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Why have I sought my path with fervent care, if not to hope to bring my brothers there? GOETHE, Fausto. Preâmbulo: Por que Mário de Andrade viu no Bumba não só “a mais exemplar” como também “a mais estranha” das danças dramáticas? Mário de Andrade encharcou de folclore a cultura brasileira e emerge hoje como uma incon- tornável esfinge no percurso dos estudos das artes e das culturas populares. Seu estilo direto, permea- do de arroubos expressivos, quase confessionais, dá-nos a imediata e perturbadora ilusão de com- partilharmos com ele uma dimensão íntima de sub- jetividade. 1 Conforme a leitura se estende, começa- mos inadvertidamente a tratá-lo com a familiarida- de de um conviva diário: Mário. Ao mesmo tempo, sua presença ideológica difusa e muito ativa marca o cenário de debates contemporâneos. Diversos te- mas, como é, muito especialmente, o caso do Bumba-meu-boi, emergem como que impregnados de Mário de Andrade. 2 Sua presença insinuou-se com força cada vez maior ao longo de minha pesquisa sobre o Boi- Bumbá de Parintins (AM) que, iniciada em 1996, foi alargando horizontes, incluindo reflexões não só sobre a brincadeira do boi no Brasil, como também sobre a própria leitura e utilização antropológica contemporânea dos estudos de folclore. 3 Surpreen- deu-me, sobretudo, a forma ambivalente pela qual a forte influência de Mário de Andrade se impôs. Em seu texto “As danças dramáticas do Brasil” (1982), escrito entre 1934 e 1944, Mário de Andrade tratou de conceituar essas danças, destacando o CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA: as danças dramáticas de Mário de Andrade Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Artigo recebido em novembro/2002 Aprovado em setembro/2003 RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004

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Why have I sought my path with ferventcare, if not to hope to bring my brothers there?

GOETHE, Fausto.

Preâmbulo: Por que Mário de Andradeviu no Bumba não só “a mais exemplar”como também “a mais estranha” dasdanças dramáticas?

Mário de Andrade encharcou de folclore acultura brasileira e emerge hoje como uma incon-tornável esfinge no percurso dos estudos das artese das culturas populares. Seu estilo direto, permea-do de arroubos expressivos, quase confessionais,dá-nos a imediata e perturbadora ilusão de com-partilharmos com ele uma dimensão íntima de sub-

jetividade.1 Conforme a leitura se estende, começa-mos inadvertidamente a tratá-lo com a familiarida-de de um conviva diário: Mário. Ao mesmo tempo,sua presença ideológica difusa e muito ativa marcao cenário de debates contemporâneos. Diversos te-mas, como é, muito especialmente, o caso doBumba-meu-boi, emergem como que impregnadosde Mário de Andrade.2

Sua presença insinuou-se com força cada vezmaior ao longo de minha pesquisa sobre o Boi-Bumbá de Parintins (AM) que, iniciada em 1996, foialargando horizontes, incluindo reflexões não sósobre a brincadeira do boi no Brasil, como tambémsobre a própria leitura e utilização antropológicacontemporânea dos estudos de folclore.3 Surpreen-deu-me, sobretudo, a forma ambivalente pela quala forte influência de Mário de Andrade se impôs.

Em seu texto “As danças dramáticas do Brasil”(1982), escrito entre 1934 e 1944, Mário de Andradetratou de conceituar essas danças, destacando o

CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA:as danças dramáticasde Mário de Andrade

Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Artigo recebido em novembro/2002Aprovado em setembro/2003

RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004

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bumba-meu-boi como “a mais exemplar” e, tam-bém, como “a mais complexa, estranha, original detodas as nossas danças dramáticas”. Entretanto, naconclusão de seu périplo de estudos, nosso autorvaticinou, em feroz desalento, um triste destino paraas danças que tanto o fascinaram: “Da maneiracomo as coisas vão indo, a sentença é de morte”.

A vitalidade contemporânea da brincadeirado boi e de diversos folguedos populares contra-diz, por si só e para nossa felicidade, esse orácu-lo. Assim é que, considerada sob seu ângulo maisconcreto, como taxativa afirmação sobre o devirda cultura popular, a douta sentença se esvanece.Está certo que, sob o ângulo ideológico, a própriavitalidade atual dos folguedos populares poderiafalar justamente do sucesso póstumo do combatede Mário de Andrade em prol da originalidade cul-tural do país. Entretanto, quando considerado sobessa perspectiva, o decreto de morte parece trazerconsigo fortes conotações subjetivas, acentuandoa nostalgia romântica, tão característica no tratodas coisas populares, com a amargura e as decep-ções do autor com os rumos da política cultural deentão. Ainda assim, ao longo de seu estudo dasdanças dramáticas, inquietações intelectuais insti-gantes, percepções conceituais sensíveis e argutasmantêm o calor de brasas vivas. Sob esse ângulomais analítico, Mário de Andrade insiste em ressur-gir das cinzas de sua assertiva fatal.4

Em um primeiro texto sobre o Bumbá de Pa-rintins (Cavalcanti, 2000), sugerindo uma perspecti-va estrutural, associei as transformações e as expan-sões do festival nas últimas décadas, responsáveispor sua singularidade amazônica, a uma matriz desentido articulada em torno do tema da morte e res-surreição do boi.5 Em que pese a distância teóricaexistente entre a noção de mito evolucionista comque Mário de Andrade operava e a noção antropo-lógica contemporânea,6 na idéia de uma “matriz desentido” ressoa a concepção andradiana de um “nú-cleo” de sentido “mítico” a ordenar, por vezes, oagregado compósito das danças dramáticas. Alémdisso, a definição formal de Mário de Andrade paraessas danças – uma seqüência dançada de cenasdramáticas, livremente articuladas a partir de umconjunto de personagens alusivos ao motivo central– permanece sucinta e eficaz para o entendimentodo arcabouço formal dos espetáculos do Bumbá.

O assunto clamou por aprofundamento. Nãohaveria alguma relação mais interna entre o de-creto de morte e a própria conceituação das dan-ças dramáticas? Afinal, seria possível, ao mesmotempo, recusar o vaticínio e manter aspectos daformulação conceitual? Como dar conta de minhaprópria ambivalência em relação ao autor? Comoentender a idéia da “exemplaridade” cultural e na-cionalizante do Bumba-meu-boi assumida tãoacriticamente por tantos pesquisadores do assun-to? Este texto é o resultado dessa busca.

Mário de Andrade e os estudos de folclore

O interesse expressivo e etnográfico de Má-rio de Andrade pelo folclore, bem como sua bus-ca, via folclore, do acesso a uma arte e culturaque, sendo “modernas”, seriam também, a um sótempo, “nacionais” e “universais” estão bem esta-belecidos na bibliografia sobre o autor (Lopez,1972; Mello e Souza, 1979; Moraes, 1978, 1992;Travassos, 1997).

Já em 1946, Florestan Fernandes assinalava aimportância da abordagem do folclórico na obrade Mário de Andrade:

É preciso não esquecer que o folclore domina – eaté certo ponto marca profundamente – sua ativi-dade polimórfica de poeta, contista, romancista,crítico e ensaísta; e constitui também o seu campopredileto de pesquisas e estudos especializados.Por isso, quando se pretende analisar a sua contri-buição ao folclore brasileiro, deve-se distinguir oque fez como literato do que realizou, digamos àsua revelia, como folclorista (1989, p. 150).

Em suas análises sobre o Modernismo, Mo-raes considerou Mário de Andrade o representan-te de uma “via de pesquisa, no sentido quase uni-versitário da palavra” (1978, p. 93), demonstrando,com particular clareza, o lugar estratégico ocupa-do pela categoria “folclore” na proposta de nacio-nalismo cultural do autor.

Ora, a associação do folclore a uma “via depesquisa” indica a apreensão, por parte de Máriode Andrade, de uma originalidade e autonomia

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nos fatos populares que não permitem sua simplesredução à pura (ainda que sempre sofisticada) ins-trumentalização, seja ela ideológica ou artística.Tratava-se, entretanto, de um folclorista à revelia,num sem-querer querendo, ardentemente. Os sen-timentos de Mário de Andrade com relação à pes-quisa folclórica que indubitavelmente praticoueram, sem dúvida, contraditórios.

Em sua viagem ao nordeste, quando chegoua Natal (RN), em 15 de dezembro de 1928, semconseguir “dormir de felicidade” e anotando cor-reções importantes a serem feitas em seu Ensaiosobre música brasileira (1972 [1928]), Mário deAndrade defende-se do ímpeto estudioso confes-so. Ironiza a aspiração dos estudos de folclore aoestatuto de ciência, e reconhece-se sobretudo um“coletor” a “fornecer documentação pra músico”(1976, pp. 231-232). Entretanto, como corroboraTravassos (2002), em meio a seus muitos propó-sitos, com suas reflexões, pesquisas e coletas, Má-rio de Andrade colaborou decisivamente para odesenvolvimento dos estudos de folclore no país.7

Sua pesquisa folclórica está certamente per-meada de juízos de valor, pois Mário de Andradeprojetou sobre o folclore interesses instrumentais efortemente ideológicos. Porém, as descobertas doBrasil,8 que tanto o comoveram ou chatearam, alar-dearam em alto e bom som assuntos que alargaramhorizontes de conhecimento e de sociabilidade: ca-topês, cateretês, cabocolinhos, Chico Antônio, NauCatarineta... Tanta gente, tanta festa, tanto artistasem saber de ser: “Êh coisas de minha terra, passa-dos e formas de agora/Êh ritmos de síncopa e chei-ros lentos de sertão/Varando contracorrente o matoimpenetrável do meu ser...”.9

No solo híbrido de suas pesquisas, insinuam-setambém vozes próprias e distintas da sua – vozes “dopovo” – captadas pelo ângulo mais universalista ehumanista de sua aproximação. Por tudo isso, Máriode Andrade ergue-se como um dos expoentes deuma área de estudos que se define não apenas pelointeresse intelectual pelos fatos estudados, mas tam-bém, muito especialmente, por uma peculiar atitudeexistencial. De seus primórdios até nossos dias, osestudos de folclore trazem embutida a notável capa-cidade de provocar entusiasmo, e mesmo encanta-mento. Mesmo quando fortemente acadêmico, o in-

teresse pelo “folclore” traz consigo sempre um quêde desejo de libertação social, do prazer de transporos limites de uma sociabilidade de classe, e de expe-rimentar com isso o universal, uma humanidade emcomum vivida junto com a gente do povo.10 Assim,não é apenas por buscar e produzir conhecimentosobre o povo, mas também por comover-se comesse tipo de contato humano que Mário de Andradepode ser considerado um folclorista.

Esse encantamento, baseado na empatia, nacapacidade de transpor-se para o lugar do outro eperceber, desse modo ficcional, o mundo sob novoângulo, está presente em toda a tradição etnográfi-ca decisiva para a constituição da perspectiva antro-pológica (Stocking, 1989; Zengotita, 1989; Duarte,2003). Quando o assunto é folclore, o envolvimen-to de Mário de Andrade na tradição filosófica ro-mântica é evidente. O folclore é, na arquitetura desua obra, um canal privilegiado de religação comum mundo que aspira à totalidade.11

Aspiração sempre acompanhada de doloro-sa e irremediável nostalgia: a totalidade almejadaestá perdida, ou a ponto de perder-se inexoravel-mente, no mundo moderno.12 Os estudos de fol-clore são certamente, como já sugeriu Gonçalves,um dos lugares privilegiados de construção e demanifestação da “retórica da perda”. Retórica que,como assinalou o autor, repousa sobre forte ten-são: expulsa-se da totalidade construída imagina-riamente – o “folclore brasileiro”, por exemplo –qualquer princípio de conflito, incoerência oufragmentação. Isso posto, toda inconsistência ouproblema surge nos quadros do pensamento soba falsa aparência de um ataque externo (Gonçal-ves, 1997, p. 24).

Abordando a dimensão etnográfica e artísti-ca na obra de Mário de Andrade, Travassos obser-vou também a presença de tensão de outra natu-reza, cunhada como “paradoxo do primitivismo”.Essa noção sintetizaria a atitude intelectual, carac-terística de certos movimentos artísticos do sécu-lo XX que equacionaram a relação entre o “eu ci-vilizado” e o “outro primitivo” por meio de umjogo de ausência e presença de qualidades cultu-rais. Segundo a autora, Mário de Andrade estaria“entre os melhores representantes do paradoxo,para os brasileiros” (1997, p. 7).13

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De fato, Mário de Andrade propôs e experi-mentou o encontro com a cultura popular de modofortemente ambivalente. Numa variação do evolu-cionismo, a cultura popular apresenta-se em suaobra como valorização do primitivo, num confron-to entre identidade e alteridade por meio de gru-pos humanos distintos. Acrescenta-se ainda, bemao gosto romântico, a idéia de que a força nutrizda originalidade cultural brasileira está nas criaçõesartísticas populares (Cavalcanti et al., 1992). O fol-clore é considerado, então, uma espécie de muira-quitã nacional, o amuleto da boa sorte sempreameaçado pelo risco da perda. Pois, se é verdadeque as qualidades perdidas e procuradas pelo “eu-artista-civilizado” se encontram no “outro-povo-pri-mitivo”, esse encontro tão almejado, ao se realizar,produz sobretudo um terrível aguçamento do sen-timento de perda. As qualidades observadas nopovo vêem-se imediatamente mais ameaçadas doque nunca por tudo o que representa aquele mes-mo que as reencontra e valoriza, desejoso de trans-pô-las para si. A construção do terceiro termo re-sultante desse encontro, uma nova arte brasileiracomo queria Mário de Andrade, traz consigo omal-estar de uma fissura que não se aquieta nemcom as mais ardentes descobertas da sensibilidadee do talento expressivo da gente do povo. A liga-dura é incapaz de ser retida e parece sempre no-vamente prestes a se romper: “da maneira como ascoisas vão indo a sentença é de morte!”.

Mário de Andrade e o Bumba-meu-boi

Em ensaio magistral sobre o romance Macu-naíma, Mello e Souza falou de sua tentativa deanalisar “o grande dilaceramento que se projetaem todos os níveis da narrativa” (1979, p. 56); do“conhecimento da fissura profunda que fere todosos setores da reflexão de Mário de Andrade [...]”(Idem, p. 60); e do debate sobre a identidade bra-sileira que “nunca mais abandonará a reflexãoatormentada do escritor” (Idem, p. 63). Segundo aautora, embora fraturado entre tensões e contra-dições, o pensamento de Mário de Andrade temcaráter unitário. Também Sandroni, ao comentar apoligrafia de Mário de Andrade, enfatiza a unida-

de da obra. O célebre alexandrino “eu sou trezen-tos, sou trezentos e cinqüenta”, nos lembra esseautor, não exclui ou contradiz seu complementomenos conhecido – “Mas um dia afinal eu topareicomigo” (1988, p. 12). Vale a pena lembrar, comAnatol Rosenfeld (1973), os belos versos que se-guem, concluindo a última estrofe desse poema:“Tenhamos paciência, andorinhas curtas/Só o es-quecimento é que condensa/E então minha almaservirá de abrigo”.14

Ora, a etimologia da palavra poligrafia indi-ca sentidos recobertos. É não só a “obra de assun-tos diversos”, e a “qualidade de escrever de diver-sas maneiras”, ou ainda “cifradamente”, comotambém a “arte de decifrar esse tipo de escrita”(Houaiss, 2001). Todos poligrafamos quando pes-quisamos Mário de Andrade. Sua obra apresenta-se como um vasto sistema fragmentário, em quenos enredamos na busca de laços e nexos de sen-tido, atendendo certamente a apelos do autor.15

Ora, entre os muitos níveis pelos quais opensamento de Mário de Andrade se desloca, háelementos decisivos e recorrentes a estabelecereminterconexões de sentido: o “bumba-meu-boi” énitidamente um deles. Moraes (1978, 1992) anali-sou o encadeamento de significados propiciadopela categoria folclore na complexa arquitetura donacionalismo cultural andradiano. Lopez (1972,2002) chamou atenção para a posição especialocupada pelo bumba-meu-boi nesse contexto eexaminou a presença do boi como símbolo napoesia de Mário de Andrade. Mello e Souza(1979), por sua vez, defendeu exemplarmente opapel de modelo de composição e criação artísti-cas ocupado pelo bumba-meu-boi na própria cria-ção literária do modernismo andradiano.16

José Guilherme Merquior, resenhando o li-vro de Mello e Souza – “grande pequeno estudo”(1981, p. 267) – acentuou o pessimismo da leitu-ra proposta baseado na iluminação da articulaçãodos dois eixos sintagmáticos condutores da narra-tiva de Macunaíma: não se trata só do herói queperde e recobra seu amuleto mágico, mas tam-bém, e sobretudo, do anti-herói que termina, fi-nalmente, perdendo seu amuleto por conta deuma escolha funesta. “Em última análise, a rapsó-dia andradiana é um romance arturiano que levou

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uma tremenda injeção de ambivalência”, nos dizMerquior (Idem, p. 265).

A resenha ilumina, entretanto, outro aspectofundamental da interpretação de Mello e Souzaque vale ressaltar: a importância da forma estéticana solução da busca nacionalista de nosso autor.17

Haveria aqui, um “otimismo da forma”: o modelocompositivo do romance é o da música popular,que é também o das formas européias da suíte eda variação. A positividade nacionalista do projetode Mário de Andrade – “nacionalismo de modula-ção”, de qualidade estética “excepcionalmente in-clusiva” (Idem, p. 266) – repousaria, então, na so-lução formal da expressão, e não na leitura ufanistado conteúdo do romance, de um pessimismo pró-ximo ao trágico como demonstrou Mello e Souza.Em Macunaíma, nos diz Merquior, na composiçãodo personagem como anti-herói, “malazarte amo-ral sem grei nem lei”, como na ópera, o melos de-glutiria o ethos, revelando uma sociedade inverte-brada “não uma sociedade sem classes, mas umasociedade ainda sem dinâmica de classes, que co-meçava a viver a modernização ‘sofrendo-a’ emvez de assumi-la”(Idem, p. 268).18

Volto ao nosso ponto, lembrando que o mo-delo da composição narrativa de Macunaíma nãoé simplesmente uma melodia mas, mais exata-mente, um bailado popular: a “dança dramática”do bumba-meu-boi. Mello e Souza sugeriu a exis-tência de afinidades estruturais entre o romanceMacunaíma e “o bailado popular que melhor re-presentava a nacionalidade” e demonstrou commaestria o anti-heroísmo de Macunaíma. Se assimo é, vale a pena problematizar também o ufanis-mo residual que permanece implícito nessa visãodo folguedo do boi. Afinal, Mário de Andrade viuo bumba não só como a mais “exemplar”, mastambém a mais “estranha” das danças.

Com esse propósito, examino as formulaçõesconceituais contidas em “As danças dramáticas doBrasil”. A apreensão da complexidade de valores,dos impasses conceituais e da riqueza de percep-ções embutida na noção de danças dramáticas tal-vez possa contribuir para relativizar aspectos im-portantes da compreensão contemporânea dobumba-meu-boi. Talvez possa contribuir tambémpara a integração desse aspecto da reflexão de Má-rio de Andrade às análises do conjunto de sua obra.

As danças dramáticas do Brasil

Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço! [...]Dança do berço: Sim e Não

Dança do berço: Não e Sim19

Os textos e algum contexto

Os estudos de Mário de Andrade sobre ofolclore brasileiro situam-se num entrecruzamen-to de diferentes motivações. Neles se entrelaçamseu desejo de conhecimento de formas artísticase expressivas próprias (ou seja, “populares”, di-versas daquelas praticadas e vividas pela elite ar-tística brasileira ou paulistana da época); a expe-rimentação amadorística da idéia de etnografiacomo experiência de contato direto com a gentedo povo; a busca de processos criativos popula-res para utilização expressiva na composição desua própria arte; e, finalmente, a utilização ideo-lógica da idéia de folclore na busca de um novonacionalismo cultural. Seus escritos sobre o as-sunto sobrepõem essas distintas camadas de inte-resse, imbricadas umas na outras sempre demodo especialmente tenso.

A publicação póstuma dos três tomos das“Danças dramáticas do Brasil” (doravante DDB)foi cuidadosamente organizada por Oneida Alva-renga (1982). O farto material coletado, acrescidode muitas notas e comentários, é precedido peloensaio do mesmo nome (doravante DD) que cons-titui aqui a referência de nossas indagações. Pelaamplitude do impulso sistematizador e conceitual,esse texto ocupa lugar importante na caracteriza-ção de Mário de Andrade como um estudioso dofolclore brasileiro. O corpo do texto, datado de1934, sofreu revisões e significativos acréscimosaté a publicação, em 1944, no VI Boletim Latino-Americano de Música, sendo essa a versão publi-cada na coletânea sobre o tema. Alvarenga (1982,p. 21) assinala o fato de ser esse o único trabalhodo autor sobre os bailados populares a apresentaruma “forma positivamente definitiva”. O textoacompanhou, portanto, a vida do autor por umperíodo de dez anos. O longo período de elabo-ração e o fato de tê-lo publicado em vida o tor-

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nam especialmente revelador da trajetória de estu-dos do autor.

Em sua origem, como indica Telê Porto Lo-pez (1972), a primeira versão das DD, escrita em1934, corresponderia à expressão do amadureci-mento do interesse pelo “folclore em si”. A reda-ção de Macunaíma (primeiro esboço em1926/1927 e publicação em meados de 1928), naesteira dos poemas do Clã do Jaboti (1926), é vis-ta pela autora como o início de uma fase em queo desejo do estudioso foi ganhando forma maisdefinida.20 Esse mesmo desejo teria movido asviagens ao Norte e ao Nordeste que, realizadasentre 1927 e 1929, foram postumamente publica-das em “O turista aprendiz” (Andrade, 1976). Oinício da redação das DD imbricar-se-ia, assim,com o impulso criativo que, iniciado em 1926, de-saguaria também no aproveitamento literário daexperiência das viagens.

Vale a pena examinar de mais perto a relaçãoexistente entre o material que compõe essas duasobras póstumas – “As danças dramáticas do Brasil”e “O turista aprendiz”. Este último livro, organiza-do por Telê Porto Ancona Lopez, reúne sob o mes-mo título dois projetos distintos embora interliga-dos de Mário de Andrade. Como assinala apesquisadora (Andrade, 1976, p. 89), o primeiroprojeto foi batizado com esse nome pelo próprioautor. Em seu “mais advertência que prefácio”(Idem, p. 49), o autor nos esclarece que esses tex-tos, escritos em cadernos e papéis soltos durante aviagem ao Norte do país, realizada entre 7 de maioe 15 de agosto de 1927, foram reunidos em 1943,visando à publicação. A pesquisadora, por sua vez,nos lembra que a época de decorrência não é, nes-se caso, a mesma da redação, pois o escritor já ma-duro teria reescrito, em 1942, a experiência de1927 (Idem, p. 39). Apesar do “cheiro de modernis-mo envelhecido” que o conjunto lhe trazia, Máriode Andrade almejava publicar essas memórias deum antiviajante “viajando sempre machucado, alar-mado, incompleto, sempre inventando malquistodo ambiente estranho que percorre”.

Porém, se viajar lhe trazia um forte senti-mento de desajuste e inadaptação, era tambémexperiência de contato e mesmo de revelações.Ao reler suas antigas notas, “sensações tão próxi-

mas e intensas” teriam obrigado nosso autor apreservá-las. “Paciência...” – nos diz ele – acres-cendo reticências irônicas a seu legado. Conhece-mos assim sua primeira viagem por meio de umelaboradíssimo diário, cheio de desabafos e de ti-radas literárias lapidadas por uma sensibilidadebrincalhona e irônica, mesmo quando triste. Má-rio de Andrade quer falar de si, estabelecendouma subjetividade que sofre e sente. Expressá-laé um prazer estético quase masoquista:

Não fui feito pra viajar, bolas! Estou sorrindo, maspor dentro de mim vai um arrependimento as-sombrado, cor de incesto. Entro na cabina, agoraé tarde, já parti, nem posso me arrepender. Umvazio compacto dentro de mim. Sento em mim”(Idem, p. 51).

Lopez qualifica esse primeiro relato como“discurso propriamente literário, artisticamentetrabalhado”(Idem, p. 39).

A pesquisadora observa, entretanto, já nesseprimeiro diário a presença do interesse pelas“danças dramáticas”. Há o caso nítido da cirandacom o episódio da morte e ressurreição do Ca-rão,21 encontrada por feliz acaso e apressadamen-te registrada em 12 de junho (Idem, p. 97) no AltoSolimões, igarapé a dentro, num lugarejo chama-do Caiçara. No retorno de Mário de Andrade a SãoPaulo, essa mesma ciranda seria objeto da primei-ra crônica (8/12/1927) do novo crítico do DiárioNacional.22 Essa crônica revela, de modo muitocaracterístico, o entrelaçamento do gosto do autorpela descrição etnográfica com a busca estéticainteressada cheia de juízos valorativos e permitealgumas valiosas observações. Antes de maisnada, a expressão “dança dramática” está ausen-te. A ciranda é aqui apenas uma “festa popular”,um “reisado” sem muita vitalidade dramática, cujoenredo era “vago e sem continuidade” (Idem, pp.335-336), ou, mais ainda, “uma barafunda”, nãopossuindo o “nexo e a legitimidade dramática doBoi-Bumbá”. A observação revela, com todas asletras, a preferência de Mário de Andrade pelofolguedo do Boi como já plenamente estabeleci-da em 1927.

Assim é que, apesar de enxergar no episódioda morte e ressurreição do Carão, a parte mais

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viva da festa, Mário de Andrade achou tudo mui-to sem graça:

Afinal essa trapalhada dramática não passa dumabrincadeira de crianças a que gente adulta maisprimitiva deu uma função interessada mais carac-terística e perceptível, macaqueando o amor, a re-ligião, a caça e os animais tabus. Nem a dançavale nada, monótona, sem originalidade, primiti-va, muito parecida com as danças indígenas queMartius e Léry descreveram. O que vale mesmo éa música (Idem, p. 336 ).23

A série de 1928-1929 responde a uma outraconcepção de viagem, visivelmente comprometi-da com um relato mais objetivo de fatos. Comonos diz Lopez (Idem, p. 41): “trata-se do diáriocom o imediato endereço jornalístico”. Mário deAndrade viajava, então, como correspondente doDiário Nacional, tendo planejado coletas e estu-dos em estreito contato com Camara Cascudo.24 Otexto é uma coletânea das setenta crônicas que,escritas durante a sua permanência no Nordeste,entre 27 de novembro de 1928 e 5 de fevereiro de1929, foram publicadas no Diário Nacional, nasérie “O turista aprendiz”, entre 14 de dezembrode 1928 e 29 de março de 1929.

A relação entre esse segundo “diário” e asDD é especialmente orgânica. Grande parte dadocumentação relativa a melodias, coreografias eartes relatadas nessas crônicas compõe a coletapublicada nos três tomos de “As Danças dramáti-cas do Brasil”.25 Segundo Lopez, o retorno dessasegunda viagem teria inaugurado intensos estu-dos, visando a compreender as danças registradas.Mário de Andrade teria se dedicado, com o afincocaracterístico, ao estudo da tríade de antropólogosevolucionistas (Tylor, Frazer e Lévy-Bruhl).26 Emmeio a esse projeto de estudos, inicia-se a redaçãodo texto (DD) que nos interessa especialmente.

O Instituto de Estudos Brasileiros – IEB daUSP, guardião do arquivo Mário de Andrade, dis-põe das versões anteriores àquela publicada. Aversão publicada por Oneida Alvarenga nos servi-rá de referência básica, muito embora a conside-ração do conjunto das versões permita precisar eesclarecer pontos relevantes.27

O argumento e a direção geral do texto es-

tão já claramente definidos desde a primeira ver-são do texto. Essa versão, datada de 1934, com-põe-se de 27 páginas e termina no trecho corres-pondente ao da penúltima página da versãopublicada, com a palavra “Rio Grande do Norte”(Andrade, 1982, p. 69). Segue-se a esse final dati-lografado a seguinte anotação feita a lápis peloautor: “decadência atual das danças dramáticas”.O tema da decadência seria desenvolvido entãona “segunda versão” do texto, datada do mesmoano. Com acréscimos que pouco alteraram seuconteúdo, esse trecho corresponde ao longo e úl-timo parágrafo da versão publicada (1944). A ter-ceira versão, datada ainda de 1934, corresponde àdatilografia das revisões empreendidas pelo autorna versão anterior. O processo de confecção dotexto interrompe-se e, aparentemente, será reto-mado apenas dez anos mais tarde, em 1944, coma revisão dessa terceira versão e, finalmente, com aredação e a revisão da quarta versão que corres-ponde ao texto publicado.

A idéia da degradação das danças está, portan-to, presente desde o momento inicial do texto, inte-grando a abordagem do assunto. Ela se torna, ape-nas, mais desesperançada entre a versão finalizadaem 1934 (Andrade, 1934b) e aquelas de 1944.28 A se-qüência de revisões opera basicamente por acrésci-mos interpostos ao longo de um texto cujo eixocentral está definido desde o começo. Esse procedi-mento (acréscimos de notas, de bibliografia, e so-bretudo de trechos inéditos ou já redigidos para ou-tros propósitos) torna a composição do texto finalcuriosamente semelhante ao próprio processo decomposição das danças dramáticas tal como descri-to por Mário de Andrade: inchado de elementos querecheiam o argumento central num intrigante pro-cesso de “justaposição discricionária”.

O texto

Certamente, Mário de Andrade era um auto-didata nos assuntos de folclore e antropologia. Épreciso ter em mente sua relativa exterioridade doiniciante mundo acadêmico das ciências sociaisque, entre as décadas de 1930 e 1940, desenhava-se com frouxas fronteiras em São Paulo (Peixoto,

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2002). Entretanto, mesmo considerando a ambiva-lência de Mário de Andrade para com o seu afãestudioso, o texto das DD pertence inequivoca-mente a esse homem de estudo que, a seu mododoído, ele também foi.

Nesse texto, quem fala, de certo modo ávidoem posicionar-se como tal, é o Mário pesquisadoralçando vôo ambicioso. Alguns rompantes expres-sivos emergem aqui e ali. Ele não resiste a noscontar que foi sua “curiosidade apaixonada pelascoisas do povo” (Andrade, 1982, p. 43) que o con-duziu, em 1927 no Alto Solimões, a uma Ciranda.Por sinal, presenciada apenas parcialmente, por-que “sua paixão folclórica” já o fizera atrasar a par-tida do navio que aguardava no porto. Diversasformulações aparecem despretensiosamente comode suas “sensações” (Idem, p. 30, por exemplo).Entretanto, a abundância de citações bibliográfi-cas, a utilização reflexiva de sua experiência deobservação e registro das danças, o amplo desen-volvimento das notas e o desejo de sistematizaçãode informações reunidas “por toda a documenta-ção que conheço” (Idem, p. 46), estabelecem a li-nha dominante do texto, marcado também pelainquieta busca de sentidos primordiais.

O artista evidentemente lá está, fascinadopela dimensão expressiva das danças. Porém issonão lhe basta, e o estudioso é, também, fortemen-te atraído pela necessidade de lhes dar coerênciaconceitual, e de entender-lhes a origem. A expres-são “danças dramáticas” foi cunhada, justamente,com o intuito de revelar a unidade subjacente a fa-tos culturais até então chamados por diferentes no-mes. Muito da dificuldade do texto resulta do en-trecruzamento desses diversos veios de indagação.

No ponto de partida do investimento reflexi-vo está o interesse fundamental de Mário de An-drade pela música. As danças dramáticas são,como nos diz a primeira frase do texto, “uma dasmanifestações mais características da música po-pular brasileira” e, mais do que isso, um pontoem que o povo teria evolucionado bem “sobre asraças que nos originaram e as outras formaçõesnacionais da América” (Idem, p. 23). Mário de An-drade enxerga nessas danças uma solução brasi-leira e original (“bem evolucionada”) de culturapopular: há aí dinamismo e criação. Ponto decisi-

vo se lembrarmos de sua idéia acerca da precarie-dade brasileira de tradições próprias (Moraes,1978; Travassos, 1997).

Porém há mais. A música o conduz, é certo.Entretanto, a associação entre música, dança edrama encontrada nessas formas populares pare-ce sugerir solução a um dos problemas críticos dabusca estética de Mário de Andrade, o da integra-ção entre arte e vida. Na dança companheira damúsica, há expressão artística realizada numa for-ma plena de vida.29 Diante dessa percepção, seadotarmos um ângulo de leitura já bastante enfa-tizado por diversos estudiosos, essas danças se-riam, digamos, arte com imediata “funcionalidadesocial”; e com isso insinuam-se os já bem conhe-cidos desdobramentos ideológicos que conferemà idéia mesma de folclore uma clara expressãonacionalista. Há, entretanto, um outro ângulopossível em que se destaca a percepção pura (istoé não instrumental ou ideológica) de uma outraestética.30 Nesse folclore, o corpo humano, ex-pressando-se por inteiro e coletivamente, é elemesmo o veículo de formas artísticas.31 A integri-dade dessa forma de expressão comovia Mário deAndrade.

O último relato do segundo diário do “Turis-ta aprendiz”, feito na Paraíba (5/2/1929, às 23 ho-ras),32 bem demonstra o tipo de emoção suscita-do por esses bailados em nosso autor:

Não tem cantigas e só de longe em longe umafala, tão esquematizada, tão pura que atinge o cú-mulo da força emotiva. Imaginem só: fazia já maisde uma hora que o pessoal estava dançando,dançando sem parada, com fúria. Matroá é umadas figuras importantes do baile. É o “caboclo ve-lho”, de-certo, espécie de pajé da figuração tribalda dança. De-repente Matroá principiou uma co-reografia de arquejo, brutal, braço esquerdo en-gruvinhado, com o arco por debaixo, duas mãosno peito, segurando a vida. Cada vez mais. Cur-vando, curvando, já levantava os pés custoso. Oapito bateu duas feitas, parou tudo. O Reis faloupra Piramingu, “Caboclo menino”:– Piramingu!– Sinhô.– Mataram nosso Matroá.Tururu, tarára, tururu, tarára…” a solfa continuou.O bailado se moveu de novo e Matroá foi enro-

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lando uma perna na outra, já não levanta pé dochão mais não, levou uns 10 minutos se moven-do em pé, difícil de morrer como em todos osteatros e na vida.Isso é que é perfeição! Fiquei tonto. Aquelas pa-lavras puras, só aquilo. Fiquei com dó, não seicomo fiquei, fiquei tonto, está certo, numa como-ção danada.Matroá levou um tombo e principiou se estorcen-do. Então os bugres de mentira principiaram umafiguração nova, circulando em torno do moribun-do e acabando com a vida dele, frechando-o. Ma-troá se defendia, também frechando pra um ladoe pra outro. De-repente se levantou, vivinho. Adança da morte acabara e Matroá dançava comotodos vivo feito eu e vós (Andrade, 1976, p. 320).

Mário de Andrade buscava no folclore for-mas expressivas capazes de provocar identifica-ção e emoções genuínas. Buscava a beleza resul-tante disso.33 Não é outra, me parece, a razão desua impaciência, e mesmo do desânimo com amonotonia ou a falta de jeito de certas apresenta-ções de bailados que embasam, por vezes, o sen-timento de “decadência” dessas formas. Nosso au-tor impacienta-se com a “falha” (Leiris, 2002),parte integrante da graça antropológica, e não ex-clusivamente estética ou expressiva, de rituaisque dependem fortemente da destreza e do talen-to de seus agentes.

O Conceito

Junto com essa busca artística, está o empe-nho estudioso em conceituar, com a noção de dan-ças dramáticas, a natureza de fatos culturais disper-sos e entretanto aparentados. Nessa conceituação, omovimento do pensamento de Mário de Andradeassemelha-se, ele mesmo, a um bailado dramático –ora comovido, ora hesitante, ora lúcido e tenso, efinalmente trágico. Dada a complexidade da argu-mentação, desdobrei a procura de unidade concei-tual em três planos entremeados no texto: forma es-tética, conteúdo temático e origem comum.a) Forma estética

A definição formal enfatizou a presença dadança companheira da música e da dramatizaçãode um tema nesse tipo de fato cultural. O enfo-

que a comandar o olhar é o do músico, pois es-ses bailados “obedecendo a um tema dado tradi-cional, respeitam o princípio formal da suíte, i.e.obra musical constituída pela seriação de váriaspeças coreográficas” (Andrade, 1982, p. 71, n. 1).A ele, soma-se contudo o gosto pelo dramático,em especial pela teatralidade dialogada.34 Em par-ticular, a forma rapsódica de composição, comuma todas as danças, revelar-se-ia especialmente ní-tida no Bumba-meu-boi. A idéia de suíte, que in-dica composições musicais de natureza tambémcoreográfica, alarga-se na conceituação de Máriode Andrade, abrangendo a dimensão dramatizadado folguedo.

A tensão entre uma visão mais integrada eoutra mais fragmentária das danças dramáticas,que se desdobrará ao longo de todo o texto, sefaz imediatamente presente.

A visão mais integrada emerge sub-repticia-mente em uma das definições mais utilizadas poroutros pesquisadores:

[...] as danças dramáticas se dividem em duas par-tes bem distintas: o cortejo, caracterizado coreogra-ficamente por peças que permitem a locomoçãodos dançadores, em geral chamadas de “cantigas”;e a parte propriamente dramática, em geral chama-da de “embaixada” caracterizada pela representa-ção mais ou menos coreográfica dum entrecho, eexigindo arena fixa, sala, tablado, pátio, frente decasa ou igreja (Idem, p. 57, grifo meu).35

Um trecho da primeira versão da redação dasDD, depois retirado, permite perceber claramentea valorização da unidade intelectual e estética pro-piciada pela idéia de um “entrecho dramático”:

Tive ocasião de assistir a um Boi Bumbá – nomeamazônico do BMB, na cidadinha de Humaitá noMadeira. Colhi mesmo dela várias cantigas. Erauma peça admirávelmente unida, em que todosos episódios se juntavam ao núcleo de morte eressurreição do boi, sempre em referencia comele. Era legitimamente o Reisado do Bumba-meu-boi a que apenas tinham se ajuntado episódiosdesenvolvidos do próprio assunto. É o que se átambém ainda com as cheganças, com os congos,em que por enquanto os episódios esporádicosainda são ajuntados de maneira a constituir umtodo harmonioso, mais ou menos, como foi a for-

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mação da Odisséia, quer ela tenha como autorHomero ou o tempo (1934a, p. 19).

Entretanto, ao mesmo tempo, a visão maisfragmentária também se apresenta. Pois, a dançadramática do bumba-meu-boi não seria, nos diz oautor logo a seguir na versão publicada das DD:

[...] um todo unitário em que se desenvolve umaidéia, um tema só. O tamanho dela, bem comoseu significado ideológico, independe do assuntobásico. No geral, o assunto dá ensejo a um episó-dio só, rápido, dramaticamente conciso. E essenúcleo básico é então recheado de temas apostosa ele; romances e outras quaisquer peças tradicio-nais mesmo de uso anual se grudam nele; textose mesmo outros núcleos de outras danças seajuntam a ele. Às vezes mesmo estas aposiçõesnão têm ligação nenhuma com o núcleo (Andra-de, 1982, pp. 53-54, grifo meu).

A unidade formal das danças dramáticas os-cila então entre uma definição integradora, quepostula a existência de um núcleo temático bási-co a comandar as agregações por aposição, e umavisão fragmentária, em que os temas agregadosnão teriam mesmo nenhuma ligação com o su-posto núcleo. Apesar da aparente contemporanei-dade dessas duas maneiras de existência dessasdanças, a visão fragmentária associa-se à presen-ça das deletérias influências urbanas e aos malesda civilização. Mário de Andrade hesita contudotodo tempo entre essas duas visões, e a brechaaberta para a fragmentação desordenada, por suavez associada à perda do caráter sintético e dra-mático do “núcleo básico”, terá importantes con-seqüências na solução do texto.

b) Conteúdo temáticoA unidade do motivo simbólico remete ao

assunto do fato cultural em questão, a princípioacolhido e exposto na representação do “entre-cho” ou do “núcleo básico” acima mencionados.Porém, acabamos de ver como o autor nos dissetambém que o tamanho e o significado ideológi-co do bailado do Bumba-meu-boi “independemdo assunto básico”. O desenvolvimento do argu-mento opera com essa imprecisão.

As danças dramáticas abarcariam Pastoris,Cheganças e Reisados.36 Na distinção estabelecidaentre este último e os dois primeiros, há uma níti-da hierarquia de ancestralidade cultural. De ime-diato, o tema da “morte e ressurreição da entida-de principal do bailado” destaca-se, ocorrendo “noBumba-meu-boi, nos Cabocolinhos, nos Cordõesde Bichos amazônicos, ainda nos Congos, nos Cu-cumbis e nos Reisados [...]” (Idem, p. 25). Reisa-dos, então, é o termo escolhido para englobartoda essa classe de danças que tematizam “sempreo assunto de imemorial significação mágica emque se dá morte e ressurreição do bicho ou plan-ta” (Idem, p. 39). Já nos Pastoris e Cheganças,

[...] danças dramáticas de origem proximamenteibérica [...], há somente o elemento fundamental dequalquer drama [...] isto é a luta de um bem contraum mal, que os bailados coletivos, e por isto infen-sos aos sentimentos individualistas (principalmenteamoroso), caracterizam na noção de perigo e sal-vação (Idem, p. 25).

Nesse caso, o tema aglutinador seria o prin-cípio da oposição entre o Bem e o Mal (Idem, p.39).37

Na fundamentação do conteúdo simbólico,parece predominar a visão mais integrada da uni-dade formal apresentada no item anterior. O“tema” é exposto no “núcleo básico”, e funcionacomo “princípio de agregação” a presidir e orde-nar a seriação e a justaposição características dasdiversas peças musicais e dramáticas que com-põem esses bailados.

c) Origem comumUm terceiro plano de reflexão busca uma ori-

gem comum às danças dramáticas, e a identificaçãodas influências recebidas por elas ao longo do tem-po. É um terreno movediço, sobretudo se atenta-mos para o fato de que a idéia de história desloca-se por vezes para uma mito-história e expressa-sefreqüentemente num difusionismo desenfreado.38

Em Mário de Andrade, essa busca de origensnorteia-se implicitamente pela definição formaldas danças dramáticas que, como vimos, privile-gia música, bailado e dramatização de um tema.A documentação conhecida indicaria uma ex-

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traordinária floração dessas danças em fins do sé-culo XVIII e início do XIX, concomitante à forma-ção de uma cultura popular de ampla base cató-lica.39 Essas danças encontraram abrigo nas datasfestivas desse calendário, em especial o natal, ocarnaval e os santos de junho.40 A primeira parteé um cortejo, e cortejos foram sistematicamenteusados pelos jesuítas no Brasil no processo decristianização que convertia cerimônias pagãs emprocissões católicas.

Essas folias com que não apenas os “negros” des-tas Índias Ocidentais, porém ainda os “negros daGuiné”, e mesmo os brancos acompanhavam comdanças as procissões católicas, foram certamenteno país o maior incentivo para a tradicionalizaçãodo princípio do cortejo-baile, usado pelas nossasdanças dramáticas (Andrade, 1982, p. 33).

O caráter dramático das danças, por sua vez,encontraria raízes nas Paixões da Idade Média.41

No Brasil, o povo teria recorrido aos temas dosromances ibéricos para teatralização. A origemdos diversos Reisados residiria nesse notável pro-cesso de transposição de uma forma verbal e poé-tica à forma dramática dançada.42 Porém, nesseconjunto, o Bumba-meu-boi ocupa lugar ímpar ede certo modo anômalo.

Os Reisados e o Bumba-meu-boi

Mário de Andrade enumera os 24 reisados“que os livros me indicam” (Andrade, 1982, pp. 50-53). Nessa enumeração, as distinções estabelecidasinsistem em se confundir, sugerindo ao leitor con-temporâneo, sobretudo, a presença de um univer-so cultural de extrema mobilidade formal. Assim,por exemplo, o reisado da “Barca Bela” está na“Chegança de Marujos cearense”, tendo se enquis-tado entre nós no romance da Nau Catarineta(Idem, pp. 50-51); e nove reisados relacionados jáse encontrariam, nos idos de 1930, agregados aoBumba-meu-boi: “o mais importante de todos, quefazia parte final obrigatória de todos os Reisados.Espalhado por quase todo o Brasil, permanecidomuito vivo até agora”, especialmente nas regiõesdo Norte e Nordeste do país (Idem, p. 50).

No entanto, vale observar que, à diferençados demais reisados, para os quais se identifica oromance que estaria na origem da dramatizaçãodançada do tema,43 não há para o Bumba-meu-boinenhum romance. No Bumba, o tema do “entre-cho”, elemento que fornece um princípio de uni-dade ao bailado seriado, é essencialmente “míti-co”, vem de camadas de humanidade maisprofundas.44 Essa é, parece-me, uma das razõesimportantes da primazia desse reisado sobre osdemais. O Bumba emerge como elo da culturapopular brasileira com uma dimensão humanauniversal. Talvez possamos derivar daí, também,o seu poder de atração como grande “aglutina-dor” de outros reisados.

O Bumba-meu-boi é tema “mítico” por exce-lência, expressão do primitivo e do ancestral. Nes-sa condição, o folguedo expressa a unidade bási-ca do humano tão cara ao evolucionismo. EmMário de Andrade, essa unidade transforma-setambém em expressão possível de uma universa-lidade (mais do que propriamente uma unidade)brasileira. O autor idealiza e transfigura o Boi. Acadeia de raciocínios é tortuosa, cheia de lapsospreenchidos por malabarismos mentais.

Mário de Andrade é agora um evolucionistaintelectualista, envolto nos meandros do ramodourado de Frazer e seduzido pela possibilidadede raciocinar tal qual um primitivo sugerida pelaleitura de Tylor. Desvenda então o “mistério” que,na mentalidade primitiva, “idêntica nesse ponto àpopular, pode explicar outro mistério ou qualquerrealidade”.

Desprovido das defesas da técnica, na sua lutacontra… o resto, incapaz ainda de a organizar demaneira eficaz, se afirma no primitivo a noção deuma força superior à dele, e que ele aplica ime-diatamente aos animais, vegetais, minerais e fatos[...]. E assim, se nas culturas primitivas surgiu naforma de magia homeopática, mimética, o cultodo vegetal, da primavera, Perséfona, o totem, eprincipalmente, por mais genérica, a noção demorte e ressurreição da terra, do sol, do boi, dobicho, do vegetal, de deus [...] (Idem, p. 24).

Se o tema da morte e da ressurreição é moti-vo humano primevo, imposto pelo renovar dos ci-

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clos naturais da vegetação, a predileção pelo Boino Brasil teria também razões especificamente bra-sileiras. O centro econômico da colonização teriasido o Boi, verdadeiro continuador dos desbrava-mentos interioranos iniciados pelos bandeirantesnos séculos XVI e XVII (Lopez, 1972, pp. 127 ss.).Nada mais “natural” do que sua valorização mítica.

A própria variação da inserção do Boi no ca-lendário católico popular que intriga o autor –pois o Boi é encontrado no Norte entre as festasjuninas e, no Nordeste, nas festas natalinas – en-contraria resposta plausível pelo viés de sua leitu-ra frazeriana. Lopez transcreve uma ficha manus-crita, que bem demonstra a natureza do anseiointelectual de Mário de Andrade:

Bumba meu Boi ou Boi Bumbá! O Boi mal com-parando, parece assumir uma posição de Dionísio,símbolo do reflorescimento e do tempo fecundo.Ora é curioso pois que a celebração dele no Nor-te venha justamente em junho, tempo de inverno,tempo de cheia nos rios, tempo de menos febre,mais facilidade na vegetação ao passo que no Nor-deste está também quando chega o que por lá cha-mam de “inverno”, tempo de Natal, tempo daságuas, tempo de reflorescimento, e de muito maisfacilidade. Parece haver uma razão profundamen-te humana e a seu modo religiosa nessa escolha dedatas (apud Lopez, 1972, p. 128).

Em ambos os casos, estaríamos diante doapogeu da vegetação cultuada por meio do sacri-fício de seu símbolo animal, o Boi.45

Porém, esse sentido mais profundo e pleno jáse teria perdido. Para usarmos uma noção impor-tante em Tylor, o Boi seria “sobrevivência”,46 noçãoque Mário de Andrade parece ter fundido com suasleituras freudianas na noção de “sintoma”. O Boi,como nos diz Telê Ancona Lopez, é “sintoma-Bra-sil” (1972, p. 132). Um fato cultural revelador deuma possível universalidade brasileira:

Mas, no Brasil isso é assombroso. E o Bumba re-presenta porventura a mais bela noção crítica denosso fenômeno nacional, tirada inconsciente-mente pelo povo brasileiro. Unidade de língua,unidade de religião, várias são as razões inventa-das para designar esse fenômeno absurdo que éa unidade brasileira. Talvez fosse mais razoável

indicar a unidade do boi. O boi é realmente oprincipal elemento unificador do Brasil (apud Lo-pez, 1972, pp. 131-132).

Tensão: fragmentação e integração

Entre todas as danças dramáticas, destacar-se-iam, portanto, os Reisados, e dentro deles oBumba-meu-boi por sua ancestralidade, universa-lidade e brasilidade. Nessa valorização, desenha-se uma forte tensão. Pois, de um lado, os Reisadosemergem tal como concretamente encontradospor Mário de Andrade: aglutinados e justapostos,num processo em que o Bumba seria, por assimdizer, um reisado expansionista a impor aos outrosuma espécie de hegemonia dramática. Contudo,de outro lado, está a idéia de uma “integridade”originária, expressa na representação de um “en-trecho”, exigência ideológica de síntese: “Sobretu-do é isso que é o Reisado: uma representaçãodançada e cantada, consistindo num episódio sóque contém sinteticamente a significação comple-ta do assunto” (Andrade, 1982, p. 53).

Mário de Andrade viu-se então, talvez à suaprópria revelia, levado a dar conta da distânciaque separava o estado dos Reisados, tal como tes-temunhado por ele, e a suposta integridade origi-nal, cujos efeitos expressivos ele parece ter tam-bém experimentado, ao menos emocionalmente,em certas ocasiões felizes, como no episódio “Ma-troá” citado acima.47 De forma consciente, leve-mente irônica, Mário de Andrade inventou umahistória totalmente especulativa da evolução for-mal das danças dramáticas: “Parece porém quedesde logo ou desde sempre [grifo meu], a curtezaesteticamente admirável do reisado se tornou in-satisfatória ao povo”. [Andrade, 1982, p 53]. A“psicologia popular” adepta das “criações artísti-cas alongadas”, logo teria começado a reunir doisou mais reisados. Nesse processo, o “complexodo boi” tornou-se dominante:

Ficou assim um reisado único, que não tem po-

pularmente este nome, a dança dramática do

Bumba-meu-boi, que embora não seja nativa-

mente brasileira, mas ibérica e européia, coinci-

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CULTURA POPULAR E SENSIBILIDADE ROMÂNTICA 69

dindo com festas mágicas afro-negras, se tornou

a mais complexa, estranha, original de todas as

nossas danças dramáticas. Por vezes, mesmo uma

verdadeira revista de números vários, com a dra-

matização da morte e ressurreição do boi como

episódio final (Idem, pp. 53-54).

Além da hesitação intelectual entre as ori-gens “histórico-raciais” do bailado, o ponto é crí-tico. Revela um desencontro profundo entre aqui-lo que a sensibilidade artística de Mário deAndrade buscava, e por vezes de fato encontrava –a curteza expressiva admirável que o comovia –,e aquilo que o pesquisador encontrou com maisfreqüência diante de si – a desorganização da in-definição de formas, um mundo festivo em esta-do de permanente mutação, que contrariava o de-sejo de “fixar” uma forma expressiva como ideal.Nas entrelinhas do texto, esse desencontro pro-duz um grau de tensão que beira o dilaceramen-to. A integridade inicial suposta e procurada (tal-vez nos aproximemos aqui da idéia da “falta decaráter” de seu anti-herói nacional) colide com aavaliação predominante da realidade encontradae se traduz em forte ambivalência na valoração doBumba-meu-boi.

Talvez por isso, o Bumba seja a um só tem-po estranho e original, exemplar e complexo.Como se o bailado explicitasse também uma exi-gência existencial insatisfeita. Desse modo, aolongo do texto, o mesmo processo de composi-ção rapsódica que tanto fascinou Mário de Andra-de vai ganhando também sinal negativo nas con-siderações tecidas acerca do estado atual[1934/1944] e futuro do Boi. O “núcleo íntegro” doBumba-meu-Boi, “contendo como drama único amorte e ressurreição do grande bicho servil, cerca-do dos seus personagens humanos tradicionais”persistiria apenas “em certos Bois-Bumbás doAmazonas” (Idem, p. 54). A característica justapo-sição de temas, vista em outros momentos comooriginal e mesmo exemplar, surge tambémcomo sintoma de perda e deterioração da integri-dade primeva, que Mário de Andrade sabe entre-tanto, confusamente, nunca ter existido.

Nem por isso a idéia deixa de ser bastanteativa. No processo mesmo de conformação poragregação e justaposição de temas, o assunto nu-

clear tornar-se-ia tradição esquemática e as partesfixas perderiam gradativamente sentido. Em suabriga com a civilização, as danças dramáticas es-tariam “em plena, muito rápida decadência. Osreisados de muitas partes já desapareceram”. Ape-nas no Norte e no Nordeste, eles persistiriam suafuriosa luta. É um Mário de Andrade triste e trági-co quem vaticina “Da maneira como as coisas vãoindo, a sentença é de morte” (Idem, p. 70).

Alguma conclusão

A combinação entre exemplaridade e estra-nheza sinaliza a extrema ambivalência de Máriode Andrade para com o Bumba-meu-boi. Aquilomesmo que tanto o fascinava parece ter corres-pondido apenas raramente a suas expectativas deintegridade e síntese estéticas. Laço desfeito aoser encontrado. O “desde logo ou desde sempre”,tão significativo no trecho citado sobre a evoluçãodos reisados, não deixa de expressar formas depensar que, ainda que ironizadas, têm conse-qüências importantes na solução do texto e umimenso impacto na visão subseqüente de diversospesquisadores acerca da brincadeira.

Com relação a esse último aspecto, lembro aconclusão de Mello e Souza que, retomando a in-dicação pessimista do próprio Mário de Andrade,viu Macunaíma como obra “ambivalente e inde-terminada, sendo antes o campo aberto e nevoen-to de um debate do que o marco definitivo deuma certeza” (1979, p. 97). Creio que, inadvertida-mente, as formulações de Mário de Andrade nasDD forjaram uma maneira de ver a brincadeira doBoi que, contendo percepções luminosas, lançoutambém sobre ela uma vasta neblina. Além da te-mática mais evidente da deterioração, especial-mente influente, e particularmente nebulosa, é aidéia de um núcleo de sentido compreendido deforma fixa a presidir a unidade da brincadeira.48

Essa idéia, associada a uma perspectiva racialistade cultura, parece estar na base de visões reifican-tes e extremamente difundidas dos processos desimbolização presentes na cultura popular.

Com relação à argumentação do próprio tex-to, o desenlace de tamanha ambivalência é um

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decreto de morte de tonalidade trágica. O boicomo “sintoma-Brasil”, como brasilidade buscada,estaria, ele também, fadado ao fracasso. O Bum-ba-meu-boi surge efetivamente como um opera-dor de passagens no pensamento de Mário de An-drade. Mello e Souza (1979, p. 16) ressaltou asugestão do autor da existência de afinidades es-truturais entre Macunaíma e o bailado popularque, a seu ver, melhor representava a nacionali-dade. Assinalou, nessa direção, como prenúnciodo desenlace trágico do romance, a utilização deum longo trecho do bailado que termina com amorte do boi no capítulo “Uraricoera” que prece-de a morte do anti-herói, com sua transfiguraçãoem estrela de brilho inútil. Nesse episódio, a som-bra que persegue Macunaíma, confunde-o comum boi malabar “chamado Espácio que viera doPiauí” (Andrade, 1978, pp. 200-203). E mata-ocomo que por encosto, ela é quem engole a suacomida. O Boi esverdeia de fome, morre e apo-drece. Urubus o rodeiam e, cantando e dançando,dividem entre si suas partes podres. Dessa refei-ção ritual degradada emerge a “festa famanada dobumba-meu-boi, também conhecida por Boi-Bumbá”. Mário de Andrade projetou sobre o boinão apenas suas aspirações nacionalizantes (o boisintoma-Brasil) e criativas (o boi rapsódia-modelode Macunaíma), mas também a busca de integra-ção de sua própria subjetividade.

Em sugestivo artigo, Nicole Belmont (1986)assinalou a ambivalência da relação da etnologiafrancesa contemporânea com o folclore. Numaavaliação que pode ser transposta para a contem-poraneidade da antropologia no Brasil, a autoranota a dificuldade existente mesmo quando se tra-ta de reconhecer o folclore como etapa históricado estudo das sociedades e culturas da Europa. Osestudos de folclore teriam perdido crédito à medi-da que a etnologia clássica penetrava na França, eesse processo se teria tornado irreversível por voltade 1950. No entanto, como os “fatos folclóricos” –crenças, práticas e rituais populares – são dotadosde grande capacidade de persistência e de grandepoder de sedução, esses materiais reintegram-sesub-repticiamente em análises contemporâneas. Ofolclore estaria assim condenado a uma espécie de“retorno do reprimido”.49 Pois, ao reinserir esses

fatos na análise contemporânea, seríamos seduzi-dos pela ilusão do arcaísmo, pela idéia do bomtempo de outrora quando as produções popularesnão apresentavam descontinuidades, eram coeren-tes e facilmente acessíveis à interpretação. Os ma-teriais folclóricos, nos sugere a autora, chegam aténós, estudiosos contemporâneos, carregados dearcaísmos. Belmont propõe então o exame do ar-caísmo inerente a esses materiais como sintomas,na acepção psicanalítica do termo.

Saltando sobre o abismo que separa repre-sentações da psicologia individual da psicologiacoletiva, a autora chama atenção para a observa-ção de Freud de que os sintomas neuróticos deeventos traumáticos não emergem de um passadodistante, mas se formam no momento da evoca-ção. No universo da própria cultura popular, o ar-caísmo assumiria feições de mito, na acepção es-truturalista desse conceito.50 Contudo, quandotornado moeda corrente nas visões sobre a cultu-ra popular nos circuitos intelectuais e eruditos, oarcaísmo assumiria a forma de ilusão. Essa ilusãoé a base do efeito neblina que identifico nas for-mulações andradianas sobre o Bumba-meu-boi, asquais tornaram o folguedo o envolvente símbolode ancestralidade, universalidade e originalidade.

Porém, no plano do próprio pensamento deMário de Andrade, o Boi assume também um ca-ráter sintomático, opera conexões de sentido en-tre a expressão de sua subjetividade, a buscaideológica e estética da brasilidade e o esforço deconhecimento existencial e intelectual da culturapopular. O Boi traz à cena de seu pensamento, aum só tempo, a diferença, a ancestralidade e umainsinuante desordem que desfaz continuamenteesforços de ordenação e de satisfação. Atiça eexaure a curiosidade intelectual, provocando si-multaneamente, como as lembranças de infância,os sintomas neuróticos e os sonhos mencionadospor Belmont “estranheza, incompreensão, des-conforto e sedução” (1986, p. 266). Exemplar: omais estranho e original entre todas as danças.

Notas

1 Gomes (1998) lembra-nos que o sentimento decompartilhamento da intimidade é ilusório: o que

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acessamos num texto, mesmo de natureza confes-sional, é sempre a elaboração de uma representa-ção de si por parte do autor.

2 Como já disse, com felicidade, Carlos Sandroni(1992, p. 83), “quando nos reunimos em torno des-ses assuntos [folclore e cultura popular] estamos dealguma forma sentados à mesa desse banquete emque ele [Mário de Andrade] se perpetuou – e semdúvida, já sentimos em nossas bocas, com maior oumenor intensidade, um sabor de Mário de Andrade”.

3 Por sinal, em 1/6/1927, Mário de Andrade esteveem Parintins, onde os dois Bois que hoje brincamjá existiam desde 1912/1913, mas ele nem os viu enem os menciona. Chegou de tarde numa brevepausa de viagem. Em 29 de maio, estava em “plenoAmazonas”, na foz do Tapajós, tendo parado emItamarati no dia seguinte. Depois disso, a comitivadesceu em Parintins, onde encontrou um “prefeitobem falante”. Nosso autor oferece a seus leitores o“Apostolado da oração”, cujas regras encontradasna visita à igreja local, muito significativamente es-tabeleciam que seus fiéis: “1 – Renunciam totalmen-te às danças; 2 – renunciam a máscaras e fantasias;3 – não tomam parte em festas particulares, etc.[...]”. O grupo seguiu para Itacoatiara a caminho deManaus. Na volta, em 23 de julho, o diário registra“Parintins pela madrugada, vista em sonhos” (An-drade, 1976, p. 76).

4 Acompanho, por esse viés, a proposta de Geiger deaproximação e reconhecimento de afinidades entrea antropologia como disciplina e o momento “ro-mântico” do modernismo brasileiro. Segundo o au-tor, o não reconhecimento disso implicaria em “dei-xar de exercitar [...] o que houve de impulsocognitivo qualitativo nos anos 20” (1999, p. 121).Por sinal, a idéia de que a antropologia se empo-brece ao forçar a alteridade com certas áreas “an-cestrais” está na base de pesquisa sobre os estudosde folclore no Brasil. Ver Cavalcanti et al. (1992),Cavalcanti e Vilhena (1990) e, em especial, Vilhena(1997). Esse ponto será retomado na conclusão des-te trabalho.

5 Meu argumento, de colorido “anti-romântico”, situao festival de Parintins – com toda alta tecnologia,turismo, mídia e comercialização – como uma va-riante ritual que integra e atualiza um padrão recor-rente da brincadeira do boi, registrada no país des-de a primeira metade do século XIX. Fragmentaçãoe maleabilidade são entendidas como característicaspositivas constituintes do folguedo. Sob esse aspec-to, a interpretação proposta afasta-se criticamente

da idéia da deterioração e inexorável perda das tra-dições populares tão recorrente em tantos estudio-sos dos fatos populares, entre eles Mário de Andra-de. Sobre o festival de Parintins, ver aindaCavalcanti (2002).

6 As formulações de Claude Lévi-Strauss são referên-cias centrais para o entendimento contemporâneoda noção de mito (1964, 1970, 1971). Para a noçãode mito com que Mário de Andrade trabalhava, asreferências principais são as obras de Frazer, Tylore Lévy-Bruhl.

7 Ver também Cavalcanti et al. (1992 ) e Peixoto (2002).

8 Margarida Souza Neves e Ilmar Mattos coordenamna PUC/RJ o projeto de pesquisa intitulado “Moder-nos Descobridores do Brasil”. Sobre Mário de An-drade, ver Neves (1998).

9 “Improviso do mal da América” (fevereiro de 1929),Andrade (1993, p. 265).

10 Ver, por exemplo, Fernandes (1989). Sergio Miceli(1998), numa resenha sobre o livro de Luis RodolfoVilhena (1997), chamou os estudos de folclore de“disciplina de amor”.

11 Tanto Travassos (1997, pp. 202-203), como Moraes(1999, p. 31) encontraram essa dimensão filosóficaprofunda do romantismo no modernismo de Máriode Andrade.

12 O sentimento é expresso por vários folcloristas. Ver,por exemplo, o forte “pessimismo com relação aostempos atuais” que, conforme indicado por Abreu(2001), perpassa a relação de Cecília Meireles com ofolclore. A atuação do Movimento Folclórico Brasi-leiro e da Campanha Brasileira de Defesa do Folclo-re (Cavalcanti et al., 1992, e Vilhena, 1997) tiveramem sua raiz a idéia da “proteção do folclore”, numatentativa de evitar o desaparecimento iminente daspráticas tradicionais do povo. Essa visão embasou aatuação pública nacional até a década de 1980.

13 Edmund Leach (1980) lembra-nos do mito da Idadede Ouro e da expulsão do Paraíso como formas mí-ticas explicativas dos horrores da civilização. Love-joy (1965), examinando o primitivismo na Antigüi-dade, distingue duas acepções da noção. A primeiraseria o primitivismo cronológico, que alinhandopassado, presente e futuro atribui ao passado a me-lhor condição da vida humana. A segunda, o primi-tivismo cultural, expressaria de outro modo o “mal-estar” civilizatório, acreditando que a vida tidacomo mais simples e menos sofisticada de outrosgrupos humanos seria sob todos os aspectos umavida mais desejável.

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14 Trata-se do poema “Eu sou trezentos...” (7/6/1929),do livro Remate dos Males [1930] (Andrade, 1993, p.211). De modo arguto, Rosenfeld assinala o recobri-mento em Mário de Andrade da busca da identida-de nacional (no plano do próprio idioma) pela bus-ca de sua própria identidade pessoal. No roldão, osugestivo tema da “sinceridade” e do “cabotinismo”,que discute e retoma o exame do próprio Mário deAndrade acerca desses temas [1939] (2002a).

15 O título do trabalho pioneiro de Lopez é muito su-gestivo – Mário de Andrade: ramais e caminhos. Aextraordinária tarefa de organização de suas obrascompletas, incluindo importantes edições póstumasem que se destacam os trabalhos de Alvarenga eLopez, as edições das correspondências ainda porvir, a existência do IEB/USP, propiciando excelentescondições de consulta a seus arquivos, não só aten-dem como ampliam imensamente esses apelos.

16 Mello e Souza argumenta que o processo de criaçãodo romance tranpôs “duas formas básicas da músicaocidental, comuns tanto à música erudita como à cria-ção popular: a que se baseia no princípio rapsódicoda suite – cujo exemplo popular mais perfeito podiaser encontrado no bailado nordestino do Bumba-meu-boi – e a que se baseia no princípio da varia-ção, presente no improviso do cantador nordestino,onde assume forma muito peculiar” (1979, p. 12).

17 Esse mesmo ponto, por sinal, é a base do argumen-to de Moraes (1999).

18 Interessante observar a coincidência com a visãoadotada por Joaquim Pedro de Andrade em seu fil-me, que acentua Macunaíma como um herói vital,mas inconsciente. O “moderno” apareceria na bus-ca dessa elaboração consciente, empreendida peloromance, ou pelo filme ( cf. Buarque de Hollanda,1978, pp. 125-126).

19 Versos do poema “Danças” [1924] (Andrade, 1993,pp. 215-223).

20 Ver Lopez (1972, pp. 77-90).

21 Carão é um tipo de pássaro encontrado nas Améri-cas Central e do Sul, e em todo território brasileiro.

22 A crônica foi publicada no apêndice do TuristaAprendiz, pp. 335-336. A editora/pesquisadora ob-serva que dessa primeira viagem alguns outros tre-chos ainda figuraram como crônicas.

23 Mário de Andrade destaca a beleza do lamento co-ral da morte do carão, revelador de uma coindicên-cia com cantos populares escandinavos que o dei-xa “atarantado”: “Porque os elementos melódicos

originais são verdadeiras sínteses étnicas e pareceinconcebível que a tapuiada caiçarense tenha con-cebido certos movimentos sonoros que são normasnacionais dos nórdicos europeus” (1976, p. 336).

24 Ver, a esse respeito, Andrade (2000), Byington(2000) e Gico (2002).

25 Cecília Mendonça (2002) examinou, nos três tomos dasDD, os escritos que acompanham a coleta empreendi-da, organizada em torno de cinco principais danças: oPastoril, a Chegança, o Bumba-meu-Boi, o Maracatu eos Cabocolinhos. Como informa Lopez, além das “dan-ças dramáticas”, outros interesses derivarão da viagem:as melodias do boi, a música de feitiçaria, a religiosi-dade e a poesia populares (1972, p. 21).

26 Lopez transcreve, com zelo, anotações de leitura deMário de Andrade que indicam suas interessantesdiscordâncias com Lévy-Bhruhl (1972, p. 99). Res-salta também o impacto da idéia frazeriana de cul-to vegetal primordial através do “bumba” anotadonas margens do texto de Frazer (Idem, p. 127).

27 Esse material encontra-se hoje, graças ao trabalhodo IEB, mais completo e acessível do que à épocada edição dos tomos por Alvarenga. Assim é que,em janeiro de 2003, além das quatro versões enu-meradas por Alvarenga, encontrei no IEB a primei-ra versão do texto cuja existência, indagada pelapesquisadora, era tida como inexistente (Andrade,1982, último parágrafo da p. 18 e o primeiro da p.19). Na primeira das três caixas de papelão queabrigam essa documentação, além do mencionadotexto de seis páginas, “Origens das DD bras. Ex-cerpto”, há um texto de 27 páginas datilografadasem folhas azuis, cuja capa – uma folha azul com otítulo “Danças dramáticas, introdução e primeiraversão” manuscrito a lápis – se encontrava desloca-da de lugar (então MA – MMA 38, 157/158) no ver-so de uma página escrita, provavelmente re-apro-veitada pelo autor. Indiquei então o fato à profa.Telê Ancona Porto Lopez. Vale observar tambémque, como assinalou Alvarenga em sua “Explicação”ao segundo tomo da série, essas versões são bastan-te ordenadas, “têm a mesma ordem expositiva, vãocronologicamente num crescendo de dados, têm in-dicação clara da substituição progressiva de umasàs outras e são rematadas por uma versão impressaem 1944, absolutamente igual à última datilografa-da” (DDB, II Tomo, p. 12). O encontro dessa pri-meira versão só vem confirmar essas observações.Na bibliografia, indico essa primeira versão de 27páginas como 1934a, e sua revisão de 36 páginascomo 1934b.

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28 No trecho final da versão publicada, antes da sen-tença fatídica, há o seguinte trecho: “A decadênciadas danças dramáticas é estimulada pelos chefes, oseu empobrecimento é ‘protegido’ pelos ricos. Eelas vasquejam agora, como o teatro ibérico ao nas-cer: Sin más hato que un pellico/un laúd y una vi-huela/una barba de zamarro/sin más oro ni másseda” (Andrade, 1982, p. 70). Na primeira redaçãodesse trecho final (Andrade, 1934b, p. 36), no lugardo segmento citado acima, antes da mesma senten-ça final, lê-se o seguinte: “Mas estas minhas melan-colias não querem ter sinal de lei. Além da estupi-dez de muitos, fôrça é confessar que a própriacivilização imprime ao povo uma andadura que nãolhe deixa tempo mais prás grandes paciências queuma dança dramática exige. Isso também é certo: atempo novo, psicologia nova. Mas não é menos cer-to que a psicologia tem bases inamovíveis (?) e narealização destas é que está a felicidade. Uma orien-tação esclarecida havia de permitir que as dansasdramáticas não morressem!”. Visivelmente em 1934,Mário de Andrade tem mais fair-play e esperança.

29 Lopez (1972, p. 54) acentua a influência de Keyser-ling no pensamento do autor. Wisnik (1979, p. 64)assinala também a associação dança/drama/música.

30 Em seu último livro, Moraes (1999) propõe-se a de-monstrar o arcabouço conceitual do pensamentoestético de Mário de Andrade, tomando como pon-to de partida a conferência “O artista e o artesão”,proferida no final da década de 1930, na Universi-dade do Distrito Federal. Moraes ilumina a reflexãode Mário de Andrade acerca da relação existenteentre o artista/indivíduo e a criação de sua arte, en-fatizando o internalismo da visão andradiana quebusca a dimensão social da arte no interior do fazerartístico individual. A discussão é sobre arte erudi-ta, a “coisa folclórica” entra, nesse sentido, a servi-ço de um circuito erudito de criação artística. Ditode outra forma, a reflexão de Moraes incide, muitolucidamente, sobre questões levantadas no pensa-mento andradiano pela transposição das formas po-pulares para uma nova e almejada forma de arteerudita. Mas o “folclore” existe, digamos, “lá fora” epor si só, e Mário de Andrade não quis só utilizá-locomo fonte de soluções para novas formas de artepropostas e experimentadas por ele. Parece ter tam-bém percebido nele uma diferença de certo modoirredutível, e não necessariamente “nacionalizável”.

31 Além da noção de “participação”, o gosto de Máriode Andrade pela “mentalidade pré-lógica” de Lévy-Bruhl provém justamente da percepção de uma for-ma da inteligência “não fixadamente conceitual e

abstraideira que nem a do intelectual culto” em quese pensa com todo o ser (Mário de Andrade, apudLopez, 1972, p. 99). Por essa via, a indicação da im-portância da dança na reflexão andradiana mereceaprofundamento. Também no “samba rural” e na“música de feitiçaria”, as mesmas qualidades sines-tésicas dessa música-que-é-dança parecem ter atraí-do o interesse estético e intelectual do autor.

32 Como informa Lopez (em Andrade, 1976), o textofoi publicado no Diário Nacional de 29 de março de1929. Essa dança, por sua vez, “um cabocolinho”,teve sua “documentação” publicada no segundotomo das Danças dramáticas do Brasil. É um “cabo-colinho” de João Pessoa, com a “Dança de Morte doMatroá” (Andrade, 1982, II tomo, pp. 198-199).

33 Ver, a esse respeito, Moraes (1999, p. 27). Em Máriode Andrade “a arte tem essencialmente uma funçãoexpressiva e os elementos estéticos – a beleza –precisam ajustar-se a essa função”. Ver, também,Travassos (1997), em especial o item “ Virtudes dopovo” (pp. 184 ss.). Sobre a forma como elementoestético imprescindível da atuação da obra-de-artesobre o espectador, ver Andrade (2002).

34 “Em vez da descrição, que é um mecanismo intelec-tual mais complicado e completo, abrangendo o as-sunto por mil lados, o povo prefere criar na formade diálogo, de que ele tem a amostra fácil no me-canismo cotidiano das suas comunicações. O diálo-go evita a análise psicológica, evita a descricão degestos e de ambientes, facilita a síntese dos recon-tos [...]” (Andrade, 1982, p. 47). Um dos indícios dedecadência é, assim, a perda do caráter dramáticodo episódio principal.

35 Meyer (1991), Pereira de Queiroz (1967), Borba Fi-lho (1966) estão entre os muitos autores que utili-zam essa definição como ponto de partida de seustrabalhos.

36 Há uma quarta categoria enumerada por ele, os Ran-chos e Ternos. Retiro-a pois logo Mário de Andradeafirma que reisado é a “obra de arte”, ao passo queranchos e ternos seriam apenas designações dosgrupos de indivíduos que representam “um reisadoou qualquer outra das danças dramáticas” (1982, p.46). Para as três primeiras categorias, ele baseia-sena distinção de Sílvio Romero (Idem, pp. 35-36),para quem os Reisados agrupariam “folganças mui-to variadas”, apresentando sempre ao final de váriascantigas e danças, o brinquedo do Bumba-meu-boi.

37 Para Mário de Andrade, o princípio de oposição en-tre o bem e mal seria facilmente assimilável ao da

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morte e ressurreição. Quanto a este último, o lequesimbólico é amplo, remetendo tanto a crenças pa-gãs antiquíssimas como ao mistério central do cris-tianismo. Mário de Andrade acredita tratar-se de“uma noção mística primitiva, encontrável nos ritosdo culto vegetal e animal das estações do ano, eque culmina sublimemente espiritualizado na mor-te e ressurreição do Deus dos cristãos” (1982, p.25). Muitos pesquisadores o seguem, entre elesBorba Filho, que se atém ao contexto cristão: “in-discutivelmente, o Bumba-meu-boi, em seus princí-pios, era um auto hierático, um reisado conclusivosobre o boi da mangedoura do Nascimento de Nos-so Senhor Jesus Cristo. Pouco a pouco outros reisa-dos se foram juntando a ele, as marcas de cada épo-ca anexando-se ao espetáculo. O boi, como animalquase sagrado, também se foi fundindo com o boida região pastoril, o profano invadindo o folguedo.Fenômeno idêntico ao do teatro litúrgico medieval[...]” (1996, pp. 19-20).

38 Esse recurso intelectual é muito freqüente entre osfolcloristas. Ver, por exemplo, o precioso verbete so-bre o bumba-meu-boi, em Camara Cascudo (1984).Interessante notar, como observou Travassos (1997),que Mário de Andrade se dá conta também da in-fluência de poetas letrados e urbanos na conforma-ção das danças, o que o desagrada e desconcerta,indo contra as premissas da autenticidade popular.Ver nota 4 das DD (1982, p. 71). Visto por um outroângulo, esse afã de busca de origens remotas reve-la a permanência de certas formas culturais, cujavida se situa num plano cultural, que se aproximamda idéia da “longa duração” (e de seus incertos ca-minhos) tão cara aos historiadores.

39 Ver, a esse respeito, Abreu (1998).

40 Esse ponto importante é indicado numa nota (An-drade, 1982, pp. 71-75).

41 Mário de Andrade elencou nesse vasto conjunto deinfluências o teatro religioso semi-popular ibérico,acomodado pelos jesuítas aos interesses da cate-quese no Brasil. Curioso notar, entretanto (sobretu-do se posto lado a lado com sua ênfase na drama-tização), que Mário de Andrade “tem a sensação” deque esse teatro é um fenômeno à parte, que se de-senvolveu ao lado das danças dramáticas, mas seminfluência direta sobre elas (1982, p. 30).

42 Oneida Alvarenga o auxilia nesse ponto do argu-mento, acrescentando em nota um trecho de “Rei-sados e romances”. Na visão de Mário de Andrade,nos diz ela, os reisados seriam um caso de grandeimportância para o estudo do folclore. “São eles o

fenômeno mais extraordinário de aproveitamentopopular e conversão de forma, que já sofreram emqualquer país as poesias historiadas e contadas se-jam em romances, baladas, gestas ou que nome te-nham” (Andrade, 1982, p. 50).

43 Como, por exemplo, “O do Zé do Vale, aproveita-do dum romance brasileiro do ciclo do cangaço”(Andrade, 1982, p. 51). Em alguns momentos dotexto, essa idéia é mesmo a definidora dos reisados,que resultam “da adaptação dramático-coreográficade um tema oriundo de romances medievais aquichegados com a colonização e cantigas populares”(Idem, ibidem).

44 Ver também nas páginas 25 e 26 o tema da morte eda ressurreição que se impõe “em grande númerodas nossas danças dramáticas”, não naquelas de ori-gem mais nitidamente européia, como nas Chegan-ças. Esse tema surgiria sobretudo “nos bailadosmais próximos das culturas primitivas, nos Congosde origem negra, nos Cabocolinhos de inspiraçãoameríndia, e nos Reisados e cordões de bichos desobrevivência do culto animal, que se dá morte eressurreição”.

45 As famigeradas três raças presentes já no primeiroparágrafo do texto DD na suave ironia modernista –“E se me fatiga bastante, pela sua precariedade con-temporânea, afirmar que o povo brasileiro é forma-do das três correntes: portuguesa, africana e ame-ríndia, sempre é comovente verificar que apenasessas três bases étnicas o povo celebra secularmen-te em suas danças dramáticas” (Andrade, 1982, p.23) – retornam, também, como que “sintetizadas”no Boi. Para Lopez, Mário de Andrade teria estabe-lecido, via Frazer, o culto na bagagem folclórica docolonizador, que no Brasil entraria em contato como “espírito totêmico do índio” e, mais tarde, “rece-berá igual influência totêmica do negro” (1972, p.130). Creio que Mário de Andrade realmente tinhaalguma consciência da precariedade dessas idéias e,de fato, nunca se arriscou a sistematizá-las.

46 Belmont chamou atenção para a importância con-ceitual da noção de sobrevivência no avanço dosestudos antropológicos em fins do século XIX. Talcomo proposta por Tylor e seus discípulos, essa no-ção “teorizava de modo bem sucedido a dupla exi-gência do distanciamento no tempo e no espaço,necessária para considerar sem temor a alteridade ea estranheza tanto dos povos primitivos quanto doscamponeses europeus” (1986, p. 262). Logo na se-gunda nota das DD, Mário de Andrade sofistica aidéia de sobrevivência puramente mecânica e só re-

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sidual, detendo-se no problema de “compreender apermanência de certas tradições de realidades ex-tintas, na coletividade” (1982, p. 71). Seu pensa-mento se amplia e, embora se saiba de sua leiturade Formas elementares da vida religiosa de Dur-kheim, ele nunca realmente a incorporou. A vasti-dão simbólica de certos temas permitiria ao povo “oexercício permanente de certas práticas vitais”. Nasua comtemporaneidade, o boi já não representariamais o animal tão historicamente básico da civiliza-ção nacional. Mas evocaria (de forma grata à “repre-sentação coletiva”) as “dificuldades e lutas pra con-quistar o alimento, bem como as práticas da vidafamiliar e coletiva [...] o tema não é mais uma idéia,mas toda uma ideologia. A sua força e vagueza lheasseguram aceitação e permanência. É o jogo desentido spenceriano, em que se exercita em brin-quedo uma atividade vital [...]” (Idem, ibidem). Ain-da assim, o estímulo “criativo” que gera a dançadramática é explicado pelo viés do evolucionismointelectualista, derivando a ação vital de um pensa-mento inaugural.

47 Em pequena nota registrada no dia 9 de janeiro de1929 no Rio Grande do Norte, no engenho Bom Jar-dim, de Antônio Bento, lemos: “Trabalho quase diatodo. De noite o “Boi” de Fontes veio dançar no en-genho. A mais perfeita dança dramática que já vi naviagem. Artistas deliciosos de espontaneidade e es-pírito” (Andrade, 1976, p. 356). Na crônica do diá-rio relativa a esse dia (Idem, pp. 271-272), Mário deAndrade descreve um engenho de banguê e o fa-brico do açúcar. Embora outra anotação revele que,no dia seguinte, 10 de janeiro, ele tenha passado odia trabalhando com os artistas desse boi, não hánenhuma elaboração acerca do assunto nas crôni-cas da viagem. Talvez o tema ficasse de alguma for-ma guardado para elaborações posteriores. De todomodo, vale observar que o encontro da “mais per-feita dança dramática da viagem toda” será imedia-tamente sucedido por outra “comoção formidável”,a de seu encontro com o coqueiro Chico Antônio,ocorrido na noite do mesmo 10 de janeiro (Idem, p.273). Mesmo o sentimento de “divinização” trazidopor esse encontro carrega um amargor de perda: “Eterei de ir para São Paulo e terei de escutar as tem-poradas líricas e as chiques dissonâncias dos mo-dernos... Também Chico Antônio está se estragan-do... meio curvo, com os seus 27 anos esgotados nacachaça e noites inteiras a cantar...”(Idem, p. 277).Vale notar que Chico Antônio teve vida longa, ten-do falecido em 1993. Ver a respeito o documentáriode Eduardo Escorel, Chico Antônio: um herói comcaráter (1983).

48 Luciana Carvalho (2003) lança questões novas paraa compreensão da natureza das “comédias” e “ma-tanças” do bumba-meu-boi maranhense.

49 A autora indica duas formas de lidar com a situação.Uma delas seria a interrogação sobre a naturezamesma do folclore como disciplina anteriormenteautônoma. A segunda seria a indagação sobre a na-tureza do fato vivo que permanece sob a rubrica de“folclore” (Belmont, 1986, p. 260). Para a aboragemdo primeiro ponto no Brasil, remeto novamente oleitor a Cavalcanti et al. (1992), Cavalcanti e Vilhe-na (1990) e, especialmente, a Vilhena (1997). Comrelação ao segundo ponto, essa é exatamente a na-tureza do esforço aqui empreendido. A análise dobumba-meu-boi em Mário de Andrade busca des-prender o fato vivo “brincadeira do boi” de todo umativo conjunto de pressuposições e ilusões.

50 A autora refere-se especialmente à possibilidade dealcançar o passado oferecida pelos informantes maisidosos e à dimensão sincrônica da temporalidadepresente nesses relatos.

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 19 Nº. 54

CULTURA POPULAR E SENSI-BILIDADE ROMÂNTICA: ASDANÇAS DRAMÁTICAS DEMÁRIO DE ANDRADE

Maria Laura Viveiros de CastroCavalcanti

Palavras-chaveMário de Andrade; Etnografia;Danças dramáticas;Romantismo; Bumba-meu-boi.

Este texto examina a noção dedanças dramáticas na obra de Máriode Andrade e investiga as razões daextrema valorização do bumba-meu-boi por esse autor. Com baseem uma perspectiva antropológicacontemporânea, examinam-se asconexões existentes entre o uso daperspectiva etnográfica, a visãoromântica da cultura popular e abusca de autenticidade na cons-trução de formas estéticas pelomodernismo andradiano.

POPULAR CULTURE ANDROMANTIC SENSIBILITY: THEDRAMATIC DANCES OFMÁRIO DE ANDRADE

Maria Laura Viveiros de CastroCavalcanti

Keywords:Mário de Andrade; Ethnography;Dramatic dances; Romanticism;Bumba-meu-boi.

The text examines the notion of dra-matic dances in the work of Mário deAndrade and investigates the reasonsbumba-meu-boi was extremely va-lued by the author. It analyzes theconnections found in the use of anethnographic perspective, a romanticview on popular culture, and thepursuit of authenticity in constructingaesthetical forms by the andradianomodernism, based on a contempo-rary anthropological perspective.

CULTURE POPULAIRE ETSENSIBILITÉ ROMANTIQUE :LES DANSES DRAMATIQUESDE MÁRIO DE ANDRADE

Maria Laura Viveiros de CastroCavalcanti

Mots-clésMário de Andrade;Ethnographie; Danses drama-tiques; Romantisme; Bumba-meu-boi.

Ce texte examine la notion de dansesdramatiques dans l’œuvre de Máriode Andrade et recherche les raisonsde la valorisation extrême de ladanse du bumba-meu-boi par cetauteur. Suivant une perspectiveanthropologique contemporaine,l’auteur examine les connexionsexistantes entre l’usage de la pers-pective ethnographique, la percep-tion romantique de la culture popu-laire et la recherche de l’authenticitédans la construction de formesesthétiques par le modernisme deMário de Andrade.