the intensest rendezvous- o mundo, a poesia e a … · À medida que vivemos a contagem decrescente...

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Maria Elvira Marques da Silva Oliveira de Sousa THE INTENSEST RENDEZVOUS" - O MUNDO, A POESIA E A ARTE DE VIVER Uma leitura de Selected Poems de Wallace Stevens PORTO 1999

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Maria Elvira Marques da Silva Oliveira de Sousa

THE INTENSEST RENDEZVOUS" - O MUNDO, A POESIA E A ARTE DE VIVER

Uma leitura de Selected Poems de Wallace Stevens

PORTO 1999

Maria Elvira Marques da Silva Oliveira de Sousa

'THE INTENSEST RENDEZVOUS" - O MUNDO, A POESIA E A ARTE DE VIVER

Uma leitura de Selected Poems de Wallace Stevens

Dissertao de Mestrado em Literatura Norte-Americana apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto

PORTO 1 9 9 9

NDICE

Agradecimento n

Abreviaturas III

Introduo 1

1. Construir 10

1.1. A Construo da Casa Potica 12

1.2.Os Materiais 23

1.2.1 A percepo: construo de um espao de confluncias 25

2. Habitar 47

2.1. A poesia como espao de relao 48

3. Pensar o espao de encontro. Pensar o encontro de espao. 103

Concluso 146

Bibliografia 151

Quero agradecer ao Professor Doutor Gualter Cunha, de quem tive o privilgio de

ser aluna h mais de vinte anos, a orientao atenta e dialogante que fez deste trabalho. Quero ainda

agradecer-lhe muito especialmente o encorajamento para o meu reencontro com a poesia americana

contempornea.

ABRE VIATURAS

As obras de Wallace Stevens sero designadas pelas seguintes abreviaturas:

CPP - Wallace Stevens. Collected Poetry and Prose. New York: The Library of America, 1997.

LWS - Letters of Wallace Stevens. Ed.Holly Stevens3erkeley: University of California Press, 1981.

NA - The Necessary Angel in Wallace Stevens. Collected Poetry and Prose. New York: The Library of America, 1997.

SP - Selected Poems.London: Faber and Faber, 1965.

The purpose of poetry is to contribute to man's happiness.

Wallace Stevens, Adagia

C'est en communiquant avec le monde que nous communiquons

indubitablement avec nous mmes.

Maurice Merleau-Ponty, Phnomnologie de la Perception

The primordial instinct of every human being is to assure himself

of a shelter.

Le Corbusier, "Towards a New Architecture"

INTRODUO

medida que vivemos a contagem decrescente para o advento do novo milnio e se

elaboram planos para um ritual magnificente de entrada num tempo e num espao que se desejam

novos, no podemos deixar de reflectir sobre os nossos sentimentos e sobre os valores que

partilhamos com os outros.

Tendo assistido a mudanas, por vezes dramticas na nossa sociedade, a par de uma evoluo

notvel da tecnologia e da cincia, sentimos a necessidade de encarar o novo milnio como um

recomeo, um momento crucial de escolhas que nos venham proporcionar um mundo equilibrado e

justo, um futuro melhor.

Contudo, algum ter dito que s tem esperana aquele que est desesperado. Ser, talvez,

essa a razo por que nos sentimos divididos entre a exuberncia das fices felizes que a nossa

imaginao possa criar e o sentimento de que algo est errado no mundo, a nossa casa comum.

Casa ameaada pela runa total entre sucessivas degradaes fsicas e espirituais, na qual a prpria

vida se encontra abalada pelo colapso dos elementos que nos vo mantendo vivos, apesar dos

sucessos da cincia que, no fundo, se revelam sempre incompletos perante um mundo de

possibilidades e de incertezas imponderveis.

Richard Feynman procura fazer-nos entender a premncia de sabermos lidar com a incerteza e

talvez essa seja a soluo para resolvermos algumas das nossas angstias; mas, a verdade que nos

temos demonstrado inbeis para o fazer e acabamos, quase sempre, por preencher os nossos vazios

2

com a criao de outros. As nossas vidas tomam-se , por conseguinte, uma sucesso de

discordncias sem vislumbre de harmonia, exemplos do conceito de "pobreza", tal como Wallace

Stevens o entende. Uma "pobreza" que tem caracterizado o nosso sculo.

Partilhando o sentimento de vivermos na condio permanente de nufragos, tentando

sobreviver sucesso de crises, procuramos compreender ( ainda que dificilmente) a imanncia do

fim e a nica certeza possvel: a de que as nossas perdas so permanentes na passagem linear do

tempo da existncia humana. Torna-se urgente restaurar o sentido da existncia, descobrir uma arte

de viver que nos ajude a superar as carncias de uma realidade desoladora e nos permita enveredar

pelos "caminhos barrados" da vida.

Descobrir esta arte de viver tem sido a nossa preocupao contnua e, ao interrogarmo-nos

sobre o modo de encontrar a concrdia necessria, deparamos com a complementaridade de dois

conselhos. Por um lado, Albert Einstein defende que nos devemos "libertar da desiluso de sermos

apenas uma pequena parte do universo, alargando o nosso crculo de relaes de modo a abraarmos

todos os seres vivos"; por outro lado, Wallace Stevens sublinha a necessidade de "encontrar o que

for suficiente",acompanhando a par e passo a mutabilidade do mundo que dever ser percebido e

vivido na sua beleza e variedade.

Precisamos, pois, de entender o mundo de um modo novo e diferente; experiment-lo como

espao onde estamos profunda e inexoravelmente imersos e no qual temos de recuperar o nosso

lugar. Toda a alienao negada; o nosso grande desafio mostrarmos a capacidade de criarmos os

nossos significados no meio do caos.

Viver o mundo e perceb-lo como uma fora positiva atravs do uso da imaginao em acto

criador o fundamento da obra potica de Wallace Stevens, sendo a transfigurao dinmica da

realidade o seu objectivo primordial.

3

Na palavras de Frank Kermode, transfigurar atribuir sentidos possveis na "carne sensvel do

mundo". A sua obra The Sense of an Ending torna-se fundamental para a compreenso da potica

de Wallace Stevens e, consequentemente, para entendermos a premncia de inventarmos uma

concepo de vida, ou, por outras palavras, de criarmos as nossas fices.

Segundo Kermode, a fico ( fruto da interaco da imaginao humana com a realidade)

implica sempre uma mudana; a fico torna-se o poder de negar quaisquer determinismos, o poder

de descobrir as coisas e a ns prprios, a capacidade de "ver coisas que no existem", mas que nos

ajudam a movimentarmo-nos no mundo.

Cremos que, e em jeito de sntese, Kermode e Stevens nos querem fazer compreender que a

nossa capacidade de criar fices a medida da nossa liberdade.

Ainda na esteira de Kermode, criar fices criar novas identidades, nomear as coisas como

se nos surgissem pela primeira vez, usar as palavras em relaes imprevisveis. Criar fices tecer

mundos desconhecidos, querer significar mais, ultrapassar fronteiras. Finalmente, criar fices a

partir da reunio do mundo, do corpo e do esprito descobrir os ritmos possveis da dana de

palavras que a poesia pode representar.

A poesia de Wallace Stevens manifesta uma intensa ligao com a vida. O poeta procura

absorver a vida e reconfigur-la em concepes novas aps os encontros casuais , mas intensos, com

o mundo. O envolvimento vital do poeta com o mundo permite, pois, uma abordagem da sua obra

segundo uma perspectiva fenomenolgica.

Para fundamentar uma leitura fenomenolgica de Stevens, importante salientar a realidade, o

mundo, como pedra basilar para a experincia captada pela sensibilidade do poeta.

4

A importncia da realidade salientada pelo prprio Wallace Stevens em vrios momentos da sua

vida; entre os exemplos possveis, destacamos um excerto do discurso de agradecimento pelo prmio

que lhe foi atribudo pelo Bard College em 1951 :

. . . we find the poetic act in lesser and everyday things, as for example, in the mere act of looking

at a photograph of someone who is absent or in writing a letter to a person at a distance, or even

thinking of a remote figure . .. Ordinarily the poet is associated with the word .. . and ordinarily

the word collects its strength from the imagination or, with its aid, from reality. (CPP,pp.836-838)

Para alm do reconhecimento de que urgente reavaliar a relao entre a fico e a realidade,

as palavras de Stevens deixam perceber a sua crena na vocao do homem para se relacionar com o

outro, procurando nessa relao de atraco mtua, que governa todo o universo, a cooperao e a

coerncia como respostas aos seus problemas. Por outra palavras, o homem tem necessidade de

pertencer e de partilhar: "Reality is life and life is society and the imagination and reality; that is to

say, the imagination and society are inseparable" (CPP,p.660). Stevens acredita, por conseguinte, no

papel social que a imaginao pode ter.

Fazer uma abordagem da obra potica de Wallace Stevens sob a perspectiva do mundo como

um lugar de reciprocidade vai aproximar-nos da filosofia ontolgica de Maurice Merleau-Ponty, que

tem como objectivo o estudo da relao dinmica entre o homem (o corpo) e o mundo. Atendamos

s palavras de Merleau-Ponty:

Il nous faut donc redcrouvir, aprs le monde naturel, le monde social, non comme objet ou somme

d'objets, mais comme champ permanent ou dimension d'existence: je peux bien m'en dtourner, mais

non pas cesser d'tre situ par rapport lui. Notre rapport au social est, comme notre rapport au monde,

5

plus profond que toute perception expresse ou que tout jugement.1

Wallace Stevens um poeta essencialmente visual, sensvel aos estmulos do mundo exterior.

A imagem perceptiva tem um lugar determinante na sua obra potica que se revela como uma

construo complexa de mundo; o objectivo principal da sua obra , como Stevens confessa,

"ajudar-nos a viver as nossas vidas".

No fundo, a questo que se coloca e que serve de fundo a esta afirmao de Stevens a de

evidenciar a funo do poeta, a de "tornar-se a luz nas mentes dos outros".

A tentativa de estabelecer elos de ligao entre o pensamento de Wallace Stevens e o de

Merleau-Ponty vai implicar uma leitura da poesia de Stevens sob uma perspectiva contempornea,

isto , uma leitura para o nosso tempo. Comparando as suas obras, procuraremos evidenciar os

traos fundamentais que possam revelar-nos a arte de viver to intensamente perseguida pelo poeta e

pelo filsofo. Quer Stevens quer Merleau-Ponty celebram a relao fundamental e necessria do

homem com o mundo e a sua experincia directa; ambos mantm, no espao das suas obras, um

dilogo permanente com o mundo absorvido pelos sentidos.

A articulao do pensamento de Stevens com o de Merleau-Ponty possvel graas ao

carcter excessivo da obra do poeta, se entendermos por "excesso" a abundncia de significado, a

generosidade de expresso e de espao que a imaginao pode criar. Estas so as caractersticas que

do potica de Stevens a capacidade de sustentar o novo trazido por diferentes leituras, de se

revelar como algo que "ainda-no-foi-dito".

Com esta articulao procuraremos descobrir na poesia de Wallace Stevens os processos

verbais e a unidade temtica, anteriormente referida, e que o prprio poeta salienta: ajudar-nos a

1 Maurice Merleau-Ponty. "Autrui et le Monde Humain".Phnomnologie de la Perception (1945) Paris: Verdier, 1996, p.415

6

viver as nossas vidas. Acreditamos que o pensamento de Merleau-Ponty nos ajudar, tambm, a

compreender e a descobrir este sentido como ponto culminante da obra de Stevens.

A par da abordagem da potica de Wallace Stevens tendo em vista a descoberta de pontos de

concordncia com o pensamento de Merleau-Ponty importante realar uma outra perspectiva que,

no fundo, servir de fio condutor do presente trabalho: a considerao da poesia como construo

do mundo ou, especificando melhor, a poesia como espao construdo. Esta perspectiva vai ao

encontro da unidade temtica que procuraremos defender: a poesia como espao "arquitectado" ,

espao de acolhimento, de abrigo.

Para o desenvolvimento desta ideia, torna-se essencial destacar as seguintes palavras de

Wallace Stevens:

I think then that the first thing that a poet should do as he comes out of his cavern is to put on the

strength of his particular calling as poet, to address himself to what Rilke called the mighty burden

of poetry and to have the courage to say that, in his sense of things, the significance of poetry is

second to none... . Our belief in the greatness of poetry is a vital part of its greatness, an implicit

part of the belief of others in its greatness. (CPP,p.877)

O conceito de "cavern" que referido por Stevens tem de ser entendido no sentido que,

paradoxalmente, poder excluir a noo de isolamento ou qualquer tipo de alienao. Com efeito,

para apreendermos plenamente o que Stevens significa com a expresso "When a poet comes out of

his cavern . . .", poderemos reportar-nos a Gaston Bachelard para quem a imagem da caverna revela

7

"uma solidariedade inegvel, uma sntese ambivalente entre o exterior e o interior, uma intimidade

que se sonha com o repouso do ser, com um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade".

Segundo Bachelard, a caverna , de facto, um refugio, mas uma morada de porta aberta para

o mundo, permitindo o conhecimento tanto de valores interiores como exteriores. O acto de habitar

acontece quando o homem tem a sensao de estar abrigado, mas, ao mesmo tempo, que esse

abrigo, em vez de o isolar, vai permitir-lhe uma relao com o mundo. A caverna proporciona uma

viso sobre o universo ao mesmo tempo que inspira o sentimento de segurana; a sua sombra

necessria para melhor apreciarmos a luz e o seu silncio torna mais apurado o nosso sentido de

audio. A caverna permite as ressonncias de todas as vozes, humanas e da terra. A caverna a

morada, a casa que nos prende ao ser e nos faz participar na vida da terra, directamente, em

intimidade.

A poesia como casa, como abrigo, ser, por conseguinte, uma perspectiva a desenvolver ao

longo do trabalho. Entre a vasta produo potica de Wallace Stevens, escolhemos a colectnea

Selected Poems para anlise extensiva dos poemas tomados como emblemticos para o

desenvolvimento das perspectivas delineadas: o da poesia como espao construdo, morada propcia

e aberta magnificncia do mundo e o da poesia como expresso de um pensamento de cariz

ontolgico. Quanto a ns, aspectos complementares e que tornam a poesia como arte essencial para

a existncia humana ao ajudar-nos a encontrar uma estratgia de vida.

A escolha de Selected Poems pode ser fundamentada por duas razes essenciais; a primeira,

porque se trata de uma seleco feita pelo prprio poeta daquilo que foi sendo escrito no seu

percurso potico e que Stevens entendeu como sendo o mais representativo da sua obra. Embora

2 Gaston Bachelard. "Os Devaneios da Intimidade Material". A Terra e os Devaneios do Repouso. Ensaios sobre as Imagens da Intimidade (1948).So Paulo:Livraria Martins Fontes, 1990,p.7

8

este facto fosse s por si motivo de interesse redobrado, apresentamos uma segunda razo que tem a

ver com a data da sua edio -1953. Com efeito, esta data, quase no fim da vida do poeta, implica

que a seleco dos poemas revela uma sedimentao das ideias principais de Stevens . A estas duas

razes poderamos acrescentar, ainda, uma terceira; procuraremos provar, ao contrrio do receio de

Stevens , que este livro no se tornou "unbelievebly irrelevant to our actual world"(LWS,p.760).

Pela sua mensagem de confiana e de esperana no mundo e na vida, Selected Poems ser sempre

contemporneo.

De acordo com o que foi mencionado, o presente trabalho divide-se em trs partes. Na

primeira parte, sero feitas algumas reflexes pontuais sobre conceitos de arquitectura com o

objectivo de estabelecer pontos de contacto entre o pensamento de Le Corbusier (Charles-douard

Jeanneret), um dos mais emblemticos arquitectos da modernidade, e a poesia de Wallace Stevens.

Procurar-se- demonstrar algumas caractersticas que a potica e a arquitectura podem ter em

comum - a construo de espaos para serem habitados -, assim como sero levantadas algumas

questes pertinentes para o estudo do corpus escolhido.

Na segunda parte, ser desenvolvida uma perspectiva da poesia como o fazer habitar. A

anlise dos poemas procurar demonstrar a dilogo permanente entre a realidade e a imaginao,

tendo como campo de referncia o pensamento de Merleau-Ponty, embora outras vozes possam

ecoar no espao da obra. Tentar-se- revelar a interdependncia entre o homem e o mundo , entre a

imaginao e a realidade, relao fundamental para a compreenso da espacialidade da vida humana.

A terceira parte abordar as possibilidades de interpretao que podem resultar da

confluncia das ideias desenvolvidas nos captulos anteriores. O objectivo principal ser a

apresentao dos actos de construir, habitar e pensar como momentos que se interrelacionam,

separados no trabalho apenas por questes metodolgicas. Em arquitectura, esta trilogia serve de

9

chave para a compreenso dos edifcios construdos. Metaforicamente, a mesma trilogia revela a

poesia como espao de reflexo; espao de encontros necessrios para a compreenso das coisas, do

mundo e de ns prprios.

Como concluso, procuraremos demonstrar, atravs das nossas deambulaes, que Selected

Poems pode ser entendido como lugar de abrigo, como um espao de encontro com a arte de viver.

The very animal in me cries out for a lair.

Wallace Stevens, Letter, 1904

1. CONSTRUIR

"What manner of building shall we build?"

Lendo esta interrogao seria previsvel que algum, com segurana, inferisse que esta

questo teria sido colocada por um arquitecto, ou grupo de arquitectos preocupados com a

concepo das suas obras.

Mas, ligando a pergunta com a resposta que se lhe segue -"Let us build the building of light" -

talvez no seja difcil acreditar que s um poeta poderia ter encontrado tal soluo. Wallace Stevens

esse poeta e as citaes pertencem ao poema "Architecture", que ir servir de ponto de partida

para o presente trabalho.

Stevens parece querer dizer-nos que a luz deve fazer parte das nossas "construes" como se

o sol apenas tomasse conhecimento de toda a sua magnificncia quando os seus raios encontram a

parede de um edifcio, que, por eles, se deve deixar trespassar.

Supomos que esta ideia serve de elo de ligao com o que de mais profundo e potico nos

pode oferecer a arquitectura: espaos que possam dialogar com os elementos exteriores respondendo

s necessidades mais ntimas do esprito. Construes pensadas e delineadas em projectos de

harmonias culturais que se procura concretizar atravs de uma linguagem nova.

11

A essncia da arquitectura no est na utilidade ou nas solues prticas, mas na produo de

equilbrios novos e na construo da qualidade do habitar. O edifcio dever resultar da sntese entre

o pensamento do arquitecto e a realidade; a obra dever tornar-se, ela prpria, corpo que dialoga

com os outros elementos presentes no meio envolvente, um gesto de continuidade fluida.

A construo no pode ser um espao de confronto com a natureza; a par de se instituir como

espao de proteco, dever ser, essencialmente, um espao de relao aberto ao mundo.

Seguindo esta linha de pensamento e procurando estabelecer uma ligao entre os conceitos

da poesia e da arquitectura modernistas, torna-se importante a opinio de Josep Muntanola para

quem a noo de arquitectura ter de passar, inevitavelmente, pela capacidade potica e construtiva.3

A procura de uma potica na arquitectura o lema de Muntanola; procurar uma arquitectura

na potica pode ser o seu complemento. Arquitectura e poesia podem ter em comum o facto de

ambas serem artes veiculadoras de ideias e de sentimentos expressivos de fases diversas da existncia

humana; ambas encerram processos de abertura de espaos que obedecem a princpios construtivos.

Levando ao limite a nossa comparao,o poema pode tornar-se, ele prprio, a habitao do poeta e

do leitor.

A casa, edifcio de pedra, e a outra casa, edifcio de palavras, permanecem no subconsciente

da nossa sensibilidade colectiva como o lugar onde o homem pode regenerar-se, reencontrar-se,

recuperar as suas memrias, dar asas imaginao. A casa o lugar onde o homem se pode

encontrar com o outro e consigo prprio, sentindo-se parte de um todo comum, embora, e

paradoxalmente, o faa em intimidade. Como ter dito Bachelard, " todo o conhecimento da

intimidade das coisas imediatamente um poema".4

Josep Muntanola. Potica Y Arquitectura. Una Lectura de la Arquitectura Posmoc?e/*na.Barcelona:Editorial Anagrama, 1981. 4 Bachelard. Op.cit.p.70

12

Aprofundando um pouco mais a ligao entre poesia e arquitectura e indo ao encontro do que

j mencionmos, ao entendermos ambas as artes como fruto de projectos ou princpios construtivos,

ser importante lembrar a noo de plano dada por Siegfried Giedion:

pour tablir un plan, quel qu'il soit, il est indispensable de se rendre compte de la situation telle

qu'elle se prsente, et de la dpasser. Il faut la fois connatre ce que s'est fait dans le pass et

pressentir les besoins de l'avenir. Cela doit nous inciter non pas jouer les prophtes, mais avoir

une vision plus large des choses.5

Se considerarmos Wallace Stevens como um poeta de lugares, a leitura dos seus poemas ter de

descobrir o sentido que determinou a sua construo, as motivaes da sua gnese, a ordem invisvel

que lhes serve de fundo e que o prprio ttulo da obra implica.

1.1. A Construo da Casa Potica

Em carta dirigida a Bernard Heringman em 1952, Wallace Stevens refere os critrios tidos em

conta para a gnese de Selected Poems, revelando que a preocupao dominante fora a escolha dos

poemas que o prprio poeta considera como os mais representativos da sua obra:

The selections for the Faber book were made by myself.... My own choice would not be likely to

what others choose. Nevertheless, I tried to choose what I thought would be representative. (LWS,p. 750)

D Siegfried Giedion. Espace,Temps, vlrc//ecre(1908).Paris:ditions Denel,1978.p.35.

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Em 1954, Wallace Stevens confessa a omisso propositada de poemas do seu agrado: "I

purposely omitted from the Faber book a number of things that I like" (LWS,p.830), mas, este facto

no impede que Stevens procure dar a esta colectnea de poemas um carcter atraente na

condensao dos aspectos da sua potica por ele considerados mais importantes. Ainda, segundo o

poeta "a full sized Collected Poems would be less attractive than a selection". Com efeito, e pelas

razes j apontadas, uma escolha de poemas feita pelo prprio autor torna-se, partida, atraente

pelo desafio de neles se tentar descobrir uma unidade. A leitura, neste caso, dever tentar

reconstituir ( talvez, criar) o sentido dessa totalidade atravs da anlise dos aspectos parciais que

foram seleccionados.

Podemos, por conseguinte, concluir que a elaborao de Selected Poems obedece a um

traado determinado pela vontade do autor que, muito particularmente neste caso, se revela como

um "criador de lugares". Em Selected Poems advinha-se a inteno de um espao arquitectado,

espao de fuga a instncias comuns do tempo; um espao resguardado por capas protectoras e

ocultantes sob a configurao de um livro.

Abrir este livro como franquear a plenitude de um espao e nele descobrir o equilbrio de

valores; 1er este livro e avanar no seu espao interior responder ao convite de sentir essa

plenitude como sendo susceptvel de variaes numa teia de ligaes possveis. Sentimos que,

dentro deste "edifcio", existe algo que foge ao decurso linear do tempo numa tessitura de valores,

sustentados por um estilo difcil, mas que fundamentam a poesia como construo de mundo.

Quem penetra neste espao convidado a participar na sua essncia. Cruzada a soleira da

porta - os primeiros poemas - tornamo-nos como que agentes de influxos, rudos, smbolos, reflexos

que nos atraem e repelem na experincia esttica da versatilidade das alteraes, mas que no deixam

de nos provocar a sensao de uma busca de ordem, de uma finalidade.

14

A leitura dos poemas deixa perceber a inteno de conduzir o mltiplo em termos de

unicidade, o que nos leva a intuir um desejo de tranquilidade no poema final, que, como veremos

mais tarde, transmite a premncia da construo de um abrigo no qual o homem, aceitando a sua

precaridade, possa encontrar um equilbrio com aquilo que o rodeia e consigo prprio.

Uma das caractersticas detectadas na primeira abordagem de Selected Poems, como itinerrio

potico especfico, ser a ausncia de limitaes cronolgicas entre os poemas provenientes de

diversas obras independentes. Este facto confere ao espao interno da colectnea uma autonomia

prpria. A inconsutilidade do espao (o seu "vo arquitectnico") facilita a possibilidade de

combinar elementos dentro do "edifcio", permitindo verificaes de carcter diferente dos usados

em abordagens anteriores que nos levam a um refazer de sensibilidades no interior do vo. Aqui, h

valores que se harmonizam e se cruzam em unidade no espao necessrio de coexistncia; aqui,

teremos de imergir a fim de podermos captar as relaes analgicas da potica de Stevens, uma

potica de processo e em processo; aqui, teremos de descobrir como a poesia de Stevens se inscreve

no mundo, habitando-o.

Em arquitectura, o homem que, movendo-se dentro do edifcio, vai fazendo o seu estudo

atravs de pontos de vista sucessivos, recriando, deste modo, o espao da sua realidade integral. O

sentido da poesia , tambm, algo que precisa de ser visto por dentro para ser encontrado. A leitura

ter de ser esse percorrer de interiores na tentativa de reconstituir a totalidade das foras

estruturantes do mundo que os poemas contm.

Em ambos os casos, o que caracteriza os lugares visitados , nica e exclusivamente, a abertura de

premissas, as possibilidades de existncia.

15

Como um dos primeiros alicerces do trabalho, importante sublinhar que partilhamos o ponto

de vista de Helen Vendler sobre a potica de Wallace Stevens ao defender a autonomia de cada um

dos poemas, embora reconhecendo a sua interligao e dependncia. Os poemas podero ser vistos

como degraus de uma escada que nos permite a panormica da totalidade do edifcio (a obra

potica), totalidade essa que s pode ser mostrada e reconstituda atravs de fragmentos (os

poemas). Iremos, assim, de degrau em degrau, de sala em sala, a fim de apreendermos a unidade da

"casa" e a sequncia dos passos na sua construo.6

O trabalho do arquitecto como manipulador de paisagens poder parecer um trabalho

facilitado pela imobilidade aparente do objecto, aberto ao nosso olhar. Contudo, e segundo Giedion,

este carcter aparentemente fixo logo se transforma quando toca a sensibilidade do criador. Os

objectos mais humildes e annimos, as formas naturais mais simples ganham novos significados e

relaes graas ao olhar do artista, que, de acordo com a expresso de Le Corbusier, tem o poder de

revelar as coisas como "objets reaction potique", de abrir novos domnios do universo atravs de

uma obra de inveno e de procura, ou como afirma Giedion:"Ouvrir des champs nouveaux la

sensibilit a toujours t la mission de l'artiste ".7 No ser esta a funo do poeta e, muito

especialmente, a do "anjo necessrio" de Stevens?

Le Corbusier (1887-1965) surge como uma referncia incontornvel da arquitectura

modernista. Toma-se importante destacarmos alguns aspectos do seu pensamento a fim de

estabelecermos elos de ligao com a sensibilidade de Wallace Stevens.

Para compreendermos a obra de Le Corbusier e a sua sensibilidade podemos recorrer ( tal como

em Stevens) a escritos tericos que encerram as ideias principais de algum que sabe observar a vida,

Helen Vendler.Ow Extended Wings. Wallace Stevens' Longer Poe/ws.Massachusetts: Harvard University Press, 1969,p.6: "Each poem is of course autonomous. (...) But each is also a stage in a sequence of development". 7 Giedion.op.cit.p.256

16

apreender o mundo. Na pessoa de Le Corbusier encontramos reunidos o pintor, o escultor e o

arquitecto; desta complexidade resultam, como evidente, sensibilidades complementares das quais

Le Corbusier soube revelar as afinidades secretas, essencialmente para a concepo e interpretao

dos espaos interior e exterior.

Embora a obra de Wallace Stevens no inclua no seu mbito a pintura ou a escultura, a sua

poesia revela a mesma necessidade de relacionamento dos espaos no jogo dialctico entre a

imaginao e a realidade que percorre os poemas.

Em "Vers une Architecture", Le Corbusier salienta a premncia de um novo tipo de plano, de

uma ordem resultante de uma imaginao activa que tenha em conta o problema da casa e do

equilbrio que ela representa para a sociedade:

We are living in a period of reconstruction and of adaptation to new social and economic conditions.

(...) In architecture the old bases of construction are dead. We shall not rediscover the truths of

architecture until new bases have established a logical ground for every architectural manifestation.

A period of 20 years is beginning which will be occupied in creating these bases. A period of great

problems, a period of analysis, of experiment, a period also of great aesthetic confusion, a period in

which a new aesthetic will be eleborated. We must study the plan , the key of this evolution.8

Tambm Wallace Stevens tem um piano para a sua obra potica, cujas directrizes principais

podem ser encontrados no poema "Architecture" de 1923.9

8 Le Corbusier.'Towards a New Architecture".From Modernism to Postmodernism.An Anthology.EdJLawrence Cahoone.Massachusetts: Blackwell Publishers, 1996,p.211 9 Curiosamente, apenas foi possvel encontrar este poema no livro Wallace Stevens. Collected Poetry and Prose, editado por The Library of America. O prprio Wallace Stevens abandonou o poema, banindo-o de outras colectneas, tal como Helen Vendler nos informa em nota marginal de Extended Wings (p.332). Tambm Stevens menciona este facto em carta dirigida a Alfred Knopf em 1930 (LWS,p.259), embora no refira as razes da sua deciso.

17

Como fundamento desta primeira abordagem (aparentemente paradoxal, dado o "fantasma"

da rejeio que habita o poema), salientamos, em primeiro lugar, a ligao inevitvel com o objectivo

do trabalho delineado na Introduo, em segundo lugar, porque acreditamos que, neste "plano"

abandonado, podemos descobrir algumas constantes da potica de Stevens e organiz-las a fim de

podermos traar as linhas mestras da sua obra.

Tal como encontramos em Le Corbusier, Stevens defende que a funo do poeta ser a de

retomar velhas estruturas (que se tornaram "inabitveis") atravs de construes cclicas do homem,

erigidas na linguagem e, mais tarde, destrudas no processo contnuo de problematizao sobre o

modo de construir e a forma de habitar. Recordemos a pergunta que evidencia a preocupao de

Stevens:"What manner of building shall we build?"

A aliterao e a construo quistica dos ltimos versos (". . . the clink of the / Chisels of the stone-

cutters cutting the stones") lembram o som do talhar da pedra (metfora do labor potico) que pode

escravizar ("keep the laborer shouldering plinths") numa espcie de trabalho forado a cumprir

durante a vida; por outro lado, os mesmos versos estabelecem a ligao entre a linguagem e a

realidade. O tom seco e breve , porm, atenuado pelos versos 2 e 3 ("Let us design a chastel de

chastet. / De pense. . . "), cujos lexemas de sabor francs revelam j a arbitrariedade da linguagem

para traduzir a realidade que se v, se ouve e se toca.

Na segunda estrofe, a fortaleza (ou o castelo) transforma-se numa espcie de espao que

aprisiona o pensamento no sentido de que a linguagem pode limitar o que percebemos com os

sentidos. Referimo-nos questo da arbitrariedade do signo pressentida por Stevens na

interrogao: "In this house, what manner of utterance shall there be?" (v.l), noo fundamental

para a problemtica da representao da experincia potica.

18

As formas de um lirismo ossificado ("dithyramb", "cantilene") transformam o espao do

poema num templo onde ningum vive porque ningum pode habitar um museu.10

A terceira estrofe mantm o tom irnico das duas estrofes anteriores focando a necessidade de

uma observao cuidada, de um olhar atento sobre a natureza que, num gesto ambguo de carinho

ou superioridade, afaga Hecuba, smbolo da incapacidade de ver, da cegueira. Por outro lado,

Stevens utiliza uma construo anafrica para fazer a interseco do espao e do tempo (w.4-8),

salientando a atemporalidade da arte que capta o tempo dos ciclos, o ritmo da vida ("As they climb

the flights / To the closes / Overlooking whole seasons",w.6-8) e que deixa em suspenso o sentido

da decadncia das coisas, da mortalidade humana.

A flexibilidade fnica destes versos reflecte uma das caractersticas do tempo stevensiano: a no-

linearidade, a recusa da cadncia montona de um "tique" e de um"taque". Assim, o tempo ganha

uma dinmica prpria, tornando-se um tempo orgnico, trao distintivo do movimento modernista.

Randall Stevenson faz a abordagem desta temtica citando uma passagem de Orlando de

Virginia Woolf: "This extraordinary discrepancy between time on the clock and time in the mind is

less known than it should be and deserves fuller investigation".11

Com este exemplo, Stevenson procura realar a rejeio do conceito de tempo convencional e de

sequncia cronolgica. Um pouco mais adiante, Stevenson refere-se novamente a Orlando obra na

qual Virginia Woolf ter concludo que "an hour may be accurately represented in the timepiece of

the mind by one second". Esta capacidade de "ultrapassar a poderosa dimenso do tempo", segundo

Stevenson, pode levar a associaes imprevisveis ("the fertile moments"), despertados pelo

momento presente, conforme a teoria bergsoniana da fluidez do tempo. O passado flui no presente e

Referimo-nos ao conceito heideggeriano de "habitar", temtica que ser abordada numa fase mais avanada do trabalho. 11 Randall StevensonModernistFiction.An /roJMc//'o.Harvester:Wheatsheaf,1992,p.83.

19

cada momento novo porque contm vida anterior, ideia que Wallace Stevens transmite no poema

"Of Ideal Time and Choice":"thirty mornings are required to make / a day of which we say, this is

the day that we desired"(CPP.p.697).

Regressando a "Architecture", registamos , na quarta estrofe, uma mudana de tom, que se

torna mais calmo e, tambm, mais claro ao propor-nos uma nova estrutura feita de luz, cujo smbolo

a palmeira em resultado da comparao feita nos versos 4 a 6: "these are the paintings of our

edifice, / which, like a gorgeous palm, / shall tuft the commonplace".

Neste edifcio orgnico de luz que vai recriar o mundo atravs do olhar e da imaginao

("these are the window-sill / On which the quiet moonlight lies"-w.7 e 8), a janela tem um papel

crucial. Considerando "the commonplace" como metonmia do mundo, a janela (eco romntico) a

moldura, o enquadramento que limita a constituio subjectiva desse mundo, o elo de ligao entre a

interioridade de uma casa e a exterioridade da paisagem. Com efeito, atravs dela que nos chegam

as cores, as formas, os sons e os cheiros do mundo, percebido como uma entidade sensvel, mltipla

e instvel, ciclicamente reescrita pela aco do tempo. Trata-se, por conseguinte, de um espao

"entre" dois espaos, a articulao entre o homem e a natureza.

A estrofe seguinte descreve a construo de uma casa a partir do real :"How shall we hew the sun,/

split it and make blocks, / to build a ruddy palace?". Construo que, por sua vez, tambm penetra

no prprio mundo com "buttresses of coral air / and purple timbers / various argentines, /

Embossings of the sky" (w. 11-14), ideia reforada pela repetio anafrica de "Pierce" nos versos 9

e 11.

A aluso a uma interseco ou fuso com o mundo onde o homem recolhe os materiais da

construo da "casa" sugere um efeito global de unidade (ainda que, nesta fase inicial de Stevens

\

20

possamos subentender uma defesa da supremacia da construo humana), efeito criado por relaes

de interdependncia entre o sujeito, o seu lugar no mundo e a sua escrita sobre esse mundo.

De realar a relao entre cor e luz abordada nesta estrofe atravs dos lexemas "ruddy",

"violet", "green-blue . . . and blue-green", "gold", "coral", "purple" e "argentines", cuja profuso e

correlao significativa so indcio da instabilidade do objecto observado e da sua resistncia a um

olhar que se esfora por captar, atenta e rigorosamente, esse real, como nos sugerido pelo

alongamento do verso 7.

Wallace Stevens um poeta atento ao mundo e procura apreend-lo com um olhar neutro,

atendendo, principalmente, visibilidade da forma e da cor: "Once a space has been given attention it

turns into something extraordinary. But the ordinary jungle is not impressive. There are brilliant birds

and strange things but they must be observed".(LWS,p. 193).

Contudo, Stevens reconhece que essa interpretao neutra impossvel dado que ver interpretar e

o objecto torna-se, assim, uma construo do sujeito: "The play is simply intended to demonstrate

that just as objects in nature offset us, ( . . . ) we affect objects in nature by projecting our moods,

emotions, etc." (LWS, p.195)12

Nesta estrofe podemos delinear uma proposta de ruptura com o passado, quando Stevens

delimita a "rea" de construo: "Let us fix portals, east and west, / Abhorring green-blue north and

blue-green south. / Our chiefest dome a demoiselle of gold" (w.6-8), exortando a um "solo"

12 Nesta carta dirigida a Harriet Monroe, Stevens faz referncia pea de teatro "Three Travellers Watch a Sunrise". A mesma ideia reiterada na pea "Carlos Among the Candles", mencionada por Stevens numa outra carta, desta vez, escrita a Barcel La Farge em 1917, acompanhada pela seguinte nota: "The play is intended to illustrate the theory that people ara affected by what is around them. ( ... ) But the idea is just as valid if applied to minutiae of one's surroundings"(LWS,pp.200-201). Podemos, ainda, encontrar nas cartas dirigidas por Stevens a sua mulher, Elsie, todos os traos de uma sensibilidade potica em relao ao mundo envolvente; como exemplo, transcrevemos uma breve passagem qte consideramos pertinente pela ligao com o poema analisado: "(...) we have had nothing but the most gorgeous weather: flaming sun by day and flaming moon by night. ( ... )Last night I lay in bed for several hours listening to the wind: it sounded like a downpour of rain, but outside was the balmiest-and clearest moonlight and when I woke up this morning the palm at my door was red in the sunlight. (LWS,p.234)

21

fundamentalmente americano ( o que nos faz lembrar "The American Grain" de William Carlos

Williams), liberto de assimetrias ("north", "south") e radioso na sua vastido.

Contudo, assim que a casa est pronta ("the kremlin of kermess"), os guardas doutrinrios e

cinzentos transformam o edifcio (diferente na aparncia da sua estrutura "feita de blocos de sol")

num espao estrangulado, numa priso como a que nos foi descrita na primeira estrofe.

Stevens contrasta a alegria do colorido da estrofe V com os tons sombrios sugeridos pelo uso da

aliterao nos versos iniciais (". . . set guardians in the grounds, /Gray, gruesome grumblers . . .") e

pelo uso da reiterada negao nos versos seguintes ("For no one proud, nor stiff, / No solemn one

nor pole, / No chafferer, may come"). A estes versos podemos justapor o inesperado contraste do

verso 7 ( "with holy and sublime ado"), que nos sugere a questo religiosa na obra potica de

Stevens e a necessidade de re-examinar e recriar a herana bblica, os nossos supremos textos

sagrados.

A ltima estrofe caracterizada pela ambiguidade que resulta da falta de preposio depois do

verbo "walk" no verso 2; ser "about", "in", "into", "on" ou "out"? Talvez a ausncia de opo seja

indiciadora de que todas so possveis para uma pesquisa interior em relao com o mundo. A casa,

anteriormente construda, tranformou-se em bronze ("the bronze-filled plazas") e num espao

ironicamente inadequado e restrito ("nut-shell esplanades").

Acima de tudo, importa rever que urgente uma nova construo, porque a anterior depressa

se tornou antiquada. Deste modo, Stevens demonstra o curso inevitvel dos acontecimentos na vida

de uma construo humana (casa ou poema), espao em que o homem e palavras se envolvem com o

mundo.

Esta demanda da realidade e que torna a casa/poema num lugar de interseco abre j um

22

espao fluido esboado na irregularidade mtrica de cada uma das estrofes (obrigando a uma

descontinuidade visual) que surgem com a aparncia de "mobile like arrangements", conforme nos

lembra Hugh Kenner.13

A construo surge-nos, pois, como um sistema em suspenso no qual Stevens revela o seu

gosto pelas palavras invulgares ("chastel de chastet", "gorgoyle", "gaudy", "kermess") que so

associadas por Stevens em blocos-frase com os quais o poeta constri lugares. Atravs destas

relaes de sentido, Stevens interrelaciona o espao e o tempo num movimento sustentado pela

musicalidade das prprias palavras, como, por exemplo, no uso de formas gerundivas: "shouldering",

"niggling", "coddling", "pointings", "abhorring", "pouring". Estas formas gerundivas, alm de

revelarem uma acuidade do olhar sobre o mundo, so indiciadoras de duas questes fulcrais na

potica de Stevens e que se intensificam ao longo da construo do seu "edifcio": a valorizao do

carcter esttico da obra literria e a valorizao da experincia do mundo e sua consequente

representao em termos literrios.

A questo dessa voz transformadora, desse canto que modifica o real conferindo-lhe formas

novas, mas que, no fundo, so idnticas no seu desajustamento com o fluir do tempo, inferida nas

pistas deixadas por Stevens nas estrofes ET, IV e VI. A prpria criao do homem precria, facto

que a aproxima do carcter cclico da vida.

Wallace Stevens reconhece a necessidade de um ponto de equilbrio, ainda que precrio, entre

a magnificncia do mundo e a magnificncia da obra construda pelo homem (estrofe V).Para este

ponto de equilbrio contribuem o prprio mundo, a imaginao ("the lusty and the pleteous") e a

percepo, materiais indispensveis para a construo de uma morada comum: a poesia.

Hugh Kenner A Homemade World. The American Modernist.Baltimore:The Johns Hopkins University Press, 1989, p.59.

23

1.2. Os Materiais

Do projecto ao edifcio a construir estende-se um espao envolvente que ser campo de

anlise. Este espao ( o mundo como paisagem onde os artefactos estticos - as casas - se devero

inscrever) obriga a um olhar, a uma nova perspectiva de forma e a que a sua contextualizao se faa

sob uma nova luz. O fascnio pelas formas orgnicas da natureza a base do projecto arquitectnico,

adaptado a um tempo e a um lugar. A rejeio de estilos tradicionais e de fachadas preferenciais vai

causar o aparecimento de "paredes de cortina" e arcadas de vidro que possibilitam o contacto com o

exterior, com a natureza onde as construes se devem inscrever sob formas angulares e depuradas.

Segundo Le Corbusier, estas estruturas de ao devem atender a factores como espao, luz e

ar. A sua perspectiva de construo procura ilustrar a tentativa de renovar as relaes com a

natureza ( a Villa Savoie ser exemplificativa destes conceitos). Com efeito, em resultado da livre

disposio de espao ( a casa aberta por todos os lados), o homem que nela habita pode relacionar-

-se simultaneamente com os espaos interior e exterior. Torna-se impossvel abarcar esta construo

sob um nico ponto de vista.

Hegel lembra, por sua vez, que "as obras de arte so destinadas a integrarem-se na realidade

sensvel" de forma equilibrada atravs da interligao entre uma viso "isenta de desejo", de uma

"ateno vibrao dos corpos" e da memria. 14Esta relao do homem com a natureza , por

conseguinte, fundamental para a construo de estruturas nas quais o homem possa viver e passa

pelo movimento do olhar que une a presena das coisas.

14 G. W.F.Hegel. Esttica,Arquitectura e Escultura. Trad. lvaro Ribeiro.Lisboa: Guimares Editores, 1962,pp.25-40

24

Wallace Stevens lana para o mundo esse mesmo olhar interrogativo e surpreendido,

descobrindo a realidade num exerccio de observao e prazer:

X promenades the dewy stones,

Observes the canna with a clinging eye,

Observes and then continues to observe.

"Anecdote of Canna", CPP,p.44

A ideia do poeta como sendo um observador reiterada ao longo da obra potica de Stevens,

assim como nas cartas escritas durante a sua vida: "The thought occurred to me that it was just such

quick, unexpected, commonplace, specific things that poets and other observers jot down in their

books" (LWS, p.29)

Surge, ento, o momento de focarmos o pensamento de Merleau-Ponty pela analogia que

podemos estabelecer. Tambm Merleau-Ponty defende que, para entendermos o mundo, devemos

penetrar na sua opacidade desvendada no deslumbramento que resulta do simples facto de se saber

olhar. O olhar que se "apega" ao mundo , tambm, o olhar que o sada, fazendo da viso "o

encontro, como numa encruzilhada, de todos os aspectos do Ser".

O ponto de interseco deste encontro com o mundo e que fundamenta a teoria da percepo de

Stevens reside no sujeito potico, sensvel presena da natureza e sua relao com o homem.

Esse o tema que encontramos em "Anecdote of Canna" e na letra X, simbolizando a articulao

das sensaes recebidas a partir da multiplicidade do real e a sua confluncia numa unidade

perceptiva, prefigurada pela prpria forma da letra, que, paralelamente, insinua qualquer coisa de

no-definitivo.

25

1.2.1. A Percepo: construo de um espao de confluncia do visvel e do invisvel

Num apontamento com data de 1900, Wallace Stevens descreve os edifcios da cidade de

Nova York como "fechados para a noite", com um aspecto duro e cruel, sem vida, porque as

cortinas estariam corridas: "The curtains were drown and the faces of the buildings looked hard and

cruel and lifeless." (LWS,p.38)

Esta necessidade de abrir as cortinas dando azo imensido das sensaes de luz, ar e espao, ,

afinal, a urgncia de uma imerso na plasticidade do mundo no qual o homem vai buscar as imagens,

pilares da construo do poema: "Poetry has something to be something more than a conception of

the mind. It has to be a revelation of nature. Conceptions are artificial. Perceptions are essential".

(Adagia, CCP,p.904)

Para apreender a natureza como espao com uma arquitecturao autnoma, preciso abrir as

cortinas para um mundo prximo e intenso, tal como Stevens nos convida a fazer no poema "The

Curtains in the House of the Metaphysician"(CPP,p.49). Este poema sugere a abertura da mente

percepo das actividades da natureza: "Or the changing light, the dropping / Of the silence, wide

sleep and solitude / Of night"(w. 5-7), factores que vo intervir no delinear de um sentido do mundo

("Accuracy of observation is the equivalent of accuracy of thinking", Materia Potica, CPP,p.916),

onde tudo se interrelaciona (ideia reforada pela repetio de "of) e cujo movimento representado

pela abundncia de palavras gerundivas, obrigando o poeta a um constante reconfigurar da sua

criao.

Ainda sobre o mesmo poema, importante referir a "casa" que, como construo de ideias, crenas

e emoes que constituem o sentido do mundo, o prprio crneo do metafsico, que funciona

26

como um filtro das actividades da natureza atravs das "cortinas da percepo", alterando e

recriando o sentido do mundo.

A noo de que o artista se sente constantemente atrado a dar forma a tudo o que o rodeia,

"a tudo o que o envolve ou atrai" , segundo Stevens, uma caracterstica do poeta, realando,

porm, que esta necessidade constante de dar forma no significa a mesma coisa que "constncia da

forma". Destas palavras podemos depreender que Stevens procura chamar a ateno para o facto de

que o mundo tem se ser interpretado, mas no copiado. Por outras palavras, o poeta dever

encontrar a maneira de revelar o sentido do mundo, a sua inteligibilidade, respeitando a sua

densidade.Saber olhar , por conseguinte, fundamental para a potica de Stevens. Esse mesmo olhar

, para Merleau-Ponty, o encontro do mundo e do corpo uma vez que o sujeito toca o mundo com

os seus olhos ao mesmo tempo que se deixa tocar por ele.

Assim, para Merleau-Ponty, os olhos so a "janela da alma", o meio de abertura para a "infinita

variedade" da natureza, o "bem-aventurado domnio das coisas, e o seu Deus, oSol".15

Ver ir ao encontro do no-eu, reconhecendo a existncia de uma experincia exterior ao sujeito,

que apreende o real num espao limiar do olhar, o espao "entre" o eu e o outro, onde se realizar o

encontro com o mundo.

Wallace Stevens descerra as cortinas do seu olhar e imerge no mundo que no est sua

frente, mas sua volta, com o prazer de observar a fora e a presena da natureza como se de um

enorme corpo se tratasse: "the giant" em "The Plot Against the Giant", "the green's green apogee"

em "Credences of Summer", "the fat girl" em "Notes Toward a Supreme Fiction", onde o poeta vai

buscar "The essential poem at the center of things"(A Primitive Like an Orb",I-v.l). Neste poema,

Stevens evoca a fisicidade da terra e o sol ( a rbita no horizonte do poema), cuja luz revela "the

15 Maurice Merleau-Ponty. O Olho e o jp/r/to.Trad.Manuel Bernardo.Lisboa:Passagens,1997,p.68.

27

massive giant" (XI-v.3) num turbilho de diferentes percepes, sendo cada uma parte, "but a

tenacious particle", que nos descobre o mundo como este deve ser visto pelo efebo em "Notes

toward a Supreme Fiction".16

O universo fsico - o sol e a terra - existem, pois, em "close parental magnitude" com o

homem (XI-v.6). O tema deste poema o prprio mundo como "central poem" do qual todos os

outros poemas vo surgir. Stevens pretende demonstrar a dupla identidade deste "central poem, que

ele procura escrever: "central" na sua obra e "central" porque o prprio mundo: ". . . it is / As if

the central poem became the world" (V-w.7-8).

A diviso aparente entre mundo e poema que Stevens procura exemplificar com a prpria separao

entre as estrofes V e VI, acaba, por fim, com a rejeio desta separao. No final do poema, Stevens

afirma que tanto o poema como o poeta pertencem ao mesmo "gigante", que simbolizando o

universo fsico, existe como fluxo, como processo:

That's it. The lover writes, the believer hears,

The poet mumbles and the painter sees,

Each one,...

As a part, but part, but ferocious particle,

Of the skeleton of ether.

. . . the giant of nothingness, each one,

And the part ever changing, living in change. ( CCP,p.380)

16 Referimo-nos ao conceito de "first idea", no qual o adjectivo "first" associado a "primitive" por Harold Bloom em The Poems of our Climate (1976).Ithaca:Cornell University Press,1995,p.294: "From thisFThe world and the central poem merge into an identity] arises, for Stevens, the inevitable image, a new first idea of the sun on the horizon, a primitive like an orb of the poem's title, "primitive throughout Stevens' poetry being used in its etymological sense of "first". Sublinhado nosso

28

Wallace Stevens celebra o mundo fsico das pequenas coisas "the pink carnations" em "The

Poems of Our Climate", "young broods in the grass" em "Credences of Summer", "deer walking

upon our mountains" em "Sunday Morning", dando nfase a uma percepo resultante de um

compromisso interactivo entre o sujeito e o mundo fenomenal. O encontro realiza-se na "casa-

poema" na qual os alicerces da linguagem se fundamentam nos sentidos permitindo a integrao de

dois campos, o humano e o da natureza. Para Stevens, a percepo o fundamento do pensamento.

Em 1934 Merleau-Ponty ter afirmado que a percepo "a modalidade original da

conscincia" com base numa matria "pregnante, le monde": "Le monde peru serait le fond toujours

prsuppos par toute rationalit, toute valeur et toute existence. Une conception de ce genre ne

dtruit ni la rationalit, ni l'absolu. Elle cherche les faire descendre sur la terre".17

A experincia originria , para Merleau-Ponty, a percepo que abre o mundo conscincia

como horizonte de todas as experincias. Segundo a filosofia pontiana, o mundo sempre o

fundamento de toda a reflexo, valor e existncia; esse mundo real o mundo captado pelos

sentidos, o mundo fenomenal.

Esta tese ontolgica do primado da percepo constitui, tambm, a tese central do pensamento de

Wallace Stevens para quem a percepo, como vimos, a base do conhecimento.

Temos, assim, o mundo enquanto facticidade como elemento coordenador do edifcio potico de

Stevens: "The real is only the base. But it is the base" (Materia Poetica,CPP,p.9\7)

Em "Three Academic Pieces"(NApp-686-698), Stevens defende que, para se obter uma teoria

da poesia, " necessrio examinar a estrutura da realidade, porque esta a referncia central da

primeira" no que a natureza nos oferece a nvel da semelhana, elemento unificador e base de toda a

aparncia. A imaginao ir "manipular" esta aparncia a fim de satisfazer o "desejo de poesia", a

17 Maurice Merleau-Ponty. Le Primat de la Perception (1946). Paris: Verdier, 1196,p.43

29

proliferao de semelhanas que intensificam o sentido da estrutura da realidade como uma "soma de

complicaes, visveis e invisveis":

. . . of which the form,

At last, is the pineapple on the table or else,

An object the sura of its complications, seen

And unseen. This is everybody's world

Here the total artifice reveals itself.

As the reality. . .

"Someone Puts a Pineapple Together", CPP,p.694.

Stevens preocupa-se com o problema da representao do "texto da vida", tal como o pintor

se preocupa com a representao da volumetria do mundo: "The eye does not beget in

resemblance.lt sees. But the mind begets in resemblance as the painter begets in representation, that

is to say, as the painter makes his world within a world". ("Three Academic Pieces", NA, p.689)

O nosso poeta equaciona, deste modo, o "mundo" e a "mente", a "imaginao" e a "realidade fsica"

na percepo do real como local de temticas potenciais passveis de serem desencadeadas pela rede

de semelhanas que Stevens associa atravs da imaginao. Stevens reescreve o "texto da vida" sob

diferentes perspectivas, tal como podemos encontrar no poema "Thirteen Ways of Looking at a

Blackbird" (SP,34). Daniel Schwartz considera este poema exemplificativo do processo de criao

potica stevensiana quando escrita sob influncias de uma perspectiva do Cubismo. Para Schwartz, o

http://resemblance.lt

30

poema pode ser considerado uma coleco de sensaes, fruto da interaco entre a imaginao e a

realidade, que, como colagens cubistas, ocorrem na mente medida que o olhar percebe a realidade

18

exterior.

Neste poema, o pssaro ("the blackbird") representa uma sindoque da realidade em mudana, em

fluxo ("in the autumn winds") perante um observador esttico, limitado por superfcies de vidro

("Icicles fulled the long window / With barbaric glass"), consciente de que a viso no o nico

centro de percepo do real na sua individualidade e na sua temporalidade (estrofe XI).

O sujeito potico revela-se sensvel luz e sombra (estrofe XIII), apresentao de imagens

sob diferentes planos pictoriais, presena inevitvel do pssaro que, na opinio de Helen Vendler,

"o princpio da nossa relao final com o universo", smbolo das "nossas compulses do nosso

desespero perante a morte", espectro de uma presso da realidade que nos envolve: "I know noble

accents / . . . But I know, too, that the blackbird is involved / In what I know ".19

A necessidade de encontrar um ponto de equilbrio entre a realidade e a imaginao

explicitada no ensaio "The Noble Rider and the Sound of Words" (NA,p.643). Para Stevens,

necessria a construo de um eu criativo ("a major man" em "Notes") que viva numa relao entre

a imaginao e a realidade, em estado de "preciso equilbrio": "He must be able to abstract himself

and also to abstract reality, which he does by placing it in his imagination". Stevens reconhece, por

conseguinte, que pode existir uma interdependncia universal entre Hoon de "Tea at the Palaz of

Hoon" (SP,p.20) e "the MacCullough" de "Notes Toward a Supreme Fiction" (SP,p.85) ; o primeiro

reduz o mundo a uma esfera individual; o segundo representa a ideia ficcional do homem que Harold

Daniel R. Schwartz. Narrative and Representation in the Poetry of Wallace Stevens.New YoricSt.Martins's Press, 1993,p.38-57 19 Vendler. Op. cit, pp.75-78.

31

Bloom descreve como "the giant of imagination concealed within each ephebe". Com "the

MacCullough" o poeta deve "construir" MacCullough, "not to console / Nor sactify, but plainly to

propound". Para Stevens, a tarefa do poeta levar a cabo a concretizao da relao entre a

imaginao e a realidade; para Stevens, o poema representa no s a viso do mundo como as suas

possibilidades ( o que pode ser imaginado):

. . . and he will find that it is not a choice of one over the other and not a decision that divides them,

but something subtler, a recognition that here, too, as between these poles, the universal interdependence

exists, and hence his choice and his decision must be that they are equal and inseparable.

"The Noble Rider",NA, p.657

A funo do poeta, como entidade de influncia entre dois mundos, o da realidade e o da

imaginao ("the fluent mundo"), vai ter como misso ajudar-nos a redimensionar a realidade e a

libertar-nos com a ajuda do seu olhar e do seu ouvir:

Yet I am the necessary angel of earth,

Since in my sight, you see the earth again,

Cleared of its stiff and stubborn, man-locked set,

And, in my hearing, you hear its tragic drone

Rise liquidly in liquid fingerings,

Like watery words awash;

"Angel Surrounded by Paysans",SP,p. 127

32

Esta figura do anjo inventada por Stevens aparece num espao limiar - a porta - de um

"edifcio" ( o poema) que na sua totalidade foi construdo a partir do desejo de compreender e de

participar na alteridade do no-eu. A dificuldade em representar esta figura intemporal, caracterstica

sugerida pela metfora da terceira estrofe ("I have neither ashen wings nor wear of ore / And live

without a tepid aureole") referida por Stevens numa carta dirigida a Victor Hammer em 1949:

The question of how to represent the angel of reality is not an easy question (...) the point of the poem

is that there must be in the world about us things that solace us quite fully as any heavenly visitation

could. (LWS,p.601)

Uma das questes que se pode colocar o modo como o anjo vai comunicar com os homens.

Implcita imagem do anjo e, acima de tudo, temos a distino do seu canto que dever servir de

instrumento mediador entre o espao humano e o divino. O canto do anjo harmonioso, conducente

descoberta de uma totalidade de sensaes de bem estar e a uma libertao do peso que, por vezes,

o mundo exerce sobre ns. O canto do anjo, por fim, ter de ser, tal como a gua, um sopro de vida

essencial para a nossa sobrevivncia.

Por conseguinte, as aliteraes do poema ("liquidly in liquid lingerings / Like watery words awash")

so um dos exemplos do uso da sinestesia na obre potica de Stevens para exprimir melhor a relao

sujeito/mundo. Deste modo, Stevens consegue acomodar a multiplicidade do real num processo

cognitivo que nos integra no mundo, atravs da associao da linguagem e do pensamento com as

foras fsicas e elementos da natureza:

What we know in what we see, what we feel in what

33

We hear, what we are, beyond mystic disputation,

And what we think, a breathing like the wind,

A moving part of a motion, a discovery

Part of a discovery, a change part of a change

"Looking Across the Fields and Watching the Birds Fly",CPPp.439

Ao associar o pensamento com o vento, que poder ser o smbolo da voz da natureza, o corpo

torna-se o lugar de encontro entre o mundo e o eu.

Na perspectiva de Merleau-Ponty, reiterando as ideias fenomenolgicas de Husserl sobre o

"papel do corpo na posio das coisas", o mundo invade o corpo atravs dos sentidos e com ele

perfaz uma totalidade ("Umwelt") numa relao que nos abre o mundo e para o mundo:

La rduction phnomnologique que va nous placer dans un tout outre univers, va nous faire voir

dans ce monde un systme de correlations nome-nose et rduire la Nature l'tat de nome (...)

Le rle de la phnomnologie n'est pas tant de rompre le lien qui nous unit au monde que de nous

le rvler et de l'expliciter.20

Segundo Merleau-Ponty, o mundo fenomenal a realidade fundamental da qual nascem todas

as conceptualizaes, incluindo os conceitos de sujeito e objecto.

De salientar a progresso no pensamento pontiano no sentido da elaborao de uma tese da

reversibilidade que se tornar central na sua ontologia: o homem no constitui o mundo; interpreta-o

20Maurice-Merleau-Ponty.Z,

34

ou tenta compreend-lo.Para o fazer, dever estar imerso no mundo atravs do corpo, considerado

como um fenmeno entre outros. O homem v o mundo,mas , tambm, visto por ele.

Esta reflexividade de corpos tem de ser compreendida; o corpo tem de estar consciente de si prprio

na sua interseco com as coisas do mundo entre as quais ele vive.

A imerso do corpo humano no real, tornando-o um centro de complexidade pela reunio de

factores interiores (a mente) e exteriores (o real percebido pelos sentidos) manifestada ao longo da

obra de Stevens (incluindo as suas cartas) e simbolizada pelo uso da palavra "walk". "Tea at the

Palaz of Hoon", "Asides on the Oboe"(SP,p.72), "This Solitude of Cataracts" (SP,p.ll7), "The

Souls of Women at Night"(CPP,p.458) so alguns dos muitos poemas onde Stevens repete a palavra

"walk". O prprio poeta esclarece este ponto da sua potica quando se refere ao seu modo de

trabalhar:

I have no set way of working. A great deal of my poetry has been written while I have been out walking.

Walking helps me to concentrate and I suppose that, somehow or other, my own movement gets into the

movement of the poems.

"Autobiographical Statement for the New York Herald-Tribune Book Review",CPP,p.871

A ideia da justaposio dos dois movimentos - o do corpo e o do poema - fazendo do

primeiro uma espcie de metrnomo do segundo, implica a percepo de um terceiro movimento: o

do prprio mundo. Assim, depreendemos no poema "Life is Motion" (SP,p.28) no qual Stevens

celebra "the marriage / Of flesh and air". O prprio movimento da vida traduzido pela exuberncia

dos lexemas ("Bonnie and Josie", "calico"), alguns de laivos nonsense escolhidos pela fisicidade do

som ("Ohayaho / Ohao") , pela seleco de verbos perceptivos ("dressed", "danced", "cried"), pelo

35

ritmo jmbico predominante, tudo sugerindo o desejo de apagar a diferena entre o texto e a

experincia.

Esta ligao do corpo "textura do mundo", aquilo que, segundo Merleau-Ponty nos permite a

nossa "ancoragem" no mundo, , tambm, sugerida no poema "Tatoo" (CPP,p.64), onde podemos

1er: "the webs of your eyes / Are fastened / To the flesh and bones of you / As to rafters or grass";

outro poema que pode ser citado "Theory" (CPP,p. 70 ); aqui, o sujeito potico identifica-se com

o que o rodeia:'! am what is around me".

Fazer do corpo o sujeito do movimento e da percepo torn-lo, "ao mesmo tempo, vidente

e visvel", aproximando o sentido da viso do sentido do tacto, e entend-lo como "parte total de um

mesmo Ser", no sentido heideggeriano de Dasein.21

O corpo torna-se, por vezes, um desconhecido, um outro ("And my body, the old animal") como

aparece no poema "From the Misery of Don Joost" (SP,pl6), sujeito eroso do tempo tal como a

natureza ("When the amorists grow bald" em "Le Monocle de Mon Oncle",SP,p.9), mas consciente

da sua precaridade perante o fluxo cclico da natureza.

Sobre esta temtica, Helen Vendler chama a ateno para o tropo das folhas, que, no seu

movimento de renovao cclico, so indiciadoras da decadncia da natureza, "da vida sem folhas e

das folhas sem vida", mas, tambm, do seu poder regenerativo.22

Eleanor Cook alude, por sua vez, riqueza de significado dos tropos stevensianos que, nas suas

associaes possveis, revelam como denominador comum o sentido de precaridade da natureza, do

homem e da sua obra.23

Maurice Merleau-Ponty. O Olho e o Esprito.pp.20-21 Vendler.Op.cit.p.273. Eleanor Co6k.Poetry, Word-Play and Word-War in Wallace Stevens.New YoricPrinceton University Press, 1988

36

Sendo o carcter metamrfico comum ao corpo e natureza, torna-se necessrio apreender o "outro

lado" das coisas, criando um espao atrs do olhar, uma espcie de "casa" da imaginao, o lado

visvel do invisvel, que compense a nudez de uma "arquitectura" privada de alma:

Of what is this house composed if not of the sun.

These houses, these difficult objects, dilapidate

Appearances of what appearances,

Words, lines, not meanings, not communications,

Dark things without a double after all

"An Ordinary Evening in New Haven",SP,p. 118

Com estes versos Stevens revela o seu reconhecimento de que os fenmenos tm uma importncia

positiva e que se torna necessrio questionar as aparncias tradicionalmente conotadas com algo de

valor inferior ao real. No fundo, e, simultaneamente, estas reflexes levam consciencializao de

que as coisas diante de ns so apenas apresentadas sob um certo ponto de vista, ou, por outra

palavras, apenas so conhecidas em parte, dado que as coisas no se apresentam na sua totalidade.

Stevens chama a ateno para a presena do que est ausente e que s pode ser descoberto atravs

do nosso envolvimento com o mundo.

As possibilidades que as coisas tm de ser compreendidas no so imediatamente objectivas;

elas esto l, mas no ao alcance do olhar. Para as conhecermos, necessrio um encontro profundo

com elas. "The thing seen becomes lhe thing unseen", afirma Stevens em Adagia (CPP,p.9Q

37

acontece quando a imaginao "penetra a vida" no numa tentativa de a superar, mas de criar um

equilbrio: "We have no particular interest in this struggle [imagination and reality ] because we

know that it will continue to go on and that there will never be an outcome". (CPP,729)

Segundo Stevens, a interrelao da imaginao e da realidade tem o seu fundamento no mundo

percebido, ltima fonte e referncia final do conhecimento humano. Com efeito, o reconhecimento

de que a observao da inesgotabilidade das manifestaes possveis dos fenmenos do mundo

crucial vai ao encontro da tese de Merleau-Ponty que nos convida a considerar o mundo fenomenal

tal como este aparece na sua riqueza e variedade. Cremos ser esta a ideia presente nos seguintes

versos de Stevens:

Reality is the beginning not the end,

Naked Alpha, not the hierophant Omega,

. . . Alpha continues to begin.

Omega is refreshed at every end.

"An Ordinary Evening in New Haven", SP,pp. 118-119

A relao mais imediata parece ser a mais escondida. Stevens e Merleau-Ponty defendem que

a reflexo consiste, no seu verdadeiro objectivo, em dar a perceber a importncia do olhar que nos

liga s coisas e ao mundo no qual sempre estivemos imersos, mas, por vezes, sem que de tal nos

tenhamos apercebido.

Trata-se, pois, de encontrar um ponto de equilbrio e, reportando-nos noo da fsicidade do

corpo, sabemos que o nosso sentido de equilbrio e de orientao fica afectado com a perda da

38

audio. Por essa razo, Stevens reala a importncia dos sons no ensaio "The Irrational Element of

Poetry" (CPP,pp. 781-792) como pretextos para a poesia: "The faintness and strangeness of the

sound made on me one of those impressions which one so often seizes as pretexts for poetry".

Com efeito, os sons tornam-se predominantes na obra potica de Stevens, funcionando como sinais

reveladores da presena do homem e da sua participao no mundo fsico. Se tivermos em conta

que, na opinio do poeta, o homem est no mundo como num teatro ( "As at a theatre",

CPP,p.455), compreenderemos a importncia de um balano equilibrado entre os sistemas de

percepo visual e auditiva, essenciais para entendermos a totalidade da obra, quando "the curtains,

when pulled, might show another whole."

Apesar de ser um seguidor da crena emersoniana no significado do visvel, Stevens reconhece os

limites do ollhar que apenas revela o objecto sob o efeito da luz reflectida na sua superfcie.

Tal como Emerson, Stevens procura estabelecer, articular e criar uma nova relao com a natureza;

contudo, para Emerson e , ao contrrio de Stevens, a mente tinha um poder superior. Harold Bloom

refere este facto ao explicitar o conceito emersoniano de poder como a capacidade da imaginao,

vitoriosa sobre todas as coisas e que caracteriza grande parte da poesia americana.24

Embora Stevens se aproxime muito deste conceito de poder da imaginao, h um desvio pertinente

ao reconhecer a "pobreza" da natureza humana perante a plenitude do mundo; esta limitao,

segundo Stevens, motivada pela incapacidade que o homem tem de poder abarcar diferentes

pontos de vista ao mesmo tempo, o que lhe reduz, significativamente, a sua percepo da realidade.

Para Stevens, no h a possibilidade de "ver tudo", porque as coisas so inesgotveis.A conscincia

de que s podemos conhecer as coisas de forma parcial no nos permite impor as nossas reflexes

sobre o mundo.

24 Bloom. Op.cit.p.7

39

Como Merleau-Ponty mais tarde afirmaria: "Le rel est un tissu solide, il n'attend pas nos jugements

pour s'annexer les phnomnes les plus surprenantes ni pour rejeter nos imaginations les plus

vraisemblables".25

Stevens no poder ser "a transparent eyeball", porque reconhece que a realidade nunca nos

revelada no seu todo. Para a compreendermos, temos de "encontrar" primeiro as partes; Stevens

sabe, tambm, que o conhecimento do todo se vai revelando nessas partes. Visvel e invisvel

acompanham-se de mos dadas.

Ver um sentido espacial que, fisiologicamente, implica distncia entre o sujeito e o objecto,

assim como a fragmentao, j que, num dado momento, o olhar s pode perceber o objecto sob um

nico dos vrios ngulos possveis.

A conscincia desta separao est j implcita nos poemas iniciais de Stevens. Segundo Susan

Weston, no poema "Valley Candle" (CPP,41) encontramos a vela, smbolo stevensiano da

imaginao, que o "vento da realidade" tenta deseperadamente apagar.26

O facto da vela ser insuficiente para iluminar o "imenso vale" constitui uma alegoria para os limites

do olhar: a precaridade da imagem criada pelo homem perante o "mistrio", a escurido do mundo

natural. Stevens refora esta ideia atravs da escassez dos versos do poema e pela repetio do verso

"until the wind blew", cuja cadncia jmbica e aliterao em NI nos sugere a necessidade de um

outro sentido para a descoberta do real: a audio.

Para exemplificar o desejo de percepo do mundo, quer em termos visuais, quer acsticos,

escolhemos (entre outros possveis) o poema "Le Monocle de Mon Oncle", no qual o monculo

simboliza a falta de profundidade de um olhar, a runa do corpo (estrofe V), que sofre os efeitos de

25 Merleau-Ponty, Phnomnologie de la Perception.V 26 Susan B. Weston. Wallace StevensAn Introduction to the Poetry.Nv/ York:Columbia University Press, 1977,pp.27-28

40

um tempo cclico, portador de uma dinmica prpria. Um tempo que comporta uma invisibilidade

que Stevens procura captar no contraste entre os sons voclicos ("I-eye") e ill (estrofe XII), este

ltimo traduzindo a ideia de fluidez das "fluttering things" e do movimento em espiral atravs das

escolhas lexicais: "circles", "around and round and round", "flutters".

Um dos poemas em que Stevens justape os diferentes sentidos de conhecimento do mundo atravs

das sensaes visuais e auditivas "The Comedian as the Letter C" (CPP,pp.22.37). Um longo

poema sobre o olhar ("C=see"), pelo qual Crispin procura o seu destino. Contudo, este

"introspective voyager" reconhece a sua cegueira ("It made him see how much / Of what he saw he

never saw at all"), passando os momentos de revelao a ser resultantes da sua interaco directa

com a natureza e expressos em termos de som: " The whole of life that still remained in him /

Dwindle to one sound strumming in his ear"). O real chega at Crispin atravs de uma justaposio

de som, imagem e movimento; o mar, que se torna uma "coisa visvel":

Here was the veritable ding an sich, at last

Crispin confronting it, a vocable thing,

But with a speech belched out of hoary darks

Noway resembling his, a visible thing

(CPP,p.p.23-24)

Ao longo da sua obra potica, Stevens est atento apreenso dos sons da natureza, procurando

traduzir em palavras o movimento, a vibrao, a imediaticidade, toda a definio temporal que falta

viso e que a completa.

41

Esta premncia de imerso no processo do mundo constitui o ponto fulcral do poema "The Snow

Man" (SP,p.6) no qual o sujeito potico descobre que capaz de "not to think / of any misery in the

wind, / In the sound of a few leaves, / Which is the sound of the land" (w.7-10), tornando-se urn

participante do real ("the snow man"), cujo corpo feito da mesma substncia daquilo que o rodeia.

Wallace Stevens explica o significado do poema em carta dirigida a Hi Simmons em 1944: "I shall

explain the snow man as an example of the necessity of identifying oneself with reality in order to

understand it and enjoy it". (LWS,p.463).

Mais uma vez o pensamento de Stevens pode ser esclarecido atravs de Merleau-Ponty. Quanto a

ns, o poema "The Snow Man" e o respectivo comentrio feito por Stevens constituem um exemplo

possvel do conceito pontiano de reversibilidade. O corpo encerra em si a duplicidade de poder tocar

e ser tocado. Como sujeito da percepo, o corpo vai revelar-nos o mundo e permitir que tenhamos

essa experincia. pelo corpo que nos situamos no mundo e por ele que nos relacionamos e

comunicamos com os outros.

H uma unidade intersensorial do corpo que permite reunir as diferentes sensaes atravs das quais

percebemos o mundo. Para Merleau-Ponty, o mundo , por conseguinte, "l'horizon de tous les

horizons, le style de tous les styles, que garantit ms experiences une unit donne et non voulue

par dessous toutes les ruptures de ma vie personelle et historique, et dont le corrlatif est en moi

l'existence donne, gnrale et prpersonelle des mes fonctions sensorielles o nous avons trouv la

dfinition du corps".27

Para Stevens o corpo o instrumento da nossa condio de estar no mundo como seres que, no

mesmo espao, partilham a multiplicidade de relaes possveis no mundo e com o mundo.

Merleau-Ponty. Op.cit. p.381

42

Ainda sobre este poema, salientamos o seu carcter paradoxal frisado por Eleanor Cook

quando se refere ao jogo fontico dos sons acsticos de O e da sua forma visual ,"since a snowman

is made of three O's", que , na sua associao feita por Cook, lembram precisamente o oposto do

nada, a plenitude.28

Em "The Course of a Particular" (CPP,p.460) a palavra "cry" no verso "Today the leaves

cry", alm de reforar a necessidade de ouvir atentamente todos os sons, faz-nos lembrar a

importncia da particularidade do movimento, a prioridade da experincia em relao linguagem,

energia que Stevens quer traduzir em "An Ordinary Evening in New Haven", quando afirma: "The

poem is the cry of its occasion".

E este sentido de imediaticidade que Robert Gilbert salienta como um dos traos que mais distingue

Stevens dos romnticos. Citando M. H. Abrams, Gilbert refere que, para os romnticos a natureza

tinha servido como estmulo para a meditao numa estrutura de construo potica de "out-in-out"

(descrio-meditao-descrio), enquanto que Stevens apresenta uma "mistura fluida de percepo

e pensamento", que torna a sua poesia "transcritiva", ou, por outras palavras, a potica de Stevens

anloga msica, porque transporta para a linguagem"algo fluido e temporal" resultante do "fluxo

da experincia".29

Cabe ao poeta descobrir o som das palavras e as palavras do som para atingir a perfeio da poesia,

conforme nos diz Stevens em "The Noble Rider":

The deepening need for words to express our thoughts and feelings which, we are sure, are all the truth

that we shall ever experience, having no illusions, makes us listen to words when we hear them, loving

28 Cook.Op.cit.p.49 Roger Gilbert. Walks in the World. Reprentation and Experience in Modern American Poetry. New Jersey.Princeton

University Press,1991,p.8

43

them and feeling them, makes us search the sound of them for a finality, a perfection, an unalterable

vibration, which it is only within the power of the acutest poet to give them. (NA,pp.662-663)

Ao longo do seu livro, Cook d-nos conta dos processos verbais que Wallace Stevens utiliza

para representar a percepo atravs de um jogo de palavras que persegue as coincidncias sonoras.

Cook prope-nos um estudo da evoluo da potica do autor desde as influncia do jazz em

"Harmonium" (por exemplo, nos versos "Chieftain Iffucan of Azcan in caftan / of tan with hanna

hackles, halt!") at ao tom mais meditativo dos ltimos poemas escritos depois de "Notes" nos quais

Stevens utiliza a trade como o culminar de uma busca do "seu prprio estilo" de acordo com as

palavras de Vendler.30

Citando Hillis Miller, Cook sugere que Stevens apresenta logo no incio da sua obra potica o

"princpio da descontinuidade"; este conceito implica a ruptura com as expectativas aplicando

palavras com um certo sabor nonsense. Ao faz-lo, Stevens revela que o sentido dos jogos fonticos

se pode enriquecer com jogos semnticos. Como exemplo, podemos citar vrios poemas, entre eles,

"Earthy Anecdote" (SP,p. 1) no qual a repetio dos sons /k/ e /kl/ em "Every time the buckles went

clattering / Over Oklahoma" lembram o rudo dos cascos dos animais; tambm, no poema

"Depression before Spring" (SP,p.l9) podemos apontar o jogo subtil entre as palavras

onomatopaicas "rou-cou-cou" e "ki-ki-ri-ki" e o raciocnio lgico imposto pelo advrbio de negao

"no" do qual resulta um estado "entre ausncia e presena"; ainda em "The Plot against the

Giant"(SP,p.3) encontramos o simbolismo do verso " heavenly labials in a world of gutturals ", que

Vendler.Op.cit.,p.3

44

poder ser visto como o "padro prosdico" de Stevens.31

Cook refere ainda o gosto de Stevens por palavras invulgares, cujo excesso pode tornar a

dico stevensiana extravagante e de difcil compreenso; "Fabliau of Florida" e "The Comedian as

the Letter C" podem ser apontados exemplos do que atrs foi dito.

Alm disso, a flexibilidade fnica de alguns poemas pode, em certos casos, solicitar-nos a mesma

agilidade de dico que nos exige um trava-lnguas: "But fictive things / Wink as they will. Wink

most when widows wince" como em "A High-Toned Old Christian Woman" (SP,p. 18).

Regressando perspectiva de Roger Gilbert, partilhamos a sua opinio quando diz que a

potica de Stevens tem como objectivo o "desejo de apagar a diferena entre texto e experincia,

afirmar e defender uma coincidncia absoluta entre linguagem e sensao".32

Todos os sentidos convergem, pois, para a experimentao do mundo como um sistema complexo

do qual somos uma parte. Este mundo revelado sob uma perspectiva fenomenolgica que alia o

sentido da viso ateno auditiva ; Stevens procura estabelecer esta aliana fazendo a sua

articulao atravs da linguagem.

Com efeito, para Wallace Stevens as palavras so parte do no-eu, irmanadas com a natureza na sua

origem e, tal como acontece com o real, devemos aceit-las na sua condio factual:

Bringing out the music of the eccentric sounds of words is no different in principle from bringing

out their form & its eccentricities:language as the material of poetry not its mere medium or instrument.

(Adagia,CW,p.909)

Para um aprofundamento da questo, sugerimos os ensaios "Making Sense of the Sleight-of-Hand Man" por Marie Borroff e "Stevens's Prosody" por G.S.Lensing. Teaching Wallace Stevens. Practical Essays. (1994)EdJohn W.Serio andBJ. Leggett.Knoxville:The University of Tennessee Press, 1996,pp. 87-99 e 100-118, respectivamente. 32 Gilber. Op.cit.p,4

45

Tambm no ensaio "A Collect of Philosophy" (CPP,pp.850-867), Stevens faz a aluso a uma

"cosmic poetry", definindo-a assim, porque "it makes us realize in the same way in which an escape

from all our limitations would make us realize that we are creatures, not of a part, which is our every

day limitation, but of a whole for which, for the most part, we have as yet no language".

Para Stevens, o poema, como j referimos, nasce de uma ocasio, de uma experincia: "The poem is

the cry of its occasion / part of the res itself and not about it". Sob este ponto de vista,Stevens

defende a coexistncia do acto de conscincia com o momento de "insight", noo que s pode ser

uma fico dado que o poema um texto e no um "grito". Contudo, esta fico a pedra de toque

da potica de Stevens e o dilema que a proposta cria (a questo da simultaneidade) vai colocar a

obra de Stevens num espao de transio entre o grito e a descrio.33

Tal como as esttuas, o poema tem de sobreviver ocasio que o ditou, passar da

participao para a representao, do "of para o "about", num processo infinito de meditao ("a

never-ending meditation"), perante a persistncia de um mundo concebido como horizonte e cuja

fluidez e complexidade tm de ser captadas pelo poeta. A sua misso tornar visvel o invisvel no

seu edifcio potico pela sobriedade das palavras escolhidas: "The great building is like a neutral

zone, invulnerable to the weather" (LWS,p.776)

Regressando s reflexes desenvolvidas no incio desta primeira parte do trabalho sobre as

possveis semelhanas entre a arte da poesia e a arte da arquitectura, importante relembrar o que

Muntafiola afirma acerca do papel do arquitecto: "El arquitecto es el poeta de las formas, porque

Gilbert refere o conceito de "exclamation" recorrendo a Wittgenstein, que a associa, pela sua espontaneidade, ao "grito de dor". Mas, h uma diferena, segundo Wittgenstein; enquanto o grito de dor est apenas ligado ao fenmeno que o causou, a exclamao comporta algo de descritivo. Wittgenstein formula um princpio que poder estar subjacente potica de Stevens: "A cry is not a description. But there are transitions". a este espao de transio que nos referimos.

46

sabe construirias poeticamente, mediante la encadenacin de sus elementos dentro de una misma

totalidad, mito o fbula"34

Tal como o poeta, o arquitecto dever ter a capacidade de "criar fices" ( os edifcios) de

acordo com um plano (projecto) como respostas multiplicidade de tenses ditadas pela necessidade

bsica da nossa condio humana: a de habitar. A essncia da arquitectura o reconhecimento de

que no podemos pensar em construir sem definir, ao mesmo tempo, um habitar.

Construir, habitar e pensar (projectar) so as articulaes imprescindveis para que a arquitectura

possa ter uma leitura potica e para que a poesia possa ter uma leitura "arquitectnica".

Hlderlin disse: "Poeticamente, o homem habita". Se , nesta primeira parte, tentmos fazer uma

abordagem dos passos mais significativos da construo do "edifcio" potico de Wallace Stevens,

tentaremos, no prosseguimento do nosso trabalho, reconhecer a "habitabilidade" de Selected Poems,

desvendando alguns encontros possveis que o seu espao pode proporcionar.

Muntanola.Op.cit.p.24

Once a space has been given attention

it turns into something extraordinary.

Wallace Stevens, Letter, 1916

2. HABITAR

Ainda como referenda para alguns conceitos de arquitectura, importante destacar a

afirmao feita por Muntafola de que a construo deve ser, acima de tudo, uma criao de ordem,

a procura de uma unidade interior perante o pluralismo, por vezes, o caos que existe na nossa vida, e

que, experimentado por uma sensibilidade colectiva, pode ser caracterstico de uma poca. Como a

essncia da arquitectura a construo de espaos para serem habitados, estes representam um

aspecto importante na vida do homem, pois neles se pretende encontrar a intimidade acolhedora e

protectora, ou como ter dito Bachelard, os lugares onde o nosso repouso encontra as suas razes.

Segundo Giedion, Le Corbusier, na dupla leitura que faz da realidade como pintor e como

arquitecto, tem uma noo apurada do espao na existncia humana. Nas suas obras podemos

descobrir afinidades concretas entre a construo e as aspiraes e exigncias humanas da poca.35

Entre as obras de Le Corbusier, Giedion destaca o Centro de Saint-Di pela novidade das relaes

espaciais propostas, mas, principalmente, porque nele podemos encontrar a noo de habitabilidade

que se vai tornando fundamental como elemento-chave do conceito geral de arquitectura: a

combinao do espao com o corpo que o percorre.

Giedion.Op.cit,pp.302-303

48

Em Saint-Di descobrimos um projecto que teve em conta, no apenas as necessidades individuais,

mas as de uma comunidade, j que o espao delinea