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i UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO A VEZ DO MESTRE A AUTONOMIA DO PROFESSOR NO UNIVERSO PÚBLICO EDUCACIONAL BRASILEIRO Roberto Jorge Evangelista de Menezes Orientador Marcelo Saldanha Monografia Elaborada, Sob a Orientação de Marcelo Saldanha E Apresentada como parte dos Requisitos Necessários à Obtenção De Especialista Em Docência do Ensino Superior RIO DE JANEIRO OUTUBRO DE 2010

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

A AUTONOMIA DO PROFESSOR NO UNIVERSO PÚBLICO EDUCACIONAL

BRASILEIRO

Roberto Jorge Evangelista de Menezes

Orientador Marcelo Saldanha

Monografia Elaborada, Sob a Orientação de Marcelo Saldanha E Apresentada como parte dos Requisitos Necessários à Obtenção De Especialista Em Docência do Ensino Superior

RIO DE JANEIRO OUTUBRO DE 2010

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

Roberto Jorge Evangelista de Menezes

Monografia submetida ao Curso de Pós Graduação em Docência do Ensino Superior, área de Concentração em

Educação, como requisito parcial para obtenção do Título de Docente no Ensino Superior

Professor: Marcelo Saldanha

MONOGRAFIA APROVADA EM OUTUBRO DE 2010

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DEDICATÓRIA

Dedico está parte da minha historia, a minha querida esposa, Ana Claudia Calhau Poell, Pedagoga, educadora, regente de uma historia transformadora, com exemplos de vida sempre

me incentivou a lutar pelos meus ideais, lembrando dos valores da educação e formação Superior como objetivo de crescimento profissional e social.

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“Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva

ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse

trabalho.”

(Paulo Freire)

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RESUMO

A presente pesquisa pretende pensar a autonomia, como conceito e como noção

prática, no contexto da Escola pública brasileira contemporânea. Trata-se, muito

especialmente, de verificar que obstáculos se opõem à concretização da autonomia do

professor, condição julgada indispensável para que este possa realizar a tarefa emancipadora

que todos crêem ser a sua e a da Escola.

Importa verificar, também, quais os sentidos atribuídos à autonomia, ontem e hoje,

pelo discurso oficial e como estes sentidos se encarnam na prática dos professores e no

cotidiano das escolas públicas brasileiras.

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METODOLOGIA

A pesquisa trata de uma busca acadêmica sobre a questão da autonomia no papel do

Educador e Escola. Tal pesquisa está fundamentada em obras de teóricos que tratam do tema

em evidência, ou seja, autonomia educacional.

Foram pesquisados autores como, por exemplo:

ARENDT, Hanah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão? São Paulo: Papiros, 1991.

CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro:

Paz e Terra, 1982.

CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto III: O Mundo

Fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência. São Paulo: Brasiliense, 1993.

LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da Educação no Brasil: de Pombal à Passarinho.

Rio de Janeiro: Brasília, 1983.

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO EM DOCÊNCIA DO ENSINO

SUPERIOR

MONOGRAFIA

A AUTONOMIA DO PROFESSOR NO UNIVERSO PÚBLICO EDUCACIONAL BRASILEIRO

ROBERTO JORGE EVANGELISTA DE MENEZES

RIO DE JANEIRO 2010

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INDICE

Folha de rosto............................................................................................................................i Folha de avaliação.....................................................................................................................ii Dedicatória...............................................................................................................................iii Epígrafe.....................................................................................................................................iv Resumo.......................................................................................................................................v Metodologia..............................................................................................................................vi Introdução................................................................................................................................07 1. Autonomia: Um Caminho a ser Trilhado.........................................................................10

1.1 Autonomia no Contexto Embrionário da Humanidade.........................................11

1.2 Autonomia: Escola e Professor.................................................................................14

1.3 Autonomia Como Discurso Generalizado: Origens................................................17

1.4 Autonomia: Generalização de um discurso esvaziado............................................18

2. Autonomia: O Estado Brasileiro.......................................................................................19

2.1 A Descentralização do Estado...................................................................................22

2.2 A Peculiaridade da Autonomia na Reforma Educacional.....................................25

3. As Fronteiras da Autonomia.............................................................................................27

3.1 Apenas Parâmetros, ou um Currículo Nacional?...................................................28

3.2 Avaliar, Medir e Planejar.........................................................................................30

3.3 Onde o Discurso Generalizado da Autonomia se Desfaz.......................................32

Conclusão................................................................................................................................34

Referências Bibliográficas.....................................................................................................38

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INTRODUÇÃO

Essa pesquisa pretende pensar a autonomia, como conceito e como noção prática, no

contexto da Escola pública brasileira contemporânea. Trata-se, muito especialmente, de

verificar os obstáculos que se opõem à concretização da autonomia do professor, condição

julgada indispensável para que essa possa realizar a tarefa emancipadora que todos creem ser

a Escola.

Quais os sentidos atribuídos à “autonomia”, ontem e hoje, pelo discurso oficial, face á

expectativa da militante? Quais os limites assim impostos à prática e à instituição da

autonomia docente? A Escola pode ser um espaço onde se depositam os ideais de

emancipação? Frente aos antigos desafios e também aos novos papéis a ela atribuídos,

incessantemente, e a cada vez que a ação política, direta e imediata, se revela frustrada, e

também frente à crítica que já se naturaliza, quanto à sua efetividade, o que se pode esperar

hoje da Escola pública? Que esperanças, que projetos, ainda são possíveis? A Escola, hoje,

especialmente a brasileira, representa a possibilidade de transformação, ou apenas conduz a

uma nova servidão? O quanto está próxima ou distancia-se de seu papel fundador?

Desde a sua origem, na Modernidade, a Escola pública esteve associada à ideia de um

projeto para a sociedade: tratava-se de formar um novo homem para o novo mundo. Esse

projeto apoiava-se na crença de que a razão humana é capaz de controlar inteiramente a

realidade, não só natural, mas, sobretudo, social. Acreditava-se que o desenvolvimento

racional conduziria a sociedade ao conhecimento necessário para transformar o mundo e

construir uma coexistência melhor. Nesse sentido, ao surgir, a Escola é portadora de uma

intrigante contradição: ela é, a um só tempo, instrumento de preservação de uma sociedade,

herdeira de certos valores e ideais bastante antigos, e depositária das expectativas de

mudanças, do ímpeto do novo, daquilo que está por vir, de algo a ser construído.

No que se refere à sua dimensão transformadora, o projeto original de educação

pública moderno é orientado, quando de sua instituição, na figura de nossa conhecida

“escola”, pelos ideais da Revolução Francesa, aperfeiçoamento dos homens e da sociedade,

construção das condições de igualdade e de liberdade através de uma construção coletiva.

Expresso, em seu nascedouro, como exigência típica da tradição iluminista, esse ideal referia-

se à construção de sujeitos autônomos, capazes de superar a alienação devida às suas

condições sociais. Em sua constituição histórica, no entanto, a Escola serviu de instrumento e

de terreno de realização para novas configurações de velhas práticas de dominação, tais como

o liberalismo as institui em toda parte.

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Mas, indubitavelmente, a modernidade viu emergir as expectativas e as tentativas de

elaboração que orientaram a teoria e a prática educacionais no sentido da formação de uma

esfera pública (democrática) e de construção de cidadãos autônomos e racionais. Há, no

período, uma inegável associação entre Escola pública e Estado: espera-se, tanto de uma,

quanto de outro, a ruptura com a desigualdade, a superação da opressão e a responsabilidade

com a construção do mundo novo.

A Escola assume, assim, a condição de espaço possível e privilegiado para a auto-

criação do homem e da sociedade.

No entanto, a Escola parece hoje se distanciar de seu papel fundador. Afirmar que a

Escola está em crise, significa dizer, sobretudo, que a sociedade está em crise. É escusado

dizer que a crise das significações em torno das quais se instituíram as sociedades invade

todas as instituições sociais, num desordenado movimento que impele tanto indivíduos,

quanto a própria sociedade a questionarem, ou a porem em dúvida, suas convicções e

certezas. Entretanto, é necessário reconhecer que, na Escola, essa crise se manifesta de modo

especial. Se as antigas significações parecem esgotadas, ou superadas pela crise dos

paradigmas modernos e, de forma mais geral, pela crise do capitalismo, a Escola, instituinte

das identidades de uma sociedade, necessariamente expressará essa crise sob a forma de

impasses opostos à realização de seus fins.

A crise ao que tudo indica, se transformou em fatalidade. As palavras e as ações dos

homens comuns, por todo o mundo, não possuem mais valor instituinte e acabam por serem

provas redundantes da falta de poder dos indivíduos em transformar a situação de caos em que

vivem. Há uma aparente paralisia social e os discursos proferidos estão carregados de uma

dolorosa irreversibilidade. O que tem levado os homens a acatar o discurso da fatalidade e se

demitirem de sua ação criadora?

Na educação, aceitar a fatalidade da crise significa, sobretudo, aceitar que nada mais

há a ser feito. É desacreditar do poder de que a Escola pode estar investida, no que se refere à

construção da sociedade. É perder a crença no mundo novo.

Sem dúvida, é urgente para os educadores, que se enfrentam cotidianamente com esse

estado de coisas, estabelecerem uma séria reflexão sobre os sentidos que podem ser

atribuídos, de forma lúcida e objetiva, ao exercício de sua profissão; em outras palavras,

torna-se indispensável que se indaguem se, até que ponto, e em que condições é ainda

possível e desejável resgatar a crença na educação e na ação transformadora dos homens que,

de alguma forma, sempre esteve presente na vida escolar, compondo, entre outras coisas, as

listas das razões pelas quais se escolheu, um dia, essa profissão.

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Também preocupa-se a presente pesquisa sinalizar o ponto de vista administrativo e

pedagógico, promotora de significativas alterações na organização da rede escolar pública

brasileira, ao longo do tempo.

São elas, por exemplo: a introdução dos Parâmetros Curriculares Nacionais,

favorecida, em larga escala, pela adesão a um dos programas federais em execução, o “PCN

em Ação”; a adoção de classes de aceleração de aprendizagem; a redução da oferta de

matrículas na Educação Infantil, nível de ensino não contemplado com as verbas do Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (FUNDEF); a organização do

sistema escolar em “pólos para a ação pedagógica”, reunindo, em média, dez Escolas,

fragmentando os espaços coletivos de discussão e encaminhamento das questões pedagógicas;

paralelamente essas ações, em suas relações com as escolas, a Secretaria passou a privilegiar

os encontros de professores específicos por ciclos, série, disciplinas e áreas do conhecimento,

dificultando a reflexão dos professores sobre a totalidade da rede; além disso, instituiu, por

meio do calendário escolar, ”grupos de estudos” que, no interior das Escolas e sob pretexto de

realizar a formação permanente, implicam no contingenciamento das discussões pedagógicas

e educacionais aos limites individuais de cada unidade escolar.

Dessa forma, além de impor obstáculos à participação coletiva dos educadores, na

construção de uma proposta pedagógica para rede de ensino, a Secretaria Municipal de

Educação procura, concomitantemente e de forma bastante apressada, não só adequar-se às

orientações e diretrizes emanadas dos órgãos federais, como também identificar-se com a

metodologia que os acompanha, criando a cada passo, mecanismos que forçam a adoção dos

dispositivos instalados e, ao mesmo tempo, controlam sua aplicação. Nessas condições, ao

invés de colocarem-se a serviço dos problemas e questões levantados pela prática

educacional, os “especialistas em educação” das Escolas (orientadores educacionais e

orientadores pedagógicos) tornam-se, de fato, fiscalizadores das políticas e ações

implementadas pela Secretaria. Permeará na seguinte pesquisa a ação da Secretária de

Educação no que fornece uma fotografia da dinâmica das relações políticas estabelecidas na

rede, mostrando assim, sua “ditatorialidade”. Nela, evidencia-se o fato de que, frente ao

centralismo burocrático, não são poucos os educadores que, conservadores ou não, insistem

em defender, ainda que por vezes de modo isolado e difuso, seu direito à participação nas

decisões que são de interesse público e que concernem diretamente à sua prática e a seu

ofício. Desse ponto de vista, nem tudo parece inteiramente perdido, no que compete à

educação pública democrática e de qualidade.

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1. AUTONOMIA: UM CAMINHO A SER TRILHADO

As questões que se colocam para o professor da rede pública brasileira são comuns aos

educadores brasileiros e, de certa forma, específicas de uma época. O projeto de emancipação

elaborado na modernidade parece derrotado: as sociedades não promoveram a autonomia

individual, nem tão pouco alcançaram a autonomia social. A humanidade, aparentemente

sofrendo de uma alienação inquietante, acata como definitivas as condições de sobrevivência

e de existência que estão postas. Decerto que, num curto espaço de tempo, do ponto de vista

da história, nos percebemos vivendo no epicentro de um tsunami de mudanças e de perda de

nossas referências mais caras e reais. Deveríamos, assim, abdicar de nossa condição mais

visceral, que nos torna humanos, de agirmos no mundo, ou pelo menos da crença na

efetividade dessa ação? Estaria a atividade criadora dos homens definitivamente abolida,

naufragada nesse oceano de transformações e de insegurança?

Percebe-se que as sociedades vivem um constante paradoxo, debatendo-se entre as

frequentes inovações e sua própria conservação. Convive-se com o progresso tecnológico e as

decorrentes transformações na organização do trabalho, ao mesmo passo em que a exploração

se faz cada vez mais crescente.

Neste contexto sociológico, aponta-se a estratégia central do neoliberalismo, que

consiste na criação de um forte aparato que objetiva a total subsunção do poder político à

esfera econômica, exigência essa tornada indispensável à manutenção do projeto capitalista na

atualidade; para, em outras palavras, materializar uma nova ordem capitalista.

Importa-se dizer que a liberdade, mesmo se drasticamente reduzida à sua mera

dimensão individual, pode ser dada como valor central e finalidade declarada do projeto

moderno, mas na atualidade, essa mesma promessa não só já é capaz de alimentar

expectativas e crenças, fornecendo sentido para as condutas esperadas, como torna-se

simplesmente insolvente, não mais podendo se conceber, sequer como ausência, na

experiência concreta dos indivíduos. Tal como a própria finalidade do projeto moderno, todos

os seus pilares, que estiveram na base de legitimação da ordem social; o estado de direito, a

autoridade da razão moderna e de seus representantes, a validade das normas e instrumentos

legais e sociais de coerção individual e coletiva, a efetividade das promessas de bem-estar

contidas nos contratos, desabam, sem que nada pareça se construir em seu lugar. O caos

econômico, a violência indiscriminada, a corrupção instituída, os extremismos de toda ordem,

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a desregulamentação dos direitos, a desestruturação da coisa pública e seus valores inscrevem

no cotidiano o puro 1nonsense que marca a existência coletiva e individual na atualidade.

1.1 Autonomia no Contexto Embrionário da Humanidade

À questão, justamente, do sentido de sua existência individual e coletiva o homem

concedeu, ao longo da história da humanidade, diversos tipos de respostas, provenientes do

mito, da religião, da filosofia, da ciência... Segundo 2Cornelius Castoriadis, o que caracteriza

grande parte desse esforço é o ocultamento da dimensão instituinte pela qual está a, existência

individual e coletiva para os homens.

O mito promove a naturalização dos sentidos que a religião dotará de um fundamento

transcendental: como resultado, as criações humanas se autonomizam, e passam a ser dadas

como independentes da ação de seus criadores. O dogma é a legitimação de um sentido que se

apresenta como inquestionável e único.

Nesse sentido, a criação da filosofia corresponde segundo Cornelius Castoriadis à

introdução da questão da distinção entre as criações humanas da natureza. O surgimento da 3pólis democrática, a criação da política como expressão da vontade humana, como

conseqüência do 4lógos, da razão-deliberada, além de destruir a força dos dogmas, condenou

os gregos, pois, na inexistência de modelos e determinadas prévias, a sociedade ateniense se

obrigava a inventar incessantemente, a cada vez que nasciam problemas ou dificuldades não

previstas.

Ao atribuir uma origem extra-humana ao ser ao mundo físico e, em consequência,

uma origem extra-social à sociedade, a religião também cria dogmas, ídolos e representações

que impedem o homem de se ver como criador de sua própria existência: desloca para o plano

divino algumas das respostas às interrogações e inquietudes dos homens e mantêm outras

tantas sob a forma de mistério permanente. Ao longo da história da humanidade e, ainda hoje,

a religião torna em fatalidade a realidade inaceitável, adiando sua superação para um além. A

religião oculta, submete, domina. Ou, como nos lembra Chauí:

5“A religiosidade se realiza como uma forma de conhecimento do real,

como uma prática que ao mesmo tempo reforça e nega esse real, combina fatalismo 1 Nonsense ("sem sentido", em inglês) é uma expressão inglesa que denota algo disparatado, sem nexo. 2 CASTORIADIS, Cornelius. “Valor, igualdade, justiça, política: de Max a Aristóteles e de Aristóteles até nós.” 3 A pólis era o modelo das antigas cidades gregas, desde o período arcaico até o período clássico, vindo a perder importância durante o domínio romano. 4 Logos, no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada, o Verbo. 5 CHAUÍ, Marilena. “Cultura popular e autoritarismo.” In: Conformismo e Resistência. São Paulo, Brasiliense. 5.ª ed., 1993, p. 84.

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(conformismo) e desejo de mudança (inconformismo), sendo o milagre sua pedra de toque. Elaborando uma justificação transcendente (destino, moira, carma, predestinação, providência) para que o que se passa aqui e agora, a religião longínquo (mas reiterado pelas liturgias) ou num futuro ilocalizável (mas continuamente esperado pelas teodicéias).” (CHAUÍ).

Mas, ao aceitar que há uma força que lhe excede, em muito, a governar a criação, o

homem sente-se desobrigado de qualquer deliberação ou atuação efetiva para a concretização

da mudança e, assim, conformado com as condições de sua vida terrena.

Na modernidade, quando a Filosofia já foi inteiramente comprometida com o discurso

religioso e subjugada, ela própria, ao dogma, a ciência se apresenta como um novo caminho

para a liberdade e para a emancipação do homem. Preocupa-se, em suas origens, em

desmascarar as falsas respostas oferecidas pela tradição e pela religião, substituindo-as por um

conhecimento mais confiável da realidade e valorização da razão e da autonomia, segundo

Cornelius Castoriadis, a um ideal que faz da atividade cientifica:

6“... o programa de um saber que constitui seu objeto como um processo... independente do sujeito; identificável em um eixo espaço-temporal válido para todos e privado de mistério; determinável por meio de categorias indiscutíveis e unívocas (identidade, substância, causalidade); exprimível, enfim, numa linguagem matemática de poder ilimitado...” (CASTORIADIS).

No esforço em produzir essa visão abrangente da realidade, a ciência estabeleceu

discursos totalizantes, deixou de mover-se em direção aos fins que perseguia para justificar-se

por meio das conseqüências a que já havia chegado. Fechou-se em si mesma, atribuindo-se

um valor absoluto e enveredo-se pelo caminho idêntico daquilo que pretendia transpor:

tornou-se objeto de si mesma e pretendeu monopolizar todos os sentidos, oferecendo aos

meros mortais o conforto de uma vida sem questionamentos.

Apesar, porém, de tantas “traições”, a filosofia e a ciência são caminhos mais seguros

do que o mito e a religião, no que se trata de pensar a emancipação humana. No caso da

presente pesquisa, pensar o homem e a sociedade à luz das contribuições da filosofia

corresponde, sobretudo, à opção por aquilo que, em mina ótica, se mostrou ser uma via segura

para refletir sobre a autonomia dos homens e da sociedade. É essa, aliás, na definição de

Castoriadis, a marca da atividade filosófica, em suas origens: prestar-se a uma interrogação

permanente e ilimitada que acompanha a instituição do projeto de autonomia. Esse sentido da

filosofia foi mobilizado, segundo Castoriadis por duas vezes na história: na Grécia, durante o

período clássico, e na Europa, nos fins da Idade Média. Nesses momentos, a totalidade da 6 CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto I. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1.ª ed. 1987, p. 202.

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organização social foi submetida ao questionamento provenientemente da atividade política

instituinte, que se faz acompanhar da reflexão propriamente filosófica:

7“Essas sociedades põem em julgamento sua própria instituição, sua

representação do mundo, suas significações imaginárias sociais. É isso, evidentemente, que está implicado pela criação da democracia e da filosofia, que rompem, ambas, o fechamento que até então prevalecia na sociedade instituída e abrem um espaço no qual as atividades do pensamento e da política levam a pôr e repor em questão, sucessivamente, não só a forma dada da instituição social e da representação social do mundo, mas os fundamentos possíveis de toda e qualquer forma desse tipo. A autonomia assume aqui o sentido de uma auto-instituição da sociedade; auto-instituição que, a partir de agora, será mais ou menos explícita: sabemos que nós fazemos as leis, que somos, portanto, responsáveis por elas e, por isso, temos constantemente que nos perguntar: por que esta lei, e não outra? O que, evidentemente, implica também o surgimento de um novo tipo de ser histórico no plano individual, ou seja, o indivíduo autônomo, que pode questionar-se e, igualmente, questionar em voz alta: “é essa lei justa?”. (CASTORIADIS).

Sendo assim, passar da crítica, da constatação, da contestação ou mera aceitação da

crise na qual a sociedade parece imersa, à ação pressupõe uma atitude inicial indispensável de

desqualificação da inevitabilidade de que ela parece ser portadora. Contrariamente ao discurso

científico, que caracterizou-se por ampliar indistintamente o domínio de sua validade,

buscando identificar exaustivamente as determinações que pesam sobre a existência humana e

social, a filosofia, em seu sentido democrático, impõe-se a auto-limitação, não pretende

substituir a prática política, nem esclarecê-la, ou orientá-la, de fora, ou de cima, tal como

pretende reduzir o sentido de fatalidade de que as coisas humanas e sociais parecem

impregnadas.

Entre tão complexa realidade sociológica, implica-nos a citar que a autonomia

envolve, necessariamente, que aos homens e à sociedade esteja colocada não só e exigência

de uma interrogação permanente acerca das condições nas quais vivem como também a

assunção de uma postura radical de transformação dessas condições. Implica, enfim, no

compromisso de indivíduos e sociedade em romper com a 8heteronomia na qual realizam o

movimento simultâneo de (re) instituir o mundo e se instituírem como indivíduos sociais.

Assim sendo, como estabelecer as bases que permitirão tal rompimento? Compreende-

se que uma convicção política, seja a única atividade que poderá possibilitar aos homens e à

sociedade a experiência de um projeto autônomo.

7 CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto II: Os domínios do Homem. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1.ª ed. 1987, p. 375. 8 Escapando do sentido lato do termo, Castoriadis chama de heteronomia o estado no qual as leis, princípios, valores e significações são dados como imutáveis e perenes, e as sociedades e indivíduos já não se reconhecem como seus autores, capazes de sobre eles atuar.

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1.2 Autonomia: Escola e Professor

Tudo indica que hoje a educação pública não encontra mais as referências que

permitiram que fosse, no passado, assimilada à ação de criação da pólis. Mas seria um erro

incorrigível situar a questão educativa somente no terreno das atividades práticas. Distanciar a

educação de sua dimensão política implicaria reduzi-la a uma questão meramente

metodológica, prática largamente constatada nas recentes discussões e ações que envolvem a

educação, tanto no Brasil, quanto no mundo; e subtrair-lhe o caráter eminentemente criador

que deveria lhe ser intrínseco. A interrogação política, aberta e permanente, invariavelmente

envolve a educação; e se a filosofia é o compromisso com a totalidade do pensável, o

educador, especialmente, estará condicionado, por força de sua função, ao compromisso com

uma infinita e constante interrogação sobre sua prática.

Sendo assim, a reflexão sobre a educação só pode se realizar em um contexto onde a

democracia se faz existir. Desde a Antiguidade, o enigma da educação tem ocupado a

humanidade na tarefa hercúlea de elucidar-lhe os sentidos.

A respeito de todas as críticas, todas as divergências e de todas as leituras particulares

das quais contemporaneamente a democracia grega é alvo, envolvendo filósofos e

historiadores, suas contribuições para o terreno das reflexões e práticas educadoras ainda se

constituem como um legado inequívoco de uma educação verdadeiramente democrática. A

radicalidade imposta ao poder da educação na formação do cidadão nos guia até hoje, na

perseguição do ideal de cidadania.

As primeiras teorias sobre a cidadania, sobre o que significa ser cidadão, surgiram na

Grécia clássica, nos séculos VI e V A.C., correspondendo ao fato de que os gregos

conceberam, na prática, as primeiras formas de democracia. A democracia ateniense garantia

aos cidadãos o exercício da função legislativa: mais do que uma simples prerrogativa, a

participação na elaboração das leis que regiam a vida e os destinos da pólis era encarada como

dever dos membros da assembleia popular (Eclésia). Esse regime imputava também aos

cidadãos a obrigação de tomar a defesa das leis que eles mesmos votavam, ou seja, de acatar e

fazer acatar as leis que seriam os parâmetros da justiça para o povo e para a cidade. Foi

precisamente com base nisso que Aristóteles definiu o cidadão: para Aristóteles o cidadão era

todo aquele que, além de habitar um território e poder pleitear seu direito diante dos tribunais,

exercia função pública, ou seja, participava ativamente nos assuntos da cidade.

Convém lembrar, cedendo alguma razão às críticas, que a teoria e a prática da

cidadania entre os gregos estavam longe de possuir a dimensão universal alegada

contemporaneamente entre nós. Para os gregos, mesmo nos períodos mais democráticos,

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estavam excluídos dos direitos de cidadania os escravos e as mulheres, os quais, em conjunto,

constituíam a maioria da população adulta ateniense.

No entanto, para a democracia ateniense, o princípio de igualdade só se pode afirmar

como coincidência entre discurso e ação. Do ponto de vista da educação, isso significa dizer

que, nesse contexto, a participação política não pressupõe condições prévias e que a 9paídea

jamais se apresenta como pré-requisito para a igualdade, mas antes dela decorre. Ser cidadão

é participar de uma forma de vida que já compreende a educação política. Moses I. Finley

comenta o sentido da formação política na afirmação do princípio da igualdade:

10“Que não se imagine que o cidadão ateniense médio prestava atenção ao

que diziam Sócrates ou os sofistas... Entretanto, estes cidadãos ordinários, tanto os iletrados quanto aqueles que tecnicamente sabiam ler, haviam recebido uma educação (no sentido não pedagógico) bem mais vasta do que os historiadores admitem ordinariamente. As comunidades eram “sociedades do face-a-face”, pouco numerosas em termos relativos (e frequentemente em termos absolutos), nas quais, desde a infância o cidadão se encontrava incessantemente em contato com a vida pública: segue-se que, em razão da extensão dos direitos políticos aos camponeses, artesões e comerciantes, a parte da educação política presente na formação dos jovens era mais importante do que jamais foi, então posteriormente,na maioria das sociedades... O que pretendo sublinhar é que tal processo era inerente ao sistema...”. (FINLEY).

Dessa forma, a pólis forma os cidadãos, e pela participação política constitui-se em

uma “sociedade educativa”. Assim, o exercício da cidadania compreende não somente a

participação esclarecida dos homens na organização e na condução da vida privada e da vida

pública.

Ao constituir-se, ao longo da história moderna, como um espaço por excelência de

produção e reprodução de conhecimentos, valores, atitudes, ideologias e teorias, a Escola

assume, tal qual a conhecemos, a centralidade no processo de fabricação de identidades e

subjetividades que as sociedades almejam possuir. Dessa forma, a Escola é, na maioria das

sociedades ocidentais, monopolizada por essa esfera de poder apartada da sociedade em que

se constitui o Estado e, se estrutura como um forte aparato de disseminação dos valores e dos

interesses dominantes.

Ao contrário, portanto, da Paidéia democrática, que se estabelece como atividade

generalizada, atinente à própria Escola, se apresenta como iniciativa e responsabilidade

9 Paidéia : Educação em sua forma verdadeira, a forma natural e genuinamente humana externada na Grécia antiga. 10 FINLEY, M. I. L. O Enigma da Educação. A PÍDEA DEMOCRÁTICA ENTRE Platão e Castoriadis. Rio de Janeiro. UERJ/Faculdade de Educação, setembro de 2000.

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altamente especializada, tal qual se pretende altamente especializado o poder político a cargo

do Estado.

Podemos, então, considerar que, se a Escola é um dos espaços possíveis para a auto-

criação do homem e da sociedade, ela é também um terreno oportuno e privilegiado para a

educação das condições em que essa criação se dá e é ocultada no campo educacional. A

Escola também é um espaço fértil para o estudo da própria sociedade e, fundamentalmente,

das condições nas quais a emancipação do homem se pode construir um projeto coletivo.

modernas sociedades ocidentais concederam à escolarização e aos sujeitos dessa

escolarização uma atenção especial. Isso representou não apenas olhar para as crianças e

jovens e estabelecer as formas de educá-los e discipliná-los, mas também observar e

disciplinar aqueles que deveriam promover a formação: os professores. Os processos

educativos escolares que se instalaram no início da modernidade se assentam na figura de um

mestre exemplar. Em contraponto aos antigos mestres medievais, o mestre “moderno” e se

tornará responsável pela conduta de seus alunos e deverá zelar para que eles disseminem e

pratiquem, para além dos muros da Escola, os comportamentos e as virtudes que ali

aprenderam. Por consequência, não é bastante que o mestre domine os saberes que tem por

obrigação transmitir, é necessário que seja ele mesmo, um exemplo a ser seguido.

Por seu caráter político, a tarefa da educação pública atribuída à Escola só pode ser

desempenhada por um cidadão virtuoso, que abjurou de todas as dependências privadas,

inclusive as religiosas, para servir ao Estado republicano e laico.

Como qualquer outro grupo social, professores e professoras foram e permanecem

sendo objetos de representações. Dessa forma, pode-se falar deles, com o passar dos tempos, a

partir de determinadas características que lhes são atribuídas. Presume-se difícil, aprender de

que forma estas representações são construídas. Sendo assim, torna-se difícil determinar

exaustivamente tudo que está implicado, a cada época, pelos “sentidos de ser professor”.

Esses produtos resultam de intricada teia de significações. Se a instituição escolar ainda

sobrevive, é porque encontra em significações que já não representam muito sentido em

outras esferas, seu tônico de sobrevida.

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1.3 Autonomia Como Discurso Generalizado: Origens

Na teoria política, a autonomia constitui-se em princípio que inspira a democracia,

devendo ser entendida como a capacidade que um indivíduo ou sociedade possuem de

modificar, ou de ser dar a si próprios, suas próprias leis.

Porém, enquanto na Antiguidade a autonomia era atributo, inicialmente, da pólis

democrática e, por extensão, de seus cidadãos, na Modernidade ela passa a ser essencialmente

referida à experiência íntima do sujeito que, pela razão, assume integralmente a liberdade que,

se não lhe é assegurada pela organização social, não deixa de ser uma prerrogativa que lhe

concede sua própria natureza.

Na modernidade, a liberdade é definida como atributo natural que justificará a

igualdade entre os homens. Entre a liberdade de direito, a garantia pela lei natural, e a

liberdade de fato há, no entanto, um abismo que só a razão pode transpor. A liberdade de fato

implica na conquista da autonomia.

Para Kant, a fim de se tornar um indivíduo autônomo, submetido apenas á lei interior

que percebe e reconhece em si mesmo, o pequeno homem deve suportar, inicialmente, que

sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem. Em um primeiro momento, a

liberdade natural que caracteriza a infância é obstáculo à conquista de sua autonomia futura.

O submetimento da criança a limites e regras sociais que constrangem sua propensão natural a

abusar de sua condição de ser livre produz as condições de criação da esfera moral, a partir

das quais o futuro adulto poderá dirigir corretamente sua liberdade. Para ele, é necessário:

11“...que o homem sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que

aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente...”. (KANT).

Teoricamente, o modo pelo qual os homens, os seres humanos autônomos, livres e

responsáveis conciliam as variadas vontades e capacidades, tanto individuais, quanto

coletivas, para construir uma maneira de viver que lhes possibilite exercer sua liberdade em

um espaço público, é a democracia. Ocorre que, quando deitamos nossos olhares sobre as

experiências a que estamos submetidos cotidianamente, nos surpreendemos com o

esvaziamento da possibilidade da criação de um mundo compartilhado, do exercício das

liberdades individuais e coletivas.

11 KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. 1.ª ed. Piracicaba, UNIMEP, 1996, p. 78.

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1.4 Autonomia: Generalização de um discurso esvaziado

Os ataques à democracia e aos seus fundamentos: a autonomia, a liberdade e a

prestação democrática de contas, se expressam, hoje, de variadas maneiras. Dentre todas as

formas, a que mais largo efeito opera é o esvaziamento da perspectiva do público, como lugar,

na democracia, de participação.

Nesse contexto, o termo autonomia é objeto de uma formidável torção de sentido, é

completamente esvaziado. Mas a esse esvaziamento semântico corresponde, na retórica

reformista, e de maneira bastante peculiar, um uso bastante preciso no cenário educacional

público brasileiro. Buscando talvez compensar esse empobrecimento, o termo passa a ser

empregado com obsessiva recorrência, tornasse insistentemente presente em todo o corpo

teórico e prático dos discursos e ações oficiais. Mais ainda, valendo-se da duplicidade que

vem da carga semântica abandonada, parece ser um portador qualificado dos desejos, há

muito perseguidos, não só pela classe dos educadores, como pela própria sociedade em geral:

quem poderia não desejar autonomia para as Escolas e para os sistemas educacionais, alias,

bandeira histórica de todas as reivindicações do setor? Talvez por isso, o termo ganha uma

popularidade nunca antes experimentada, coroando uma utilização que se pretende

consensual. Ocorre que, na reforma educacional brasileira, a autonomia, via de regra, vai

referir-se a decisões técnicas e burocráticas, relativas à gestão e distribuição dos recursos

financeiros, que tem por contrapartida e adoção compulsória de procedimentos burocráticos a

alimentar as estatísticas educacionais e, em última análise, a propiciar meios de um controle

inédito do Estado sobre as unidades escolares. Longe de introduzir qualquer exigência clara

de democratização, envolvendo as demais esferas da ação educativa, a autonomia se converte

em pretexto para uma centralização agora bastante mais seletiva, e para o desenvolvimento de

mecanismos de coação e controle inauditos.

No Brasil integrasse à agenda brasileira de reformas institucionais e que, tendo por

objetivos mais visíveis e declarados a universalização da educação pública. A equidade de seu

acesso, a melhora da qualidade do ensino e a implementação de processos mais eficazes e

eficientes de prestação de serviços educacionais, que faz da descentralização do sistema de

ensino e dos programas que lhe dão sustentação um dos vetores que constitui, por excelência,

a reorganização da política educacional brasileira.

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2. AUTONOMIA: O ESTADO BRASILEIRO

O discurso dominante nos convoca todo o tempo a pensar o Estado como algo externo

à sociedade, como um simples agente de controle, proteção e regulação do mercado. Decerto

que há uma ausência de conteúdo político nesse debate: o Estado não é tratado, nem como

instrumento de dominação, expressando uma determinada correlação de forças, nem como um

desdobramento vivo da sociedade, espaço no qual se aglutinam interesses e relações sociais,

nem muito menos como elemento de realização de certas aspirações e projetos comunitários.

Compreende-se muitas das vezes por aqueles que respiraram “educação”, a ação do

Estado como nocivo, coercitivo e arbitrário, herança de uma opressão de trezentos anos de

colonização. Citemos o comentário do autor Lauro de Oliveira Lima:

12”O Estado é visto como opressor, como se sua presença denunciasse ainda o domínio da metrópole. Daí a ojeriza que o brasileiro tem à “política”: ser político é como ser capataz do Estado e aliado da metrópole, inimigo do povo.” (LIMA).

Por outras vezes, o Estado é considerado, na visão de inspiração liberal, como

superdimensionado, portador de uma ineficácia crônica que pesa como um fardo sobre a

sociedade e os indivíduos e sobre a liberdade do mercado.

Muito já se comentou acerca das raízes da sociedade brasileira. Nossa sociedade

caracteriza-se historicamente por uma formação hierarquizada, na qual um segmento

minoritário da população detém as fontes geradoras de riqueza enquanto a maioria da

população é mantida afastada dos benefícios do desenvolvimento material e cultural.

Da Colônia à República, não nos constituímos uma identidade autônoma: o processo

dessa construção identitária foi marcado pelos episódios de expansão do moderno sistema

mundial, ora centrado na Europa, ora nos Estados Unidos da América, de modo que nossa

histórica dependência social e econômica só sofreu as alterações que as sucessivas

transposições de influências ocasionaram. Mas, no âmbito interno, construíram-se relações

que permaneceram inalteradas, no que se refere à monopolização do poder, à segregação

social, à posse dos meios e o controle das forças de produção, á ocupação do espaço

geográfico e à distribuição de rendas.

12 LIMA, Lauro de Oliveira. Estórias da Educação no Brasil: de Pombal à Passarinho. 2.ª ed. Rio de Janeiro, Brasília, s/d, p. 49.

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Na sociedade brasileira, o Estado monopoliza, desde os primeiros momentos, a autoria

da sociedade. As relações sociais que daí derivam são evidentemente modeladas pelo caráter

tutelar e pela prática do favorecimento patriarcalista. Nessas condições, a lei prolonga, em sua

artificialidade, o arbítrio ilimitado dos poderosos; a relação com a lei que a população

desenvolve é, desde então, marcada pela exterioridade não só formal, mas em todas as suas

consequências, essencial para a instalação de um sentimento corrente de que, em relação a ela,

a melhor distância é sempre a maior. Em outras palavras, se a legislação brasileira é, por um

lado, um conjunto de medidas que serve á preservação dos privilégios de dominação e à

prática da repressão, por outro lado está claro, também, que, em sua inacessível lógica, ela é

totalmente ineficiente quando empunhada em favor do indivíduo comum.

Com a proclamação da República, vencem o princípio federativo, que entre nós

subordina os ideais da construção comum aos interesses locais; as ideias liberais de ampliação

dos diretos de voto, logo condicionada pela exigência de preparar os indivíduos capazes de

exercê-los; a separação entre Igreja e Estado, entendida como uma questão jurídica, e jamais

político-ideológica; a busca de racionalização das relações sociais, que jamais conduziu de

fato à superação das fontes de autoridade e segmentação social.

Além de ter surgido em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada, a

República brasileira foi proclamada em um momento de intensa especulação financeira,

sobretudo gerada pela larga emissão de moeda para atender ás necessidades resultantes da

abolição da escravidão.

A I República testemunhou assim a forma peculiar com que o liberalismo fez sua

entrada no país, a releitura muito particular dos valores de universalidade, de laicidade, de

publicidade e de justiça social que o modelo republicano introduzia, sempre adequados às

necessidades de constituição de uma economia capitalista e, ao mesmo tempo, á preservação

das velhas tradições coloniais.

Se o desenvolvimento capitalista foi incipiente durante a República Velha, ele

seguramente acelerou a tomada de consciência em relação a algumas necessidades

basicamente retraduzidas em termos educacionais, de formação de uma mão de obra urbana e

diferenciada. Aos poucos, vai-se esvaecendo a organização do Império, relativamente estável

e expressa na relação senhor e escravo, e delineia-se um novo padrão de estratificação social,

baseado na sociedade de classes.

É dessa forma, portanto, que nos alcança o projeto republicano, num quadro de

profundas desigualdades sociais, de mudanças nos modelos econômicos, de manutenção dos

privilégios e de deslocamento de nossa dependência cultural. Novos padrões de

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comportamento e novas expectativas se vão instituindo por intermédio das transformações

decorrentes do novo sistema de valores da civilização urbano-industrial.

O autor 13Francisco de Oliveira (1990), afirma que devemos aos intencionalmente

silenciados e expurgados do processo político, a tentativa de construção de uma esfera que

abarcasse a todos, indistintamente. Para ele “todo o Brasil, decorreu, quase por inteiro, da

ação das classes dominadas”. Considerando que a recuperação da história dos dominados é

muito recente, e, estabelecendo como marco os anos 30 e a tentativa de construção dos

partidos de classe como movimentos das classes dominadas, Oliveira nos diz que a partir daí 14 “se realiza a façanha de fazer política”. (OLIVEIRA).

Ou seja, mesmo em condições tão adversas, vem pela mão do povo a tênue esfera

pública de que um dia pudemos gozar no Brasil. Foi pelo esforço realizado pela população no

sentido de superar o autoritarismo, e o insucesso de muitas destas lutas que poderia apresentar

uma derrota, mas pelo contrario, essas ações nos puseram em relevo a gama de obstáculos e à

transformação da sociedade. Que se pôde estabelecer a exigência de uma ordem democrática,

de participação na vida política com a ampliação do direito de voz e voto, e a exigência de

garantias individuais, sociais, econômicas e culturais. Ou, como afirma a autora, Marilena

Chauí:

15“A cidadania surge como emergência sócio-política dos trabalhadores

(desde sempre excluídos de todas as práticas decisórias no Brasil) e como questão de justiça social e econômica. Assim, representação, liberdade e participação têm sido a tônica das reivindicações democráticas que ampliaram a questão da cidadania, fazendo-a passar do plano político institucional ao da sociedade como um todo. Quando se examina o largo espectro das lutas populares, nos últimos anos, pode-se observar que a novidade dessas lutas se localiza em dois registros principais. Por um lado, no registro político, a luta não é pela tomada do poder identificatório com o poder do Estado, mas é luta pelo direito de se organizar politicamente e participar das decisões. Por outro lado, no registro social, observa-se que as lutas se concentram apenas na defesa de certos direitos ou na sua conservação, mas são lutas para conquistar o próprio direito à cidadania e constituir-se como sujeito social”. (CHAUÍ).

É assim, sendo dando em um campo previamente demarcado pelos interesses das

elites, que as lutas populares, na maioria das vezes, logram efeitos mínimos ou estabelecem

sutil alteração na correlação de forças existentes.

13 OLIVEIRA, Francisco de. Privatização do público, destruição da fala e anulação da política. 1.ª ed. Petrópolis, Vozes, 1990, p. 60. 14 Id.ibid. p. 61. 15 CHAUÍ, Marilena. “Cultura popular e autoritarismo.” In: Conformismo e Resistência. São Paulo, Brasiliense. 5.ª ed., 1993, p. 62.

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2.1 A Descentralização do Estado

Não se pode dizer que, para privilegiar os interesses das elites, o novo regime

republicano tenha simplesmente preservado a organização social anteriormente instituída.

Decerto a rearticulação do poder, manifestada pela política dos governadores e pela política

de defesa e valorização do café, implicou no continuísmo das forças regionais, legitimadas

pela corrupção do sistema eleitoral; mas, ao entender aos interesses da oligarquia cafeeira,

também colaborou para a falência da antiga composição colonial. Esse jogo viciado de

manutenção dos privilégios, que não poderia seguir por caminhos diferentes, foi estendido ao

sistema educacional.

Mais ainda, a partir daí, no Brasil, a política educacional ilustra perfeitamente o

sentido e as falácias das tentativas de descentralização do Estado, então nascente. Na área

educacional, os discursos versavam sobre a difusão da instrução: porém a prática demonstrava

a inconsistência das ações em torná-la real. Dessa forma, os privilégios da participação social,

corretamente denominados, não sem certo contra-senso, de “privilégios da cidadania”,

continuaram restritos a um seleto grupo dentro da massa da população.

Nesse sentido, a eliminação do critério eleitoral de renda, na Constituição Republicana

de 1891, deve ser encarado como um simples efeito demonstrativo, e não foi suficiente para

admitir a participação da maioria nas decisões políticas. Mas se a manutenção da restrição ao

voto do analfabeto não levou, como chegou a ser pensado, a um maior interesse pela

alfabetização da população, ela serviu para consolidar a tese liberal de que a participação

política deveria decorrer de uma preparação escolar prévia.

O ingresso tardio e com características tão peculiares do Brasil no mundo da

democracia moderna irá determinar que o projeto de construção da Escola pública

compartilhe dos mesmos revezes que o projeto de construção da nação irá padecer. Trata-se

de encurtar a distância entre cidadania para todos os indivíduos, exigência primeira do mundo

democrático e um oceano de desigualdades e iniquidade social.

No novo cenário político, a já tradicional divisão de competências no âmbito

educacional se mantinha justificada agora pelos princípios do federalismo e da autonomia. A

descentralização, entendida assim como absoluta desresponsabilização, favorecerá, em muito,

a formação de duas redes de ensino: uma, de iniciativa pública, que propositalmente não

alcançará a quase ninguém e outra privada, especialmente vinculada à Igreja.

A descentralização vai sobretudo intensificar os efeitos das disparidades regionais:

confiada aos estados, a organização do ensino elementar e secundário apenas registrará algum

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avanço naquelas regiões que, mais desenvolvidas, (especialmente São Paulo) se converteram

nos pólos econômicos do País.

Assim, a autonomia só pôde se materializar através das forças públicas que os Estados

puderam reunir, aprofundando as velhas desigualdades e criando outras tantas que até hoje

nos desafiam. A igualdade que a República pretendia instaurar através da descentralização do

poder decisório está desta forma, definitivamente comprometida, estabelecendo, ao contrário,

gritantes disparates regionais.

Aliada a essa disparidade na oferta e na manutenção da educação básica, há que se

destacar, ainda, que a duração dessa escolaridade corroborou cada vez mais para aprofundar

as desigualdades.

Sem implicar, assim, em maior participação e igualdade política, a descentralização

que vai marcar a estruturação do Estado brasileiro, implanta o regime de desresponsabilização

legal que legitima e mascara o desinteresse pela escolarização elementar e o tratamento

elitista que historicamente se deu ao ensino secundário, marcados em toda a história da

educação brasileira. A autora, Maria Elisabete faz o seguinte comentário:

16“A descentralização escolar, definida em 1834, foi reafirmada na

Constituição de 1891, apesar das fartas e antigas denúncias, dos extensos diagnósticos e das estatísticas que revelavam o desastre que essa situação representava para o ensino elementar. Permaneceu como responsabilidade específica agora dos estados manter e legislar sobre a instrução pública elementar. (...) Mas uma vez o governo central ficava “impedido” de auxiliar os governos locais nessa tarefa, mas se reservava o direito de criar escolas superiores e secundárias nos estados, cuidando para não “tolher” a ação do poder local (...) A consequência dessa política foi, sem dúvida, a perpetuação da precariedade da escola primária, tanto do ponto de vista da sua qualidade, como da sua expansão. Consolidava, ainda, a extrema disparidade dessa espécie de atendimento escolar nas várias regiões do país, presente durante todo o Período Imperial”. (XAVIER).

Romper com a contradição e com a complexidade que representa a descentralização

no regime federativo parece ter sido, ao longo da história da educação brasileira, um grande

ponto de reflexão e um desafio constante.

Muitos autores reconheceram que uma das tentativas mais marcantes no sentido de

romper com a lógica perversa da descentralização no sistema educacional brasileiro foi o

movimento Escola Nova. A visão escolanovista logrou introduzir a idéia de um sistema

educacional público unificado, ainda que sensível às características regionais e controlado

pelas comunidades, aberto a todas as classes e camadas sociais e fiador de uma nova

16 XAVIER, Maria Elisabete Sampaio Prado. História da Educação: A Escola no Brasil. 1.ª ed. São Paulo, FTD, 1994, P. 49.

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nacionalidade. Com base nesses pressupostos, a Escola Nova representou a efetiva

estruturação, já expressa desde o Manifesto dos Pioneiros, de uma rede educacional que

envolvia, pela primeira vez, a responsabilidade regional. Citemos o autor, Junior Paulo

Guiraldelli:

17“A organização da educação brasileira unitária sobre a base e os

princípios do Estado, no espírito da verdadeira comunidade popular e no cuidado da unidade nacional, não implica um centralismo estéril e odioso, ao qual se opõem as condições geográficas do país e a necessidade de adaptação crescente da escola aos interesses e ás exigências regionais. Unidade não significa uniformidade. A unidade pressupõe multiplicidade. Por menos que pareça, á primeira vista, não é, pois na centralização, mas na aplicação da doutrina federativa e descentralizadora, que teremos de buscar o meio de levar a cabo, em toda a República, uma obra metódica e coordenada, de acordo com um plano comum, de completa eficiência, tanto em intensidade como em extensão. Á União, na capital, e aos estados, nos seus respectivos territórios, é que deve competir a educação em todos os graus, dentro dos princípios gerais fixados na nova constituição, que deve conter, com a definição de atribuições e deveres, os fundamentos da educação nacional”. (GUIRALDELLI).

Para os intelectuais escolanovistas, à iniciativa regional correspondia, paradoxalmente,

a criação uma realidade nacional, a corporificação de um sistema nacional de educação.

Entretanto, as marcas autoritárias de sua concepção, reveladas pela mitificação da ciência e

das inéditas possibilidades de planejamento e controle centralizado pelo aparato nacional,

tanto quanto a glorificação da figura do especialista, assentadas, não nos esqueçamos, sob as

bases de um governo populista e ditatorial, definem, de fato, o estabelecimento de uma esfera

intermediária de centralismo burocrático da educação, representada pela figura dos

especialistas locais.

A histórica atração que o termo autonomia jamais cessou de exercer sobre o professor

público, assinalando o contexto de origem de sua valorização: a própria desvalorização da

prática docente, encetada desde a Republica e intensificada pelo tecnicismo escolanovista,

essa incessante desqualificação do ofício sendo significada pela noção de que apenas a

especialização, a transformação do professor em pesquisador, em acadêmico, o livrará do

anonimato e o alçara ao posto de formulador e participante. Vale à pena, no entanto,

considerar que esse anônimo professor estabelece sua crítica espontânea e cotidiana das

decisões e dos discursos dos “especialistas”, por sua inviabilidade, por sua tola arrogância e

seu afastando das questões práticas.

17 O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, in: GUIRALDELLI, Junior Paulo. História da Educação. 1.ª ed. São Paulo, Cortez, 1994, p. 65.

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2.2 A Peculiaridade da Autonomia na Reforma Educacional

Observa-se atualmente uma reconfiguração do sistema educativo a partir da definição

do espaço social que a Escola ocupa. Passa a exigir dela não apenas a construção da

representação da ordem e a reprodução dos códigos dominantes, mas também uma prática de

assistência material, social e efetiva que permita neutralizar a violência e constituir-se como

instancia de contenção social. As mudanças culturais provocam impacto sobre a legitimidade

e a relevância social da Escola. Em consequência, ela se afasta das exigências de socialização

compatíveis com caráter nacional da cidadania, seu princípio estruturante, para adquirir perfil

diferenciado e correspondente às características sócio-culturais, aspirações e expectativas da

comunidade local.

A (re) construção da identidade social da Escola mostra-se desarticulada das demandas

da sociedade, incapaz de expressar as expectativas de conjunto de uma sociedade por sua vez

incapaz de formulá-las de maneira coletiva. Nesse sentido, a crise da sociedade é o pano de

fundo que favorece um tipo de “reconstrução” que, mais uma vez, está inteiramente orientada

por interesses particulares.

No que tange, especificamente, no financiamento, pedra angular do discurso sobre a

autonomia na reforma educacional e legitimação última tanto de sua “competência técnica”

quanto de sua eficiência prática, é de novo à ideia de descentralização que se recorre, de

forma quase obsessiva. Nesse sentido, é impossível não buscar a linha de continuidade

existente entre a descentralização dos primeiros momentos da República e o discurso oficial

sobre a autonomia, a partir dos anos 90; mas é evidente, também, que esse recurso à história

não implica que se pretenda desconhecer as diferenças que se estabelecem os diversos

períodos da formação do sistema público de ensino no Brasil.

No seu uso rotineiro, a autonomia pretende corresponder à noção de redignificação

do espaço escolar, representando a possibilidade de que as grandes decisões possam se dar

com a participação de todos os lugares, inclusive e principalmente na Escola. No entanto, no

discurso oficial a autonomia é, antes de mais nada, e não quase unicamente, pois não é uma

questão de quantidade de ocorrência, mas da ênfase e do sentido profundo que é dado ao

termo, uma questão meramente econômico-administrativa.

É nesse sentido que, ao implementar a reforma educacional, o Estado brasileiro

conceitua a autonomia da Escola de uma forma bastante peculiar. Derivada do novo

paradigma de gestão dos sistemas educativos, que permite estabelecer novas articulações

entre os governos centrais e as escolas, a autonomia possibilita a dispersão dos cenários de

conflito, já que, por exemplo, cada estabelecimento de ensino fica responsável por construir

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seu projeto político-pedagógico; reduz a ação dos indivíduos aos seus espaços cotidianos, o

que adia a construção de um projeto que se possa considerar coletivo e, fundamentalmente,

desloca o núcleo das responsabilidades para a base do sistema, uma vez que compete à cada

Escola, não só, a administração e a geração dos recursos financeiros, como também a

definição de seu caráter político.

A autonomia se constrói como um conceito que deve ganhar, na prática educativa, um

sentido preciso. A autonomia significa uma democracia, a participação nas deliberações

comuns e as responsabilidades (prestação de contas e compromisso) com o que é

coletivamente instituído. No caso da Escola, esta autonomia é impossível, sem a criação de

um coletivo deliberante. Mas esse coletivo não pode ser fruto espontâneo da exigência

burocrática, nem constituído por determinações oficiais, pois implica a construção de

subjetividades reflexivas e deliberantes, em seu cotidiano.

O coletivo de que apresente pesquisa fala, é algo que está longe de existir nas atuais

condições. Sua construção é sistematicamente impedida e adiada pela heteronomia da

sociedade, ou seja, pela contínua substituição da exigência democrática de participação

política pela tecnocracia representada pelos especialistas no poder; pelo caráter autoritário das

leis que os grupos de especialistas concebem; pelo descaso com a criação cotidiana que

deveria pontuar a prática da Escola; pelas condições fortemente adversas e desiguais de

trabalho; pela falta de iniciativa política por parte dos sindicatos dos professores, muitas vezes

envolvidos nas questões emergenciais de sobrevivência de ordem financeira; e pela natureza

ideológica dos tipos de formação propostos para o professor, sempre pensados a partir do

mesmo modelo pedagógico dominante, já introduzido na Escola. Por esse modelo, se faz da

adoção acrítica da teoria educacional o motivo para o culto à personalidade de alguns teóricos

e o hábito de desvalorização do professor “comum”; se faz da sala de aula o lugar para a

experimentação de todo o tipo de hipóteses e banalidades, segundo a lógica da aproximação

de seus autores com o poder; se multiplicam congressos e seminários nacionais e locais,

reunindo centenas de professores, em seus horários de aula ou de lazer, passivamente

chamados a descobrir a sua nova verdade. Ainda há uma autonomia possível, na acepção

clássica do termo, em tais condições?

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3. AS FRONTEIRAS DA AUTONOMIA

Os resultados perversos do modelo sócio-político-econômico instaurado desde o

período monárquico nos alcançam de modo indelével e fomentam entre nós brasileiros um

sentimento de certa impotência diante dos resultados na Nação. Temos, por herança, a

ausência absoluta de uma cultura política, a fragilidade de procedimentos democráticos e de

participação popular. Por aqui, a centralização e o autoritarismo estiveram quase sempre de

mãos dadas, determinando o tom da maioria das administrações que se sucederam durante a

história.

Na recente história brasileira, a (re) emergência do conceito de descentralização se dá

em duas vias: uma cunhada pela iniciativa oficial, de conotação econômica, que pretende a

racionalidade e a eficiência nos gastos públicos e ampara-se na necessidade de enxugamento

da máquina estatal; outra, estabelecida de forma bem mais difusa e incipiente, de caráter mais

político e social, que reporta-se à ampliação dos espaços decisórios e à criação ou

aperfeiçoamento dos mecanismos e da prática democrática. Especialmente, a partir do final

dos anos setenta, a crise generalizada de sustentação dos governos autoritários, oriundos do

golpe militar, e o apelo à redemocratização, fizeram por restabelecer a descentralização como

a melhor forma de se gerenciar a coisa pública: a ampliação dos direitos sociais, com

subproduto da democratização, forçou um movimento em defesa de uma maior participação

da sociedade nas esferas de decisão (através do voto, principalmente), acarretando uma maior

participação também na fiscalização e no acompanhamento da gestão dos negócios públicos.

De sua parte, os governos, pressionados pelos organismos internacionais, viram na

descentralização um meio seguro para a revisão da agenda de investimentos sociais. Sem

dúvida, a reforma, tão generosa no emprego de palavras, é incapaz de lidar com a polissemia

que seu discurso involuntariamente dissemina como um véu a encobrir os limites de sua

coerência e de seus poderes.

No sentido de aprender seus significados e refletir sobre como eles operam no meio

educacional, passamos em análise, a seguir, os termos de apresentação do duplo dispositivo

que o novo modelo educacional brasileiro introduz como promotores da melhoria de

qualidade do sistema e da instituição da autonomia da Escola e do Professor: os Parâmetros

Curriculares Nacionais (PCN), e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica

(SAEB). Na lógica da reforma empreendida, a articulação prática entre os dois instrumentos é

realizada pelo Projeto Político Pedagógico (PPP) que as escolas passam a ter a incumbência

de elaborar e por em execução, e que deveria se constituir no instrumento acabado de

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concretização da famosa autonomia propagada pelo governo brasileiro ao implantar a reforma

educacional.

3.1 Apenas Parâmetros, ou um Currículo Nacional?

Desde que à educação, tornada pública, associa-se a reflexão especializada e a prática

sistemática, ainda na Antiguidade, a questão da concepção de um plano de estudos,

estruturado como judiciosa combinação de exercícios práticos e ensinamentos teóricos deixa

de interessar apenas os mentores dos futuros líderes para tornar uma questão política.

A Modernidade, porém, deu novo fôlego à retificação do currículo. Ao estabelecer que

o acesso à razão, a marca da humanidade, era fornecido pelo “esclarecimento”, o iluminismo

transfere para a definição dos conceitos grande parte das decisões educativas. A valorização

da razão científica e a crítica ao modelo das humanidades educativas. A valorização da razão

científica e a crítica ao modelo das humanidades posteriormente contribuíram para reforçar a

noção de que os conteúdos eram portadores da sua própria pedagogia, intensificando ainda

mais a assimilação do gesto educativo à intervenção curricular. Não é, pois surpreendente

que, desde então, as mudanças na educação, de um modo geral, se projetem a partir de

reformulações curriculares: prática que se fundamenta no próprio status teórico que o

currículo assume nas rotinas educacionais. Assim, com a definição de um currículo,

descrevem-se as funções da própria Escola e a forma com que devem ser enfocadas em um

momento determinado.

O Plano Decenal de Educação Para Todos afirma a necessidade e a obrigação do

Estado em elaborar orientações curriculares, como forma de realização da equidade social e

da melhoria de qualidade educacional que a Conferência reivindicava, que a Lei de Diretrizes

e Bases da Educação Nacional, aprovada em dezembro de 1996, remete a União.18

Em consequência, os PCN, automaticamente como um referencial de qualidade para a

educação no Ensino Fundamental em todo o país, nascem legitimados não só pela

normatização legal, mas pelo peso do concerto internacional agora feito consenso

pretensamente nacional acerca não só da necessidade de uma referência comum para o

currículo do Ensino Fundamental, como também para definição dos padrões de “qualidade”

para a educação brasileira.

Na longa história da reflexão educacional, por “qualidade” se entendeu uma profusão

de coisas, conforme o enfoque: adequação dos sujeitos se que formava aos padrões elitistas de

18 Conforme art. 9.º, inciso IV da Lei 9394/96.

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cultura humanística ou às exigências da realidade empírica, desenvolvimento das

potencialidades individuais de cada aluno ou difusão desenfreada da oferta educacional. Mas,

a partir da modernidade, como escapar de sua associação ao combate contra as desigualdades

e injustiças sociais? Deduz-se, no entanto, da leitura do documento, que todos esses sentidos,

ainda que não eliminados, não são seriamente considerados.

Muito embora, porém, a “qualidade” deva permanecer do ponto de vista de sua

insuficiente elaboração pelo documento, um critério artificioso e, por isso mesmo,

inapropriável pelo professor, a ela correspondem uma série de injunções técnicas que parecem

ter por objetivo torná-la, ao menos, automaticamente aplicável. Em outras palavras, investe-se

menos na clareza teórica do conceito do que na determinação de sua aplicação pedagógica.

A hierarquização dos níveis de concretização curricular estabelecida no documento

revela a diretividade que a retórica dos Parâmetros procura ocultar, e para a qual devem

convergir, a partir daí, as ações do MEC, dos Estados e dos Municípios, em todos os níveis e

modalidades do ensino elementar:

19“Os PCN constituem o primeiro nível de concretização curricular. São

uma referência nacional para o Ensino Fundamental: estabelecem uma meta educacional para a qual devem convergir as ações políticas do MEC, tais como os projetos ligados à sua competência na formação inicial e continuada de professores, a análise e compra de livros didáticos e à avaliação nacional. Têm como função subsidiar a elaboração ou revisão curricular dos Estados e Municípios”. (BRASIL).

Diante desses objetivos, como considerar a “flexibilidade” que cessam de proclamar?

20“Apesar de apresentar uma estrutura curricular completa, os PCN são

abertos e flexíveis, uma vez que, por sua natureza, exigem adaptações para a construção do currículo de uma Secretaria ou mesmo de uma escola”.

Essa “flexibilidade” é, na verdade, colocada à prova pela forma como os Parâmetros

se justificam, por sua pretensão de se apresentarem como a melhor, senão a única referência

curricular possível para organização do sistema.

No caso específico da crise educacional, por que recorrer aos professores para

construir as soluções? Não foram eles, principalmente, os responsáveis pelos fracassos

obtidos? Desatualizados, despreparados e perdulários, não souberam adequar-se às exigências

e demandas do mundo moderno, das novas tecnologias e da globalização. São, portanto,

19 BRASIL, SEF.Op. Cit., PP. 36, 37. 20 Id., ibid.

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considerados imaturos para exercer qualquer autonomia e participar das decisões. O texto de

apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais dá a crer que, autonomamente, os

professores seriam não só incapazes de reconhecer a extrema complexidade da prática

educativa, que eles realizam sem sequer compreender, como também de honrar, sem o auxílio

de quem formulou o documento, sua responsabilidade para com a construção democrática do

país.

3.2 Avaliar, Medir e Planejar

Estendida como atividade especializada regularmente exercitada por aqueles a quem

incumbe à gestão e o controle do aparelho educacional, a avaliação debuta, no país com a

instituição do regime seriado, e na esteira da tecnificação escolanovista, que introduz as

rotinas e métodos de sua concretização. Revalorizada pela reação “tecnicista” dos anos 70 à

politização da educação, a ênfase avaliadora entra em declínio juntamente com toda a vertente

planificadora que a introduziu, para reassumir centralidade a partir da década de 90. Desde

então, a avaliação permanece como eixos que estruturam as políticas públicas para a área

educacional, na medida em que, principalmente, as análises e críticas teóricas e, em seguida,

as normativas oficiais alinhem os diferentes segmentos da educação em torno da preocupação

central com a produtividade do sistema educacional, principalmente em face da injunção

emergente quanto à qualidade da educação.

Em virtude das exigências de enxugamento da máquina estatal, essencialmente

relativas à boa aplicação dos recursos públicos em serviços educacionais de qualidade

demonstrável, o modelo da máquina estatal permite a ampliação do controle do Estado não só

sobre os recursos financeiros aplicados na área, como também sobre os recursos pedagógicos

que se imaginam capazes de intervir diretamente na fabricação dos índices esperados de

produtividade escolar. É essa a relação direta que se estabelece entre a doutrina neoliberal de

redução das responsabilidades estatais, a adoção de mecanismos estritos de aferição

padronizada do rendimento escolar e a introdução de parâmetros para o currículo nacional.

Além disso, o novo modelo de avaliação realiza, por meio da autonomia “concedida” à

escola, sua definitiva sujeição ao espírito da competitividade estabelecido pelas “leis de

mercado”, justificando formalmente, pela primeira vez na história brasileira, a distribuição

inequânime dos recursos públicos. No entanto, de acordo com o Ministério da Educação e do

Desporto, o que justifica a adoção desse modelo, pela criação do Sistema Nacional de

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Avaliação da Educação Básica21 (SAEB), que data de 1990, é a necessidade não só de garantir

a qualidade do sistema de ensino, mas também a equidade em termos de sua oferta. E de fato,

para que tal ocorresse, seria preciso que a avaliação, ao invés de designar o favorecimento de

verbas para as escolas bem sucedidas, privilegiasse aquelas com maiores dificuldades; ou

então que os efeitos automáticos da avaliação externa fossem capazes, por si sós, de produzir

a desejada reação que as escolas até ali não logravam produzir em face do “fracasso escolar”.

O SAEB é um importante subsídio para a compreensão dos fatores associados ao

processo de ensino e aprendizagem, em diversas séries e disciplinas.

Apesar disso, na prática, é todo o contrário que verifica. O mesmo sistema que

estimula, pela inversão financeira, as experiências bem sucedidas, pune as dificuldades com a

restrição ainda maior de apoio. E cumpre verificar que, para além dos Parâmetros Curriculares

e do projeto Político-Pedagógico a ser compulsoriamente construído pelas escolas, nenhum

outro mecanismo de grande porte, relativo à correção das deficiências e à justa administração

de apoio técnico foi instituído.

Sendo assim, pode-se dizer que o currículo educacional brasileiro, acaba por ser

definido, pela fixação dos PCN; mas eles são objeto, no interior da própria sistemática do

SAEB, de um tratamento específico, que toma a forma de Matrizes Curriculares das

Referências. Essas últimas têm por finalidade organizar “descritores do desempenho” que

cumprem, segundo o próprio SAEB, dois objetivos principais: dar visibilidade e transparência

à avaliação, isso é, fixar mais claramente sua abrangência; e, concomitantemente, minimizar

seu principal defeito, a automática operacionalização do ensino às exigências, ou a redução

daquilo que é ensinado aos simples patamares daquilo que é avaliado. Ainda que os dois

objetivos não sejam necessariamente contraditórios, a prática demonstra que a literatura

pedagógica oficial só conhece um meio de realizar as precisões que julgam necessárias:

desdobrando as insuficiências conceituais em uma série de ilustrações e aplicações que, de

fato, só induzem à aplicação automática das “receitas” oferecidas.

As Matrizes buscam organizar seus descritores não só em tópicos, temas e assuntos,

mas também em operações mentais. Em realidade, esses descritores acabam por configurar

uma tabela de especificação bastante minuciosa, que assinala antecipadamente os padrões de

elaboração das provas do SEAB.

Em que pesem essas gritantes incoerências, o SAEB pretende, a cada momento,

definir-se pelo alto padrão de cientificação empregado, dessa forma, estabelece a eficiência

21 O SAEB foi implantado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), ÓRGÃO VINCULADO AO Ministério da Educação.

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gerencial como horizonte de legitimação para o poder do especialista. Assim, por exemplo, o

sistema reivindica a utilização, para a análise de seus resultados, de uma teoria de resposta ao

item da qual se derivam escalas de padronização e aferição de desempenho nacional.

Pretende-se que o recurso a essas tecnicidades seja argumento suficiente quanto à seriedade

da avaliação, quanto a seu rigor e profundidade:

22“Na elaboração das Matrizes Curriculares de Referência do SAEB,

optou-se pela estratégica de definir descritores, concedidos e formulados como uma associação entre conteúdos curriculares e operações mentais desenvolvidas pelos alunos, que se traduzem em certas competências e habilidades. Nesse novo modelo, buscou-se a associação dos conteúdos às competências cognitivas utilizadas no processo da construção do conhecimento. Competência, segundo Phillipe Perrenoud (1993), é a <capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiando-se em conhecimentos, mas sem limites a eles>. Para enfrentar uma situação, geralmente, colocam-se em ação recursos cognitivos complementares, entre os quais os conhecimentos”. (INEP/MEC. SAEB).

Os resultados obtidos são tornados públicos com diferentes intenções: por um lado,

informa-se à sociedade os resultados mais gerais, supondo-se que com isso se tornará

fomentando uma atitude de cobrança da qualidade dos serviços prestados; por outro,

disponibilizam-se aos administradores, gestores e especialistas as informações mais

detalhadas, que possam permitir uma observação e uma consequente tomada de decisões mais

qualitativa do sistema nacional de ensino.

Mais, até o presente momento compreende-se através da presente pesquisa, que

nenhum tipo de iniciativa do Ministério buscou sondar de forma, pelo menos, sincera como os

professores e unidades escolares, em sua autonomia, reagiram ao SAEB, e que sugestões

teriam, a partir de sua adoção, a fazer aos especialistas da educação.

3.3 Onde o Discurso Generalizado da Autonomia se Desfaz

A introdução da exigência de elaboração, por parte de cada unidade escolar, de um

Projeto Político Pedagógico parece significar a intenção, por parte das autoridades públicas,

de levar a cabo a noção de autonomia das escolas. Entendido como a organização do trabalho

pedagógico, o PPP deveria reunir as intencionalidades e as responsabilidades educativas e o

modo pelo qual cada escola vai corporificá-las; em seu caráter político, estabeleceria o

compromisso com a formação de um determinado tipo de cidadão indo além dos simples

22 INEP/MEC. SAEB 2001: novas perspectivas. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais. Brasília, INEP, 2001, PP. 5, 6.

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agrupamento de planos de ensino e de atividades a ser submetido às autoridades, como prova

do cumprimento de tarefas burocráticas. Nesse duplo sentido, o PPP se apresentaria como

peça singular, relacionada às particularidades históricas e à identidade de cada escola.

No entanto, no contexto das reformas educacionais, a obrigatoriedade de que se

reveste o PPP revela-se menos favorável à construção da “autonomia” da Escola ou do espaço

de desenvolvimento de sua democracia interna do que em imperativo burocrático de que

decorre uma nova forma de controle e de racionalização da gestão escolar.

É bem verdade que, ao determinar a elaboração da proposta pedagógica como

incumbência compartilhada entre as escolas e seus professores, a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação insiste, pela via do discurso legal, naquilo que se apresenta como uma necessidade

própria da natureza da atividade educativa: atender às necessidades e ás características

específicas dos alunos de cada escola e de cada comunidade, a partir de um trabalho coletiva e

explicitadamente construído. No entanto, sua introdução abrupta em uma tradição escolar

inteiramente despreparada e destituída de uma cultura de participação transforma-o em uma

artificialidade burocrática que, segundo o autor João Barroso acaba por realizar dois

objetivos: a ampliação do controle das administrações centrais sobre as escolas, na medida em

que as abriga a tornar explícitas as políticas e os procedimentos que os professores e os seus

órgãos de gestão utilizam no funcionamento real da escola; e a normatização e racionalização

da gestão da escola:

23“... através da utilização de um complexo aparato técnico que se traduz, na

maior parte dos casos, num conjunto de “receitas” e “técnicas de como bem fazer um projeto”. Para os defensores desta perspectiva, o projeto educativo da escola permite diminuir o caráter intuitivo e “pouco profissional” da gestão escolar, obrigando a adotar uma hierarquia de procedimentos pré-determinados para a seleção de objetos, definição de prioridades, identificação de recursos, etc.”. (BARROSO).

Além disso, o currículo nacional ao descrever os níveis de concretização curricular se

dá, entre outras, a função de subsidiar a elaboração ou a revisão curricular dos Estados e

Municípios propondo-se a incentivar “a discussão pedagógica interna das escolas e a

elaboração de projetos educativos”, assim como a se colocar à disposição para “servir de

material de reflexão para a prática de professores”, dando a crer que a escola quanto o

professor necessitem destes “apoios” para sua ação cotidiana.

23 BARROSO, João. Fazer da Escola um Projeto: políticas, gestão e práticas. In: Jornal Bolando Aula. São Paulo, fevereiro de 2000, nº 27, PP. 8-10.

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CONCLUSÃO

A cidadania pressupõe a liberdade, a autonomia e a responsabilidade; ser cidadão é

ser, a um só tempo, livre e sujeito às leis.

As reformas do Estado e da educação dos anos 90 pretenderam e continuam até hoje

pretendendo, pois ainda em curso, uma nova conformação social. Não apenas se espera uma

mudança radical na cultura educacional, como também nos processos de fabricação dos

homens e das identidades requeridas para o novo modelo no mundo social.

A Escola pública, embora instituída na efervescência dos ideais de liberdades

democráticas da Revolução Francesa, especialmente no caso brasileiro, desenvolveu-se

historicamente subordinada às políticas hegemônicas, de caráter excludente, gestadas no

interior de um aparelho estatal preparado para servir à conservação dos interesses dominantes.

No Brasil, a Escola se consolida como uma instituição conservadora, refletida pelo

conservadorismo dessas políticas e pela imitação da organização do trabalho no sistema

produtivo. É a ela, principalmente, que se vai atribuir o papel fundamental na fabricação dos

homens e de suas identidades. A educação escolar enquanto recurso na fabricação das

identidades sociais vai estabelecer direta relação entre os processos educacionais e as relações

de poder existentes na sociedade.

Ainda que, como uma instituição da sociedade, a Escola vá padecer dos mesmos

conflitos, incertezas e inseguranças que atormentam e tencionam o mundo social, a

experiência tem nos mostrado, no entanto, que a Escola, além de ser constituída por sujeitos

em permanente movimento de instituição de suas próprias identidades, portanto, inacabados, é

também uma instituição por demais conservadora: as mudanças no mundo social não

encontram correspondência imediata nos espaços da Escola, posto que esta encontra-se

engessada por suas rotinas instaladas a longo prazo, o que possibilita, de certa forma, uma

reflexão mais distanciada sobre as teorias e práticas vigentes na vida social.

Há uma cultura pedagógica fortemente instalada, composta de modos de pensar, de

comportamentos, de relações de autoridade, de formas de conceber o conhecimento, enfim, de

visões ideológicas diferenciadas e contraditórias que, imprimem à Escola um ritmo muito

particular e um modo de existir, singular.

Na regulação de seus interesses, o Estado brasileiro vai através da reforma educacional

nos dar mostras sensíveis do novo significado empreendido ao papel da Escola.

Nesse sentido, a Escola neoliberal vai se organizar, como o Estado, a partir de um

modelo de mercado. Da Escola, agora espera-se que funcione como uma instância de

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contensão social e ocupe, pela via da participação de seus membros, o lugar que, por

obrigação, compete ao Estado. Quanto ao professor, longe de resgatar do passado a figura de

um mestre idealista e cheio de entusiasmo, que fazia a Escola existir a despeito das

alternâncias ideológicas dos governos, procura, com prescrições rigorosas, subtraindo-lhe o

caráter criador de sua existência, estabelecer-lhe atributo de mero reprodutor dos novos ideais

que perpassam as políticas públicas.

O aparato de regulamentação da nova ordem educacional apóia-se numa variedade de

novos significados pata termos e conceitos que se estabeleceram como caros à democracia: a

autonomia e a participação.

A metodologia da reforma educacional enfrenta, entre outras, a crítica de não envolver

o professorado na implementação das mudanças. O suposto geral do qual se parte é que os

docentes não dominam aquilo que devem ensinar, posto que sua formação e capacitação

(curiosamente estabelecidas durante décadas pelo mesmo Estado e pelos mesmos governantes

que ora promovem a mudança) têm tendido, por tradição, para saberes de tipo técnico-

pedagógicos, em detrimento dos conhecimentos disciplinares. Isso supostamente explicaria

não só os baixos níveis de qualidade das aprendizagens dos alunos, revelados nos resultados

das avaliações externas realizadas nos sistemas, como, igualmente, o tratamento dispensado

ao professor no texto do currículo nacional: para a grande empreitada rumo à transformação

desejada por todos, porém não realizada até o momento por ninguém, ao professor,

intimidado, cabe a tarefa de executar escrupulosamente o que lhe é indicado, de modo a não

comprometer a mudança concedida pelo especialista, que entende não só de currículo, como

também de transformação.

Assim, sair da crise pressupõe consultar os especialistas e técnicos competente que

dispõe do saber instrumental necessário para levar a cabo as citadas propostas de reforma:

peritos em currículo, em formação de professores à distância, especialistas em tomadas de

decisões com escassos recursos, sabichões reformadores do Estado, intelectuais competentes

na redução do gasto público, doutores em eficiência e produtividade, etc.

O recurso ao aparato abalizado do especialista reforça uma hierarquia que

historicamente estrutura toda a organização educacional: diretores, para a atividade

especializada de gestão; supervisores, para as atividades peculiares de controle e de

fiscalização; orientadores, para as atividades privadas de condução do processo educativo; e,

finalmente, professores, para as atividades de execução.

Os especialistas convocados a redigir os PCN tomam como suas as tarefas de pensar e

decidir sobre o que, pela natureza da função, deveria refletir e deliberar o professor.

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O discurso do especialista busca apresentar-se como infalível, visto que representa

uma autoridade da qual acredita ser portador. Cerca-se, para alcançar este fim, de uma pletora

de palavras através da qual tenta fornecer as possibilidades aceitáveis de cumplicidade na

deliberação do professor. Tem, portanto, um caráter extremamente diretivo, pois pretende dar-

se como referência às ações dos demais professores.

Mesmo nas condições de adversidades que o novo modelo político-econômico faz

surgir no horizonte social, ameaça permanente de desemprego, desvalorização da profissão

imposta pelos salários indignos e pela má qualidade (intencional) da formação, situações de

trabalho aviltantes, os interesses cotidianos dos professores, não se coadunam

espontaneamente com os interesses mais amplos do Estado em relação ao que este estabelece

como produção eficiente.

A alegada inércia das escolas e dos sistemas diante das mudanças pode ser resultante

de movimentos de resistência e de ajuste que as instituições e os atores realizam. A adoção de

parâmetros para o currículo como um dos Instrumentos utilizados pelo Estado na pretensão de

manter o controle sobre os processos e a produção educacional enseja possibilitar um controle

técnico sobre os professores, que se realizaria por intermédio do centralismo da definição da

questão curricular que se separa a concepção da execução: ao Estado competem às etapas de

formulação dos objetos, da seleção e organização dos conteúdos, das propostas de atividades

(orientações didáticas) e de definição dos padrões avaliativos e ao professor compete executar

estas etapas em sala de aula e na escola. O desempenho de cada escola fica, portanto,

subordinado às decisões das quais esta não foi chamada a participar, mas que deve,

compulsoriamente, submeter-se.

A cobrança, que se materializa na forma de incansáveis levantamentos, relatórios e

censos quantitativos que saem da prática cotidiana, possibilita o monitoramento constante dos

dados e estatísticas educacionais; e esses não apenas realimentam a organização do sistema e

determinam a redistribuição dos esforços materiais, como também municiam o governo das

informações que lhe são necessárias para prestar contas de seu comportamentos junto aos

organismos internacionais. O SAEB cumpre assim, um papel de fundamental importância,

não apenas pelos resultados que pode fornecer, como também pelos parâmetros de medida

que estabeleceu no cenário educacional.

As transformações tecnológicas no contexto do capitalismo atual e seus

desdobramentos em termos de novas exigências de qualificação do trabalhador permitem

delinear algumas das expectativas sobre as características que deverão ser esperadas de um

indivíduo educado para atuar competitivamente. Estas expectativas estão expressas com

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clareza meridiana na proposta curricular. Uma diferente concepção de conhecimento parece

ser a idéia central para a qual convergem todos os discursos, todas as propostas e todos os

atores sociais.

Percebe-se, paradoxalmente, o esvaziamento proposital dos conteúdos, pois não

parece, segundo o receituário da reforma curricular, haver problemas em acumular menos

conhecimentos, contanto que se saiba buscá-los enquanto informação, aliás, uma das atitudes

e competências enfatizadas: “aprender a aprender”, “seguir aprendendo” e a centralidade nas

disciplinas escolares, como se nelas pudesse estar contido todo o saber acumulado pela

sociedade.

Desse modo, seria adequado admitir que os processos de resistência podem evidenciar

a diferença entre pontos de vista e modos de fazer, enfim, demarcam a disputa entre projetos

diferentes para a sociedade e trazem para o centro do debate as relações de poder, de

reprodução e da exclusão às quais está submetida a maioria da população, o que numa

sociedade democrática é, além de extremamente razoável, completamente desejável.

É que aqui, nas escolas, como nas demais instituições da sociedade, para além da

resistência passiva, cabe, com larga margem, o exercício da reflexão e da interrogação

permanente acerca da fatalidade e da inevitabilidade das coisas. O que está em jogo é a

simples aceitação, recusa ou execução de um projeto educacional? Ou o que pode estar sendo

definitivamente tirado à fórceps de nós é a própria condição de liberdade e de autonomia dos

homens e da sociedade? Quanto a nós, queremos crer que os educadores brasileiros, não só de

escolas públicas, mas a todos que se dispõe a contribuir no processo da educação no Brasil;

cremos que podem estar afirmando com suas resistências a possibilidade de, ainda, se criar o

mundo novo.

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