transdisciplinaridade: antropologia e literatura no...
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TRANSDISCIPLINARIDADE: ANTROPOLOGIA E LITERATURA
NO ENSINO MÉDIO
TRANSDISCIPLINARITY: ANTHROPOLOGY AND LITERATURE IN SECONDARY EDUCATION
Rodrigo do Prado Bittencourt1
RESUMO: Este artigo analisa criticamente o ensino da Literatura durante o Ensino Médio nas escolas brasileiras, avaliando a contribuição que o método antropológico pode trazer para as salas de aula, numa iniciativa de transdisciplinaridade. Uma análise da alteridade, contemplando o valor da diferença e da diversidade, pode ajudar imensamente os adolescentes a compreenderem a Literatura. Além da reflexão, é feita a análise de um caso específico: o livro Dom Casmurro, de Machado de Assis. Pretende-se, assim, deixar evidente como se dá a aplicação do método antropológico e suas potencialidades.
ABSTRACT: This article critically examines the teaching of literature in secondary education in Brazilian schools, assessing the contribution that the anthropological method can bring to classrooms, in a transdisciplinary initiative. An analysis of otherness, contemplating the value of difference and diversity, can greatly help the teens understand the literature. In addition to reflection, it is made the analysis of a specific case: the book Dom Casmurro, Machado de Assis. It is intended, thus, leaving clear how the application of anthropological method and its potentials is.
PALAVRAS-CHAVE: alteridade; ensino escolar; didática; Dom Casmurro.
KEYWORDS: otherness; school education; didactics; Dom Casmurro.
1. INTRODUÇÃO
Antes de analisar as práticas pedagógicas em si – e sobretudo a visão teórica que as
embasa epistemologicamente – cabem algumas poucas palavras sobre o critério que deve
ser adotado perante toda e qualquer atividade docente. Este critério deve ser o da empatia,
de colocar-se no lugar dos alunos e analisar qual a sua realidade histórica, social, psíquica,
biológica, etc. (FREIRE, 2011), enfim, trata-se de descobrir os alunos enquanto seres
1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP – Brasil), mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP – Brasil) e doutorando em Literatura Portuguesa pela Universidade de Coimbra (UC – Portugal). Foi bolsista CNPQ no mestrado e agora é bolsista de doutorado pleno no exterior pela CAPES. Tem 8 artigos publicados, sendo um nos EUA (City University of New York), um na França (Université de Nantes), um em Portugal (ISCAP) e os demais no Brasil. Além disso, tem cinco contos publicados em diferentes revistas literárias.
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humanos; vê-los por completo, de modo heurístico.
Ao usar o termo “aluno” faz-se uma generalização que não tem sentido. Não existe
“o aluno”, mas “alunos”. Um aspecto que muitas vezes é deixado de lado e que foi muito
bem abordado por Bourdieu (1975) é a realidade de classe destes alunos, pois nenhuma
escola pode supor que esta realidade seja a mesma para todos os alunos. Em meio à
diversidade de pertença social surge a diversidade de realidades pedagógicas.
Como mostra o sociólogo, os filhos de pais com letramento mais profundo, que
veem seus pais lendo e que tiveram estímulos destes para também ler, terão mais facilidade
com a atividade escrita que os filhos de pais sem formação escolar e que não receberam
uma considerável quantidade de estímulos desta espécie. Além do que, há famílias que não
têm condições econômicas para comprar os livros que seus filhos possam vir a querer ou
precisar, enquanto outras podem se dar ao luxo de comprar obras que jamais serão lidas.
Isto sem falar na multiplicidade de universos culturais de cada família, deve-se levar em
consideração a origem, das tradições religiosas, a dicotomia campo e cidade e muitos
outros fatores de diversidade não contemplados pela escola e que podem suscitar terríveis
frustrações nos alunos, impossibilitando uma boa aprendizagem.
Como lidar, pois, com essa diversidade sem cair na cilada de confirmar a
hierarquização social existente do lado de fora das escolas e trazê-la para dentro? Como
não estar agindo em prol de uma formação elitista que reproduz os valores da elite e,
portanto, mais facilmente assimiláveis por ela (como o próprio letramento pode vir a ser)?
A resposta está na obra de Rousseau. Aliás, como bem mostra Coura (2005), a ideia básica
da educação rousseauniana é a de que a criança – e não o adulto – deve ser o centro da
prática pedagógica. Assim, o ideal seria uma escola em que os educandos não fossem
separados por idade, calados pela disciplina e oprimidos por um currículo que não lhes
parece fazer sentido algum. Como o foco deste trabalho, entretanto, não é o modelo
educacional em si, mas a prática do ensino da Literatura, hoje, supondo o modelo
pedagógico vigente, é preciso analisar como a contribuição do filósofo francês pode
contribuir nestas condições.
Duas práticas extremamente simples já seriam de boa ajuda nesta questão. A
primeira seria que os professores, antes de preparar suas aulas, pensassem como os alunos
reagiriam ao plano. Não se trata de apenas pensar nos alunos, mas pensar verdadeiramente
como eles pensam. Deve-se buscar este exercício antropológico de colocar-se no lugar do
outro para “pensar com a cabeça dele”.
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Quando um antropólogo se dirige a uma tribo indígena para estudá-la, deve tentar
abstrair-se totalmente de suas ideias, preconceitos e dogmas para tentar entender como os
nativos pensam. Assim também deve ser o professor para com os alunos. Não apenas pelo
fato de que eles pertencem a gerações distintas, mas porque são “outros” e devem ser
vistos em suas especificidade. Cada ser humano é um universo à parte e deve ser
compreendido em suas necessidades e ajudado a desenvolver suas potencialidades e este é
o pressuposto básico da Educação na visão de Rousseau.
A Literatura permite que a pessoa conheça outros mundos: quando o Auto da Barca
do Inferno é apresentado a alguns alunos, eles estão sendo levados ao mundo do século XVI.
Por mais maravilhoso que isto seja, no entanto, deve suscitar cuidados: esta deve ser uma
visita guiada e eles devem ser levados até lá e trazidos de volta ao século XXI. Ou seja, o
conhecimento deve ser mediado para que faça sentido a estes alunos, não de um modo
utilitário, como provavelmente, por influência da atualidade, ele buscará ver. É preciso que
faça sentido justamente por ser diferente de tudo que aí está, por ser uma outra
possibilidade de existência, por descortinar uma série de opções antes seque sonhadas.
Resumindo, também o aluno deve fazer uma experiência antropológica. Se o professor
conceber assim sua aula, ela terá êxito; o resultado deste sucesso é conseguir empreender
com os alunos uma outra experiência antropológica; agora, para o mundo da Literatura.
Só realizando a viagem ao mundo dos alunos o professor conseguirá buscá-los para
mostrar-lhes o mundo novo da Literatura, motivo da primeira viagem. Usando da famosa
alegoria da caverna, de Platão: uma vez tendo descoberto o mundo exterior à caverna (o
amor pela Literatura), deve-se voltar a ela para levar esta descoberta aos que ainda estão lá
(os alunos); o sucesso da empreitada é duvidoso, pois inúmeros fatores levam a que estes
resistam, mas o sucesso é possível, e se ocorre, multiplica o número dos conhecedores da
nova realidade. Embora a alegoria termine com Sócrates narrando a morte daquele que saiu
da caverna, pode-se pensar que ele não estava disposto a deixar de ser este anunciador das
realidades novas, uma vez que aceitou morrer em nome de suas ideias. Convicto de seu
amor pela justiça e pela verdade, o filósofo vai até o fim, sem fugir. O próprio Sócrates é o
exemplo paradigmático desta coerência e amor pela verdade, uma vez que recusou a fugir
da prisão e aceitou morrer por suas ideias.
Estes experiências “antropológicas” (entre aspas porque não são exclusivas da
Antropologia, mas pertencem também à Literatura e todo o conjunto de saberes humanos)
conferem um enorme avanço em matéria de formação criativa e crítica do pensamento e
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até de desenvolvimento lógico. Até mesmo da lógica matemática/científica/racional.
Afinal, conseguir desprender-se de seu antigo modo de pensar para abrir-se ao novo e
contemplar todas as possibilidades de existência que a imaginação permite são habilidades
que podem ser úteis em todos os campos do conhecimento.
Deve-se pensar no poder social que uma prática docente assim pode ter. Enquanto
muitos acusam o ensino das Humanidades de elitista, deve-se pensar que não se pode
privar as classes mais baixas daquilo de melhor que a humanidade produziu: a arte. Os ricos
ainda poderão pagar cursos extracurriculares, se quiserem, mas e os pobres? Este
conhecimento deve ser acessível a todos. Foi por isso que Antonio Candido, numa recente
conferência na USP, defendeu o ensino da Literatura como um dos Direitos Humanos.
2. EXEMPLO PONTUAL
Segue aqui um exemplo pontual de um aula preparada segundo os parâmetros
acima especificados. Ela tentará enfrentar a árdua tarefa de fazer os alunos defrontarem-se
com o texto sem esperar respostas fáceis, descobri-lo como uma realidade nova e
contemplarem, após isso, suas próprias referências de realidade como uma possibilidade
entre outras.
Para isto, escolheu-se um texto ilustrativo da própria relação que muitos
professores parecem ter para com seus alunos, ao subentender, sem referências plausíveis
deste sentido, que a mentalidade dos docentes pode ser facilmente compreendida pelos
discentes; que o universo de referências de um é partilhado por todos. Este texto é muitas
vezes evocado para se discutir a problemática da Tradução, mas vai muito além disso;
sendo importante para entender, inclusive a questão de cânone literário e de como uma
obra deve ser abordada numa leitura madura e profunda. Trata-se do artigo “Shakespeare
na Selva” (Shakespeare in the Bush), de Laura Bohannan, de 1961.
Este artigo, escrito de modo sincero e simples, é um dos mais acessíveis textos de
Antropologia que se pode encontrar para os adolescentes. Não se trata de uma
simplificação ou um resumo simplificador que, tentando facilitar, muitas vezes conduz à
má compreensão do tema por parte dos alunos. Não. Trata-se de um relato feito para a
comunidade científica, profundo e interessante, mas escrito de forma extremamente
simples e magnética; o que faz dele compreensível aos que não são da área e mesmo aos
adolescentes.
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Neste texto, a autora descreve a experiência de narrar aos Tiv, uma tribo primitiva
da África Ocidental, o livro “Hamlet”, de Shakespeare. A antropóloga revela que partira
para lá pensando que havia nesta obra clássica elementos universais que poderiam ser
apreendidos por qualquer um. Os reveses que enfrenta, entretanto, ao tentar fazer-se
entender pelos nativos, acabam mostrando-lhe que a universalidade não passa de uma
ilusão de poder dos ocidentais, que desejam imprimir em suas obras um valor maior que o
de obras de outras culturas.
Esta conclusão, que vai se desenhando vagarosamente ao longo do texto, já vale,
por si só, uma séria reflexão a ser feita com os alunos. Afinal, cabe questionar até que
ponto pode-se assumir gratuitamente que nosso olhar sobre uma obra é igual ao de outro
grupo de pessoas? Será possível ler um texto de outra cultura e outra época como se fosse
um texto de nossa própria época e de nossa própria cultura? Mesmo uma leitura rápida do
texto mostrará que nenhum ponto de vista pode ser simplesmente universalizado e que é
preciso tomar cuidado com obras com referenciais de verdade distintos.
A partir dos exemplos que Laura Bohannan, diretos e até engraçados, pode-se levar
facilmente os alunos a perceberem que mesmo tratando-se de um texto de sua própria
cultura, é preciso tomar precauções para não acabar “lendo o que não está escrito no
texto”, ou seja: para que não se faça uma leitura errada e sem sentido.
Se o professor, por exemplo, conseguir mostrar que o universo de referências de
alguém do século XVI é muito distante daquele que é típico de alguém da atualidade, terá
conseguido criar uma outra atitude diante dos textos deste período histórico. Se também
conseguir mostrar que o que deixa o texto da antropóloga interessante são as diferenças
entre estes dois referenciais – o Ocidental e o Tiv – conseguirá demonstrar também que as
diferenças entre os referenciais atual e o do século XVI não são necessariamente obstáculos
à fruição da leitura, mas podem ser encarados como elementos enriquecedores dela. Afinal,
eles farão com que a leitura torne-se uma fonte de aprendizagem histórica. Além da riqueza
literária que já apresenta em si.
Assim, a proposta de trabalhar cada texto a partir de sua especificidade, remetendo
a seu universo de referências, disponibilizado pela História Literária, para depois avançar
sobre seus elementos internos começará a fazer sentido para os alunos. A noção de contato
com o distinto como experiência enriquecedora deve ser mostrada aos alunos como capaz
de revelar um universo desconhecido e descortinar até mesmo elementos do próprio
universo, mal entendidos ou sequer percebidos. Afinal, é comparando, por exemplo, o rei
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com o chefe tribal que se interrompe o pensamento “automático” e se questiona o que é
um “rei”? Esta experiência é semelhante ao contato com uma língua estrangeira. Este
revela modos de pensar até então desconhecidos, causando um efeito de contraste que é
muito elucidativo.
Se a aula, como o próprio texto faz, não revelar suas conclusões logo a princípio,
mas conseguir levar os alunos pouco a pouco a desejarem descobrir mais incongruências
entre as visões de mundo do Ocidental e dos Tiv, ela terá despertado o desejo de sair da
caverna, de encontrar o desconhecido. Se após o trabalho com este texto for feito um
trabalho com um texto literário dos mais longínquos possíveis, como uma Cantiga de
Amor, por exemplo, e se isso for feito de modo a explicitar as diferenças entre o mundo
destes jovens e o do texto em questão, pode-se conseguir interessar-lhes pela apresentação
da alteridade e isso terá contribuído muito para o ensino da Literatura.
O uso caricato que este texto faz do choque cultural, por vezes até cômico, faz dele
interessante para alunos que estão a começar o curso de Literatura dentro da escola e que
ainda não têm maturidade intelectual e mesmo de vida para interiorizar por outros meios a
necessidade de um olhar distanciado para com o texto literário. Além disso, essas
características podem ajudar a preservar os alunos de atitudes mesquinhas muitas vezes
comuns em sala de aula, como a de tentar perceber o que se pode memorizar do conteúdo
apresentado para a avaliação. O texto não traz conceitos explicitados de modo
memorizável, mas um relato de choque cultural que deixa ao leitor a tarefa de refletir por si
próprio. Por isso também seu uso pode ser interessante: afinal, permite ao docente utilizá-
lo de diversas formas, sem ter que entrar em explicações de conceitos e metodologias
antropológicas.
Esta aula deve ser a primeira do ano e servir de base para todas as outras. Sempre
que os alunos forem confrontados com um texto de um período e contexto diferente do
seu, deve-se pedir a eles que recordem o que aprenderam com este texto para que façam a
melhor abordagem possível da obra literária. Deve-se, portanto, lembrar-lhes que precisam
estar cientes da posição de alteridade que ocupam perante a obra e de como esse fato pode
trazer ricas experiências.
Se o docente tiver familiaridade com a Antropologia, pode até usar de um texto da
área a cada vez que for começar a trabalhar um novo Período ou Escola Literária. Como as
aulas de Literatura já são poucas e a maioria dos docentes da área não pode discorrer com
segurança sobre Antropologia, esta proposta foi pensada apenas para o início de cada ano
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letivo, de modo a fortalecer nos alunos a consciência de que o texto literário deve ser
abordado como registro de alguém inteiramente “outro” e que esse distanciamento não o
afasta, mas, ao contrário, aproxima da obra, uma vez que lhe permite entrar em contato
com toda sua riqueza.
Assim, para o segundo ano do curso de Literatura no Ensino Secundário, pensou-se
em outra obra. Afinal, não se pode esperar que com apenas uma aula no início do curso, os
alunos conservem a disposição de realizar o difícil expediente de manter-se alerta com
vistas à cultivar um olhar antropológico. Essa aguilhoada ou provocação deve ser renovada
a cada ano, no mínimo. De modo que, neste segundo ano, a aula inaugural deve ser esta de
cunho metodológico/conceitual a partir da Antropologia. Propõe-se que ela seja feita com
outro texto de leitura fácil e interessante: trata-se do famoso “Ritos Corporais entre os
Nacirema”, de Horace Miner.
Este texto aponta para a incidência no homem ocidental de características que
costumam ser taxadas pelo senso comum como “típicas do primitivo”. Assim, ele permitirá
um avanço em relação ao anterior. Se “Shakespeare na Selva” aponta para as precauções
que se deve tomar para não universalizar o particular, mas tomar distância em relação ao
outro, este aponta para, após essa percepção mais adequada do outro, o efeito especular
que ela pode gerar. Afinal, não basta com o primeiro texto mostrar aos alunos que eles não
devem tratar o texto literário como um dos textos que ele encontra no cotidiano; na
internet, nos videogames ou nos produtos do supermercado. Isto é interessante de se
pensar, sobretudo, neste primeiro ano de curso, em que se estudam os textos mais antigos.
Todavia é preciso ir além e olhar também para si.
Além de mostrar-lhe que o “outro” deve ser tratado como “outro”, é preciso
entender que a diferença o “eu” e o “outro” postulada pelo senso comum está, muitas
vezes, errada. De fato, ela tende a ser simplória, redutora e eivada de preconceitos. Esta
distinção é bem mais fluída que se costuma pensar e é interessante a reflexão sobre o olhar
para o “outro” que revela melhor o “eu”. Como o texto de Miner também é simples, pode
ser usado para o trabalho em sala.
“Ritos Corporais entre os Nacirema” é uma provocação com relação à visão de que
o ocidental é completamente distinto do “primitivo”. Não existe a tribo “Nacirema”, este
termo é o anagrama de “American”. O que o autor queria era justamente suscitar uma série
de reações de repulsa ao grotesco e insensato dos costumes descritos para depois
desmitificar a diferença entre os costumes “primitivos” e “civilizados”. O texto visa
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desmascarar o orgulho preconceituoso e por vezes até racista e xenófobo presente nas
sociedades ocidentais e mostrar as semelhanças entre estas e os povos que não as
compõem e que são chamados de “primitivos”.
Por fim, no último ano de curso, seria interessante um trabalho a partir do capítulo
2 (“Um História de ‘Diferenças e Desigualdades’. As doutrinas raciais do século XIX”) do
livro “O espetáculo das raças”, de Lilia Moritz Schwarcz. Aí, porém, faz-se uma exceção:
os alunos não lerão o texto, mas o docente é que lhes explicará o conteúdo a partir de sua
leitura e de excertos trazidos à sala de aula. Isso por causa de sua extensão: 24 páginas. Por
ser a primeira aula do ano, não há o recurso de solicitar que os alunos leiam previamente
em casa. Então, recorre-se a excertos e à fala do docente.
Este texto é interessantíssimo e de fácil compreensão para quem não é da área, uma
vez que é basicamente a descrição, sem muitos pormenores, de como o racismo esteve
presente na Antropologia do século XIX. Esta foi até mesmo influenciada pela
Criminologia de Lombroso e a Frenologia, hoje já não consideradas ciências2. As
possibilidades de reflexão que ele traz são riquíssimas e não há muita teoria. Fica a critério
do professor usar de duas aulas de introdução ao curso, neste último ano, podendo no fim
da primeira solicitar a leitura deste capítulo para a segunda aula.
Como no primeiro ano de curso se descobriu a necessidade de distanciamento no
contato com o “outro” para não julgá-lo segundos os próprios paradigmas e classificá-lo
como um não adaptado ao sistema de regras vigente, o aluno teve condições de analisar os
mais antigos textos da Literatura Portuguesa com outro olhar. Já no segundo ano de curso,
ele descobre a voltar, a partir do contato com o “outro”, este olhar para si e consegue
aprender mais sobre o próprio “eu” a partir de uma expansão de horizontes que está além
deste “eu”. Pois bem, agora cabe completar essa dinâmica de saída da caverna (é preciso
lembrar a alegoria usada por Platão e já referida acima) com a reflexão sobre a História
deste “eu” e a autocrítica necessária que o encontro com o outro suscitou.
Pode-se dizer que o primeiro texto equivale à percepção que existe algo além da
realidade vivida e que precisa ser conhecido por quem está na caverna. O segundo é
semelhante ao encontro com a realidade externa à caverna e a percepção de que ela diz algo
sobre si. Enquanto este terceiro momento é responsável pela ação crítica, pela decisão
histórica de intervir na realidade a partir do que se aprendeu: a volta à caverna para mostrar
2 Não é que a Criminologia não seja considerada ciência, mas a vertente de determinismo biológico que nela incutiu Lombroso não o é.
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aos demais que há outras realidades para serem conhecidas e que estas descobertas do
“novo” são, ao mesmo tempo, autoconhecimento; permitindo agir sobre si mesmo com
mais propriedade.
Com efeito, o texto de Shwarcz foi escolhido para desmistificar de vez a ideia de
superioridade intelectual do Ocidental Moderno. Afinal, esta Modernidade foi construída
sobre as bases podres do preconceito e do Positivismo autoritário. Assim, o aluno é
despertado para uma avaliação dos recursos conceituais de que dispõe como limitados e
falhos. Compreendendo que eles sempre serão assim, busca-se desfazer toda pretensão de
conhecimento pleno e definitivo. Não foi à toa que este texto foi escolhido para o último
ano do curso: aí não só os alunos têm mais recursos de História para compreender este
tema, como já tiveram dois anos de aulas de Literatura e já podem ter sucumbido à
tentação de pensar que já dispõem de capacidade suficiente para analisar o texto literário
sem falhas ou erros. Como uma tentativa de combate ao narcisismo, revisitar as grotescas
falhas da Ciência Ocidental pode ser uma experiência interessante.
Assim, opera-se um verdadeiro resgate da História Literária – afinal é disso que se
trata quando se pensa em fazer um estudo que abarque não apenas o texto, mas o ambiente
que o envolve. Este resgate não significa abandonar o estudo dos elementos textuais em si,
mas enriquecê-los a partir de uma análise que lhes dá ainda mais força, conectando-os aos
fenômenos históricos.
De fato, é preciso que o leitor conheça a riqueza da linguagem de um autor, mas
para isso é preciso levar em conta o uso da Língua em outros textos de sua época. Por
exemplo, só se entende o valor da rica linguagem de Guimarães Rosa quando se analisa o
decréscimo do uso da linguagem escrita, apontado por Verdelho (2013).
Se a ideia não é deturpar os textos para agradar aos jovens, eles devem entender
quão desafiadora é a rotina que lhes espera nas aulas de Literatura. Se ninguém lhes mostrar
isso, continuarão a julgar os textos a partir de seu universo de referências. Aliás, como
mostrou Verdelho (2013), este tende a menoscabar o texto literário, já que é dominado pela
imagem. Só descortinando o mundo novo que a Literatura pode trazer é que se poderá
esperar dos alunos que façam o mesmo. Caso contrário, a alegoria da caverna se repetirá
ainda muitas e muitas vezes, em muitas salas de aula, pelo país inteiro. Aliás, podemos usá-
la uma última vez para entender o papel da História Literária no ensino e mesmo na
pesquisa sobre Literatura: se as análises textuais ligados à Retórica estão voltadas para a
fascinação que o texto provoca, podemos ligá-las à saída da caverna e ao contato com a luz
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solar e as belezas da natureza; a História Literária seria aí a recordação de como era o
interior da caverna, base de comparação e contextualização que permite melhor avaliar a
riqueza encontrada. Uma não faz sentido sem a outra: não adianta conhecer o interior da
caverna, sem jamais dela sair; mas tampouco alguém que tenha passado sua vida toda fora
dela saberá apreciar a beleza do Sol, dos campos e das flores como aquele que acabou de se
libertar das trevas.
3. O ENSINO DE DOM CASMURRO: CASO ANALISADO
Ao se analisar este caso, pretende-se deixar evidente todo o plano proposto acima.
Com efeito, esta obra é uma das mais vulneráveis aos reducionismos descritos
anteriormente e tem muito a enriquecer os alunos, se o professor souber lidar com ela.
Dom Casmurro (1994) é um romance de Machado de Assis, muitas vezes
apresentado como obra cujo enredo se abre à polêmica. Assim, muitos professores tratam a
obra como uma revista de fofocas de artistas famosos ou uma telenovela brasileira,
reduzindo o livro à discussão se a protagonista, Bentinho, foi traído ou não por sua esposa.
Se Capitu, a esposa, traiu ou não o marido com o melhor amigo deste, Ezequiel, é de fato
algo que não se pode saber, pois a obra o deixa em aberto. Fato é, entretanto, que reduzir a
obra apenas a isso para prender a atenção dos alunos é, no mínimo, fazê-la perder seus
principais elementos.
Em primeiro lugar, deve-se deixar evidente para os alunos que, tratando-se de uma
obra de 1899, o significado do casamento era outro, pela própria especificidade do papel da
mulher naquela sociedade. Muitos casos de traição eram punidos com a morte pelo marido
e o Código Penal Brasileiro vigente de 1890 a 1940 era interpretado a partir de uma
jurisprudência que permitia a chamada “ação em legítima defesa da honra”. Com efeito,
ainda que o Código Penal não autorizasse cabalmente o assassinato da mulher traidora e de
seu amante3, não foram raros os casos em que isto se deu e a jurisprudência salvaguardou o
marido traído, mantendo-o em liberdade e justificando-o pela lei. Se esta mentalidade
perdurou até meados do século XX, tanto mais era intensa e forte na sociedade de fins do
XIX, recém-saída da escravidão e da monarquia; extremamente conservadora. Assim,
3 Ver FOLHA DE SÃO PAULO. 28/02/2011. Ciúme, traição e legítima defesa da honra. In: <http://direito.folha.uol.com.br/1/post/2011/02/cime-traio-e-legtima-defesa-da-honra.html>. Acessado em 28/01/2014.
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Machado evoca um imaginário nada prosaico, mas extremamente dramático e violento, ao
abordar este tema dentro de sua sociedade.
O uso da Antropologia como afirmação teórica da necessidade de se contemplar
outras realidades históricas e culturais a partir de sua especificidade se faz extremamente
importante aqui. Relembrando aos alunos o que se discutiu com os dois primeiros textos
antropológicos apontados acima (uma vez que Dom Casmurro é trabalhado, no Brasil, no
segundo ano do Ensino Médio), muito se conseguirá. Afinal, estes textos podem apresentar
de modo convincente aos discentes que não se pode ver o outro a partir de nossas próprias
categorias culturais e históricas: na verdade, este foi o erro da antropóloga no texto do
Primeiro Ano, Shakespeare na Selva (op.cit.).
Além disso, é preciso pensar o quanto o “eu” também pode ser estranho aos olhos
alheios para não avaliar o diferente como inferior. Esta maturidade só é possível a partir da
experiência de estranhamento diante de si próprio; experiência que se adquire a partir do
conhecimento que se tem de como o “outro” nos vê (o que foi proporcionado pelo texto
do Segundo Ano: Body ritual among the Nacirema (op. cit.).
Assim, os alunos devem ver as regras sociais e os costumes da sociedade de que
fazem parte como opções e não como verdades absolutas. Devem analisar os costumes e as
regras da época do enredo como realidades dotadas de significado próprio e tentar
apreender seu sentido. Só entendendo o significado do casamento naquela época é que se
entenderá a importância da dúvida de Bentinho.
Deve-se lembrar que não apenas o homem poderia matar a esposa adúltera, como o
divórcio era proibido e a sociedade era extremamente religiosa. Dentro desta sociedade
religiosa, destaca-se o fato de que o próprio Bentinho e Ezequiel terem frequentado o
seminário e que o primeiro desejava ser padre desde criança.
Mais que situar o casamento na época em discussão, é preciso fazê-lo também com
a amizade entre Bentinho e Ezequiel. Os alunos devem vir a perceber que o significado da
amizade era outro nessa sociedade. Afinal, tratava-se quase de uma comunidade: as pessoas
se encontravam com mais frequência (seja porque visitavam-se ou combinavam passeios,
seja por acaso), tinham menos opções de lazer e menos horas de dedicação a atividades de
cunho obrigatório (trabalho e estudo) – isso se pertencentes à classe média, como os dois
amigos. Assim, ter um amigo poderia ter um significado distinto daquilo que os
adolescentes tendem a viver hoje. Era a época em que a palavra de um homem valia mais
que um documento assinado e os amigos, depois da família, eram as pessoas em cuja
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palavra mais se poderia confiar. No Brasil, ainda hoje se diz que um acordo foi feito sem
nenhum documento, apenas “a fio de bigode”, ou seja, confiando na palavra de uma
pessoa honrada, de quem se escusa pedir garantias. Trata-se até mesmo de ofensa pedir
garantias e documentos a algumas pessoas mais idosas, que se orgulham de seu
comportamento irrepreensível, de “ter palavra”. Assim, a amizade entre Bentinho e
Ezequiel, além de ser significativa quanto ao afeto e à convivência entre os dois, ainda
estava constrita por regras rígidas de comportamento social; sendo o rompimento com
essas regras algo bem mais grave do que é hoje, nesta mesma sociedade.
Só a partir da compreensão da amizade e do casamento a partir dos olhos da época,
do “outro”, pode-se avaliar a verdadeira importância da dúvida de Bentinho. Além disso,
esta dúvida vai muito além da questão pessoal da vida da protagonista, mas alcança
interesse universal ao avançar numa problemática de extrema importância, referente ao
conhecimento humano. Com efeito, a dúvida da personagem mobiliza o questionamento
acerca do que é possível conhecer e mesmo de como se chega ao conhecimento. Afinal, o
leitor mesmo é constrangido a tentar separar o que é fato objetivo e o que é a visão de
Bentinho dos fatos; assim, o livro traz um questionamento que pode ser estendido a todos
os seres humanos e que, no limite, trata-se de saber o que é o real.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma problemática tão profunda, na linha dos romances psicológicos da segunda
metade do século XIX – seja do próprio Machado, seja de autores como Dostoiévsky ou
Andreiev – não pode ser tratada como uma fofoca sobre a vida de desconhecidos; como
muitas vezes é. A tentativa de “atualizar” o texto e torná-lo “acessível” não pode passar por
destruir sua riqueza. Ao contrário, deve-se buscar, e bons livros como este sempre ajudam
muito nesta empreitada, levar os alunos à experiência de se deparar com esta nova riqueza,
fora da caverna, para que possam conhecer-se a partir do conhecimento do novo.
O texto deve ser trabalhado à luz deste princípio, elucidado aos alunos no início de
cada ano por meio de um texto antropológico diferente, num percurso que vai da
percepção do outro (primeiro) para a percepção crítica de si (segundo) e termina com a
análise da história da formação de uma identidade (terceiro). Como se disse, os textos
antropológicos, por versarem sobre um “Outro mais Outro”, ou seja, culturas distintas da
Ocidental, podem demonstrar com mais clareza a necessidade epistemológica de
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contemplar o objeto sem a interferência da subjetividade. Com isso, espera-se levar o aluno
a analisar as épocas históricas das obras estudadas sem anacronismo, de modo a permitir-
lhe um contato mais profundo com a obra, reforçando a História Literária como meio de
se alcançar a antiga experiência humanista da curiositas, que tanto desenvolveu a Arte, a
Filosofia e a Ciência.
Revista FORPROLL | 99
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