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    1 7Conflitos, protestos e movimentos sociais

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n. 1, p. 13-16, jan./abr. 2006

    NA FRONTEIRA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

    Alain Touraine*

    Resumo: Podemos ainda falar em movimento social em sociedadesque chamaramos ps-industriais, s quais muitos observadoreschamam sociedade da informao ou da comunicao? A resposta aessa questo preside o emprego que os socilogos devem ou nofazer da noo de movimento social no mundo de hoje e, em particular,em seus setores economicamente mais modernos. necessriodistinguir claramente, em cada tipo de sociedade, os movimentossociais propriamente ditos, os conflitos estruturais dessa sociedadeque opem os detentores do poder econmico e social e aqueles aeles submetidos, e os movimentos (histricos) que podem serclaramente definidos pelos conflitos surgidos em torno da gesto damudana histrica. A primeira noo aparece mais evidente e maiscentral em estudos sobre a sociedade industrial; entretanto, faz-senecessrio descobrir, constantemente, os laos que unem os doistipos de movimento coletivo.

    Palavras-chave: movimento social, sociedade industrial, sociedadeps-industrial.

    I.1 Propor nova definio e anlise dos movimentos sociais, dascaractersticas e das diversas interpretaes elaboradas sobre eles,pode ser julgado como mais pernicioso do que til. Atualmente, anica razo que me parece justificar um novo exame dessa noo a introduo de outros elementos no debate. Aqui, duas possibilidades

    de crtica se apresentam. A primeira delas declara que a idia demovimento social menos uma categoria propriamente analtica doque uma categoria de natureza histrica. Isto , os movimentos sociaisesto ligados a um tipo de sociedade, que deixamos para trs, porexemplo, a sociedade industrial. A definio, entretanto, pode ter maioramplitude e, assim, no haver mais necessidade de utilizar a noode movimentos sociais. Alguns diro mesmo que necessrio deixaressa noo que nos fecha em um tipo de sociedade que, em grande

    Sociedade e Estado, Braslia, v. 21, n.1, p. 17-28, jan./abr. 2006

    * Directeur dtudes lcole des Hautes tudes en Sciences Sociales (EHESS), Paris.Ttulo original: A la frontire des mouvements sociaux.Traduo de Ana Lisi Thurler.

    Artigo recebido em 5 mar. 2006 e aprovado em 13 maio 2006.

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    parte, pertence ao passado, dando a impresso de nos oferecer uminstrumento de anlise geral.

    A segunda forma de criticar o uso da noo de movimentosocial enfatizar que os fenmenos de globalizao ou demundializao deslocaram consideravelmente os espaos emecanismos de conflitos, de tal modo que os movimentos sociaismerecedores de estudos so aqueles que colocam em questo osmecanismos de globalizao que, em larga medida, no suscitamdecises semelhantes quelas adotveis por uma classe dirigente,e no aqueles que se opem a categorias sociais no interior de um

    conjunto poltico ou territorial bem determinado.Desde logo, indico que essas duas objees me parecem bem

    fundadas. Tentarei, ento, justificar, sobre esses dois planos principais,a recomendao de suspender o recurso noo de movimentossociais, salvo quando se tratar de realidades sociais e histricas jmuito estudadas, pois normal e desejvel submeter constantementea novas anlises. nesse ponto de partida que o ttulo dado a esteartigo que pode chocar por sua violncia e seu aparente carter

    paradoxal se apia.

    Para que nenhuma confuso venha retirar o interesse anlise quer ela seja crtica ou no , necessrio primeiramente nosentendermos sobre a definio desses fenmenos. Ento nosesforaremos para mostrar que eles, cada vez menos, fazem partede nosso campo de observao e de anlise. necessrio no aplicara noo de movimentos sociais a qualquer tipo de ao coletiva, conflito

    ou iniciativa poltica. aceitvel aplicar anlises, ligadas noo deresource mobilization a todas as formas de ao coletiva e deconflito. Alis, mais aceitvel que as aes coletivas consideradaspossam ser analisadas mais em termos de busca de participao nosistema poltico, mas no h dificuldade de princpio em aplicar essacategoria a todos os tipos de ao coletiva. Em compensao, asabedoria residiria em reservar o emprego da categoria movimentossociais ao conjunto dos fenmenos que, de fato, receberam esse

    nome no decorrer de uma longa tradio histrica. O essencial, aqui, reservar a idia de movimento social a uma ao coletiva que colocaem causa um modo de dominao social generalizada. Entendo que

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    uma relao social de dominao s pode suscitar uma ao quemerea o nome de movimento social se atuar sobre o conjunto dosprincipais aspectos da vida social, ultrapassando as condies de

    produo em um setor, de comrcio ou de troca ou, ainda, a influnciaexercida sobre os sistemas de informao e de educao. O amplorecurso feito noo de capitalismo, apesar da polissemia dessetermo, indica bem o esprito com que foram conduzidos os estudosclssicos sobre os movimentos sociais. Trata-se de estudar osmovimentos que colocam em questo condies particulares, isto ,em domnios socialmente definidos, uma dominao que, em suanatureza e em suas aplicaes, tem um impacto geral. Essa afirmao

    conduz diretamente a uma segunda, a saber, que s h movimentosocial se a ao coletiva tambm ela com um impacto maior doque a defesa de interesses particulares em um setor especfico davida social se opuser a tal dominao. Como essas duas afirmaespodem ser combinadas, se no admitirmos conflito entre as partesenvolvidas, mas em uma certa representao da sociedade e de suasmudanas, isto , no interior de um campo ao qual podemos chamarcultura? Recorramos ao exemplo mais clssico. Nas sociedades

    industriais, o movimento operrio e o que podemos chamar demovimento patronal se opem sobre a utilizao dos produtos dotrabalho coletivo e dos progressos da produtividade, mas essa oposiose situa no interior de um ethos da civilizao do trabalho, daracionalizao, de progresso tcnico, podendo conduzir ao menosem princpio ao progresso social, etc. o motivo pelo qual proponho,h muito, a seguinte imagem: um movimento social a combinaode um conflito com um adversrio social organizado e da referncia

    comum dos dois adversrios a um mecanismo cultural sem o qual osadversrios no se enfrentariam, pois poderiam se situar em camposde batalha ou em domnios de discusso completamente separados o que impediria, por definio, tanto o conflito e o enfrentamentoquanto o compromisso ou a resoluo de conflito. Essa apresentaopode parecer demasiadamente restritiva. Na verdade, ela no deveser tomada em sentido muito rgido. Um conflito de impacto geralno se apresenta forosamente como um conflito geral. , ao contrrio,

    fcil de observar que os conflitos aparentemente muito limitados,como, por exemplo, os que tm como objeto as condies de trabalhoou as formas de remunerao, valem-se de enfrentamentos com

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    impacto geral. No h necessidade que um conflito social ou queuma ao coletiva se apresente armada de uma ideologia muitoelaborada para que possamos concluir a presena de um movimento

    social. Inversamente, ideologias apelando a conflitos fundamentaisna sociedade no so obrigatoriamente manifestaes de ummovimento social ou de antagonismos sociais. Afinal, a histria estrepleta de pequenos conflitos com uma ao extremamentelimitada na prtica histrica , fundados mais em significados do queem ideologias gerais. Qualquer que seja a flexibilidade com a qualnos empenharmos em referenciar a existncia dos movimentos sociais mediante conflitos ou iniciativas aparentemente mais limitadas ,

    necessrio considerarmos a definio que apresentei, porcorresponder, durante longo perodo, ao pensamento social,especialmente no perodo central da sociedade industrial.

    Por mais simples que sejam essas definies, elas indicam muitoclaramente que os movimentos sociais so condutas coletivas e nocrises ou formas de evoluo de um sistema. Podemos falar de crisesou mesmo da crise geral do capitalismo sem a interveno da idia

    de movimento social. Alis, do conhecimento de todos que, durantelongas dcadas, diversas linhas de pensamento de origem marxistaanalisaram crises do capitalismo sem incluir a anlise dos atores. importante ser bem explcito. Falarmos sobre movimento socialsignifica colocarmo-nos no ponto de vista dos atores, isto , dos atoresque so, ao mesmo tempo, conscientes do que tm em comum, ouseja, dos mecanismos de conflitos e dos interesses particulares queos definem uns contra os outros. O interesse considervel da noo

    de movimento social na histria da sociologia haver contribudopara a reflexo passar de um certo objetivismo insuficiente quandose buscou estudar as condutas a um estudo claramente definidopela busca de sentido de certas aes, isto , do sentido atribudo porcertos atores sua ao. Nesse sentido, necessrio dizer, com amesma clareza empregada at aqui, que a idia de movimento socialse ops ao pensamento que coloca a razo de ser das condutascoletivas nos problemas estruturais de um certo tipo de sistema,geralmente definido em termos econmicos.

    2 A crtica mais direta feita ao uso da noo de movimento social aquela que a identificou com um aspecto bem preciso e central da

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    sociedade considerada. Assim, foi admitido por muitos que omovimento operrio tinha culminado no momento em que os mtodosde organizao do trabalho, e em particular o fordismo, ameaaram

    de maneira grave e sistemtica a autonomia do trabalho operrio e,por conseqncia, atingiram diretamente os operrios qualificados.Em todos os pases da primeira industrializao, observa-se, no inciodo sculo XX uma srie de conflitos gerais, freqentementeintroduzindo a idia de greve geral, que representaram picos na aode classe. Em todos os grandes pases industriais, ocorreram grevesque colocaram mais claramente do que em outros a natureza geralde um conflito formado no domnio do trabalho, mas se aplicando aos

    domnios mais diversos da vida social. No decorrer de duas pesquisasrealizadas h vinte anos de distncia, penso ter mostrado que aconscincia da classe trabalhadora e, portanto, a fora central domovimento operrio ao menos nos pases industrializados h maistempo esteve ligada ao conflito entre a defesa da autonomiaprofissional e os mtodos de organizao ditos cientficos do trabalho.Passado esse choque principal, foram retomadas outras definiesdo trabalho, como nvel, estatuto, funo, expresses que de nenhum

    modo remetem a um conflito de impacto geral. O mundo dosempregados, o mundo das categorias operrias muito diferenciadasno produzem mais um movimento social comparvel ao que foi omovimento operrio da primeira metade do sculo XX, no caso daEuropa, cujas ltimas manifestaes podemos observar, sobretudona Itlia, com o outono quente e, de modo mais limitado, na Frana,na grande greve Lip, aps os acontecimentos de maio de 68.

    3

    Inversamente, tanto mais necessrio ter uma viso restritivado uso da noo de movimento social nas sociedades ditas industriais,tanto mais necessrio aceitar deliberadamente o emprego dessanoo em outras sociedades. O que caracteriza a sociedade industrial a utilizao de uma representao poltica da vida social. Nessecaso, um conflito geral pode se formar em torno da apropriao dopoder poltico. Esse tipo de conflito teve maior visibilidade na Europa.Algumas vezes foram mencionados sculos de revolues para sefalar do perodo que comeou com as revolues holandesa e inglesa,at a revoluo francesa, qual podemos acrescentar a revoluoamericana que, antes de tudo, foi uma guerra de independncia. Foitambm o caso das revolues bolivarianas, que romperam o liame

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    de dependncia da maior parte dos pases da Amrica com acolonizao espanhola.

    A aplicao da noo de movimento social a sociedades quese pensaram e se organizaram em termos menos sociais do quepolticos, pode tambm ser feita a sociedades ainda mais distanciadasdas sociedades industriais. Se uma sociedade, ela mesma, se concebe,analisa e descreve suas prprias prticas e seus prprios conflitosem termos religiosos, no h nenhuma razo para no aplicar a essesmovimentos religiosos a noo de movimento social. quase ilimitadoo campo de aplicao dessa noo reforando sua extrema

    importncia assim como dos conflitos sociais centrais das sociedadesindustriais e da noo de movimento social, que tem permitido analis-los de maneira adequada.

    II Essa evocao muito rpida de sociedades passadas comocampo de aplicao da noo de movimento social conduz muitodiretamente a uma das duas grandes interrogaes que mencioneino incio. Podemos ainda falar em movimento social em sociedades

    que chamaramos ps-industriais, s quais muitos observadoreschamam sociedade da informao ou da comunicao? Na realidade,a resposta a essa questo preside o emprego que os socilogos devemou no fazer da noo de movimento social, no mundo de hoje e emparticular em seus setores economicamente mais modernos. primeira vista, no h qualquer razo para no aplicarmos a essenovo tipo societal a anlise que usamos para outras sociedades. No difcil ver, em diversos pases e em tipos de sociedades muito

    diferentes, conflitos tocando a apropriao da informao e doconhecimento. Estudos sobre mdias foram realizados em hospitais,em escolas para mostrar a existncia de conflitos fundamentaisconcernentes utilizao social da informao. No h razo dedispensar o conceito de movimento social, recusando utiliz-lo emtipos de sociedade cada vez mais claramente separadas das sociedadesindustriais, que encontraram suas formas mais clssicas em diversos

    pases, nos sculos XIX e XX., entretanto, impossvel no ver uma mudana fundamental

    de situao. Em todas as sociedades que foram aqui rapidamente

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    evocadas, o conflito social tem como eixo a utilizao dos recursoscriados pela sociedade seja na ordem dos bens materiais, seja naordem dos bens simblicos , de modo que o xito ou o fracasso de

    um movimento social trata-se de um movimento de dominantes oude dominados se traduz por transformao da organizao sociale, em particular mas no unicamente, da produo. Ao contrrio,quando nos situamos na sociedade da informao, no possvelencontrar formas de organizao ou de produo que traduzamdiretamente uma dominao social. Em outros termos, o triunfoespetacular das tecnologias da informao e da comunicao detmextrema flexibilidade e no so mais instrumentos a servio de um

    poder social, ainda que os mtodos de organizao do trabalho nosejam instrumentos tcnicos, mas formas organizacionais dedominao de uma classe sobre outra, do empregador sobre osassalariados. Essa observao se aplica ainda mais facilmente sgrandes lutas polticas que precederam os movimentos propriamentesociais, dado que a organizao administrativa, o direito e asinstituies polticas manifestam, de maneira muito mais direta, asrelaes de dominao ou uma ao realizada a servio de interesses

    e de ideologias claramente identificveis. Em compensao, quandonos situamos em sociedades da informao e da comunicao nopodemos mais nos referir a formas concretas de organizao e deproduo. Podemos facilmente perceber isso nos discursos dosdefensores das empresas, conferindo prioridade flexibilidade domercado de trabalho ou importncia da inovao tecnolgica. Asforas dominantes se definem no mais por seu contedo ou formasde vida social, mas por uma capacidade ilimitada de mudana ou de

    adaptao a um contexto em constante modificao, e, muitas vezes,imprevisvel. Por outro lado, difcil encontrar o equivalente expresso empregada anteriormente: a defesa da autonomia dotrabalho ou da profisso. No se trata mais de definir um espao ouum tempo autnomo, e sim de reconhecer a prioridade que deve serdada criao muito mais do que defesa de uma autonomia,bem menos profissional ou econmica do que moral. Isto , aautonomia do prprio indivduo, considerado como ator ou, para uma

    expresso mais exata, como sujeito. Em outros termos, os movimentose os adversrios no podem mais ser descritos e compreendidos emtermos sociais: o face a face ope pura mudana evocando a

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    noo de mercado a exigncia de autonomia, liberdade eresponsabilidade da pessoa. Nos dois enfoques, a ordem social excedida. a observao mais importante que se pode fazer para

    compreender as transformaes atuais dos movimentos sociais. arazo pela qual prefervel substituir a expresso movimentossociais por movimentos culturais, indicando o deslocamento dosconflitos para a ordem simblica e, ainda mais importante, definindoo que deve ser defendido e o que deve ser combatido, em termos nomais propriamente sociais. Como se, agora, face a face, seencontrassem foras incontroladas como podem ser no somente osmovimentos do mercado mas, mais profundamente ainda, os

    mecanismos conduzindo a catstrofes e enfrentamentos blicos queexcedem largamente as intenes daqueles que acreditamdesencade-los e dissip-los. De outro lado, diante dessas forasimpessoais, no so transformaes sociais ou foras sociaisorganizadas que esto em cena, mas exigncias morais. Ou, comose diz com muito gosto hoje, ticas. Trata-se, entretanto, de moral, medida que se trata de direitos humanos e da concepo deuniversalismo desses direitos, mediante formas legais e quaisquer

    outras. Como se enganar nessas questes? A uma linguagemdominada pelo interesse ou pela estratgia se sucede uma linguagemdominada pela moral, pelo medo de catstrofes, como recurso muitasvezes desorientado com o qual resistir a todas as violncias, a todasas crueldades. L est, creio, o essencial no que concerne naturezados movimentos sociais em nossa sociedade. necessrio ainda falarem movimentos sociais? Creio que sim. Porque se trata ainda deconquistar ou reconquistar um espao social. Aqueles que querem

    aumentar o poder das foras impessoais se esforam em baixar asbarreiras sociais, em deixar a regulao feita pelo mercado se exercerto facilmente quanto possvel. Por outro lado, mesmo aqueles queas chamam de modo mais religioso ou escatolgico que seja ao queteramos chamado em outros tempos alma ou humanidade, socuidadosos em criar pela via jurdica ou outra garantias, barreirasque se oponham destruio do sujeito humano. necessrio que asociedade no se feche no estudo da linguagem social, isto , de sua

    prpria linguagem. indispensvel reconhecer ser a linguagem polticasobre a vida social do domnio da sociologia, assim como a linguagemsocial sobre a vida social linguagem prpria da sociedade industrial.

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    Cabe sociedade compreender as linguagens polticas e religiosas,mas tambm as linguagens morais e mesmo as linguagens da tragdia.Ns o sabemos bem. As piores catstrofes, os extermnios, as cenas

    mais espantosas de crueldade fazem parte da realidade social e nopodemos, de nenhuma maneira, desembaraar-nos de sua violncia,falando em casos atpicos, patolgicos ou marginais. Quanto maisavanamos na direo dessas sociedades que so menos sociedadesda informao e da comunicao e mais sociedades abertas a todosos ventos, isto , onde foras no sociais se desencadeiam , mais setorna importante manter a unidade de uma investigao sociolgica,isto , de uma investigao ao mesmo tempo repousando sobre a

    idia de conflito e sobre o que h de comum entre os adversrios emconflito. Nas sociedades, onde muitos de ns aprendemos a viver, ocomum a vontade de criar ou de preservar um espao social. Essadeve ser a razo pela qual temos visto nascer com grande vigor, emdiferentes pases no decorrer de anos, o tema da reconstruo doslaos sociais.

    III necessrio distinguir claramente, em cada tipo de sociedade,os movimentos sociais propriamente ditos que foram evocados, osconflitos estruturais dessa sociedade que opem os detentores dopoder econmico e social e aqueles a eles submetidos, movimentosde outra natureza que, na falta de melhor expresso, designomovimentos histricos e que podem ser claramente definidos pelosconflitos surgidos em torno da gesto da mudana histrica. Falamosdo movimento operrio como de um movimento social central dasociedade industrial e de movimentos histricos ou polticos como ocapitalismo, o socialismo, o comunismo e outros, cujo objeto foi dirigir

    o processo de industrializao. De um lado, portanto, um conflitointerno sociedade industrial e, de outro lado, um conflito derivadodo processo de modernizao. Compreende-se facilmente quemovimentos sociais e movimentos histricos freqentementeprocurem se unir e mesmo se confundir. Na realidade, a situaomais freqente aquela em que os movimentos visam ao controle deum processo de modernizao, se apropriam de movimentospropriamente sociais, como estando limitados a um tipo de sociedade.

    Em muitos pases europeus, particularmente na Europa do Sul, ospartidos polticos sejam socialistas, comunistas, anarquistas procuraram, constantemente, impor sua lei aos sindicatos que

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    representam os movimentos sociais propriamente ditos. Inversamente,a Europa do Norte foi dominada por partidos sociais-democratas,cuja primeira definio era serem submetidos ao poder sindical. Esse

    fenmeno foi mais longe na Gr-Bretanha, onde o partido socialistase chamou Labour (Trabalhista) e se situou na dependncia diretados sindicatos. Esses fenmenos de dominao ou de confuso tma maior importncia histrica, mas seria necessrio que a nenhumpreo confundissem o que est separado. Exemplos muito conhecidosde pesquisa em torno da Revoluo Francesa insistiram sobre anecessidade de separar movimentos camponeses ou movimentos desubsistncia de movimentos de inspirao mais urbana, mais

    burguesa, visando reverter o poder do rei e da aristocracia. Sabe-seque, em sociedades medievais de tipo europeu, sistema senhorial sistema de relaes sociais e sistema feudal sistema dedependncia de vassalos em relao a suseranos funcionaramindependentes um do outro, mesmo se as relaes dos senhores comos servos no poderiam ser separadas das relaes dos senhoresentre eles.

    Pode-se, agora, colocar a questo: nas sociedades deinformao e da comunicao e, mais geralmente, nas sociedadesps-industriais, h a mesma separao entre os movimentos que sesituam no interior de uma estrutura e os que atuam no quadro de umprocesso de modernizao? Mesmo se uma questo to geral podeprovocar uma grande variedade de respostas, conforme os lugares eas circunstncias, podemos avanar com a idia geral j anunciadana parte precedente deste artigo: a distncia entre movimentos sociais

    e movimentos histricos de contestao elite dirigente da mudana muito maior do que nas sociedades industriais. O movimentohistrico mais visvel neste incio do sculo XXI, o movimento anti-globalizao ou altermundialista, aparece como tendo relaesdistantes com os movimentos sociais propriamente ditos, o que colocaem questo sobretudo o uso do conhecimento na educao, na sadee outros domnios da vida social. aqui que ganha todo sentido aoposio entre movimentos sociais que tendem a se tornar movimentosculturais e morais e movimentos histricos que, conduzidos pelamodernizao, transbordam o quadro do poltico para colocar emquesto uma organizao sistmica e, em particular, redes decomunicao que no podem mais ser imaginadas como simples

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    superempresas nacionais. Isso explica a grande dificuldade queencontram os altermundialistas quando tentam estabelecer as ligaescom os movimentos propriamente sociais, que resistem a dar

    importncia central mundializao, em face de seu enraizamentolocal, social ou profissional.

    Essa imagem geral foi inspiradora das anlises de dois aspectoscomplementares dos movimentos sociais e histricos e a ciso dosconjuntos no interior dos quais se situam as anlises to integradas ecoerentes quanto possvel de todas as formas de ao coletiva quecaracterizam um tipo de sociedade e seus processos de modernizao.

    Ainda que estejamos constantemente tentados a confundirsindicalismo e socialismo ou comunismo, por exemplo, e tentadossobretudo a reuni-los sob o ttulo geral de movimento operrio oque leva somente confuso a distncia entre o altermundialismoe os movimentos, por exemplo, referidos s relaes dos pacientescom o conhecimento e as organizaes mdicas, essa distncia detal magnitude que somos tentados a negar a existncia de toda relaoentre esses dois conjuntos. Reao bem mais prefervel do que a

    reao contrria, com o risco de mascarar o que h de comum, emtodos os casos, entre os movimentos que pem em questo umadominao social e aqueles que atacam o modo de gesto do processode modernizao.

    Tudo isso deve conduzir a uma interrogao radical: em taiscondies ainda til falar em movimento social? J disse o quantoesses movimentos, um e outro tipo, so cada vez menos definidos no

    espao social. Disse, tambm, que impossvel no cham-los demovimentos sociais, medida que seus adversrios procuram apoiarseus interesses e seus objetivos sobre mecanismos sociais einstituies que servem de instrumento reconstruo do espaosocial.

    Ainda que seja, provavelmente, mais fecundo partir da hiptesede que os movimentos sociais propriamente ditos desapareceram eforam substitudos, de um lado, por puros movimentos histricos e,de outro, por movimentos culturais e sociais, parece-me indispensvelrecusar essa concluso perigosa e manter todos os mecanismosintermedirios, ainda que fracos, que impeam uma completa

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    separao entre movimentos sociais propriamente ditos e movimentosnascidos da gesto dos processos de transformao histrica.

    Chegamos ao ponto extremo do territrio no qual a noo demovimento social pode ser utilizada. Muitos, com razo, diro queessa noo aparece mais evidente e mais central em estudos sobre asociedade industrial. Inversamente podemos lembrar a necessidadede descobrir, constantemente, os laos que unem os tipos demovimentos coletivos. Esse argumento me conduz a concluir sobre anecessidade de manter a referncia noo de movimento social noestudo das sociedades contemporneas, de quaisquer tipos, mesmo

    que, primeira vista, paream no exigir a utilizao de tais noes.A continuidade da anlise sociolgica mais importante do que aobservao das diferenas profundas que existem entre um e outrotipo societal.

    At the frontier of social movements

    Abstract:Can we still speak about social movement in the so-called post-industrial societies, which are also known as societies ofinformation or communication by many observers? The answer tothis question depends on the use that sociologists make or do notmake of the notion of social movement nowadays, especially in relationto the economically most modern sectors. It is necessary todistinguish very clearly, for every type of society, the central socialmovements, i. e. the structural conflicts of this society, which expressthe opposition between the holders of economic and social powerand those who are subservient to them, from another type ofmovement (historical movement), which can be clearly defined bythe conflicts arising in relation to the generation of historical change.The first notion appears more clearly and more centrally in the studiesof industrial society, but it is important to discover, constantly, thelink between the two types of collective movements.

    Key-words: social movement, industrial society, post-industrialsociety