa matéria — mandado de segurança, açãoreparatória embora envolvendo matéria eleitoral, cabe ao judiciário comum. A atualJustiça Eleitoral não pode conhecer de mandado de segurança, como não podeconhecer de habeas corpus, ou de qualquer outra medida de caráter judicial.Mandado de segurança é remédio judicial regulado no Código de Processo e quepode levar até à ação reparatoria.

Para o Ministro, a Justiça Eleitoral não pode conhecer nem de habeascorpus nem de mandado de segurança ou de qualquer outra medida de caráterjudicial.

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Ministro Castro Nunes

Não me parece possível que um tribunal de caráter sui generis, que selimita ao processamento de eleições, possa conhecer de mandado de segurança,possa conhecer de matéria nitidamente judicial, de índole judiciária, que só tribunaisjudiciais podem decidir. A Justiça Eleitoral, não obstante o seu relevo, não passade um organismo administrativo destinado à execução da lei eleitoral, embora sejaconstituída predominantemente de magistrados de carreira, o que não basta paraa transformá-la em aparelho judiciário.

Não adere, portanto, à liminar suscitada pelo Procurador-Geral daRepública. Enfrenta outra questão relativa à competência originária para julgar omandado de segurança em face da resolução do Superior Tribunal Eleitoral, se édo Supremo Tribunal Federal ou do juiz dos feitos em primeiro turno. Levanta ofato de que o Supremo Tribunal Federal tem admitido somente em casosexcepcionais a competência originária por derivação de competência de recursonas causas da União, e elucida que:

Em se tratando, porém, de atos da Justiça Eleitoral, posto que emanadosdo seu órgão culminante, não encontra base constitucional para idêntica constru-ção. É certo que o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral se afigura uma ala desteSupremo Tribunal, pela presidência a ambos comum e pela presença na sua com-posição de dois ministros desta Casa. Mas bastará o relevo da instituição ou asua assemelhação fisionômica para legitimar a extensão da competência originá-ria que é excepcional? Parece-me que não.

O Ministro Castro Nunes fundamenta sua posição citando precedente doSupremo Tribunal Federal que versava sobre mandado de segurança impetradopor funcionário do Tribunal de Contas da União em face de ato deste último — navigência da Constituição de 1934 —, que alegava ter sido preterido em umapromoção. No caso, o pedido aforado na primeira instância federal veio porrecurso ao Supremo Tribunal Federal, ou seja, não de modo originário. Alertapara o fato de que “a ampliação da competência originária além do expresso nãodeve ser admitida em linha de princípio; só por construção constitucionalplenamente justificada.”

Por essa razão, o voto do Ministro Castro Nunes é pelo não-conhecimentodo Mandado de Segurança. No entanto, cumpre salientar que, em sua obraTeoria e prática do Poder Judiciário, assevera que,

se a autoridade federal em causa é o próprio Tribunal ad quem, absurdo seriasujeitar o seu ato, ou de seu presidente, ou de qualquer dos seus ministros, aoexame da primeira instância, contra todas as regras de hierarquia e do bomsenso.196

196 NUNES, José de Castro. Teoria e prática do Poder Judiciário. p. 256.

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Memória Jurisprudencial

O Ministro Annibal Freire, em seu voto, diverge do Ministro Castro Nunes,para conhecer o recurso, e manifesta-se no mesmo sentido que o Supremo TribunalFederal, que, no exercício de sua tarefa de construção jurisprudencial, temampliado sua competência em vários julgados. Cita como exemplo a admissão derecurso extraordinário em face das decisões da Justiça do Trabalho, comautonomia definida pela Constituição, sob a alegação de ofensa à lei federal quandoo mesmo recurso, consoante a Constituição, só pode ser interposto em face dedecisões da Justiça local. Pondera que o Supremo Tribunal Federal:

Adotou a reclamação, de que as leis não cogitam, para obviar aos incon-venientes de ficarem sem solução casos excepcionais, atendendo a imperiosodever de justiça. Não é demais que esse critério se estende à hipótese atual, emque está em jogo a autoridade do Supremo Tribunal Eleitoral, presidido obrigato-riamente pelo presidente do Supremo Tribunal Federal e formado em sua maioriaabsoluta por elementos da magistratura superior. O novo estatuto em elaboraçãoe as leis complementares resolverão definitivamente o assunto, mas nessa fase detransição, prefiro essa orientação.,

Os demais Ministros seguiram o voto do Ministro Annibal Freire, mas oMinistro Castro Nunes manteve seu voto, a despeito de estar de acordo comalgumas das considerações do colega, como a opinião diversas vezes manifestadapor ele sobre a matéria eleitoral e a necessidade de subtraí-la da AdministraçãoPública. Relembra, ainda, que a criação da Justiça Eleitoral deu-se em 1934, comcaráter judiciário, mas a Constituição de 1937 foi omissa quanto a essa Justiça.

A Emenda Constitucional n. 9, convocando o eleitor, ou prevendo lei que oconvocasse, e ordenando que se procedesse à arregimentação partidária, limitou-se a dizer que a lei prevista em seu art. 4º estabeleceria a Justiça competentepara o processo eleitoral. Enfatiza o Ministro que:

Nada disse, porém, acerca da índole judicial desses órgãos, nem institiuuma justiça propriamente dita, limitou-se a prever órgãos que a lei teria de amoldarpara o desempenho das funções de alistamento e processamento das eleições.Tais órgãos tiveram, portanto, a feição de um organismo administrativo, emboracom grande relevo e a que se deu, pela tradição e prática da Constituição de 1934,o nome de “Justiça Eleitoral”, denominação que se tornou corrente.

Reconhece, ainda, que a exposição de motivos da Lei faz referência aessa expressão, mas não o corpo da Lei, alertando que não basta a denominaçãose esta não corresponde à instituição. Atenta, ainda, para o fato de, até omomento, a Justiça Eleitoral não se constituir em organismo judiciário, mas simem organismo administrativo, tanto que a Presidência da Justiça Eleitoral éexercida pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal. Ensina que:

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Ministro Castro Nunes

É uma presidência complementar. Não é a presidência do Supremo Tribunal,função esta que acarretaria necessariamente a competência originária desteTribunal. Permitiu-se, ao arrepio do art. 92 da Constituição, que magistradosaceitassem a função eleitoral. Esta função, sendo função administrativa, na vi-gência do art. 92, antes emendado pela Lei Constitucional n. 11, seria discutívelque pudessem os juízes aceitá-la; aceitaram-nas, porém, e não houve reparos aesse respeito; e não houve reparo porque não havia interesse em levantar aquestão, dado que a outorga dessas funções atendeu aos anseios do momentono interesse da arregimentação partidária do país e da verdade eleitoral. De moque passou inteiramente sem qualquer censura, essa violação do art. 92; cujomerecimento teria de depender do exame da natureza do serviço eleitoral, dasoi-disant Justiça Eleitoral, indagação que só agora está posta na tela judiciária.

Para o Ministro Castro Nunes, o Presidente do Supremo Tribunal Federal,no exercício de suas funções, tem seus atos sob o controle imediato desteTribunal, mas, se estiver no exercício de função complementar — eleitoral —,“que se lhe deu e ele pôde aceitar, não se impõe a competência originária”.

Em síntese, o Ministro entende que os atos praticados pelo Presidente doSupremo Tribunal Federal, enquanto Presidente da Justiça Eleitoral, bem comoos atos da própria Justiça Eleitoral só podem chegar ao conhecimento doSupremo Tribunal Federal por meio de recurso, pois, como a competênciaoriginária não está expressa, carece de fundamentação constitucional para serampliada. Entende ainda que, em se tratando de crimes políticos,

os habeas corpus que forem motivados por algum ato da Justiça Eleitoral nãopoderão ser aforados nessa Justiça, terão de o ser perante os Juízes de primeirainstância, com recurso para os Tribunais de Apelação e, portanto, sem acompetência necessária do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro Castro Nunes restou vencido e teve de apreciar o mérito doMandado de Segurança, consistente em verificar se o juiz em disponibilidadepoderia ser juiz eleitoral, se a disponibilidade importaria na cassação de suafunção eleitoral. Declarou ele que a Lei eleitoral supõe, em regra, a funçãoprópria do juiz, quando o designa para exercer as funções eleitorais, e acircunstância de a lei não dizer “desembargador em exercício” não tem o menoralcance.

Todavia, analisando a legislação pertinente, observa que o art. 92 daConstituição de 37 limitou-se apenas a mencionar que os juízes, mesmo emdisponibilidade, não poderiam exercer qualquer outra função pública. Dispõe oreferido dispositivo constitucional:

Art. 92. Os juízes, ainda que em disponibilidade, não podem exercerqualquer outra função pública. A violação deste preceito importa a perda docargo judiciário e de todas as vantagens correspondentes.

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Memória Jurisprudencial

Com o advento da Emenda Constitucional n. 11, de 30 de outubro de 1945,estabeleceu-se que os juízes em disponibilidade não poderiam exercer qualqueroutra função pública, salvo a função eleitoral ou cargo em comissão de confiançadireta do presidente da República ou dos interventores federais nos estados.197

Sustenta o Ministro que:

Quero crer que a intenção da emenda tenha sido apenas possibilitar aosmagistrados o exercício das funções de governo. Mas, como a omissão à “JustiçaEleitoral”, a omissão de qualquer referência à função eleitoral poderia levar aoargumento de que estaria excluída a função eleitoral, porque não expressa,porque não mencionada, uma vez que se mencionava a aceitação possível dafunção governamental, o redator do dispositivo acrescentou “função eleitoral ecomissão de natureza governamental”. Daí, dessa emenda é que resulta o melhorargumento em favor da pretensão do impetrante, porque, realmente, se existetexto constitucional, e emenda constitucional é texto constitucional, é aditamentoà Constituição — no sentido de que o juiz, mesmo em disponibilidade, podeexercer função eleitoral, importa isso num argumento que me detém na soluçãopelo indeferimento do pedido.

Prosseguindo em sua análise, observa que o entendimento prevalecente naJustiça Eleitoral é o de que o magistrado em férias — afastado da função — ouo juiz licenciado não ficam impedidos de exercer sua função eleitoral. No entanto,adverte que, no caso de férias ou licença, o magistrado conserva a função, nãofica privado dela, mas apenas afastado temporariamente, e alega:

Mas a disponibilidade não é coisa fundamentalmente diversa. A disponi-bilidade supõe o cargo, supõe a função virtual; a disponibilidade não é o desliga-mento definitivo do funcionário; o juiz em disponibilidade é magistrado, tantoassim que o art. 92 estendeu-lhe a proibição de aceitar qualquer outro cargopúblico; ele é magistrado em estado virtual.

O magistrado em disponibilidade não se equipara ao aposentado, pois esteúltimo perde a função definitivamente, conserva apenas os vencimentos. Já ofuncionário em disponibilidade mantém todos os predicamentos e as incompatibi-lidades decorrentes da função, menos o exercício temporariamente interrompido.Acrescenta que:

197 Dispõe o art. 92 da Constituição de 1937, com a redação dada pela Emenda Cons-titucional n. 11/45: “Os juízes, ainda que em disponibilidade, não podem exercer quais-quer outras funções públicas, salvo nos serviços eleitorais e cargos em comissão deconfiança direta do Presidente da República ou dos Interventores Federais nos Estados.A violação deste preceito importa a perda do cargo judiciário e de todas as vantagenscorrespondentes.”

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Ora, a distinção que existe, em última análise, entre o juiz em disponibilidadee o licenciado é apenas uma questão de tempo; é que o juiz, licenciado ou emférias, está afastado por tempo determinado, previsto, ao passo que o juiz emdisponibilidade está afastado por tempo indeterminado.

O Ministro refere-se ao fato de a jurisprudência do Tribunal SuperiorEleitoral, sob a égide da Constituição de 1934 e como organismo judiciário,possuir inúmeros julgados no sentido de que a disponibilidade do magistrado nãoacarreta perda do cargo eleitoral.

Em seu voto, reconhece o direito de o magistrado em disponibilidadecontinuar exercendo suas funções eleitorais, portanto concede a segurança. Paraele, não é essencial o exercício da função para que possa o magistrado exercer afunção eleitoral, pois entende que a Justiça Eleitoral não é judiciária, de modo quenão poderia conhecer de mandado de segurança. Essa mesma posição foimantida pela Corte Suprema. Além disso, para o Ministro, o pedido de segurança,no caso em tela, fugia à competência originária do Supremo, que só poderiaconhecê-lo em sede de recurso. Nesse particular saiu vencedora a tesedefendida pelo Ministro Annibal Freire, que admitia a competência originária.Todavia, o Ministro Castro Nunes restou vencido nesse julgado.

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APÊNDICE

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Ministro Castro Nunes

AÇÃO RESCISÓRIA 78 — PA

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, entendo que se trata de atodo Governo Provisório em que não está eliminada a apreciação judicial, pelasrazões expostas nos votos dos colegas que me precederam e ainda por umacircunstância que me permito acrescentar e que é peculiar à hipótese: é que setrata de cobrança de imposto coativamente feita, manu militari, por funcionáriosdo Estado, à ordem do interventor. Tratando-se de imposto, o princípio geral,jamais contestado, na vigência ou depois da aprovação da Constituição de 1934,é que nunca se trancou a defesa do contribuinte. Quer isso dizer que o Estado —falo de um modo geral, na acepção genérica — indo a juízo cobrar um imposto,torna acessível à apreciação judicial o ato do Governo Provisório, federal oulocal. No caso, o Estado do Pará prescindiu do aforamento da demanda, dopedido em juízo, e, manu militari, coagiu o contribuinte a pagar, de modo que estacircunstância peculiar à hipótese, tratando-se de cobrança de imposto, em que ocontribuinte não teve modo regular de defesa, dava-lhe direito de vir a juízo parapedir a restituição do indébito.

A possibilidade de se discutir nas cobranças fiscais o ato do GovernoProvisório era um argumento, de que muitas vezes se usou, para dizer queexistem atos da administração, naquele período, que jamais se negou pudessemser ajuizados; daí a distinção entre atos legislativos e atos administrativos, fiscais,financeiros, etc. Mas a razão, que já tive ocasião de salientar, está em que, nessescasos, é a União quem vai a juízo para pleitear um pagamento; e, se põe o casoem juízo, sujeita-se às conseqüências dessa sua atitude, à defesa daquele que elachamou a juízo, defesa que envolve a apreciação dos seus atos.

Devo dizer que a União, propondo sua ação rescisória, não se fundou,apenas, no art. 18, data venia dos ilustres colegas que me precederam: mastambém no art. 964 do Código Civil, que diz que todo aquele que recebeu o quelhe não era devido fica obrigado a restituir. Ela diz, porém, que não está obrigadaa restituir porque não recebeu. A questão foi examinada, ainda há pouco, pelo Sr.Ministro Orozimbo Nonato, em resposta ao voto manifestado pelo Sr. MinistroWaldemar Falcão, mas data venia, S. Exa. não me convenceu de que, no caso,não se trata de restituição de indébito porque houve pagamento, manu militari,coativamente exigido. Ainda que devido o imposto, a parte foi coagida a pagá-loe tem direito de vir pedir a restituição do quantum e, nessa restituição, o Estadoque defenda o seu direito.

A União está condenada a restituir aquilo que não recebeu. O Sr. MinistroOrozimbo Nonato colocou a questão nestes termos: o interventor é um delegado

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da União e, portanto, autoridade federal, por cujos atos deve responder aFazenda Nacional. Jamais pude aderir a essa doutrina no Supremo Tribunal.Ainda quando juiz federal, com assento aqui, proferi voto longamentefundamentado em que mostrei, aliás, de acordo com muitas decisões, embora nãouniformes, do Supremo Tribunal, que o interventor, quando assume o governo doEstado, faz as vezes de governador e vai administrar e executar orçamentos,cobrar impostos, arrecadar receitas, fazer despesas, de acordo com a legislaçãoe a preceituação em vigor, no Estado, mover os funcionários que ficam sujeitos asua direção e disciplina, enfim, é o governador; por seus atos, não responde aUnião, que se limitou a investi-lo, responde o Estado.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: No caso dos autos, o interventor agiu amão armada, não fez uma cobrança comum, a favor do Estado, serviu-se de suaautoridade oficial, do exercício de sua função, para fazer uma cobrança deimposto que a lei não autorizava. Não se trata de ato administrativo, mas de umato de força ou de poder, só praticado por delegação da União. Um atoadministrativo que ele praticasse com essa autoridade de governador do Estado:nomeação ou exoneração de funcionário, está bem, o Estado é que responderia,mas ele praticou, contra a lei, um ato que não é de cobrança de imposto, e só o fezporque estava investido da autoridade federal.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Agradeço o aparte de V. Exa., mas peçolicença para ponderar que V. Exa. observou, aliás muito bem, que o interventor,praticando, embora, um ato violento, ilegal, o fez na qualidade de interventor enão poderia praticar esse ato se não fosse interventor. Trata-se pois de um ato,qualquer que seja a sua qualificação, de interventor ou de seus delegados.

Dizia eu, Sr. Presidente, que, de acordo com a doutrina a que me tenhosempre mantido fiel, o interventor, assumindo o governo do Estado, age peloEstado; portanto, compete à Fazenda do Estado a responsabilidade. É a ela quecompete restituir o que recebeu por violência ou extorsão. A União não pode serobrigada a restituir aquilo que não recebeu, aquilo que foi recebido pelo Estado,coativamente, por um ato de força do seu governo.

Nestas condições, julgo procedente a ação rescisória, por este segundofundamento, somente para declarar o autor carecedor de ação contra a União,mas ressalvado o seu direito de agir contra o Estado.

É o meu voto.

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Ministro Castro Nunes

REPRESENTAÇÃO 93 — DF(Matéria constitucional)

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, a Constituição estruturou oPoder Executivo, definido pelo presidente da República e pelos seus ministros,aos quais ele escolhe como seus auxiliares imediatos e pode destituir, conformelhe aprouver.

O Poder Executivo não se reduz ao presidente da República. O Ministérioou os ministros, individualmente considerados, como auxiliares imediatos dopresidente da República, constituem uma peça constitucional desse Poder, daqual cogita a Constituição Federal e da qual não poderia o presidente daRepública declinar, porque cada um dos ministros completa a ação do presidenteda República, legaliza essa ação e nisso consiste a referenda.

Passando para a órbita estadual, teremos de encontrar em cada estado oPoder Executivo organizado semelhantemente: um governador e seussecretários de governo. Esses secretários terão de corresponder aos ministros deEstado na órbita federal; hão de ser igualmente nomeados e demissíveislivremente pelo governador; qualquer restrição que se estabeleça acerca dessanomeação — e ainda que não se estenda a restrição à destituição — reflete-sena independência, na separação e independência, nas relações entre o PoderExecutivo e o Legislativo, estabelecendo uma limitação ao poder de nomear.Essas relações de independência entre os três Poderes do Estado, tomada aexpressão no seu sentido teórico, doutrinário ou genérico, são governadas por umsistema chamado de “freios e contrapesos”e que consiste, exatamente, emmanter a independência e ao mesmo tempo a harmonia e o equilíbrio dospoderes.

No caso, o que se estabelece é um freio, e um freio sem contrapeso, porqueo governador do estado lança a nomeação ou faz a nomeação, mas esta poderáser cassada pela Assembléia. Cria-se, assim, um verdadeiro impasse, e esseimpasse se define por uma limitação do governador para organizar o seu governo,para se cercar dos auxiliares imediatos, que lhe completam a ação. É certo que jáfoi objetado que, nos Estados Unidos, os secretários do governo são nomeadospelo presidente da República e ficam na dependência da aprovação do Senado. Oargumento é, sem dúvida, relevante; não serei eu quem lhe desconheça a relevância.Mas, ainda assim, não me parece decisivo.

Nos Estados Unidos, essa subordinação relativa é determinada por lei quesobreveio logo nos primórdios da prática da Constituição.

É preciso não perder de vista que a paixão do americano, sobretudoàquele tempo, era o princípio eletivo. Por outro lado, a participação dos estados

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na formação e no funcionamento dos poderes federais era muito acentuadanaquele momento histórico, quando ainda não reduzidas, como viriam a ser, asproporções da soberania das ex-colônias transformadas em estados.

O princípio eletivo na formação dos órgãos do governo foi conservado emproporções exageradas na organização dos governos estaduais e ainda hoje semantém, não obstante a reação que vem abrindo caminho. É por esse motivo quenos estados, ou em muitos deles, o povo não elege somente o governador, mastambém os secretários do governo e outros altos funcionários, acontecendomesmo que o secretário do governo pode ter um mandato que vai além do dogovernador. Por isso é que se diz que o governador de estado dispõe mais deprestígio do que de poder, porque seus auxiliares imediatos não são dele, dele nãodependem, não é ele quem os escolhe, nem os pode dispensar.

Não existe nisso nenhum traço de parlamentarismo, e sim coisa diversa,a exageração do princípio eletivo como limitação posta ao poder titulado nogovernador.

A origem ou razão de ser do Senado é conhecida. É uma representaçãoquase corporativa dos estados. O regímen vinha do consentimento das ex-colônias,era um produto de transação política. O Senado é o sinal ou a expressão políticada Federação.

O partido chamado dos estados reivindicava para o Senado funçõesexecutivas complementares, e contrapesos à possível ação do presidente emdetrimento das prerrogativas estaduais.

É fácil compreender, Sr. Presidente, que, num ambiente desses, trabalhadopela obsessão da eletividade dos secretários do governo e pelo temor de ficarcomprometida, pela ação governamental do presidente da República, a soberaniadas ex-colônias, surgisse a fórmula limitativa da livre escolha não só dossecretários do presidente mas de outros funcionários do governo, a sercontrolada pelo órgão representativo da soberania estadual.

Sabe-se, aliás, que na prática, não obstante alguns episódios históricos, oSenado homologa as nomeações, sendo mais freqüente a oposição às nomeaçõesde ministros da Suprema Corte.

Entre nós, não existem os mesmo antecedentes e os termos constitucionaissão diversos. Ponderou no seu voto o eminente Sr. Ministro Relator que, naConstituição americana, o que existe acerca dos secretários do presidente daRepública é quase nada, uma referência incidente e que não se dirigeexclusivamente aos secretários de Estado, ou aos secretários de governo, mas,de um modo geral, aos altos funcionários, no sentido de que são obrigados ainformar por escrito ao presidente da República sobre assuntos de administraçãoou do governo. De modo que lá foi possível ao legislador essa liberdade, essa

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moderação, essa fórmula de acomodação, que aqui não seria possível, porque,nos termos estatuídos nesta Constituição, como nas anteriores, desde a primeiraCarta republicana, o presidente cerca-se de auxiliares que ele escolhe livrementee livremente conserva, enquanto entender. Não seria possível admitir que ogovernador, que é o órgão do Poder Executivo do estado, que encarna o PoderExecutivo no estado, tivesse cerceada a sua escolha, por qualquer forma,mediante um freio não cogitado no sistema federal e, por isso, eu estou de acordocom o eminente Sr. Ministro Relator, em haver por inconstitucional a limitaçãoestabelecida no caso da nomeação dos secretários de estado.

Existe, entretanto, a questão dos prefeitos. Também estou de acordo como Sr. Ministro Relator, quanto aos prefeitos das estações hidrominerais, das basesmilitares e da capital do estado, porque, com relação a esses, a ConstituiçãoFederal, ela mesma, declara que compete ao governador nomeá-los; e, se aConstituição confere ao governador o poder de nomear os prefeitos da capital,das estações hidrominerais e das bases militares, não é possível que o legisladorestadual, mesmo constituinte, limite esse poder conferido, que é de presumirirrestrito. Entretanto, sinto divergir de S. Exa. relativamente aos outros prefeitos.E faço minhas as palavras do eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães, quelevantou a questão: os prefeitos que o governador terá de nomear para asprefeituras eletivas, aquelas que tenham de ser exercidas por prefeitos eleitos enão nomeados, serão, portanto, outros que não os mencionados. Relativamente aesses, o governador não tem o poder conferido na Constituição Federal; elepoderá, segundo determina a Constituição cearense, nas disposições transitórias,ter o seu poder limitado pela assembléia estadual. Aí a dificuldade que encontro éde articular, constitucionalmente, a proibição. Não encontro na Constituição,data venia do Sr. Ministro Relator, base para declarar que está limitada aautonomia estadual. Com relação aos prefeitos das prefeituras excepcionadaspela Constituição Federal — bases militares, estações hidrominerais ou dacapital, a Constituição Federal contém disposição expressa; com relação aossecretários de estado, pelos motivos que acabo de expor. Quanto, porém aosprefeitos que hão de aguardar a eleição dos que terão de os substituir nosmunicípios de provimento eletivo, relativamente a estes eu não encontrodisposição constitucional que proíba o provimento interino por nomeação, porqueo constituinte estadual terá provido a uma situação não regulada na ConstituiçãoFederal, ainda porque, na Constituição Federal, o presidente da República nãonomeia prefeitos, senão o da capital da República, e para isto se estabeleceu,após a promulgação da Constituição — a aprovação do Senado, o que seria umargumento a mais, para admitir o símile adotado.

Quanto ao outro ponto — o relativo à eleição indireta do vice-governadordo estado —, estou de inteiro acordo com o Sr. Ministro Relator. A ConstituiçãoFederal, na enumeração dos princípios a que está subordinado o Estado na

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elaboração das suas leis orgânicas, exige que elas observem a forma republicanarepresentativa, democracia representativa que nos quadros da Constituição estádefinida pelo sufrágio direto. Sem dúvida ela comporta o sufrágio indireto; aindahá pouco, no seu brilhante voto, o eminente Sr. Ministro Orozimbo Nonatolembrou que ao tempo da Constituição de 1891 o próprio Ruy sustentava apossibilidade da eleição indireta nos estados; não estariam eles impedidos deadotar a eleição indireta. Mas, então, em 1891, não havia a enumeração dosprincípios constitucionais da União. O art. 63 se limitava a declarar que osestados se organizariam observados os princípios constitucionais da União, que aConstituição não enumerava e só passou a enumerar da Reforma de 26 paradiante. Não enumerando esses princípios, o âmbito em que se podiam mover osestados era maior, porque, para efeito de intervenção e ainda que somente paraeste efeito, a única limitação que se poderia extrair seria a decorrente dacombinação do art. 63 com o art. 6º, na parte em que exigia em cada estado aobservância do regime republicano. Mas hoje, na Constituição, é forçosocombinar o inciso da enumeração com o art. 134, para daí concluir que a formarepresentativa pressuposta contém como elemento integrante — porqueexpresso no art. 134 — o sufrágio direto.

Assim, como disposição permanente, o artigo ora em exame seriafrancamente inconstitucional e, portanto, não poderia ser admitido. Mas o Sr.Ministro Relator ponderou que se trata de uma disposição transitória. A própriaUnião não poderia por uma lei contravir à estruturação de sua formarepresentativa, mas, por exceção, admitiu no art. 1º do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias que o vice-presidente da República pudesse sereleito de modo indireto e, sendo assim, dispensou, por essa disposição transitória,a observância da regra permanente. Todos sabemos o alcance das disposiçõestransitórias, que consistem em adotar normas de transição, dispensar aobrigatoriedade de uma regra ou estabelecer exceções.

Se o constituinte nacional estabeleceu que o vice-presidente da Repúblicaseria eleito pelo voto indireto, eu não vejo por que censurar a disposiçãotransitória estadual, que consagrou essa mesma disposição estadual e a repetiu;não seria possível argüir esse artigo de inconstitucional em termos de serpronunciada pelos Tribunais a inconstitucionalidade de uma disposição estadualque repete a Constituição Federal, em situação prefigurada perfeitamenteidêntica.

Nestes termos, acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, com a restriçãoadotada pelo eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.

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Ministro Castro Nunes

REPRESENTAÇÃO 94 — DF(Matéria constitucional)

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: O Sr. Dr. Procurador-Geral da Repúblicatrouxe ao conhecimento do Tribunal a representação do Sr. Governador do Estadodo Rio Grande do Sul relativamente aos arts. 78, 81, 82, 89 e outros da novaConstituição daquele Estado referentes ao Secretariado, do ponto de vista dadependência, em face da Assembléia, da escolha e desempenho da função dossecretários do Governo.

Alega o ilustre chefe do Ministério Público Federal, nos termos darepresentação e pelos fundamentos jurídicos que expõe, que tais disposições sãoincompatíveis com o governo presidencial estabelecido como base do regímenpolítico adotado no País.

Funda-se no art. 8º, parágrafo único, da Constituição Federal para legitimaro uso da atribuição exercida e a competência do Supremo Tribunal para dirimir oconflito.

Junta a representação do governador, o texto aprovado da Constituiçãosul-rio-grandense e outros documentos.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): I - Dispõe a Constituição, no art.8º, parágrafo único, reportando-se à enumeração dos princípios constitucionais:“No caso do n. VII, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido peloprocurador-geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se estedeclarar, será decretada a intervenção”. Acrescenta adiante o art. 13: “Nos casosdo art. 7º, n. VII, observado o disposto no art. 8º, parágrafo único, o CongressoNacional se limitará a suspender a execução do ato argüido de inconstitucionali-dade, se essa medida basta para o restabelecimento da normalidade no Estado”.

No uso da atribuição que lhe compete, o ilustrado Sr. Dr. Procurador-Geralda República submeteu ao Supremo Tribunal a representação que lhe dirigiu o Sr.Governador do Estado do Rio Grande do Sul, que argúi de incompatível com aConstituição Federal a Carta estadual recentemente promulgada e publicada, nospontos relativos à formação do Secretariado, quanto à dependência em que ficaráeste em face da Assembléia Legislativa, dizendo comprometida a formarepublicana de governo e o princípio da independência e harmonia dos Poderes,pelas razões que expõe.

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Acompanham a petição da Procuradoria-Geral exemplares, um dos quaisautenticado pela Secretaria da Assembléia, do projeto constitucional, então emredação final, e outros impressos elucidativos, além de uma cópia, devidamenteautenticada, do requerimento dirigido à Assembléia, e por esta aprovado, pelosSrs. Deputados Mem de Sá e Brochado da Rocha, com o fim declarado de ficara Mesa autorizada a promover junto à Procuradoria-Geral da República o pro-nunciamento deste Supremo Tribunal, nos temos daquele preceito constitucional.

II - Convém precisar quais os dispositivos apontados na representação dogovernador do estado e na petição dirigida a este Supremo Tribunal, pela Procu-radoria-Geral.

Em ambas são indicados os arts. 78, 81, 82 e 89 do Capítulo VIII, sob aepígrafe “Do Secretariado”, e são esses e alguns outros os que dizem mais deperto com a indagação. Mas a representação do governador menciona outros,como por igual o procurador-geral. Refere-se aquela aos arts. 65, 76, 77, 82, 83,84, 85, e de 93 a 99; e a Procuradoria-Geral a esses mesmos, e ainda aos arts. 86,88, parágrafo único, e 125, §§ 3º e 4º.

São disposições correlacionadas, em grau maior ou menor, com as do títuloreferente ao Secretariado, particularmente aos arts. 78, 81, 82 e 89.

Será necessário, no caso de se haver por precedente a argüição, erestritamente aos dispositivos que colidam com o Estatuto Federal, determinarquais esses dispositivos, cuja vigência será alcançada pela ulterior suspensãodecretável pelo Congresso, e não outros que forem alheios à controvérsia. Éverificação que só poderá ser feita depois de examinado o mérito.

III - Devo informar ao Tribunal que o Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geralencaminhou-me por petição o pedido formulado pelo governador do estado paraque fosse suspensa provisoriamente a Constituição, até o pronunciamentoprovocado. Mandei juntar aos autos a petição, sem a despachar.

O pedido de suspensão provisório não poderia ser deferido por analogia como que se prescreve no processamento do mandado de segurança. A atribuição oraconferida ao Supremo Tribunal é sui generis, não tem por objeto atogovernamental ou administrativo, senão ato constituinte ou legislativo; não estáregulada em lei, que, aliás, não poderia dispor para estabelecer uma tramitaçãoque entorpecesse a solução, de seu natural expedita, da crise institucionalprefigurada. Acresce por sobre tudo isso que o poder de suspender o ato argüidode inconstitucional pertence ao Congresso, nos termos expressos do art. 13,como sanção articulada com a declaração da inconstitucionalidade.

IV - Existem algumas indagações preliminares, que precisam ser suscitadase examinadas.

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Ministro Castro Nunes

Assim é que, relativamente à locução “ato argüido de inconstitucionalidade”,cumpre fixar-lhe o sentido, que, a meu ver, se restringe aos atos legislativos, atos daAssembléia em sua função legiferante ou constituinte, particularmente esta. Nãoserá um ato governamental, que encontrará remédio, se houver um direito subjetivoprejudicado, em outros meios judiciais adequados. Será, no entendimento natural dodispositivo constitucional, o ato institucional do Estado e as leis orgânicas que ocompletam. O legislador constituinte usou da palavra “ato” na sua acepção maisampla e compreensiva, para abranger no plano legislativo as normas de qualquerhierarquia que comprometam algum dos princípios enumerados.

Toda Constituição é um ato, o ato constituinte da Nação ou do Estado,manifestação da vontade do povo por via dos seus representantes.

Na linguagem do direito público, o elemento consensual, a manifestação davontade é, como no direito privado, o primeiro elemento conceitual do ato jurídico.No direito privado, o ato jurídico se traduz no contrato; no direito público, pode sertambém o contrato, mas é precipuamente a manifestação da vontade do Estadocomo poder público na forma legalmente estabelecida.

Se se trata de Poder Legislativo, está consagrada até na linguagemcorrente a locução “atos legislativos” e, no plano constitucional, “ato adicional”,“ato das disposições constitucionais transitórias”...

Outra indagação preliminar é a concernente à delimitação do julgamentoda inconstitucionalidade: o Sr. Governador do estado, provocando a iniciativa daProcuradoria-Geral, argúi de inconstitucional o Estatuto rio-grandense em bloco,ainda que, nos termos da motivação, a argüição se limite ao mecanismo dospoderes e é nestes termos restritos que põe a questão a Procuradoria-Geral.

A Constituição não distingue, mas não exclui evidentemente que adeclaração da inconstitucionalidade possa atingir o ato apenas em parte, aexemplo do que se pratica nos julgamentos em espécie, consoante jurisprudênciaassentada, à luz dos ensinamentos da doutrina e dos subsídios do direitoamericano. Na mesma medida se terá de entender a suspensão pelo Congressodo ato declarado inconstitucional, nos termos do art. 13. A suspensão aíprefigurada articuladamente com a decisão judicial não será do ato, se parcial ainconstitucionalidade declarada, mas somente do dispositivo ou dispositivosatingidos.

Consiste a intervenção, nas hipóteses do n. VII, na suspensão, importadizer na decretação pelo Congresso da não-vigência do ato legislativo.

São duas atribuições distintas, de índole diversa, mas articuladas: a decisãodo Supremo Tribunal situa-se no terreno jurídico; a do Congresso, no plano político,mas a título de sanção daquela.

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Vem aqui, a propósito, esclarecer que, nos termos do assento constitucionale dos motivos de sua inspiração, o Supremo Tribunal não é provocado comoórgão meramente consultivo, o que contraviria à índole do Judiciário; não se limitaa opinar, decide, sua decisão é um aresto, um acórdão; põe fim à controvérsiacomo árbitro final no contencioso da inconstitucionalidade. É nessa função deárbitro supremo que ele intervém, se provocado, no conflito aberto entre a Cons-tituição, que lhe cumpre resguardar, e a atuação deliberante do poder estadual.

Daí resulta que, declarada a inconstitucionalidade, a intervençãosancionadora é uma decorrência do julgado.

Atribuição nova, que o Supremo Tribunal é chamado a exercer pelaprimeira vez e cuja eficácia está confiada, pela Constituição, em primeira mão, aopatriotismo do próprio legislador estadual no cumprir, de pronto, a decisão e, senecessário, ao Congresso Nacional, na compreensão esclarecida da sua funçãocoordenada com a do Tribunal, não será inútil o exame desses aspectos, visandodelimitar a extensão, a executoriedade e a conclusividade do julgado.

Na declaração em espécie, o Judiciário arreda a lei, decide o caso porinaplicação dela, e executa, ele mesmo, o seu aresto.

Trata-se, aqui, porém, de inconstitucionalidade em tese, e nisso consiste ainovação desconhecida entre nós na prática judicial, porquanto até então nãopermitida pela Constituição.

Em tais casos a inconstitucionalidade declarada não se resolve na inaplica-ção da lei ao caso ou no julgamento do direito questionado por abstração do textolegal comprometido; resolve-se por uma fórmula legislativa ou quase legislativaque vem a ser a não-vigência, virtualmente decretada, de uma dada lei.

Nos julgamentos em espécie, o Tribunal não anula nem suspende lei, quesubsiste, vige e continuará a ser aplicada até que, como, entre nós, estabelece aConstituição, o Senado exercite a atribuição do art. 64.

Na declaração em tese, a suspensão redunda na ab-rogação da lei ou naderrogação dos dispositivos alcançados, não cabendo ao órgão legiferantecensurado senão a atribuição meramente formal de modificá-la ou regê-la,segundo as diretivas do prejulgado; é uma inconstitucionalidade declarada ergaomnes, e não somente entre as partes; a lei não foi arredada apenas emconcreto; foi cassada para todos os efeitos.

Há quem diga, e nesse rumo está Geny, que os julgamentos em tese nãopodem constituir a res judicata, porque a função exercida pelo Judiciário é antespolítica do que jurisdicional, função da mesma natureza da exercida pelasassembléias e a que falta o requisito de um direito subjetivo em reação, inerenteao exercício da jurisdição.

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Mas observa, com razão, Eisenmann que a função não é de naturezadiversa; o Tribunal decide por aplicação dos mesmos critérios de julgamento, cujoconteúdo é uma interpretação constitucional em forma de aresto, ainda que, enisso somente estará a diferença, de maior extensão — “Il n’y a donc pas entreles deux systemes envisagés une difference de nature, mais simplement unedifference de degré — d’une annullation relative ou limitée à uneannullation absolue ou definitive. L’entendue differente des pouvoirs del’organe, la portée plus ou moins grande de sa decision restent sansinfluence sur la nature de la fonction par lui exercée” (Charles Eisenmann,La Justice Constitucionelle. 1928, p. 106).

Outro aspecto, condizente com a atitude mental do intérprete, em setratando de intervenção, é o relativo ao caráter excepcional dessa medida,pressuposta nesse regime a autonomia constituinte, legislativa e administrativados estados-membros, e, portanto, a preservação dessa autonomia ante o riscode ser elidida pelos Poderes da União.

Daí decorre que a interpretação não será jamais extensiva, em qualquer dosdois planos em que se situam os casos de intervenção, quer no plano propriamentepolítico, quer no plano jurídico do n. VII, que se define pelos princípios aíenumerados.

A intervenção, no primeiro caso, isto é, nos casos enumerados de I a VI,escapa à apreciação judicial, como matéria de índole puramente política, e supõea perturbação de ordem jurídica por fatos e não sob a forma de leis. Quando aUnião intervém para manter a integridade nacional, o atentado pressuposto é asecessão; se intervém para repelir invasão de fora ou de dentro do próprio Paísou para pôr termo à guerra civil, vai restabelecer militarmente a ordem perturbada;se para garantir o livre exercício dos poderes estaduais ou assegurar a obediênciaa uma ordem judicial, vai corrigir uma recusa ou remover o fato positivo de umaoposição; se, para reorganizar as finanças do estado, parte do pressuposto deuma desordem financeira traduzida em fatos administrativos, que irá corrigir.

O n. VII contém um elenco de princípios, e o que aí se pressupõe é aordem jurídica comprometida, não por fatos, mas por atos legislativos destoantesdaquelas normas fundamentais.

Esses princípios são somente os enumerados para o efeito da intervenção,que é a sanção prevista para efetivá-los. Não serão outros, que os há naConstituição, mas cuja observância está posta sob a égide dos tribunais, em suafunção normal.

Escrevi algures, ao tempo da Constituição de 91, estabelecendo essadistinção que o vago e indeterminado do art. 63 não deixava enxergar aos queolhavam essa cláusula sem tirar os olhos do art. 6º, exagerando-se umaarticulação que teria de ser reduzida, segundo entendia eu, ao que se relacionasse

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com a forma republicana e federativa, sem exclusão, todavia, de outras regraselementares, tais como a proibição de prescrever leis retroativas, o poder deimposição condicionado ao consentimento do povo por via representativa e tantasoutras regras fundamentais da vida político-jurídica da Nação, estabelecidas comolimites à ação legislativa da União e, por igual, à ação constituinte e legislativa dospoderes locais.

A diferença estaria, entretanto, como ainda agora, no tratamento de uns eoutros, sob a sanção política de intervenção de alguns, e são os hoje enumerados,e sob a guarda do Judiciário, em suas funções normais, nas violações em espécie,os que se não contenham naquela enumeração.

Mas os casos de intervenção prefigurados nessa enumeração se enunciampor declarações de princípios, comportando o que possa comportar cada um dessesprincípios como dados doutrinários que são, conhecidos na exposição do direitopúblico. E por isso mesmo ficou reservado o seu exame, do ponto de vista doconteúdo e extensão e da sua correlação com outras disposições constitucionais,ao controle judicial a cargo do Supremo Tribunal.

Incidência oral:

Quero dizer, com estas palavras, que a enumeração é limitativa comoenumeração. Dessa forma, fica respondido o argumento que o eminente Sr. JoãoMangabeira suscitou da tribuna. A enumeração é taxativa, é limitada, é restritivae não pode ser ampliada a outros casos pelo Supremo Tribunal. Mas cada umdesses princípios é dado doutrinário que tem de ser examinado no seu conteúdo edelimitado na sua extensão.

Daí decorre que a interpretação é restritiva apenas no sentido de limitadaaos princípios enumerados; não o exame de cada um, que não está nem poderáestar limitado, comportando necessariamente a exploração do conteúdo e a fixaçãodas características pelas quais se defina cada qual deles, nisso consistindo adelimitação do que possa ser consentido ou proibido aos estados.

V - Na preceituação referente ao “Poder Executivo”, dispõe a Constituiçãodo Rio Grande do Sul, art. 65: “O Poder Executivo é exercido pelo Governador epelo Secretariado”. No Capítulo VIII, sob a rubrica “Do Secretariado”, dispõe oart. 76: “Os secretários de Estado, nomeados e demitidos na forma desta Consti-tuição, integram o Secretariado”. No art. 77: “O chefe do Secretariado e, porindicação dele, os demais secretários de Estado, são nomeados e demitidos peloGovernador”. (Segue-se um parágrafo sem interesse maior no exame).

Acrescenta o art. 78: “Somente os membros da Assembléia Legislativapoderão exercer as funções de chefe do Secretariado”. E o art. 81: “Logo depoisde constituído, comparecerá — o Secretário perante a Assembléia, à qualapresentará o programa do Governo”.

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Segue-se o art. 82, que assim dispõe: “Dependem os Secretários daconfiança da Assembléia Legislativa e devem demitir-se quando ela lhes sejanegada”. E o art. 83: “A moção de desconfiança precisa ser apresentada porum quarto dos membros da Assembléia, no mínimo, e somente poderá serdiscutida e votada cinco dias depois da proposta”.

Volta-se a aludir, no art. 84, à moção de desconfiança, que poderá abrangertodo o Secretariado ou apenas algum dos seus membros.

O art. 85 dispõe sobre a dissolução da Assembléia: “O Governador doEstado poderá dissolver a Assembléia Legislativa, a fim de apelar para o pronun-ciamento do eleitorado, quando o solicite o Secretariado colhido por uma moçãode desconfiança”, dispondo no parágrafo único sobre a expedição do decreto dedissolução e convocação do eleitorado.

O art. 86 declara que a Assembléia “não poderá ser dissolvida duas vezesconsecutivas pelo mesmo motivo”. O art. 87 completa a disposição do art. 85,para dispor sobre a reinstalação da Assembléia que for eleita em conseqüênciada dissolução.

No parágrafo único do art. 88 se permite nomear secretários sem pasta.

Volta-se, no art. 89, a tratar do funcionamento do Secretariado para dizerque este “decide por maioria de votos; em caso de empate, preponderará o votode seu chefe”.

O art. 90 é de menor alcance, mera medida de coordenação das Secretarias,articulando-se com o sentido que se puder dar ao disposto no art. 76.

São essas as principais disposições. Outras com elas se relacionam: a doart. 39, II, no definir entre as atribuições da Assembléia “aprovar a constituição eo programa de Secretariado”; e do art. 93, sobre as atribuições do Governador,nos I, IV e possivelmente outros dispositivos relacionados com a preceituaçãosobre o Secretariado e dissolução da Assembléia; as dos incisos em que sedesdobra o art. 94, concernente às atribuições do Secretariado, particularmenteos dos n. I, III e VI; as do art. 96, n. I e V; os arts. 95 e 97 contêm disposições quesó muito indiretamente dizem respeito à argüição.

O art. 99 declara que “o Governador do Estado não tem responsabilidadepolítica; cabe esta aos secretários pelos assuntos relativos às respectivas pastas”.

O art. 125, §§ 3º e 4º, cogita do registro sob reserva, quando recusado peloTribunal de Contas, por despacho de chefe do Secretariado, atribuindo a este,como órgão coletivo, a prestação das contas do exercício financeiro peranteaquele Tribunal.

VI - O art. 65, também trazido à baila, define o Poder Executivo pelogovernador e pelo Secretariado.

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O enunciado em si mesmo não exprime o bastante para ser arredado comocolidente com o Estatuto Federal. Pelo menos para os que entendem que oExecutivo da União se define não só pelo presidente mas também pelos ministrosde Estado, seus auxiliares imediatos, que a Constituição pressupõe como peça domecanismo daquele Poder e cujas funções são, no tocante à referenda,complementares das do presidente.

A instituição ministerial existe, pois, por determinação constitucional, comassento nos arts. 78, 90 e 91, e já existia ao tempo da Constituição de 91, quandodo assunto me ocupei em artigo sob o título “Dos ministros de Estado no regimepresidencial” (Arquivo Judiciário, vol. 12, Supl.), consoante a lição, já entãopreponderante, que os ministros, ainda que livremente escolhidos e dispensadospelo presidente, integram o Poder Executivo na sua definição constitucional.

Recordei então que a possibilidade, nem sempre admitida, do que entre nósse chamava despacho coletivo, prática adotada por alguns presidentes, nãobastaria para abastardar o governo presidencial, como se afigurava a certosespíritos extremados.

O despacho coletivo, sobretudo nos primeiros tempos da República, erasuspeitado de parlamentarismo e repelido pelos republicanos da propagandacomo uma corruptela do regime ou prática larvada de parlamentarismo.

Era um exagero, porquanto o Ministério não seria só por isso um sercoletivo, um órgão colegiado, senão somente uma reunião dos seus componentesem torno do presidente no interesse da unidade de vistas ou da coordenação dosdiversos departamentos confiados a cada um dos ministros.

Também sem maior alcance a denominação Gabinete, característica semdúvida do governo parlamentar, por que ela se inculca, mas encontradiça naexposição do direito americano. O art. 65 do estatuto sul-rio-grandense nãomerece, pois, censura no definir o Poder Executivo pelo governador, e peloSecretariado. O que o compromete são outras disposições que com ele searticulam, dando ao enunciado um sentido que só poderá ser percebido porcombinação com o que se estatui sobre o Secretariado, definido adiante nãocomo o conjunto dos auxiliares do governador, mas em bloco, com o caráter deórgão coletivo, no qual se integram as Secretarias como componentes de umtodo, órgão colegiado dotado de poderes próprios de direção política eadministrativa e responsável politicamente perante a Assembléia, de cujaconfiança estará na dependência.

A estruturação do Poder Executivo não se divorcia, pois, da ConstituiçãoFederal, por obra do art. 65, mas por motivo de outros dispositivos, particularmenteos que dizem respeito ao Secretariado, pois que por estes, e não por aquele, é quese definem os traços parlamentaristas do governo instituído.

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O governo de Gabinete, no regime parlamentarista, caracteriza-se por trêsrequisitos muito conhecidos: a escolha dos ministros dentre os representantesfiliados ao partido em maioria nas Câmaras; a integração deles num blocohomogêneo e solidário, que é o Gabinete; e a responsabilidade política doGabinete, em face do Parlamento, responsabilidade posta no plano da confiança,com o poder reservado à maioria de derrubar o Ministério.

É praticamente o governo das Assembléias, governo parlamentar que asCâmaras não exercem por si mesmas, é certo, mas por delegados de suaconfiança. Esse poder é temperado com o que se reserva ao soberano, ouchefe de Estado, de apelar das Câmaras para o eleitorado, e nisso consiste adissolução do Parlamento.

Essas características estão, em essência, no texto rio-grandense. Não seexige, é certo, que todos os membros do Gabinete saiam da Assembléia, mastão-somente o chefe do Secretariado. É esse primeiro ministro que escolhe osseus companheiros. Nem se expressa a exigência de ser formado o Secretariadocom elementos que, não saindo dela, dependam de sua aprovação.

É bem de ver, entretanto, que essa condição está implícita, uma vez que aAssembléia poderá derrubar qualquer deles ou todo o Secretariado sob a formade uma moção de desconfiança. Para se manter, o Gabinete terá de ser, pois,constituído pelo critério político da confiança da Assembléia, sem o que nãopoderá subsistir. É expresso o art. 82: “Dependem os Secretários da confiança daAssembléia Legislativa e devem demitir-se quando ela lhes seja negada”. Nosartigos seguintes, 83 e 84, está prevista a “moção de desconfiança”, que é o sinalmais expressivo do governo parlamentar.

“Logo depois de constituído” — lê-se no art. 81 — “comparecerá o Secre-tariado perante a Assembléia, à qual apresentará o programa de governo”,programa a que poderá aderir ou não a Assembléia, com a conseqüência nãosomente de negar as leis necessárias à sua execução mas de derrubar o governoque é, no final das contas, o Secretariado, e não o governador.

O governador tem no texto ora examinado a posição em que ficam oschefes do Estado no governo parlamentar, titulares que são antes do podermoderador que do Executivo, exercido como é este pelo ministério em função doParlamento. Nem essa função moderadora escapou aos constituintes do RioGrande, como contrapeso necessário no jogo do mecanismo parlamentarista, noatribuírem ao governador a dissolução da Assembléia, quando insolúvel o conflitoentre esta e o Secretariado não resignatário.

Não desconheço que existem, neste particular, regimes médios, fórmulasde combinação do parlamentarismo e do presidencialismo, atenuações ou tempe-ramentos que serão variantes de um e de outro sistema.

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Mesmo entre nós, de uns anos para cá, a partir da Constituição de 34, opresidencialismo rígido da primeira Constituição republicana transigiu com ocomparecimento dos ministros às sessões das Câmaras para darem informaçõese esclarecimentos, quando convocados para esse fim. É uma fórmula de colaboraçãoque não chega a deformar o governo presidencial, porque a sorte dos ministros nãodependerá da censura dos seus atos pela Câmara que os convocou.

Chega-se mesmo a admitir, na ausência de obstáculo constitucional, que osministros escolhidos pelo presidente tenham a sua investidura confirmada por umdos ramos do Congresso, o Senado. Tal é o caso dos Estados Unidos, onde foipossível ao legislador estabelecer essa condição, reduzida, aliás, na prática, auma formalidade de mera rotina.

Ainda que se possa dizer que vai nisso um cerceamento ou limitação àlivre escolha do presidente, esgota-se com a aprovação da escolha acolaboração do Senado. O secretário não é responsável politicamente peranteo Congresso ou a Casa que lhe homologou a nomeação. É, na frase incisiva deBryce, um servidor, sarvant, do presidente, ao qual, e não ao Congresso, deveobediência — “In America, the president is risponsible, because the ministeris nothing more than his servant, bound to obey him, and independent ofCongress” (The American Common-Wealth, I, p. 90).

A nomeação dos ministros ad referendum do Congresso não é o quecaracteriza o governo parlamentar, como não basta o comparecimento, aindaque obrigatório, daqueles auxiliares do presidente, quando convocados por umadas Câmaras, para que se tenha por abolido o governo presidencial. Muito menospor efeito da simples denominação “Gabinete” ou da deliberação do presidenteem conjunto com o seu Ministério.

O comparecimento dos ministros, seja facultado apenas pela Constituição,como na República Argentina, seja compulsório, quando convocado por algumadas Câmaras, como entre nós, desfigura, segundo alguns, o presidencialismo,contendo em larva um elemento de governo parlamentar.

Incidência oral:

Na Argentina existe grande discussão sobre essa prática. Conforme amentalidade do presidente da República, o comparecimento de seus ministros é,ou não, admitido. Sob a presidência de Irigoyen, não era permitido tal compareci-mento. Sob a presidência de Alvear, era de praxe o comparecimento, não sendoimpossível que influíssem nesse sentido as idéias do eminente Matienzo, ministroda Justiça desse governo.

Mas, se a Constituição o admite, podem admiti-lo por igual os estados.

A sujeição da escolha dos secretários ao placet das Assembléias é menosexpressiva como elemento do parlamentarismo, que, aliás, prescinde dessa

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consulta prévia, uma vez que, tirados do Parlamento os ministros e, ainda, porque,parlamentares ou não, fica reservado às Câmaras o poder de destituí-los, quandolhes aprouver.

Incidência oral:

No caso ontem julgado, relativo ao estado do Ceará, alguns votos se mani-festaram sobre o que poderiam exprimir, em prol das instituições parlamentares,certos dispositivos insertos na Constituição estadual que tornavam dependente daaprovação da Assembléia a nomeação dos secretários do Governo, importandoisso em redução ou limitação do poder do chefe do Governo para escolher edispensar os seus auxiliares imediatos.

Nesses termos, isto é, como limitações desconhecidas da Constituição, pusa questão no meu voto. No regime parlamentar, seria desnecessária e de certomodo incongruente essa prévia consulta à Assembléia, porque os membros doGabinete são tirados da própria Assembléia, do seio da maioria, ainda que nomeadospelo chefe do Estado. O Parlamento não precisa ser ouvido, não dependem desua aprovação formal as escolhas, porque os escolhidos são elementos da maioriae essa maioria fica com o poder de cassar a nomeação a todo tempo e destituir, atodo momento, o Gabinete.

A incompatibilidade dessa restrição entende mais com o princípio da inde-pendência dos Poderes, cujas limitações, no quadro das relações do Executivocom o Legislativo, não podem ir além do expresso na Constituição, na órbitafederal como na estadual.

Se o Poder Executivo da União está estruturado na base de um presidentecom ministros de sua livre escolha e conservação, fazer intervir na escolha dossecretários do governador a Assembléia, com o poder de vetar as nomeações,seria colocar o governador, no exercício daquela atribuição, na dependência daAssembléia, em contrário àquele princípio fundamental do regímen.

O que caracteriza o governo parlamentar, o traço dominante é a responsa-bilidade ministerial no plano da confiança política das Câmaras e separada da dopresidente, em princípio irresponsável — “Le regime parlementaire” — ensinamJoseph Barthélemy e Paul Duez — “supose trois organes essentiels: 1º,une assemblée élue, le Parlement, de preference divisée en deux Chambres;2º, un Chef d’Etat, politiquement irresponsable et dont l’action personelles’efface, dans une mesure d’ailleurs variable, devant l’action ministerielle;3º, des ministres, groupés en cabinet, et responsables devant le Parlement.”

“Le Chef d’Etat nomme les ministres et exerce sur eux l’autorité moralequi derive de cette nomination et de son prestige. Le Parlement renvoie les minis-tres qui ont cessé de lui plaire”. (Traite’ de Droit Const., p. 162).

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“Par cette responsabilité”, acrescenta Lapradelle, “la politique duGabinet se trouve soumise à l’impulsion et aux directions des Chambres. LeMinistère, formé d’elements pris dans la majorité des Chambres, n’est plus qu’uncomité du Legislatif. Nommé par le Chef d’Etat, tenu d’en garder toujours laconfiance, mais, d’autre part, obligé d’obtenir, puis de conserver celle de lamanofité du Parlement, le ministère est le trait d’union du Legislatif et de1’Executif.” E linhas adiante: “La pièce essentielle du regime parlamentaire estla responsabilité politique des ministres devant le Parlement”. (Lapradelle,Cours de Droit Const., pp. 333-34.)

As fórmulas mistas, as variantes do parlamentarismo, o ecletismo surgidonas diferentes combinações adotadas nas Constituições de após a guerra de 14 ede que se ocupam os expositores (e eu mesmo as indiquei n’A JornadaRevisionista, publicada em 1924), prefiguram a modelação das instituições noplano nacional.

Incidência oral:

Estou procurando mostrar que o argumento das modernas fórmulas e dasdiferentes variantes possíveis que, segundo alguns, podem não desfigurar opresidencialismo tem razão de ser quando se trata de Constituinte Nacional queage soberanamente.

Cada nação é livre de adotar o arranjo constitucional que lhe convier, semse ater aos paradigmas teóricos ou doutrinários. Pode combinar como entender oparlamentarismo com o presidencialismo, mediante fórmulas novas em que seacusará mais acentuadamente este ou aquele.

Não é esse, porém, o caso de um estado-membro, cujo poder constituinteestá limitado. Se o governo instituído no país é o presidencial, ainda que atenuadopor alguma ou algumas fórmulas de transação com o parlamentarismo, serãoessas atenuações, essas acomodações dos dois princípios que estarão ao alcancedo poder institucional subordinado.

O problema já não é então político, como na órbita da Constituinte Nacional,mas jurídico, porque posto na demarcação dos poderes institucionais que, emface da Constituição do país, possam ser consentidos aos estados.

Não tenho notícia de que exista ou tenha sido sequer tentado em algum dosEstados da União Americana o tipo parlamentar. Nas obras de Stimson, Dealeye W. Wilson, em que se particulariza o exame das instituições estaduais, o que seencontra é uma participação maior do princípio eletivo na formação do Executivo.Não somente o governador, mas os secretários do Governo, ou alguns deles, eoutros funcionários de categoria elevada são eleitos e por período que pode nãocoincidir com o mandado do governador. É uma exageração do princípio eletivo,

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contra a qual existem tendências de reação já acusada em alguns estados,destoante, é certo, da organização do Executivo federal, mas que escapa àcensura da Constituição, que não impõe aos estados senão o requisito do governorepublicano — a republican form of government —, forma republicana que, nalição clássica, não vai além da eletividade, da temporariedade das funções e daresponsabilidade dos agente públicos.

Informa-se, entretanto, que o parlamentarismo ou suas formas atenuadasnão seriam possíveis no sistema federal. Sujeitar o presidente, diz RandolphTucker, à responsabilidade fora dos termos estabelecidos na Constituição,colocando-o na dependência de uma ou de ambas as Casas do Congresso, seria —veja-se o tom incisivo do autorizado expositor — a total subversão da nossaorganização constitucional — “would be a total subversion of our constitucionalorganization” (Tucker, The Constitution, I, p. 144).

Dentre os expositores do direito constitucional argentino, GonzalezCalderon, no seu livro Derecho Publico Provincial suscitou o problema dapossibilidade de admitirem as províncias o governo parlamentar, e foi na liçãodesse notável expositor que me baseei, quando, em 1921, no exame comparadodas nossas Constituições estaduais, concluí do mesmo modo. “O regímenparlamentar” — são palavras do constitucionalista argentino — “no se explicasin que al jefe del Estado, Rey ó Presidente, se haga irresponsable por los atos dogobierno, responsabilidad que incumbe al ministerio tan sólo; (...) No podriaexistir el sistema parlamentario sin que el jefe del Estado, a pedido del ministerio,tuviera la faculdad de dissolver el Parlamento”.

Dissolver o Parlamento, nota ainda com palavras de Estrada, seria para opresidente dissolver o seu próprio tribunal julgador, verificando-se ainda aanomalia de ministros responsáveis em um regímen que os não reconhece comesse caráter (As Constituições Estaduais do Brasil, 1922, I, p. 32, n. 9).

Em face da atual Constituição, o presidente da República só é responsávelpor impeachment e os ministros de Estado co-responsáveis com ele nos crimesconexos, sendo que por atos próprios da função respondem os ministros deEstado perante o Supremo Tribunal. É nestes termos que estatui sobre aresponsabilidade do chefe do Poder Executivo e dos seus auxiliares imediatos aConstituição, o que exclui necessariamente a responsabilidade no jogoparlamentar, que abstrai da imputação de crime de responsabilidade, situando-seno terreno da mera confiança política. É pela exclusão dessa forma deresponsabilidade, chamada política, para contradistingui-la da outra, que supõeincriminação, processo e julgamento, é por esse traço que se distingue dogoverno parlamentar, oscilante à feição das maiorias congressuais, o governopresidencial, estável, por prazo prefixado e não dependente, quanto à suaduração, da confiança do Legislativo.

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No governo presidencial, o presidente é o chefe da Nação e o chefe doGoverno o da administração e, por isso mesmo, são de sua responsabilidade, emprincípio, mesmo os atos de seus ministros. No governo parlamentar, as funçõesdo Executivo estão separadas das do chefe de Estado; o chefe do Governo é oprimeiro-ministro, o Governo é o Ministério, são os ministros, em cadadepartamento, os chefes da Administração. Foi isto que se estabeleceu naConstituição do Rio Grande do Sul: o governador é apenas o chefe nominal doGoverno; o Poder Executivo real está com o Secretariado articulado com aAssembléia no plano da confiança.

É uma deformação indissimulável do governo presidencial, a negação deste,o governo parlamentar com todos os seus característicos, inclusive a dissoluçãoda Assembléia, que contradiz a prefixação por prazo certo do mandato legislativoe que constitui uma garantia existencial do Legislativo, em face do Executivo, emcujas mãos estaria, por outro lado, na observação de Estrada, dissolver ajurisdição perante a qual responde ele nos crimes de função.

VII - Objeta-se que o governo presidencial não figura na enumeraçãodos princípios constitucionais a que devam obediência os estados naelaboração de suas Constituições e leis, leis e Constituição pelas quais cada umdeles se regerá, com ressalva dos princípios estabelecidos na Constituição, nostermos do art. 18 e do seu § 1º, onde se expressam os poderes remanescentes,que serão todos os que o estado puder exercer sem ofensa explícita ou implícitaà lei fundamental do País.

Acrescenta-se (na discussão do assunto, em discurso e explanação queme foram encaminhadas) que, na Assembléia Nacional, a emenda do DeputadoHermes Lima, que propusera a menção, entre aqueles princípios, da exigência dogoverno presidencial, caiu em Plenário no debate travado precisamente em tornoda possibilidade, que se pretendia reservar aos estados, de instituírem formasparlamentaristas no mecanismo dos seus Poderes. Mas a emissão, no texto, dareferência, que se inseria na Reforma de 1926 e na Carta Política de 1937, nãobastará para assegurar aos estados a pretendida opção, à qual se antepõe eprincípio expresso da “independência e harmonia dos Poderes”. E foi em tornodeste que se travou a discussão da emenda explicitiva, havida por desnecessáriano curso dos debates, em face da menção daquele, que estaria comprometidopela adoção do governo parlamentar.

Na verdade, o princípio da separação dos Poderes, cuja independênciaestá pressuposta na Constituição, não comporta o regímen parlamentar ouqualquer de suas assemelhações. Se o comportasse, seria por igual admissível nojogo dos Poderes da União. Porquanto o princípio, antes de ser inscrito comoregra orgânica dos estados, inscreve-se no mecanismo dos Poderes da União,

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art. 36: “São Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário,independentes e harmônicos entre si”.

Se a vida de relação do Executivo e do Legislativo da União não pode serposta em termos diversos dos estruturados na Constituição, não estando aoalcance do Congresso modificá-los por uma lei para estabelecer alguma fórmulade mais íntima penetração, é desde logo inconcebível que possam fazê-lo osestados, mesmo em função constituinte, a que se dirige, precipuamente, amenção daquele princípio na enumeração do n. VII.

No governo parlamentar, a separação é apenas formal. Os que sustentama subsistência do princípio apegam-se ao argumento especioso de que não é oParlamento que exerce o Poder Executivo, senão um órgão intermediário, oGabinete, ainda que formado de membros do Parlamento.

Dizia Bagehot, o clássico expositor da Constituição inglesa, e o repetiuBryce, que ao parlamentarismo os Poderes Executivo e Legislativo estãoconfundidos.

Não pensa de outro modo Orban: “On sait que le gouvernement decabinet se caracterise par l’attribution de fonctions ministerielles aux chefsde la majorité parlamentaire. Ce fait est la negation complete de laseparation absolue des pouvoirs (...)” (Orban, Le Droit Const. de laBelgique, I, p. 371).

Incidência oral:

A esse propósito, Sr. Presidente, o eminente Sr. João Mangabeira lançou, datribuna, um argumento impressionante, a que sou forçado a opor alguns reparos.

Disse S. Exa. que o princípio da divisão e separação de Poderes, cujapaternidade é atribuída a Montesquieu, não obstante antecedentes que remontamaté Aristóteles, através de Locke, Bodin e tantos outros, mas cuja vulgarizaçãono mundo inteiro coube a Montesquieu — que o definiu, que o explicou, que ojustificou — e lhe mostrou o alcance como garantia política — disse o nobreorador que desse princípio se ocupou Montesquieu no capítulo de seu livro,Espírito das Leis, consagrado ao estudo da Constituição da Inglaterra, pátria doregime parlamentar.

E então, argumentou S. Exa., como é possível que se tenha porincompatível com esse grande princípio o parlamentarismo?

Entretanto, é preciso observar que Montesquieu escreveu o seu livro emmeados do século XVIII; Blackstone, a que fez também referência o eminenteorador, cita Montesquieu e o livro de Blackstone é posterior trinta anos ao deMontesquieu. Montesquieu e Blackstone podiam falar no princípio da separaçãodos Poderes, podiam preconizá-la, porque, na Inglaterra de então, não haviaainda o governo parlamentar, senão em estado embrionário; já havia, pela Magna

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Memória Jurisprudencial

Carta, a delimitação do poder da Coroa pelo Parlamento, mas não havia ainda ojogo parlamentarista, um Gabinete articulado com a maioria e dependente davontade dessa maioria; era ainda o Ministério do Rei, ainda que a Coroa, parapoder governar, escolhesse os seus ministros entre os homens que pudesseminfluir no Parlamento para que este lhe fornecesse os meios que dele e não daCoroa, já a esse tempo, dependiam. Só em começos do século XIX viriam a seradotadas na Inglaterra práticas propriamente parlamentaristas, isto é, umGabinete, que já não seria o antigo Conselho Privado do Rei, e sim umaemanação do Parlamento, e a articulação desse Gabinete com a vontade damaioria parlamentar, com o poder reconhecido a essa maioria de o destituir. Veiodaí, dessas práticas, a teoria parlamentarista na exposição dos escritores, acomeçar talvez por Bagehot na sua obra clássica sobre a Constituição inglesa.

De modo que Montesquieu podia sustentar e Blackstone podia repetirMontesquieu, aludindo ao princípio da separação dos Poderes, sem que daí sepossa concluir que estavam se referindo ao governo parlamentar, que só muitomais tarde seria admitido como um produto espontâneo na prática das instituiçõesinglesas e viria a ser conhecido como técnica ou teoria de governo.

É em face desse mecanismo que se pode colocar o problema dacompatibilidade da separação e independência dos Poderes para saber secomporta uma demarcação tão nítida quanto no governo presidencial.

É uma explicação a que sou levado, não só pelo relevo do argumento,como em atenção ao ilustre advogado que o lançou com o brilho do seu talento.

Ninguém ignora que, no governo de Gabinete, o Parlamento é o eixo dosistema, cujo primado incontestável leva ao desequilíbrio da balança dosPoderes. Por isso é que comprometido fica, no regime parlamentar, o princípio daequivalência dos Poderes, substituído praticamente, obseva Gordon, “par lecumul de tous les pouvoirs dans les mains de la majorité parlamentaire” (E.Gordon, La Responsabilité du Chef d’Etát dans la PratiqueConstitucionelle, 1931, p. 113).

É por esse primado que os expositores de após a guerra de 14 definem omoderno parlamentarismo. O parlamentarismo da tradição britânica exprimehistoricamente a luta da democracia contra o poder real, tendo por centro degravidade o Parlamento. Era menos a formação de um Executivo forte do queuma limitação do poder da Coroa. Nas modernas democracias, observaMirkine-Guetezeviteh, essa luta não mais existe, o sentido histórico dessareação não se acusa na modelação das instituições. O que se procura é ofortalecimento do Executivo, exercido por ministros articulados com oParlamento, daí resultando, acrescenta o expositor, que esse Executivo “estbeaucoup plus fort e beaucoup plus puissant que le pouvoir des anciens roiset des anciens ministres royaux” (Les Nouvelles Tendances, 1936, p. 199).

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Ministro Castro Nunes

O desequilíbrio da balança dos Poderes é inerente, está pressuposto nomecanismo parlamentar. Se por ele o que se objetiva é reduzir o chefe de Estadoà função meramente decorativa que se lhe assina no jogo dos dois Poderes paraevitar a hipertrofia acusada na prática do governo presidencial, hipertrofia de quenão estará, aliás, isenta a fórmula preconizada, o deslocamento desse primado,constitucional e político, está indicando, por si mesmo, a incompatibilidade de talregímen com a equivalência e harmonia dos Poderes constitucionais.

Mas, ainda quando se entenda que os Poderes Executivo e Legislativoestão separados, titulados este no Parlamento e aquele no Gabinete, não seriapossível admitir esse Executivo colegiado em face da Constituição, tão certo éque esta o tem por unipessoal na órbita federal (o presidente da República) e naestadual (o governador). E, o que é mais: o Poder Executivo de que cogita aConstituição, a atual como as anteriores, não comporta a distinção entre a funçãoexecutiva nominal ou formal, a cargo do chefe de Estado, e a função executivareal ou efetiva, confiada ao Gabinete.

Incidência oral:

E é nesta distinção que se fundam aqueles que encontram no regimeparlamentar a separação dos Poderes. O Executivo não é exercido pelo chefe doEstado, como o soberano, nas monarquias e o presidente da República, nospaíses, como a França, mas, sim, pelo Ministério, que é o destinatário do Poder.Ambas as funções, em nosso regime, estão tituladas no mesmo órgão que é ochefe do Estado e o chefe do Governo.

Quando a Constituição declara que os Poderes são entre si independentessupõe o Executivo constituído por essa forma, e não repartido entre o presidentee o Ministério, como órgão coletivo, ou o governador e o Secretariado. Ignoraesse segundo órgão que lhe absorve a ação governamental e, conseqüentemente,a responsabilidade funcional.

A Constituição não admite evidentemente essa deformação do PoderExecutivo. Não reconhece o Poder Executivo senão no governador com asprerrogativas e funções próprias do cargo.

Incidência oral:

O presidente da República, chefe do Estado, nas organizações parlamen-taristas não tem poder executivo real ou efetivo e, por isso mesmo, é mais deprerrogativa do que executiva a sua função.

E é nesse pressuposto que fala em Poderes separados e independentes,não sendo possível haver como tal um governador cujos secretários, que sãopeças complementares do Poder Executivo estadual, como os ministros no quadrofederal, lhe poderão ser tirados a cada momento pela Assembléia.

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Memória Jurisprudencial

Entra no mecanismo dos Poderes, como elemento de sua conceituação, oque, na teoria do direito público federal, se conhece por freios e contrapesos(checks and balances).

Nas relações do Poder Executivo e Legislativo são, entre outros, o veto esua rejeição pelas Câmaras, o processo de responsabilidade (impeachment), aconvocação, hoje admitida, de ministros, individualmente, por qualquer das Casasdo Congresso, etc. Não cogita a Constituição, nem poderia cogitar sem deformaro governo presidencial, do voto de confiança e da válvula correspondente, queseria a dissolução do Congresso.

Ora, se dessa fórmula de penetração não cogita a lei suprema do País nofuncionamento dos poderes políticos da União; e se o princípio da independênciae harmonia dos Poderes se estende, por cláusula expressa, à orgânica estadual,pergunto: podem os estados adotar esse princípio mediante freios e contrapesosoutros, além dos estabelecidos para o seu funcionamento no sistema federal?

Não vejo como admitir a afirmativa, sobretudo quando a inovação mudainteiramente a fisionomia do regímen. Será, do ponto de vista dos doutrinadoresdo parlamentarismo, uma válvula de segurança, a terapêutica mais eficaz contraa hipertrofia do Executivo. Mas não estará nesse elogio mesmo a contradiçãoconstitucional? Não estará nessa reviravolta, nesse deslocamento de um primadoque se disputa, a incompatibilidade da fórmula com a equivalência constitucionaldos Poderes?

Argumenta-se que a dissolução da Assembléia, reservada ao governadorsob representação do Secretariado, arma o Executivo do poder de apelar damaioria legislativa para o povo, nisso consistindo a indispensável válvula de segu-rança, que restabelece o equilíbrio dos Poderes.

Realmente assim é. Mas a dissolução de Assembléia não é possível, aindapor outro motivo, por contravir a outro princípio de observância obrigatória noquadro das instituições estaduais — o da “temporariedade das funções eletivas,limitada a duração destas à das funções federais correspondentes” (art. 7º,VII, c).

Essa disposição é a mesma que se inseria no texto de 34, art. 7º, I, c, com oseguinte enunciado: “temporariedade das funções eletivas, limitada aos mesmosprazos dos cargos federais correspondentes”.

Limitada aos mesmos prazos das funções federais correspondentesequivale a limitada à duração das funções federais correspondentes. Vale dizerque a duração do mandato legislativo estadual não poderá ser por prazo maior doque o estabelecido para o mandato legislativo federal. Poderá ser menor; masprefixado, não indefinido, por prazo certo. De outro modo não teria razão de ser

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Ministro Castro Nunes

a prescrição constitucional, cujo sentido óbvio é a correspondência na órbitaestadual da função eletiva não vitalícia, senão temporária, mas por tempo certo.

A dissolução da Assembléia seria a negação desse imperativo constitucional.Dissolver a Assembléia seria cassar, interromper, revogar o mandato legislativoantes do termo prefixado.

Ainda por esse motivo estaria o contrapeso, que se tem por compensatório,em conflito com a Constituição: se a derrubada do Secretariado por via da moçãode desconfiança não se compadece com o princípio dos Poderes separados,harmônicos e independentes, a réplica do governador, mediante a dissolução,seria inconciliável com o mandato legislativo a prazo certo.

VIII - Nem todos quantos, entre nós, examinaram, em face das anterioresconstituições, a obrigatoriedade do governo presidencial na orgânica dos estadosou sua inclusão implícita no art. 63 da primeira Constituição republicana, concluíramafirmativamente. Outros não aludiram à correlação existente entre o princípio daindependência recíproca dos Poderes e o tipo presidencial do governo; alguns oterão negado.

Na locução de 91 “forma republicana-federativa” (art. 6º, 2º) não encontrouBarbalho, cuja lição seria repetida por outros, nem o governo presidencial, nem oprincípio dos Poderes separados, divisão trinitária dos Poderes que não é peculiar àforma republicana, como viria mais tarde o demonstrar Ruy Barbosa.

Mas o princípio já estava expresso como regra de vida e de conduta dosPoderes da União com o significado que não passou despercebido a AmaroCavalcanti — de excluir o governo parlamentar, ainda que examinado oassunto no plano das instituições federais.

Recordou o eminente publicista a lição do Império, as práticas parlamen-taristas então adotadas à revelia ou em contraposição ao texto constitucional,concluindo que tais práticas redundavam na confusão dos Poderes Legislativoe Executivo (Regímen Federativo, 1900, p. 207).

A mesma correlação foi igualmente pressentida por Annibal Freire: “Aíndole geral dos países regidos pelo governo parlamentar é a da absorção peloramo do poder público, que mais, diretamente encarna e representa a soberania.”(Do Poder Executivo na República Brasileira, 1916, p. 9.)

Na Reforma de 1926, foram incluídos, entre outros, na enumeração dosprincípios constitucionais de observância obrigatória pelos estados, o princípio daindependência dos Poderes e o requisito do governo presidencial.

Na Constituição de 34, omitiu-se este, mencionando-se todavia aquele —“independência e coordenação de poderes”. A de 37 limitou-se a mencionar ogoverno presidencial.

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Comentando o Estatuto de 34, Pontes de Miranda escreveu com acerto:“A independência dos poderes a exigir-se há de ser a que está na Constituição de1934 para os poderes federais. Não se pode cogitar de conceito a priori deindependência. São independentes os poderes estaduais que o forem na medidaem que o são os federais” (Comentários à Constituição, I, p. 302). Mas dessaregra se afasta, páginas adiante, no admitir que os estados possam adotar formasparlamentaristas, dando por excluído, porque omisso o texto, o governo presidenciale não correlato esse tipo de governo de poderes limitados com aquele princípio(p. 357, ibidem).

Concludente é o comentário de Araújo Castro, que, depois de mostrarque a omissão no texto de 34 de alguns princípios fundamentais do regímen, entreos quais o governo presidencial, não importava exclusão, assim se manifesta: “Acoordenação e independência dos Poderes exclui o regímen parlamentar, no qualo Executivo está sempre dependente do Legislativo.” (A Nova Constituição,1935, p. 85.)

A atual Constituição dispõe semelhantemente: não menciona o governopresidencial, senão o princípio dos Poderes separados e independentes, cujo padrãonão é o parlamentarismo, e sim o governo presidencial.

IX - Conforme já ficou dito no começo deste voto, o que na Constituiçãodo Rio Grande colide com a Federal são somente os dispositivos parlamentaristas,devendo, segundo penso, ficar limitada a esses a declaração da inconstitucionali-dade. São os do Título VIII, sob a rubrica “Do Secretariado”, ainda que nemtodos. Os mais comprometidos são os arts. 76 e 89, de cuja combinação resulta aintegração do Secretariado como órgão coletivo; o art. 77, que dá ao Secreta-riado um chefe, de cuja indicação dependerá a escolha dos demais secretários;o art. 78, que exige seja membro da Assembléia o chefe do Secretariado; oart. 81, que dispõe sobre a apresentação por este perante a Assembléia, doprograma do governo; o art. 82, que subordina a permanência do Secreta-riado ou de qualquer dos seus membros à confiança da Assembléia; os arts. 83e 84, que tratam da moção de desconfiança; e os arts. 85, 86 e 87, que dispõemsobre a dissolução da Assembléia.

Outros, também apontados, são dispositivos relacionados com esses, ounão merecem censura. Os que contêm referências ou pressupõem o mecanismodelineado devem ser suprimidos ou modificados no seu enunciado. Entre essesestá o art. 49 das Disposições Transitórias, onde se declara que não serádissolvida a atual legislatura, exceção que pressupõe a disposição permanente.Os que escapam à censura são o do art. 65, que define o Executivo pelogovernador e pelo Secretariado (tomada esta locução como equivalente deministério, na linguagem corrente): o parágrafo único do art. 88, no tocante aossecretários sem pasta, disposição de possível coloração parlamentarista, masanódina; e, possivelmente, outro dentre os indicados.

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Ministro Castro Nunes

Nestes termos, julgo inconstitucionais os arts. 76, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85,86, 87 e 89 — e bem assim os dispositivos que, no corpo da Constituição ou noAto das Disposições Transitórias, os pressupõem, os quais deverão ser modificadosou ter redação diferente.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: feito o relatório, foi man-dado publicá-lo para julgamento ulterior.

REPRESENTAÇÃO 96 — DF

VOTO (Preliminar)

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, a referência feita pelo eminenteSr. Ministro Relator ao meu voto me obriga a vir ao debate, antecipadamente.

No caso do Rio Grande do Sul, conforme S. Exa. salientou, não houve oexame da questão como matéria preliminar. Tratei do assunto, na parte expositivado voto, antes de apreciar a matéria das argüições, examinando vários aspectos eteses. Salientei ou focalizei também esta, no sentido de que a matéria sobre a qualpodia versar o julgamento do Supremo Tribunal Federal, por esta forma, isto é, naforma do art. 8º, parágrafo único, é somente aquela que possa ser enquadrada emalguns dos princípios enumerados no art. 7º, n. VII, da Constituição. Esse pontofoi por mim examinado nas razões do meu entendimento.

Ainda agora, sou forçado, antes de proferir o meu voto, ou até oantecipando, a reafirmar esse ponto de vista, para o qual está voltada a atençãodeste Tribunal e cuja gravidade e relevância não pode escapar a nenhum doseminentes colegas.

Basta considerar que a sanção adstrita ao veredictum do Tribunal é aintervenção, para mostrar o seu caráter excepcional. O Tribunal pode conhecerde quaisquer das argüições, mas pela via comum. Mediante os remédios judiciaisadequados, poderão essas argüições vir aos tribunais competentes e chegar atéao Supremo Tribunal Federal. Mas, para exercer a atribuição do art. 8º, parágrafoúnico, que lhe dá o poder de declaração da inconstitucionalidade, em tese, e,como conseqüência, a intervenção federal, ele está adstrito e obrigado a verificar,em cada argüição, a sua filiação, o seu entroncamento em alguns dos princípiosenumerados na Constituição. Do contrário, estaríamos ampliando uma atribuição

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que é do seu natural, excepcionalíssima, e de certa forma diminuindo e ameaçandoa autonomia dos estados. Isso não podemos fazer, data venia.

Observou o eminente ministro relator que não é possível aprofundar oexame da preliminar que envolve o mérito de cada argüição. Estou de acordocom S. Exa. Será uma preliminar de mérito, de que há tantos exemplos, acomeçar pela letra a do art. 101, n. III, no caso do recurso extraordinário. O quese dirá é que, no exame das argüições, cada um de nós verifica, examina em queconsiste ela e se é possível vinculá-la a cada um ou a qualquer daqueles preceitosconstitucionais.

Observei, no meu voto, no caso do Rio Grande do Sul, que cada um dessesprincípios constitucionais é um dado doutrinário, que comporta exploração econceituação.

Será preciso estudar a noção do princípio da independência dos Poderes, anoção da autonomia municipal, o princípio do governo representativo, em queconsiste a forma republicana, etc. Examinados esses pontos, confere-se com anoção, com a conceituação doutrinária, com os entendimentos recebidos nadoutrina e na jurisprudência, a argüição feita e, então, chega cada um de nós àconclusão de que é possível, demonstradamente, incluir, entroncar a argüição noprincípio apontado ou em outro princípio dentre os enumerados. Se se concluirque não é possível, não se deve conhecer da argüição. Não temos que nospronunciar sobre ela. Temos que aguardar que o caso venha, por provocação dointeressado, para ser examinado em espécie.

Quanto à primeira preliminar, estou de acordo com o eminente ministrorelator. Toda a matéria submetida pelo nobre Dr. Procurador-Geral da República,qualquer que seja a opinião de S. Exa., sempre, sem dúvida, valiosa, mesmo queseja desfavorável, não implica o afastamento da questão, uma vez que ela consteda representação da Procuradoria-Geral.

Quanto à segunda preliminar, nos termos expostos, estou de inteiro acordocom eminente Ministro Hahnemann Guimarães.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: I - A matéria de que conhece o SupremoTribunal, no exercício da sua atribuição do art. 8º, parágrafo único, é somenteaquela que se relacionar demonstradamente com algum dos princípios enumeradosno n. VII do art. 7º. Fora daí, por mais evidente que seja a inconstitucionalidadedo dispositivo estadual, não lhe compete corrigir a violação no exercício daatribuição excepcional que lhe foi conferida, e sim em espécie, mediante osmeios ou recursos de que dispuser o interessado.

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Ministro Castro Nunes

No meu voto como relator do caso do Rio Grande do Sul demarquei, nostermos acima, o âmbito confinado da nossa competência, cuja ampliação aargüições alheias a qualquer daqueles princípios básicos ameaçaria a autonomiaorgânica dos estados e repugnaria à sanção mesma adscrita ao veredictum, e talé a intervenção, a ser entendida restritivamente.

Não será demais observar que, na estruturação federativa, os estados, eestá dito no art. 18, se regem pelas Constituições e leis que eles mesmos adotam,no exercício de poderes explícitos e implícitos não reservados à União, com res-salva somente dos princípios enumerados, que são os do art. 7º, n. VII.

Não se contesta que outros princípios, outras regras, outras limitaçõesexistam, nem se diz possam ser violados impunemente. Apenas escapam ao jul-gamento por disposição geral e à intervenção que virtualmente o acompanha,como sanção excepcional só compreensível naqueles casos restritos.

Sucede, porém, e isso mesmo acentuei, que cada um daqueles princípios éum dado de doutrina, que comporta exploração no terreno movediço dos princípios.

Daí a possibilidade e necessidade de verificar se a argüição pode serrazoavelmente compreendida na conceituação de algum deles. Se não puder, oTribunal não deve conhecer dela; se puder, conhece e remove a violação pararealizar o ajustamento do estatuto estadual às regras fundamentais do da União.

Muitas vezes a violação argüida poderá ser remediada em espécie, confi-gurando um direito subjetivo em termos de ingressar em juízo, circunstância quepor si só não bastará para que o Tribunal se abstenha de declarar a inconstituciona-lidade em tese. Se se demonstra que a violação poderia ser corrigida pelos meiosprocessuais comuns, mas se, igualmente, se demonstra que ela se relaciona comqualquer das cláusulas enumeradas no art. 7º, n. VII, nem por isso estará trancadoo julgamento por disposição geral.

Pode ocorrer que se trate de argüição para a qual esteja previsto naprópria Constituição o recurso para dada justiça. Tal o caso, que ora seapresenta, da inelegibilidade estabelecida para o provimento de cargos estaduaiseletivos, em face da disposição constitucional que declara competir à JustiçaEleitoral decidir das argüições de inelegibilidade. A possibilidade desse recursoulteriormente, nos casos concretos, não obsta o conhecimento da argüição e suasolução, desde que trazida ao Supremo Tribunal e se for possível entrosá-la como regímen representativo.

Da exposição do nobre Sr. Dr. Procurador-Geral da República constammatérias que escapam ao exame do Tribunal; e outros, em maioria, que se vinculamaos princípios pelos quais se mede a nossa competência nos termos expostos. Noexame de cada uma das argüições darei as razões dessa vinculação.

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II - Outro aspecto preliminar suscitado pelo ilustre patrono da AssembléiaLegislativa é o referente ao acolhimento ou não pelo Dr. Procurador-Geral dasargüições por S. Exa. encaminhadas ao Tribunal.

É certo que, nos termos do dispositivo constitucional do art. 8º, parágrafoúnico, o Supremo Tribunal não se pronuncia senão por provocação daquele órgãosupremo do MP; mas, se ele acolhe a representação que lhe tenha sidoencaminhada e a submete ao Tribunal, toda a matéria submetida, mesmo a quelhe pareça incensurável, está posta ao alcance do julgamento do Tribunal.

Coisa diversa é o seu parecer, a opinião emitida sobre os diversos aspectosda questão, o acolhimento ou a repulsa deste ou daquele ponto. Nem o Tribunalestá preso a esse parecer, por valioso e esclarecido que seja — e o são os doeminente titular do cargo —, nem circunscrito na sua função aos pontos quetenham incidido na sua censura. Fora assim e seria o nobre procurador-geral, enão o Tribunal, o juiz da procedência das argüições, que estariam encerradas,desde que pela sua improcedência se manifestasse o órgão do Ministério Público.

III - A argüição mais séria é a relativa ao impeachment.

Há duas questões preliminares suscitadas. Uma delas sobre a possibilidademesma do impeachment na órbita estadual; e outra sobre a possibilidade de oadmitir fora do regímen bicameral.

Não é possível argumentar com as regras do Direito Penal e Processualem se tratando de uma instituição eminentemente política, por sua natureza e fins,como é o impeachment.

Não importa que dele só tenha cogitado a Constituição no plano federal,como, por igual, só o faz relativamente aos Poderes Legislativo e Executivo, osquais, nem por isso, deixam de estar pressupostos na órbita dos estados.

Destes não cogita o Estatuto Federal, mas os pressupõe como umimperativo do sistema federativo, em que os estados são organismos políticos,que se organizam por si mesmos, como miniaturas da União, com ambos aquelesPoderes e mais o Judiciário.

Um dos requisitos exigidos é que se organizem em forma republicana eguardando o princípio dos Poderes separados e independentes.

O impeachment está ligado à forma republicana e ao mecanismo dessesPoderes. O governo republicano se define pela eletividade, temporariedade dasfunções eletivas e responsabilidade dos agentes do poder público.

A responsabilidade dos servidores públicos é tornada efetiva perante ostribunais judiciários e por aplicação do Código Penal.

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Ministro Castro Nunes

Mas os crimes do chefe do governo refogem à incriminação comum e taissão os enumerados atualmente no art. 89 da Constituição.

São infrações que só o presidente da República e, nos estados, o governadorpodem cometer: obstando o livre exercício dos outros Poderes, atentando contraa execução orçamentária, a guarda e emprego dos dinheiros públicos, etc.

O impeachment não visa à punição; visa ao afastamento, à destituição docargo por imputação de algum daqueles fatos; se esses fatos encontraremcorrespondência na incriminação comum, o chefe do Executivo é entregue àJustiça, que o processará e julgará por aplicação do Código Penal. Nisso consisteo indictement.

Não seria possível o jogo dos poderes sem o chamado sistema dos freiose contrapesos, que o governa. O impeachment é sabidamente um desses expe-dientes destinados a manter o equilíbrio dos dois Poderes.

O mecanismo dos poderes políticos do estado estaria comprometido oudeformado se o Legislativo não dispusesse dessa prerrogativa, de que poderáusar facciosamente, como, aliás, também o federal — e o impeachment degenerafacilmente em arma política —, mas pressuposta como um consectário da autonomiapolítica dos estados.

A segunda indagação preliminar é sobre a possibilidade do julgamentopor impeachment nos estados em que o corpo legislativo se reduz a uma únicaCâmara.

Argumenta-se que o órgão acusador é o mesmo órgão julgador; acusaçãoe julgamento que no modelo federal pertencem a corpos deliberantes separados,a Câmara dos Deputados e o Senado.

Parte-se, entretanto, de um equívoco: a Câmara dos Deputados nãofunciona como órgão acusador pelo fato de lhe competir julgar da procedênciada acusação; funciona como juiz preparador ou processante, cujas atribuiçõesvão até à pronúncia, e nisso consiste o julgamento da procedência da acusação,após as provas e a defesa.

Órgão acusador será o denunciante ou serão os deputados que propuserema instauração do processo de responsabilidade.

Nem o fato de estarem no mesmo corpo deliberante todas as fases dainstrução e julgamento contradiz sequer os princípios de direito comum, porqueentão não seria possível o processo e o julgamento originários nos tribunaisjudiciários.

Para não admitir o impeachment pelo argumento de que as duas fasesdevem estar separadas em corpos deliberantes diversos, seria preciso sustentarque os estados estão obrigados ao sistema bicameral.

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Ora, a Constituição mesma, nas Disposições Transitórias dos arts. 2º, § 3º,e 11, §§ 1º, 7º, n. IV, etc., refere-se reiteradamente às Assembléias Legislativasdos estados, deixando entrever claramente que cada uma delas é um corpodeliberante único.

Mas, admitido o impeachment, não podem os estados afastar-se do para-digma federal.

Ainda aqui cumpre salientar, como já o fiz no voto sobre o caso do RioGrande: no mecanismo dos poderes do estado os freios e contrapesos não podemser outros nem diversos dos estabelecidos para os poderes da União.

A Constituição de São Paulo dispõe que o recebimento da denúncia pelaAssembléia importará no afastamento do governador, cujo processo será pro-movido por uma comissão especial de deputados, competindo ao plenário ojulgamento final.

Essa comissão incumbida da instrução parece suceder ao recebimento dadenúncia. Vale dizer que o afastamento decorre do recebimento da denúncia pelaAssembléia ainda antes da formação da culpa.

É um afastamento pela só vontade da maioria, sem imputação apurada econtraditada, que redunda na suspensão do chefe do Executivo no plano daconfiança política.

Ainda que saibamos que, na prática, o impeachment é um julgamentopolítico, à feição da vontade da maioria hostil, é necessário, entretanto, guardara forma, as garantias, ainda que relativas, que ele representa, o princípio daimputação específica com o consectário das provas e da defesa, sem o que nãose concebe a instituição. O recebimento da denúncia não pode ter esse efeito.É uma deliberação preliminar que equivale à licença para processar. A Assembléia,se assente, não prejulga da acusação. Vai apurar os fatos por intermédio dacomissão especial, de que cogita o dispositivo, cuja conclusão terá de ser sub-metida ao plenário para que este se manifeste sobre a procedência da acusação.Só então estará suspenso de suas funções o governador, seguindo-se então ojulgamento.

O impeachment, como instituição correlata do mecanismo dos poderespolíticos, é um só em nosso regímen. Não podem os estados adotá-lo emmoldes diversos. É o que existir, nos termos da preceituação federal, que é oDecreto legislativo n. 27, de 7 de janeiro de 1892, com o que estiver prescritona Constituição e o que puder caber no âmbito regimental das CâmarasLegislativas.

Os crimes do governador são os mesmos em que pode incorrer o presidenteda República. São crimes peculiares à função de chefe de governo.

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Ministro Castro Nunes

O do art. 54, parágrafo único, é crime de responsabilidade de ministro deEstado e, na órbita estadual, do secretário do governo que se recusa injustificada-mente a atender ao chamamento da Assembléia. Falta de resposta, a simplesomissão no prestar informações pedidas pela Assembléia não é crime nem mesmode secretário de governo, muito menos do governador, e como tal o capitula ino-perantemente o Estatuto paulista.

IV - A sujeição à Assembléia da nomeação dos prefeitos das estânciashidrominerais diz respeito à autonomia municipal, que é um dos princípios enume-rados no art. 7º, n. VII.

A Constituição Federal dispõe no art. 28, § 1º, que “poderão ser nomeadospelos Governadores dos Estados os prefeitos das capitais bem como os dosmunicípios onde houver estâncias hidrominerais naturais quando beneficiadaspelo Estado ou pela União”. Essa condição está satisfeita, em face do art. 72,parágrafo único, da Constituição do estado.

A disposição federal não é imperativa. Não diz que serão de nomeação dogovernador tais prefeitos. Dessa linguagem usa o texto federal no § 2º,referentemente aos municípios — bases militares.

Esses é que serão de nomeação e o provimento compete ao governador.

Aqueles, porém, poderão ser de provimento por nomeação ou eletivo.“Poderão ser nomeados (...)” está no sentido de “poderão ser de provimentopor nomeação”.

Mas a Assembléia estadual não está impedida de optar pelo provimentoeletivo, aliás mais consentâneo com a regra do artigo e o resguardo da autonomiamunicipal. Entre os dois extremos colocou-se o dispositivo em exame: admitiu oprovimento por nomeação, mas com o placet da Assembléia.

Não encontro, pois, inconstitucionalidade no dispositivo da letra e do art.43, que se refere às instâncias hidrominerais.

Há referências, entretanto, ao disposto na letra d do mesmo artigo e no art.3º, I, das Disposições Transitórias. Aquele refere-se aos prefeitos de que cogita o§ 2º do art. 28 da Constituição Federal, e tais são as dos municípios bases militares,subordinando-lhes igualmente a nomeação à aprovação da Assembléia.

Tal exigência contravém à letra e ao espírito da disposição federal, quedeclara de nomeação do governador os prefeitos das bases militares, prescriçãoimperativa “serão nomeados (...)” que corresponde à inspiração de defesa nacionalque preside a essa restrição da autonomia.

A disposição transitória do art. 3º, n. I, diz respeito aos prefeitos nomeadospara os municípios em que a investidura será eletiva.

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Memória Jurisprudencial

São agentes que irão aguardar o provimento definitivo por eleição. Dessesnão cogita a Constituição Federal. O governador teria de os nomear, ainda quenão expresso o poder na Carta estadual, por uma imposição das circunstâncias,para prover à acefalia de tais circunscrições.

Cogitando do assunto, e expressando a atribuição do governador, fê-lo adisposição transitória clausulando-a pela sujeição do ato à aprovação da Assem-bléia. Nada de contrário ao princípio da autonomia municipal. Aliás assim votei nocaso do Ceará acompanhando o entendimento do eminente Ministro HahnemannGuimarães.

V - O poder de nomear sofre outras limitações ou, de um modo geral,existem outras argüições, todas referentes ao poder de nomear ou envolvendorestrições à autonomia funcional do Poder Executivo.

Assim é que, segundo o disposto no mesmo art. 21, letra m, ficam sujeitasao placet da Assembléia também as nomeações dos diretores das autarquias edas sociedades de economia mista.

Já não é de restrição ao princípio da autonomia municipal que se trata, masde limitação no provimento dos cargos públicos, atribuição que pertence, emprincípio, ao Executivo e que a disposição censurada partilha com a Assembléia.

Percebe-se, assim, que existe certa vinculação com o princípio da inde-pendência dos Poderes, que não se define pela só existência dos órgãos separadosmas também pela esfera de ação reservada a cada um deles.

É, pois, de ser conhecida a argüição; mas para ser julgada improcedente. Eassim me parece, porque as autarquias são entes que, embora instituídos peloEstado, com este se não confundem juridicamente, são entidades à parte, dotadasde responsabilidade separada da estatal. Se a lei descentraliza o serviço e opersonifica, retira-o da ação direta do governador ainda que conservando nestecertas funções de superintendência ou tutela, menos ou mais estreitas.

Prover aos cargos públicos é, sem dúvida, atribuição do chefe do Executivo;mas os termos da atribuição no texto federal não impedem a distinção, isto é, apossibilidade de ser clausulada, em se tratando de administrações públicas indiretasou paraestatais.

Argumenta-se que não admitimos a colaboração da Assembléia na escolhados secretários de governo, que declaramos livre de tal restrição, e assim decidimosno caso do Ceará.

Mas não existe paridade. A nomeação de tais auxiliares do chefe do Exe-cutivo situa-se, nos termos da Constituição, no plano da confiança do presidenteda República, devendo refletir-se na órbita estadual com a mesma característica.Muito diverso é o caso dos serviços autônomos que a lei institui (e tais são as

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autarquias e as sociedades de economia mista) para que se desenvolvam à margemda administração direta dos serviços do Estado.

Não vejo por que censurar, por inconstitucional, a reserva de uma colabo-ração do Legislativo na escolha dos dirigentes de tais serviços.

Acresce que já hoje, em face da atual Carta Federal, as administraçõesindiretas estão subordinadas, quanto aos atos da administração financeira, aostribunais de contas, que se definem como órgãos postos de permeio entre o Exe-cutivo e o Legislativo para vigiar a execução orçamentária e a aplicação dosdinheiros públicos. Se as autarquias devem contas a esses tribunais, estão, porintermédio destes, articuladas de certo modo com o Legislativo. Não encontro,pois, a alegada inconstitucionalidade.

VI - O Poder Executivo é, por definição, o Poder que executa, age, admi-nistra, leva a efeito obras públicas, planeja empreendimentos, etc. A dependênciaem face da Assembléia no desenvolvimento da sua ação administrativa está noconsentimento da despesa. Se consente e dá os meios necessários, a execuçãopertence ao governo, não se compreendendo que a Assembléia se reserve opoder de vigiá-la (e a tanto corresponde o disposto no art. 146, parágrafo único)para impedir que sejam suspensos, interrompidos ou alterados os planosadotados, ainda porque tais interrupções ou alterações poderão depender decircunstâncias imprevistas ou sobrevindas.

Não existe nem seria preciso que existisse, no Estatuto Federal, cláusulaexpressa declarando que a execução dos serviços criados pelo Legislativo pertenceao Executivo. Isso está implícito. É uma decorrência da autonomia funcional doPoder responsável pelo impulso e rendimento do mecanismo administrativo. Dizrespeito à esfera própria do Poder Executivo. Não se compreende em face dosPoderes separados e independentes uma administração peiada nos seus movi-mentos pela Assembléia.

VII - Os arts. 85, 86 e 87, parágrafo único, cogitam de subtrair da livredisposição do Governo os direitos da função pública de carreira, estabelecendocondições de admissão e de acesso e cogitando de uma comissão a ser instituídapor lei para deliberar sobre a admissão e classificação dos candidatos.

Os dois pontos sobre os quais incide a censura estão no fato de ser eletiva,em sua maior parte, essa comissão e de se usar no texto da palavra resolver,verbis: “resolver quanto à classificação para admissão e promoções do funciona-lismo”.

O que se institui por esses artigos é um aparelho de seleção para o ingressona função pública e no desenvolvimento da carreira. É, em última análise, oDASP.

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Memória Jurisprudencial

A composição em parte eletiva não basta, a meu ver, para desvirtuar ainstituição, se se entender que os designados por esse meio serão funcionários.

A criação de um órgão dessa natureza importa, é certo, numa limitação aodireito de escolher ou preferir; mas não retira do governador a atribuição deprover a vaga, o poder de nomear, de conferir a investidura, ainda que adstritaaos critérios de seleção e classificação estabelecidos pela Comissão.

O que se pode dizer é que não nomeará livremente; mas o poder deprover os cargos públicos não se enuncia com esse advérbio, antes comporta aslimitações que forem estabelecidas por lei ou pela Constituição, conforme oenunciado do texto federal.

O verbo “resolver” está empregado no que toca às atribuições da Comissão.Se a esta pode competir classificar os candidatos, indicando-os pela ordem domerecimento ou da antiguidade, nada resta realmente ao governador, que terá denomear de acordo com as indicações.

A execução dos dispositivos incriminados está na dependência de lei pre-vista, a qual dará os moldes definitivos da instituição apenas esboçada. Poderáestabelecer, por exemplo, a escolha por merecimento em lista a ser submetida aogovernador, o que será mais curial.

Eis por que me parece que a instituição em si mesma, no esboço constitu-cional, não colide com o poder de nomear, que se conserva nas atribuições dogovernador.

O que se limita, como disse, é a preferência, a livre escolha, o favoritismo,e é isso que visa evitar a instituição de um órgão de classe no resguardo dosdireitos da função pública de carreira.

VIII - Tenho por inconstitucional o inciso i do art. 21. A função regula-mentar do Executivo é, em nosso regímen, função própria desse Poder. Seexcede os limites da lei, o juiz desse conflito não é o Legislativo, senão o Judiciário.

É exato que a disposição equivale a um freio no jogo dos poderes políticos,no interesse da observância da cláusula “fiel execução” a que está condicionadaa função regulamentar. E assim o estatuía a Constituição de 34.

Podia fazê-lo o constituinte federal e, à sombra deste, o estadual.

Mas a atual Constituição omite essa interpenetração. Daí resulta, como jáficou exposto, que não está ao alcance do constituinte estadual estabelecer nomecanismo dos Poderes um freio de que não cogita o Estatuto da União.

A disposição de letra j do mesmo art. 21 reproduz o disposto no art. 64 daCarta Federal. Não pode ser inconstitucional.

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Já então o decreto de execução suspensa passou pelo crivo judicial e estávirtualmente eliminado do direito positivo.

IX - A isenção dos impostos municipais (arts. 65, a, c, d, e art. 30 dasDisposições Transitórias) importa numa violação da autonomia municipal. Éargüição a ser conhecida; e julgada procedente.

A atual Constituição, ao contrário da de 91, confere ao município certosimpostos, o que equivale a lhe dar esfera tributária própria. O poder de isentar écorrelato do poder de tributar. A isenção de que cogita o texto paulista vale rela-tivamente aos impostos estaduais, conceituando-se as disposições constitucionaiscomo disposições legislativas.

A disposição federal do art. 31, parágrafo único, que repete, aliás, adisposição do art. 32, parágrafo único, da Carta anterior, nada tem que ver com ocaso. Diz respeito somente à União, gerando o quebra-cabeça de saber se a leiespecial aí prevista, relativa aos serviços concedidos da União, pode alcançar ounão os impostos locais.

X - As disposições que exigem prazos de residência no estado para aelegibilidade do governador e dos deputados explicam-se, principalmente quantoao cargo de governador, que não deverá ser um brasileiro estranho aos problemasdo estado.

Mas essa exigência útil, sem eiva de regionalismo, porque compreensivamesmo dos naturais do estado, mas dele afastados e alheiados da sua vidadoméstica, não a permite a atual Constituição, que não abre brecha por ondepossam insinuar-se certos detalhes, como esse, que a nossa experiência mesma,sob as instituições de 91, estaria justificando.

Em nada deformaria o regímen representativo se aos estados se deixassedispor suplementarmente sobre os pontos não regulados pelo texto federal.

A Constituição encerra num círculo de ferro toda a matéria eleitoral, quedeclara da competência privativa da União, compreendendo-se nessa matéria aorganização do sufrágio, ativo e passivo, desde o alistamento até as inelegibilidades,que não poderão ser outras senão as cogitadas.

O direito eleitoral é a organização jurídica da democracia representativa;eis por que a argüição diz respeito a essa e deve ser conhecida.

Tenho, pois, por inconstitucionais os dispositivos apontados em que se exigea condição de residência no estado para a investidura eletiva.

XI - O art. 16, § 2º, permitindo que o deputado exerça o magistério público,em havendo compatibilidade de horários, contravém à independência do legislador,que se terá querido preservar ao estabelecer-se, no texto federal, que o deputado

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Memória Jurisprudencial

ou senador não poderá exercer emprego público remunerado. O que inspira taisproibições é a independência dos membros do Poder Legislativo em face doExecutivo. A regra que domina a matéria é a do art. 36, § 1º, elementar, por suanatureza e do lugar em que se insere, do princípio da separação e independênciados Poderes: “o cidadão investido na função de um deles não poderá exercer asde outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição”.

Não estando prevista no texto federal a exceção admitida no textopaulista, incorre esta em censura por ofensiva daquele princípio.

XII - Outras disposições apontadas na representação escapam ao examedo Supremo Tribunal neste julgamento. Tal o caso da circulação de bilhetes deloterias. Ainda que se entenda a cláusula “de outras procedências” como com-preensiva mesmo dos bilhetes de loteria de concessão federal, o problema jurídicoque daí deriva não se articula com qualquer dos princípios enumerados no art. 7º,n. VII.

Do mesmo modo os arts. 7º, 16, 23, 25 e outros do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias, referentes a padrões de vencimentos, estabeleci-mento de cursos universitários, etc. Não conheço de tais argüições.

XIII - Nos termos expostos, julgo inconstitucionais as disposições relativasao impeachment (arts. 44, parágrafo único, e 45, §§ 1º e 3º); o disposto no art. 43,letra d (prefeitos dos municípios — bases militares); o art. 146, parágrafo único(execução subordinada à Ass. de obras públicas autorizadas); o art. 21, letra i(função regulamentar do Executivo); os arts. 65, a, c e d, e 28 e 30, letra b, dasDisposições Transitórias (isenção de impostos dos municípios); as disposiçõesque exigem prazo de residência no estado como condição de elegibilidade (arts.6º, 37, letra d, e 77, § 1º); e o art. 16, § 2º (exercício de magistério por deputado).

REPRESENTAÇÃO 97 — PI

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Seguindo a ordem em que foi examinada amatéria pela Procuradoria-Geral da República, chego às seguintes conclusões:Arts. 13 e 14: não tenho por inconstitucional a dependência de aprovação, pelaAssembléia, da escolha dos interventores para os municípios. A disposição federalque se pretende correspondente diz respeito à intervenção nos estados e sóaproveita ao presidente da República. Nada impede que, até no melhor resguardo

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da autonomia municipal, a Assembléia colabore com o governador na escolha dointerventor. Art, 42, § 3º: a Constituição do Piauí exige maioria absoluta (metade emais um) para a rejeição do veto; a federal, 2/3 dos presentes. Se é certo queo veto e sua rejeição dizem com o mecanismo dos freios e contrapesos, inerenteao jogo dos poderes, não estão os estados impedidos de adotar variantes quepraticamente equivalham ao modelo federal, sendo que a metade e mais um datotalidade da composição pode equivaler, e quiçá exceder, à maioria eventual dos2/3 dos presentes. O art. 51, n. 5, dá ao Tribunal de Contas a função de julgar, emúltima instância, os recursos administrativos. É uma atribuição a latere, que podedeformar a instituição, mas não chega a comprometer a sua função própria nemse pretende exclua o reexame pelo Judiciário daquelas decisões. A Corte deContas é essencial no mecanismo estadual e diz com o princípio da letra f do n.VII, art. 7°. Mas a atribuição acrescentada não se entrosa com esse princípio,mero aproveitamento de um órgão idôneo destinado a controlar o orçamento ou aadministração financeira do estado para funcionar cumulativamente como tribunaldo contencioso administrativo, controlando a legalidade dos atos em geral. Nãotenho por inconstitucional o dispositivo.

Por igual o art. 53, no atribuir ao procurador-geral do estado as funções deMinistério Público junto ao dito Tribunal.

O art. 67, § 1°, refere-se à instância de julgamento no impeachment. Éessa a arguição mais séria.

Se os estados não estão obrigados ao sistema bicameral, é forçoso admitiruma destas duas soluções: ou a própria Assembléia será o júri de sentença,depois de julgar procedente a acusação (solução que não será inconstitucional adinstar do que se pratica nos julgamentos originários, em que o recebimento dadenúncia, a instrução, a pronúncia e o julgamento final pertencem ao mesmocolégio processante e judicante); ou o será uma Corte especial, composta demagistrados superiores e deputados, depois de julgada procedente a acusaçãopela Assembléia — solução que também não me parece inconstitucional, e já erapraticada entre nós em vários estados sob as instituições de 91 (ConstituiçõesEstaduais, 1921, p. 126), conforme tive ocasião de examinar.

O essencial é que, no mecanismo dos poderes, os estados adotem o pro-cesso político de responsabilidade funcional, que é o impeachment.

O impeachment é uma prerrogativa do Poder Legislativo, uma válvula desegurança de que dispõe o Poder mais representativo da vontade popular parafazer cessar a ação nefasta de um chefe de Estado traidor, desonesto ou despótico.É uma revolução branca nos quadros constitucionais.

Sabemos que, na prática, pode ser um instrumento de hostilidade facciosa;mas, na teoria da instituição, é esse o sentido alto da medida drástica e excepcional.

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Memória Jurisprudencial

Não é possível negar aos estados o impeachment sem lhes mutilar a auto-nomia política e reduzir o seu poder legislativo.

A atual Constituição, em várias disposições transitórias, deixa entreverclaramente que os estados não estão obrigados a instituir duas Câmaras. Daíresulta que, ou poderão adotar o processo político de responsabilidade do governador,acumulando a Assembléia a dupla função processante e julgadora, ou poderãoinstituir um juízo de sentença de caráter misto.

No sistema federal, esse juízo é o Senado, preexiste à imputação, valedizer que não será para cada caso um juízo adrede, formado à feição dos circuns-tâncias.

O Estatuto ora examinado institui esse juízo, manda formar um corpo dequatro deputados eleitos e de dois desembargadores, depois de julgada proce-dente a acusação pela Assembléia. E não exige os dois terços a que o federalcondiciona a condenação.

É um colégio judicante escolhido a dedo pelo partido em maioria interessadoem arredar o governador. Há que guardar a forma capaz de assegurar as garantiasde relativa isenção que possa comportar o julgamento por impeachment: emprimeiro lugar, o sorteio dos elementos que devam compor o Tribunal Especial.Era esse o critério adotado pelo Texto Federal de 34. A investidura por eleição émarcadamente partidária; o sorteio possibilita a entrada de elementos de outrospartidos, neutralizando a ação da maioria.

A condenação condicionada ao voto de dois terços da composição docolégio julgador (e assim dispõe o Estatuto Federal) é uma garantia que tambémnão pode ser dispensada.

Outra garantia implícita no regime é a preexistência do órgão julgador nasua composição. Tribunal constituído para o caso concreto é tribunal de exceção,no sentido ominoso dessa locução.

O tribunal preexiste à imputação. Deve ser constituído por sorteio, noinício de cada legislatura ou da sessão legislativa. Compô-lo, e por eleição, depoisde julgada procedente a acusação é contravir a esses postulados básicos do regi-me. Tenho por inconstitucional o art. 67 e seu § 1°.

As disposições básicas da organização judiciária e bem assim as referentesàs garantias da função pública em geral estão no texto federal a cavaleiro doCongresso e por igual do legislador estadual, mesmo em função constituinte. Nãohá que modificá-las nas cartas estaduais, senão reproduzi-los com o mesmo teor.Tal o caso do art. 78, n. 7, do texto piauiense, sobre o quinto na composição dosTribunais; o art. 87, sobre a promoção automática por efeito da elevação daentrância da comarca dá a impressão ao primeiro exame de que por ele seestabelece uma modalidade de promoção que não será nem por antigüidade nem

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por merecimento; mas, como acaba de observar, no seu voto, o eminente Min.Hahnemann Guimarães, é possível e curial combinar essa norma com a atribuiçãoconferida ao Tribunal de Justiça para propor a criação e a impressão de comarcas,devendo-se assim pressupor proposta daquele Tribunal.

Entram na mesma regra as disposições transitórias dos arts. 27 e 88 doAto anexo à Constituição. Dizem com a divisão e a organização judiciárias,alterando as preexistentes.

Declara a Constituição Federal, art. 124, I, que serão inalteráveis, por cincoanos, a divisão e a organização judiciárias, salvo proposta motivada do Tribunal deJustiça. Poderá o estado, em função constituinte, alterar a organização preexistenteantes de decorridos cinco anos e sem proposta do Tribunal de Justiça?

Não poderia fazê-lo o Congresso Federal por lei ordinária. Estará ao alcancede uma assembléia constituinte estadual contravir a essa prescrição constitucional?

No tocante à organização dos seus aparelhos judiciários, os estados estãolimitados pelas disposições do art. 124. O poder constituinte estadual move-sedentro desses limites. Se ao estado é que compete dispor sobre a divisãojudiciária e a instituição dos órgãos necessários, há que admitir que esse poderestá clausulado nos termos acima.

O objetivo da restrição federal é assegurar pelo mínimo de cinco anos umadada organização, a cavaleiro dos interesses políticos que possam ditar alteraçõesdesnecessárias; mas estabeleceu-se uma válvula de segurança, a proposta moti-vada do Tribunal superior para atender alguma antecipação urgente.

O sentido de garantia que emerge da disposição, no interesse da estabilidadeda orgânica judiciária, e que melhor se aviva tendo em vista a exceção dependenteda iniciativa do Tribunal de Justiça, mostra que ela se impõe não somente nolegislador ordinário mas também ao constituinte.

O art. 78, n. 11, dispõe sobre o aproveitamento dos juízes em disponibi-lidade, mediante proposta do Tribunal, condição que nada tem de inconstitucionale exprime uma colaboração do órgão superior no provimento dos cargos damagistratura.

Mais interessante é o desvio operado pelo art. 83, n. 2 e 3 e parágrafoúnico, que atribuem ao presidente do Tribunal de Justiça a nomeação do pessoalda Secretaria e, ainda, dos serventuários da justiça em geral, abrangendopossivelmente quaisquer ofícios de justiça.

Existem aqui duas indagações que convém destacar: uma referente aopoder atribuído ao presidente, e não ao Tribunal, ainda que reservado a esteconhecer dos atos mediante recurso; e outra relativa aos serventuários da Justiça,sem qualquer limitação.

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Memória Jurisprudencial

A Constituição Federal dá a atribuição “aos tribunais”, são estes, pois, osdestinatários do poder de nomear.

Ao tempo da Constituição de 91, competia aos presidentes essa atribuição;e foi possível reparti-la com os juízes seccionais, nos termos do Decreto orgânico848, de 1890, solução não incompatível com o texto, tendo-se em vista que apalavra “tribunal” ou “corte” pode ser tomada tembém na acepção do juízosingular, daí decorrendo que os presidentes dos tribunais poderiam ser osmagistrados que presidiam a cada uma das secções da Justiça Federal. (Veja-seo meu livro Do Poder Judiciário, pp. 111-115.)

Mas a hipótese que agora se apresenta é diversa. Não se trata de repartira atribuição com os juízes inferiores singulares, mas de saber se o presidente doórgão colegiado pode exercer uma atribuição que a Constituição confere não aele, mas ao Tribunal.

Não duvido possa o Regimento estabelecer algumas exceções razoáveis,em se tratando de admissão de serventes, provimento interino e outras. Mas nãovejo como possível transferir do tribunal para o presidente todo o poder de nomear,ainda que com recurso para aquele.

A competência dos próprios tribunais para essas nomeações explica-sepela conveniência de resolverem, eles mesmos, sem interferência do governo,sobre a escolha e o afastamento do seu pessoal administrativo. A razão de ser dacompetência traça a medida em que deve ser admitida. Não vai além disso, nãoalcança os serventuários que não estejam subordinados aos tribunais. Não há porque reservar ao tribunal, e muito menos ao seu presidente, a nomeação detabeliães, oficiais do registro, etc. se a tanto se quiser levar o entendimento dalocução “e demais serventuários da Justiça”.

Entretanto o poder de prover os cargos públicos, competindo em regra aochefe do Executivo federal ou estadual, pode comportar limitações ao alcance dolegislador e, por melhor razão, do constituinte. Vai além da inspiração quemotivou a restauração da competência judiciária para a composição dos seusquadros auxiliares, essa extensão consentida que priva o governador daatribuição de nomear serventuários que não estejam sob a dependência imediatado Tribunal de Justiça. Mas, se assim o entendeu o legislador, não me parecetenha incorrido em censura constitucional, salvo no desvio da atribuição, quecompete ao tribunal, com as exceções que couberem no seu regimento, e énesses termos que julgo inconstitucional em parte o dispositivo em exame.

O mesmo art. 83, n. 2, atribui ao Tribunal de Justiça conceder férias oulicença ao procurador e ao subprocurador-geral do estado.

Já não se trata de nomear, mas de intervir na vida funcional de funcionáriossubordinados e dependentes hierarquicamente do Poder Executivo.

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Ministro Castro Nunes

Aqui o princípio comprometido é o dos poderes separados e independentes.

Se a Constituição do Piauí conserva no governador o poder de nomear edemitir os órgãos do MP, instituição que tem no texto federal o seu paradigmacomo serviço do Executivo, não se compreende essa mutilação, que comprometeo princípio da hierarquia e a independência do poder responsável pela regularidadee pelo funcionamento do serviço.

Não encontro inconstitucionalidade no art. 89, sobre nomeação de suplentesde juiz de direito em lista organizada pelo Tribunal de Justiça; igualmente nos arts.91 e 92, § 2º, sobre suplentes de juiz de paz.

O art. 120, n. 3, é argüido de inconstitucional por ofensivo do princípio dospoderes separados e independentes na esfera municipal. O dispositivo limita opoder de nomear, demitir e aposentar os funcionários da Prefeitura, atos que oprefeito praticará, mas ad referendum da Câmara.

O princípio não vai até à orbita municipal; é inerente ao poder constituinteou de auto-organização, de que carecem os municípios, supõe a autonomiapolítica, define-se por uma trilogia que a autonomia municipal não comporta.

O município não tem Poder Judiciário; nem propriamente Poder Legisla-tivo, senão paralegislativo ou de índole regulamentar.

Jamais se pretendeu, sob as instituições de 91, que o princípio da separação eindependência dos Poderes se estendesse aos municípios. É um dos aspectos de quetratei, em 1920, no meu livro Do Estado Federado e sua organização municipal.

É até mesmo da tradição municipal o governo exercido pelo Conselho ouCâmara por intermédio de seu órgão executivo, que é o presidente. Não obstantea direção municipalista acentuada nas três últimas constituições, não será possívelequiparar o município ao estado, de cujas leis depende ele na sua organização eadministração, como entendidade menor, ainda que dotada de autonomia no quelhe toca aos interesses peculiares, no quadro da administração estatal.

A colaboração obrigatória da Câmara representativa na prática de atosque, em princípio, são do prefeito pode desconvir aos interesses da administração,possivelmente peada por injunções partidárias; mas nada tem que ver com oprincípio dos poderes independentes nem contravém ao resguardo da autonomiamunicipal, a que melhor serve, pelo menos teoricamente. Não é sequer de serconhecida a argüição de inconstitucionalidade, que, a meu ver, improcede. O art.177 tira ao governador a livre escolha do chefe de polícia, no estabelecer que afunção só poderá ser exercida por bacharel em direito ou militar não extremadoem política.

O chefe de polícia é o auxiliar de mais imediata confiança do governador,livre de escolher os secretários do seu governo conforme lhe aprouver, segundo o

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Memória Jurisprudencial

entendimento que já firmamos nos casos do Ceará e do Rio Grande, e, pormelhor razão, o chefe de polícia. É disposição que contravém à independênciado Executivo e, portanto, inconstitucional, ainda que possivelmente inócua oude caráter meramente diretivo no interesse de colocar a função acima dascompetições partidárias.

Das disposições transitórias, as dos arts. 10, 13 e 19 do Ato respectivoreferem-se à fixação, nas bases estabelecidas, dos vencimentos de professores eservidores da polícia militar e civil. Não se articulam com qualquer dos princípiosenumerados no n. VII do art. 7°. Igualmente, a disposição do art. 30, sobre aefetivação de promotores; bem assim a do art. 41, referente à readmissão defuncionários afastados por motivos partidários; por igual, a do art. 50, sobre aassistência técnica e a fiscalização financeira dos municípios, nos termos que oestado estabelecer por suas leis, atribuição que aos estados reserva a ConstituiçãoFederal; outrossim, a do art. 54, que cogita de comissões de deputados fazendo asvezes de câmaras municipais até à organização e à instalação dos órgãos eletivosdos municípios; e, ainda, a do art. 48, concernente à restauração de um município,com a alegada decorrência de ficar alterada a divisão territorial do estado, fixadapor lei federal na base de convenções aceitas pelos estados, daí resultando umapossível repercussão na divisão judiciária, tida por inalterável pela ConstituiçãoFederal, nos termos que já ficaram expostos acima.

Não me parece, não obstante, se possa interpretar a proibição de alterar adivisão judiciária por simples inferências mais ou menos remotas. O que se proíbeaos estados é legislar sobre a divisão judiciária, não sobre outros assuntos, aindaque indiretamente possam interessar à extensão territorial das comarcas. O queestá proibido ao legislador, ordinário ou constituinte, é o que está permitidomediante proposta do Tribunal de Justiça, cuja iniciativa não seria possível notocante à divisão territorial, porque restrita à divisão judiciária. Tal seja,entretanto, a vinculação existente em concreto, caberá, na defesa do direitosubjetivo, a argüição da inconstitucionalidade da jurisdição exercida.

O art. 53, somente quanto ao § 3º; o art. 63 pelo que exprime como restriçãoà autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Esse dispositivo está redigido de modo que pode prestar-se aoentendimento de que os atos dos ex-interventores sobre direitos individuais sãoinalteráveis até pelo Judiciário. É evidente que o reconhecimento de um direitopode envolver a negação de outro. Não poderá o titular deste pleitear o reexamejudicial do ato? Não poderá a assembléia, por suas leis, modificar os efeitosdesses atos, por não configurarem direitos adquiridos?

Se afirmativa a resposta (e, de outro modo, seria inócuo o dispositivo),estará comprometida a autonomia legislativa e a judiciária, convindo censurar adisposição transitória por esse possível alcance.

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Ministro Castro Nunes

Nos termos expostos, julgo inconstitucionais os arts. 67 e § 1º, 78, n. 7, 145,n. 10, 83, n. 2 e 3 e parágrafo único (em parte), 83, n. 2, e 177.

Do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os arts. 27 e 28, 53,§ 3º, e 63.

AÇÃO RESCISÓRIA 112 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Os autores, sendo sobrinhos de uma senhorafalecida aos 2 de maio de 1939 e a cujo inventário estavam procedendo, viram-sedespojados da herança por aplicação do Decreto-Lei 1.907, de 38 de dezembrodo mesmo ano, não tendo sido provido o agravo que interpuseram para esteSupremo Tribunal (2ª Turma) contra o voto vencido do eminente MinistroOrozimbo Nonato. É esse o julgamento que pretendem rescindir como ofensivoao art. 1.572 do Código Civil, do art. 122, 14, da Constituição Federal e do art. 1ºdo Decreto-Lei n. 1.907, de 26 de dezembro de 1939.

Processado o feito, subiu a esta instância suprema, opinando a Procurado-ria-Geral pela improcedência da ação no seguinte parecer:

Os autores se baseiam no conhecido e brilhante voto do eminente MinistroOrosimbo Nonato, segundo o qual em relação às pessoas falecidas antes doDecreto-lei n. 1.907, de 1939, não se aplicam os termos do mesmo, no que concerneà sucessão do de cujus.

Ora, esse respeitável voto, em que pese ao seu brilho e erudição, não éseguido pelos eminentes Ministros do egrégio Supremo Tribunal Federal, que dãoao citado decreto-lei entendimento oposto, eis que consideram obediência aosseus termos a sua aplicação “aos processos em curso”, a saber, aos processos dearrecadação, de inventário ou de herança jacente. Essa matéria ficou assente noColendo Tribunal desde o voto magistral do eminente Ministro Eduardo Espinola,assentando-se a jurisprudência de que o mesmo Decreto-Lei é perfeitamenteconstitucional e se aplica a todos os processos em curso, como ao próprio“processo Deleuze” se aplicou, pois aquele processo de inventário estava emcurso quando se verificou o advento do citado decreto-lei.

Em conseqüência, não há nenhuma infração à letra da lei a ser reparada porrescisória, devendo a presente ação ser julgada improcedente, como é de justiça.

Distrito Federal, 29 de setembro de 1944.

a) Gabriel de Rezende Passos, Procurador-Geral da República.

Sejam presentes com este relatório ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

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Memória Jurisprudencial

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): O dispositivo legal mais pertinenteà questão é o do art. 1.572, que, aos herdeiros legítimos e testamentários, declaratransmitidos o domínio e a posse da herança, desde que aberta a sucessão.

O Decreto-Lei n. 1.907, suprimindo o direito dos sobrinhos do de cujus (esão sobrinhos os que reclamam a herança no presente caso), não se aplicaria àssucessões anteriormente abertas porque atentaria contra um direito adquirido àsombra da lei então vigente.

Sucede, porém, que aquele Decreto-Lei, no art. 6º, mandou que as suasdisposições se aplicassem “aos processos em curso”. Isso equivale a uma clá-usula retroativa expressa, cujo objetivo terá sido o de desconhecer os direitosadquiridos decorrentes das sucessões já abertas, porque, de outro modo, nãoteria sentido.

Processos em curso não seriam as arrecadações que, consoante oCódigo Civil, não poderiam existir havendo herdeiros sucessíveis que, na linhacolateral, não seriam somente os irmãos, o que importa em dizer que taisheranças seriam inventariadas. Daí resulta que foi precisamente aos inventáriosque quis referir-se o Decreto-Lei, vale dizer, às sucessões abertas e em curso deinventário, ou, por melhor razão, antes de começado o inventário.

Dando assim à locução “processos em curso” o sentido que já lhe temosdado de “inventários em curso”, isto é, ainda não encerrados, parece-me claroque o pensamento da lei foi exatamente desconhecer o direito adquirido àherança por aqueles que, em face da nova preceituação, perderam a condição deherdeiros em benefício do Estado.

Não aplicado às sucessões abertas, o Decreto-Lei n. 1.907 não seriaretroativo; não teria atropelado nenhum direito adquirido. Encontraria, no seucaminho, meras expectativas que só o evento da morte do parente viriatransformar em direito adquirido. E, nesse caso, desnecessária seria a cláusulado art. 6º, que o mandou aplicar aos processos em curso, não se sabendo paraque fim, uma vez que não se trata de preceituação processual, senão dedisposições substantivas que alteraram a ordem da vocação hereditária parasuprimir o direito dos colaterais depois de certo grau.

Estava ao alcance do legislador dar à nova preceituação efeitoretrooperante. Podia fazê-lo, ou não, e não hesito em dizer que não o deveria terfeito. A conveniência pública de dar um fundo às leis de proteção à família nãojustifica a injustiça que se traduziu no trancamento de inventários em andamento,com a espoliação daqueles que já tinham adquirido o direito à herança à sombrada lei então vigente.

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Ministro Castro Nunes

Mas não será isso uma conseqüência da liberdade que se deixou aolegislador para atropelar as situações jurídicas já definitivamente constituídas?Não acontecerá isso em tantos outros casos em que a perfeição jurídica dodireito atingido mostra a injustiça da solução legislativa, traduzida num verdadeiroconfisco?

Compreendo o ponto de vista do nosso eminente colega, MinistroOrozimbo Nonato, nos seus excelentes votos vencidos sobre essa questão.

A mim também repugna placitar tão desmarcada ofensa a direitosadquiridos que o interesse público, a bem da segurança e da estabilidade dasrelações jurídicas, estará mais em resguardar do que em desconhecer.

Permito-me mesmo recordar que, na Comissão do Itamarati, propus epropugnei pela conservação da cláusula restritiva da ação do Parlamento, tendopor limite o direito adquirido, na sua tríplice feição já consagrada no Código Civil,fórmula clássica que, não obstante a variedade das construções doutrinárias emoutras bases, ainda me parece a menos má para nela assentar a teoria dairretroatividade das leis.

Mas fiquei vencido, ainda que com a solidariedade de um voto ilustre, o dosaudoso e eminente Afranio de Mello Franco, que aderiu à minha proposta comonecessária à segurança das relações jurídicas e à paz social.

O princípio da irretroatividade com assento nas Constituições caiu emdeclínio no século passado, deixando livre a ação dos Parlamentos para realizar obem público, ainda que removendo os direitos constituídos na conformidade da leianterior, em um reflexo da onipotência e da onisciência das assembléiaslegislativas, que tiveram naquela época o seu período áureo.

Já hoje seria preciso rever a condenação do velho princípio, para encontraralguma solução média, que atenda, por um lado, à conveniência de extirparinstituições que devam ser removidas e, por outro, aos fins da tutela jurisdicionalque se amplia com o crescente desenvolvimento da revelação jurisprudencial dodireito, no ponto de dizer Duguit, insuspeito de exagerar as garantias individuais,que o princípio da irretroatividade é uma regra superior da ordem jurídica.

Em nosso atual direito público, está consentido ao legislador arredar osdireitos adquiridos. Tais direitos são também os já proclamados pelos tribunais,mediante decisões transitadas em julgado. Por isso mesmo, na França, háexemplos conhecidos de leis que alcançaram sucessões liquidadas a partilhados.

Isso, porém, não seria possível entre nós. Não por efeito da noção dodireito adquirido, mas porque o problema teria de ser posto já então no planoconstitucional, por construção das garantias da função judicial e daindependência do Poder Judiciário.

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Memória Jurisprudencial

Seria esse o óbice intransponível pelo legislador.

No caso, entretanto, isso não se deu.

A ofensa ao direito adquirido à herança ainda não adjudicado judicialmentenão envolve o cancelamento de um julgamento.

Roubier estabelece a distinção entre retroatividade restitutiva, que seriaessa, e retroatividade ordinária, que, a meu ver, é a hipótese de uma herança queesteja sendo inventariada, mas que ainda não foi liquidada e partilhada.

É restitutiva a retroação que manda devolver o que se recebeu ou repetiro que se pagou, efeitos já realizados de um direito que se esgotou, peloassentimento ou transação das partes seria restitutiva a retroação que reabrisseuma demanda já encerrada, um julgamento terminativo da controvérsia — quoejudicata, transacta, finitave sunt, rata nomeant, já o diziam os romanos.

Ambas as modalidades são condenadas, ainda que em outros países seadmita que mesmo a segunda esteja ao alcance da lei.

Pelo exposto, julgando por aplicação do art. 1.572 do Código Civil combi-nado com o art. 6º do Decreto-Lei n. 1.907, não ofendeu a lei o aresto rescindendo.

Julgo improcedente a ação.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: julgaram procedente, contraos votos dos Ministros Relator, Waldemar Falcão e Annibal Freire.

Não tomou parte no julgamento o Exmo. Ministro Barros Barreto, que nãoesteve presente à sessão, com motivo justificado.

MANDADO DE SEGURANÇA 695 —– GO

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: O Dr. Promotor Público da comarca deAnápolis, Estado de Goiás, agindo pela União, requereu a arrecadação dos bensdeixados por Georges Michel, comerciante de nacionalidade síria falecido naquelacidade, tendo sido considerada jacente a herança pelo juiz de direito. Houve agravode tal decisão interposta, por Antonio Miguel, que alegou ser irmão do falecido,alegando-se mais, que este deixara viúva e filha residentes na Síria.

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Ministro Castro Nunes

O Tribunal de Apelação tomou conhecimento do agravo e deu-lheprovimento, como se vê do acórdão junto por cópia às fls. 23 e segs. dospresentes autos — deferindo o compromisso do inventariante ao indigitado irmão,convertida a arrecadação em inventário. Considerou o acórdão que, havendoirmão notoriamente conhecido no lugar, jacente não seria a herança.

Requereu, então, o promotor o presente mandado de segurança, em quealega a incompetência do Tribunal de Apelação para decidir da questionadajacência, uma vez que presente, nos autos, a União Federal.

Designado Relator, mandei dar vista ao Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geralda República, que emitiu o parecer de fl. 17, em que, embora considerandodesacertada a decisão do Tribunal de Apelação, sem competência para decidira espécie, não tem por idôneo o mandado de segurança, declarando já haverprovidenciado para a interposição do recurso extraordinário e opinando,finalmente, pela audiência do dito Tribunal.

Proferi então o despacho de fl. 18, mandando oficiar ao Tribunal de Goiáspara que ficasse sobrestada a execução do acórdão até solução do presentepedido.

O Sr. Desembargador Presidente do Tribunal de Apelação oficiou-medeclarando já ter sido cumprido o acórdão conforme se vê do ofício de fl. 20, queé o seguinte: (lê).

Com vista novamente assim se manifestou o Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República, à fl. 32:

Os fundamentos do respeitável acórdão do ilustre Tribunal de Apelação deGoiás podem ser procedentes; mas, desde que o juiz decretou a arrecadação efirmou a possibilidade do direito da União à sucessão, não cabe ao mesmoTribunal apreciar a sentença, mas sim ao egrégio Supremo Tribunal Federal, eisque este é o tribunal de segunda instância das causas em que a União teminteresse, segundo jurisprudência pacífica. Mas, se o Tribunal local entende ocontrário, a sua deliberação só poderá a nosso ver ser reparada em recursoextraordinário, ou, conforme as circunstâncias mediante uma reclamação aoegrégio Supremo Tribunal.

O mandado de segurança, como já o acentuamos no parecer de fl., não nosparece o meio idôneo para remediar o desacerto, eis que, se desacerto houve,contudo “ato ilegal de autoridade” não existe.

Nessas condições, o que o egrégio Supremo Tribunal poderá considerar éo presente pedido com reclamação, se assim o entender acertado, mandando quesuba o agravo referido no acórdão, para apreciá-lo como for de justiça.

20-2-1943.

a) Gabriel de Rezende Passos.

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Memória Jurisprudencial

O Dr. Promotor Público enviou-me o telegrama que fiz juntar (fls.) e outrosdocumentos que me vieram às mãos mais recentemente, bem como recortes dejornais, dando notícia de outros incidentes e da circunstância de já haver sidointerposto o recurso extraordinário, insistindo, porém, na concessão do mandadode segurança, como remédio pronto a evitar que o inventariante dê destino adinheiros da herança com pagamentos cuja legitimidade contesta e que têm sidofeitos, comprometendo os interesses da União, quando venha ulteriormente a serreconhecido o seu direito à herança.

Novamente com vista para dizer sobre esses documentos, assim semanifesta a Procuradoria-Geral da República, fl. 51, v.:

Tendo em vista os documentos mandados juntar pelo Exmo. Sr. Ministro,pelos quais o zeloso Sr. Promotor da Justiça aponta circunstâncias e fatosponderáveis, requeremos que todas as providências a serem adotadas peloegrégio Supremo Tribunal sejam comunicadas por telegrama ao Exmo. Presidentedo Tribunal de Goiás, certo que, deferida a nossa promoção anterior (fls. 32 esegs.), será determinado que tudo se restabeleça segundo o status quo anterior àintervenção no feito do ilustre Tribunal de Goiás.

21-4-1943

a) Gabriel de Rezende Passos.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Como se vê do relatório, foiarrecadada como jacente vultosa herança. Surgindo um irmão do morto,reclamou a inventariança, dizendo-se herdeiro.

O juiz indeferiu o pedido; mas o Tribunal de Apelação, em agravo, atendeu-o.

Para tanto considerou não jacente a herança e converteu a arrecadaçãoem inventário.

Exerceu assim uma competência que, pela Constituição, cabe ao SupremoTribunal, porque só a este compete decidir em grau de recurso as causas em queseja parte a União, sendo que, no caso, por ela agiu o promotor da comarca,promovendo a arrecadação da herança e opondo-se à pretensão de quem,dizendo-se irmão do falecido, contestava o direito da União.

Não vem ao caso examinar se se trata realmente de herança jacente, se adecisão do Tribunal de Goiás é juridicamente perfeita quanto ao mérito, se omorto deixou realmente herdeiros, etc. São aspectos que não estão em causa nopresente julgamento.

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Ministro Castro Nunes

O que está fora de dúvida, e assim me parece, é que o Tribunal de Apelaçãonão tinha competência para julgar o agravo, tão certo é que o decidindo decidiucoisa em que é parte a União.

Trata-se, pois, de um julgado inoperante, írrito e nulo pelo vício daincompetência manifesta que se atribuiu aquele Tribunal, usurpando umaatribuição constitucional da Corte Suprema.

Mas poderemos resolver o caso por mandado de segurança?

O nobre Dr. Procurador-Geral da República opina contrariamente combase na jurisprudência desta Suprema Corte, que, consoante o voto da maioria,não tem admitido aquele remédio contra atos judiciais.

Tenho divergido desse entendimento, pois já admitia o mandado desegurança como meio idôneo para atacar atos ou decisões judiciais, desde quenão houvesse recurso ou este não tivesse efeito suspensivo. Assim o entendi emface da Lei 191, pelas razões e com as limitações que expus demoradamente(Do Mandado de Segurança. 1937, pp. 87-88).

Mais recentemente, já em face da preceituação do atual Código de ProcessoCivil, mantive o mesmo entendimento.

Admito, pois, o mandado de segurança, atendendo a que não existe outromeio processual expedito que dê remédio à situação criada pelo julgado do Tribunalde Goiás, porque o recurso extraordinário já interposto, não tendo efeitosuspensivo, não dará solução a tempo de evitar que prossiga e chegue a termo oinventário, com a conversão dos bens em dinheiro e a entrega a terceiros, herdeirosou credores.

Não me parece possível admitir o pedido como mera reclamação.

Reclamação dirigida ao Supremo Tribunal contra ilegalidade cometida porjuiz ou membros de um Tribunal seria representação, para fins criminais; masnão é disso que se trata.

A avocatória seria admissível, com base no art. 79 da Lei 221, lei especialnão alcançada pelo Código de Processo Civil; mas a avocatória, como é sabido, épraticamente uma carta precatória, que se resolve, quando desatendida, emconflito de jurisdição, o que revela desde logo que supõe um feito ainda nãojulgado, que se remove de uma justiça para outra ou de um para outro juízo, inlimine litis.

Teria sido esse meio regular quando interposto e encaminhado o agravo aoTribunal de Apelação de Goiás. O Ministério Público deveria ter representado aoSupremo Tribunal para que este avocasse o recurso. Não o fez, porém. E agoraé tarde para utilizá-la, porque já existe decisão proferida pelo Tribunal

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Memória Jurisprudencial

incompetente; decisão que não pode ser cassada por meio de avocatória, meio,como o conflito, preventivo da incompetência.

Resta, pois, o mandado de segurança.

Permito-me lembrar aos eminentes colegas que, por esse meio, já sereformou decisão do antigo juiz federal em Minas Gerais, que admitira penhoraem bens do Estado. E o Tribunal, sem quebra da sua orientação sempre mantidaem hipóteses normais, admitiu-o excepcionalmente naquele caso.

Quer me parecer que estamos diante de uma hipótese análoga, senão maisgrave.

Meu voto é, pois, para conceder o mandado de segurança para o fim deser declarado nulo o julgamento proferido pelo Tribunal de Apelação e para quesuba o agravo a este Supremo Tribunal a fim de ser julgado como for de direito.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: conheceram do mandado desegurança, concedendo-o, contra os votos dos Ministros Goulart de Oliveira,Orozimbo Nonato e Barros Barreto, que conheciam do caso como reclamação, edos Ministros José Linhares e Laudo de Camargo, que não conheciam do pedido.Determinaram que fique cassada a decisão do Tribunal de Apelação de Goiás,vindo o agravo ao Supremo Tribunal para decidi-lo

MANDADO DE SEGURANÇA 699 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, acho que a primeira preliminar,perfeitamente esclarecida, aliás como tudo o mais, pelo Sr. Ministro Relator, estámuito bem decidida por S. Exa.

Não posso, porém, aderir à conclusão adotada por S. Exa. no tocante àsegunda preliminar.

Quanto à primeira, devo salientar — retificando voto que proferi em outrocaso, mas que agora o debate esclarece, torna meio claro — que o ato não é doministro da Justiça.

O ilustre advogado que, da tribuna, tão brilhantemente, fez uma oraçãosucinta e precisa, abordando os diferentes aspectos da matéria, teve ocasião de

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Ministro Castro Nunes

dizer, e com muita razão, que o ato não suscetível de mandado de segurança háde ser o ato funcional da autoridade; é o ato funcional do ministro da Justiça quenão pode ser apreciado por via do mandado de segurança.

Mas, quando o ministro da Justiça se limita a provocar a ação do outroPoder — o Poder Judiciário, uma vez que o Tribunal de Segurança é um dosórgãos desse Poder —, não há ato funcional, mas apenas colaboraçãoindispensável no mecanismo dos Poderes.

Foi a isso que se limitou o ministro da Justiça, pedindo ao presidente doTribunal de Segurança que promovesse o que julgasse de direito acerca de certosfatos ocorridos em São Paulo.

O Sr. Ministro Waldemar Falcão: Vou ler o trecho do ofício do Sr. Presidentedo Tribunal de Segurança Nacional:

Trata-se de inquérito policial, mandado instaurar por esta Presidência, àvista do expediente reservado recebido do Senhor Ministro da Justiça e Negóciosinteriores, acompanhado de despacho de Sua Excelência o Senhor Presidente daRepública, ordenando a remessa do mesmo ao Tribunal de Segurança Nacional,afim de que, apurados os delitos contra a economia popular, se proceda contra osresponsáveis, na forma da lei.

O Sr. Ministro Philadelpho de Azevedo (Relator): Aí se trata de simplesremessa. O ministro da Justiça declina da sua autoridade executiva para deslocaras providências ao Poder Judiciário.

O Sr. Ministro Castro Nunes: O aparte do meu nobre colega MinistroWaldemar Falcão esclarece ainda melhor o assunto neste ponto que eu ia abordar.É que aí o Sr. Ministro da Justiça se limitou a expor os fatos e pedir a abertura deinquérito ou o início das providências adequadas. Não menciona as diligências, asmedidas que devem ser adotadas.

O Sr. Ministro Bento de Faria: Como se pode saber disto, com detalhes, seo expediente era secreto?

O Sr. Ministro Castro Nunes: O Sr. Ministro Relator leu o ofício que estános autos e eu me cinjo ao que consta dos autos.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato salientou ainda há pouco, e muito bem,que o excesso condenável capaz de autorizar o pedido de mandado de segurançapoderia estar na adoção de medidas incompatíveis com a lei.

De modo que, em última análise, será a questão de merecimento, semenvolver a preliminar.

Quanto à segunda preliminar — a questão da competência do SupremoTribunal para o caso — é que sinto divergir do eminente Sr. Ministro Relator e,

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Memória Jurisprudencial

por igual, do voto manifestado pelo Sr. Ministro Orozimbo Nonato, porque, nãodando pela primeira, não dou pela segunda.

Existe, na sistemática do nosso direito, da nossa preceituação legal, acercado mandado de segurança, um princípio que não foi alterado, que não foirevogado, que domina toda esta matéria: é de que o mandado de segurança, porvia de regra, tratando-se de ato do Tribunal ou de seu representante — opresidente —, é requerido ao próprio Tribunal. Assim está estatuído em relaçãoaos Tribunais de Apelação e, por analogia, como, aliás, frisou o Sr. MinistroRelator, em se tratando de Tribunal especial.

Se o ato é do presidente — e, aliás, o eminente Sr. Ministro OrozimboNonato mostrou isso muito bem —, e se o ato de que se queixam os pacientes éde coação do presidente do Tribunal de Segurança, é ao próprio Tribunal deSegurança, e não a nós, que cabe conhecer do mandado de segurança.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Há disposição de lei a respeito? V. Exa.compreende possa haver uma competência por analogia?

O Sr. Ministro Castro Nunes: E onde está expressa a competência doSupremo Tribunal?

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Está no próprio sistema constitucional.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Não encontro expressa essa competência. Elasó é expressa em relação a coações partidas de seu presidente ou da Secretaria.

O Sr. Ministro Philadelpho de Azevedo (Relator): A Constituição nada falaem relação à competência.

O Sr. Ministro Castro Nunes: A matéria de competência quanto aomandado de segurança está inteiramente omissa na Constituição. É matériaregulada na lei ordinária, pelo princípio geral que estou expondo e pelosregimentos dos Tribunais.

Nós temos de obedecer a estes princípios gerais que, como disse,dominam toda a sistemática: tratando-se de ato do Tribunal ou de seu presidente,é ao próprio Tribunal que cabe conhecer do mandado; se se trata de ato do juiz,ao próprio juiz cabe esse conhecimento. Já tivemos, aliás, caso de juiz de MinasGerais que ordenara penhora em bens do estado, e foi decidida a hipóteseconsoante minha argumentação de agora.

Meu voto, Sr. Presidente, quanto a esta preliminar, é no sentido de entenderque a competência é do Tribunal de Segurança para conhecer de ato do seupresidente.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Qual o assento legal para que sereconheça a competência do Tribunal de Segurança para julgar o mandado,consoante a argumentação que V. Exa. vem emitindo com tanta superioridade?

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Ministro Castro Nunes

Eu, para concluir pela competência do Supremo Tribunal, invoco o própriosistema constitucional. No caso do Tribunal de Segurança Nacional, não há leinenhuma que outorgue essa competência.

O Sr. Ministro Castro Nunes: E quando o ato é do presidente do Tribunalde Apelação? Pode o Supremo Tribunal conhecer? Pode conceder o mandado desegurança?

Estou aplicando o princípio legal, por extensão. V. Exa. pretende, no seuponto de vista sempre respeitável, aplicar, por extensão, o princípio constitucional.Apenas não encontro na atual Constituição qualquer coisa que se refira à compe-tência do Supremo Tribunal para julgar mandados de segurança. Seja qual for aautoridade.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: V. Exa. tem apregoado, e muito bem —como, aliás, se faz na América do Norte —, que a lei deve ser interpretadatecnologicamente.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Não posso, no caso, fazer essa interpretação,porque não encontro assento constitucional para isso: não há disposiçãoconstitucional sobre a matéria.

Invoco o preceito legal. O Código de Processo cogita da competência dosTribunais de Apelação para conhecer do mandado de segurança quandorequerido contra ato do seu presidente. E então eu argumento com o Código deProcesso, com a lei especial do mandado de segurança — a Lei n. 191 —,embora revogada pelo Código de Processo, mas coadjuvante nos casos omissos,com os princípios gerais que dominam a matéria, chegando à conclusão de que acompetência é do Tribunal de Segurança.

Nessas condições, sentindo divergir do eminente Sr. Ministro Relator, doupela segunda preliminar, julgando competente o Tribunal de Segurança Nacional.

Vencido, denego o mandado.

MANDADO DE SEGURANÇA 748 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: O Desembargador Felismino Guedes erao vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral em Pernambuco quando foideclarada inconstitucional a sua investidura como desembargador do Tribunalde Apelação do mesmo estado, por acórdão do Supremo Tribunal que, em

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mandado de segurança requerido pelo Juiz de Direito Roderik Vilarim deVasconcelos Galvão, a este assegurou o reclamado direito à promoção ditoviolado com a nomeação daquele.

Em cumprimento desse julgado, o interventor pôs em disponibilidade, como vencimento integral, o Desembargador Guedes e proveu a vaga, nomeando oJuiz Vilarim Vasconcelos.

Suscitou-se então a dúvida sobre se o desembargador posto em disponibili-dade na sua função própria poderia continuar no desempenho da função eleitoral,consulta que o Superior Tribunal Eleitoral resolveu pela negativa, conforme aResolução n. 483, de 29 de dezembro de 1945, publicada no Diário da Justiçade 31 seguinte.

E é contra esse ato que se requer tempestivamente o presente mandadode segurança, aforado em 30 de abril de 1946, para o efeito de ser declarado odireito reclamado pelo Desembargador Guedes de continuar no exercício dafunção eleitoral, não obstante a disponibilidade.

As alegações do requerente são, em resumo, as seguintes:

a) que a lei eleitoral, quando trata da composição dos tribunais, não fala emdesembargador em exercício, mas unicamente desembargador;

b) que a Lei Constitucional n. 11, de 30 de outubro de 1945, alterando o art.92 da Constituição, que proibia ao juiz, mesmo em disponibilidade, exercer qualqueroutra função pública, veio permitir o exercício da função eleitoral e de comissõesdo governo, daí decorrendo que, pelo menos a partir dessa emenda constitucional,ficou fora de dúvida que aos juízes em exercício na função própria ou emdisponibilidade ficou expressamente permitido o desempenho da função eleitoral,sendo que a disponibilidade do impetrante e o seu conseqüente afastamento dafunção eleitoral, foram posteriores àquela emenda constitucional;

c) que, na vigência das antigas instituições, sob a Constituição de 1934, aJustiça Eleitoral, pelo seu órgão mais elevado, entendeu, reiteradas vezes, que oafastamento da função forense não acarretava necessariamente o afastamentodo serviço eleitoral, citando várias decisões: uma relativamente à renovação deum juiz de direito no Rio Grande do Sul, que, não aceitando a remoção, foideclarado avulso por ato do governo do estado e que, não obstante, foi mandadocontinuar na função eleitoral pelo Tribunal Superior; outra, referente a umdesembargador do Tribunal de Apelação que fora posto em disponibilidade, o que,todavia, não lhe acarretou a perda da função eleitoral; e ainda outros em que, atémesmo a juízes aposentados compulsoriamente, reconhece o antigo TribunalSuperior o direito de continuarem no desempenho da função eleitoral.

E conclui o impetrante: (lê parte final).

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Ministro Castro Nunes

O pedido veio devidamente instruído, com as certidões necessárias.

Tratando-se a coação argüida contra o Tribunal Superior da Justiça Eleitoral,solicitei informações ao seu egrégio presidente, Ministro José Linhares, que asprestou pelo ofício à fl., que passo a ler:

Acuso o recebimento, a 22, do ofício n. 75, de 21 do corrente, acompanhadode cópias da petição inicial e documentos constantes de um mandado desegurança impetrado pelo Desembargador Felismino Guedes, no qual V. Exa.solicita a esta presidência informações necessárias à instrução do citadoMandado de Segurança.

A Resolução n. 370, foi prolatada na sessão do dia 24 de novembro de 1945,e se refere tão-somente à dispensa do desembargador Felismino Guedes, vice-presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Pernambuco, de suasfunções forenses de acordo aliás com o disposto no art. único do Decreto-leinúmero 7.700, de 03 de julho de 1945.

Informo, no entanto, a V. Exa. que este Tribunal ao se pronunciar sobre umaconsulta, formulada em 27 de dezembro de 1945 pelo Presidente do Tribunal Regionalde Pernambuco se podia um desembargador em disponibilidade, continuar comomembro do T.R.E, resolveu a 19 de dezembro de 1945, por resolução da qual foiRelator o Exmo. Sr. Ministro Edgarde Costa, que “Juiz posto em disponibilidadeperde o cargo que exerce nos órgãos dos serviços eleitorais”.

Dispõe a Resolução n. 483, de 29 de dezembro de 1945, publicada noDiário da Justiça de 31-12-45, p. 1912:

O Tribunal Superior Eleitoral respondendo à consulta do Senhordesembargador presidente do Tribunal Regional de Pernambuco, resolve, deacordo com o parecer do Dr. Procurador Geral, que em face à sistemática da LeiEleitoral, somente aos juízes em eletivo exercício das suas funções judiciáriascabem as funções eleitorais; nessas condições o juiz posto em disponibilidadeperde o cargo que exerce nos órgãos dos serviços eleitorais.

Em conseqüência, o Desembargador Felismino Guedes, membro doTribunal Regional de Pernambuco, posto em disponibilidade, não pode continuarno exercício daquele cargo.

Assim se expressa o ilustrado Dr. Procurador-Geral, em seu Parecer n.47, de 29-12-45, referido na Resolução n. 483:

A disponibilidade origina vacância do cargo (Decreto-lei número 1.713, de28 de outubro de 1939, art. 93, e). Passando à disponibilidade, o magistrado perdeo seu cargo, e, por conseguinte, o exercício da função judiciária.

O Tribunal Superior já firmou mais de uma vez que os magistradosparticipam dos órgãos dos Serviços Eleitorais em função de seus cargos. Sendoassim, a perda do cargo judiciário há de acarretar a da função exercida nos órgãosdos Serviços Eleitorais.

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Parece-me, deste modo, que, não obstante seus altos méritos, o Desembar-gador Felismino Guedes não pode em virtude de haver passado à disponibilidade,continuar na vice-presidência do Tribunal Eleitoral de Pernambuco.

Hahnemann Guimarães, procurador-geral.

É o que tenho a informar a V. Exa. com relação ao afastamento doDesembargador Felismino Guedes, das funções de vice-presidente do TribunalRegional Eleitoral de Pernambuco.

Reitero a V. Exa. os protestos de elevada estima e alta consideração.

José Linhares, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Em contrário à pretensão ajuizada, assim opina o nobre procurador-geralda República:

Improcedem manifestamente as razões articuladas na inicial pelo impetrante,bacharel Felismino Guedes, contra o E. Tribunal Superior de Justiça Eleitoral queafastou o mesmo impetrante da vice-presidência do Tribunal Regional, por ter sidoposto em disponibilidade.

Pela lei eleitoral vigente, a função de juiz eleitoral está subordinada aoexercício efetivo do cargo na magistratura, salvo aqueles casos excepcionais emque a nomeação é livre, não dependendo da função judiciária.

A composição dos tribunais eleitorais está prevista em lei, (artigo 10 doDecreto-lei n. 7.586, de 28 de maio de 1945) e referindo-se o mesmo diploma legal,à escolha de desembargadores e juízes de direito, pressupõe o efetivo da atividadejudiciária.

Nada tenho a acrescentar ao que consta da informação de fl.12, onde seencontra o parecer proferido pelo Procurador-geral Hahnemann Guimarães, entãoem exercício, que subscrevo em todos os seus termos.

Rio de janeiro, 8 de julho de 1946 — Themistocles Brandão Cavalcanti,procurador-geral da República.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Vou ler o voto, no qual não abordoa preliminar ora levantada pelo eminente Dr. Procurador-Geral, relativamente àcompetência do próprio órgão eleitoral para decidir do mandado de segurança.

Quando julgar oportuno, no decorrer da leitura do meu voto, darei o meumodo de ver sobre a questão da competência.

Não tenho dúvida sobre a cabida do mandado de segurança contra ato daJustiça Eleitoral, uma vez que o Código do Processo, admitindo a garantia contraato de qualquer autoridade, com exclusão somente dos atos do presidente daRepública, dos ministros de Estado, dos governadores e dos interventores, deixa

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facultada a via processual para atacar os atos de outras autoridades, que nãosejam aquelas, restrições únicas que não podem ser ampliadas por interpretação.

Também não seria possível dizer que os atos ou resoluções da JustiçaEleitoral sejam atos judiciais, porque a denominação Justiça Eleitoral, de usocorrente, não corresponde à índole da instituição, que é meramente administrativa.

A lei eleitoral — Decreto-Lei n. 7.586, de 28 de maio de 1945 —, dispondosobre o alistamento, o processamento e a data das eleições, criou os órgãosprevistos na Emenda Constitucional n. 09, para a sua execução, apuração daseleições e proclamação dos eleitos — órgãos a que deu feição judicial pelorecrutamento de magistrados para compô-lo, ou para desempenhar singular-mente os serviços eleitorais.

A locução Justiça Eleitoral não está na lei, como por igual não está naEmenda n. 9, que apenas a deixou prevista sem qualquer qualificação. O usocorrente, adotado logo de início, terá vindo em parte da composição nitidamentejudiciária dos seus aparelhos e da força do hábito adquirido ao tempo deinstituição sob a Constituição de 1934, com o caráter então de organismojudiciário irrecusavelmente.

O que existe atualmente é uma instituição similar na sua apresentaçãoexterior e nas suas atribuições administrativas. Faltaram-lhe, porém, asatribuições judiciárias que tinha a anterior, e isso mesmo se vê da suacompetência expressa na lei para processar e julgar as infrações eleitorais e, porigual, como, ainda há pouco, foi por ela própria acertadamente reconhecida, paraassegurar a um partido político providências reclamadas contra atos da polícia,porquanto tais garantias, possivelmente o habeas corpus e o mandado desegurança, são da alçada do Judiciário.

Não existiria assim a objeção de se tratar de ato judicial, que, no entenderdos eminentes colegas em maioria, não comportaria o mandado de segurança.

Levantou o Dr. Procurador-Geral a preliminar no sentido de aplicar, nopresente mandado, por analogia, a diretiva legal que já vinha da Lei n. 191 e quefoi, ainda agora, mantida no Código de Processo Civil, isto é, que, em se tratandode ato judicial, cabe ao próprio Tribunal que praticou o ato conhecer do mandadode segurança e examinar-lhe a procedência. A lei dá ao próprio Tribunal coatorcompetência para decidir do mandado de segurança, em se tratando, também, deato administrativo da órbita do Tribunal. Mas, a meu ver, e data venia de S. Exa.,o Dr. Procurador-Geral, o caso dos autos tropeça no caráter especial da justiçachamada “eleitoral”. Será, realmente, uma justiça? Se ela não é um organismojudiciário, integrado no mecanismo judiciário do País, não pode julgar mandadosde segurança, como não pode julgar habeas corpus. A lei eleitoral fala em

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“infrações eleitorais” e diz que serão julgadas pela justiça comum. Omitequalquer referência a habeas corpus; omite, por igual, qualquer referência amandados de segurança.

Não me parece, data venia, possamos admitir que a Justiça Eleitoral julguemandados de segurança, ela que não é organismo judiciário, que não faz parte domecanismo judiciário do País.

Competência para decidir mandados de segurança importaria, necessaria-mente, em competência para, no caso de indenização, decidir da açãoreparatória. Toda essa matéria — mandados de segurança, ação reparatória,embora envolvendo matéria eleitoral, cabe ao Judiciário comum. A atual JustiçaEleitoral não pode conhecer de mandado de segurança, como não pode conhecerde habeas corpus, ou de qualquer outra medida de caráter judicial. Mandado desegurança é remédio judicial regulado no Código de Processo e que pode levaraté à ação reparatória.

Não me parece possível que um tribunal de caráter sui generis, que selimita ao processamento de eleições, possa conhecer de mandado de segurança,possa conhecer de matéria nitidamente judicial, de índole judiciária, que sótribunais judiciais podem decidir. A Justiça Eleitoral, não obstante o seu relevo,não passa de um organismo administrativo destinado à execução da lei eleitoral,embora seja constituída predominantemente de magistrados de carreira, o quenão basta para transformá-la em aparelho judiciário.

Eis as razões por que não posso aderir à preliminar levantada pelo eminenteDr. Procurador-Geral, no sentido da competência da própria Justiça Eleitoralpara conhecer do mandado.

Resta examinar o tema que abordo no voto que escrevi. Resta saber se acompetência originária é do Supremo Tribunal Federal ou do juiz dos feitos emprimeiro turno.

Resta, pois, a questão da competência originária, que está limitada peloCódigo de Processo e pelo Regimento Interno que o reproduziu, aos atos dopresidente, dos ministros ou da Secretaria, explicitação, aliás, inútil quanto a esta,porquanto os atos da Secretaria, quando definitivos, serão necessariamente atosdo presidente.

Temos admitido em casos excepcionais a competência, originária porderivação de competência de recurso nas causas da União, extensão razoávelque tem raiz constitucional.

Em se tratando, porém, de atos da Justiça Eleitoral, posto que emanados doseu órgão culminante, não encontra base constitucional para idêntica construção.

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É certo que o Tribunal Superior de Justiça Eleitoral se afigura uma aladeste Supremo Tribunal, pela presidência a ambos comum e pela presença na suacomposição de dois ministros desta Casa. Mas bastará o relevo da instituição oua sua assemelhação fisionômica para legitimar a extensão da competênciaoriginária que é excepcional?

Parece-me que não. E ocorre-me um precedente, o do Tribunal de Contas,instituição constitucional de relevo no mecanismo do regime, trazido a juízo, pormandado de segurança, na vigência das instituições de 34, requerido por umfuncionário que se dizia preterido numa promoção.

O pedido foi aforado na primeira instância federal e veio em recurso aoexame do Tribunal. Não originariamente.

A ampliação da competência originária além do expresso não deve seradmitida em linha de princípio. Só por construção constitucional plenamentejustificada.

Eis por que não conheço do presente pedido.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator e Presidente): Após asconsiderações brilhantemente aduzidas no voto do Sr. Ministro Annibal Freire,perfeito conhecedor da matéria, todos os colegas que me haviam acompanhado,não conhecendo do mandado, retificaram os seus votos, acompanhando o deS. Exa. Também o acompanharam os que ainda não se haviam manifestado nasessão anterior. Resta, portanto, o meu voto, que peço licença para manter.

Também estou de acordo com algumas das considerações do voto doSr. Ministro Annibal Freire. Aliás, tenho, a esse propósito, opinião largamentefundamentada sobre a matéria eleitoral e a necessidade de substituí-la ao espíritofaccioso da administração.

Em 1924, em livro que o Instituto dos Advogados premiou generosamentecom a medalha de ouro Carlos de Carvalho, examinei vários assuntos na órbitaconstitucional e, entre eles, particularmente este: de que era necessário retirardas assembléias legislativas a prerrogativa de reconhecer poderes e decidir sobreinelegibilidades. Baseei-me, então, na opinião de vários autores estrangeiros,todos de acordo no sentido dessa necessidade e entre eles lembro-me de páginamuito brilhante de Lapradelle, grande constitucionalista francês, sustentando anecessidade de retirar das assembléias legislativas essa prerrogativa, nãoobstante existir, em todas as Constituições, como ponto pacífico, o direito dessasassembléias de se comporem por sua própria deliberação, o que entre nós, poruma deformação das instituições, muito conhecida nos precedentes da República

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Velha, tornou-se o que se chamou, então, “aritmética política”, que era a faculdadeatribuída ao Congresso de reconhecer os deputados que quisesse, declarandoinelegíveis aqueles que quisesse, contra a evidência numérica da votação dosaber dos interesses políticos ou partidários.

De modo que essa opinião manifestada anteriormente coincide com aopinião do Sr. Ministro Annibal Freire.

A Justiça Eleitoral foi criada em 1934 com esse caráter judiciário;sobreveio, porém, a Constituição de 1937 e omitiu qualquer referência a essaJustiça. E a Emenda Constitucional n. 9, convocando o eleitorado ou prevendouma lei que o convocasse, e ordenando que se procedesse à arregimentaçãopartidária, limitou-se a dizer que a lei prevista no art. 4º dessa emendaconstitucional estabeleceria a Justiça competente para o processo eleitoral. Nadadisse, porém, acerca da índole judicial desses órgãos, nem instituiu uma justiçapropriamente dita, limitou-se a prever órgãos que a lei teria de amoldar para odesempenho das funções de alistamento e processamento das eleições. Taisórgãos tiveram, portanto, a feição de um organismo administrativo, embora comgrande relevo e a que se deu, pela tradição e prática da Constituição de 1934, onome de “Justiça Eleitoral”, denominação que se tornou corrente.

O Sr. Ministro Annibal Freire: Aliás, quero salientar, apenas comoobservação, que a exposição de motivos da Lei Eleitoral alude, expressamente,à “Justiça Eleitoral”.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator e Presidente): Fê-lo a exposição demotivos, mas não a lei. Não basta a denominação, que não corresponde àinstituição. Se fosse realmente Justiça, se os aparelhos eleitorais fossemtribunais judiciários, julgariam os crimes eleitorais e com eles os habeas corpus,o que está expressamente vedado. Temos de aguardar que a nova Constituição —conforme já está anunciado — nos dê, de novo, a Justiça Eleitoral como umaverdadeira Justiça.

Sendo assim, não constituindo até agora essa Justiça um organismojudiciário, mas um organismo de índole administrativa, só resta uma circunstânciaque eu mesmo salientei no meu voto e que não me passou despercebida: é de sera presidência da Justiça Eleitoral exercida pelo presidente do Supremo Tribunal.

É uma presidência complementar. Não é a presidência do SupremoTribunal, função esta que acarretaria necessariamente a competência origináriadeste Tribunal.

Permitiu-se, ao arrepio do art. 92 da Constituição, que magistradosaceitassem a função eleitoral. Essa função, sendo função administrativa, navigência do art. 92, antes emendado pela Lei Constitucional n. 11, seria discutível

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Ministro Castro Nunes

que pudessem os juízes aceitá-la; aceitaram-nas, porém, e não houve reparos aesse respeito; e não houve reparo porque não havia interesse em levantar aquestão, dado que a outorga dessas funções atendeu aos anseios do momento, nointeresse da arregimentação partidária do País e da verdade eleitoral. De modoque passou inteiramente, sem qualquer censura, essa violação do art. 92; cujomerecimento teria de depender do exame da natureza do serviço eleitoral, dasoi-disant Justiça Eleitoral, indagação que só agora está posta na tela judiciária.

O presidente do Supremo Tribunal, portanto, nas funções de presidentedesta Casa, tem os seus atos sob o controle imediato deste Tribunal. Mas, noexercício da função complementar que se lhe deu e ele pôde aceitar, não seimpõe a competência originária. De sorte que os atos que ele pratique comopresidente da Justiça Eleitoral e os atos da própria Justiça Eleitoral devem vir aonosso conhecimento, mas por via do recurso, visto como a competência originárianão está expressa e não me parece possível ampliá-la sem base constitucional.

Por outro lado, um ponto que me calou no espírito foi que os crimespolíticos — e neste caso os habeas corpus que forem motivados por algum atoda Justiça Eleitoral — não poderão ser aforados nessa Justiça, terão de o serperante os juízes de primeira instância, com recurso para os Tribunais de Apelaçãoe, portanto, sem a competência necessária do Supremo Tribunal.

O mandado de segurança estaria bem na competência do Supremo Tribunal,por considerações que o Sr. Ministro Annibal Freire muito habilmente fez,mostrando que atende ao relevo da Justiça Eleitoral. Será uma razão a seratendida pelo legislador constituinte.

Concluo, portanto, pela incompetência do Supremo Tribunal.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator e Presidente): Como viu o Tribunal,no relatório feito na sessão passada, o Desembargador Felismino Guedes era ovice-presidente do Tribunal de Apelação, num dos estados do Norte — emPernambuco — quando, tendo sido posto em disponibilidade, em cumprimento deacórdão do Supremo Tribunal, que declarara ilegal ou inconstitucional a suainvestidura, por entender que a vaga caberia ao juiz de direito mais antigo, suscitou-sea dúvida no Tribunal Regional Eleitoral sobre se ele poderia continuar comomembro de dito Tribunal. O Tribunal Regional Eleitoral consultou o TribunalSuperior e este decidiu que o juiz em disponibilidade não pode ser juiz eleitoral, quea disponibilidade importa na cassação da função eleitoral. Essa é a questão dedireito, sem dúvida, relevante e interessante. Eu a examinei e cheguei à seguinteconclusão: a lei eleitoral supõe normalmente a função própria do juiz, quando odesigna para exercer as funções eleitorais. O fato de não dizer “desembargador em

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exercício”, como pretende o impetrante — e é essa uma das suas alegações —,não tem o menor alcance. Dizendo simplesmente que dos Tribunais Regionaisfarão parte dois ou três desembargadores, dito está que serão “desembargadoresem efetivo exercício”. Mas, por outro lado, existem argumentos que, emboraabandonados, levam a concluir no sentido de pretensão do impetrante.

Em primeiro lugar, a Emenda Constitucional n. 11. O art. 92 da Constituiçãode 10 de novembro de 1937 limitava-se a dizer que os juízes, mesmo emdisponibilidade, não poderiam exercer qualquer outra função pública. Veio,entretanto, a Emenda Constitucional n. 11, emanada do nosso colega Sr. MinistroJosé Linhares, quando na Presidência da República, e essa emenda diz que osjuízes em disponibilidade não poderão exercer qualquer outra função pública,salvo a função eleitoral ou cargo ou comissão da confiança direta do presidenteda República ou dos interventores.

Quero crer que a intenção da emenda tenha sido apenas possibilitar aosmagistrados o exercício das funções de governo. Mas, como a omissão à “JustiçaEleitoral”, a omissão de qualquer referência à função eleitoral poderia levar aoargumento de que estaria excluída a função eleitoral, porque não expressa,porque não mencionada, uma vez que se mencionava a aceitação possível dafunção governamental, o redator do dispositivo acrescentou “função eleitoral ecomissão de natureza governamental”. Daí, dessa emenda é que resulta o melhorargumento em favor da pretensão do impetrante, porque, realmente, se existetexto constitucional, e emenda constitucional é texto constitucional, é aditamentoà Constituição — no sentido de que o juiz, mesmo em disponibilidade, podeexercer função eleitoral, importa isso num argumento que me detém na soluçãopelo indeferimento do pedido.

Acresce ainda, em segundo lugar, que o entendimento que vem sendoadotado na própria Justiça Eleitoral é o de que o juiz em férias, afastado dafunção, o juiz licenciado na função própria, não fica impedido de continuar aservir na função eleitoral. É certo que em qualquer desses casos — férias oulicença — o magistrado, como o funcionário, em geral, conserva a função, nãofica privado dela, apenas está afastado, mas conserva o cargo, está afastadotemporariamente da função. Mas a disponibilidade não é coisa fundamentalmentediversa. A disponibilidade supõe o cargo, supõe a função virtual; a disponibilidadenão é o desligamento definitivo do funcionário; o juiz em disponibilidade é magis-trado, tanto assim que o art. 92 estendeu-lhe a proibição de aceitar qualquer outrocargo público; ele é magistrado em estado virtual. O desembargador de que setrata foi afastado, por disponibilidade, da função, até que se dê outra vaga que lhecaiba. De sorte que ele está na iminência de voltar ao exercício. O juiz ou ofuncionário em disponibilidade não está equiparado ao aposentado — porque esteperde a função definitivamente e só conserva um predicamento dela, que é o

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Ministro Castro Nunes

vencimento, ao passo que o funcionário em disponibilidade conserva todos ospredicamentos menos o exercício temporariamente interrompido, inclusive asincompatibilidades para o desempenho de qualquer outra função.

Ora, a distinção que existe, em última análise, entre o juiz em disponibilidadee o licenciado é apenas uma questão de tempo: é que o juiz, licenciado ou em férias,está afastado por tempo determinado, previsto, ao passo que o juiz emdisponibilidade está afastado por tempo indeterminado.

Por outro lado, existe, invocada pelo impetrante, a jurisprudência do antigoSuperior Tribunal Eleitoral, ao tempo da Constituição de 1934. Esses arestosservem à argumentação do impetrante, porquanto não altera os termos da questãoa circunstância de ser àquele tempo um organismo judiciário a Justiça Eleitoral.

Eu poderia ler ao Tribunal os acórdãos que cita o impetrante e que sãovários, havendo acórdãos a respeito de juízes em férias, que foram mandadoscontinuar nos Tribunais Eleitorais; há acórdãos relativos a juízes emdisponibilidade — um desembargador de Sergipe que, tendo sido, por uma lei doestado reduzindo o número de desembargadores do Tribunal de Justiça, posto emdisponibilidade, Desembargador Décio de Oliveira Ribeiro, continuou juizsubstituto da Justiça Eleitoral. Suscitada a dúvida pelo Tribunal Regional, oTribunal Superior resolveu que a disponibilidade em que fora posto aquelemagistrado não acarretava a perda do cargo eleitoral. Até mesmo um juizaposentado — e até aí eu não seria capaz de ir — se admitiu, por decisão doTribunal Superior Eleitoral, que continuasse nas funções eleitorais.

O Sr. Ministro Annibal Freire: O desembargador de que tratam os autos,aliás, já havia sido designado para as funções eleitorais e exercia essas funções,quando veio a ser posto em disponibilidade.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator e Presidente): Efetivamente, depoisde ter exercido por alguns meses a função de juiz do Tribunal Eleitoral é que foiafastado das funções de desembargador.

Trata-se, assim, de saber se o juiz a quem sobrevém uma disponibilidade, etal o caso dos autos, ou a quem sobreviesse à licença, se fica afastado,necessariamente, da função eleitoral. É o caso. O Tribunal Eleitoral cassou aorequerente a função eleitoral, mas como eu penso que, pelo fato de se achar emdisponibilidade, não perde a função eleitoral, concedo o mandado de segurança.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: conheceram do pedido,contra o voto do Ministro Relator, e o indeferiram contra os votos dos MinistrosRelator e Annibal Freire.

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Impedidos, os Ministros José Linhares, presidente do Tribunal; EdgardCosta e Lafayette de Andrada.

Presidiu o julgamento o Ministro Castro Nunes, Vice-Presidente.

Deixou de comparecer, por ter entrado em gozo de licença, o MinistroGoulart de Oliveira.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO 1.378 — PA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Trata-se de um conflito negativo entre oTribunal de Apelação e o Conselho Regional com sede em Belém do Pará.

O caso que o motivou resume-se no seguinte: na comarca de Santarém,perante o juiz de direito, João Felix da Cunha propôs contra João B. Miléo umaação ordinária de cobrança de salários que este lhe ficara a dever, alegando queo réu o contratara para capataz de sua fazenda mediante o salário de cinco milréis diários.

Entre ambos havia também uma parceria de gado, questão à parte que nãofaz objeto da ação em apreço.

Não conseguiu o autor provar o salário convencionado na base de cincomil réis; e o juiz, julgando a ação procedente em parte, fixou-o em 4$150, mínimolegal na localidade.

Houve recurso, de que não conheceu o Tribunal de Apelação, entendendoser o caso da competência da Justiça do Trabalho. O acórdão de fl. 57 é oseguinte: (lê).

Remetidos os autos ao Conselho Regional do Trabalho, este, por sua vez,deu-se por incompetente, não só por se tratar de questão regida pelo direitocomum, e não por lei trabalhista, como, ainda, por se tratar de trabalhador rural,não amparado pela legislação social.

O acórdão, que passo a ler, é o seguinte, fl. 74: (lê).

O próprio Conselho Regional, fundado no art. 107, letra c, do regulamentoexpedido com o Decreto 6.596, de 12 de dezembro de 1940, suscitou o presenteconflito, sendo os autos remetidos ao Supremo Tribunal.

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Ministro Castro Nunes

O parecer do Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República, à fl. 79, verso,é o seguinte:

A controvérsia se baseia na legislação comum, não trabalhista, e de acordocom aquela foi resolvida.

Parece-nos, assim, que a competência é da justiça comum, devendo orecurso ser apreciado pelo ilustre Tribunal de Apelação do estado do Pará, comofor de direito.

24-7-1942

a) Gabriel de Rezende Passos.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): A questão que se oferece ao nossoexame no presente conflito envolve duas indagações da mais alta relevância edas quais depende a demarcação do âmbito da Justiça do Trabalho: a primeiradelas está em saber se, em falta de lei trabalhista, podem os tribunais do trabalhoaplicar os códigos comuns quando invocados como normas de proteção dotrabalhador, mesmo não se tratando do art. 81 do Código Comercial e do art.1.221 do Código Civil, sobre aviso prévio, normas essas já declaradas sociais peloDecreto-Lei n. 4.037, de 19 de janeiro deste ano; a segunda consiste em verificarse a competência da Justiça do Trabalho pode ser estendida aos trabalhadoresrurais, não obstante limitada aos trabalhadores urbanos, ou melhor, aostrabalhadores da indústria e do comércio, a aplicação da maior parte das leistrabalhistas.

Para melhor compreensão da hipótese destes autos convém salientar quenão se trata nem de uma liquidação de parceria nem de uma questão sobresalário mínimo. O capataz alude a uma parceria de gado que tivera com o patrão,mas declara que essa liquidação será feita oportunamente. Também não se tratade questão ou reclamação sobre fixação de salário, embora o juiz se tenhaapoiado no salário-base vigente na localidade como critério subsidiário na fixaçãodo salário controvertido, entre o que se dizia convencionado e o confessado pelopatrão.

A hipótese é de cobrança de salários convencionados entre empregado eempregador, salários que aquele reclama e que este declara não dever senão emparte e em base menor.

Deixando de lado outros detalhes, é esta a questão: uma reclamação sobresalários convencionados e não pagos e, portanto, um dissídio oriundo de um con-trato de trabalho entre empregador e empregado.

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Memória Jurisprudencial

A hipótese é de locação de serviços, regida pelos arts. 1.216 e seguintes doCódigo Civil. Não é o caso do art. 1.221, que já hoje entra, sem contestaçãopossível, por força do Decreto-Lei n. 4.037, na competência da Justiça doTrabalho.

Esse decreto-lei, como se sabe, resolvendo dúvidas até então existentes,solucionou-as, aliás de acordo com o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal,no sentido de que aquele dispositivo, e bem assim o do art. 81 do CódigoComercial, ambos concernentes ao aviso prévio, são normas sociais, aplicáveis,portanto, pela justiça trabalhista.

Uma dúvida poderá sobrevir: serão essas as únicas normas sociaisexistentes naqueles Códigos, ou, de um modo mais geral, na legislação comum,pelo argumento a contrario sensu? Ou a lei, especificando-as, não exclui apossibilidade de outras?

A meu ver, tal possibilidade não ficou excluída, a critério do intérprete etendo em vista cada relação jurídica a ser examinada em espécie.

Creio mesmo que a lei, dispondo acerca daqueles dois preceitos legais,admitiu em princípio que as normas de proteção do trabalho possam estar foradas leis específicas da disciplinação do trabalho e da assistência ao trabalhador.

É esse, ao meu ver, o sentido da extensão admitida por este SupremoTribunal e já agora por aquele decreto-lei.

Devo dizer que, em sentenças que proferi quando juiz federal e emexplanação doutrinária sobre a “Justiça do Trabalho no mecanismo jurisdicionaldo Regímen”, examinando o alcance da locução constitucional “regidos pelalegislação social”, sustentei que a Justiça do Trabalho não poderia aplicar odireito comum.

Sou assim forçado, pelo menos para as necessidades do voto que estouproferindo, a voltar ao exame da controvérsia.

As razões em que me fundei para atribuir à locução legislação social umconteúdo próprio e inconfundível foram as seguintes:

Em outras legislações, a questão está posta nos termos em que a pusera odecreto do Governo Provisório. Litígios oriundos das questões de trabalho serãotodos os que puderem ser resolvidos por aplicação de qualquer lei que regule asrelações do trabalho. Mas questões regidas pela legislação social hão de sersomente aquelas que possam ser dirimidas por aplicação de uma lei trabalhista,isto é, de uma lei específica de proteção e assistência ao trabalhador, porque sóessas de definem com leis sociais, no sentido histórico-doutrinário dessaspalavras.

Quero crer que a Constituição as empregou com esse sentido peculiar,distinguindo-as do direito civil, tanto assim que, cometendo à União, no art. 5º,

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Ministro Castro Nunes

XIX, a, legislar sobre direito civil, comercial, etc., em outro passo, letra i,comete-lhe estabelecer normas gerais sobre o trabalho, legislação cujas basesassenta no art. 121 (tít. IV).

Das leis sociais cogita ainda no art. 10, V, ao repartir com os estados oencargo de lhes fiscalizar a aplicação, leis que não são outras senão aquelas aque alude o art. 122.

A existência mesma, nas casas legislativas, de uma comissão permanentede legislação social, agora como ainda antes da revolução de 30, revela a auto-nomia dessa legislação, que requer especialização técnica e cujo particularismo étão acentuado que se criou nas universidades, alhures e aqui mesmo, uma cadeirade direito industrial e legislação do trabalho, disciplina inconfundível com outrosramos do Direito, dos quais se destacou.

É por esse mesmo traço que a define Ernst Freund — “By the term sociallegislation we understand those measures which are intended, for the relief andelevation of the less favored classes of the Community”.

Nem de outro modo viu o assunto em livro recente o insigne Rippert. Leissociais, diz, têm um sentido muito característico de leis de proteção da classeoperária. Rompem com o princípio da liberdade contratual, fundam-se numaconcepção de justiça social, visam realizar uma compensação na desigualdadeeconômica das classes. O direito contratual do Código Civil — fala ainda o mesmoexpositor — desaparece nessas preceituações de caráter antes regulamentar doque contratual. Tais leis, acrescenta, são econômicas e não jurídicas. O direitotradicional não as compreende. Daí o dizer de Rouast: “loi sociale, et non loijuridique, vise des situations economiques et non des situations juridiques”.

Questões regidas pela legislação social são, pois, no campo das relaçõeseconômicas entre o empregado e o empregador, as que se possam compreender nanoção do contrato de trabalho.

A locação de serviços, com as suas raízes no direito romano, locatio opera-rum, é o contrato do direito civil; o contrato de trabalho, desenvolvendo-se alatere do Código Civil, como o reconhecem Aubry et Rau (Cours, 5. ed., p. 390),com aquele não mais se confunde e constitui hoje um instituto à parte na exposiçãodos modernos civilistas, como Planiol e Rippert, Colin & Capitant, etc.

Tal contrato tem a sua individualidade própria, dizem Colin & Capitant, nãoé uma simples variedade da locação de serviços, a locação de trabalho de Planiol;obedece a outras inspirações, parte de outros princípios, nega a liberdade contra-tual e a igualdade dos contraentes para lhes retificar a desigualdade econômica,prescinde da forma civil, evoluindo para a disciplinação regulamentar, e desseponto de vista é instituição de direito administrativo nas proibições e sanções queestabelece; entronca-se nas convenções internacionais, universalizando-se comocorpo de princípios cujas bases deram entrada no Tratado de Versalhes e sedesenvolvem cada ano pelos acrescentamentos que de Genebra a RepartiçãoInternacional do Trabalho dita ao direito nacional de cada país (Carnelutti,Teoria del Regol. Collettivo, 1930, p. 37; Ernst Freund, Standards of AmericanLegislation, 1917, p. 22; G. Rippert, Le Regime Democratique et le Droit CivilModerne, 1936, pp. 412 e seg.; Colin & Capitant, Cours, II, p. 587; Capitant etCuche, Legil. Ind., p. 150); Cunha Gonçalves, Trat. Dir. Civil Port., VII, p. 574).

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Memória Jurisprudencial

Sem dúvida, é esse o sentido histórico-doutrinário da legislação social.

Um dos mais recentes expositores da matéria, Paolo Greco, traçando aevolução da legislação social, nas suas diferentes fases, mostra que nos temposmodernos essa legislação reflete a ação revolucionária do sindicalismo que oEstado, reagindo, em atitude de defesa, procurou canalizar para as vias legaiscom a formação gradual de um sistema de leis especiais protetoras dotrabalhador. Essa legislação intervencionista, derrogatória do princípio liberal daabstenção do Estado em face dos conflitos econômicos e sociais, é, diz ele, umadisciplinação de direito público, visando à tutela do trabalhador e tendendo àinternacionalização pela repercussão econômica no equilíbrio da produção e doconsumo.

É a esse complexo de normas que se dá o nome, diz o professor de Turim,de legislação social, a que corresponde, nos mesmos rumos e obedecendo aidênticas inspirações, a justiça social, ambas separadas do direito tradicional oucomum. (Paolo Greco, Il Contratto di Lavoro. 1939, pp. 68 e seguintes.)

É possível, portanto, dar à locução constitucional um sentido restrito.

Mas não sei se será o melhor. Inclino-me hoje ao entendimento de que ocaráter social da norma se identifica em espécie.

Rendo-me assim à opinião favorável à aplicabilidade pelos tribunais dotrabalho das normas que com aquele caráter existam na legislação comum, acomeçar pela própria Constituição, em que se inserem vários preceitos de basetendentes à proteção do trabalhador, entendimento adotado pelo SupremoTribunal e aceito pelos expositores que entre nós têm versado a matéria, e a queserve indiretamente a lei que classificou como normas sociais preceitos doscódigos comuns, preceitos que, como disse, não serão os únicos, embora tenhamsido eles os que vieram ao exame judicial da controvérsia, provocando aquelasolução legislativa.

Acresce que esse entendimento atende melhor à destinação constitucionalda Justiça do Trabalho na sua função tutelar do trabalhador, à necessidade de nãoentorpecer essa proteção pelo só argumento de que a norma não se encontranuma lei especial.

Mas, admitindo a aplicabilidade do direito comum, cumpre não perder devista que a jurisdição especial do trabalho se restringe, entre nós, às questões queenvolvam uma relação de emprego.

Essa competência está definida em razão da matéria e das pessoas. Se acompetência ratione materiae pode ser entendida compreensivamente das nor-mas sociais ainda que fora da legislação trabalhista, a condição de empregado eempregador constitui uma limitação que não pode ser elidida.

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Ministro Castro Nunes

No caso dos autos, essa condição existe. O capataz é um empregado, umpreposto do fazendeiro na administração de sua fazenda, sujeito à sua direção eordens e remunerado pela forma convencionada.

Está assim caracterizado, de um modo geral, tanto quanto basta para oexame da competência que faz objeto do presente conflito, o contrato de trabalho.

A principal, embora não seja a única, característica do contrato de trabalhoé a dependência em que econômica e hierarquicamente fica o trabalhador emrelação àquele que dá emprego à sua atividade.

Na definição clássica de Cuche e Capitant, “existe locação de serviços oucontrato de trabalho toda vez que a execução do trabalho, seja qual for o seu modode remuneração, coloca aquele que o presta numa relação de dependênciaeconômica ou de subordinação para com aquele que paga a remuneração”.

Observa Oliveira Viana que essa definição é aceita pela generalidade dosexpositores e pela jurisprudência. Não é essencial que coexistam a dependênciaeconômica e a subordinação hierárquica ou técnica, bastando uma ou outra, oque, aliás, se depreende, como nota o ilustre expositor brasileiro, de definiçãomesma de Cuche e Capitant.

As duas dependências acabaram fundindo-se num mesmo conceito, o dadependência social, na denominação de Savatier. De modo que, diz OliveiraViana, “todas as vezes que essa dependência social se torna dominante narelação jurídica entre o que presta o serviço e aquele a quem é prestado, hácontrato de trabalho. Senão, o caso é ou de empreitada ou de mandato. Eis aconclusão da doutrina”. (Parecer apud Sermenha Lepage, LegislaçãoTrabalhista. 1938, pp. 41 e seguintes.)

Guy Charriére identifica o contrato de trabalho por esse mesmo traço,depois de o distinguir de vários outros, como a empreitada e o mandato: acaracterística do contrato de trabalho, diz ele, é o estado de subordinação dolocador de serviços (doméstico, operário ou empregado) em face do locatário(chefe ou patrão), acrescentando: não há locação de serviços senão quando ooperário trabalha sob a direção de um patrão, a ele efetivamente subordinado esubmetido à sua superintendência (La rupture abusive du contrat de travail.1932, pp. 9 e segs.).

Zingnerevitch opõe algumas reservas quanto à subordinação hierárquica,que não lhe parece essencial; mas adere à definição de Capitant et Cuche notocante à subordinação econômica do trabalhador, reconhecendo que o critériodiferencial do contrato de trabalho admitido pela maioria dos autores modernos éo do vínculo de subordinação; e acrescenta: esse critério, no momento atual,domina na jurisprudência. (La notion de contrat de travail et son applicationen matiére d’assujetissement aux lois sociales. 1936, p. 27.)

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Memória Jurisprudencial

É com base nesse traço diferencial que se faz a distinção entre trabalhoautônomo e trabalho subordinado, sendo que é deste que se ocupamprecipuamente as normas de proteção social, porque é dele que decorre adependência em que, em relação a outrem, fica o trabalhador, como explicamPaulo Greco, no livro há pouco citado, pp. 53 e seguintes, e Paul Colin na suamonografia De la determination du mandat salarié, 1931, pp. 88 e seguintes.

Exposta assim a noção do contrato de trabalho pela dependência social dotrabalhador, todas as normas legais compensatórias dessa situação obedecem àmesma inspiração de tutela do trabalhador, quer estejam na preceituação especial,quer se encontrem nos códigos comuns. Daí o dizer-se que tais normas seidentificam como sociais pelo seu conteúdo, e não pela lei na qual se insiram.Assim, são desse caráter os preceitos constitucionais que visam à proteção dotrabalhador.

É certo que o contrato de trabalho tem hoje uma feição mais regula-mentar do que propriamente contratual, é antes instituição do que contrato.É uma transformação da locação de serviços, regida por outros princípios quenão são ou podem não ser os do Código Civil. Todos os expositores fazem essaobservação.

A noção do contrato como que desapareceu, diz Rippert, no direitoregulamentar (Le Droit Civil Moderne. p. 412). Outros, como o já citado PaoloGreco, admitem-no como contrato de adesão a normas preexistentes ouinstituição, diz ele, de base contratual (ob. cit., p. 165). Outros, mais radicais,como Zingnerevitch, negam ao contrato de trabalho a feição contratual. A maiorparte das suas cláusulas, diz ele, são disposições legais, e de direito público,transformando-o em verdadeira instituição. (La notion du contrat de travail.1936, p. 148.)

Mas, se, por efeito dessa transformação, tal contrato tem na preceituaçãolegal a maior parte das suas cláusulas e separa-se, por isso mesmo e pelasinspirações a que obedece, do direito contratual comum, o que se pode dizer éque as normas relativas à locação de serviços que puderem ser identificadascomo normas de proteção do trabalhador entram no quadro das cláusulaspreceituais e legais que dominam a conceituação do contrato de trabalho.

Resta agora examinar se o autor, sendo trabalhador rural, tem direito àjurisdição especial do trabalho.

A nossa legislação trabalhista só se aplica aos que trabalham na indústriaou no comércio. Não se estende aos agrários, senão nas hipóteses de aplicaçãoda lei sobre o salário mínimo, não falando das questões relativas a acidentes detrabalho que continuam, por disposição de lei, na competência da justiça ordinária.

Vale dizer que de um modo geral os trabalhadores rurais não estão aindaamparados, senão restritamente, pela legislação trabalhista, salvo nos casos em

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Ministro Castro Nunes

que se trate de lavoura industrializada ou comercializada, porque já então seráesse o fim precípuo da exploração rural, do que decorre que os que nelatrabalham são empregados da indústria ou do comércio.

Essa distinção foi feita entre nós, com apoio na melhor doutrina, peloeminente Sr. Francisco Campos em memorável parecer.

No caso em exame, tal, porém, não se dá.

Trata-se, ao que parece, de uma fazenda de criação ou invernada de gado.

Entretanto, ainda assim, parece-me que não está excluída a competênciada Justiça do Trabalho.

Tal exclusão existiria por decorrência lógica da inaplicabilidade do direitocomum por essa justiça. Seria necessário assim que houvesse lei trabalhistaextensiva por disposição expressa aos trabalhadores rurais ou, pelo menos, nãolimitada aos empregados na indústria e no comércio, como se dá, por exemplo,com a Lei 62.

Mas, admitido que a norma social possa estar em qualquer lei, como ocorreno caso, em que essa lei é o Código Civil, já não é possível dizer que a proteção dotrabalhador rural escapa à Justiça do Trabalho, pois que para isso seria necessáriopartir da premissa de que essa justiça não aplica os códigos comuns.

Waldemar Ferreira, ainda antes da organização definitiva da Justiça doTrabalho, mostrou não ser possível tal distinção, já porque existiam e existemalgumas normas especiais que aproveitam aos trabalhadores agrários, já porqueas normas sociais existentes na Constituição e em outras leis são universais:“São universais”, diz ele, “no sentido de sua eficiência em todo o territóriobrasileiro, os princípios exarados no título da ordem econômica e social daConstituição. Não são poucos os dispositivos regulamentadores do trabalhoagrícola ou rural. Por se encontrarem em textos de leis ordinárias, nem por issoperdem o seu caráter social. Como de legislação social hão de haver-se. E dissodecorre a necessidade da criação e da instalação dos órgãos da Justiça doTrabalho em todo o território brasileiro, pois ela terá de funcionar e exercitar asua jurisdição especialíssima, onde quer que, mesmo além das capitais e cidades,surja uma questão entre empregador e empregado, regida pela legislação social,a já existente e ainda a por vir”. (Princípios de Legislação Social, e DireitoJudiciário do Trabalho. 1938, vol. 1º, p. 153.)

É certo que a própria justiça trabalhista se tem recusado a examinarreclamações de trabalhadores rurais. Existem decisões de juntas e mesmo doConselho Nacional do Trabalho nesse sentido.

Mas o Ministério do Trabalho adotou recentemente orientação divergentedesse entendimento, como se vê da decisão proferida pelo atual titular da pasta,

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Memória Jurisprudencial

Ministro Marcondes Filho, despacho que é o seguinte: “Mal grado a legislaçãotrabalhista brasileira ainda não amparar o trabalhador rural contra a despedidainjusta e de lhe não garantir o direito a férias, não se pode concluir sejam asJuntas de Conciliação e Julgamento incompetentes para reconhecer dereclamações de trabalhadores rurais fundadas em relações de emprego. Cabeàqueles tribunais evidentemente conhecer, preliminarmente, do dissídio, para ofim de verificar se a hipótese está amparada por disposição legal que protejatambém os trabalhadores agrícolas, como ocorre com o salário mínimo”. (Revistado Trabalho, fev. 1942, p. 17.)

Em tais condições, não vejo por que excluir da competência daquela justiçaa aplicação de uma norma de proteção do trabalho, pelo só fato de se tratar detrabalhador rural.

Acresce que já hoje são juízes do trabalho no interior os próprios juízes dedireito, que assim acumulam o exercício da jurisdição comum e da especial, o quefacilita a solução exposta, mais consentânea, pela abreviação das formasprocessuais, com a proteção do trabalhador.

Meu voto é, pois, para julgar procedente o conflito e declarar competenteo Conselho Regional do Trabalho.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, a questão,conforme declarei em meu voto, não é regida pela legislação específica dotrabalho, mas por uma norma de direito civil. Nem mesmo se trata de questãorelativa a aviso prévio, por aplicação de normas do Código Comercial e do Civil,classificados como normas sociais por disposição expressa de lei deste ano.

Mas é uma questão de salário, oriunda de contrato individual de trabalho, epor isso mesmo uma questão trabalhista, ainda que regida pelas normas doCódigo Civil, que, por esse motivo, pela natureza da relação jurídica, passam a sernormas de direito social.

Foram esses os termos em que pus a questão para concluir no sentido dacompetência da Justiça do Trabalho.

Não está em causa a parceria de gado a que faz alusão o autor, declarando,todavia, que a sua liquidação será feita oportunamente. O que ele reclama sãosomente os seus salários de capataz. Se o réu, na defesa, alega prejuízos naparceria ou opõe compensação, dizendo-se credor do empregado, isso não alteraos termos da competência, porque o juiz da ação é necessariamente o juiz dasexecuções e da defesa.

Era o que eu desejava dizer para melhor explicação do meu voto emresposta às objeções do meu ilustre colega Ministro José Linhares.

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Ministro Castro Nunes

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: julgaram procedente o conflito,unanimemente, e competente a Justiça do Trabalho, contra os votos dos MinistrosJosé Linhares e Bento de Faria.

APELAÇÃO CÍVEL 7.282 — BA

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: A sentença apelada expõe o caso nosseguintes termos:

A Companhia Cessionária das Docas do Porto da Baía, sociedade anônima,com sede no Rio de Janeiro, representada por seus advogados, propôs a presenteação sumária especial contra a União Federal, para anular a decisão da primeiraJunta de Conciliação e Julgamento desta Capital, proferida em 16 de Dezembro de1938, no processo IRB n. 1967 de 1938, em que é reclamante o Sr. Fernando JeanHonoré Milcent e reclamada a autora, em cuja decisão esta Junta, exorbitando-sede suas atribuições legais, anulou, sem forma nem figura do Juízo, contrato delocação de serviços, perfeito e acabado, feito em Agosto de 1936, entre oreclamante a importância de Rs 42:700$000 e mais Rs 1:500$000 por mês até ocumprimento da decisão, e ainda Rs 840$000 correspondente à taxa de 2% sobre ovalor da condenação.

Na sua fundamentação, entende a sentença que as Juntas criadas em1932 já eram órgãos da magistratura do trabalho e que, estando ajuizada aexecução da decisão trabalhista, não há como admitir a ação sumária para anulartal decisão, ainda quando se pudesse negar-lhe o caráter judiciário, pois que teriade valer como decisão jurisdicional administrativa, já em via de execução.Concluiu julgando “incompetente ou imprópria” a ação (fl. 74 v.).

Apelou a autora, tendo sido o recurso arrazoado por ambas as partes.

O Exmo. Sr. Dr. Procurador-Geral da República opina pelo não-provi-mento da apelação no parecer de fl. 96, que é o seguinte:

Estamos de inteiro acordo com a sentença apelada e, mais de uma vez jáopinamos no mesmo sentido, com alegações que, por reiteradas, são do conheci-mento do egrégio Supremo Tribunal.

Somos, pois, pela confirmação da sentença, por seus jurídicos fundamentos.

12.12.941.

a) Gabriel de R. Passos.

Com este relatório passo os autos ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

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Memória Jurisprudencial

VOTO (Antecipação)

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, o ilustrado Dr.Procurador-Geral da República colocou a questão nos seus devidos termos, nabrilhante oração que acaba de proferir, examinando o problema da instituição daJustiça do Trabalho entre nós, desde os seus primórdios, na preceituação de 1932,até os nossos dias.

Tive ocasião, como ainda há pouco lembrei, de examinar, quer emsentenças, quer em explanações doutrinárias, todos esses aspectos, e sustenteiexatamente essas idéias que acabam de ser expostas, com maior brilho, pelo Sr.Dr. Procurador-Geral da República, encontrando-me, portanto, de inteiro acordocom S. Exa. nos princípios que, a meu ver, são os verdadeiros e devem nortear aaplicação das leis, mesmo anteriores à atual organização da Justiça do Trabalho.Porque, na realidade, como S. Exa. disse muito bem, a Justiça do Trabalho foiinstituída entre nós, como não podia deixar de o ser, como uma magistratura.

Ora, a jurisdição trabalhista que se criava, com órgãos, embora ainda nãoperfeitamente conformados, ainda em estado embrionário, refletia, necessaria-mente, o particularismo da legislação social, obedecendo à inspiração dessa legis-lação como um reflexo da questão social, num dos seus aspectos, destinando-seexatamente a dar solução aos problemas entre o capital e o trabalho, de modo acanalizá-los para as soluções jurisdicionais, evitando as soluções de fato.

Foi esse o objetivo que presidiu à criação, em toda a parte, da Justiça doTrabalho. Ela surgiu como uma jurisdição especial, refletindo os imperativos, osmotivos, as aspirações da legislação social no seu particularismo; por isso mesmo,ela surgiu e conserva esse caráter, aqui como em toda a parte, porque é da índoleda própria instituição, como uma justiça de compensação, uma justiça deretificações das desigualdades sociais. E daí as soluções no interesse da proteçãodo trabalho e as resistências que tem encontrado e há de encontrar no espíritojurídico clássico, exatamente porque ela quebra, de certo modo, o equilíbrio dodireito na solução das demandas, inspirando-se em princípios que tornam flexívela regra legal para atender às imposições de eqüidade.

Como o Sr. Dr. Procurador-Geral lembrou muito bem, o Supremo Tribunal,embora não tivesse chegado, ao tempo da preceituação de 1932, a criar um corpode doutrina acerca da matéria, tem acórdãos no sentido afirmativo de que asJuntas de Conciliação e Julgamento já eram órgãos da jurisdição do trabalho.

Posso afirmar, sem poder citar de memória nem a data nem o número dorecurso, que, em certo caso, num acórdão notabilíssimo, de que foi Relator o Sr.Ministro Costa Manso, S. Exa. afirmou — e o Tribunal o acompanhou — que asJuntas, criadas pela legislação de 1932, embora embrionárias, eram órgãos daJustiça do Trabalho. O Supremo Tribunal já havia dito isso, portanto, ao tempo daConstituição de 1934.

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Ministro Castro Nunes

E eram órgãos da Justiça do Trabalho por quê? Primeiro, porque foramcriadas com essa destinação, pela lei de 1932; segundo, porque, sobrevindo aConstituição de 16 de julho de 1934, encontrou-as com as características a queteria de obedecer a organização da Justiça do Trabalho, prevista nestaConstituição, como um organismo de índole profissional e paritária. Creio,mesmo, poder dizer que a Constituição de 1934 inspirou-se na legislação de 1932,nos moldes já encontrados na criação da Justiça do Trabalho pela legislação de1932. E adotou-os, de modo que as Juntas preexistentes puderam seridentificadas à vista da Constituição de 1934, como os órgãos por esta previstos.

Sobrevindo a Constituição de 1937, a Lei n. 39 em nada alterou a situação.Aliás, a Lei 39 veio para prover sobre a situação decorrente da supressão daJustiça Federal e dispor acerca da execução das sentenças das Juntas. Não deuorganização nova às Juntas, que continuaram com a sua antiga feição de órgãosclassistas e ainda continuam na atual organização, ainda que a Constituição de37 tenha deixado ao legislador ordinário ampla liberdade na modelação da Justiçado Trabalho.

Donde a conclusão de que até mesmo o ministro do Trabalho, noexercício da avocatória, agindo como instância superior em relação às Juntas,intervenção que poderia ser suspeitada de inconstitucional na vigência daanterior Constituição, teve legitimada essa atribuição.

À vista disso e por essas considerações, em que apenas reafirmo o meuponto de vista anterior, o meu voto (que, aliás, trouxe escrito, mas que desejeijustificar mais amplamente, com essa explanação preliminar) é no sentido denegar provimento à apelação, mantendo a sentença apelada, salvo na sua partefinal, porque o juiz, depois de considerar que as Juntas são órgãos judiciários —porque órgãos de jurisdição do Trabalho e não órgãos ou departamentosadministrativos, quando devia julgar carecedor de ação o autor, julgou a açãoimprópria, conclusão, ao meu ver, contraditória com o fundamento da decisão.

Eu julgo carecedor de ação o autor. É o único ponto em que modifico asentença.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): O meu voto, que trouxe escrito, é oseguinte:

As Juntas foram criadas em 1932 como órgãos, ainda que embrionários,da magistratura do trabalho.

Essa magistratura era, no rumo das idéias que a preconizavam comocomplemento necessário da legislação social, um reflexo dessa mesma legislação,obedecendo às mesmas inspirações, ao mesmo particularismo da legislação social.

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Memória Jurisprudencial

Admitir que as justiças comuns pudessem desconhecer a autoridade dasdecisões da nova jurisdição desprovida então de órgãos de execução seriapraticamente anulá-la nos seus objetivos, transferindo para as justiças ordináriaso que a estas se quisera precisamente subtrair no quadro daquelas idéias.

Daí o meu entendimento, ainda quando juiz federal e já aqui, nesta Turma,em votos que tenho proferido (Legislação do Trabalho, São Paulo, novembrode 1941, p. 493), no sentido da inadmissibilidade da revisão do julgado trabalhistana execução ou de sua anulação por ação como se fora ato da administração, oque importaria em lhe recusar o caráter de decisão emanada de uma justiça,ainda que especial ou de exceção, mas conclusiva nas suas determinações.

O caso é, pois, de coerência de ação e não de ação imprópria, comoconcluiu a sentença. Com essa restrição, nego provimento, modificada a decisãonessa parte.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram provimento, nostermos do art. 67, § 3º, do Regimento.

APELAÇÃO CÍVEL 7.377 — DF(Matéria constitucional)

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, a questão se acha muito bemexposta no relatório do meu eminente antecessor, Ministro Carvalho Mourão,relatório que adotei ao apresentar o caso na Primeira Turma, e a cuja leitura vouproceder: (lê).

Como se vê, o ora apelante propôs ação sumária especial, para o fim deser anulado, por atentatório do seu direito de propriedade, o tombamento feitosobre o prédio da Praça Quinze de Novembro, n. 34.

O fato é que o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional resolvera tornar efe-tivo o tombamento do dito prédio, nos termos e para os fins do Decreto-Lei n. 25, de30 de novembro de 1937, que dispõe sobre o assunto. Contesta-se que o imóvel sejamonumento histórico e, quando o fosse, alega-se que o tombamento, realizado sem aprévia desapropriação, atenta contra o direito de propriedade do Autor.

Sustenta a União que o ato é legal e constitucional, praticado que foi naforma da lei que disciplina a matéria, com base na Constituição, não só porque

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Ministro Castro Nunes

expressamente prevista aquela proteção ou preservação dos valores históricosou artísticos, como porque o direito de propriedade tem hoje um conteúdo limitadopela lei.

A ação foi julgada improcedente. O Dr. Juiz entendeu que o tombamentofora feito legalmente, nos termos do citado Decreto-Lei n. 25. Por outro lado, osautores não haviam feito a prova de que o prédio não fosse monumento histórico.Daí a apelação.

O Dr. Procurador-Geral, no seu longo e brilhante parecer de fls. 149 a 153,opinara pela confirmação da sentença, nos seguintes termos:

Jayme Lino da Cunha Souto Maior e s/m propuseram ação contra a Uniãopara anular o tombamento do prédio à Praça de 15 de Novembro n. 34, destaCapital, levado a cabo pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,em conformidade com o decreto-lei n. 25 de 30/11/1937.

Pretendem mesmo os autores-apelantes que se lhes permita provarmediante perícia (essa perícia forense tão precária e desacreditada porque osperitos nunca se capacitam de exercer imparcialmente suas funções, dizendo averdade sobre os fatos que examinam como técnicos, mas, ao revés, se colocam nopapel de advogados “do fato”, das partes que os indicam) — pretendem osapelantes provar que o prédio de sua propriedade não tem nenhum valor históricoque justificasse o tombamento.

Esse tombamento, porém, se faz após minucioso e seguro exame por umconselho de técnicos notáveis, na forma dos artigos 4º e seguintes da citada lei, o“Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”.

Não é, pois, lícito ao juiz julgar se o prédio tombado tem ou não valorhistórico ou artístico para ser tombado, mas apenas se, no processo que apurouessa qualidade, foram atendidas as exigências da lei.

Ou, como bem o acentua alhures o ilustre Diretor do S. P. H. A. N., Dr.Rodrigo Mello Franco de Andrade, “parece evidente que o exame do atoadministrativo de um órgão técnico como o S. P. H. A. N., pelo Poder Judiciário nãopode, em caso algum, abranger as razões puramente técnicas de decidir adotadaspelo órgão administrativo, ou, por outras palavras o que constitui o mérito dadecisão administrativa.

Nessa parte, o órgão técnico é necessariamente soberano e suas decisõesnão podem ser discutidas e apreciadas.

O que ao Judiciário cabe examinar é tão somente o processo dotombamento, a observância das formalidades legais previstas para o ato, cuja faltapossa importar em nulidade. A sentença só pode concluir pela nulidade do atoadministrativo, nunca pela sua justiça ou improcedência.

Não o pode submeter a nenhuma apreciação subjetiva, mas apenasexaminá-lo objetivamente, o que é o próprio da matéria de nulidade”.

Nessas observações se reflete a lídima doutrina da divisão de atribuiçõesentre os Poderes Executivo e Judiciário, ensinada aliás pela jurisprudência do

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egrégio Supremo Tribunal Federal, sempre que aprecia processos administrativos,limitando-se ao exame de sua legalidade.

Há, pois, um considerandum da ilustrada sentença apelada a que fazemosrestrições, embora a reputemos, quanto ao mais, perfeitamente jurídica e justa, demolde a merecer confirmada pelo egrégio Supremo Tribunal Federal.

As alegações em que insistem os apelantes foram sobejamente refutadaspelo Dr. Procurador Regional e nada de relevante trazem a debate.

Efetivamente, a circunstância de haver sido desapropriado em Paquetá umrecanto “pitoresco” para fins de embelezamento e para livrá-lo de depredações eestragos a que a ignorância o poderia levar, serve de mote para que os apelantesglosem a conveniência de desapropriar a União os imóveis que forem tombadospelo Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, como aquele de que sãoproprietários.

Ora, esse argumento leva a uma conclusão insensata.

Sim, não só porque o caso de Paquetá não é o de defesa do PatrimônioHistórico ou Artístico, pois que se trata de mera providência de ordem urbanísticarelativa a um recanto sujeito aos cuidados da municipalidade, mas ainda, se aUnião fosse seguir o conselho ou os desejos dos apelantes, teria que desapropriarcentenas de edifícios, igrejas, recantos, documentos artísticos e literários e atéuma cidade. Sim, Ouro Preto é por decreto do Governo Federal consideradoMonumento Nacional. Olinda estaria nas mesmas condições, grande parte daBahia, inúmeras casas e templos do Rio de Janeiro igualmente deveriam serdesapropriados!

Há na postulada desapropriação um grave equívoco oriundo, sem dúvida,de uma imperfeita compreensão do serviço de defesa do nosso Patrimôniohistórico e artístico. Para que tal defesa se exercite plenamente não é necessário, anão ser em casos excepcionais, nenhuma desapropriação, que só se justificariaquando o Poder Público precisasse retirar do domínio privado um bem de quecarecesse para um fim de conveniência pública.

A defesa dos nossos monumentos históricos e artísticos é um dever detodos, inclusive dos particulares e — por estranho que isso pareça aos apelantes —é dever também dos proprietários de tais monumentos.

O Poder Público apenas zela por essa defesa, esclarecendo, cooperando,definindo, registrando os monumentos dignos de apreço e de conservação, eauxiliando, como o tem feito de maneira notável e brilhante, a sua conservação ourestauração.

Uma outra alegação sem nenhuma consistência é relativa ao “atentado” àpropriedade, que o “Serviço de Defesa do Patrimônio Histórico”, teria cometidocontra a propriedade dos apelados, o que feriria gravemente a Constituição.

Não há apenas exagero nessa assertiva: há absoluta falta de procedência.

Ao em vez de atentar contra a propriedade o que o “Serviço” faz éjustamente proteger a propriedade, a saber, protege a propriedade de valorhistórico ou artístico contra — singularidade! — contra o proprietário ignoranteou ganancioso.

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Ministro Castro Nunes

E a protege visando a utilidade comum, que se reflete na conservação dosmonumentos, que possam servir de marcos de nossa evolução cultural, ouassinaladores de fatos de nossa história.

A defesa do patrimônio histórico ou artístico acarreta certa limitação ao usoda propriedade, no sentido de que o proprietário dela não pode abusar, a ponto deaniquilá-la, mutilá-la ou, por qualquer maneira, fazer com que ela perca o valor quea levou a ser tombado.

Essa limitação, porém, é feita no interesse público, e redunda numaservidão estabelecida pela lei.

E não constitui singularidade de nosso direito ou de nossas práticasadministrativas, mas revela preocupação hoje generalizada nos países maisadiantados, que elaboram leis com a mesma finalidade que ditou a promulgação dodecreto lei n. 25 de 1937.

“Antichittá e belle arti — Difendono invece gli alti interesse dellacultura, dell’arte, della storia nazionale tutte le limitazioni che colpiscono iproprietari di oggetti darte e d’autichità o i possessori di fondi in cui sononascote o giá messe in luce opere d’arte, oggetti antichi, ruderi omonumenti delle civil tá passate, per gli obblighi cui son soggetti nellealienazioni, le restrizioniche lor s’impongono negli seavi, nellaconservazione dei moumenti, nellacquisto dei ritrovamenti e soppratuttopel diveto dell’esportazione dal Regno”. (Ruggiero, Instituzioni di Dir.Civile, vol. II 364, ed. de 1934).

A nossa lei, pois, sobre estar em perfeito acordo com a Constituição, seadapta aos princípios correntes e mesmo tradicionais do direito de propriedade,que sempre admitiram restrições ao uso da propriedade, em certos casos em que ointeresse público as reclama, e sempre reconheceram a existência das servidões.

Como verifica o egrégio Supremo Tribunal Federal e melhor o dirá com suasabedoria, a apelação não merece provimento devendo ser mantida a sentença deprimeira instância.

Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1940.

a) Gabriel de Rezende Passos

Procurador Geral da República.

Na sustentação oral perante a Turma, o apelante, por seu advogado, insistiuna argüição da inconstitucionalidade, quer da lei, quer do ato administrativo emquestão.

Proferi, então, o seguinte voto preliminar:Cabe, no caso, uma indagação preliminar, referente à constitucionalidade

do ato praticado pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico,constitucionalidade contestada na petição inicial.

Conforme verificou o Tribunal pela leitura do relatório, a questão está postanestes termos: se o art. 134 da Constituição cogita da instituição de um serviço para

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proteção dos monumentos artísticos e históricos; se tal artigo pode conciliar-se como art. n. 122, n. 14, da mesma Constituição, onde se garante o direito depropriedade, salvo desapropriação e salvo a menção, nele expressa, de que odireito de propriedade tem conteúdo social.

De qualquer maneira, questiona-se, na hipótese, se o ato administrativo emcausa e que se pretende anular é compatível com a Constituição e se o Decreto-Lein. 25, de 1937, que também está em causa, pode ser aplicado sem préviadesapropriação e é, igualmente, compatível com o artigo constitucional.

Uma vez que há essa indagação preliminar sobre a constitucionalidade deato administrativo, parece-me que, de acordo com os nossos precedentes, osautos devem ser submetidos à apreciação do Tribunal Pleno.

Com esse voto concordaram o Revisor, Ministro Laudo de Camargo e osdemais Ministros.

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: “Resolveu-se remeter osautos ao Tribunal Pleno, afinal de resolver sobre a inconstitucionalidade argüida.Votação unânime”.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): A questão constitucional levantadanestes autos está em saber se, tombado como monumento de valor histórico certoedifício, nos termos do Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, está a Uniãoobrigada a desapropriá-lo ou se pode subsistir o tombamento com as restrições quedele decorrem para o direito de propriedade, sem necessidade de desapropriação.

Argumenta o Autor que tais restrições são incompatíveis com o direito depropriedade assegurado pela Constituição no art. 122, 14, com a ressalva aí feitada desapropriação mediante prévia indenização, desapropriação que (acrescen-tou ele, por seu ilustre advogado, na defesa oral perante a Turma) já hoje seencontra prevista no Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho último, art. 5º, no qual selê: “Consideram-se casos de utilidade pública: k) a preservação e conservaçãodos monumentos históricos ou artísticos, isolados ou integrados em conjuntosurbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhesos aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens oulocais particularmente dotados pela natureza”.

A Constituição prevê, no art. 134, a proteção dos bens ou locais de valorhistórico ou artístico: “Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assimcomo as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza gozam daproteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Osatentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra opatrimônio nacional.”

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O Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, dando execução a essedispositivo, declara no art. 1º: “Constitui o patrimônio histórico e artístico nacionalo conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e sua conservação sejade interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da históriado Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográficoou artístico.”

Nos arts. seguintes dispõe sobre o tombamento, a cargo do Serviço doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional, compreensivo, assim, dos bens dodomínio público como dos do domínio particular, dispondo quanto a estes últimosque sua inscrição será voluntária, nos casos em que o proprietário a requer ou aela anui, ou compulsória, quando a ela se oponha, depois de notificado, oposiçãoque, observada a forma processual estabelecida, é submetida ao Conselho Con-sultivo daquele Serviço, ao qual incumbe decidir.

Os principais efeitos do tombamento, nos termos do Decreto-Lei n. 25,são, em resumo, e no tocante aos bens imóveis (único aspecto que interessa nocaso presente) os seguintes: a) averbação no registro de imóveis ao lado datranscrição do domínio; b) no caso de alienação do imóvel, esse ônus transmite-se ao adquirente, assegurado à União, aos Estados e aos Municípios direito depreferência; c) o proprietário não poderá destruir, demolir ou mutilar o beminscrito; d) as reparações que forem necessárias à conservação serão feitaspelo proprietário, ouvido previamente aquele Serviço; e) se o proprietário nãodispuser de recursos para fazer as obras necessárias à conservação, poderá aUnião fazê-las ou desapropriar o imóvel.

I - A finalidade do tombamento é conservar-se a coisa, reputada de valorhistórico ou artístico, com a sua fisionomia característica.

Mas essa preservação não acarreta necessariamente a perda da proprie-dade, o proprietário não é substituído pelo Estado; apenas se lhe retira uma dasfaculdades elementares do domínio, o direito de transformar e desnaturar acoisa, como se exprime Lafayette (Cousas, § 25), direito de transformação,assim o qualifica o Código Civil português, o qual vai até à destruição mesma,identificando-se, em certos casos, observa Cunha Gonçalves, com o proscritojus abutendi.

Por isso mesmo que a coisa não sai do domínio do particular, não de deslocapara o domínio do Estado, este não estará obrigado a desapropriá-la para realizaro fim que tem em vista.

É certo que a doutrina clássica exposta por Sabbatini, que define a desa-propriação pela cessão da transferência da coisa, vale dizer pela extinção dodireito titulado no proprietário, a quem substitui o Estado, conceito que admitecompreensivo também dos direitos reais de terceiros sobre a coisa exproprianda

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e bem assim da ocupação temporária; é certo que esse entendimento restritoencontra opositores que ampliam o instituto a certas restrições que afetam odireito de propriedade, ainda que sem o suprimirem ou extinguirem. Assim é que,entre nós, Solidonio Leite, apoiando-se em Meucci, admite um conceito de desa-propriação lato sensu (Desapr., 3ª ed. pp. 17 e segs.). Creio, todavia, que essapossibilidade, admitida e admissível na doutrina do instituto, se endereça ao legis-lador. Porque a noção corrente era e continua a ser a de que a expropriação con-serva o sentido que tinha na Declaração dos Direitos do Homem, como garantiacontra o confisco da propriedade, dita esta “inviolável e sagrada” (Josserand,Cours de Droits Civil, I, 1932, n. 1478).

A essa noção filiou-se o nosso Código Civil, no art. 590, ao definir a expro-priação como um dos casos da perda da propriedade imóvel, o que indica que éessa restrição máxima que corresponde normalmente à desapropriação. Esta seacha, aliás, adscrita na Constituição (art. 122, 14) como garantia, ou sanção, dapropriedade aí assegurada como direito individual, sem confusão possível comoutras restrições menores que, acarretando a absorção da propriedade peloEstado, entram no conteúdo de tal direito, como veremos adiante.

Daquela noção não discrepam modernos expositores, como RogerBonnard: a expropriação, diz ele, é um ato pelo qual o Estado impõe a umparticular acessão de uma propriedade imóvel para um fim de utilidade pública,mediante justa e prévia indenização (Precis de Droit Administr., 1935, p. 449).

Do mesmo modo, o já citado Josserand: uma coisa não pode ser retiradado poder do seu proprietário, passando do patrimônio particular para o domíniopúblico sem que o exija uma necessidade pública (ou mera utilidade) e sob acondição de ser indenizado o proprietário desapossado (evincé) — (Ibidem,ibidem).

Rafael Bielsa, tratando do caráter jurídico da expropriação, assentaque esta importa na perda de um direito de propriedade, o qual se transformanum direito de crédito que compensa aquele e reintegra o patrimônio do pro-prietário, consistindo, pois, acrescenta, numa venda forçada. Distingue a seguirtal hipótese das limitações que, embora fundadas no interesse público, nãoexigem a expropriação (Derecho Administr., 2ª ed., vol. II, pp. 265 e segs.).

Essa mesma noção, com idêntica diferenciação, é fixada por Whitacher:“Nem toda lesão do direito individual, em nome do interesse público, constituidesapropriação.

O característico desta é a transferência de propriedade, do legítimo titularpara quem vá fazer o bem geral. Desapropriar é desapossar, tirar a cousa dopoder do proprietário” (Desaprop., 2ª ed., p. 3, nota).

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Ministro Castro Nunes

A ocupação temporária refoge a esse conceito por exceção contempladapelo legislador, que não está impedido, como já disse, de estender a indenização aquaisquer outras lesões menores que sofra o direito de propriedade. É a desa-propriação do uso, a que outros chamam expropriação indireta (Bonnard,ibidem, p. 460), que constituem hipóteses especiais em regra incluídas nas leissobre desapropriações. Do mesmo modo, guardando certas afinidades: as requi-sições que o Código Civil autoriza no art. 591, mediante indenização posterior,em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina.

II - Para proteger, isto é, acautelar, defender ou preservar os valoresartísticos ou históricos existentes no país ou no Estado, não pretende nem precisatransferir para o seu domínio tais valores. Quer deixá-los em poder dos respecti-vos donos, com a obrigação, a estes imposta, de os conservar, o que envolve,sem dúvida, uma limitação à faculdade que normalmente tem o proprietário dedestruir, desnaturar ou transformar a coisa.

A conservação dos monumentos históricos ou dos objetos de arte, a que seequiparam, do ponto de vista da mesma preservação, os sítios ou paisagens par-ticularmente dotados pela natureza, se é uma novidade entre nós, não o é emoutros países.

Dante Caporali, no artigo que escreveu para o Dicionário de Scialoja, dánotícia da legislação italiana, cujas origens remotam à Renascença, quando seexagerou, diz ele, a defesa das antiguidades e das preciosidades artísticas.

O Estado, ainda que respeitando tanto quanto possível os direitos dosdonos, procura impedir que, abandonadas ao capricho ou ao interesse de cadaum, venham a ser destruídas (Scialoja, Dic. “Antichitá”).

Cunha Gonçalves salienta a mesma preocupação hoje dominante de con-servar em cada país o patrimônio histórico e artístico nacional: “Em todos ospaíses civilizados, ao Estado e aos homens cultos merece especial carinho tudo oque representa documentação da história e arte nacionais. Ainda que os objetosartísticos e os monumentos históricos sejam propriedade particular, interessa àcoletividade que os seus proprietários não exerçam neles o seu jus abutendi,seja alienando-os ao estrangeiro, e empobrecendo o patrimônio artístico nacional,seja abstendo-se dos cuidados necessários à sua conservação” (Trat. Dir. CivilPort., vol. II, p. 223).

Terrat, citado por Biagio Brugi, explica a distinção que tem sido feita parajustificar a limitação que daí decorre para o direito individual — “Leis recentessobre a conservação de monumentos históricos e objetos de arte têm feito surgir,assim na Itália como na França, uma concepção jurídica nova que se exprimecom o nome de propriedade social, para indicar um degrau do desenvolvimentoprogressivo do direito de propriedade em um sentido cada vez menos individual.

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Diz-se que na obra de arte (e por igual em se tratando de outros objetos)existem duas partes distintas: a parte intelectual, isto é, o pensamento do artista, oideal que ele encarnou em uma forma qualquer, e uma parte material, isto é, estaforma que lhe serviu para fixar o seu pensamento, o seu ideal.

A primeira deve pertencer à sociedade civil, à qual incumbe a missão deprotegê-la, de lhe assegurar a conservação e transmiti-la às gerações futuras.Somente a segunda (madeira, mármore ou bronze) pertence à propriedade priva-da, mas propriedade gravada de servidão, sujeita a condições destinadas a garan-tir a primeira, isto é, o patrimônio social (Biagio Brugi, Della Proprietá, vol.1º, p. 52).

III - O que se depreende dessa distinção é que existe nas obras de artecomo nos edifícios de valor histórico alguma coisa que supera o interesse dodono.

É a necessidade ou a conveniência da conservação desses valores, quepode não convir ao proprietário, interessado possivelmente em destruí-los outransformá-los, se isso lhe trouxer vantagem, colidindo já então com o interessesocial ou nacional ligado àquela conservação. Destacar esse interesse públicopara protegê-lo, ainda que reduzindo as faculdades do proprietário, está ao alcancedo legislador, com base na atual Constituição.

Dúvidas maiores poderiam ocorrer outrora, sob a Constituição de 91, quegarantia o direito de propriedade “em toda a sua plenitude”.

Hoje, porém, a cláusula constitucional é muito mais flexível. Continuaassegurado o direito de propriedade como direito individual, subjetivo, com agarantia correspondente que o abroquela contra o confisco e se expressa nadesapropriação mediante prévia indenização. Mas as demais restrições, aindaque lesivas em grau maior ou menor do direito do proprietário, são restrições defaculdades derivadas do domínio, faculdades que formam o conteúdo daqueledireito.

Ora, não seria possível contestar que o dispositivo constitucional que seacrescentou à declaração do direito individual da propriedade visou abrandá-lo,no seu absolutismo, deixando ao legislador espaço livre para lhe imprimir umacolaboração conveniente, em forma não somente negativa, mas também positiva,com o interesse social.

A antiga noção que não vedava ao proprietário senão o uso contrário àsleis e aos regulamentos se completou com a da sua utilização ao serviço dointeresse social. A fórmula propriedade obriga tem esse sentido. A propriedadenão é legítima, explica Rippent, senão quando se traduz por uma realização van-tajosa para a sociedade. O proprietário deve à sociedade conta de sua explora-ção; deve-lhe conta de sua conservação ou cessão de sua propriedade; deve-lhe

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Ministro Castro Nunes

conta até mesmo da falta de exploração (Le Regime Democr. et le Dir. CivilModerne, 1936, p. 242).

É a função social da propriedade, a esta inerente, como diz Hauriou, coisadiversa da propriedade — função social, de Curvitch e de outros extremistasdo Direito, que absorve o elemento individual do direito, mantido em nossa Cons-tituição, ainda que com aquela destinação.

Tal é o sentido do acréscimo que deu entrada na atual Constituição emtermos ainda mais amplos do que os da fórmula que já se inserira no texto de 34:“O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem oexercício (...)”

IV - O âmbito do legislador é, portanto, muito vasto.

Estão nas tendências contemporâneas refletidas nas legislações de todosos povos restrições extensas, desconhecidas da concepção clássica do direito depropriedade, com base no Código Civil francês, restrições que o espírito jurídicovai consentindo e que, como observa Brugi, vão crescendo de dia para dia porefeito de uma maior valorização do interesse público.

Aqui, como em outros países, se acusa a mesma tendência, de que dánotícia Costa Floret na sua conhecida monografia — La nature Juridique duDir. de Proprieté, 1935.

São as servidões legais no interesse da navegação aérea, as restrições abem da exploração do subsolo, as conveniências do urbanismo, as restrições de-correntes da vizinhança das fortificações, as proibições de plantio, de derrubadade matas, as reduções de safras, a proibição de montar ou de desmontar usinas,a fixação ou o tabelamento de preços, a proibição de abandonar lavouras oususpender o funcionamento de fábricas, a proibição de destruir matérias-primasou produtos necessários ao consumo, a particularização de certos interesses, doque é exemplo a proteção do fundo de comércio e tantas outras limitações, deri-vadas da economia dirigida da defesa nacional da necessidade de preservar oconsumo etc., revestindo algumas delas até a forma de delitos.

Em todos esses casos, em grau maior ou menor, a propriedade se desvalo-riza ou o direito do proprietário sofre restrições consideráveis. A proibição dederrubada de florestas é uma inibição ao direito que tem o proprietário deutilizá-los economicamente. A proibição de plantio ou as restrições a essa facul-dade têm o mesmo sentido. No tocante à política do café, a queima do produto oua sua requisição a preços tabelados para equilibrar o mercado e, de um modogeral, a fixação de preços dos gêneros de primeira necessidade são exemplos,entre muitos outros, de restrições extensas a que está sujeita a propriedade,comercial ou civil, em nossos dias.

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Memória Jurisprudencial

V - A conservação dos monumentos históricos visa um interesse de edu-cação e da cultura. A proibição de os mutilar, destruir ou desfigurar está implícitanessa preservação. A obrigação de conservar, que daí resulta para o proprietá-rio, se traduz no dever de colaborar na realização desse interesse público.

A desapropriação seria impraticável, como o demonstra no seu brilhanteparecer o Sr. Dr. Procurador-Geral da República.

O que a lei chama patrimônio histórico e artístico nacional é o conjunto dosbens móveis e imóveis existentes no país e que devem ser conservados pelo seuvalor artístico ou significação histórica. Exigir a desapropriação seria tornar im-possível tal preservação.

A desapropriação está prevista na Lei n. 25 para o caso em que não sejapossível conservar a coisa sem a retirar das mãos do proprietário. O mesmo nodireito italiano. O monumento histórico ou de antiguidade nacional que seja bemimóvel e cuja conservação corra perigo continuando no poder do proprietário,é adquirido pelo Estado mediante desapropriação (Scialoja, Dizionario, vol. II,Expropr.).

É essa precisamente a hipótese prevista no parágrafo 1º do art. 19 da Lei25; se o proprietário não dispõe de meios para fazer as obras de conservação, oEstado, para evitar a ruína do edifício, o desapropria. Fora dessa hipótese nãoestá obrigado a desapropriar, porque a conservação é um ônus que a lei impõe aoproprietário; salvo se o Estado quiser fazer.

O Decreto-Lei 3.365, de 21 de junho de 1941, contemplando entre oscasos de desapropriação a preservação dos monumentos históricos, deve serentendido nos termos da lei especial que rege a matéria. Faculta a desapropria-ção, de que poderá usar o Poder Público se for necessário ou conveniente trans-ferir para o Estado a propriedade.

Resumindo: A Constituição, declarando no art. 134 que os bens de valorartístico ou de significação histórica existentes no país ficam sob a proteção doEstado e que os atentados contra eles praticados serão equiparados aos que oforem contra os do patrimônio nacional, prevê uma preservação de tais valores aque é inerente a sua conservação. O Decreto-Lei n. 25, dando execução a essedispositivo, não cometeu ao Estado o ônus desse conservação, e tanto equivaleriapretender-se, que, para evitar a sua destruição ou transformação pelos proprietá-rios, a União houvesse de os desapropriar.

Tal encargo incumbe ao proprietário, de cujo patrimônio não sai a coisa, daqual continua ele a poder dispor, vendendo-a, hipotecando-a, locando-a etc., proi-bido somente de a destruir ou transformar.

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Ministro Castro Nunes

Essa limitação não suprime ou extingue no seu titular o direito de proprie-dade, limita-o no exercício de uma de suas faculdades, limitação que diz com oconteúdo do direito, ao alcance do legislador nos termos da Constituição (art.122, 14).

O Estado só toma a si o ônus da conservação — e a tanto equivale aobrigação de desapropriar — quando não seja possível conservar a coisa deixan-do-a em mãos do proprietário, e tal é a hipótese prevista na Lei 25.

Não está porém impedido de o fazer em outras hipóteses, se o assim en-tender em cada caso, já então por aplicação da lei geral sobre desapropriações enão por aplicação daquela lei especial.

Pelo exposto, não julgo inconstitucional a aplicação do Decreto-Lei n. 25,sem desapropriação.

APELAÇÃO CÍVEL 7.377 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: O apelante, na presente demanda, argüiu anulidade do ato administrativo, emanado do Serviço do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, por dois fundamentos: 1º) por não ser o imóvel da Praça 15 denovembro n. 34 monumento histórico; 2º) a aplicação do Decreto-Lei n. 25, de1937, sem desapropriação, inconstitucional, por envolver ofensa ao direito depropriedade. Essa argüição não está mais em causa, uma vez que já resolvidapela negativa em Tribunal Pleno, subsistindo somente a primeira.

Reporto-me, para maiores detalhes, data venia, ao meu relatório, à fl. 155.

Ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): O Decreto-Lei n. 25, de 30 denovembro de 1937, dispondo sobre a proteção do Patrimônio Histórico e ArtísticoNacional, instituiu o serviço respectivo e determinou o rito a seguir no tomba-mento, com a notificação do proprietário para anuir ou impugnar, sendo, nestahipótese, submetido o caso ao Conselho Consultivo do Serviço do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional para decidir a respeito, decisão, acrescenta, de quenão haverá recurso (art. 9º, n. 3).

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Memória Jurisprudencial

No caso dos autos isso foi observado e, aliás, não se contesta. Oproprietário foi notificado e defendeu-se, sendo, porém, mantido e tornadodefinitivo o tombamento do prédio em questão pelas razões expostas no parecerde fl. 27, onde se lê: “(...) o tombamento do prédio (...) não visa, valorarquitetônico da construção, mas o fato de estar ela colocada sobre o ‘Arco doTeles’ que é necessário preservar”, acrescentando: “O Arco do Teles forma,com o chafariz de D. Maria I e o Palácio de Bobadola um conjunto que integra oambiente histórico do velho Largo do Paço, antigo Terreiro da Polé. São relíquiasveneráveis de aspectos familiares do Rio de antanho, muita vez descritas ereproduzidas em gravuras, nos livros de viajantes estrangeiros”.

Estende-se o parecer em outras considerações, citando Vieira Fazenda,para concluir ser o imóvel em questão “de indiscutível valor histórico”.

A presente ação, já agora limitada a esse ponto, tem por objeto contraditaro caráter de monumento histórico atribuído ao prédio da Praça Quinze. Podefazê-lo o apelante como todo proprietário atingido pela classificação de seus benscomo monumentos históricos ou valores artísticos para discutir em juízo o atoadministrativo, com os elementos de que dispuser e que possam conduzir a outroentendimento.

Essa possibilidade decorre da sujeição dos atos administrativos dequalquer natureza, e seja qual for a hierarquia da autoridade de que emanem,inclusive o presidente da República, ao controle judicial, ao exame dos tribunais,quando provocados estes em forma regular.

De modo que é inoperante o dispositivo em que se diz que das decisões doServiço do Patrimônio Histórico não haverá recurso, se se quiser entender queessa vedação alcança o Judiciário.

O que sucede, no caso em exame, é que a controvérsia, arredado oaspecto constitucional, se reduz a uma questão de fato, e tal consiste em saber seé monumento histórico o edifício onde existe o Arco do Teles, se as razões emque se funda o ato administrativo podem ser aceitas pelo Judiciário ou se, aorevés disso, são tão infundadas que devam ser repelidas.

Via de regra os tribunais aceitam como verdadeiras as soluções proferidasnas instâncias administrativas sobre fatos e, sobretudo, quando envolvendoapreciação técnica ou especializada.

Escrevendo alhures sobre o desenvolvimento das instâncias administrativasem toda a parte, inclusive nos Estados Unidos, estado de tipo judiciarista, comoum fenômeno da expansão administrativa e da complexidade técnica de muitosproblemas que surgem na execução de certas leis, exigindo conhecimentosespecializados que não são de presumir nas magistraturas comuns, examinei o

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Ministro Castro Nunes

sentido das locuções encontradiças nos expositores do direito americano —quasi judicial functions of administrative bodies ou choracter quasi judicialof administrative action ou, ainda, quasi jurisditional power.

Salientei então que o poder conferido às administrações para decidirem,por seus agentes ou colégios administrativos, sobre as contestações nascidas daexecução dessas leis, não é, em princípio, conclusivo, facultado sempre aointeressado recorrer às vias judiciárias, e podendo mesmo, em certos casos,recorrer diretamente das decisões administrativas para as Cortes de Apelação deCircuito (Circuit Courts of Appeal).

Tem-se entendido, porém, que esses corpos ou conselhos, em decidindosobre fatos ou na fixação de pontos de natureza técnica, suas decisões são, emregra, conclusivas para o Judiciário, que, desse modo, se autolimita, ainda queconservando, em princípio, o poder de revê-los, mesmo sob esses aspectos. Éque, em face da Constituição americana e dos princípios básicos em que elaassenta, e, por igual, entre nós, não seria possível subtrair ao conhecimento dostribunais qualquer espécie administrativa, nos seus contornos de direito e de fato.

Considerou-se, porém, a conveniência prática de deixar à administraçãocerto âmbito de ação no tocante aos fatos, reservando-se aos tribunais maiorliberdade de apreciação no exame dos aspectos de direito, ainda que, e osexpositores dão notícia da dificuldade, nem sempre seja fácil tal separação.

Essa atitude das Cortes judiciárias é de data relativamente recente. Houvetempo em que nada se consentia aos corpos administrativos (...) Só de cinqüentaanos a esta parte, informa Roscoe Pound, começou-se a admitir a conclusividade,ainda que relativa, das decisões administrativas em matéria de fato.

Algumas vezes a lei mesma usa de uma daquelas locuções, tomadas àjurisprudência, ou confere à administração poderes que equivalem a quaisquerdelas, isto é, atribuições para estatuir sobre certos pressupostos que a lei tem emvista e que dependem de verificações, estimativas ou avaliações, o que ocorremais freqüentemente no lançamento de certos impostos.

Frank Goodnow, na sua conhecida obra, dá notícia dessa jurisprudência.Diz ele nestas passagens que vou traduzir literalmente: De uma maneira geral, ostribunais têm declarado que o seu controle se limita ordinariamente a estatuirsobre questões de competência e sobre a regularidade do ato do funcionárioadministrativo.

Suponhamos, por exemplo, acrescenta, que os funcionários tenhamavaliado bens em vista de taxação e que a arrecadação do imposto se faça porvia judiciária: o tribunal não se pronunciará contra a administração senão no casoem que o agente administrativo tenha ultrapassado a sua competência,

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Memória Jurisprudencial

pretendendo, por exemplo, arrecadar um imposto não estabelecido por lei, ouadotando normas manifestamente contrárias à lei no processo da avaliação.

Mas, no curso de instância, os tribunais não revêem a decisão tomadapelos funcionários incumbidos do lançamento quanto ao valor da propriedade,partindo do pressuposto de terem agido com competência e observância dosprincípios de direito (Frank Goodnow, Droit Adminstr. des Etats Unis., 1907,trad. fr., p. 445).

Em obras ou edições mais recentes, se encontra reafirmado o mesmoentendimento ou a mesma atitude das Cortes federais (veja-se Willoughby, TheConst. Law., 2ª edição, vol. III, § 1.087).

Roscoe Pound, depois de mostrar que as Cortes, a princípio demasiadociosas da sua prerrogativa, têm encontrado, de algumas décadas a esta parte,fórmulas de conciliação mais razoáveis, o que constitui, acrescenta, uma dasmaiores transformações das instituições políticas americanas — “It represents,one of the most fundamental changes that have taken place in our politicalinstitutions” —, informa que a tendência é, hoje, não menos acentuada nosentido de não exercerem o controle judicial da ação administrativa, quando issoseja admissível e, não o sendo, reduzi-lo ao mínimo possível — “Today, thetendency is no less strong to take away judicial review of administrative actionwherever it is constitutionaly possible to do so, and when it is not possible, to cutdown such review to the unavoidable minimum” (apud W. F. Willonghby,Princ. of Judicial Administration, p. 21).

Do mesmo modo, Freund, depois de examinar as correntes no sentido ouem contrário à conclusividade mais ou menos extensa dos atos administrativosnos aspectos de fato, assim conclui: em conjunto, é possível dizer que existe umatendência para conferir aos julgamentos administrativos sobre os fatos, nosassuntos em que a autoridade tenha competência para proceder semi-judicialmente, pelo menos o efeito dos julgamentos de um júri — “On the whole,it is clearly possible to speak of a tendency to give to admnistrative findingsof fact, where the authority acta semi-judicially, at least the effecto of thefindings of a jury” (Ernest Freund, Administr. Powers over Persons andPropriety, p. 295).

Aplicados esses princípios ao caso dos autos, não vejo por que anular otombamento questionado.

A perícia judicial desfechou na melhor justificação do ato administrativo,porque os dois peritos, o do A. e o do juiz, nada adiantaram do ponto de vista,que é o único em debate, da classificação do edifício como monumentohistórico; ao passo que o perito da União, um historiador ilustre, o Prof. PedroCalmon, acrescentou nos fundamentos do ato os subsídios da sua competênciaespecializada. Basta transcrever este tópico do seu extenso laudo:

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Ministro Castro Nunes

Para que bem se perceba a importância tradicional, o sentido e a valia histó-rico-artística do “Arco do Telles” é necessário situá-lo no conjunto arquitetônicoa que pertence.

O pensamento do Governo de Gomes Freire de Andrada, ao construir, nasua configuração definitiva, o Largo do Paço (como se chamou aquela Praçadepois de 1808), foi um lúcido e ousado pensamento pombalino. Queria dotar o Riode Janeiro de um “Terreiro do Paço”, do mesmo gosto do de Lisboa, após oterremoto de 1855: uma bela praça circundada de edifícios uniformes, qual um pátionobre, onde o forasteiro tivesse uma impressão lisonjeira de limpeza, regularidadee harmonia, impossíveis de achar dois passos adiante, nos quarteirões sujos doporto (fl. 44).

Vê-se dessa transcrição que o interesse histórico não está somente noArco, mas no edifício onde ele se insere completando um todo arquitetônico quenão poderia ser cindido.

Se é certo que, na execução de uma lei destas, que tão fundo fere o direitode propriedade, devem os poderes públicos agir com discrição, reduzindo aomínimo possível o que se há de conservar como documentação histórica, nãoseria possível restringir o tombamento ao “Arco”, deixando livre o edifício, parapermitir a sua reconstrução pelo proprietário com a obrigação somente deconservar, na fachada renovada, aquela característica, porque é o edifício que sepretende conservar como integrante de um conjunto arquitetônico que, nostermos da exposição do historiador Pedro Calmon, reconstitui uma época erecorda velhas tradições da cidade.

Nego provimento.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram provimento, unani-memente.

APELAÇÃO CÍVEL 7.601 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: A sociedade anônima Revista do SupremoTribunal propôs a presente ação de perdas e danos, alegando na inicial e no cursoda causa: a) que contratara com o Supremo Tribunal, representado pelo seuministro presidente, aos 2 de março de 1921 e 28 de setembro de 1922, a publicação

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Memória Jurisprudencial

da jurisprudência e demais atos do expediente do mesmo Tribunal, e bem assim oapanhamento taquigráfico dos debates, mediante certa remuneração estabelecida,favores e franquias; b) que ambos esses contratos foram aprovados, para todos osefeitos, pelo Congresso Nacional, ex vi dos arts. 14 e 13 das Leis 4.555, de 10 deagosto de 1922, e 4.632, de 6 de janeiro de 1923; c) que, para dar execução aoestipulado, aparelhou-se com maquinismos que importou, instalando-se no próprionacional, cedido pelo Governo para sede da mesma Revista, na Ponta doCalabouço, onde tinha as suas oficinas, escritórios, etc. d) que estava dandocumprimento aos contratos quando surgiu forte oposição parlamentar, daíresultando a Lei 4.981, de 18 de dezembro de 1925, que, desconhecendo a validadedos mesmos contratos, determinou a imediata incorporação à Impressa Nacional“dos bens da propriedade da União constantes da relação protocolada sob n. 3.719e entregue no Ministério do Interior e Justiça, com o termo de revisão de 7 de junhode 1925”, além de outras determinações dela constantes; e) que essa lei feriuretroativamente o direito adquirido da apelante, oriundo de atos jurídicos perfeitos,que eram os contratos celebrados e aprovados pelo Poder Legislativo, em contrárioao mandamento constitucional; f) que, na execução dessa lei, o Poder Executivoexorbitou, ocupando manu militari o edifício e apossando-se de tudo o que nele secontinha, não só dos bens constantes daquela relação como de todos os utensíliosencontrados, inclusive das máquinas das primitivas oficinas da Revista e outroshaveres sociais encontrados a maior.

Esses, em breve resumo, os fatos e alegações da apelante, que, nos seusarticulados e razões, desenvolve a matéria nos seus diferentes aspectos de fato ede direito.

Conclui pedindo: “1º perdas e danos, em virtude da decretação ilegal darescisão dos contratos de 2 de março de 1921 e 28 de setembro de 1922, perdase danos que abranjam não só o que efetivamente perdeu, como o que, realmente,deixou de lucrar (art. 1.059 do Código Civil); 2º, o equivalente, em dinheiro, dovalor dos bens dela A. (art. 1.541 e 1.543 do Código Civil), que a Ré confiscou,constantes da relação n. 3.719; 3º o equivalente, em dinheiro, do valor dos bensda mesma Autora, excedentes da relação n. 3.719; 4º os honorários de advogado,na presente ação, na proporção de 20% do que se liquidar na execução” com osjuros da mora desde a citação inicial, etc.

Defendeu-se a União como se vê das desenvolvidas razões do operosoprocurador regional que funcionou no feito.

Foi proferida a longa e fundamentada sentença a fl., julgando improcedentea ação, sentença que passo a ler (fls. 643 e segs. do vol. 3º).

Apelou a Autora. À fl. 1075 (vol. 3º), o Exmo. Sr. Procurador-Geral daRepública exarou o parecer seguinte:

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Ministro Castro Nunes

É excusado engrossar os atos com mais razões.

A sentença apelada é uma das mais brilhantes que têm surgido no foro dacapital da República, como o acentua o Dr. Procurador Regional, no início de suasdesenvolvidas e seguras razões de fls. 1.038-1.068, a que nos reportamos, eapreciou a questão, minuciosamente, em seus múltiplos aspectos.

Estamos de acordo com a solução dada a todos os problemas jurídicos porela resolvidos e, em que pese ao brilhante esforço da apelante, não há razãoponderável para discordar-se dos fundamentos da sentença.

O lamentável caso da Revista do Supremo Tribunal é um triste episódiosobre o qual todos os eminentes membros da egrégia Suprema instância têm juízoformado.

Nesta ação se pretende transmudar os termos conhecidos da questão, demodo que a empresa causadora de um dos maiores escândalos administrativos jásurgidos no país, se arvora em vítima indefesa da opinião pública, mártir do dever,inocente e desambiciosa paladina do direito, defensora do Poder Judiciário!

A Revista do Supremo Tribunal enfrentou impavidamente o desaplausounânime da Nação e ainda agora enfrenta a própria justiça brasileira, querendopassar como sua defensora, ela que envolveu em suas malhas respeitáveis e dignasfiguras de magistrados, os quais, julgando-a com a boa fé própria dos homensdignos, não perceberam manobras que afinal apontaram aos olhos do país, comoinexpertas e ingênuas vítimas de negocistas, homens de alta dignidade e honradez.

Agora, a Revista do Supremo Tribunal vem a juízo, e, perante o egrégioSupremo Tribunal Federal, para exclamar:

Agora, restaurada na situação moral de que sempre gozou, a Supli-cante, exibindo as provas fornecidas pela própria confiscadora de seusbens e de seus livros comerciais, pode, orgulhosa, bradar-vos: Senhor!Salvai a dignidade do Poder Judiciário, restabelecendo-lhe a autonomia e aindependência, que pretenderam encarcerar no Palácio do Calabouço!

Senhor! Restaurai o império do Direito!

Senhor! Pro jure contra legem!

Senhor! Justitia quae sera tamen!

E a Justiça será feita. No dia em que as vítimas dos desvarios doPoder Legislativo não encontrarem amparo no Poder Judiciário, o nossopaís estará irremediavelmente perdido.

Justiça, Senhor!

Ora, veja-se!

Nesse tom não pode ser atendida, como não o pode igualmente com asrazões de ordem jurídica com que se apresenta a Revista, pois, sob esse aspecto,a sentença exaustivamente demonstrou a improcedência de suas pretensões.

Examinou todas as questões de fato, apurou todas as alegações e encarouas questões jurídicas com percuciência e segurança, deixando a controvérsiaresolvida de maneira extrame de dúvidas.

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Memória Jurisprudencial

Resta-nos, pois, esperar que o egrégio Supremo Tribunal Federal confirmeessa sentença por seus jurídicos fundamentos.

Distrito Federal, 24 de julho de 1942 — Gabriel de Rezende Passos,Procurador-Geral da República.

Sejam presentes os autos ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

VOTO (Antecipação)

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, antes de ler o meuvoto escrito, em que abordo a questão nos seus diferentes aspectos — diferentese complexos aspectos —, preciso dizer algumas palavras acerca da questão novalevantada, ainda há pouco, pelo Sr. Dr. Procurador-Geral da República. S. Exa.,com o brilho e a proficiência de sempre, entende que o Supremo Tribunal já julgouessa questão; e reporta-se aos acórdãos proferidos e à discussão havida porocasião do julgamento de uma ou duas ações possessórias, que se seguiram aoato do Congresso de 1925.

Creio, pela exposição de S. Exa., que não se verifica, no caso, a coisajulgada. E estou certo de que o nobre e operoso procurador regional da Repúblicanão se teria descuidado de propor a exceção de coisa julgada se, realmente, decoisa julgada se tratasse. De fato, da leitura feita pelo honrado Sr. Dr.Procurador-Geral da República, dos votos proferidos por ocasião daquelesjulgamentos, o que se vê é que estava em causa uma ação possessória, uma açãode reintegração de posse intentada, ou mandado de reintegração de posse tentadopela Revista do Supremo Tribunal e indeferido pelo juiz da primeira instância,em decisão confirmada nesta instância suprema.

Ora, nós sabemos que as questões de posse se decidem fora do domínio;sabemos que é possível decidir da posse sem decidir do direito. E, no caso, o queo Supremo Tribunal fez foi negar a reintegração pedida, embora, nosfundamentos dos votos proferidos, se tenham feito referências, que são razões dedecidir, acerca da legalidade do contrato e da legitimidade da rescisão por ato doCongresso. Creio, mesmo, que, nesses votos, se terá abordado a questão doincabimento do interdito para a proteção de direitos pessoais decorrentes decontrato. De modo que todas essas questões, esses aspectos suscitados eexaminados por ocasião do julgamento, foram razões de decidir, sem dúvidamuito valiosas, muito interessantes, e que poderão valer como argumentos nasolução do caso presente; nunca, porém, para o efeito de se dizer que ficaprecludida a competência do Supremo Tribunal, para, agora, na ação própria, queé a ação de perdas e danos, examinar a constitucionalidade desse contrato,examinar a legitimidade da rescisão pelo Congresso e tirar, daí, as conseqüênciaspedidas, conseqüências reparatórias dessa rescisão, efeitos dessa mesmarescisão ou desse contrato, e efeitos que podem ser independentes da validade docontrato e da argüida ilegitimidade da rescisão por ato do Congresso.

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Ministro Castro Nunes

Assim, a questão posta nesses termos é uma questão puramente de direito,diversa da outra, em que, apenas, se apurou, pelo exame da situação criada, peloexame do contrato em si, pelo exame do ato rescisório, se era cabível ou não ointerdito possessório requerido pela Revista, e se esse interdito seria de admitirou conceder para o efeito de se julgar, desde logo, da legitimidade do contrato ouda rescisão por ato do Congresso.

São questões, portanto, a latere; são razões de decidir que não configuram ares iudicata, em termos de precludir uma segunda decisão ou um pronunciamentoque, só agora, poderá ser proferido, no plano reparatório em que está posto o caso.

Ditas essas palavras, em resposta à argumentação exaustiva e brilhantedo procurador-geral da República, passo a ler o meu voto.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Os tribunais, da mesma forma queas casas legislativas, quando organizam suas secretarias, nomeiam ou licenciamseus funcionários, etc., agem como entidades administrativas, com os meiospróprios e adequados que estão naturalmente pressupostos.

Se contratam, é forçoso admitir que o façam como o fazem asadministrações públicas, mediante termo em livro para esse fim destinado.

Tais atribuições administrativas são acessórias ou complementares; não seconfundem com a atribuição específica do Poder Judiciário, do mesmo modo que,contratando a execução de obras em uma casa do Parlamento, ou fiscalizando-as,não estão as Câmaras exercendo uma função legislativa.

No poder de organizar a Secretaria, compreende-se o de instituir os órgãostidos por necessários ou adequados ao desempenho das funções auxiliares doParlamento ou do Tribunal. Se isso é exato, em se tratando de empregos oucargos ou na formação dos quadros do pessoal que devam existir em cadatribunal ou casa legislativa, não repugna admitir que, por igual razão, possam criarou propor a criação de um serviço especial de publicidade, oficializando umarevista ou organizando um serviço que desempenhe, de acordo com as vistas doTribunal, a função de trazer em dia a publicação da jurisprudência.

Portanto, no poder de organizar sua Secretaria e seus serviços auxiliares,há de se incluir a possibilidade, admitida em princípio, de providenciar sobre adivulgação e a sistematização da jurisprudência pelos meios adequados, um dosquais pode ser o contrato.

Estou enunciando essas teses, porque elas surgiram na companha parla-mentar e, ainda agora, nos autos, voltaram à tona da discussão.

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Memória Jurisprudencial

Mas um limite se antepunha ao exercício dessa prerrogativa: era odecorrente da atribuição privativa do Congresso para consentir na despesa que,da criação de novos empregos ou dos contratos celebrados, pudesse resultar.

Relativamente à criação de empregos ou cargos, não se discutia quepudesse fazê-lo o Supremo Tribunal. Mas a fixação dos vencimentos respectivosseria da alçada do Legislativo.

Havia quem entendesse que o Supremo Tribunal, organizando suaSecretaria, pudesse não só criar empregos como estipular os respectivosvencimentos, competindo ao Congresso somente votar as dotações necessáriassem os alterar.

O assunto foi debatido no Senado, em 1908, opinando nesse sentido LauroMuller e João Luiz Alves, segundo informa Levi Carneiro, aplaudindo a prerroga-tiva judicial. (Do Judiciário Federal, 1916, p. 32.)

Mas já era forte, a esse tempo, a reação. A Reforma de 26 cortou a dúvida,reservando ao Congresso a última palavra no tocante à fixação dos vencimentosdos funcionários das casas legislativas e dos tribunais.

A razão, conforme já ficou dito, é que o exercício de tal atribuição, semdúvida inerente à autonomia que se teve em mira resguardar, não envolve a decriar encargos para o Tesouro, atribuição privativa do Poder Legislativo.

Se assim era em relação aos vencimentos dos funcionários, por melhorrazão se teria de entender que, criando, mediante contrato, um serviço novo, asdotações correspondentes teriam de depender do Congresso, cujo assentimentoequivaleria praticamente à aprovação do contrato.

Foi sob essa forma, isto é, aprovando o contrato firmado pelo Presidentedo Supremo Tribunal, que o Congresso assentiu na despesa, por sinal majorando,inexplicavelmente, os favores concedidos, os encargos do Tesouro.

Mas, se era lícito ao Supremo Tribunal providenciar, mediante contratocom uma revista que oficializasse, sobre a publicação do seu expediente, ejurisprudência, poderia tal atribuição ser exercida isoladamente — sem a suaaudiência ou ratificação — pelo seu presidente?

Atribuição constitucional era dada, nos termos do art. 58 do texto entãovigente, ao Tribunal. A este competiria autorizar o seu egrégio presidente de entãoa contratar a publicação da jurisprudência na revista para esse fim oficializado.

Tal, porém, não se deu; nem mesmo posteriormente. Em moção assinadapor todos os ministros, em 1925, ficou bem claro que o Tribunal, como corporação,não fora ouvido nem consultado. E as manifestações, então como depois, produzi-das no julgamento de um interdito recuperatório tentado pela Revista contra a exe-cução da Lei 4.981, excluíram qualquer solidariedade com o ato do presidente.

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Ministro Castro Nunes

Os contratos padeciam assim de um vício de origem. Não eram do Tribunal,senão do seu venerando presidente. Se era do Tribunal, consoante o textoconstitucional, a competência para organizar sua Secretaria, só ele mesmo poderiaexercê-la, estipulando previamente as condições ou, pelo menos, dando-lhe a suaaprovação como corporação.

O presidente, como órgão do Tribunal, tem os poderes que lhe confere oRegimento e, fora daí, os que o Tribunal, por deliberação especial, como seriamister, lhe conferir.

De modo que o Congresso, ao consentir nas despesas resultantes docontrato, aprovou não um contrato do Supremo Tribunal, ainda que, por erro, otenha dito; mas um contrato do seu presidente, sem competência constitucionalpara tanto.

Bem de ver, pois, que aprovou um ato contrário à Constituição, e, portanto,inoperante, ato que, nos termos da lei civil, seria, pelo menos, anulável, porincapacidade relativa do agente.

Ocorreu, entretanto, nulidade maior. A Lei 2.924, de 5 de janeiro de 1915,vigente ao tempo da celebração dos contratos e de sua aprovação, determinavaque seriam nulos de pleno direito os contratos celebrados com os poderespúblicos dos quais não constasse expressamente a verba ou o crédito pelo qualdevesse ocorrer a respectiva despesa.

O digno e operoso procurador da República, Dr. Plínio Travassos, levantouessa questão, demorando-se no seu exame e mostrando que os contratosfirmados pelo presidente do Supremo Tribunal padeceram desse vício ou omissãoirremediável.

Essa exigência ou determinação legal, cujo objetivo manifesto terá sido ode não admitir encargos para o Tesouro resultantes de contrato com os poderespúblicos sem prévio assentimento do Congresso na votação das dotaçõescorrespondentes, mostra que, contratando, nem mesmo o Supremo Tribunal,como corporação, poderia prescindir de tal autorização.

Dir-se-á que, aprovando o contrato, o Congresso sanou a nulidade,dispensando a formalidade por ele mesmo estabelecida como norma geral.

Seria um argumento especioso que, em todo o caso, merece exame maisdemorado.

Já ficou dito, no começo deste voto, que os tribunais, do mesmo modo queas câmaras legislativas, quando contratam ou nomeiam funcionários, ou osaposentam ou licenciam, etc., exercem atribuições administrativas que, noresguardo da autonomia dessas corporações, lhes ficaram reservadas. Nãojulgam nem legislam.

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Memória Jurisprudencial

O ato que aprova um contrato, ainda que sob a forma de decretolegislativo, é em substância um ato administrativo, lei só na aparência, lei formal,consoante a distinção conhecida na exposição de Direito Constitucional.(Lapradelle, Droit Const., p. 385.)

O Congresso age, pois, no desempenho de uma função que não lhe éprópria, função executiva ou de administração, sujeito às leis gerais que tenhaestabelecido e cuja observância se há de presumir na celebração dos contratosque alguma de suas Câmaras celebra ou que ele venha a aprovar.

Duguit, partindo da distinção entre leis materiais e leis formais, é incisivoquando diz: “Il importe de faire la distinction et d’affirmer que lorsque leparlement fait un acte administratif, il est lié comme tout administrateur porla loi, qu’il ne peut violer”. (Traité, IV, p. 410.)

É certo, que, entre nós, se admitiu que a Câmara e o Senado aposentassemos seus funcionários, sob forma de dispensa por tempo indeterminado, semobservância de lei geral sobre aposentadorias dos funcionários públicos.

Mas essa prática era censurável.

Epitácio Pessoa, quando presidente da República, votou certa proposiçãolegislativa que autorizava abertura de crédito para pagamento a um funcionáriodispensado do serviço, e não regularmente aposentado, considerando o ato daCâmara “como exorbitante de suas atribuições constitucionais”.

Acentuou ainda o grande brasileiro e insigne jurisconsulto: “Atribuiçãoque a Carta Constitucional confere a cada Câmara é simplesmente a atribuiçãoexecutiva de nomear os seus empregados, e não a função legislativa de criarpara esses empregados um regímen diverso daquele a que a lei geral sujeita osdemais funcionários federais”. (Apud Aurelino Leal, Teoria e Prática, vol.1º, p. 282.)

Alega-se, por parte da apelante, que o Congresso não tinha competênciapara rescindir contratos, rescisão que teria de ser ajuizada na Justiça Federal,com base nos preceitos constitucionais que aponta e em virtude dos quais a essaJustiça competiria conhecer de todas e quaisquer causas em que fosse parte aUnião, particularizadamente as oriundas de contratos celebrados com o GovernoFederal.

É essa, sem dúvida, a doutrina verdadeira.

Mas daí não se segue que, provocado posteriormente, a dizer sobre anulidade, esteja o Judiciário impedido de pronunciá-la ou, como se pretende,obrigado a validar o ato nulo de pleno direito, em represália a sua competênciadesconhecida.

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Ministro Castro Nunes

Importa dizer que a questão é devolvida ao Judiciário para estatuir sobre acontrovérsia, tanto podendo pronunciar a nulidade, pelos motivos próprios queadotar, sem adesão ao ato do Congresso, como chegar a conclusão diversa, queseria, no caso, restaurar o contrato e tirar daí as conseqüências reparatóriaspretendidas.

Desse modo entendeu o Supremo Tribunal em casos de funcionáriosdemitidos sem inquérito administrativo, atos argüidos de inoperantes por essaomissão.

Entendeu-se que, ajuizada a demanda, não estava a União impedida defazer a prova da falta imputada ao funcionário e que, o fazendo, nulo não seria oato de exoneração. (Revista do Supremo Tribunal, v. 52, 335; 53, 117.)

Outra alegação da apelante, sufragada, aliás, como tantas outras peloseméritos jurisconsultos a quem ouviu, é a de que, àquele tempo, o Congresso nãopodia prescrever leis retroativas, desconhecendo o direito adquirido.

É certo que não poderia, como não podia, rescindir contrato,impossibilidade que abrange aquela. Mas essa argüição se devolve, com a outra,ao conhecimento do Judiciário, dependendo a sua solução da existência, ou não,de direito adquirido. E já vimos que o contrato era nulo de pleno direito, não era,portanto, um ato jurídico perfeito, limite que, nos termos da lei civil, seria, sóassim, um óbice à ação do Congresso,

Nulo de pleno direito, o contrato era inoperante para produzir efeitosválidos. Mas o próprio Congresso, rescindindo-o, admitiu, de certo modo, taisefeitos, como veremos a seguir.

Vejamos como estatuiu a Lei 4.891, de 18 de dezembro de 1925: “O PoderExecutivo — dispôs no art. 1º — incorporará imediatamente à Imprensa Nacionalos bens de propriedade da União, constantes da relação protocolada sob n. 3.719,e entregue ao Ministério da Justiça com o termo da revisão de 7 de julho de 1925,e que se encontram em poder da sociedade anônima Revista do SupremoTribunal, bem como ocupará o edifício do antigo Arsenal de Guerra, sito à PraçaMarechal Ancora, nesta Capital, podendo dispor desses bens, no todo ou emparte, mediante concorrência pública, nas bases que julgar conveniente”.

Foram esses os bens mandados incorporar desde logo à Imprensa Nacional,bens já declarados pela própria contratante que eram da União em plenapropriedade, conforme consta do termo aditivo por ela assinado e da relação aque se refere o dispositivo transcrito.

Mas o Congresso não ignorava que, além desses haveres, outrosexistissem ou pudessem existir em poder da contratante e possivelmenteadquiridos com dinheiros recebidos do Tesouro.

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Memória Jurisprudencial

E, por isso mesmo, dispôs a lei no art. 4º: “Mandará o Governo também porfuncionários dos seus ministérios verificar se houve desvio de material adquirido,levantando uma estatística, com a relação de todos os objetos importados pelaRevista com isenção de impostos aduaneiros e procedendo, no caso afirmativo,como for de direito”.

E no art. 5º: “Ficam aprovados os atos do Poder Executivo relativos apagamentos feitos à Revista do Supremo Tribunal, devendo, porém, o Governoabrir inquérito para apurar o emprego dessas importâncias que ao mesmo serãorestituídas ou em espécie ou em material”.

Vê-se, portanto, que a Lei 4.981, declarando rescindidos os contratos, nãosuprimiu todos os efeitos jurídicos por eles produzidos. Declarou aprovados ospagamentos feitos à Revista no período da sua execução, pagamentos com osquais teria a Revista adquirido maquinismos e material para a montagem dassuas oficinas e escritórios. O que fez desde logo foi mandar incorporar à ImprensaNacional o maquinário e o material já relacionados como pertencentes à União.

Mas, quanto aos demais haveres sociais, não determinou desde logo aincorporação, uma vez que a sua sorte teria de depender de outrasprovidências determinadas na mesma lei. Assim é que se estipulara, no art. 2º,que o Tesouro assumiria a responsabilidade do passivo da Revista, provenientede aquisição de material e de execução de obras no antigo edifício do Arsenalde Guerra, pagamentos que, realizados pelo Tesouro, teriam de correr porconta dos haveres sociais não relacionados, porque os relacionadosanteriormente já eram propriedades da União. O contrário seria admitir que oTesouro pagasse dívidas da empresa, ficando esta exonerada daresponsabilidade de o reembolsar. E existem nos autos referências apagamentos realizados pelo Tesouro a fornecedores estrangeiros e a dívidas,ainda não solvidas, de credores nacionais.

De modo que havia que arrolar todos os bens, os da União e os da Revista,encontrados portas adentro, como medida acautelatória dos interesses do Erário,até que se procedesse à apuração das dívidas e das fraudes admitidas eimputadas à administração da empresa no tocante ao uso dos favores aduaneirose ao desvio de material importado para outros fins.

Temos, pois, que os bens não constantes da relação n. 3.719 teriam de sertambém arrolados e guardados pela União até que se concluíssem as sindicânciasdeterminadas na lei. Desses bens teriam de sair o que a União despendesse parasaldar o passivo da Revista e o que ao Tesouro devesse voltar comocriminosamente desviado.

Ora, essas sindicâncias, segundo consta dos autos, sem contestação,foram realizadas e nada se apurou.

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Ministro Castro Nunes

O caso, após a Revolução de 30, foi submetido à Comissão deCorreição Administrativa, que opinou pela entrega à Revista do materialencontrado a maior.

São decorridos quase 18 anos, tempo em demasia para a apuração dequalquer fraude contra o Tesouro na importação do material e no seu emprego ouaplicação.

De modo que os haveres encontrados a maior, excedentes da relaçãoprotocolada sob n. 3.719, devem ser restituídos à apelante, bens entre os quais seencontram as oficinas primitivas, não adquiridas como dinheiro auferido naexecução dos contratos, haveres de terceiros e coleções da Revista, nãoarroladas, mas transportadas para a Imprensa Nacional e vendidas a peso,segundo depoimentos constantes dos autos.

Esses bens eram da apelante; e a própria Lei 4.981 deixa entreverclaramente que não eram da União. Devem ser apurados e avaliados, tomando-sepor base os preços de aquisição pela Revista, para ser esta indenizada doequivalente, deduzidos os pagamentos realizados pelo Tesouro e os que puderemainda ser reclamados e forem juridicamente fundados.

É sabido que o ato nulo de pleno direito não pode produzir efeitos válidos.Mas os efeitos no caso não são do ato nulo, senão do ato do Congresso que,rescindindo o contrato, admitiu que ele pudesse produzir, quanto aos outros bens,encontrados a maior, efeitos que teriam de depender de sindicâncias jamaisrealizadas com resultados negativos.

Quanto aos juros da mora, não são devidos. Sempre se admitiu certotemperamento na condenação da União a pagar juros da mora por lesãodecorrente de atos administrativos, presumivelmente praticados no interessepúblico. Há inúmeros acórdãos nesse sentido que se encontram apontados porKelly (3º Supl., 922 e 924; 4º Supl., 972).

Por melhor razão, em se tratando de ato do Congresso, não pode serhavido como ilícito, quer para o efeito dos juros moratórios, quer para os doshonorários do advogado do autor, que também indefiro.

Pelo exposto, dou provimento em parte à apelação para mandar indenizara apelante do valor dos bens, utensílios e materiais excedentes da relaçãoprotocolada sob n. 3.719, tomando-se por base o preço pelo qual foramadquiridos ou o valor real dos mesmos na data em que foram arrolados, feitas asdeduções indicadas e outras que venham a ser apuradas na execução.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: deram provimento, em parte,contra o voto do Ministro Barros Barreto. Impedido o Ministro Annibal Freire.

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Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CÍVEL 7.881 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira: A autora apelante, por si e em nome desua filha Zilma, propôs contra a União Federal uma ação ordinária para haverdela o pagamento de todos os prejuízos resultantes da morte de seu marido, JoséRamos da Silva, inclusive honorários de advogado, juros da mora e custas doprocesso. Isso porque essa morte ocorreu a 1º de julho de 1939, quando viajavaele no trem da Estrada de Ferro Rio do Ouro, apanhado esse trem pelaretaguarda, por outro, de carga da mesma estrada, administrada pela Estrada deFerro Central do Brasil.

A União contestou a ação (fl. 28), negando a culpa da ré e atribuindo odesastre a caso fortuito ou força maior, impugnando, entretanto, o quantum daindenização pleiteada e principalmente a inclusão dos honorários do advogado,em desacordo com a jurisprudência deste Tribunal, não se devendo aplicar oCódigo de Processo Civil, porque não vigente à época do desastre (1º de marçode 1940 e 1º de julho de 1939).

O curador de ausentes, ouvido a fl. 43, sustenta o direito da autora à inde-nização total, nos termos do art. 17 do Decreto n. 2.681, de 7 de dezembro de1912, combinado com o art. 22 do mesmo decreto.

Na audiência do julgamento, o juiz proferiu a sentença de fls. 50 v. a 51,nestes termos:

A autora apelou dessa decisão para este Tribunal, arrazoando o recurso afl. 54. As razões do procurador regional estão a fl. 59, com as quais concordounesta instância o Dr. Procurador-Geral da República, nos termos de fl. 64 v.

É o relatório, passando os autos à revisão.

Rio de Janeiro, 27 de abril de 1942 — Goulart de Oliveira.

VOTO

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira (Relator): O recurso se limita à exclusãodos honorários do advogado do cômputo da indenização, que a sentença mandaliquidar na execução.

A sentença apelada considerou o artigo 64 do Código do Processo Civilpreceito de direito substantivo, não podendo assim regular a relação de direitocriada com o evento anterior à sua vigência. Não há, como pondera o Dr.Procurador no seu arrazoado de fls., fazer valer a regra do artigo 1.047 dasDisposições Transitórias desse Código, porque só condizente com a matériameramente processual, não alcançando o direito intrínseco, atribuído pelo contextolegal, embora consubstanciado em monumento que traz o rótulo de Processo.

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Ministro Castro Nunes

Os honorários de advogado são repelidos pela jurisprudência desteTribunal e os julgados são reconhecidos.

Não me convencem, entretanto, os fundamentos dessa convicçãopredominante.

Argumenta-se que o contrato de honorários, sendo uma convenção entrepartes, não pode obrigar à União que nele não interveio.

Res inter alios acta. Sustentação do Ministro Bento de Faria, quandoprocurador-geral da República, Arquivo Judiciário, v. 33, p. 84.

Preciso é considerar que é lícito ao Tribunal, a seu criterioso arbítrio,reduzir os honorários exorbitantes dos advogados. Facultada essa redução esabido que a própria União Federal compele, por suas leis, as partes a sópleitearem por intermédio de patronos que especializa, antes no art. 16 do Códigode Processo Civil e Comercial e hoje no art. 106 do Código de ProcessoNacional, não haverá escusar-se de responder por esses honorários, uma vezque, assim, ex propria utilitate, reduziria consideravelmente a indenização que alei, a doutrina e a jurisprudência querem seja a mais completa.

Acresce que o mandato é, pela sanção legal pátria, remunerado, sempreque se trate de ofício ou profissão lucrativa (art. 1.200, parágrafo único, do CódigoCivil), de cuja classificação se não pode afastar a advocacia. E a locação deserviços é igualmente remunerada.

Sempre assim julguei na justiça local, na qual essa jurisprudência éremansosa, e ainda agora o faço, acompanhando a lição dos Ministros Soriano deSouza, Pedro dos Santos, Costa Manso, Linhares e Laudo de Camargo. Douprovimento ao recurso para mandar incluir na indenização a liquidar oshonorários do advogado.

EMBARGOS NA APELAÇÃO CÍVEL 7.881 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Em ação proposta contra a União pela viúvae pelos filhos de certo passageiro vitimado em desastre ocorrido com um trem daE. P. Rio do Ouro, o juiz da primeira instância, julgando a ação procedente paramandar pagar o que se apurasse na execução, excluiu da condenação oshonorários do advogado, por isso que inaplicável o art. 64 do Código de Processo

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Memória Jurisprudencial

Civil à hipótese dos autos, uma vez que o fato ocorreu em 1º de julho de 1939,antes, portanto, de entrar em vigor aquele Código, cujo art. 1.047, determinando asua aplicação imediata aos processos, não se refere às disposições substantivas,entre as quais a da inclusão dos ditos honorários.

Além do recurso de ofício, houve apelação da autora, impugnando asentença na parte em que lhe foi contrária.

A douta Segunda Turma, pelo voto da maioria, deu provimento à apelaçãopara mandar incluir os honorários reclamados.

O voto do relator, Ministro Goulart de Oliveira (fl. 67), foi o seguinte (ler):

Votaram a seguir os demais ministros nos seguintes termos:

Deu-se o provimento contra os votos dos Ministros Bento de Faria eWaldemar Falcão.

A União opôs ao acórdão os seguintes embargos (ler):

Admitidos, foram impugnados (ler):

Com este relatório, passo os autos ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Antes do atual Código de Processo,a jurisprudência do Supremo Tribunal estava assentada no sentido de não incluirna condenação os honorários do advogado do autor; e nesse mesmo sentido proferisentença, longamente fundamentada, examinando a controvérsia e chegando àmesma conclusão.

De modo que o meu voto seria ainda hoje para mandar excluir, se o Códigode Processo não dispusesse expressamente, como dispõe, no art. 64 e, sobretudo,no art. 912, mais pertinentemente aplicável à hipótese dos autos, em que se tratade indenização por homicídio culposo, no sentido da inclusão reclamada.

Eu aplico ao caso esses dispositivos, com base na disposição transitória doart. 1.047, conforme já tenho votado, divergindo, data venia, de votosmanifestados em contrário, pelo argumento, desenvolvido, com o costumadobrilho, pelo Ministro Orozimbo Nonato, de que a aplicação retroativa permitidapor aquele preceito não abrange senão as disposições propriamente processuais,excluídas as de índole civil ou substantiva.

No voto que proferi, como vogal, no julgamento dos embargos opostos aoacórdão ao Recurso Extraordinário n. 3.458, dei sucintamente as razões do meuentendimento (Revista Forense, vol. 91, p. 115). Não o fiz, porém, com odesenvolvimento que a matéria está exigindo, pela sua relevância. Sou, assim,forçado a voltar ao assunto para melhor fixar o meu pensamento.

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Ministro Castro Nunes

A meu ver a distinção conhecida entre preceitos de direito substantivo e dedireito adjetivo não é decisiva.

Tinha importância maior ao tempo da Constituição de 91, quando acompetência para legislar sobre processo não era da União. A noção entravaentão para dar forma doutrinária à discriminação das competências separadas. Epassou para a exposição do nosso direito constitucional, pressuposta adiversidade das competências.

Como sabe o Tribunal, a noção de Bentham, exposta por João Mendes nasua memorável polêmica com Pedro Lessa, assentava no caráter dedependência de certas leis em relação a outras, que seriam as principais, leisaquelas existentes em função destas, e tais são as leis de processo em relação àsleis de fundo, chamadas adjetivas pelo jurisconsulto inglês, por assemelhaçãocom os adjetivos, que só existem na linguagem em função dos substantivos.

É uma distinção engenhosa, que corresponde à diferenciação entre leis defundo e leis de forma, já ensinada na Idade Média por Bartôlo e que ainda hojeserve com proveito à exposição doutrinária do direito.

Mas, sem negar a utilidade da distinção e do uso das denominações correntesque servem à linguagem do Direito, não me parece, todavia, que lhe se deva darimportância maior para tratar diferentemente as normas de um mesmo Código, peloargumento de que umas são de direito substantivo e outras de direito adjetivo, quandoemanadas do mesmo órgão legislativo competente para umas e outras.

É de presumir que, inserindo em dada lei disposições de índole diversa, olegislador tenha julgado necessária essa inclusão a bem da sistematização damatéria.

Já se entendia, entre nós, ao tempo das competências diferenciadas, que,legislando sobre certas matérias, como letra de câmbio, hipoteca, falência, aUnião substantivava (o termo é de Paulo de Lacerda) disposições de caráterprocessual que tinha por indispensáveis à eficácia do direito material (Manualdo Código Civil, Intr. I, pp. 16 e 33).

Do mesmo modo, se o legislador do processo, que é hoje o mesmolegislador com autoridade constitucional para modificar o Código Civil, insereuma disposição que altera ou modifica esse Código, é que julgou necessário àsistemática da preceituação adjetiva tal acréscimo ou modificação.

O que se pode dizer é que adjetivou uma disposição substantiva.

A idéia de sistema é, como diz Korkounov, inerente a toda codificação.Todas as disposições estão entre si coordenadas, formando um todo.

As codificações, observa François Geny, abrem espaço a uma vastaelaboração lógica, tendo por base a harmonia necessária das suas disposições,

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Memória Jurisprudencial

ligadas por uma dependência não só material como cronológica, e formando assuas diferentes partes um mesmo todo (Korkounov, Teoria Geral, pp. 475, 559;Geny, Meth., vol. 1º, p. 285).

Se o legislador inseriu na preceituação processual normas de direitomaterial, não o fez por mero capricho, para invadir a esfera de outra disciplinajurídica, senão porque teve necessidade de modificar ou adequar as normas civispreexistentes.

Do mesmo modo que as normas preceituais existentes no Código Civilsão normas materiais com eficácia instrumental, as normas substantivas quese inserem no Código de Processo são normas instrumentais comeficácia material, para usar da terminologia de Cornelutti (Sist. DirittoProc., vol. 1º, p. 50).

Não será demais observar que entre nós foi precisamente em nome dessacorrelação entre normas substantivas e normas adjetivas que se vindicou acompetência da União para umas e outras. Se os dois Códigos houvessem sidoelaborados simultaneamente, surgiriam ajustados.

Mas, mediando entre um e outro um quarto de século, era inevitável que olegislador do processo tivesse necessidade de, aqui e ali, modificar apreceituação substantiva nos pontos em que com ela tangenciasse a formaprocessual.

O mesmo ocorreu em França, ainda que muito menor o intervalo, pois queo Código de Processo seguiu-se ao Código Civil, mediando entre ambos menosde três anos. Pois nem assim se dispensou o legislador do processo de modificaro Código Civil, inserindo algumas normas que inovaram e algumas de caráterderrogatório (Aubry et Rau, Cours, vol. 1º, pp. 40 e segs.).

Creio poder dizer — e é precisamente no rumo dessa conclusão que venhoalinhando estas considerações — que a incursão do legislador do processo nocampo do direito civil ou no de outras disciplinas jurídicas, para modificar ouapenas desenvolver normas preexistentes, não se opera a rigor em terreno que sepossa dizer alheio ao seu âmbito de ação, mas em zonas limítrofes, convizinhas,pela necessidade de adequar a disposição antiga à preceituação nova, formandotodas o conjunto harmônico, que é a codificação.

Não me parece possível desintegrar esse todo, para tratar diferentementealgumas disposições, pela só consideração de que nem todas são de índolerigorosamente processual. Vejamos alguns exemplos.

Dispondo sobre a capacidade processual das partes, o Código assegura aqualquer dos cônjuges, art. 83, o direito de obter suprimento judicial para litigar.Vale dizer que permite à mulher estar em juízo, sem autorização do marido, e

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Ministro Castro Nunes

mediante suprimento judicial, em hipótese não contemplada na remissão feita aoart. 242 pelo art. 245 do Código Civil.

Dispõe sem dúvida sobre matéria regulada no Código Civil, mas paraampliar a capacidade processual da mulher casada, disposição de índolesubstantiva intercorrente na preceituação processual. Outro exemplo: o do art.166, § 2º, que admite como interrompida a prescrição na data do despacho queordenar a citação, do que resulta que, dispondo sobre a extinção ou decadênciado direito à ação, modificou, no rumo, aliás, de certa jurisprudência, a letra doCódigo Civil, que faz depender da citação a interrupção.

Ainda outro: tratando do Juízo Arbitral, o art. 1.031 não permite que oestrangeiro possa ser árbitro, adiantando-se ao Código Civil que, emboraadmitindo a possibilidade de tal proibição quando contemplada em lei,consagrava o velho princípio, fundado na natureza transacional da jurisdiçãoarbitral, em virtude do qual “pode ser árbitro quem quer que tenha a confiançadas partes”.

Do mesmo modo no tocante à ação renovatória da locação comercial.Desenvolvendo o pensamento da preceituação especial sobre a matéria, permiteao sublocatário ir a juízo para acionar o sublocador e o proprietário comolitisconsortes (art. 364), preceito que já temos aplicado a casos pendentes, nãoobstante a sua índole substantiva.

É certo que, ao tempo em que se legislava em cauda de orçamento, asdisposições sobre matérias alheias à estimação da receita e à fixação da despesaseparavam-se, sobrevivendo como disposições permanentes à própria lei em quese inseriam.

Mas essas disposições eram preceitos enquistados na lei de meios, merosenxertos, inteiramente estranhos à matéria da preceituação. Podiam serseparadas sem quebra da harmonia de conjunto ou da idéia de sistema quepreside às codificações.

Tal é o caso do novo Código Penal, que também trouxe algumasinovações, a que o professor Philadelpho Azevedo, hoje nosso eminente colega,consagrou um brilhante estudo sob o título “Reflexos do novo Código Penal sobreo direito civil” (Revista Forense, vol. 88, pp. 331 e segs.).

No caso em exame, em que se trata de indenização decorrente do atoilícito, tem aplicação mais direta o art. 912 do Código de Processo, subordinadoao título “Da liquidação da sentença”.

Como diz o Desembargador Amílcar de Castro, os arts. 911 e 912“contêm disposições híbridas, de direito processual e de direito civil, porque, alémde pretenderem dar forma prática e realização às normas de direito privado,

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Memória Jurisprudencial

contidos nos arts. 1.537, 1.538 e 1.539 do Código Civil, procuram interpretar ecompletar essas normas” (Comentários, vol. X, p. 120).

Regular a liquidação preparatória da execução é irrecusavelmente matériaprocessual; e foi aí que o legislador, dispondo naqueles artigos sobre a reparaçãoconseqüente ao ilícito, mandou incluir, além das custas, os honorários doadvogado, sem contrariar, aliás — diga-se de passagem —, nenhum preceito doCódigo Civil, omisso a respeito.

O art. 1.047 do Código de Processo deu a este aplicação imediata mesmosobre os processos pendentes: “Em vigor este Código, as suas disposiçõesaplicar-se-ão, desde logo, aos processos pendentes”.

Não diz que somente as disposições processuais. Não distingue;limitando-se a dizer que as suas disposições se aplicarão desde logo aos casospendentes, disposições que, sejam de índole civil ou atinentes à organizaçãojudiciária, hão de receber aplicação imediata, porque umas e outras integrantesda sua preceituação.

A essa regra admitiu o próprio Código algumas exceções, o que mostraque teria admitido a exclusão das matérias estranhas ao rito estritamenteprocessual, se no espírito da lei estivessem excetuadas também da sua forçaretrooperante as normas civis. Não o fez. As exceções são somente asexpressas, como o demonstrou com a habitual proficiência o ilustre Câmara Leal(Revista Forense, vol. 81, pp. 26 e segs.).

Acresce que a ação foi proposta em janeiro de 1941, já em vigor o novoCódigo de Processo. Nem mesmo se trata de processo pendente, isto é, anteriorao dito Código. Foi na vigência deste que a ação se iniciou, se processou e profe-rida foi a sentença condenatória. Havia que aplicá-lo, pois, por mais esse motivo.

Meu voto é, divergindo com pesar dos votos dos eminentes MinistrosGoulart de Oliveira e Orozimbo Nonato, no tocante à fundamentação de um e deoutro, para chegar, entretanto, por outros motivos, à mesma conclusão, isto é,mandar incluir os honorários do advogado da liquidante.

Rejeito os embargos.

VOTO (Explicação)

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, estava longe desupor, ao aflorar esta questão, que pudesse provocar debate tão interessante. Jáagora, dou-me parabéns de o ter feito, por haver dado lugar a mais uma explanaçãodo ilustre Sr. Ministro Orozimbo Nonato, brilhante, como sempre.

O problema é de grande interesse teórico; estamos de acordo na conclu-são. Eu não o suscitaria se não fosse a necessidade de mostrar que aceitava a

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Ministro Castro Nunes

conclusão, mas por outros fundamentos, que envolviam, como envolvem, a refu-tação da tese aceita pelo acórdão embargado. Mas não julgo necessário insistirno meu ponto de vista, que fundamentei como pude.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: desprezaram os embargos,contra o voto do Ministro Waldemar Falcão. Presidiu ao julgamento o MinistroJosé Linhares, Vice-Presidente, por se haver ausentado, com causa justificada, oMinistro Eduardo Espínola, Presidente. Não tomou parte no julgamento o MinistroBento de Faria, que se ausentou, por motivo justo.

APELAÇÃO CÍVEL 8.190 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, considerar-me-ia dispensadode fundamentar o meu voto, acompanhando a Turma, se não entendessenecessário dizer alguma coisa, em atenção ao voto divergente manifestado, como brilho habitual, pelo Sr. Ministro Philadelpho Azevedo.

A meu ver, a questão só comporta, nos termos em que foi posta e em queestá, a solução do voto de V. Exa.

Trata-se de tirar conseqüências de uma assemelhação decretada peloSupremo Tribunal. Não importa mais indagar se a lei federal, em que se fundoueste Tribunal, favorecia, comportava, autorizava ou não tal assemelhação. Desdeque o Supremo Tribunal se pronunciou e assentou que a assemelhação existia,com base na lei — temos caso julgado, que não podemos voltar a discutir.

Com base no caso julgado, considero que a assemelhação decretada épara todo o sempre. Uma vez decretada a assemelhação, o próprio fundamentodela está indicando que ela não pode encontrar limite em lei alguma. Conferidaque fosse, como foi, aos funcionários da Secretaria do Supremo Tribunalequiparação aos funcionários das Secretarias da Câmara e do Senado, é bem dever que a alteração sofrida, o acrescentamento feito, a majoração concedida dosfuncionários das duas Casas do Parlamento teria de se aplicar, necessariamente,aos funcionários do Supremo Tribunal, porque isso estava implícito naequiparação decretada, segundo o acórdão. Todos os acréscimos feitos teriam deser repetidos, na fixação dos vencimentos dos funcionários da Secretaria doSupremo Tribunal.

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Memória Jurisprudencial

De outro modo, data venia, estaria frustrada a execução do próprioacórdão. Estaria nas mãos do legislador não cumpri-lo. Ora, se o direitoadquirido, na vigência da atual Constituição, não prevalece para o legislador, quepode desconhecê-lo, há, entretanto, uma hipótese de direito adquirido que lhe éinacessível. É o direito adquirido oriundo de sentença. A coisa julgada tem porconteúdo direito adquirido, direito adquirido formal. E este é inacessível aolegislador, que não pode desconhecer seus efeitos. Isso está na Constituição, emvários pontos: naquele em que se declara que é crime de responsabilidade dopresidente da República atentar contra a execução de sentença; em outro, emque se admite até intervenção nos estados para compelir os governos locais acumprir sentenças federais.

Por conseguinte, desde logo se vê que há, pelo menos, uma hipótese, que éesta, de direito adquirido proveniente de sentença, em que não é mais possível aolegislador alterá-lo, para diminuir, reduzir, obstar, frustrar o efeito de decisão judicial.

Ora, no caso em apreço, verifica-se, pelo voto de V. Exa. e pelo do Sr.Ministro Revisor, que o Tribunal deu a equiparação sem qualquer limitação.

O Sr. Ministro Philadelpho Azevedo aludiu a limitação feita no voto doeminente relator da causa anterior, que foi o Sr. Ministro Octavio Kelly. Mas sãoconsiderações feitas na motivação do voto de S. Exa. O fato é que, na partedispositiva ou conclusiva do acórdão, não há qualquer limitação, que, aliás, seriacontraditória com os próprios termos e fundamentos da assemelhação concedida.

Essa assemelhação teria, portanto, de acompanhar os vencimentos dosfuncionários das duas Casas do Parlamento, na sua evolução, nas suasalterações. A própria Lei n. 284 de 1936, porém, ressalvou que os vencimentosdos funcionários das duas Casas do Congresso seriam regulados por leisespeciais. Assim, essas leis especiais, previstas na Lei n. 284, e que vieram, creio,em 1937, são as que regulam os vencimentos assemelhados dos funcionáriosdesta Secretaria. O que essas leis deram, deram com fundamento na própria Lein. 284, a qual, fundando-se na autonomia das duas Casas legislativas,reconheceu-lhes o direito de regular, diversamente, os vencimentos dosfuncionários de suas Secretarias.

Devo lembrar que, como juiz federal, também proferi sentença em termosidênticos, que foi confirmada em acórdão que é, por assim dizer, a matriz dessaação em hipótese semelhante.

No caso, como o Supremo Tribunal reconheceu que havia base legal paraa assemelhação, essa assemelhação, como disse, há de persistir, acompanhandoas alterações feitas nos vencimentos dos funcionários das duas Casaslegislativas.

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Ministro Castro Nunes

De outro modo, não haveria assemelhação; estaria frustrado, estariaburlado o acórdão do Supremo Tribunal; estaria ao alcance dos PoderesLegislativo e Executivo desconhecê-lo, desconhecendo os efeitos da decisãodeste Tribunal.

Meu voto é, pois, para dar provimento à apelação.

APELAÇÃO CÍVEL 8.311 — DF(Matéria constitucional)

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, trata-se de ação proposta porfuncionário da Caixa Econômica, exonerado, que pede reintegração. Apresentadaa questão na Primeira Turma, preliminarmente, proferi voto no sentido de que, emse tratando de questão alheia às operações realizadas pela Caixa Econômica, edesde que a nossa competência só se fundamenta por ser o Tesouro Nacionalfiador da Caixa Econômica, entendia que o caso deveria ir ao Tribunal Pleno,devendo por este ser dada solução final sobre a questão da nossa competência.

O Sr. Ministro Philadelpho Azevedo não conheceu do recurso, mas con-cordou em enviar os autos ao Tribunal Pleno. O Sr. Ministro Annibal Freire, comas restrições do seu voto de fl. 118, concordou com a remessa, o mesmo fazendoo Sr. Ministro Barros Barreto, atendendo ao aspecto especial da questão, e o Sr.Ministro Laudo de Camargo.

É o relatório.

ACRÉSCIMO AO RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, como deve estar lembrada aTurma, levantada, aqui, a questão da competência do Supremo Tribunal paraconhecer de causas de autarquias federais, inclusive da Caixa Econômica, foi amatéria levada ao Tribunal Pleno e, afinal, decidido que continua competente estaCorte, em hipóteses como esta dos presentes autos.

Volta, agora, o caso a julgamento.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Não é possível negar que a CaixaEconômica teve, para demitir o apelado, um motivo relevante.

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Memória Jurisprudencial

Não seria preciso que o fato fosse criminoso. Bastaria tratar-se de umprocedimento reprovável e comprometedor da conduta do funcionário, ainda quenas suas relações de ordem privada, tão certo é, como expõe Cino Vitta, que aconduta do homem pode refletir-se no funcionário, autorizando em certos casos aaplicação de prova disciplinar (Il Potere Disciplinare, p. 354).

É incontestável que o apelado só pagou o cheque, depois de quatro meses,quando, denunciado o fato à Caixa Econômica, esta o notificou para se defenderno inquérito administrativo mandado abrir.

Não é decisivo o argumento de não se tratar de um funcionário que lidassecom dinheiros da Caixa ou escriturasse os seus livros, porque o caráter técnicoda função cirurgião-dentista lhe não tira a condição de empregado de um esta-belecimento de crédito, obrigado, como os demais funcionários, à observância deidênticos deveres.

Seria possivelmente uma ponderação a ser levada em conta no conjuntodas circunstâncias, de par com a de se tratar de primeira falta, para abrandar apena no julgamento do caso pela própria Caixa.

Não, porém, para anulação do ato, uma vez que o fato, pela sua gravidade,não se apresenta inteiramente desajustado à penalidade máxima prevista noRegulamento; terá sido severa a punição, mas nem por isso excessiva,desproporcionada a ponto de autorizar a sua anulação pelo Judiciário.

Eu admiro, e ainda recentemente assim votei em certo julgamento peranteo Tribunal Pleno, que o Judiciário possa rever o ato administrativo, no seuconteúdo, no seu merecimento, contanto que não o faça por apreciação da meraconveniência ou oportunidade da medida. É a nossa regra legal, ainda vigente notocante ao contencioso da legalidade dos atos administrativos.

E assim entendo porque a nossa Lei 221, de 1894, adiantada para a suaépoca, sufragou a melhor doutrina, já então esboçada e mais tarde desenvolvidapelo Conselho de Estado, em França, no sentido de que, em não se tratando deato discricionário da administração, o exame da medida pode descer aos fatos,reexaminá-los e, quando, excluídos ou restituídos à sua exata apresentação,autorizar a anulação do ato por ausência da sua base legal ou causa jurídicainexistente.

Ora, a Lei 221 conferiu ao Judiciário poderes muito amplos na apreciaçãodos atos administrativos quando dispôs: “Consideram-se ilegais os atos oudecisões administrativas em razão da não-aplicação ou indevida aplicação dodireito vigente”, acrescentando: “A autoridade judiciária fundar-se-á em razõesjurídicas, abstendo-se de apreciar o merecimento dos atos administrativos sob oponto de vista de sua conveniência ou oportunidade”.

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Ministro Castro Nunes

Daí resulta que a apreciação de mérito interdita ao Judiciário é a que serelacione com a conveniência ou a oportunidade da medida, não omerecimento por outros aspectos que possam configurar uma aplicação falsa,viciosa ou errônea da lei ou do regulamento, hipóteses que se enquadram, de ummodo geral, na ilegalidade por “indevida aplicação do direito vigente”.

Não são, portanto, somente os aspectos formais do ato que autorizam oexame judicial. Essa limitação só existe em se tratando de ato discricionário, quenão poderá ser o de punição disciplinar do funcionário ou a sua destituição noscasos em que esta só se autoriza mediante inquérito administrativo.

Ainda aqui, legem habemus. É outro preceito da mesma lei: “A medidaadministrativa tomada em virtude de uma faculdade ou poder discricionáriosomente será havida por ilegal em razão da incompetência da autoridaderespectiva ou de excesso de poder” (Lei 221, art. 13, § 9º, a e b).

De modo que o conteúdo ou o merecimento do ato só escapa ao exame doJudiciário em se tratando de medidas de caráter discricionário, que só poderãoser anuladas se incompetente for a autoridade ou preterida houver sido algumaformalidade prescrita na lei, limites não discricionários, no dizer de Freund, doexercício dos poderes discricionários.

Mas, na afirmação dos fatos, deve o Judiciário conduzir-se com muitacircunspecção, particularmente no tocante à punição disciplinar dos funcionáriospúblicos, de modo a respeitar tanto quanto possível o critério adotado pelaAdministração na solução dos casos concretos. Seria necessário provar que aimputação fora falsa ou que ficara plenamente justificada a falta argüida ou,ainda, que o fato em si mesmo não pudesse configurar nenhuma falta funcional.

Ainda aqui a orientação liberal, mais prudente e moderada, do Conselho deEstado em França, cuja jurisprudência por meio dos expositores, é a grande fontede ensinamentos nessa matéria.

Assim é que, segundo Appleton — “Le Conseil d’Etat admet-ilaujourd’hui l’erreur de fait, dans certains cas, comme moyen d’annulation;mais il ne le fait qu’avec circusnpection, en veillant a ce que ce contrôle nenuise pas à l’independance de l’Administration active —”, acrescentando:“Pour remplir son ceuvre, le contrôle, exercé por elle (jurisdiction) surl’Administration doit être moderé, discret et limité; il faut que la jurisdictionse pose moins en ennemie de l’Administration active qu’en alliée, qui luisignale amicalement ses erreurs, l’aide a corriger ses imporfections (...)”(Appleton, Contentieux Administrative. p. 618).

Mas o apelado argúi, além da severidade da punição, também a invalidadedo procedimento administrativo, porque teria direito à vista afinal, e essa não lhefoi aberta, cerceando-se assim o seu direito de defesa.

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Memória Jurisprudencial

Realmente, o que consta dos autos é que, notificado para responder aoinquérito administrativo, o funcionário compareceu, prestou declarações e nãomais foi ouvido, encerrando-se a instrução e subindo o caso ao ConselhoAdministrativo, que o exonerou.

Objeta a Caixa Econômica que o apelado, nessas primeiras declarações, jáesgotara a sua defesa, que consistiu apenas na justificação ou na explicação queprocurou dar ao fato não contestado, desnecessário se tornando, pois, abrir-lhevista de um processo em que não houvera depoimentos de testemunhas, examepericial nem qualquer outro esforço de prova sobre a qual devesse falar o acusado.

Essa distinção em espécie, pretendida pela Caixa, seria atendível se o seuRegulamento não contivesse disposição expressa assegurando ao funcionário,em termos peremptórios, o direito de ser ouvido antes de encerrado o inquérito eencaminhado à autoridade superior. É o que dispõe o art. 38, parágrafo único, doDecreto 24.426, de 19 de junho de 1934: “(...) Só poderão (os funcionários) serexonerados depois de inquérito sumário administrativo, do qual deverão sempreter, afinal, vista para apresentação da defesa e, verificada por esse processo, aexistência de fato ou fatos que, a juízo do Conselho Administrativo, determinem anecessidade da exoneração”.

O mesmo critério da defesa afinal, isso é, de apurar primeiro o fato paradepois proporcionar ao acusado possibilidade de refutá-lo e defender-se à vistados elementos colhidos, foi o adotado pelo Estatuto dos Funcionários Civis daUnião, nos arts. 254 e 248, dos quais se vê que a defesa do acusado é a etapafinal, sem dúvida, porque só então poderá ser eficazmente produzida.

Themistocles Cavalcanti quereria que a defesa fosse prévia, de modo apossibilitar ao funcionário acompanhar o processo administrativo, produzindoprovas etc., e não afinal, após o parecer da comissão, nos dez dias assinados paraa defesa.

Mas reconhece que o Estatuto adotou solução diversa (Tratado deDireito Administrativo, 1942, vol. III, p. 479), como, por igual, o Regulamentodas Caixas Econômicas, que a ele se antecipou, visando evidentemente apurarprimeiro a falta para assegurar, a seguir, a defesa.

E foi esse preceito que se deixou de observar no caso, dando razão aoacusado quando diz que tinha o direito de se defender nos termos estipulados noRegulamento.

É sabido dos familiarizados com o direito administrativo que a forma éneste de observância mais rigorosa do que no direito processual comum. Dá-semesmo o contrário do que ocorre no direito comum; a forma é, em regra, dasubstância do ato — “Toutes les formalités sont presumées substantielles,aucune ne doit pouvoir être omise impunément” (Appleton, ibidem, p. 601).

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Ministro Castro Nunes

De modo que a preterição da forma prescrita na lei ou no regulamento,mesmo que se não demonstre prejuízo para a defesa, acarreta a invalidade doato. Aliás, no caso, a defesa que ainda pudesse produzir o acusado, mesmo semdestruir o fato, isto é, a emissão do cheque sem provisão de fundos e atergiversação que se lhe seguiu, e mais agravou a sua situação, poderia ao menosmodificar a feição moral da imputação e focalizar outros aspectos pessoais,como seriam os concorrentes a bons serviços prestados anteriormente, àcircunstância de se tratar de primeira falta, etc., alegações de defesa que nãotiveram oportunidade de ser produzidas.

A própria apelante admite a anulação do ato para o efeito de ser sanada airregularidade, ainda que sem reconhecer o cerceamento da defesa (fl. 68).

De fato, será essa a conseqüência do fundamento atendível, que é restritoao aspecto formal, nos termos expostos. Mas a anulação, ainda que para esseefeito, suprime necessariamente o ato, isto é, a demissão, do que resulta que omeu voto é para dar provimento em parte ao recurso de ofício e à apelação,anulando o ato, sem prejuízo, porém, da reinstauração do procedimentoadministrativo, com a defesa do acusado nos termos preceituados, e de novadeliberação do Conselho Administrativo.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: deram provimento, em parte,para anular o ato administrativo, contra os votos dos Ministros Revisor e BarrosBarreto, que deram provimento, para julgar improcedente a ação.

APELAÇÃO CÍVEL 8.606 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, não se trata de embargos,conforme V. Exa. anunciou, mas de remessa feita ao Tribunal Pleno, de um casosubmetido à Turma, em que a parte pediu viessem os autos ao Tribunal Pleno, porhaver, segundo alega, divergência de jurisprudência.

Vou ler o relatório que fiz, para melhor compreensão da hipótese:

O Dr. José Saboia Viriato de Medeiros, procurador-geral da Prefeitura doDistrito Federal, propôs ação para excluir da incidência do imposto de renda os

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Memória Jurisprudencial

seus vencimentos de titular daquele cargo, baseando-se na imunidade tributáriarecíproca que a Constituição assegura à União, aos estados e aos municípios notocante aos seus bens, rendas e serviços e sempre mantida por este SupremoTribunal em torrencial jurisprudência, mesmo depois do Decreto de 1931 que,expressamente, mandara cobrar aquele tributo federal dos servidores dos estadose dos municípios, inclusive do Distrito Federal, disposição inoperante porquehavida como incompatível com a cláusula constitucional, e assim se entendeu emvários julgados, até que, pelo Decreto-Lei 1.564, de 5 de outubro de 1939, foiconfirmado aquele texto legal para os efeitos do art. 96, parágrafo único, da atualConstituição, ficando sem efeito as decisões judiciais declaratórias dainconstitucionalidade.

O ilustre autor, desenvolvendo, com grande erudição, os vários aspectosda controvérsia, argumenta que o Decreto-Lei 1.564, de 1939, não pode teraplicação ao seu caso, uma vez que o imposto em questão é relativo ao exercício de1935, não tendo alcance retrooperante o dito decreto-lei, que equivale a umaemenda aditiva à Constituição, no ponto citado, para o efeito somente de seentender que subsiste a cláusula constitucional com a possibilidade assegurada àUnião de exigir dos servidores dos estados e municípios o imposto de renda.

O juiz, Dr. Cunha Vasconcelos, em bem elaborada sentença, reportando-seaos julgados mais recentes desta Primeira Turma, no sentido de tributabilidade,por aplicação retroativa do Decreto-Lei de 1939, e a apurando, à vista dospronunciamentos da douta Segunda Turma, em sentido oposto, votos que,todavia, formam maioria em contrário à pretensão ajuizada, julgou improcedente aação, isentando, porém, da multa fiscal o autor. E recorreu do ofício nessa parte.Não recorreu a Fazenda, apelando somente o autor.

Coube o feito ao Exmo. Sr. Ministro Bento de Faria, que mandou ouvir aProcuradoria-Geral, cujo parecer, reportando-se a outro, exarado em 1936, apropósito de um mandado de segurança entre outras partes, é o seguinte: (lê).

Tendo afirmado suspeição o ilustre relator, foi-me distribuído o recurso,suscitando eu a dúvida manifestada no meu despacho de fls., mantendo, porém, oegrégio presidente a nova distribuição.

Por petição que mandei juntar e se encontra à fl. 80, requereu-me o apelanteque, nos termos do art. 24, n. V, do Regimento, seja o caso, depois de submetido aesta Turma, levado a Plenário, uma vez que, conhecidos os votos, discrepam asdecisões das duas Turmas.

É o relatório a ser presente com os autos ao Exmo. Sr. Ministro Revisor.

Feito esse relatório, dei o meu voto e propus a remessa ao Tribunal Pleno,deferida, assim, a petição do apelante. No mesmo sentido, manifestou-se oeminente Sr. Ministro Revisor, Philadelpho Azevedo.

O Sr. Ministro Barros Barreto opôs-se à remessa. S. Exa. entendia queseria preciso, primeiro, proclamar o julgamento na Turma, para, depois, serjulgado o feito pelo Tribunal Pleno, em grau de embargos.

O Sr. Ministro Philadelpho Azevedo, pedindo a palavra, pela ordem,declarou:

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Ministro Castro Nunes

Sr. Presidente, acho que, se proclamarmos o resultado, estará prejudicada aremessa. Como diziam a reforma judiciária local de 1924 e o Decreto-Lei n. 319,quando, pelo resultado da apuração, se verificar que a decisão será contrária àjurisprudência de outra Câmara, o julgamento ficará suspenso e terá de serproferido pelo Tribunal Pleno. O art. 861 do Código de Processo, que se refere àrevista, e este caso é, exatamente, de revista ex officio — diz o seguinte:

A requerimento de qualquer de seus juízes, a Câmara, ou turmajulgadora, poderá promover o pronunciamento prévio das Câmarasreunidas sobre a interpretação de qualquer norma jurídica, se reconhecerque sobre ela ocorre, ou poderá ocorrer, divergência de interpretação entreCâmaras ou Turmas.

A espécie, aqui, é semelhante.

Estou dando notícia, muito resumidamente, do incidente, porque nãoimporta praticamente para o julgamento, uma vez que os autos estão aqui.

Eu, por minha vez, fiz algumas considerações no mesmo sentido, isto é,sustentando a conveniência da remessa, uma vez que há decisão contrária daSegunda Turma.

O Sr. Ministro Annibal Freire concordou com a remessa, voltando a falar oSr. Ministro Barros Barreto sobre o assunto.

A decisão foi no sentido da remessa, contra o voto do Sr. Ministro BarrosBarreto.

É o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, como disse norelatório, a sentença de primeira instância concluiu, à vista dos votos que apuroua maioria, neste Supremo Tribunal, pela improcedência da ação, dispensando,apenas, o autor da multa; e o meu voto foi no sentido de confirmar a sentença.Fundamentei-o sucintamente, em se tratando, como se trata, de questão muitodebatida, muito conhecida, dizendo, apenas, o seguinte: (lê o voto proferido naTurma).

Devo dizer tão-somente, para melhor esclarecimento, uma vez que, datribuna, o ilustre advogado teve a bondade de se referir à maneira pela qualestudei o mecanismo inaugurado pela Carta Política de 10 de novembro de 1937,quanto ao Poder Legislativo e ao Judiciário, relativamente à declaração deinconstitucionalidade que, de fato, as duas atribuições se situam em planodiferente, porque a atribuição jurisdicional é exercida pelo Judiciário quandodeclara uma lei inconstitucional; a provocação feita ao Parlamento está no planopolítico e o Parlamento pode até reconhecer o acerto da decisão judiciária. Sem

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Memória Jurisprudencial

a menor dúvida que poderá fazê-lo, não obstante validar a lei, por entendê-lanecessária, embora inconstitucional, reconhecidamente inconstitucional,confessadamente inconstitucional. De fato, os dois pólos são diversos, osobjetivos diferentes. Os tribunais cumprem seu dever, declarando a leiinconstitucional porque incompatível com o texto básico, porque impossívelaplicar os dois textos, o constitucional e o legal. Todavia, se o governo e, com ele,o Parlamento, na teoria da Constituição, entenderem que essa lei, apesar deinconstitucional, é necessária ao bem público, poderão, um provocando, outrodeliberando, entender que a lei é válida e deve prevalecer.

Se se tivesse ficado o legislador da Constituição de 1937, eu penso queteria toda razão o ilustre autor da demanda. Não seria possível aplicá-loretroativamente — quero referir-me ao Decreto-Lei de 1939 —, mas o legisladorda Constituição acrescentou: “(...) ficando sem efeito as decisões judiciaisproferidas”.

No caso, a controvérsia, muito antiga, muito conhecida, muito debatida,consiste em saber se os funcionários locais são tributáveis pela União, a título deimposto de renda. O assento legal vem da legislação de 1931, em que já sedeclaravam sujeitos ao imposto de renda os funcionários estaduais e municipais,mas o Supremo Tribunal entendeu sempre que essa tributabilidade eraincompatível com a Constituição, com a cláusula da imunidade recíproca da União,dos estados e dos municípios; entendendo o Supremo Tribunal, de acordo com oensinamento da jurisprudência americana, não tributáveis os serviços locais, emnome da autonomia das entidades federais. Assim, sempre se entendeuinconstitucional essa tributação. O governo da República, usando do poderconferido no art. 96, parágrafo único, da atual Constituição, expediu, então, oDecreto-Lei de 1939, que declarou seriam tributáveis os vencimentos dosfuncionários estaduais e municipais, ficando sem efeito as decisões judiciais emcontrário. A dúvida, no presente caso, nos termos, aliás, em que situou a questãoo nobre advogado, está somente nisto: S. Exa. reconhece que a disposição podeser aplicada de então por diante, como emenda aditada à Constituição. A dúvidaestá em saber se essa disposição do Decreto-Lei de 1939, do Decreto-Lei n.1.554, se aplica retroativamente, em se tratando, como no caso, de funcionáriocujos vencimentos tributáveis pelo imposto de renda são de 1935, quatro anosantes do decreto-lei em questão. A hipótese é, unicamente, saber se essedecreto-lei pode ser aplicado retroativamente. Ele não tem cláusula expressa deretroatividade, mas eu penso que, dizendo “(...) ficam sem efeito as decisõesjudiciais proferidas”, cláusula que repete o texto constitucional, isso equivale aum texto explícito de retroação, e só por esse fundamento, embora reconheça arelevância da questão jurídica, eu o tenho aplicado, retroativamente.

O Sr. Ministro Laudo de Camargo: Mas as decisões do Supremo Tribunalsão em sentido contrário; não o aplicam.

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Ministro Castro Nunes

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Exatamente. Por isso mesmo, aquestão veio ao Tribunal Pleno, dada a divergência. A Segunda Turma teriadecidido de modo contrário; lá não tem prevalecido o entendimento de que odecreto-lei seja aplicável retroativamente. Creio que, na Primeira Turma, temprevalecido entendimento contrário. Assim, a questão continua em dúvida.

Estou, apenas, Sr. Presidente, procurando precisar bem o pontofundamental da questão, que é somente este, porquanto não se discute, nem seriapossível discutir, que o Decreto-Lei de 1939, equivalendo a emendaconstitucional, prevalecerá. A dúvida está em saber se pode prevalecer quantoaos casos anteriores, quanto aos vencimentos anteriores a 1939; se, mesmoestes, são tributáveis.

Os meus votos reiterados têm sido no sentido de que essa cláusula “(...)ficando sem efeito as sentenças judiciais” não pode ser desconhecida, porque écláusula que não é incompatível com a Constituição, pois repete o próprio textoconstitucional. Não se pode discutir, pois, a constitucionalidade dela. E é bastanteexpressiva, como cláusula retroativa.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Não se discute a constitucionalidade,mas a retroatividade.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): A retroatividade é inferida, pelomenos, por mim. Ela se aplica aos casos julgados, já resolvidos anteriormente.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Mas não se aplica.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Como não se aplica? É retroativa.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: O Executivo não pode fazer isso; sóquanto a um caso.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Mas se o Parlamento declara semefeito as decisões judiciárias?

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Uma decisão...

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): E se houver mais de uma?

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Uma decisão específica. É contra todatécnica que o Executivo possa fulminar sentenças. Todavia, se, agora, o podefazer, não pode fazê-lo, de modo algum, em globo.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Figure V. Exa. a hipótese de havermais de uma sentença. Ficaria paralisada a ação do Parlamento? Nada há decontrário ao interesse público, na demanda, nem na sentença. O que a própriaConstituição figura como contrário ao interesse público é a lei.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Não é isso. O Parlamento poderá infirmaruma decisão do Supremo Tribunal, em nome do supremo interesse público. Esse

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interesse não pode, porém, justificar que se fulmine de um traço inúmeras senten-ças do Supremo Tribunal.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Penso, data venia...

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: A Constituição, até aí, não dá poder aoParlamento.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): ...que não é possível estabelecerdistinção. O que a Constituição diz é “(...) ficando sem efeito as decisõesjudiciais”, pressupondo a normalidade de haver sentença que declare uma leiinconstitucional. O presidente provocará a ação do Parlamento e este declararáque a lei é necessária ao bem público. Todavia, a mim me parece claro que, sehouver mais de uma decisão judicial, a situação não mudará.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Pode mudar.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): A ação do Parlamento continuasubsistente. O presidente pode, até com maioria de razão, provocar a ação doParlamento para que se manifeste.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Assim como o Tribunal muda dejurisprudência, pode o Parlamento reconsiderar sua deliberação, até em face deuma outra decisão.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Como disse, Sr. Presidente, estou,apenas, procurando precisar os termos da questão, mostrar o ponto essencial dodebate, para justificar o meu voto, já tantas vezes manifestado.

Nestes termos, mantenho o meu voto proferido na Turma, negandoprovimento à apelação.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, já o Sr. MinistroOrozimbo Nonato focalizou a questão da retroatividade do Decreto-Lei de 1939.Para ficar coerente, quero usar da palavra para fazer algumas consideraçõesmuito breves. Com S. Exa. me tenho manifestado nesse sentido sempre e creioque o Tribunal está comigo relativamente a que a cláusula retroativa, ainda queexpressa, não pode alcançar a decisão judicial. Sempre sustentei este ponto devista: a retroatividade da lei só alcança os casos pendentes; pode alcançar o atojurídico perfeito e acabado e o direito adquirido; não pode alcançar a coisajulgada. Quando vim para este Tribunal, num dos primeiros votos que proferi aquisobre essa questão, em face da Constituição de 1937, deixei salientado,fundamentadamente, que a retroatividade teria de ser expressa. Não existeretroatividade tácita. Por conseguinte, é sempre necessário que o legislador diga,

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claramente, expressamente, ou inequivocamente, ao menos, que quer que a lei seaplique aos casos pretéritos. Ainda nesse ponto, estou de acordo com o Sr.Ministro Orozimbo Nonato.

No caso, admito a retroação do Decreto-Lei de 1939 para alcançarsentenças judiciais, porque está expresso na Constituição. É cláusulaconstitucional que a lei se limitou a reproduzir. O assento dessa possibilidade, deser alcançado o julgado, está na Constituição. É constitucional e lá se permite aolegislador cassar decisões judiciais para restabelecer lei declaradainconstitucional. Assim, é a própria Constituição, ela mesma, quando assenta asbases da independência do Poder Judiciário, que permite em certos casos, noscasos de declaração de inconstitucionalidade, que o Parlamento — no momentoatual, é o presidente da República, fazendo as vezes dele — se manifeste quantoà Constituição, e a lei, para preferir a lei, embora inconstitucional.

Assim, num caso desses, a menos que se ponha à margem o textoconstitucional, não vejo como deixar de admitir, por exceção, mas exceção nãoda lei, mas da Constituição, que o legislador, repetindo a Constituição, possaatingir o caso julgado.

E foi o que se fez, em 1939: o legislador, tomando conhecimento dedecisões judiciais proferidas sobre a isenção concedida aos funcionários locais,em face do imposto de renda, usou do poder que lhe facultava o textoconstitucional. Usou desse poder. Manteve a lei, que julgou necessária ao bempúblico, e arredou os julgados que tinham declarado a lei inconstitucional. Usoudesse poder em termos que, a meu ver, são inequivocamente retroativos.Inequivocamente retroativos com base na própria Constituição, porque, se estadiz que o Parlamento pode manter a lei declarada inconstitucional, dando porinexistentes os julgados proferidos, é evidente que o legislador, usando dessepoder, se reporta a decisões passadas; vai atingir o passado, vai revogar direitosadquiridos já por sentença judicial; e, portanto, com maioria de razão, alcança oscasos ainda não julgados, os casos pendentes, as pretensões ainda não ajuizadas,como acontece no caso presente. Todos estes estão alcançados.

Ainda há uma ponderação do ilustre colega a que me quero referir: é quandoS. Exa. diz que a decisão do Parlamento devia ser individual, singular, relativa acada caso. Data venia, ainda não posso concordar, porque, conferida aatribuição no singular — ficando sem efeito a decisão judicial —, é evidente queo legislador se referiria à hipótese mais normal, de uma sentença judicial quedeclarasse inconstitucional uma lei; e, então, o presidente da República dirigir-se-iaao Parlamento e pediria que se confirmasse a lei e se declarasse inexistente asentença. Mas parece-me claro que, como está, o texto constitucional não serestringe, apenas, a uma, mas abrange as decisões judiciais sobre a mesma lei,tida pelo Supremo Tribunal ou por vários tribunais da República comoinconstitucional. A situação, aliás, não muda, substancialmente. Será um motivo

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de mais para que seja usada a atribuição constitucional e provocada uma novamanifestação do Parlamento, exatamente porque há diversas decisões incidindosobre o mesmo texto legal. Apresenta-se, assim, uma situação ainda maiscaracterizada, por ser mais grave; e mais justificada, portanto, será a iniciativaque se conferiu ao presidente da República e ao Parlamento.

No caso dos autos, foi o que se fez: havia uma série de decisões doSupremo Tribunal sobre essa matéria proferidas na vigência da Constituiçãoanterior, na vigência da Constituição de 1891, em que sempre ficara assentado,pelo Supremo Tribunal, de acordo com os precedentes históricos, que os serviçoslocais não podiam ser atingidos pela tributação federal e, portanto, estariamisentos os funcionários municipais e estaduais de qualquer tributação da União; opresidente da República usou da atribuição que a Constituição lhe confere, e,então, o Decreto-Lei de 1939 declarou exigível o imposto, não obstanteinconstitucional, e isso alcança todas as decisões judiciais até aí proferidas.

Eis as razões por que mantenho o voto que dei, negando provimento àapelação.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram provimento àapelação, contra os votos dos Ministros Vicente Piragibe, Goulart de Oli-veira, Orozimbo Nonato e Laudo de Camargo.

Não compareceu à sessão o Ministro Waldemar Falcão, por se achar emgozo de licença.

AGRAVO DE PETIÇÃO 9.800 — SP

VOTO (Vista)

O Sr. Ministro Castro Nunes: Os agravados foram multados porquedeixaram de arrecadar a taxa de viação, encargo que por lei lhes incumbia comoproprietários de embarcações, nos termos do art. 14 e seu parágrafo único doDecreto 23.900, de 21 de fevereiro de 1934. É essa multa que lhes está sendoexigida no presente executivo, alegando-se na defesa que assim procederamporque a taxa de viação se tornou inconstitucional com o advento do Estatuto de16 de julho daquele ano.

Toda a questão está, pois, em saber — como, aliás, bem a situou o Dr. LuizGallotti, no parecer que exarou nestes autos, como procurador-geral interino —

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Ministro Castro Nunes

se os agravados podiam tomar essa atitude, se podiam deixar de exigir a taxa quelhes incumbia arrecadar por força daquele decreto.

O Estado pode servir-se dos particulares, sem com isso os transformar emfuncionários, para a execução de um serviço público. É a lição de todos osexpositores de Direito Administrativo. Tal é o caso, por exemplo, do jurado.

Servindo-se dos transportadores para a arrecadação da taxa de viação, aUnião cometeu-lhes a função de coletores, que lhes cumpria desempenhar comoagentes do Estado, executores da lei, sem o direito de descumpri-la sobqualquer pretexto, muito menos o de ser a lei inconstitucional, argüição que seesgota no âmbito do Poder Executivo com a sanção e, na falta desta, com aexpedição do ato legislativo.

Seria, a meu ver, um precedente anarquizador admitir que o funcionário ouo agente do Estado, na execução de um encargo público, pudesse entrar naapreciação da constitucionalidade da lei do serviço, comprometendo osinteresses confiados à sua guarda. Essa apreciação compete ao Poder Judiciárioe não aos órgãos administrativos, aos quais incumbe executá-la.

Se os agravados tinham dúvida acerca da constitucionalidade do imposto,cumpria-lhes provocar ou aguardar o pronunciamento da Justiça. Até entãoestavam na obrigação de arrecadá-lo.

A multa constitui, nos termos da lei, a punição imposta ao agentearrecadador faltoso — “os que deixarem de arrecadar o imposto ou que oarrecadarem insuficientemente” (art. 37, a e b).

Não há que examinar, nos presentes autos, se o imposto em questão eraconstitucional ou não, porque não se trata de cobrança de taxa de viação. Não éesse tributo fiscal que está sendo cobrado, senão a multa tão-somente, nostermos expostos.

Meu voto é, pois, para dar provimento ao recurso ex officio e ao agravoda Fazenda, julgando procedente o executivo.

EMBARGOS NO AGRAVO DE PETIÇÃO 9.800 — SP

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, a questão é da maiorimportância doutrinária e prática: basta ver os debates que se estão travando emtorno dela.

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Parece-me que todos os eminentes colegas estão de acordo em reconhecerque a autoridade fiscal, seja qual for a sua hierarquia, seja o ministro da Fazenda,não pode dispensar a arrecadação de um imposto, sob a alegação de que éinconstitucional, por ato seu, de seu arbítrio.

Parece-me, outrossim, e claramente se depreende da discussão que secontesta tratar-se, no caso, de imposto inconstitucional e, sim, de imposto revogadopela Constituição. É a questão de saber se, na verificação da compatibilidade deleis anteriores à Constituição, existe um problema constitucional.

O dispositivo constitucional — repetindo, de resto, os preceitos dasConstituições anteriores, de 1891 e de 1934 — diz que continuam em vigor,enquanto não revogadas, as leis que não contrariarem, explícita ou implicitamente,a Constituição. A expressão “enquanto não revogadas” parece indicar que essasleis continuam em vigor até que sejam revogadas, por outras leis, evidentemente.Por conseguinte, tais leis, enquanto não forem revogadas por leis posteriores,continuam em vigor, salvo se incompatíveis com a Constituição, explícita ouimplicitamente.

Tratando-se de lei anterior à Constituição, o problema que se apresenta é,pois, o de verificar se ela é, explícita ou implicitamente, incompatível com aConstituição. Ora, é nisso precisamente que consiste a declaração dainconstitucionalidade da lei. A questão é, portanto, a mesma, quer se trate de leianterior ou posterior à Constituição.

O Sr. Ministro Bento de Faria: Parece-me que V. Exa. está equivocado.Com base na própria Constituição, o que se pressupõe é a revogação das leis.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Entendo que o dispositivo constitucionalcitado pelo eminente colega, o Sr. Ministro Castro Nunes, apenas enunciou oprincípio doutrinário da continuidade das leis. Elas continuam em vigor até quesejam revogadas ou se tornem incompatíveis com leis posteriores.

Tal princípio apenas traduziu a doutrina, a que já me referi, de que a lei érevogada expressa ou tacitamente, traduzindo-se a revogação tácita pelaincompatibilidade entre a lei posterior e a anterior.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Agradeço o aparte de V. Exa., mas pensoque não altera os termos da minha argumentação. O que sustento é que oproblema da compatibilidade ou não da lei ordinária, em face da Constituição, ésempre um problema de constitucionalidade da norma inferior. Os princípios queV. Exa. está invocando, com base no Código Civil, supõem leis da mesmahierarquia: uma lei só se revoga por outra, naturalmente da mesma hierarquia. OCódigo Civil supõe normas da mesma hierarquia, leis ordinárias. Não cogita doconflito entre normas de hierarquia diversa, uma norma constitucional e uma lei

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ordinária, caso em que se estabelece o problema da constitucionalidade, seja a leiposterior, seja a lei anterior à Constituição.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Exatamente. Mas, se se trata de decidirse uma lei ordinária é compatível com a Constituição, que se infere daí?

O Sr. Ministro Castro Nunes: Que qualquer que seja a lei, anterior ouposterior, terá de ser confrontada com a Constituição. V. Exa. está comparandonormas de hierarquia diferente. Como será possível dizer se uma lei foi revogadapela Constituição, sem confrontá-la com esta, a fim de verificar a suaconstitucionalidade?

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: O problema é da inexistência de umimposto. Se a Constituição não compreende um imposto, ele deixou de existir.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Para chegar a essa conclusão, é precisoexaminar a lei que o criou, em face da Constituição.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Não vamos verificar se essa lei feriu aConstituição.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Não vejo outra maneira de decidir se o impostoé compatível ou não com a Constituição.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Perfeitamente. É lei que não tem eficácia.

O Sr. Ministro Castro Nunes: V. Exa. está com a generalidade das opiniões,com a jurisprudência, com o entendimento do Tribunal. Tem-se aqui entendidoque as leis anteriores à Constituição, quando incompatíveis, ficaram por elarevogadas. Não são declaradas inconstitucionais, entendendo-se que adeclaração da inconstitucionalidade só existe quando a lei é posterior. Não tenhopodido aderir a esse modo de ver, do qual divirjo, data venia, e assim já mepronunciei na Turma. A meu ver, as leis infringentes ou incompatíveis sãoinconstitucionais e assim devem ser declaradas, quer sejam posteriores, quersejam anteriores à Constituição. O problema é o mesmo.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Estaria de acordo com V. Exa., se essalei existisse, pretendendo adotar um princípio que a Constituição não mais aplica.O caso é que se trata de um imposto que deixou de ser aplicado. A questão não éde constitucionalidade.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Do que se trata é de saber se esse imposto écompatível ou não com a Constituição. É esse o problema em equação. Se oimposto fosse posterior à Constituição, existiria a inconstitucionalidade.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Se fosse posterior, sim; anterior, não.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Por que não, se o que estamos fazendo éverificar a possibilidade de manter esse imposto em face da Constituição?

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Estava eu dizendo que o próprio preceito do art. 187 da Constituição, querepete os preceitos anteriores, serve a esse entendimento, quando diz:

Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis que, explícita ouimplicitamente, não contrariarem as disposições desta Constituição.

Dizendo “(...) enquanto não forem revogadas”, é claro que a Constituiçãonão as revogou, supondo, necessariamente, outras leis da mesma hierarquia, quevenham a revogá-las. Não revogadas pela Constituição, subsistem, continuamem vigor, salvo se contrariarem explícita ou implicitamente a Constituição, o queequivale a dizer: contanto que não sejam inconstitucionais.

Essa indagação pertence ao Judiciário. Só o Judiciário pode declarar ainconstitucionalidade das leis.

A admitir o funcionário fiscal com direito a entrar nessa indagação, ele seteria insurgido, já não mais contra a lei, mas contra todos os princípios dahierarquia administrativa, porque o presidente da República, na teoria do DireitoConstitucional, quando sanciona a lei, a declara constitucional. Não é possíveladmitir que o funcionário (e na hipótese o executado agia como coletor dasrendas federais) possa dizer o contrário, deixando de arrecadar o imposto porentendê-lo inconstitucional.

Rejeito os embargos.

RECURSO EM HABEAS CORPUS 28.840 — DF

RELATÓRIO E VOTO

O Sr. Ministro Bento de Faria: Os Drs. Justo de Morais e Agnelo deAmorim Filho impetraram ordem de habeas corpus à Câmara Criminal doTribunal de Apelação deste Distrito em favor de Mário Rosa, a qual foi denegadaem virtude de se achar Mário Rosa preso, consoante as informações prestadas,por motivo de segurança e ordem pública.

Requereram então fosse o paciente transferido da Casa de Detenção paraum local não destinado a réus de crimes comuns, pedido esse que foi indeferidopor encerrar nova súplica de habeas corpus, sem forma legal.

Os mesmos impetrantes requereram então novo habeas corpus, tão-somente para transferência de prisão, visto como o dito paciente achando-sepreso por motivo do estado de emergência a sua detenção havia de se verificar

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em local especial, que não o destinado aos mencionados réus de crimes comuns,de acordo, assim, com o art. 168, letra a, da Carta Constitucional vigente.

Solicitadas informações, prestou-as o chefe de polícia pelo ofício de fl. 8 (lê).

O tribunal requerido, em conseqüência, não tomou conhecimento pelasrazões do acórdão à fl. 9 verso (lê).

Isso posto, nego provimento ao recurso porque:

a) reconhecendo os recorrentes que o paciente se acha preso pelo motivodo estado de emergência, daí resulta a aplicabilidade do art. 170 da Constituiçãovigente, segundo o qual, durante o estado de emergência ou o estado de guerra,dos atos praticados em virtude deles não poderão conhecer os juízes e tribunais;

b) durante a vigência do estado de guerra deixaram de vigorar, entreoutros, os dispositivos constitucionais impedientes da prisão sem culpa formada,fora dos casos de flagrante delito, e o que assegura a concessão do habeascorpus por motivo de violência iminente ou coação ilegal, nos termos do Decreton. 10.358, de 31 de agosto de 1942.

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, o meu voto se aproxima, emgrande parte, dos termos em que acaba de expor a questão, com o brilho desempre, o Sr. Ministro Orozimbo Nonato.

E, como tenho voto já manifestado sobre a cabida de habeas corpusdurante o estado de guerra e tenho opinião conhecida também sobre esse aspectodos debates, penso que não há necessidade de me alongar em minha manifestação.

Nestes termos, conhecendo do habeas corpus, dou provimento ao recurso,para mandar que o tribunal local julgue o pedido.

HABEAS CORPUS 29.002 — DF

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, concedo a ordem pelo primeirofundamento, nulidade do processo por falta de citação pessoal, e somente poresse fundamento, porque estou de acordo com o Sr. Ministro Relator e com osvotos manifestados, no sentido de que não é possível aceitar o argumento dosimpetrantes de que a lei não executada fica revogada.

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Realmente, seria subversivo de toda a ordem jurídica, se se admitisse talargumento. A lei não se revoga ou derroga senão por outra lei. A tolerância daautoridade ou relaxamento na execução de uma lei não basta para fazê-ladesaparecer.

Em matéria de contravenções, existem precedentes conhecidos quepoderiam ilustrar essa tese. As administrações policiais que se sucedem oraintensificam, ora relaxam a repressão de certas contravenções. E jamais sepretendeu pudessem ser soltos por habeas corpus os réus sentenciadosanteriormente, ao tempo em que os agentes do poder público estavam dandoexecução à lei. Não invoco esses precedentes senão para mostrar ao vivo que oafrouxamento ou a intermitência na aplicação da lei não basta para fazerdesaparecer a infração. A situação, juridicamente, é idêntica, embora aqui se tratede crimes políticos, delitos de opinião, que se situam em grau superior e nãonodoam o agente.

Mas o primeiro fundamento, a nulidade da citação, se impõe à evidência.Realmente, não se trata, no caso, nem de réu solto nem de réu foragido. De réuforagido não seria possível cogitar na hipótese, porquanto o réu foragido é aqueleque procura escapar ou consegue escapar, sair do distrito da culpa, procurandoesquivar-se, evadir-se ao processo, sem ciência ou iludindo a vigilância dasautoridades. De réu solto igualmente não se trata, porquanto réu solto só é aqueleque se pode locomover livremente no distrito da culpa, que pode ir e vir para ondeentender. No caso tratava-se de réus que foram convidados a sair do país.Estavam soltos, é certo, mas em país estrangeiro. Não é essa a hipótese de réusolto em face da lei.

O réu comprometido numa crise política é convidado pela autoridade aretirar-se do país a fim de não ser preso.

Temos freqüentemente os exemplos ocorridos na República Argentina,onde, aliás, a Constituição declara que, na vigência do estado de sítio, pode ogoverno prender ou desterrar para outros pontos do território nacional, salvo se ocidadão preferir sair do país. De modo que lá é muito freqüente a adoção dessaprática e, quando o próprio governo não convida o cidadão a retirar-se do país, éele mesmo que pede seu passaporte, para procurar asilo em país amigo.

De modo que, aqui, como lá, não se trata propriamente de umaimposição, mas de uma injunção, de uma solução optativa. Dá-se aocomprometido na crise política, ao cidadão indiciado ou suspeito à autoridade,a opção entre a prisão e a saída do país.

Essa é que é a natureza da medida de cunho nitidamente político, não épena, não é expulsão, e já então seria inconstitucional, é uma opção que se lhe dápara preferir à prisão em seu país a liberdade em outro país. Sem dúvida é

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sempre preferível essa última solução, que o governo não concede a todos,solução mais branda pelo menos para o cidadão que tenha posses que lhepermitam viver no estrangeiro, melhor do que sofrer as agruras da prisão política.

Ora, no caso o que se terá dado foi isto: a autoridade pública convidou ospacientes a se retirarem do país. Mas, se eles não saíssem do país, seriam presos.De modo que réus no processo que ocorreu dois anos depois, eram réusvirtualmente presos, não eram réus soltos. Os pacientes estavam fora do país,porque o governo lhes permitiu a saída; mas, se voltassem, para se defenderem,seriam presos. Estavam, pois, na situação de réus presos e teriam de ser citadospessoalmente, por mandado ou mediante rogatória para o país em que estavam. Eo Tribunal sabia onde estavam eles, porque das sobrecartas constava aprocedência de onde vinham os manifestos e panfletos. Aliás, o governo poderiapor meio de suas representações diplomáticas localizar os réus.

À vista disso, só posso acompanhar o voto brilhante e exaustivo do Sr.Ministro Relator, dando o habeas corpus, de acordo com essas premissas, paraque os pacientes possam voltar do país livres da condenação do Tribunal deSegurança Nacional.

Concedo a ordem.

HABEAS CORPUS 29.763 — DF

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Requerem os dirigentes do Partido ComunistaBrasileiro o presente habeas corpus, alegando: 1º) que estão impedidos de entrare sair da sede central e de comitês locais do mesmo Partido pela Polícia, de ordemdo Sr. Ministro da Justiça; 2º) que a Polícia, ainda antes de publicado o acórdão doSuperior Tribunal Eleitoral que cassou o registro do Partido, invadiu-lhe as sedes,expulsando os funcionários que lá se achavam, apoderou-se das chaves,apropriando-se de máquinas de escrever, arquivos, fichários, livros, documentos,etc.; 3º) que o Partido se organizou como sociedade civil devidamente registrada nocartório competente; 4º) que a cassação do registro partidário não suprime asociedade civil, que subsiste até que seja dissolvida regularmente no caso de lheatribuírem fins ilícitos, nos termos do art. 141, § 12, da Constituição; 5º) que ojulgado eleitoral, ainda sujeito aos recursos previstos em lei, não se estende àassociação civil, porque restrito ao partido político; 6º) que os pacientes, comodiretores da sociedade civil, estão impossibilitados de exercer atos relativos à

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guarda e à disposição dos bens sociais e do patrimônio do ente provado, dandoassistência aos interesses próprios da sociedade e de terceiros, comprometidos unse outros pelos atos da Polícia; 7º) que, mesmo quando cancelado pela justiça oregistro da sociedade civil, entraria esta em liquidação para ser dado destino ao seupatrimônio, nos termos do artigo 22 do Código Civil e na conformidade dosEstatutos, que, prevendo a impossibilidade de serem realizados os objetivos dopartido, atribui à assembléia-geral a disposição dos bens sociais.

O pedido, nos termos expostos, está assim sintetizado: “Impedidos estão osdiretores do Partido Comunista do Brasil de entrarem e saírem (direito delocomoção) relativamente às sedes da sociedade civil em todo o país econseqüentemente de exercerem a guarda e conservação dos bens, garantia docrédito de terceiros, do uso dos documentos e da convocação da Assembléiageral, determinada pelos Estatutos, para resolução quanto ao patrimônio”.

Oficiei ao Sr. Ministro da Justiça, que me enviou as minuciosasinformações que passo a ler: (lê).

É o relatório.

VOTO (Antecipação)

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Sr. Presidente, antes de ler o meuvoto, quero referir-me à preliminar levantada, da tribuna, pelo ilustre advogado.Na verdade, não se trata de preliminar, no sentido de que possa influir ouprejudicar o julgamento do mérito. É, antes, uma alegação, uma argüição, umaindagação do mérito, porque, se o governo não pode praticar os atos trazidos aoconhecimento do Tribunal, porque esses atos se referem à execução da decisão,e essa execução — do ponto de vista do advogado —, só competiria ao TribunalSuperior Eleitoral, que não poderia delegar atribuição ao Poder Executivo, o que daíresulta é que esses atos são ilegais, do ponto de vista da argüição, porquepraticados pelo Poder Executivo, por delegação do Judiciário, o que seriainconstitucional. Mas essa ilegalidade seria um dos aspectos da apreciação domérito do caso, se fosse possível examiná-lo por habeas corpus.

Em certo trecho do meu voto, terei oportunidade de me referir àcircunstância de não se tratar de ato de execução ordenada pelo TribunalSuperior Eleitoral, caso que seria da competência dele mesmo, mas sim de atospraticados pelo Ministro da Justiça na preservação do julgado ou na execução dele,conforme se entenda. Isso revela, desde logo, a separação existente entre essesatos e a execução não ordenada pelo Tribunal Superior Eleitoral, permitindo, porisso mesmo, a competência do Supremo Tribunal Federal para o conhecimentodo pedido.

Ditas essas palavras, passo à leitura do meu voto.

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Ministro Castro Nunes

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Como se viu da exposição, o objetodo habeas corpus é assegurar aos pacientes, como dirigentes do Partido Comu-nista, o direito de continuarem à testa da sociedade civil que eles entendem nãodissolvida pela cassação do registro do Partido, dispondo, para os fins da adminis-tração da sociedade sobrevivente, das sedes respectivas e de móveis, livros,arquivos, etc.

O cancelamento do registro partidário, argumenta o impetrante, cinge-seao Partido, cujo funcionamento ficou proibido, proibição que teria de restringir-seàs suas relações com a Justiça Eleitoral, não podendo concorrer a eleições, regis-trar candidatos, etc. Mas, fora dessa interdição concernente ao Partido, nenhumaoutra pode impor o Governo, porque já então desnecessária a excedente do julga-do eleitoral, cuja disposição, limitada constitucionalmente à matéria eleitoral, nãoalcança outros aspectos, ainda que conseqüentes, mas relativos à pessoa privadada associação.

A primeira indagação que ocorre, e aliás suscitada nas informações minis-teriais, é a da competência. As causas que sobrevenham ao cancelamento de umregistro de Partido serão da competência da própria Justiça Eleitoral? Ouimprorrogável se deverá entender tal jurisdição para as questões derivadas oucomplementares que não sejam de natureza propriamente eleitoral?

Posta a questão no plano das disposições processuais, tais causas,oriundas ou acessórias da principal, seriam da competência eleitoral. A questãode saber se o julgado eleitoral abrange a sociedade civil que servia de suporte aoPartido ou se, nos termos do julgado, está proibido o funcionamento de ambas asentidades e bem assim outras controvérsias que possivelmente hajam de surgirsob a forma de demandas, ainda que alheias à matéria propriamente eleitoral,mas vinculadas de certo modo à decisão, estaria resolvida no plano comum poraplicação das regras conhecidas da continentia causarum.

É sabido que a competência por conexão se funda nas vantagens daeconomia processual e, sobretudo, na conveniência de prevenir decisõescontraditórias, daí provindo a cumulação no juízo da causa principal de todas asdemandas que com ela mantenham laços estreitos de dependência ou conexão —in connexis idem est juditium. Uma das aplicações mais conhecidas dessaregra é a da competência para a execução, que pertence ao mesmo juiz da ação.

Vejamos agora se é possível fazer aplicação desses princípios paraconcentrar na Justiça Eleitoral as causas conexas com o seu julgado, ou em quetermos pode ser admitida tal extensão.

A Justiça Eleitoral já reivindicou para si mesma a execução das suasdecisões. A Constituição é omissa no tocante a essa atribuição; mas, tendo

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instituído como Justiça autônoma aquela jurisdição, não seria possível admiti-lacomo semiplena, mutilada no que é essencial à eficácia mesma da jurisdição. Seé possível a cognição sem o poder correlato de passar à execução, do que háexemplos conhecidos na jurisdição dos prud’hommes e probi viri e, entre nós,até a organização definitiva da Justiça do Trabalho, no funcionamento das Juntasde Conciliação e Julgamento, cuja execução era atribuída às justiças comuns,essa mutilação só pode existir quando expressa na lei ou com base no EstatutoFundamental.

A regra é a execução no mesmo juízo da cognição. A coerção, dizMortara, é um efeito da jurisdição. De outro modo, seria ilusória a jurisdiçãoconferida — Cui jurisdictio data est, ea quoque concesso esse videtur, sinequibus jurisdictio explicari non potest.

Compreende-se, assim, que a execução das suas próprias decisões estejana competência da Justiça Eleitoral, por aplicação do princípio, não contrariadonem explícita nem implicitamente pela Constituição, de que a execução é inerenteàs jurisdições regulares.

No caso em apreço, contestam os impetrantes tratar-se de meros atos deexecução, senão de atos desnecessários ou excedentes do necessário à execuçãodo julgado. A execução dada pelo egrégio Superior Tribunal Eleitoral consistiu,segundo é notório, e, aliás, o confirma o nobre ministro da Justiça, nacomunicação feita ao Governo por ofício do eminente ministro ora na Presidênciadaquela Suprema Corte eleitoral. Os atos de execução de que se queixam ospacientes, sob a argüição de excessivos ou abusivos, não são, pois, atos deexecução ordenada por aquele Tribunal.

O saber se esses atos estão virtualmente contidos no julgado, se atingidapor este foi também a associação, se a dissolução desta está automaticamentedecretada pelo julgado eleitoral, se os fins da associação são os mesmos fins doPartido ou se, ao inverso, possui a associação outros fins, como seriam, porexemplo, a manutenção de escolas, hospitais, assistência médica, etc., para osseus associados, são aspectos que formam uma demanda à parte, ainda quepossivelmente conexa com o julgado sobre a cassação do registro do Partido,cassação que, acentuam as informações ministeriais, se baseou no inciso 13 doart. 141 da Constituição, abrangendo o partido e, por igual, a associação ehavendo ambos por ilícitos ou nocivos à coletividade.

É possível que os atos impugnados como excedentes do julgado eleitoraldigam respeito à sua execução como matéria nele virtualmente contida; mas,como não são medidas adotadas em execução ordenada pelo próprio TribunalSuperior Eleitoral, caso em que a este mesmo competiria conhecer, pelosrecursos e meios próprios, dos excessos ocorridos na execução, e o exame da

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argüição compete à justiça que for competente para conhecer dos atos daautoridade apontada como coatora.

A Constituição designa o Tribunal competente para os atos do presidenteda República e dos ministros de Estado quando impugnados por via do habeascorpus e do mandado de segurança. Será possível arredar a competênciaconstitucional para admitir a extensão da eleitoral fundada no princípio dacontinência? A Justiça Eleitoral, como toda justiça especial, tem somente asatribuições especificadas, não comportando extensão ou ampliação. Suacompetência se limita à matéria eleitoral, locução de seu natural restrito, a serentendida no sentido da aplicação das leis eleitorais nos atos administrativos a seucargo e na solução das controvérsias surgidas dessa aplicação.

É certo que, na solução das espécies, a Justiça Eleitoral aplica os Códigoscomuns, de processo civil e criminal, na administração dos remédios adequadosou na repressão dos crimes de sua alçada; mas essa possibilidade decorre doexpresso na Constituição quando esta lhe atribui conhecer de habeas corpus ede mandados de segurança e bem assim processar e julgar as infraçõeseleitorais. É bem de ver que esse processamento não é matéria eleitoral, vistocomo não se prescreveu rito peculiar aos mandados de segurança e aos habeascorpus em matéria eleitoral; mas, por isso mesmo, decorre a utilização dos meiosde direito comum da atribuição expressa para conhecer de tais remédios.

Outro tanto ocorre ao decidir sobre certas matérias, como no caso de secontroverter a nacionalidade de alguém que pretenda alistar-se como eleitor oude inscrição de candidato que se argua de inelegível: esses pressupostos — queenvolvem problemas da alçada, em princípio, das vias comuns, exigindo a provada aquisição da nacionalidade brasileira ou, ainda, no registro dos partidos, a provada constituição regular e do registro no cartório competente da associação quepretenda ser registrada como partido político —, ainda que assentados empreceituação diversa ou configurando questões não propriamente eleitorais,entram todavia na competência especial que, de outro modo, estaria entravada ouentorpecida se houvesse de sobrestar no exame desses aspectos até que sobreeles se pronunciasse a justiça comum.

Tudo isso é matéria eleitoral porque incidente no julgamento dos casoseleitorais da competência daquela justiça.

As causas conexas são, porém, demandas novas, ainda que oriundas ouconseqüentes do julgado. Não sendo possível classificá-los como matériaeleitoral, só pelo laço da conexão seria admissível prendê-las à causa principal.

Observa-se, nas informações ministeriais, que a própria Constituição admitea continência quando atribui àquela justiça conhecer dos crimes comuns conexoscom as infrações eleitorais. É exato. Mas não será uma exceção?

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A velha máxima inclusio unius alterius exclusio não é indefectível,comportando restrições na sua aplicação. Mas no caso é de ser, a meu ver,recebida, porque a Justiça Eleitoral, como toda jurisdição especial ou específica,é de competência striti juris, não ampliável por interpretação.

Se a Constituição estabelece que essa justiça se limita à matéria eleitoral,e se ela mesma lhe atribui, em matéria penal, o conhecimento dos crimes comunsconexos com os eleitorais, o que daí se deve concluir é que traçou uma regra eabriu uma exceção, não sendo lícito ao intérprete transformar em regra a exceção.

Não sendo possível, segundo me parece, alargar o âmbito da matériaeleitoral além do expresso na Constituição, só por aplicação do disposto no art.138 do Código de Processo poderia admitir-se a competência eleitoral para ascausas conexas. Vale dizer que o assento dessa extensão não seria aConstituição, mas a preceituação processual, pois que, como disse, a inclusão doconexo com o eleitoral só seria possível com base na lei fundamental se possívelfosse dar à locução matéria eleitoral uma definição extensiva, fora da hipótesemencionada das infrações penais.

Posta a questão em termos processuais ou meramente legais, a admissãodo foro por conexão encontraria obstáculos na Constituição quando esta atribui aeste Supremo Tribunal e ao Federal de Recursos o conhecimento dos habeascorpus em que a autoridade coatora seja o presidente da República ou umministro de Estado e bem assim dos mandados de segurança requeridos contraatos dessas altas autoridades.

O juízo constitucional do habeas corpus quando o apontado coator é opresidente da República ou um dos seus ministros é o Supremo Tribunal; o juízoconstitucional do mandado de segurança requerido contra atos dessas mesmasautoridades é o Supremo Tribunal ou, no tocante aos atos dos ministros dopresidente, o novo tribunal a ser instalado.

O chamamento a juízo dessas autoridades, em tais processos, firma,rationi numeris, a competência constitucional desses tribunais, competênciaindeclinável, porque expressa na Constituição, e que só encontra limite nos casoseleitorais, de conceituação restrita, como já vimos, abrindo-se já então acompetência da Justiça Eleitoral pelo seu órgão superior.

A extensão do foro eleitoral por aplicação do Código de Processosimportaria em subtrair ao conhecimento do Supremo Tribunal os habeas corpus emandados de segurança em que estivesse em causa a autoridade funcional dopresidente da República. Seria preciso admitir que, mesmo nos casos alheios àmatéria eleitoral e para os quais a justiça respectiva fosse em princípioincompetente (incompetência que se pressupõe confessadamente na continentia

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causarum), nem sempre seria competente o Supremo Tribunal como juízooriginário e necessariamente privativo para julgar os atos do presidente daRepública.

Ocorre-me rememorar o que sucedeu com o disposto no art. 10 da Lei n.221, de 1894. Permitiu essa lei que, nas causas propostas perante juízes locais, seo réu não opusesse a declinatória, ficasse prorrogada essa jurisdição ainda que dacompetência federal a demanda. Essa prorrogação foi julgada inadmissível peloSupremo Tribunal, até que a Lei n. 1.939, de 1908, revogou o dispositivoinconstitucional da Lei n. 221.

Era inadmissível o foro de jurisdição prorrogada, porque as espécies dacompetência da Justiça Federal, ratione materias ou ratione personarum,estavam compendiadas na enumeração constitucional, não estando ao alcancedo legislador atribuí-las a outra justiça.

Ainda que estejam no plano federal as duas competências em exame, asolução não pode ser outra: a Constituição, atribuindo ao Supremo Tribunal oexame dos atos do presidente da República e de seus auxiliares imediatos nosprocessos de habeas corpus e de mandado de segurança, estabelece uma regrageral que não pode admitir exceções fundadas na lei ordinária.

Não será impossível que, no exame dos casos concretos, esteja em causaato do presidente da República ou de ministro de Estado, de natureza eleitoral,e que o pedido venha endereçado ao Supremo Tribunal, competindo-lhe, já então,se entender que a matéria é eleitoral, não conhecer do pedido, que será da alçadado Superior Tribunal Eleitoral. Se verificado, entretanto, que a matéria não éeleitoral, porque já esgotada a jurisdição eleitoral no seu pronunciamento e por senão tratar de atos de mera execução do julgado, mas sim de demanda, ainda queoriunda ou conseqüente, deve, a meu ver, conhecer do pedido. Eis por queconheço do presente habeas corpus.

A hipótese não é de habeas corpus, mas de mandado de segurança.

O que se reclama não é somente o direito de entrar e sair da sede daagremiação partidária, mas de exercer atos de administração da sociedade civil,cujo funcionamento está sendo reivindicado, com os meios necessários, aindaque proibida a prática de atos partidários. É para que se declare subsistente aassociação civil remanescente no tocante à disposição dos seus haveres que sepede o habeas corpus, remédio manifestamente inidôneo para os direitos que sedizem violados pelo argüido excesso de autoridade.

O habeas corpus protege a liberdade de locomoção e esgota-se naproteção dessa liberdade.

Ao tempo da jurisprudência extensiva que atribuía ao velho writ, na faltade outro remédio adequado, a virtude de alcançar outros direitos, pelo argumento

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de que estaria subordinado o seu exercício àquela liberdade-condição, seriapossível utilizá-lo para atingir ao que então se chamava com Pedro Lessa —direito-escopo.

Ainda assim, já àquele tempo, registraram-se casos em que o SupremoTribunal o declarou inidôneo para anular v.g. o fechamento de umestabelecimento comercial ou, de um modo geral, para garantir o exercício daprofissão comercial (Revista do Supremo Tribunal, v. 46, 22 e 23), e ainda pararesolver questões de Direito Civil (Ibidem, v. 41, p. 53).

Criado o mandado de segurança, que tem nessa jurisprudência as suasnascentes, tornou-se necessário distinguir as hipóteses.

A liberdade de locomoção está necessariamente sempre pressuposta, tãocerto é que dela precisa o funcionário para ir ao seu emprego, o operário para irà oficina, o comerciante ou o industrial para o desempenho das suas atividades,etc. Mas não estará nesse, como em tantos outros casos, imediatamentecomprometido o direito de ir e vir, senão o exercício da função, profissão ouatividade lícita se queira exercer e para cuja proteção se peça o amparo judicial.

A livre locomoção se define pelo direito de ir e vir, entrar e sair, ficar ondeestá — jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. É uma liberdadeelementar ou primária, que, pelo habeas corpus, se assegura ao indivíduo semnecessidade de indagar qual o fim lícito que pretenda ele dar a essa liberdade. Se,porém, ele precisa mover-se para desempenhar um emprego que lhe tiraram, oupara exercer dada atividade econômica, ou para que cesse um obstáculo criado aessa atividade, visando compeli-lo a pagar certo imposto que tem por ilegal, odireito que domina o quadro relega para um segundo plano a livre locomoção, queentrará na proteção assegurada como liberdade-condição para o exercíciopostulado, que será um direito não do indivíduo propriamente, mas do funcionário,do industrial, do comerciante, do contribuinte.

A atual Constituição exagera, ainda mais do que a de 34, o parentesco domandado de segurança com o habeas corpus. Define-o por exclusão deste,acentuando-lhe o traço de habeas corpus civil, que não prosperou sob aConstituição de 34, tanto que a Lei n. 191, de 1936, pôde traçar-lhe o ritoabandonando o figurino processual do habeas corpus, que parecera fixadoconstitucionalmente, e adequando-o à apuração mesma do direito postulado, quese quereria “certo e incontestável”, com a audiência necessária da pessoa dedireito público interessada, condições constitucionais que contra-indicavam oritual do habeas corpus.

A correlação entre o habeas corpus e a proteção que por ele sedispensava a direitos provados de plano e que teriam, como quaisquer direitos,na livre locomoção uma condição elementar do seu exercício, existia àquele

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tempo; mas não havia razão, nem em 34, como ainda agora, para mantê-la nadefinição do novo instituto, que se rege por outros princípios e segue formaprocessual muito diferente.

A aproximação constitucional dos dois institutos estará talvez concorrendopara a confusão que se vai notando na solução de casos em que não tem sidofeita a necessária distinção, com esquecimento da jurisprudência que já deixaraesclarecidos critérios de orientação para distinguir das hipóteses de habeascorpus as de mandado de segurança.

Permito-me recordar que, quando juiz federal, em fevereiro de 1935, nojulgamento de um habeas corpus que me fora requerido para que o pacientepudesse entrar e sair dos navios ancorados no porto, no exercício de suaprofissão de fornecedor de gêneros para os estoques de bordo (Schipchandler),contra o ato das autoridades aduaneiras que lhe vedaram esse livre ingresso,estabeleci a distinção, julgando inidôneo o habeas corpus, porquanto o direitoviolado, e que se pretendia restaurar, era o da profissão ou atividade exercidapelo paciente e não o de livre locomoção, só secundariamente comprometido, porvia de conseqüência da proibição imposta ao agente comercial.

A Corte Suprema confirmou unanimemente essa decisão.

Em outro caso, também de habeas corpus requerido para um capitão doExército classificado em guarnição de categoria inferior àquela a que se julgavacom direito, decidiu a Corte Suprema que não estava em jogo somente aliberdade de locomoção, mas precipuamente o direito de não ser classificadoem determinada guarnição, hipótese de mandado de segurança.

A liberdade individual compreende várias modalidades. É a segurançaindividual com as garantias pressupostas constitucionalmente a bem da defesa: aliberdade de locomoção, a que servem essas garantias de índole processual eparticularmente o habeas corpus; a liberdade corpórea, que consiste naintegridade física do indivíduo e no direito de não ser molestado no seu corpo,modalidade que, embora não figure no texto, deu origem àquele writ, em cujadenominação subsiste e, se violada, com ou sem detenção, não encontraria naConstituição outro remédio senão o habeas corpus; a inviolabilidade dodomicílio, definido este como habitat do indivíduo e de sua família, com exclusãodos estabelecimentos abertos ao público, inviolabilidade que é um prolongamentoda liberdade de locomoção sob a forma de estar em sua casa sem sermolestado pela intromissão arbitrária da autoridade, fora das ressalvasexpressas, configurando-se ainda aí uma hipótese que seria de habeas corpus; aliberdade de associação, que se traduz no direito assegurado aos indivíduos deporem em comum, no interesse de um fim político (e tais são os partidos),religioso, recreativo, beneficente, etc., os seus bens, atividades, trabalho, etc.,objetivo que transcende do habeas corpus, que seria inidôneo para assegurar o

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direito de associar-se ou de ser conservado no estado de associação; a liberdadede ensino; a de imprensa, etc.; as liberdades econômicas, que se definem pelaliberdade de trabalho, de indústria e comércio, pressupondo, no paciente darestrição impugnada, o trabalhador, o industrial, o comerciante. São hipóteses demandado de segurança.

Nesses termos, indefiro o habeas corpus, por incabível.

O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Sr. Presidente, dou-me por impedidoneste caso, que, de certo modo, envolve a decisão tomada pelo Superior TribunalEleitoral, na qual tomei parte.

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: Sr. Presidente, também me sinto impedidoneste habeas corpus, uma vez que funcionei como juiz do Superior TribunalEleitoral e ali dei meu voto no sentido de não se cancelar o registro do PartidoComunista, e a medida que ora se pede tem direta ligação com a natureza do votoque proferi.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sr. Presidente, não encaro, napresente hipótese, continência de causas. A causa ora submetida ao julgamentodeste egrégio Tribunal é diversa da que foi considerada pelo Tribunal SuperiorEleitoral. Esta é conseqüência daquela, mas a conseqüência não importa em queas causas sejam continentes. Elas são essencialmente diversas.

No Tribunal Superior Eleitoral, cassou-se o registro do Partido Comunista,do órgão político; discute-se, agora, nesta causa, a legalidade do fechamento dasociedade civil.

As causas, portanto, são diversas. Não há entre elas continência e, assim,estou de acordo com o Sr. Ministro Relator quando afirmou a competência desteTribunal para conhecer do pedido de habeas corpus.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: V. Exa. não encontra conteúdo eleitoralna presente hipótese.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Exatamente. O que se discutenesta causa é a legalidade do fechamento da sociedade civil.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Mas esta causa é nascida da outra.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sim, nascida da outra, éconseqüência da outra, mas não há continência entre ambas.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): São causas conexas, em virtude doart. 102.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Acho que não há lugar, neste caso,para conexão, para continência. Os casos são diversos, embora um emconseqüência do outro.

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A ordem de habeas corpus destina-se a tutelar a liberdade de locomoçãoquando a puser em perigo o abuso ou a ilegalidade do poder. Nesta causa, porém,não se defende a liberdade de locomoção; discute-se a legalidade do fechamentode uma sociedade civil.

O advogado dos pacientes, da tribuna, preocupou-se apenas com asituação da sociedade civil, discutiu tão-somente essa matéria e invocou mesmo,para fundamento da sua pretensão, o disposto no § 12 do art. 141, relativo àliberdade de associação. Não se discute, pois, liberdade de locomoção, masdiscute-se liberdade de associação. O que querem os requerentes, a pretexto deum habeas corpus, é recuperar a administração do patrimônio da sociedade. Éisso o que se procura por esta via indireta. Demonstrou, muito bem, o Sr. MinistroRelator que o habeas corpus não é meio idôneo para este fim.

Embora reconheça o impetrante que a sociedade é de fins ideais e que elase destina a um fim político, salienta ele mesmo, o advogado impetrante, que oque se procura é defender uma situação patrimonial ferida, segundo ele afirma,pelo ato do ministro da Justiça.

Evidentemente, não é possível que questões patrimoniais sejam discutidasno processo do habeas corpus.

É este, a meu ver, Sr. Presidente, o fundamento, aliás invocado pelo Sr.Ministro Relator, que me leva também a negar a ordem de habeas corpus.

O Sr. Ministro Edgard Costa: Sr. Presidente, não estando em jogo,exclusivamente, a liberdade de locomoção, mas sendo esta um meio para atingir-seoutra finalidade, qual a de reaverem ou entrarem na posse os pacientes dopatrimônio da associação civil, que o impetrante entende não dissolvida,acompanho o voto do Sr. Ministro Relator, considerando, com S. Exa., que ohabeas corpus não é o meio cabível na hipótese, pelo que indefiro o pedido.

O Sr. Ministro Goulart de Oliveira: Senhor Presidente, reconhecida, comos fundamentos dados pelo Sr. Ministro Relator, a competência do SupremoTribunal para conhecimento da hipótese, e como a questão do direito de ir e virsurge apenas para disfarçar a questão principal, que é o asseguramento dofuncionamento da sociedade civil, acompanho o voto de S. Exa.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Sr. Presidente, o eminente Sr. MinistroRelator dedicou a primeira parte do seu erudito voto à explanação de uma teseinteressante, a de se saber se, no caso, cabe competência ao Supremo TribunalFederal para examinar a legalidade do ato do Sr. Ministro da Justiça. S. Exa.desenvolve curiosa análise do delicado problema, que se deve deslocar do planodo direito judiciário para o constitucional. O juiz da ação é o da execução, mas, nocaso, sobre não se tratar, propriamente, de “processo de execução”, faz-se mister

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não retirar ao Supremo Tribunal a competência de examinar a ilegalidade ou ainconstitucionalidade de ato do presidente da República. Se o aresto forte no qualo Exmo. Sr. Ministro da Justiça praticou os atos contra que se irrimina oimpetrante deriva de uma justiça autônoma, certo é que não desvelam conteúdoespecificamente eleitoral, e a aplicação dos princípios processuais rematariaem cercear atribuição de alta relevância deste Supremo Tribunal.

A Justiça Eleitoral é autônoma; suas decisões são, em tese, irrecorríveis. Airrecorribilidade é a regra; a recorribilidade, a exceção, de modo que, ainda poresse particular, devia competir a execução de seus julgados àquela justiça. Mas oeminente Sr. Ministro Relator demonstrou que a aplicação pontual desse princípioconduziria à mutilação do poder do Supremo Tribunal e derivou, então, para oplano constitucional o problema da competência. A meu ver, a conclusão foi feliz.É preciso saber o reflexo desses atos, e a conclusão do julgado tem conteúdopuramente eleitoral. Se não tem, como não teve, no caso, essa regra é inaplicável,sob pena de subverter o próprio sistema constitucional da hierarquia dos Poderes.Firmada a competência do Supremo Tribunal, convém saber se o caso comportao remédio do habeas corpus.

Por uma tradição ancianíssima em nosso Direito, o habeas corpus foiquase sempre considerado como medida tutelar do direito de ir e vir, da liberdadede locomoção. A liberdade de ir e vir, a liberdade física, a liberdade de locomoçãoencontrou nesse remédio presentâneo seu principal paládio, sua tutela maisenérgica e eficaz. Essa tradição passou do Império para a República. AConstituição de 1891 o conceituou, porém, em termos incircunscritos — o writ daliberdade se daria sempre que ocorresse ilegalidade ou abuso de poder. O textoera amplíssimo.

O Sr. Ministro Castro Nunes (Relator): Não falou em liberdade delocomoção.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Exatamente. Pois, ainda assim, oconceito tradicional resistiu, e a generalidade dos termos do preceitoconstitucional sofreu o encurtamento derivado da índole do habeas corpus.Juízes e juristas eminentes, como João Barbalho, Lúcio Mendonça, Murtinho,sempre entenderam que esse remedius iuris destinava-se a proteger apenas aliberdade de ir e vir, a liberdade de locomoção. Mas, trabalhando pela palavraapostólica de Rui Barbosa e, no Supremo Tribunal, entre outros, pela eloqüênciade Pedro Lessa, o habeas corpus, entre nós, tomou proporções amplas,dilargando-se, consideravelmente, a sua irradiação. E essas proporções de talsorte se ampliaram, que, se não me engano, Carlos Maximiliano, insuspeito depretender amesquinhar o writ da liberdade, falou em desmoralização da medida,usada com amplitude além da marca.

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Ministro Castro Nunes

A reforma Artur Bernardes voltou à limitação tradicional, e o mesmoocorre nas Constituições de 1934 e 1937 e, agora, na atual. Todas elas se referemà liberdade de locomoção, puramente. É exato que essa liberdade de ir e viraparece às vezes, como condição do uso de todas as outras. Sem ela não secompreenderia o exercício de nenhuma outra, mas o habeas corpus não podeser mais, como foi, na Constituição de 1891, o writ incircunscrito da liberdade, eentendida como direito de praticar tudo aquilo que a lei não veda, no conceitofamoso de Montesquieu; porque a esse entendimento se opõe a letra da lei e,mais do que isso, a sistemática do nosso Direito. Tanto assim que o encurtamentodo remédio constitucional não provocou, como observa, creio, o Sr. EspínolaFilho, a reação dos liberais. É que, àquele tempo, não havia remédio outro, paraproteção de outras liberdades, para assegurar, de pronto, a prevalência de direitocerto, líquido e incontestável. Inexistia o mandado de segurança, não sereconhecia, às vezes, a possibilidade do remédio possessório contra atos daAdministração.

E, já agora, não é necessário dar ao habeas corpus o grandeamento quetinha outrora. E, situando-o como tutela do direito de ir e vir, não se sacrificam,dada a confluência de outros remédios, outros direitos e liberdades.

No caso dos autos, o impetrante, em nome do Sr. Senador Luis CarlosPrestes e dos Srs. Deputados Maurício Grabois e João Amazonas, pede habeascorpus para que eles possam entrar e sair na sede do seu Partido, cuja atividadepolítica o E. Tribunal Superior Eleitoral acaba de impedir. Entende o impetranteque esse direito não lhes pode ser cerceado, porque, a par do órgão político,existia a sociedade civil, com deveres e direitos, obrigações, compromissos,irremediavelmente comprometidos, se o Governo persistir na sua atitude, que elecaracteriza como constrangimento ilegal. Mas a argüida ilegalidade ouinconstitucionalidade pode encontrar correto apoio em habeas corpus? Aresposta negativa impõe-se irresistivelmente. Se a liberdade de locomoção éreclamada não por si mesma, senão para o logro de outros direitos que sepretende exercer, de ordem patrimonial e correlatos, não cabe o habeas corpus.Já o ensinava, em seu prestantíssimo livro sobre o mandado de segurança nossoeminente colega Sr. Ministro Castro Nunes. Não pode o habeas corpus tomar oespaço destinado ao mandado de segurança.

É o caso dos autos, sem tirar nem pôr. O que se quer é que os pacientespossam entrar e permanecer livremente na sede do seu Partido, de inscriçãocancelada pelo Tribunal Superior Eleitoral, tirando-se ao alvo não de resguardar aliberdade de ir e vir, senão de exercer direitos de outra ordem e de caráterpatrimonial.

A pretensão não se pode conter nos encerros do habeas corpus, pelo quetambém indefiro o pedido.

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O Sr. Ministro Annibal Freire: Sr. Presidente, indefiro o pedido, nos termosdo voto do Sr. Ministro Relator.

O Sr. Ministro Barros Barreto: Sr. Presidente, o habeas corpus é meiomanifestamente inidôneo para a finalidade visada pelos requerentes. Issodemonstrou o Sr. Ministro Relator. Indefiro o pedido.

O Sr. Ministro Laudo de Camargo: Reconhecendo a competência doSupremo Tribunal, indefiro o pedido, porque não se trata da liberdade pura esimplesmente de usar do direito de locomoção, mas, e principalmente, doexercício de certas atribuições na direção de uma sociedade.

DECISÃO

Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram a ordem,unanimemente.

Impedidos, os Ministros Ribeiro da Costa e Lafayette de Andrada.

RECURSO EM HABEAS CORPUS 30.256 — PR

VOTO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Não posso aderir ao voto do eminente Sr.Ministro Relator, concedendo imunidades parlamentares aos membros dasCâmaras municipais. E procurarei, em rápida síntese, dar as razões que melevam a esse entendimento discrepante.

Não desconheço que a solução se apresenta hoje mais complexa do queoutrora, quando o Supremo Tribunal declarava, pelo acórdão de 28 de abril de 1915,que os vereadores e os prefeitos municipais não gozavam daquelas imunidades. Eessa dificuldade maior provém do fato de existir na Constituição do Paranádispositivo expresso — e é nele que se baseia o impetrante — estendendo aosvereadores as mesmas imunidades conferidas aos deputados estaduais.

Por outro lado, o município passou a figurar, a partir da Constituição de 16de julho de 1934, no plano das relações entre a União e as entidades inferiores doregime. Não oculto essa circunstância, que, se não tem alcance decisivo para aconclusão a que vou chegar, é, todavia, de relevo no exame da questão.

A primeira Constituição republicana não ignorava o município. Delecogitava no art. 68, prescrevendo que os estados se organizariam de modo a lhesassegurar autonomia no tocante aos assuntos do seu peculiar interesse. Não ia

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além disso. Era a autonomia assegurada apenas em princípio, dependendo aextensão deste do que estatuíssem as constituições e as leis estaduais. Teriam, écerto, os estados que lhes atribuir alguma ou algumas fontes de receitas, mas porcessão ou delegação, ao passo que hoje os municípios têm fontes de receita quelhes são próprias, inconfundíveis com a competência tributária do estado.

Igualmente quanto à orgânica: nenhuma regra havia no texto federal;podiam os estados adotar o sistema dos prefeitos de nomeação (aliás, placitadopelo Supremo Tribunal Federal até certa época) e até cumular na presidência daCâmara municipal a função executiva, seguindo, de resto, a tradição que nosviera do Império e consoante as práticas do municipalismo em outros países.Hoje, porém, as duas funções, a deliberante e a executiva, estão separadas emórgãos próprios e eletivos, a Câmara e o prefeito, sendo essa a regra prescrita notexto fundamental.

Vê-se assim que a Constituição Federal mudou de certo modo a posiçãodo município no regímen: com eles tratou no mesmo plano em que figuram osestados para lhes assegurar garantias orgânicas e financeiras de autonomia queantes não tinham, pelo menos por cláusulas expressas.

Tais disposições terão obedecido ao pensamento de estimular a vida localnessas circunscrições periféricas e remediar a penúria financeira em que algunsestados deixavam as municipalidades, praticamente sem meios para odesenvolvimento de suas atribuições, ficando assim comprometida a autonomiapressuposta na Carta Federal.

Daí resultou, entretanto, certa deformação do regímen federativo, quesupõe a vida de relação circunscrita às províncias e à União. É entre esta eaquelas que se estabelece o arranjo federativo.

Nos Estados Unidos, como na Argentina, o município não é ignorado dosistema; mas figura como assunto doméstico das circunscrições federadas. É aestas, e não à União, que compete traçar os moldes da organização e asseguraros meios necessários ao governo dos municípios.

Tudo isso, como disse, dificulta a solução do problema que ora seapresenta, em termos constitucionais que não são os mesmos de outrora; aindaporque no caso presente é o próprio estado do Paraná, em sua funçãoconstituinte, que outorga aos vereadores a prerrogativa excepcional dasimunidades, daí decorrendo que, para afastar esse texto, será necessário conferi-locom a Constituição Federal.

Não se contesta e jamais se contestou que os deputados estaduais gozamde imunidade. A eles se estende a inviolabilidade assegurada aos congressistasfederais.

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É certo que a Constituição não lhes estende por cláusula expressa talprerrogativa.

Limita-se, como em tantos outros assuntos extensíveis por igual àscircunscrições federais, a conferir o privilégio aos deputados e aos senadores daNação.

Já assim era o tempo da Constituição de 91. Só o Ato Adicional, diga-se depassagem, expressava a inviolabilidade dos deputados provinciais, o que revela,ainda por esse traço, o avanço que representou na época aspiração federalista,coartada pela reação centralizadora que se lhe seguiu.

Compreende-se, entretanto, a extensão das imunidades aos deputadosestaduais, tendo em atenção os princípios em que assenta a estruturaçãofederativa e alguns textos da lei básica que levam a essa inferência necessária.

Nos Estados simples ou unitários as circunscrições inferiores podem gozarde certa autonomia, tão certo é que tais Estados podem ser descentralizados.Sobretudo as comunas costumam ser autônomas.

Mas não exercem, e muito menos as províncias, os departamentos ou osdistritos, as atribuições conferidas por direito próprio, senão em virtude dedelegações consentidas pelo Centro.

O Estado Federal é muito diverso: é um misto de Estado e de Federação;a Federação é o vínculo associativo de entidades que é forçoso pressupor, senãohistórica mas pelo menos teoricamente, preexistente ao arranjo federativo. Porisso é que os alemães designam pela locução Bundstaatt o Estado Federal,palavra formada de Bund, Federação, e Staat, Estado, correspondendo comexatidão ao composto, que é o Estado Federal.

Existem assim no arranjo federativo um Estado maior, e soberano, eestados menores, que não são soberanos, mas politicamente autônomos.

Quando, há cerca de trinta anos, me ocupei desses assuntos em livro entãopublicado (Do Estado Federado, 1920), examinei as teorias alemãs sobre aestruturação do Estado Federal, caracterizado pela participação dos estados-membros na formação da vontade soberana da Nação e, se não na substância,pelo menos no exercício dessa soberania.

A distinção é nebulosa ou sutil. Os autores modernos não se apegam muitoa esse traço teórico que só encontra correspondência nos fatos quando se tratade uma federação histórica, e tal era o caso do antigo Império Alemão, dosEstados Unidos, da Suíça e, de certo modo, também da República Argentina.

Mas é incontestável que a descentralização operada federativamente nãose confunde com a descentralização dos Estados simples ou unitários. O critério

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da distinção não é quantitativo, mas qualitativo. Se a Nação consente em sua leiinstitucional que as províncias ou domínios se organizem por si no plano dospoderes fundamentais do Estado, tais circunscrições deixam de ser merasprovíncias ou departamentos, ainda que dependentes do Centro em certa medida;passam à categoria de Estado na ordem interna e até mesmo, excepcionalmente,na comunhão internacional.

Relevem-me os eminentes colegas essa digressão, talvez desnecessária,porque a nossa Constituição, ela mesma, assenta naquele traço teórico de umapartilha ou repartição de competências, traço que melhor se aviva no abandonoaos estados dos poderes remanescentes, que atestam uma competênciaresiduária suficientemente expressiva de uma anterioridade pressuposta aomenos politicamente.

Participando do exercício da soberania dos Poderes da Nação, a estasubstituem os estados, digamos assim, nas matérias não reservadas à União.

A competência legislativa, vale dizer, as matérias sobre as quais não legislaa União, são dos estados por direito próprio, seja em virtude da partilhaconstitucional, seja por efeito dos poderes remanescentes. Igualmente no tocanteà jurisdição, onde melhor se aviva esse traço. O Poder Judiciário é, em princípio,nacional; mas em sua maior parte pertence aos estados, que o exercem porórgãos próprios.

Os estados dispõem do poder constituinte, ainda que sob algumaslimitações expressas, poder constituinte que é o melhor traço da autonomiapolítica. E o exercem estabelecendo obrigatoriamente, sob sanção interventorial,os três Poderes em que assenta a organização federal e nos mesmos termos emque se lhes prefigura o jogo no mecanismo da União, isto é, independentes eharmônicos entre si.

A Constituição alude às assembléias legislativas quando dispõe sobre a suacomposição, etc. Essas assembléias são, à evidência, o Poder Legislativo doEstado, Poder que, para se mover com independência em face dos outros dois,precisa gozar das garantias de inviolabilidade e irresponsabilidade penal dos seusmembros componentes. Eis por que se estendem e sempre se estenderam aoscongressistas dos estados as imunidades asseguradas pela Constituição aosfederais.

Existe assim base na própria Constituição para essa extensão por força decompreensão. Não bastaria a simples alegação de analogia sob argumentoespecioso de que as Câmaras municipais também legislam, nos assuntos daórbita do município. Legislam, é certo, mas nem por isso exercem PoderLegislativo, no sentido constitucional.

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Para a Constituição o poder legislativo compete ao Parlamento. Osestados exercem-no também, como disse, porque pressuposta no plano estaduala tríade dos Poderes do mecanismo federal.

Vem aqui a propósito a conhecida distinção entre leis formais e leismateriais. Materialmente, todas as deliberações tomadas por disposição geral eque tenham força coativa são leis. Entram assim na qualificação de leismateriais até o regulamento e seus desenvolvimentos secundários, as portarias eas instruções. Entram na mesma qualificação as convenções coletivas dotrabalho e outras preceituações consentidas a certas associações investidas defunções de poder público.

É desse ponto de vista que se pode dizer que os municípios legislam, o queapenas significa que exercem funções legislativas ou paralegislativas.

Observa com razão Mornoco e Souza: “A linguagem vulgar dá o nome delei a todo ato emanado de certo órgão político, que se denomina legislativo; masisso constitui uma falsa terminologia, consagrada pelo uso, e devida à confusãodo ponto de vista formal e do ponto de vista material” (Direito Político, p. 395).

Lei, na exposição doutrinária da matéria, é somente a que emana dosParlamentos; titulares, que são, do Poder Legislativo. É esse o conceito orgânicoou formal. Aos olhos da Constituição é por esse critério que se há de medir opoder legiferante na órbita federal e, por compreensão, na estadual.

Sempre se reservou para as chamadas leis municipais uma designaçãoapropriada, resoluções ou posturas, denominações tradicionais que vieram domunicípio colonial, foram mantidas no Império e chegaram consagradas pelo usoaté à República.

No velho município colonial era também usado o termo vereações, de queveio a denominação vereador e que provinha de verear — “governar, reger aterra, pondo nela vereamento, e boa polícia, bom regímen”.

Diziam as Ordenações Affonsinas: “As posturas e vereações que assimforem feitas (...) o Corregedor non lh’os desfaça (...).

O termo “vereação” caiu em desuso. As Câmaras municipais do Impériodesempenhavam suas funções mediante deliberações e posturas. A estasaludia expressamente o Código Criminal do Império. Do mesmo modo o CódigoPenal de 90, ainda que indiretamente, quando deixava aos estados a definição dascontravenções de polícia não previstas, o que lhes permitia delegar às Câmarasmunicipais a atribuição.

Também na França e em outros países europeus, inclusive a Bélgica, cujasinstituições comunais são gabadas como padrão de vitalidade, não se atribui aosConselhos municipais função legislativa, senão função deliberante; suasdeterminações de caráter geral denominam-se deliberations, regiments,

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ordonnances, correspondendo esta última locução ao nosso termo ordenanças,só usado hoje no direito disciplinar das forças militares, e à palavra posturas,que, aliás, entre nós, sempre teve sentido mais amplo, porquanto de índole nãosomente policial, senão também econômica, constituindo em sua maior parte,informa Cortines Laxe, a chamada “legislação municipal” (Regimento dasCâmaras Municipais, p. 162).

É sabido que na Inglaterra como nos Estados Unidos a palavra statute éempregada para indicar o direito escrito, estatutário, legal, em contraposição acommon law, que é o direito costumeiro.

Pois nem statute, nem a expressão mais genérica law é empregada paradesignar a função normativa das municipalidades.

Estas expedem ordinances ou, mais comumente, by-laws, que indicam leisde vizinhança, leis domésticas, normas de um poder legislativo subordinado — asubordinate law making power — frisando o mais autorizado expositor dasinstituições municipais norte-americanas que by-laws se distingue das leis gerais dopaís ou das leis do Estado a que pertence a municipalidade — “in distinction fromthe general law of the country or the statute law of the particular State”(Dillon, Municipal Corporations, II, § 570).

Não se contesta que toda função deliberante exercida por disposição gerale de caráter público ou coativo é, por analogia, função de caráter legislativo,admitindo-se correntemente, e por comodidade de linguagem, a palavra leis paradesignar o exercício de tais atribuições. Mas não creio possa bastar a analogia dafunção deliberante municipal com a função legislativa federal e estadual para quese admita a extensão das imunidades parlamentares aos legisladores municipais.Jamais se pretendeu tanto. Nem no Império nem na República. Nem noestrangeiro, ao que me consta; e aliás nada encontrei em qualquer sentido nosexpositores que consultei, quer europeus, quer americanos, particularmente estesnas obras de Stimson, Dealey, Wilson, consagrados ao estudo do DireitoConstitucional dos Estados e igualmente na de Dillon, sobre a organização e ofuncionamento das municipalidades americanas.

As imunidades constituem um privilégio que não pode ser entendido sembase segura na Constituição Federal.

As imunidades parlamentares consistem na inviolabilidade da pessoa e naresponsabilidade. Manifestam em relação a certas pessoas a ação policial doEstado e a ação repressiva da Justiça. Limitam o Poder Executivo, que não podeprender (salvo flagrância); obstam a aplicação das leis penais paralisando a açãodo Judiciário, que não poderá processar e julgar, salvo se nisso consentir aassembléia a que pertença o indiciado.

Tão considerável é essa prerrogativa que, em sendo embora da função, setraduz numa desigualdade de tratamento em favor de dados cidadãos, que não

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rareiam expositores que a condenam mesmo em se tratando de membros doPoder Legislativo da Nação e entre esses estava o nosso Barbalho.

Os estados estão obrigados a guardar a forma republicana, uma de cujascaracterísticas é a responsabilidade; e bem assim o princípio da independência dosPoderes, cuja ação não pode ser limitada sem apoio na lei fundamental do país.

Se o governador não pode mandar prender um vereador comprometido naprática de um crime, limitado está o Executivo na ação policial; se o juiz não podereceber a denúncia, limitado está o Poder Judiciário, posto na dependência doassentimento da Câmara municipal para o processamento do indiciado.

O jogo dos poderes é governado por freios e contrapesos, um dos quaisserá a imunidade assegurada aos legisladores.

Ora, não está ao alcance dos estados — e foi esse um dos pontosexaminados no caso do Rio Grande e possivelmente em outros —, não está aoalcance do estado adotar no funcionamento dos poderes restrições além dasprevistas no texto federal para o mecanismo dos poderes da União.

Na exemplificação dos freios e contrapesos, figuram precipuamente oveto do Executivo, a declaração da inconstitucionalidade das leis pelo Judiciário,o impeachment. Não são únicos. Será lícito acrescentar a prerrogativa daimunidade, que visa assegurar a independência do Legislativo em face dos outrosdois Poderes.

Que fez o estado do Paraná estendendo a imunidade aos vereadores?

Criou para os seus Poderes Executivo e Judiciário uma situação dedependência em face das Câmaras municipais. São estas que limitam a ação dosdois Poderes estaduais.

A extensão da imunidade esgota-se, como já vimos, na órbita estadual.Não alcança a órbita municipal. Não se estendem aos vereadores as imunidadesinerentes ao exercício do Poder Legislativo, que é titulado, em cada estado, nasua Assembléia Legislativa. Daí decorre que somente esta, e não quaisqueroutras assembléias deliberantes, tem o poder de coartar a ação dos outros doisPoderes.

Traduzindo o que está na Constituição, o que se pode dizer é que o PoderExecutivo e o Poder Judiciário estão limitados na sua ação pelas imunidades deque gozam os membros do Legislativo estadual. Não podem estar limitados pelasCâmaras municipais; nem pode estar na vontade do estado, mesmo em funçãoconstituinte, estabelecer tal limitação.

A inovação paranaense compromete o jogo dos poderes do estado,limitando a ação do Executivo e do Judiciário pelo historicamente chamado poder

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municipal. Porque, na verdade, as imunidades atribuídas aos vereadoresimportam em manifestar o estado na sua ação policial e penal.

Ora, os Poderes estaduais são independentes e harmônicos entre si. Entre sié que estão limitados pelo sistema de freios e contrapesos que governam os seusmovimentos. O Executivo reage contra os excessos do Legislativos pelo veto; oLegislativo contra o Executivo pelo impechament; o particular contra o Legislativo,nas ofensas à Constituição, pela declaração judicial da inconstitucionalidade dasleis. De modo que os três Poderes se limitam mediante esses expedientesconsentidos pela Constituição.

São contatos, penetrações, limitações que se esgotam nesse mecanismoou no funcionamento dos três Poderes em que assenta a organização política doestado.

As imunidades dos deputados estaduais entram no quadro dessaslimitações, sobrestando na ação dos Poderes Executivo e Judiciário a bem daindependência do Legislativo.

Que fez a Constituição do Paraná?

Criou para o Judiciário e para Executivo uma limitação que vai além dojogo dos três Poderes, que nada tem a ver com a independência da AssembléiaLegislativa do estado. Com efeito, não é esta que se preserva com a outorga deimunidades aos vereadores e sim as Câmaras municipais, que não são PoderLegislativo, e muito menos Poder Legislativo do estado.

Vale dizer que os Poderes Executivo e Judiciário ficam freados pelasCâmaras municipais e não somente pela Assembléia Legislativa do estado, comoserá curial.

A admitir-se tal exorbitância, teríamos o estado limitado pela autonomiamunicipal do mecanismo, no funcionamento, na independência dos seus poderesfundamentais. Além do privilégio da irresponsabilidade e da inviolabilidadeconferido a cidadãos que não são membros do Poder Legislativo do estado,únicos que podem gozar da prerrogativa excepcional.

Estendê-las a outros cidadãos seria uma demasia, jamais admitida entrenós, recusa aplaudida pelos mais eminentes teoristas do regime, como CarlosMaximiliano e Pontes de Miranda, não cogitada sequer em outros países — tãocerto é que a regra fundamental da responsabilidade de cada um pelos atos quepraticar não pode comportar exceções ampliáveis por analogia, transformando-seem manto de impunidade para alguns milhares de cidadãos, que estariam acoberto de qualquer repressão nos mil e muitos municípios deste grande País.

Eis por que não posso acompanhar o voto do eminente relator.

Nego provimento.

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Memória Jurisprudencial

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, o pedido de vista por mimformulado teve o mérito de provocar, do eminente Sr. Ministro HahnemannGuimarães, o voto verdadeiramente brilhante que acaba de proferir.

S. Exa. examinou aspectos ainda não abordados em seu voto anterior etrouxe nova contribuição, sempre proveitosa, ao exame da magna questão oraem debate.

Declarei no meu voto — e repito, com a maior sinceridade — que é comgrande pesar que me aventuro a divergir do eminente colega, de quem tenhorecebido sempre lições.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): V. Exa. é meu mestreconsagrado.

O Sr. Ministro Castro Nunes: E quase sempre, em muitos casos,mantemo-nos de pleno acordo, o que me dá uma grande segurança nos votos emque encontro essa convergência.

O voto agora proferido pelo eminente Sr. Ministro Hahnemann Guimarãesaborda aspectos vários, que mostram o quanto é complexa e interessante aquestão. Eu não poderei responder a todos os pontos, inclusive e principalmente,talvez, àquele em que S. Exa. aludiu ao desenvolvimento histórico das instituiçõesmunicipais entre nós.

Tive ocasião de escrever sobre esta matéria e sustentei, baseado nahistória das nossas instituições, que o elemento característico de nossa evoluçãopolítica, no sentido da federação, não foi o município, foi a província. Foi em tornodas províncias que se desenvolveu o federalismo entre nós. Já nos alvores danacionalidade, em 1831, na Assembléia Constituinte, surgia o projeto que a tantospareceu subversivo, da Monarquia Federativa; ainda não havia a idéia políticaevoluído até à República, mas já tinha evoluído até à federação. O Ato Adicionaldeu vitalidade à província. E, por isso mesmo, pareceu a muitos estadistas doImpério que ele era hostil ao elemento municipal. Veio, depois, o Manifesto de1870, que é o marco característico da Federação. E sabemos que, no Manifestode 70, começava-se declarando que, ainda antes da idéia republicana, havia queatender, no Brasil, à idéia federativa, em torno das províncias. De modo que aprovíncia foi o elemento fundamental, constante, em toda a nossa evoluçãopolítica.

A Constituição do Império já assegurava a autonomia dos municípios. Acláusula da Constituição do Império dava às cidades e vilas o governo econômicoe municipal; duas expressões, governo e municipal, enérgicas e expressivas da

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autonomia no seu sentido histórico-político. Pois bem, não obstante isso, como seoperou, durante cinqüenta anos de reinado, a prática das instituições municipais?Sem dúvida ficou assegurada a autonomia das Câmaras municipais, quevicejaram no Império. Mas sem os exageros que estão surgindo agora.

Veio a República e continuou assegurando a autonomia do município emtudo que lhe dissesse respeito. Houve grandes controvérsias sobre a formaçãodo Executivo municipal, a questão dos prefeitos nomeados, que, mesmoadmitidos, não suprimiram as instituições municipais.

Comecei salientando, no meu voto, como dizia há pouco em aparte, pordever de lealdade para com os colegas — que a questão que ora se apresenta émais complexa do que a de outrora. Reconheço que hoje, e a partir de 34, comgrande acentuação em 37, a idéia municipal evoluiu.

O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Evoluiu, sem se atribuir o mando políticoàs Câmaras municipais; quer-se dar relevo à vida municipal, em si, mas sematribuir função de ordem política.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Exatamente. A idéia municipal evoluiu edeixei escrito no meu voto — e não sem alguma razão —, no sentido de estimulara vida local. É uma descentralização de caráter administrativo e não política. Nomunicípio colonial — e o eminente Sr. Ministro Relator o trouxe como exemplo ecomo base de sua argumentação no seu brilhante voto escrito —, como nascomunas européias, a significação política seria maior, porque o Estado erafechado, não tinha válvulas de escapamento. O Estado era absolutista; o regimeconstitucional do tempo não fornecia respiradouros à liberdade política; a únicaválvula era a comuna — a comuna livre. O município colonial era, pois, em taisregimes, o único respiradouro dos cidadãos.

Mas o município no Estado moderno não tem esse mesmo sentido. Atransformação do Estado, a estruturação do Estado em novas bases teria detrazer uma concepção diferente das instituições municipais.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): E se fez no sentido deregresso à sua autonomia, como se fez nos Estados Unidos. Estes, que não têm anossa tradição municipal, estão tendendo para a autonomia municipal, donde aregra à disciplina autônoma do município.

O Sr. Ministro Castro Nunes: O self-governement está na base dasinstituições americanas.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Eles, que não tinhamessa autonomia, tendem para ela; nós, que tivemos, devemos regressar a ela.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Eles sempre a tiveram.

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O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Nos Estados Unidosprevalece o estado. O estado prepondera na Federação americana; entre nós, atendência é para a preponderância do município.

O Sr. Ministro Castro Nunes: Nos Estados Unidos, a história dasinstituições municipais oferece argumentos num ou noutro sentido, neste ounaquele. Posso buscar argumentos excelentes na prática da Constituiçãoamericana. E V. Exa. também pode encontrá-los ótimos. As municipalidadesamericanas têm sofrido restrições imensas, como lhes têm sido conferidasfranquias considerabilíssimas. Em alguns estados já se conferiu às Câmarasmunicipais poder constituinte, o poder de se organizarem por si,independentemente de lei do estado — franquia que se não generalizou e osmaiores expositores criticam. Por outro lado, o manager plan, o administradormunicipal com poderes amplos ganhou adeptos e teve também o seu momento.

Não se ignora, aliás, que o traço mais acentuado na história das instituiçõesmunicipais na América do Norte é a intromissão freqüente das Assembléiasestaduais na administração das municipalidades. Os Estados Unidos oferecem,pois, solução para todos os paladares.

Mas, Sr. Presidente, dizia eu que o município colonial, o município histórico,o município antigo tinha maior feição política, porque o Estado não comportavamaior participação eletiva do cidadão na vida pública.

Mas, no Estado moderno, fundado na representação, no sufrágio universal,com a divisão dos poderes, a independência do Poder Judiciário, o habeascorpus, o mandado de segurança, a liberdade de imprensa — todas essasgarantias dispensam a válvula de segurança que era o município antigo, quandonão havia nada disso.

É por isso que a índole política, a feição política, o alcance político domunicípio foi diminuindo.

O nobre Sr. Ministro Relator salientou que não se trata de conferir umprivilégio às Câmaras municipais, estendendo-lhes as imunidades, porque esseprivilégio é inerente à função legislativa, onde quer que ela seja exercida, e sejaqual for a assembléia legiferante. Esse é o argumento que não posso aceitar,porque envolve uma extensão por analogia.

Procurei mostrar que o município não está para o estado como o estadoestá para a União. Os estados dispõem dos três poderes; a Constituiçãopressupõe, no mecanismo político do estado, os três poderes, que hão de existirem funcionamento na órbita estadual. Os municípios nem sequer têm os trêspoderes; a trilogia é essencial, porque é inerente ao princípio. O municípiocolonial tinha o Poder Judiciário, os juízes almotacés, que procediam à cobrança

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das coimas e puniam os infratores das posturas; constituíam uma participação dopoder judicante que o município moderno não tem. Têm os municípios atuaiscâmaras legiferantes, eletivas, representativas, mas não se pode dizer queexerçam o poder legislativo no sentido da Constituição, que o supõe correlatocom os outros dois nos dois planos em que se prefigura essa tríade essencial aoconceito e significação do princípio dos poderes.

As Câmaras legislam, em certo sentido, exercem uma função que se podedizer legislativa na linguagem corrente, tão certo é que lei, no sentido material, étoda norma coativa, seja qual for a entidade pública de que provenha. Mas opoder legislativo é do estado, é este que o exerce por sua Assembléia.Legisladores são, desse ponto de vista, os deputados estaduais; são eles queorganizam os municípios; é a Assembléia estadual o poder constituinte, mesmoem função ordinária, das municipalidades. Lei, no duplo sentido, material eformal, só existe em cada estado se emanada da Assembléia estadual.

A imunidade, privilégio máximo da inviolabilidade da pessoa, não pode serconcedida senão com base inequívoca na lei fundamental da Nação. Asimunidades dos legisladores estaduais estão pressupostas e decorrem daestruturação federativa. As dos vereadores não. Nem podem os estadosconcedê-las sem conferir um privilégio sem assento no texto federal.

São as considerações que me permito acrescentar às que trouxera escritas.E o faço em atenção ao voto do meu eminente colega Sr. Ministro HahnemannGuimarães, de quem sinto divergir.

EXPLICAÇÃO

O Sr. Ministro Castro Nunes: Sr. Presidente, o Sr. Ministro AnnibalFreire salientou que as municipalidades constituem um poder político; aseleições são políticas, baseadas na mesma lei. Ainda agora, a lei que cassou osmandatos estendeu-se, também, aos vereadores. É certo. Mas, data venia domeu eminente colega, isso não prova o caráter político da autonomia municipalno mesmo plano político dos estados e da União. Essas é que são as entidadespropriamente políticas do regime, dotadas do poder de comando, do poderconstituinte, do poder político em esfera mais ampla do que o conferido àsmunicipalidades. O que se pode dizer das Câmaras municipais é que sãoassembléias representativas como as Câmaras federais e as Assembléiasestaduais, traço representativo comum que não bastará para daí se inferir nosentido de uma equalização ou equiparação perfeita.

A palavra “política”, no direito público, comporta graus, é empregada oraem sentido restrito ou próprio, ora em sentido genérico, amplo.

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Memória Jurisprudencial

Nada mais político do que este Tribunal, que é o poder moderador doregime. Nada mais político do que a declaração de inconstitucionalidade das leis,função política, por excelência, em que o Poder Judiciário, não apenas esteTribunal, em que o Poder Judiciário mede os poderes do Congresso em face daConstituição. Nada mais político do que as Cortes de Contas, que constituem umórgão posto de permeio entre o Executivo e o Legislativo, para controlar aaplicação do orçamento, das leis de meios, fiscalizando o Executivo, na aplicaçãodessas leis. Desse ponto de vista, ou em certo sentido, são políticas as funçõesdas Câmaras municipais. Falamos, freqüentemente, em política tributária, empolítica financeira, em política econômica, em política dos portos.

Toda função pública eletiva e representativa é, de certo modo, política. Édesse ponto de vista que se pode dizer que as Câmaras municipais dãocorporações políticas. São pessoas de direito público instituídas para fins degoverno, o que basta para lhes conferir feição política, que se lhes não contesta.Mas nem por isso — e nisso está a minha divergência — serão políticas nomesmo plano da União e dos estados.

Page 443: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF · 2008. 4. 8. · de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram simplesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar

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Ministro Castro Nunes

ÍNDICE NUMÉRICO

AR 78 (voto) Rel.: Min. Barros Barreto...................289

Rp 93 (voto) Rel.: Min. Annibal Freire....................291

Rp 94 Rel.: Min. Castro Nunes.....................295

Rp 96 (voto) Rel.: Min. Goulart de Oliveira..............315

Rp 97 (voto) Rel.: Min. Edgard Costa.....................326

AR 112 Rel.: Min. Castro Nunes.....................333

MS 695 Rel.: Min. Castro Nunes.....................336

MS 699 (voto) Rel.: Min. Philadelpho Azevedo...........340

MS 748 Rel. Min. Castro Nunes.....................343

CJ 1.378 Rel.: Min. Castro Nunes.....................354

ACi 7.282 Rel.: Min. Castro Nunes.....................363

ACi 7.377-Matéria constitucional Rel.: Min. Castro Nunes.....................366

ACi 7.377 Rel.: Min. Castro Nunes.....................377

ACi 7.601 Rel.: Min. Castro Nunes.....................381

ACi 7.881 Rel.: Min. Castro Nunes.....................392

ACi 7.881-ED Rel.: Min. Castro Nunes.....................393

ACi 8.190 (voto) Rel.: Min. Laudo de Camargo.............399

ACi 8.311 Rel.: Min. Castro Nunes.....................401

ACi 8.606 Rel.: Min. Castro Nunes.....................405

Agravo de Petição 9.800 (voto) Rel.: Min. Laudo de Camargo.............412

Agravo de Petição 9.800-ED (voto) Rel.: Min. Laudo de Camargo.............413

RHC 28.840 (voto) Rel.: Min. Bento de Faria....................416

HC 29.002 (voto) Rel.: Min. Annibal Freire....................417

HC 29.763 Rel.: Min. Castro Nunes....................419

RHC 30.256 (voto) Rel.: Min. Hahnemann Guimarães.......432